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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS I
PEDAGOGIA
CRISTIANA FERREIRA DOS SANTOS
LITERATURA INFANTIL E A IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA:
CONSTRUÇÃO OU NEGAÇÃO?
SALVADOR
2010
2
CRISTIANA FERREIRA DOS SANTOS
LITERATURA INFANTIL E A IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA:
CONSTRUÇÃO OU NEGAÇÃO?
Monografia apresentada a Universidade do
Estado da Bahia – UNEB, Departamento de
Educação, Campus I, como pré-requisito para a
conclusão do curso de Pedagogia.
Orientador (a): Profª.drª. Mª de Fátima Nolleto
SALVADOR
2010
3
CRISTIANA FERREIRA DOS SANTOS
LITERATURA INFANTIL E A IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA:
CONSTRUÇÃO OU NEGAÇÃO?
Monografia submetida à aprovação do corpo
docente da Universidade do Estado da Bahia UNEB, Departamento de Educação, Campus l,
como pré-requisito para a conclusão do curso
de Pedagogia, Habilitação em Educação
Infantil.
Aprovada em: ....../...../........
Banca Examinadora:
__________________________________
Profª.Drª. Mª de Fátima Nolleto - Orientadora
Universidade do Estado da Bahia
____________________________________
Profª. Msc. Adelaide Badaró
Universidade do Estado da Bahia
_____________________________________
Profª. Msc. Claúdia
Universidade do Estado da Bahia
3
FICHA CATALOGRÁFICA: Sistema de Bibliotecas da UNEB
Santos, Cristiana Ferreira dos
Literatura infantil e a identidade da criança negra: construção ou negação? /
Cristiana Ferreira dos Santos . – Salvador, 2010.
73f.
Orientadora: Profª. Dªr. Maria de Fátima Nolleto.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade do Estado da Bahia.
Departamento de Educação. Colegiado de Pedagogia. Campus I. 2010.
Contém referências.
1. Literatura infanto-juvenil. 2. Educação de crianças. 3. Negros - Educação. 4.
Identidade racial. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação.
CDD: 808.899282
4
Dedico este trabalho primeiramente, a Deus, a minha
mãe, um ser humano exemplo de mãe, mulher, filha,
irmã, amiga e avó, me fez trafegar pelo caminho do bem
e da honestidade, que tanto comemorou o meu ingresso
na Universidade e me apoiou nos momentos mais
difíceis de minha vida.
Dedico este trabalho também a toda minha família, meu
irmão Cristiano (em memória), minha irmã Eliana que na
sua bondade, sensibilidade e dedicação sempre me
serviu de suporte, a meu irmão Eliércio e ao pequeno
Ian Robert, a minha estrelinha que veio abrilhantar a
minha vida. E, dedico especialmente, ao meu grande
amor Roberth dos Santos que tanto me serviu de
sustentáculo ao longo destes anos de convivência e de
aprendizado.
A todos que de alguma forma colaboraram para a
efetivação deste trabalho, que acreditaram e acreditam
em mim.
5
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a Professora Adelaide Badaró pela generosidade e
compreensão com que me tratou, no momento em que mais precisei. A toda a minha
família pelo exemplo de amor, dedicação e dignidade.
A minha querida sogra, Maria Aparecida dos Santos, avó de meu filho, pelo
apoio presente e firme no momento mais difícil desta caminhada, rumo à conclusão
do curso de Pedagogia.
Agradeço a Escola Municipal Sociedade Fraternal, em especial a Professora
Magda e sua turma de Educação Infantil. Cumpre salientar que Magda é uma das
melhores professoras que conheci até então, na sala dela negros são heróis, são
príncipes e princesas; a coordenadora pedagógica. Principalmente, pela forma
acolhedora com que me receberam e acolheram e por me mostrarem que uma
Educação Pública de qualidade é possível.
Gostaria de agradecer ao meu querido mestre, o Professor Jaime Sodré, o
qual tive o prazer de conhecer e com ele construir aprendizados sobre a cultura
negra, fundamentais para a elaboração deste trabalho. Foi com ele que pude
descobrir inquietar-me, construir, desconstruir, reconhecer e discutir minhas
angústias acerca do tema referido neste trabalho. E mediante essa convivência,
posso dizer que num cenário de preconceito e discriminação em que está debruçada
a sociedade brasileira, é fundamental que existam pessoas como o Professor Jaime.
Gostaria de agradecer a minha orientadora, professora Fátima Nolleto, uma
profissional admirável e competente.
Aos meus queridos amigos Michele, Daniele, Andréa, Fabíola e Allan por
dividirem comigo momentos distintos e especiais principalmente, no espaço
acadêmico.
6
Para a criança, as aventuras do herói ainda são legíveis
no torvelinho das letras como figura e mensagem na agitação
dos flocos. Sua respiração paira sobre a atmosfera dos
acontecimentos e todas as figuras bafejam-na. A criança
mistura-se com as personagens de maneira muito mais íntima
do que o adulto. É atingida pelo acontecimento e pelas
palavras trocadas de maneira indizível, e quando a criança se
levanta está inteiramente envolta pela neve que soprava da
leitura.
(BENJAMIN, 1984, p. 104-105)
7
RESUMO
Esta monografia estuda a importância da Literatura infantil para a construção de
identidade étnico-racial da criança negra, trazendo um breve histórico sobre este jovem
gênero literário, fazendo uma discussão acerca dos caminhos possíveis para uma
construção identitária: trata-se da Literatura afro-brasileira, a tradição oral africana e
o papel da linguagem iconográfica no tocante ao processo de interação da criança com a
literatura e com o sentimento de pertencimento desta em relação ao seu grupo étnicoracial. Num segundo momento a pesquisa trata dos personagens negros na literatura
infantil enfatizando que é preciso ir além dos estereótipos de forma que a criança negra
tenha na literatura a possibilidade de encontrar a si mesma. Apresenta também os
resultados de um estudo de caso com alunos negros da Educação Infantil da Rede
Pública Municipal de Salvador. O foco principal foi levantar as representações e reações
diante de histórias que trazem narrativas e ilustrações positivas do negro especialmente,
sobre a identidade étnico-racial. Para tanto foi desenvolvido um estudo de caso na Escola
Municipal Sociedade Fraternal, onde foram usadas técnicas de coletas de dados como
observação, entrevista e oficina de contação de histórias. O referido estudo corrobora
para um processo de construção de identidade de alunos negros onde impera a falta de
informações, não apenas por parte do ensino formal, do aluno negro quando o assunto é
a sua história, o que colabora para a não-aceitação de si mesmo e em decorrência disso,
compromete a sua relação com o outro e com o mundo que o rodeia.
Palavras-chaves: Literatura infanto-juvenil. Identidade étnico-racial. Criança
negra. Educação.
8
ABSTRACT
This work studies the importance of children's literature for the construction of identity
étnico-racial of black children, bringing a brief history of this young literary genre,
making a discussion of possible ways to construct an identity: it's read less literature,
oral tradition Africa and the role of iconic language for the process of interaction
between children with literature and with the feeling of belonging in relation to their
ethnic-racial group. In a second stage of the research is about black characters in
children's literature emphasizing that we must go beyond the stereotypes so that the
black child in literature has the possibility of finding itself. It also presents the results
of a case study of black students in Early Childhood Education Network Public
Municipal Salvador. The main focus was to raise the representations and reactions to
stories that bring stories and pictures of black people especially positive about the
identity étnico-racial. For this purpose we developed a case study in the School Hall
Fraternal Society, where they used techniques of data collection such as observation,
interview and workshop of storytelling. The study corroborates to a process of identity
construction of black students dominated the lack of information, not only for formal
education, the black student when it comes to their history, which contributes to the
non-acceptance of self same and as a result, compromises its relationship with the
other and the world around them.
Keywords: Juvenile literature. Ethnic-racial identity. Black child education.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 – Chegada de Luana a Palmares..................................................40
Figura 02 – Bintou passeia na Vila africana.................................................41
Figura 03 – Mapa de povos africanos .........................................................42
Figura 04 - Luana e família ...........................................................................43
Figura 05 – Bintou e sua querida avó ..........................................................43
Figura 06 – Bintou e sua irmã .......................................................................45
Figura 07 – A comunidade agradece a Bintou.............................................48
Figura 08– J, 5 anos de idade, Jardim II.......................................................60
Figura 09 – G, 5 anos .....................................................................................63
Figura 10 – M, 6 anos.....................................................................................65
Figura 11– G, 5 anos .....................................................................................67
Figura 12 – G, 5 anos .....................................................................................67
Figura 13 – G, 5 anos. ....................................................................................68
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................
1
LITERATURA
INFANTIL:CAMINHOS
POSSÍVEIS
PARA
11
UMA
CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA ..........................................................................
17
1.1 A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NEGRA ..............................................
17
1.2 O SURGIMENTO DA LITERATURA INFANTIL: BREVE HISTÓRICO ........
19
1.3 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: UMA POLÊMICA EM PAUTA .............
24
1.4 A TRADIÇÃO ORAL AFRICANA ..................................................................
29
1.5 A LINGUAGEM ICONOGRÁFICA ................................................................
29
2 A REPRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS NEGROS NA LITERATURA
INFANTIL: ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS .........................................................
33
2.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS.....................................................................
33
2.2 A LITERATURA INFANTIL PARA ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS ................
35
2.2.1 Resgate da ancestralidade e reflexão da escravidão ................................
38
2.2.2 África(s): País ou continente?.................................................................
40
2.2.3 Origens bem delineadas dos personagens ..........................................
42
2.2.4 Figura feminina em evidência e valorização da estética negra ..........
44
2.2.5 Apreço às relações comunitárias ..........................................................
46
2.2.6 Imagem positiva dos personagens ........................................................
47
3 LITERATURA INFANTIL E A IDENTIDADE DA CRIANÇA NEGRA:
CONSTRUÇÃO OU NEGAÇÃO? ......................................................................
50
3.1 CONHECENDO A ESCOLA SOCIEDADE FRATERNAL ............................
50
3.2 OS SUJEITOS DA PESQUISA .....................................................................
53
3.3 INSTRUMENTOS DA PESQUISA ................................................................
54
3.4 ENTREVISTA COM A PROFESSORA ........................................................
54
3.5 AS OFICINAS DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS .........................................
58
3.6 ANÁLISE DOS DADOS ................................................................................
59
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................
71
REFERÊNCIAS .............................................................................................................
74
11
INTRODUÇÃO
O objetivo desse trabalho é analisar e discutir a importância da Literatura
Infantil na construção de identidade étnico-racial da criança negra no contexto da
Educação Infantil, etapa fundamental para o desenvolvimento da criança. A
preocupação com esta temática surgiu a partir do momento em que comecei a
compreender algumas situações que vivenciei quando criança. Esta compreensão
se deu principalmente, durante as discussões proporcionadas pela professora
Narcimária Luz, no sétimo semestre do curso de Pedagogia, pela Universidade do
Estado da Bahia - UNEB, no ano de 2009.
Vale salientar que há onze anos atrás, numa roda de oração, uma amiga,
pedagoga, graduada pela universidade citada anteriormente, pediu a Deus pelo seu
filho negro, naquele momento não consegui entender tal pedido. Hoje é possível
perceber que a sociedade brasileira, apesar da diversidade que é constituída, vive
num cenário de preconceito e discriminação.
Nessa direção vários estudos apontam para o não-respeito à diversidade
racial, um exemplo é a pesquisa realizada por Eliane Cavalleiro (2003) em escolas
da rede pública de ensino, num bairro de classe média de São Paulo.
Outras questões me motivaram a tratar desta temática, desde criança gostava
muito de ler historinhas, cheguei a ler um livro que contava a história de uma
princesa, várias vezes, viajava naqueles escritos, quando não podia comprá-los,
admirava-os com olhos brilhantes, pela beleza e formosura disposta nas capas.
Atualmente, leio romances literários e não dispenso a leitura de um belo poema.
Vale frisar que há um número bastante reduzido de pesquisas que analisam
as questões étnico-raciais na educação infantil, no Brasil, o que me instiga a estudar
tal temática. Geralmente, as pesquisas tratam do ensino a partir do Ensino
Fundamental. Acredito que tal fato se deva à dificuldade que se tem em obter
informações com crianças muito pequenas.
Outro fato que me impulsionou para a temática em tela foi o seguinte: realizei
o meu estágio referente ao Componente Curricular Estágio Supervisionado I, numa
12
escola pública do bairro da Liberdade (Salvador-Bahia), numa sala de educação
infantil, o fato é que após realizar uma intervenção através da contação de um conto
africano, perguntei a turma (grande maioria negra): se eles eram descendentes de
africanos e, todos foram unânimes em dizer que não. Naquele momento, não
consegui esboçar nenhuma reação, acredito que fiquei atônita diante da situação
devido ao que chamo de “imaturidade pedagógica”.
O fato é que aqueles alunos precisavam de um trabalho construído
sistematicamente e embasado no reconhecimento da diversidade étnico-racial; não
poderia mudar aquele cenário com apenas uma intervenção. Acredito que a
resposta negativa daquelas crianças se deu principalmente, pelo fato de eles não se
verem como pertencentes à nação negra ou por não conhecerem as contribuições
culturais do povo africano para nós brasileiros.
Gostaria de ressaltar que o momento decisivo para a escolha dessa temática
se deu no sétimo semestre do curso de Pedagogia, ainda no ano de 2009, quando
fiz o componente curricular Processo Civilizatório e Pluralidade Cultural com a
professora Narcimária Luz. Foi quando, tive a oportunidade de perceber que as
questões raciais são muito mais sérias e contundentes no âmbito da sociedade
brasileira, descobri que nesta sociedade existe a ideologia do embranquecimento e
o mito da democracia racial (nada mais é que uma tentativa de camuflar, disfarçar o
racismo existente no Brasil); que existe uma ausência de discussões sobre a
temática racial na família, na comunidade, na escola; que existe uma não visibilidade
dos negros nos meios de comunicação, etc.
Diante destas inquietações pretendo estudar as seguintes questões: Qual a
importância da literatura infantil no processo de construção de identidade étnicoracial da criança negra? Quais as representações e reações das crianças diante de
histórias que tratam da temática racial? Qual a influência que a postura do professor
pode exercer no processo de construção de identidade étnico-racial da criança
negra?
É fundamental nesta pesquisa, compreender a formação da literatura infantil,
enquanto gênero literário em construção. A literatura exerce um papel mobilizador de
13
transformações na vida de uma criança já que trás em suas histórias uma variedade
de temáticas, discussões e representações especialmente, através das imagens ali
apresentadas. Para tanto, utilizarei os estudos de Marisa Lajolo e Regina Zilberman,
Nelly Coelho (2005), Fanny Abramovich (1991) e Ana Célia da Silva.
O contexto da educação formal é um espaço propício para a interação da
criança negra com a Literatura Infantil e, muitas vezes é na escola que esta criança
será desvalorizada, estereotipada e em conseqüência disso, passa a rejeitar os
signos e características vinculadas a sua origem. Desta forma, a criança negra tem
sua autoconfiança afetada e seu auto-conceito também.
Dentro desse processo de desvalorização do negro, tem-se o desejo de
pertencimento ao grupo étnico branco. Nesta direção, verifica-se que os estudos de
Eliane Cavalleiro (2000) são atualmente, uma fonte esclarecedora e questionadora
do lugar que a escola brasileira tem destinado à criança negra.
Diante de tudo isso, é possível perceber que a literatura se torna um
instrumento que pode ser utilizado como via de desconstrução desse processo e
favorável a um processo de mudança e, de reconhecimento do negro no panorama
social brasileiro. A literatura (“não aquela que insiste em estereotipar o negro, mas
aquela que tem surgido evidentemente, com o objetivo de mudar esse contexto de
preconceito e discriminação”) é uma das possibilidades que temos de manter viva a
história, os conhecimentos e o legado deixado pelo povo africano para a sociedade
brasileira. Desta forma, irei me apoiar nos estudos de Florentina Souza, Maria
Nazaré Lima (2006), Eliane Cavalleiro (2001), Heloísa Pires Lima (2006), entre
outros.
Nesse sentido, espera-se uma obra infantil desprovida de estereótipos
veiculados à representação social, cultural e à construção de identidade étnica, esta
última tanto para os que se apóiam nela para uma auto-afirmação de sua condição
étnico-racial quanto para aqueles que nela encontram uma base para construir
valores referenciais no tocante à cultura do outro.
14
É nessa perspectiva de recriação do negro no panorama da literatura que
vem trabalhando vários autores na contemporaneidade. Temos como exemplo: Diouf
(2004), Lima (1999), Chamberlim (2005) e, é nessa direção que pretendo conduzir o
tema aqui proposto, pois é preciso recriar uma nova percepção do negro no contexto
da literatura infantil e é preciso valorizar as histórias que já respeitam tal dinâmica,
apesar de que existem, mas não são muito divulgadas.
Sendo assim, um dos caminhos que podem ser seguidos pelo professor com
o objetivo de contribuir para a construção de identidade da criança negra, da qual
nos fala Ferreira (2000), é a literatura, esta nos possibilita descobrir o mundo imenso
dos conflitos, dos impasses, das soluções que todos vivemos e atravessamos como
nos diz Abramovay 2002).
Em suma, enquanto houver crianças e adultos com vergonha de sua
identidade étnico-racial, falseando esta como se de outra raça fosse, será
necessário que esta discussão persista como forma de resistência à opressão e
exclusão, como uma possibilidade de mudança e de atenuação do racismo que
tanto tem ultrajado o indivíduo negro, reafirmando que a diferença não pode servir
como motivo de inferioridade, mas como construção da valorização do sujeito, do ser
humano.
Para a realização desta pesquisa foi coletado dados em uma escola municipal
da rede pública, no bairro de Pau da Lima, na cidade de Salvador – durante os
meses de julho e agosto de 2010. A pesquisa foi realizada mediante observação
dos alunos e da professora em sala de aula, entrevista com a professora e, através
de oficinas de contação de historinhas que retratam a temática étnico-racial. Desta
forma, a pesquisa tem uma abordagem qualitativa ao debruçar-se na análise das
obras literárias e das reações e representações das crianças com estas.
Organiza-se esse trabalho em três itens. O primeiro trata da literatura infantil
na condição de gênero em construção, sua formação; os caminhos possíveis para
uma construção identitária, trazendo inicialmente, uma discussão sobre a construção
de identidade negra, a e, dentro deste primeiro item será feito um parâmetro com a
literatura afro-brasileira que na contramão da literatura legitimada vem ao longo dos
15
tempos, assumindo pressupostos e idéias da população negra em sua luta contra a
ideologia do embranquecimento e a chama da democracia racial.
Este trabalho apresenta também a tradição oral africana como uma referência
marcante do povo africano e a comunicação oral como elementar para a formação
da literatura infantil brasileira e por fim, ressalta a linguagem iconográfica e sua
importância no tocante ao processo de interação da criança com a literatura,
especialmente.
O segundo item trata da representação dos personagens negros na literatura,
a origem dos personagens negros na literatura, fazendo ainda neste item, uma
análise de algumas obras que trazem o negro na posição de protagonistas onde é
feito uma reflexão sobre a ancestralidade africana e uma releitura da escravização (a
criança precisa perceber que a história do negro não se resume e nem se finda na
escravidão). Ainda neste item será apresentada a importância da figura feminina na
tradição africana (daí o fato de tantas personagens femininas nas historinhas que
tratam da temática) e valorização da estética negra; a importância dada às relações
comunitárias e, a imagem positiva em que os negros são apresentados nas obras
analisadas.
O último item vem trazendo a pesquisa feita na escola, à análise dos dados, o
perfil das pessoas pesquisadas e a partir das historinhas analisadas e dos
pressupostos teóricos bem como das representações literárias, será verificado como
elas afetam diretamente na construção do imaginário e da identidade da criança
negra.
Vale ressaltar que utilizo o termo “negro” na mesma acepção dos Movimentos
Negros contemporâneos, os quais reconhecem a necessidade de ressignificar este
termo, de modo à desconstruir a carga negativa a ele atribuída ao longo do tempo.
Afinal, conforme afirma Ana Célia Silva (1995, p. 44), o “(...) termo negro é carregado
de conceitos e preconceitos. É carregado também de lembranças, de lutas na
construção da identidade. O termo negro nos remete a sujeitos sociais, históricos, a
diversidades raciais e culturais”.
16
É salutar esclarecer, ainda que utilizo o termo “negro” por uma questão de
perspectiva política, indo ao encontro do que preconiza a posição crítica dos
Movimentos Negros contemporâneos, na medida em que objetivam a ressignificação
do negro no âmbito social. E ressignificar aqui significa inovar, mudar, recriar uma
nova forma de delinear os personagens negros no contexto das histórias infantis. É
com tal percepção que faço uso do aludido termo no estudo aqui proposto. Sendo
assim, no caso dos alunos pesquisados, atribuo como negro os pardos e os de pele
mais escura.
17
1. LITERATURA INFANTIL: CAMINHOS POSSÍVEIS PARA UMA CONSTRUÇÃO
IDENTITÁRIA.
1.1 A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NEGRA
No estudo de Nilma Gomes (2008) a autora afirma que entende a identidade
negra como um movimento que não se dá apenas a começar do olhar de dentro, do
próprio negro sobre si mesmo e seu corpo, mas também na relação com o olhar do
outro, do que está fora, esta relação ela descreve como tensa, conflituosa e complexa
(...).
A construção de identidade étnico-racial se dá na interação com o outro, seja
na escola, na família, em qualquer espaço social. Por isso que efetuei a minha
pesquisa de campo num espaço onde as interações são evidentes, que é a sala de
aula, utilizando a literatura infantil enquanto instrumento de representação e
interação.
Ao visitar uma grande livraria em um Shoping Center de elevada circulação, na
cidade de Salvador, no dia 13 de julho de 2010 percebi que as obras de literatura
infanto-juvenil que tratam da temática étnico-racial, dos indígenas e da cultura afro
encontravam-se dispostas na penúltima prateleira de baixo para cima, ou seja,
distante dos olhos das crianças que freqüentam aquele espaço. Naquela visita
permaneci em torno de duas horas, pude constatar durante este período que todas as
crianças eram de origem branca e aparentavam condição financeira beirando classe
média a alta.
Dentro de um universo de obras literárias que se destinam ao público infantojuvenil, na mencionada livraria havia uma quantidade ínfima de obras que evidenciam
a temática étnico-racial, procurei por quatro obras que tratam da supracitada
temática, mas encontrei apenas uma, trata-se de As tranças de Bintou. Segundo a
aludida funcionária, os da Barbie, por exemplo. 2) As crianças ao abordá-la para
pedir-lhe livros de literatura infantil, quais os que elas mais procuram? A supracitada
funcionária respondeu que a obra Alice no país das maravilhas – que segundo ela
está na moda – em seguida está Chapeuzinho Vermelho e Dora Aventureira,
respectivamente.
18
Fiz junto à funcionária daquela seção da mencionada livraria uma inferência
sobre a disposição inacessível de obras consideradas importantes para a tão
“almejada” interdisciplinaridade, obtendo a resposta seguinte: que elas estavam ali
porque era uma determinação da central da livraria, situada na cidade de São Paulo;
efetuei mais duas perguntas, trata-se de: 1) Quais os livros mais vendidos de
literatura infantil? A mesma respondeu que os de Monteiro Lobato, Rute Rocha e
“clássicos”,
O fato é que se a construção de identidade se dá mediante a forma como se é
visto pelo outro e através da interação com o outro, se este outro é também a criança
branca, e esta muitas vezes não é incentivada ou não tem acesso a obras que
valorizem o negro, como será possível esta construção?
Gomes ao tratar da construção de identidade negra se apóia em Jacques d’
Adesky (2001, p.76) destacando que a identidade, para se constituir como realidade,
pressupõe uma interação. A idéia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é
intermediada pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação.
Nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, é negociada durante a
vida toda por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os
outros.
Conforma assinala a autora, no Brasil, a construção da(s) identidades negra(s)
passa por processos complexos e tensos. Essas identidades foram (e tem sido)
ressignificadas, historicamente, desde o processo da escravidão até as formas sutis e
explícitas de racismo, à construção da miscigenação racial e cultural e às muitas
formas de resistência negra num processo – não menos tenso – de continuidade e
recriação de referências identitárias africanas (...).
Nesse sentido, é possível constatar no tocante à literatura infantil e a
construção de identidade étnico-racial da criança negra que a presença positiva do
negro no livro é muito importante, mas é muito importante também que este livro seja
acessado pelas crianças negras e não-negras, nos diversos espaços sociais,
possibilitando assim uma interação do leitor negro e não-negro com questões e
ilustrações que envolvem à temática étnico-racial, o que contribui para o
19
desenvolvimento de ações e relações baseadas na tolerância e no respeito à
diversidade.
1.2 O SURGIMENTO DA LITERATURA INFANTIL: BREVE HISTÓRICO
Para maior compreensão da literatura infantil e as questões étnico-raciais é
preciso que se faça uma síntese do surgimento desse incipiente gênero. A literatura
infantil se constitui como gênero literário durante o século XVII, época em que as
mudanças na estrutura da sociedade resultaram em repercussões no cenário
artístico. O advento da idade moderna, o surgimento da burguesia, a estruturação do
capitalismo no qual se evidencia a livre iniciativa e a concorrência e, também a
Revolução Industrial implicaram um novo tipo de sociedade e de família que
passaram a se preocupar mais com a educação e formação de suas crianças
anteriormente, vistas apenas como adultos pequenos, a ponto de Cunha destacar
que:
A literatura infantil tem relativamente poucos capítulos, começa a delinear-se
no início do século XVIII, quando a criança passa a ser um ser diferente do
adulto, com necessidades e características próprias, pelo que deveria se
distanciar da vida dos mais velhos e receber uma educação especial que a
preparasse para a vida adulta. (CUNHA, 2002, p.22)
Observa-se que no início do século XVIII, a criança ganha da sociedade um
novo status e, este a distancia cada vez mais do modelo do adulto, a criança passa a
ter demandas que a difere. Partindo desse pressuposto e, da lógica do capitalismo, o
lucro, nasce também um consumidor que precisa ser atendido. Aqueles que
dispunham de recursos financeiros usufruíam a mais variada produção literária
infanto-juvenil.
No estudo de Cunha é possível perceber que as transformações vividas pela
sociedade da época causaram mudanças na estrutura familiar, baseada até então na
divisão do trabalho entre seus membros que passam de meros cumpridores de
obrigações a indivíduos compostos por objetivos, dotados de uma função existencial.
Dessa forma, a criança passa a ter um prestígio social nunca visto e isto torna
possível o surgimento de obras literárias destinadas ao público infantil.
Dentro desse contexto de mudanças na vida social, à escola não fica de fora,
também passa por mudança no tocante à sua estruturação. E é nessa perspectiva de
20
estruturação que a escola vai ter maiores vínculos com a literatura. Neste momento
de estruturação, conforme afirma Lajolo e Zilberman (2002) a escola vai estreitar seus
laços com a literatura.
Nos anos 1970 o Instituto Nacional do Livro (fundado em 1937) começa a coeditar, através de convênios, expressivo número de obras infanto-juvenis. Muitos
autores, inclusive consagrados, não desprezaram a oportunidade de inserir-se nesse
promissor mercado de livros.
Conforme assinala Oliveira (2003) esse interesse do mercado editorial se deve
à proposta de erradicação do analfabetismo no final dos anos 60 e durante os anos
70, quando a alfabetização de jovens e adultos torna-se o centro das atenções.
Oliveira ainda destaca em sua obra que é neste momento que os personagens são
meios de criticar, de denunciar a pobreza, a miséria social, a injustiça, a
marginalização, o autoritarismo e os preconceitos.
Vale salientar que no contexto histórico, o país vive uma situação de muita
instabilidade por conta do regime militar; um cenário social de muitas reivindicações
por melhorias de vida, manifestações contra o regime e alguns desses escritores
tentam situar suas obras dentro de tais perspectivas (denunciando as mazelas
sociais, etc.) ainda que, muitos destes tenham deixado prevalecer as estereotipias
vigentes no imaginário da sociedade e na muitas vezes, na vida diária.
Para Oliveira (2003) a literatura infanto-juvenil surge como um elemento
puramente comercial, não há uma preocupação com a temática abordada e a maioria
das obras publicadas são adaptações de obras destinadas ao público adulto. É desta
forma que ela chega ao Brasil. Aqui no Brasil as produções destinadas às crianças e
jovens iniciam-se no século XIX, embora na época tenham sido constituídas
principalmente, de obras estrangeiras. Na verdade só depois de Lobato é que
começa de fato o apogeu de tais produções.
Oliveira se apóia em Brookshaw para afirmar que dentro da perspectiva
maniqueísta (traço marcante das histórias infantis): bondade versus maldade,
Brookshaw (1083) ressalta que a associação da cor preta com a maldade e feiúra, e
21
da cor branca com a bondade e beleza remonta à tradição bíblica, permanecendo em
seu folclore e em seu patrimônio literário e artístico. O autor aponta que o modo como
o branco vê o negro foi moldado desde a infância pelas histórias em que a negritude
era associada ao mal e os que faziam mal eram negros. A reiteração feita pela autora
é pertinente, pois basta lembrar de algumas cantigas e estórias que o adulto utiliza ou
utilizava para assustar as crianças (ou até como forma de ninar). O exemplo: Boi da
cara preta, O homem da pasta preta, entre outras.
A (auto) percepção inferiorizada dos personagens negros (vista em várias
obras, inclusive nas de Lobato) também é uma maneira de compreender as
consequências do racismo a brasileira, quando se leva o outro (discriminado) a
rejeitar a si mesmo e a desejar ter uma aparência considerada condizente com o
padrão ideal de beleza, normal: o branco no caso.
Segundo Coelho (1985) a Monteiro Lobato coube a fortuna de ser, o divisor de
águas que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Tal afirmação justifica-se por
conta da ruptura do autor com a influência européia, quanto à valorização da cultura
brasileira, por resgatar o folclore nacional. Ao aludido escritor, deveu-se o
investimento nas primeiras editoras voltadas para as produções infantis e juvenis. É
indiscutível que ele diverte e educa o leitor (que não está vinculado a uma análise
crítica) por meio de sua obra, apresenta um universo mergulhado em fantasia,
ludicidade, criatividade e aventura no Sítio do Pica Pau Amarelo.
Em contrapartida, há críticas quanto à estereotipia atribuída ao negro na obra
de Lobato. Em especial nas Histórias da Tia Nastácia e em Reinações de Narizinho.
Por outro lado existe Dona Benta (branca) que simboliza a sabedoria livresca, o seu
conhecimento é superior ao de sua empregada, a qual “(...) representa o lado ingênuo
e crédulo do povo”, pois os demais habitantes do sítio pensam que tia Nastácia fala
‘errado’, e que apresenta idéias simplistas.
Sendo assim, Dona Benta é o único adulto no texto, ela é símbolo de
inteligência, conforme os padrões brancos.
22
Chamou-me a atenção um trecho de um texto de Lobato (1936) – considerado
por muitos o Pai da literatura infanto-juvenil, genuinamente brasileira, o texto
intitulado Memórias da Emília que traz um relato desta ao Anjinho caído do céu onde
a personagem afirma que a vaca era um animal precioso para o homem e que, no
entanto, o termo “vaca” era usado de forma depreciativa, na linguagem cotidiana:
Pois muito bem. A vaca é tudo isso que acabo de dizer e muito mais. No
entanto, se você comparar a mais suja negra de rua com uma vaca dizendo:
“você é uma vaca”, a negra rompe num escândalo medonho e se estiver
armada de revólver, dá tiros.”(LOBATO, 1936)
No estudo de Khéde (1990) é possível perceber que nos contos de fadas
tradicionais os personagens são tipos, isto é, marcados por um único traço ou
caricatura, quando este traço é muito reforçado. É daí que emergem os estereótipos:
a bruxa malvada, a fada bondosa, a princesa virtuosa, o príncipe jovem, belo e forte,
conforme o padrão de beleza europeu.
Vale frizar que naquele tempo, a sociedade mantinha certa conexão com
teorias racistas que vigoravam com muita força no imaginário das pessoas. Acredito
que estas teorias (como as de Nina Rodrigues, Silvio Romero, Oliveira Viana e
Gilberto Freyre) contribuíram para propagar no país ideologias racistas, a exemplo da
ideologia do branqueamento e mitos como o da democracia racial.
Sobre o mito da democracia racial Ana Célia da Silva afirma:
O mito da democracia racial visa camuflar o racismo e bloquear a
organização negra, uma vez que internaliza nos membros da sociedade o
engodo da igualdade de oportunidades, reforça o sentimento de inferioridade
do negro por não ter “capacidade” de aproveitar tais oportunidades,
transferindo mais uma vez para a vítima a culpa da sua situação se miséria
e marginalização. (SILVA, 1995, p.34)
A autora retrata em sua obra, Discriminação no Livro Didático, os fundamentos
da democracia racial e da ideologia do branqueamento:
A ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial parecem ter
como causa fundamental o medo que a minoria branca tem da maioria negra
e mestiça, e do possível antagonismo a ser gerado a partir da exigência de
direitos de cidadania e de respeito às diferenças étnico-culturais. Isso
porque a aceitação democrática das diferenças pressupõe igualdade de
23
oportunidades para os seguimentos que apresentam padrões estéticos e
valores sócio-culturais diferentes. Então, o respeito às diferenças implica
numa reciprocidade de direitos em um sistema baseado na exploração do
outro, desenvolve-se toda uma ideologia justificadora da opressão e
interiorização, objetivando a destruição da identidade, da auto-estima e
potencialidades do oprimido. (SILVA, 1995, p.25).
É mister ainda, salientar que conforme assinala Silva(1989), a ideologia do
branqueamento objetiva equalizar as diferenças culturais, transformando os
segmentos diferentes, como o negro e o índio, em um só povo, o povo brasileiro,
vivendo de forma harmônica e consensual, sob a hegemonia da classe minoritária
dominante, pretensamente ariana e européia. Além desta proposta de equalização
como forma de evitar o conflito e estabelecer o consenso sócio-cultural, a ideologia
do branqueamento tem a proposta de produzir uma nação branca num futuro não
muito distante, a partir do processo de miscigenação, como uma das formas de
eliminação do povo negro na constituição da nação brasileira.
Dentro desta lógica, a literatura legitimada seria um dos instrumentos eficazes
para a manutenção desta configuração social, no imaginário da sociedade, onde a
maioria negra tem sua identidade destituída e vinculada a elementos depreciativos.
Desta forma, há um favorecimento para a manutenção das referidas ideologias.
É recorrente a apresentação de personagens negros em funções de pouco
destaque na sociedade, reiterando o favorecimento à destruição da identidade do
negro conforme preconiza Silva. Abramovich afirma que:
O preto? Ora somente ocupa funções de serviçal (setor doméstico ou
industrial e aí pode ter uniforme profissional que o define enquanto tal e que o
limite nessa, seja mordomo ou operário...) Normalmente é desempregado,
subalterno tornando claro que é coadjuvante na ação e, por conseqüência,
coadjuvante na vida... (sic)”(ABRAMOVICH, 1991, p.39)
O fator que considero um problema não está na ocupação de espaços
socialmente desvalorizados, mas em ocuparem somente esses espaços, é como se
ao negro só fosse possível a ocupação de papéis de baixo prestígio social.
É possível perceber que mesmo quando a obra possui a intenção de trazer
inovações,
de
construir
personagens
não-caricaturados,
vinculados
a
uma
representação mais próxima do real, estas ideologias estão tão fixas no imaginário
24
desta população, ao qual o autor também faz parte, que acabam por cair em muitas
estereotipias já verificadas em outras obras.
Diante de tudo isso, com as estereotipias que se evidencia nas obras de
literatura infantil, desde o surgimento aos dias atuais (com algumas exceções) tornase muito difícil a ocorrência de um sentimento (por parte da criança negra) de
aceitação ao grupo étnico ao qual esta pertence, que vai desde a sua “(auto) rejeição
como a rejeição de qualquer aspecto que venha a relacionar-se a da sua identidade
originária do povo negro”. (CAVALEIRO, 2001, p.145).
Será que não está na hora de se pensar sobre os autores e obras que devem
ser lidos na escola? Ao me dirigir à escola a qual realizei a pesquisa de campo (será
relatada posteriormente neste trabalho), e indagar a professora da turma onde realizei
a referida pesquisa, sobre a utilização de obras com a temática étnico-racial, à
educadora foi clara ao dizer que a escola não dispunha de nenhuma obra escrita que
tratasse de tal temática.
1.3 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: UMA POLÊMICA EM PAUTA
No estudo de Fonseca (2006) é possível perceber que há uma polêmica
discussão veiculada no cenário literário brasileiro acerca das expressões “literatura
negra”, “literatura afro-brasileira”, apesar de bastante utilizadas no meio acadêmico,
nem sempre são suficientes para responder às questões propostas por pessoas cujas
atividades estão relacionadas com a literatura, a crítica, a educação. Para uma
melhor compreensão a autora reporta-se a alguns acontecimentos relevantes. Por
isso ela afirma que:
A expressão ‘literatura negra’, presente em antologias literárias publicadas em
vários países está ligada a discussões no interior de movimentos que surgiram nos
Estados Unidos e no Caribe, espalharam-se por outros espaços e incentivaram um
tipo de literatura que assumia as questões relativas à identidade e às culturas dos
povos africanos e afro-descendentes. Através do reconhecimento e revalorização
da herança cultural africana e da cultura popular, a escrita literária é assumida e
utilizada para expressar um novo modo de se conceber o mundo. (FONSECA,
2006, pp. 11 e 12)
A autora traz questionamentos que considero muito pertinente já que este
capítulo trata da literatura infantil e os caminhos possíveis para uma construção
25
identitária e, acredito que a literatura afro-brasileira é um desses caminhos, pois um
dos temas prioritários desta é a identidade negra e a cultura africana:
Qual a expressão adequada para designar as forma literárias produzidas por
autores negros ou afro-descendentes? Por que grande parte dos escritores negros ou
afro-descendentes não é conhecida dos leitores e os seus textos não fazem parte da
rotina escolar? Eis ai uma polêmica discussão, porém necessária para um melhor
entendimento dos sentidos que carregam as expressões “literatura negra” e “literatura
afro-brasileira” e também acerca das produções literárias relegadas a ‘décimo ou
nenhum plano’. O fato é que quando se utiliza tais termos “em referência à produção
artística literária no Brasil, várias questões são suscitadas” (FONSECA, 2006, p.11).
Muitos teóricos e escritores do Brasil, das Antilhas, do Caribe e dos Estados
Unidos, a utilização do prefixo “afro” não consegue evitar os mesmos problemas já
verificados no uso da expressão “afro-brasileiro (a)” são utilizados para caracterizar
uma particularidade artística e literária ou mesmo uma cultura em especial. Com base
nesse raciocínio, ambos os textos são vistos por tais autores como excludente,
porque particularizam questões que deveriam ser discutidas levando-se em
consideração a cultura do povo de um modo geral e não apenas suas
particularidades, ou seja, no caso do Brasil, se deveria levar em conta a cultura
brasileira e não apenas a cultura afro. Muitos estudiosos têm uma opinião contrária,
veiculando a necessidade de utilização de tal termo por acreditar que o uso deste é
necessário. Conforme afirma a autora:
Numa opinião contrária, outros teóricos reconhecem que a particularização é
necessária, pois quando se adota o uso de termos abrangentes, os
complexos conflitos de uma dada cultura ficam aparentemente nivelados e
acabam sendo minimizados. Nessa lógica o uso da expressão “literatura
brasileira” para designar todas as formas literárias produzidas no Brasil não
conseguiria responder à questão: por que grande parte dos escritores
negros ou afro-descendentes não é conhecida dos leitores e os seus textos
não fazem parte da rotina escolar?(FONSECA, 2006, p.12)
Dessa forma, acredito veementemente na necessidade de particularização e
na viabilidade da utilização do termo literatura afro-brasileira por compreender que o
aludido termo pode funcionar enquanto elemento propiciador de discussão das
26
temáticas que envolvem o grupo étnico negro e também, como destaque das
produções destinadas ao negro ou escritas por este.
Nessa direção, é importante salientar que o poder de escolha (no tocante à
veiculação das produções literárias) está nas mãos de grupos sociais privilegiados
e/ou especialistas – os chamados críticos. São eles que decidem quais autores
devem ser lidos e os textos que devem fazer parte dos programas de literatura na
escola. Por isso, é necessária uma discussão e uma reflexão mais aprofundada sobre
a dificuldade ou a não nomeação da literatura produzida por autores que não são
escolhidos pela crítica.
Para tanto, é preciso compreender os instrumentos de exclusão legitimados
pela sociedade. Por exemplo, quando se faz referência à literatura brasileira, não é
necessário usar a expressão “literatura branca”, porém ao fazer um levantamento dos
textos e obras consagrados – os ditos clássicos literários, no contexto da literatura
brasileira, é possível perceber que o autor e autora negra aparecem muito pouco, ou
seja, os escritores que optam pelo trato às tradições africanas em suas obras, são
quase sempre minoria na tradição literária do país.
Quando se começa a discutir de forma mais intensa a questão da identidade
cultural na nossa sociedade, as expressões “literatura negra”, “poesia negra”, “cultura
negra” também passam a circular com mais intensidade. Nesse processo, começa a
se perceber de forma mais acentuada, a existência do mito da democracia racial de
forma que os preconceitos contra os descendentes de africanos tornam-se mais
evidentes embora, tais preconceito quase nunca sejam realmente contestados
(principalmente, por conta do silenciamento por parte da vítima conforme tem
discutido em sua obra Do silêncio do lar ao silêncio escolar, a autora Eliane
Cavalleiro), sendo até considerados como não ofensivos.
Dentro desta discussão, recordo-me quando foi divulgado com mais afinco o
racismo como crime inafiançável e imprescritível (previsto na Constituição Federal de
1988, Artigo 5º, inciso XLII), diante de tal afirmativa questiona-se o seguinte: qual o
negro que após ser discriminado nunca ouviu alguém opinar dizendo: deixa pra lá,
isso é “besteira”!
27
As obras trazidas por escritores onde a questão étnico-racial é constante
constituem um material de pesquisa muito importante, pois apresentam textos que
circulam pouco no meio acadêmico e nos programas de literatura das escolas do
ensino fundamental e médio. Elas também assumem uma importância porque
discutem questões vinculadas à exclusão vivida por grande parte da população
brasileira, busca desconstruir uma tradição literária que ao longo dos tempos, vem
excluindo a produção dos afro-descendentes e produções de cunho político.
Desse modo, é incentivada uma nova forma de se ver os preconceitos
evidenciados na sociedade e são apontadas às possibilidades de apresentar o
escritor negro ou aquele que se propõe à temática, como criativo, inventivo, crítico e
consciente de seu papel enquanto transformador de uma realidade opressora e
estereotipada. Os objetivos destes trabalhos são considerados como “estratégia de
reversão da imagem do negro visto como “máquina de trabalho”, como “coisa ruim”
ou como “objeto sexual”“. (FONSECA, 2006, p.16)
Dentro desse contexto, surge a partir de 1978 os Cadernos Negros, uma
coletânea publicada anualmente com o objetivo de refletir sobre o lugar ocupado pela
literatura produzida pelos afro-descendentes no cenário literário brasileiro. É possível
perceber na afirmação de Fonseca quando a autora menciona que:
Os autores dos Cadernos Negros buscaram dar visibilidade à sua produção
e ampliaram a reflexão sobre a condição de trabalho dos escritores negros,
sobre a circulação de seus textos, a marginalidade dessa produção e a
linguagem com que se expressam. Numa criação literária mais preocupada
com a função social do texto, interessa-lhes, sobretudo, a vida dos excluídos
por razões de natureza étnico-racial. A relação entre cor e exclusão passa a
ser recorrente na produção literária denominada pela crítica como negra ou
afro-brasileira.(FONSECA, 2006, p.17)
O fato é que a “literatura negra” tem como um dos temas mais importantes a
questão identitária e também “aludem ao enfrentamento das ordens sociais,
seguramente mais severas para os brasileiros de cor negra”. (FONSECA, 2006,
p.21). A autora cita um trecho de um poema intitulado “Diariamente” (p.15) de José
Carlos Limeira que evidencia tal proposição:
28
“Me basta mesmo
Essa coragem quase suicida
De erguer a cabeça
E ser um negro
Vinte e quatro horas por dia.”
A autora faz referência ao poema do escritor Luiz Silva, “Negro pronto”
publicado na Antologia de poesia negra brasileira, organizada por Zilá Bernd (1992)
em que é possível observar o eu poético declarando-se na condição de negro,
reconhece-se negro:
“Negro pronto
Negro e pronto
Negro sou!”
É mister ainda, ressaltar que um objetivo importante da poesia negra é tratar
da busca de identidade afro-descendente e da reversão das imagens negativas
vinculadas ao negro, ao longo dos anos.
Diante de tudo isso, é possível inferir que o termo “literatura negra” vem
carregado de sentido principalmente, por relacionar-se com as lutas pela
conscientização do povo negro (a exemplo das lutas empreendidas pelo Movimento
Negro). Entretanto, o termo negro assumiu uma carga negativa, pejorativa.
Desta forma, acredito na viabilidade da expressão “literatura afro-brasileira”,
enquanto termo abrangente, amplo, pois traz em seu bojo o termo “literatura” que
indica arte; criação vinculada com a África, que nos deixou um legado cultural vasto e
primoroso. Também acredito que é através do conhecimento deste legado que a
criança negra será capaz de identificar-se enquanto pessoa pertencente ao grupo
negro.
1.4 A TRADIÇÃO ORAL AFRICANA
A oralidade é uma forte referência para os povos africanos, a palavra entre
esses povos tem sinônimo de verdade absoluta. Por isso falar de oralidade é reportarse à África.
29
Conforme assinala Machado (2006) a tradição oral africana é a grande escola
da maioria dos povos africanos e a cultura africana não é isolada da vida, é tão
importante quanto a tradição escrita. De acordo com a autora:
Embora os antigos africanos das mais diversas etnias que foram trazidos
para o Brasil não mais existam, o universo cultural que veio com eles
permaneceu como memória. A comunicação das chamadas “culturas orais”
ou “tradição viva” mantém um processo interdinâmico, pessoal, integral tão
importante quanto a tradição escrita. (MACHADO, 2006, p.84).
A tradição oral vinculada a esse processo interdinâmico tornou possível para
muitas sociedades existentes na África, a garantia de um aprofundamento dos
ensinamentos recebidos e/ou transmitidos, funcionando como um processo contínuo
de saber, de educação. Já para boa parte do povo Ocidental, a palavra escrita é a
base para o reconhecimento de sua história e cultura. Para Coelho (2005) a literatura
é uma linguagem específica que como toda linguagem, expressa uma determinada
experiência humana e dificilmente pode ser definida com exatidão.
Diante de tais pressupostos e com base na formação da sociedade brasileira,
composta por povos de origem africana, européia (esta como nação dominante e de
certa forma, responsável pela qualificação da escrita enquanto pilar da comunicação
no Ocidente), além dos indígenas. Irei considerar as duas formas, oral e escrita, por
serem elementares na formação da literatura infantil brasileira.
1.5 A LINGUAGEM ICONOGRÁFICA
No estudo de Coelho (2005) é possível perceber quão importante é fazer com
que a criança mantenha contato com livros vinculados à linguagem iconográfica, ou
seja, livros que contam histórias através da linguagem visual, de imagens que “falam”
(desenhos, pinturas, ilustrações, fotos, modelagem ou colagem fotografada, etc.).
Sem o apoio de texto narrativo (ou com brevíssimas falas) esse tipo de livro de
história
sem
palavras
apresenta
excelentes
estratégias
para
as
crianças
reconhecerem seres e coisas que se misturam no mundo que as rodeia e
aprenderam a nomeá-las oralmente. Processo lúdico de leitura que, na mente infantil,
une os dois mundos que ela precisa aprender a viver: o mundo real-concreto à sua
30
volta e o mundo da linguagem, no qual o real-concreto precisa ser nomeado para
existir definitivamente e reconhecido por todos.
Sendo assim, a imagem exerce um papel muito importante no tocante ao
processo de interação da criança com a literatura bem como com o sentimento de
pertencimento da criança negra em seu grupo étnico-racial (se ela não se vir nas
imagens como pode reconhecer-se ou autovalorizar-se? Identificar-se?). O fato é que
as ilustrações dispostas num livro de literatura infantil são capazes de contar a
história tanto quanto ou até mais (dependendo da idade da criança) que a linguagem
oral ou escrita.
Na minha experiência com crianças, no Estágio Supervisionado, no ano de
2009, vivenciei de perto o quanto a imagem seduz a criança, estimulando e
desenvolvendo o imaginário desta.
Havia uma aluna que ao entregar-lhe um livro para que ela nos contasse a
história ali disposta por via das imagens, a aludida aluna utilizava-se de muita
criatividade, conseguia relacionar o objeto ali ilustrado com outros objetos que fazem
parte do seu cotidiano; era possível perceber que aquele ato mexia profundamente
com os esquemas cognitivos e psicológicos, desenvolvendo e propiciando novos
conhecimentos e sensações.
Ainda com base nas vivências que tive com a Educação Infantil, enquanto
estagiária da Universidade do Estado da Bahia, foi possível perceber que a leitura
imagística dentre outras possibilidades, permite que a criança seja de certa forma,
protagonista do seu processo de leitura já que ela dialoga com a obra sem precisar
de um interlocutor, a criança passa a estabelecer uma íntima ligação com a obra.
Conforme afirma Coelho (2005), as imagens permitem preencher lacunas
provenientes do pouco repertório de vivências reais das crianças e, se a linguagem
oral e escrita possibilita à criança construir um mundo particular repleto de
significações muito singulares a cada indivíduo. A linguagem iconográfica permite à
criança conhecer as estruturas de maneira mais próxima do que se pode chamar de
real.
31
Entretanto, nem sempre as representações iconográficas são fáceis de serem
lidas e/ou compreendidas pelas crianças.
Vale ressaltar que não pretendo fazer uma crítica aos livros de literatura
infantil, mas, um dos objetivos desta pesquisa é analisar a forma com que os
personagens negros são retratados nas ilustrações de tais obras e perceber, os
estereótipos e preconceitos existentes nestas, fazendo um paralelo com obras que
tratam da temática étnico-racial.
As imagens bem como a linguagem verbal se articulam e, ao praticarem tal
articulação transmitem conceitos, preconceitos, estereótipos. Sobre a significação da
ilustração nas obras de literatura infantil Abramovich (1991) afirma que:
Não se trata, aqui e agora, de analisar a qualidade dos desenhos ou nossos
livros infantis. Mesmo porque temos indiscutivelmente ilustradores de
primeirérrima qualidade! Muito menos de lutar por desenhos do tipo realistas
(aliás, em geral feios e duros enquanto traço) ou retirar a magia e o
encantamento da página. Mas ficar atento aos estereótipos, estruturadores
da visão das pessoas e de sua forma de agir e de ser... E ajudar a criança
leitora a perceber isso. O resultado visual até pode ser bonito (e é muitas e
muitas vezes, mas onde vamos parar em termos de preconceitos
transmitidos?).
Afinal, preconceitos não se passam apenas através de palavras, mas
também – e muito! – através de imagens. (ABRAMOVICH, 1991, p.34)
Nessa direção, é fundamental que se tenha um olhar crítico ao analisar
qualquer obra literária como um todo, dando uma atenção especial às imagens
principalmente, se esta obra for destinada para crianças (no caso da Educação
Infantil) já que será por meio destas que a criança irá de forma autônoma, adentrar ao
mundo da escrita.
Assim, é necessário compreender que o uso das imagens apresentadas nas
obras literárias, pode se for destituída de preconceitos, proporcionar ao aluno,
especialmente o negro, olhar a si próprio e ao outro como sujeito produtores e
reprodutores de cultura, dotados de valores e saberes.
32
2
A REPRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS NEGROS NA LITERATURA
INFANTIL: ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS
2.1 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Para Arruda (1998) a Teoria das representações sociais, inaugurada por Serge
Moscovici* e apropriada por Denise Jodelet*, vem nos últimos anos expandindo sua
produção e seu campo de aplicação em diversos países. No Brasil, sua entrada vem
se fazendo a partir do início dos anos 80.
A autora assinala ainda que a Teoria das representações possibilita explorar a
alteridade sob novos ângulos. Ao lado da perspectiva que tende a ver o outro na sua
exclusiva alteridade, problematiza seu lugar ao encarar o outro enquanto constitutivo
do sujeito e da vida social, a ponto de a autora afirmar que “a construção do outro e
do mesmo são indissociáveis, já diz a antropologia. Ela acontece como na dança, em
que um parceiro precisa conjugar seus movimentos aos de seu par para poder seguir
a música”.
Arruda* (1998) se apóia em Jodelet que compartilha da proposição citada
anteriormente, quando diz que nessa contradança, aquilo que começa é também o
que assegura, ou que serve de garantia, ou seja, mesmo diferente, é através do outro
que ao longo da vida, construímos a nossa alteridade que “não é obrigatoriamente
uma construção definitiva”.
Concomitante às idéias de Arruda e Jodelet está Sandra Jovchelovitch*
quando afirma que somente através da mediação de outros o eu pode refletir sobre si
mesmo e tornar-se um objeto do saber para o sujeito do saber. É necessário,
entretanto, qualificar a maneira como o outro se apresenta para o saber e para a
ontologia do sujeito. O outro não está simplesmente lá, esperando para ser
reconhecido pelo sujeito do saber. Ao contrário, o outro está lá, ele próprio, enquanto
eu, com projetos que lhe são próprios. Ele não é redutível ao que o eu pensa ou sabe
sobre ele, mas é precisamente “outro”, irredutível na sua alteridade.
33
Dentro de tal perspectiva, é imprescindível reportar-me à situação vivida pelos
negros escravizados aqui no Brasil, fazendo um paralelo com as proposições de
Arruda onde é possível perceber o quanto estes tiveram seus sonhos, projetos e
desejos inobservados e desprezados pelo “sujeito do saber” que dentro deste
contexto, é o opressor, o explorador. O fato é que esta situação de escravidão
marcou e continua marcando a imagem do negro na sociedade, esta ainda não
consegue se desvincular do preconceito e da discriminação racial contra estes
sujeitos.
Ainda sobre a alteridade, Guareshi* mostra com total clareza como o outro, por
vezes, é reduzido a coisa sobre a qual os interesses do eu se projetam. Quando isso
ocorre há dominação, usura, exploração, entre tantas outras relações de abuso. Foi
exatamente o que aconteceu durante o regime de trabalho escravista, os negros
eram tidos como coisa, como objeto rentável.
Em contrapartida a esta configuração social onde impera o racismo e o
preconceito contra o povo negro, é possível notar que o negro vem reconstruindo a
sua história ao longo dos tempos, um exemplo disto é o grupo baiano Ilê Aiyê que
segundo Souza (2001) vem fundindo afirmação identitária e protesto, inscreve-se em
uma linha de tradição criativa da diáspora que, de um lado, evidencia o desejo de
promover a reconfiguração da auto-estima e criação de outro sistema de
representação dos afro-descendentes; e propõe ainda, o redesenho afirmativo de
laços culturais com a África e a reconstrução da memória do afro-brasileiro,
ressaltando sua participação na história do país.
Com certeza o trabalho de grupos como o Movimento Negro e o Ilê funciona
como mecanismo de luta por uma reconfiguração social do negro no Brasil de modo a
promover uma reversão de significados.
___________________________
* Compuseram através de artigos a obra Representando a alteridade.
34
Assim, o projeto de reconfiguração da auto-estima defendido pelo Ilê conforme
preconiza Souza (2001), delineia-se com a inserção do corpo negro como diferença,
revestindo-o de positividade tanto no campo estético como comportamental. Aquele
corpo que a tradição ocidental desenhou como apropriado apenas para o trabalho, o
corpo convencionalmente representado como depositário de qualidades e sentidos
negativos e desprestigiados, reinscreve a diferença com dignidade e altivez, impondose como signo da individualidade.
É preciso calar discursos representacionais que tão somente são produzidos
com o intuito de legitimar, eternizar, controlar e tornar justificável a perpetuação de
lugares e funções para grupos pré-determinados, por um sistema opressor de
representação social.
2.2 A LITERATURA
INFANTIL PARA ALÉM DOS ESTEREÓTIPOS
DOS
PERSONAGENS NEGROS
Com base nos estudos feitos, no Brasil, até a década de 1920 praticamente
não existiam personagens negros na literatura infanto-juvenil e os poucos exemplos
eram vinculados à escravidão.
Segundo Rosemberg (1985), entre 1955 e 1975 é possível perceber uma subrepresentação de personagens negros em textos e ilustrações; estereotipia na
ilustração de personagens negros; associação de personagens negros com
profissões socialmente desvalorizadas; menor elaboração textual de personagens
negros; associação da cor negra com a maldade, tragédia, sujeira; associação do ser
negro com castigo, feiúra; associação com personagens antropomorfizados (não
humanos).
Dijk (2008) ao tratar das estereotipias presentes em obras literárias se apóia
em Rosemberg (1985) para explicar que a associação da cor negra com sujeira,
35
maldade e tragédia, trazem a cor negra como simbólica. O texto abaixo, escrito por
Rosemberg demonstra tal afirmação:
O pobre casal de velhos que o criava, com tanto amor, com tanto trabalho, já
não sabia o que fazer. Não valiam conselhos, pedidos, reprimendas, castigos,
surras... Parecia incorrigível.
_ Que pretinho ruim é o Agapito! Exclamava nhô Fidélis. Eu nunca soube de
outro assim.
_ Adiante apareceu um edifício negro, arredondado, parecendo um forno
gigante.
_É ali! Disse Beto, apontando para o edifício que tinha várias chaminés de
onde saíam nuvens de fumaças negras.
Com relação ao período que vai de 1975 a 1995, o autor cita os estudos de
Bazilli (1999) e Lima (1999) que apontam mudanças significativas, mas também
apontam a invisibilização de personagens negros e o tratamento estereotipado. A
ponto de Bazilli (1999) afirmar que: “Verificou-se menor proporção de personagens
não-brancos antropomorfizados e um ligeiro aumento de personagens pretos
exercendo profissão de tipo superior”. (Bazilli, 1999, apud, Dijk).
Felizmente, é possível perceber que a veiculação negativa do negro na
literatura infantil aponta para uma possível mudança. Pode-se notar alguns avanços
já em meados da década de 1980, ganhando maior espaço nas livrarias, com outras
obras já conhecidas do público infantil. Vale ressaltar que não acredito que esta
demanda do mercado editorial tenha relação com uma consciência acerca da
necessidade de inclusão dos personagens negros nas narrativas infantis, mas com a
obrigatoriedade de inserção da cultura africana em sala de aula estabelecida pela Lei
10.639/03.
Conforme afirma Lima (2005) “a literatura é um espaço não apenas de
representação neutra, mas de enredos e lógicas, onde ao me representar eu me
recrio e ao me recriar eu me represento”.
É nessa perspectiva de recriar-se que os autores contemporâneos de literatura
infantil, destacados no presente estudo, entre eles Lima (1999), Diouf (2004)
Chamberlim (2005) trazem nas suas obras, onde é possível verificar que os
personagens negros vêm delineando uma nova história, a passos lentos mas ainda
assim é preciso exaltar as narrativas já existentes, que propõem uma inovação e que
36
representam hoje uma possibilidade nova no tocante à representação dos
personagens negros na literatura infantil.
O fato é que nenhuma criança se identificaria com algo julgado como feio,
mau, animalizado, etc. A forma com que os personagens negros foram e ainda são
retratados violenta o imaginário e a realidade vivida por seus leitores, à medida que
destrói toda e qualquer referência que os mesmos têm de si e de seus pares. Daí a
necessidade de repensar uma literatura infantil embasada na diversidade, que pense
as questões étnico-raciais de forma valorativa e humana.
Algumas pesquisadoras, Souza (2001), Oliveira (2003) e Lima (2005) entre
outras, já se debruçam sobre a análise de algumas dessas obras que vem dedicando
ao negro uma posição digna, de destaque.
A partir da observação dessas mudanças selecionei três obras literárias,
destinadas ao público infanto-juvenil que apontam de forma contundente aspectos
que abarcam uma postura inovadora, trata-se de: Luana e as sementes de Zumbi
(2000) de Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino; As tranças de Bintou (2004) de
Sylviane Diouf e As panquecas de mama Panya (2005) de Mary Chamberlim e
Richard Chamberlim.
O fato é que nas narrativas, os personagens, sendo ou não os protagonistas
da história, são apresentados e caracterizados de maneira inovadora, rompendo com
os estereótipos e indo além destes que tanto os inferiorizava a exemplo da sujeira,
pobreza, feiúra, passividade, entre outros adjetivos atribuídos a eles.
As narrativas e ilustrações serão objetos de uma breve análise acerca das
possíveis inovações que essas obras trazem no contexto da literatura infanto/juvenil e
para os estudos de representação do grupo étnico negro nas aludidas histórias.
Posteriormente, utilizarei as supracitadas obras, com exceção do livro As Panquecas
de Mama Panya (e outras que não serão aqui analisadas) como instrumento de
pesquisa com os educandos da Educação infantil da Escola Municipal Sociedade
Fraternal (a aludida pesquisa será relatada no quarto capítulo do presente estudo).
37
Selecionei algumas categorias para a partir destas trazer uma análise acerca
dos conteúdos trazidos tanto nas narrativas quanto nas imagens das obras
mencionadas acima. Considero tais obras uma vitória de seus autores em virtude
destes conseguirem dar um novo lugar para o negro no contexto da literatura infantil,
lugar tão negado nas diversas obras ditas de cunho “clássico”.
2.2.1 Resgate da ancestralidade e reflexão sobre a escravização
Reconhecer suas origens é um caminho que oportuniza a libertação das
imposições eurocêntricas que ao longo dos anos vividos faz parte do imaginário da
sociedade deste país; é permitir que se construa um presente afro-brasileiro a partir
do conhecimento do passado africano.
As obras aqui analisadas são dotadas de elementos que colaboram para essa
construção. Dessa forma, é fundamental explicitar a trajetória histórica do povo
africano. Convém também compreender como as relações sociais africanas se
estabeleciam para compreender os motivos da sua escravização; vale compreender o
próprio processo de escravização que é de suma importância na construção de uma
identidade negra.
Entretanto, há uma relação recorrente do personagem negro com a
escravização nas obras de modo geral; o personagem é descrito e ilustrado
geralmente como um sujeito resultante deste processo, é como se ele tivesse fadado
à condição de escravo. Em Luana e as sementes de Zumbi (FAUSTINO; MACEDO,
2004, p.17) é possível notar tal afirmativa: “Vem, menina, sobe aqui no carroção que
te escondo debaixo da cana. Tô indo pra moenda. Tu não deves ser escrava de
lavoura, não. Tens mãos e pés finos, pele bonita. Deves ser escrava de trato”.
Na supracitada obra, a personagem conta a sua trajetória até chegar a
Palmares, considerado o maior quilombo que já existiu no Brasil, ele ficava localizado
em Alagoas, na antiga capitania de Pernambuco, durante essa aventura Luana
encontra um homem negro, debaixo de um chapelão de palha, o homem ao vê-la
assusta-se, ainda assim os dois conseguem estabelecer um diálogo:
38
Desculpe se eu assustei o senhor” (sic). “Só então ele percebe que é
apenas uma garotinha inofensiva:” O que tu estás fazendo aqui? “Se
capitão-do-mato te descobre, te leva de volta pra senzala, te prende no
pelourinho, chibata como teu coro, te bota cangalha e não vai ter mucama
que consiga te manter na casa-grande” (...) (FAUSTINO E MACEDO, 2004,
p.16).
Particularmente não compartilho com a forma em que os autores costumam
utilizar para mostrar a escravização no Brasil. Dentro dessa perspectiva, Heloísa Lima
em seu artigo Personagens negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil afirma
que:
Geralmente, quando personagens negros entram nas histórias aparecem
vinculados à escravidão. As abordagens naturalizam o sofrimento e
reforçam a associação com a dor. As histórias tristes são mantenedoras da
marca da condição de inferiorizados pela qual a humanidade negra passou.
Cristalizar a imagem do estado de escravo torna-se uma das formas mais
eficazes de violência simbólica. Reproduzi-la intensamente marca, numa
única referência, toda a população negra, naturalizando-se assim, uma
uma inferiorização datada. A eficácia dessa mensagem, especialmente na
formatação brasileira, parece auxiliar no prolongamento de uma
dominação social real. O modelo repetido marca a população como
produtora e atrapalha uma ampliação dos papéis sociais pela proximidade
com essa caracterização, que embrulha noções de atraso.”(LIMA, 2005,
p.103)
Desta forma, vale salientar que mesmo as obras que objetivam mostrar
inovações, acabam por não se distanciar de construções presentes no nosso
imaginário. Em contrapartida, me chama a atenção na obra de Faustino e Macedo,
Luana e as sementes de Zumbi, a forma como os mesmos trazem o quilombo, a sua
configuração social, distante da realidade que era bem mais complexa, acredito que
para conseguir fazer com que as crianças entendam a dinâmica de tal espaço social
que está vinculada à luta de um povo por liberdade e condições dignas de vida,
conforme visto anteriormente quando citei as falas de alguns personagens.
A obra em tela traz ainda a representação que os autores atribuem ao
quilombo que é de símbolo de resistência do povo escravizado naquele tempo, o que
pode contribuir para desconstruir a imagem do negro passivo e acomodado com a
sua condição de exploração, pois sabemos que tal fato não condiz com a real face do
negro.
39
Nas narrativas vê-se que muitos negros que fugiam das casas dos senhores
encontravam em Palmares e em outros quilombos a possibilidade de construir uma
nova história. Os autores deixam claro tanto nas narrativas, quanto nas imagens um
espaço onde é possível a construção de relações onde é basilar a cooperação, a
liberdade e a esperança numa vida melhor.
Figura 1 – Chegada de Luana a Palmares
Luana e as Sementes de Zumbi (FAUSTINO E MACEDO, 2004, p. 23).
2.2.2 África(s): País ou continente?
Em se tratando de histórias sobre a África, poucas histórias me foram contadas
sobre tal continente, quando era criança ou adolescente. Até certa idade pensava que
a África fosse um país.
De modo geral percebo nas falas das pessoas com quem convivo, colegas de
trabalho, estudantes de Pedagogia, que poucas tiveram na sua infância ou
adolescência a oportunidade de ouvir histórias que contassem ou mostrassem
imagens de países africanos.
O fato é que quando tal contato era possível, ocorria muitas vezes, de forma
estereotipada e pejorativa, ou seja, vinculando-se o negro à escravização e a África,
com a fome, miséria social.
Das obras aqui analisadas apenas Luana não apresenta ilustrações da África.
Diferentemente das obras As tranças de Bintou e As panquecas de mama Panya que
40
evidenciam imagens da África que são capazes de nos fazer transportar à África nos
dando a visibilidade de como ela se encontra hoje.
Figura 2 – Bintou passeia pela vila africana
As tranças de Bintou (DIOUF, 2004, p.30).
Vale destacar, que não podemos e nem devemos esquecer do sofrimento
vivido pelo povo africano trazido para o Brasil, mas em nenhum momento podemos
deixar de reconhecer as contribuições herdadas pelos povos africanos aqui trazidos.
Sendo assim, a construção da imagem de um povo tão sofrido é preciso reportar-se
às origens a fim de colocar em evidência este projeto de reconstrução histórica. A
estratégia utilizada por alguns autores que fazem questão de desatacar: a
grandiosidade, a diversidade dos povos africanos, as belezas é predominante nas
histórias. Conforme se pode perceber na narrativa abaixo:
Em todos os cantos do mundo há belezas. (...) Acho que quando penso nos
povos orientais minha lembrança é esta: Como são livres!(Menos quando
lembro das lutas de sumo). Mas a África é uma lembrança em que vibram
várias cores eletrizantes: parece somar um calor como o do sol com uma
força que vem de dentro da terra. Tive e tenho uma amiga _ Lia _ que adora
ler. Lia sempre lia de tudo, e eu prestava atenção quando ela me contava
sobre o que os africanos faziam, pintavam e bordavam. Fui crescendo com
Lia, que me ensinou a escutar e a sonhar e às vezes a ter pesadelos com
essas histórias. Às vezes líamos juntas. Depois comecei a ler de tudo, até
que virei uma Lia. E Lia agora escreve livros. Foi assim que aprendi que são
muitos os povos que preenchem aquele continente, e todos ricos em
histórias. Vou contar algumas que conheço. Mas primeiro quero mostrar que
a África tem muitas etnias, isto é, muitos jeitos diferentes de ser num mundo
aparentemente igual. Olhe aí no mapa: São centenas de etnias distribuídas
entre dezenas de países.” (LIMA, 1999, p.12)
41
Figura 3 - Mapa de povos africanos
Livro: Histórias da Preta (LIMA, 1999, p.15).
Além de trazer à tona a discussão da diversidade étnica do continente africano,
através da narrativa descrita, essa ilustração mostra um recorte diferente do que se
costuma ver nas escolas. Por isso que optei por fazer essa citação da obra Histórias
da Preta apesar de esta não fazer parte da análise de obras relacionadas para esse
estudo. Vale lembrar que a obra As Panquecas de Mama Panya não será utilizada
para aplicação na oficina de literatura em virtude da limitação de tempo que será
dedicado à aplicação desta.
2.2.3 Origens bem delineadas dos personagens
Diferentemente do que tem sido destacado na maioria das histórias em que a
origem dos personagens negros sempre foi desconhecida, nas três histórias
analisadas foi possível perceber os personagens negros na posição de possuidores
de família.
Sobre essa falta de referência familiar, a pesquisadora Maria Anória Oliveira
em sua dissertação de mestrado nos mostra que:
Alguns personagens negros são caracterizados “desamparados”, por não
contarem com uma família normal, tendo como única referência a mãe, já
que para outros o pai é ausente, como se além da carência financeira, eles
não tivessem nem referência familiar. (OLIVEIRA, 2003, p.126)
Nas histórias analisadas constatei esse tipo de referência e pude detectar que
todos os personagens possuem família, diferentemente do que se costuma ver nas
42
obras literárias que não abordam a temática, embora a predominância da figura
feminina (a mãe) seja mais evidente. Há também a presença dos pais, irmãos, avós,
parentes _ ainda que não sejam determinados os graus de parentesco:
Figura 4 - Luana e família
Luana e as Sementes de Zumbi (FAUSTINO E MACEDO, 2004, p.15).
A narrativa que corresponde esta imagem é a seguinte:
Esta é Luana. Você a conhece? Não? Apesar de ter apenas 8 anos, ela é
uma verdadeira guerreira. Joga capoeira como ela só. Vive em Cafindé, com
papai, mamãe e o irmãozinho. Sempre que olha no espelho abre um sorriso:
sabe que é uma menina linda.
Isso ela aprendeu com seus familiares, principalmente com a vovó, que lhe
conta histórias da origem de seu povo. São histórias que a fazem ter orgulho
de ser uma criança negra, como a maioria desse remanescente de
quilombo. (FAUSTINO E MACEDO, 2004, p.10).
Figura 5 - Bintou e sua querida avó
As tranças de Bintou (DIOUF, 2004, p.9).
43
2.2.4 Figura feminina em evidência e valorização da estética negra
Uma característica comum nessas histórias é que são raros os personagens
masculinos na posição de protagonistas. Foi possível perceber isso mediante a leitura
de outras obras, que não foram contempladas nesta pesquisa, pelo menos não no
caso da análise. A estética negra em tais obras ganha destaque, seja nas ilustrações
ou nas narrativas construídas pelos autores.
Conforme assinala Oliveira (2003), a estética negra sempre foi um dos
principais alvos da imagem destes povos. A cor da pele e os cabelos sempre foram
alvos preferidos, a exemplo: mulata, cor de fusca, marrom, cabelos ruços/duros e
etc.; são recorrentes nas narrativas da literatura infanto-juvenil.
Em contrapartida, vale ressaltar a obra As tranças de Bintou que de maneira
primorosa evidencia a estética africana e afro-brasileira, tanto na sua narrativa quanto
na sua ilustração, a riqueza de detalhe é espetacular. “Meu nome é Bintou e meu
sonho é ter tranças. Meu cabelo é curto e crespo”. (DIOUF, 2004, p. 3).
Tudo que essa bela e sonhadora menina africana deseja é possuir tranças
iguais a de sua irmã em seus cabelos crespos, desejo este, raríssimo quando se trata
de personagens da literatura infantil dita clássica que faz parte do repertório oferecido
pela escola e que consequentemente, são lidos pelas crianças negras ou contados
para as mesmas no espaço escolar.
O desejo que a menina tem de possuir tranças decorre da admiração que a
mesma sente pelo ornamento que a irmã e outras mulheres ostentam, ornamento
este que a menina também deseja ostentar, não se conformando com os seus
birotes, outro elemento que marca a estética negra assim como as tranças.
44
Figura 6 - Bintou e sua irmã
As tranças de Bintou (DIOUF, 2004, p.).
Sobre a questão da estética negra (vinculada à construção de identidade negra)
Nilma Lino Gomes em seu livro, Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo da
identidade negra, nos coloca diante de uma reflexão que ultrapassa os limites da
estética, enfatiza que a beleza negra atrelada à construção identitária como algo que
perpassa o complexo, afirmando que:
O destaque dado à beleza negra para pensar a construção de identidade é
um tema um tanto quanto complexo. Par entender esse processo somos
convidados a abrir mão de radicalismos político-ideológicos que tendem a
ver a ênfase na beleza como um desvio da luta anti-racista, como uma
despolitização. Para avançarmos nessa discussão, é importante ponderar
que, para o negro, o estético é indissociável do político. A eficácia política
desse debate não naquilo que ele aparenta ser, mas ao que ele nos remete.
A beleza negra nos leva ao enraizamento dos negros no seu grupo social e
racial. Ela coloca o negro e a negra no mesmo território do branco e da
branca, a saber, o da existência humana. A produção de um sentimento
diante de objetos que tocam a nossa sensibilidade faz parte da história de
todos os grupos étnico/raciais e, por isso, a busca da beleza e o sentimento
do belo podem ser considerados como dados universais do
humano.”(GOMES, 2008, p.130)
Ainda sobre a questão da estética negra, é possível perceber que Gomes
(2008) justifica as variadas formas de utilização do corpo como via de estética, que
vai desde a pintura corporal aos diversos estilos de penteados, como uma tendência
universal do corpo como objeto de beleza e estética e como uma realidade que é
inerente a todas as culturas e civilizações.
Nas ilustrações apresentadas na obra As Panquecas de Mama Panya, é
possível perceber uma outra variação estética, que assim como as tranças é muito
utilizado pelo povo baiano, que é o caso do lenço (utilizado pelas mulheres) e do
turbante (usado especialmente pelas mulheres), tão relacionado, segundo o
45
imaginário da cidade de Salvador com as pessoas seguidoras das religiões afros e
afro-brasileiros.
Fazendo uma referência à estética negra, a personagem Bintou diz que:
Observo as mulheres por trás da mangueira. Fatou, minha irmã, está junto
com elas. Fatou passou um óleo perfumado em seus cabelos que o faz
brilhar e ajuda a trançá-los apertado. As amigas de mamãe usam franjas
trançadas com moedas de ouro na ponta. Dizem que isso é para mostrar a
nós, crianças, como nossos tataravôs, que nunca conhecemos, penteavam
o cabelo. As tranças de tia ainda levaram três dias para serem feitas. São
tantas que nem Maty, minha irmã mais velha, não conseguiu contálas.”(Diouf, 2004, p.19)
Dessa forma, fica evidente nessas obras a presença da figura feminina a
diversidade e a beleza dessas mulheres de maneira ressignificada, ou seja, sem cair
nas armadilhas dos estereótipos e seus vínculos com a sexualidade ou inferioridade,
tão recorrentes na literatura brasileira, especialmente em ícones da literatura baiana.
2.2.5 Apreço às relações comunitárias
Em todas as histórias aqui analisadas é possível perceber que a comunidade é
muito representada. Acredito que de todas as histórias a que mais coloca em
evidência o valor das relações comunitárias é As Panquecas de Mama Panya.
Nesta obra, o menino Adika é convidado por sua mãe a comprar materiais para
fazer panquecas. A mãe lhe mostra as poucas moedas que possui para comprar os
ingredientes necessários. Entretanto, apesar de ter conhecimento disso, o menino
durante todo o percurso de compras, convida todos os amigos que encontra no
caminho. Quando eles menos esperavam chegam os seus amigos, todos trazendo
consigo alguma coisa para contribuir e, o que seria uma pequena janta, entre mãe e
filho, se torna uma grande confraternização entre a comunidade.
Assim, Adika demonstra o quanto é importante a vida em comunidade, a
contribição de cada sujeito que a compõe, formando relações estabelecidas para o
bem comum. Todos que naquele espaço se fazem presentes são de suma
importância no tocante à formação da identidade daquele grupo.
46
O modo como às relações comunitárias são apresentadas me remetem às
estabelecidas pelas pessoas que cultuam os orixás, onde existe uma interação
constante, onde a coletividade caminha para a solidariedade, a união é basilar e as
relações muitas vezes, vão além da consangüinidade.
2.2.6 Imagem positiva dos personagens
É salutar dizer que a forma como os personagens são mostrados nessas
histórias são muito relevantes no sentido de se construir uma imagem positiva do
negro. Os personagens se valorizam e são valorizados pelo seu entorno, isso se
configura como algo de suma importância para a criança e o jovem que lêm ou têm
acesso a tais histórias, enquanto instrumento de significação que pode auxiliar estas
crianças e jovens negros à construção de uma identidade.
Nesse sentido, é possível verificar na obra Luana e as sementes de Zumbi
através da forma como o narrador apresenta a personagem e sua família, já descrita
acima, um bom exemplo dessa valorização.
Os personagens têm suas ações valorizadas e reconhecidas; a construção de
heróis negros que se justificam em ações valorativas, na imagem de vencedor,
solidário, sujeito atuante na comunidade conduz a criança negra à valorização de si e
ao reconhecimento de pertencimento ao grupo negro. Um exemplo dessas ações
está apresentado em Bintou, quando a personagem percebe que dois meninos da
sua comunidade estão em perigo, ela imediatamente busca uma solução, para ajudar
a salvá-los. Apesar de ela não ser a autora imediata, ela se destaca na ação quando
chama os pescadores na vila; a personagem Bintou é recompensada com os olhares
de admiração e agradecimento dos membros da comunidade, conforme mostra a
imagem a seguir:
47
Figura 7 – A comunidade agradece a Bintou
As tranças de Bintou (DIOUF, 2004, p.26).
As análises feitas neste capítulo buscam demonstrar alguns caracteres que
conduzem a inovações presentes nessas histórias. A representação do negro para a
criança é de grande importância no sentido de auxiliar na construção de identidade
étnico-racial.
Andréa Lisboa de Souza em seu artigo Personagens Negros na Literatura
infanto-juvenil: Rompendo estereótipos faz uma análise de livros os quais considera
exceção por apresentar a personagem negra em um contexto diferenciado: de
maneira positiva, como protagonista, pertencente a uma família, com ilustrações bem
delineadas. Na análise feita pela autora, é possível verificar entre outras, a presença
da obra Luana e as sementes de Zumbi onde ela destaca no aludido artigo, o tópico:
Luana: A primeira Heroína Afro-brasileira.
Dessa forma, Gomes (2001) ainda no supracitado artigo afirma que as
imagens suscitadas nestas obras, consideradas inovadoras, tanto pelas ilustrações
quanto pelas descrições e ações da personagem negra podem ser utilizadas de
maneira construtiva, de modo que contribuam para a auto-estima das crianças
negras, bem como para a sensibilização das não-negras.
Dentro desse contexto, a escola se apresenta como um espaço privilegiado
para a construção de identidade e, utilizar-se da literatura enquanto instrumento é de
48
fundamental importância, visto que, é na escola que as crianças irão construir e
fortalecer as ideologias existentes no meio social.
Diante de tudo isso, é preciso ir além dos estereótipos que recaem sob os
livros de literatura infantil, dando ênfase aos livros que apresentam inovações no
tocante às questões raciais.
49
3 LITERATURA INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DA CRIANÇA
NEGRA: CONSTRUÇÃO OU NEGAÇÃO?
Este trabalho é um estudo de caso realizado no período de 21/07/2010 a
12/08/2010, na Escola Municipal Sociedade Fraternal, numa turma de Educação
Infantil, grupo 5 e 6.
Conforme o estudo de Martins (2000), o estudo de caso é precedido pela
exposição do problema de pesquisa, são proposições orientadoras do estudo e por
algum esquema teórico. O estudo de caso é uma técnica de pesquisa cujo objetivo é
o estudo de uma unidade que se analisa profunda e intensamente. Considera a
unidade social, seja um indivíduo, uma família, uma instituição, uma empresa, com o
objetivo de compreendê-los em seus próprios termos.
Desta forma, optei pela abordagem do estudo de caso em virtude deste, me
possibilitar investigar o tema num contexto real, a escola.
Desta forma, optei pela abordagem do estudo de caso em virtude de me
possibilitar investigar o tema em que me proponho dentro de um contexto real.
3.1 CONHECENDO A ESCOLA MUNICIPAL SOCIEDADE FRATERNAL*
A Escola Municipal Sociedade Fraternal (EMSF) está situada à Rua Parque
Ascensão, 03, no Bairro de Pau da Lima. A escola é composta por aproximadamente
680 alunos, entre a Educação Infantil, o Ensino Fundamental I e EJA, 15 professores,
02 coordenadores Pedagógicos, 01 Secretário Escolar, 01 Auxiliar Administrativo, 07
funcionários de apoio, 04 vigilantes e o grupo gestor: composto por 01 diretora e 03
vices.
O bairro de Pau da Lima situado na região norte da cidade começou a formarse nos meados da década de 50, como decorrência no processo de crescimento
verificado em Salvador, sendo inicialmente a sua população composta por
trabalhadores braçais, autônomos, biscateiros, pedreiros subempregados, etc.
50
Um dos bairros periféricos mais carentes de Salvador, Pau da Lima,
atualmente abriga algumas Instituições ditas de Caridade, como: Rede Nossos Filhos,
Sociedade Brasileira de Asmáticos, Grupo PAS – Paz & Amor & Solidariedade que
atende a todo o bairro beneficiando milhares de doentes e necessitados e educa
cerca de 3000 alunos, anualmente. Entre as diversas Instituições, destaca-se a
Mansão do Caminho, fundada por Divaldo Pereira Franco, a mesma possui 83.000 m
e 43 edificações.
A Sociedade Fraternal era uma associação de moradores sem fins lucrativos,
com o objetivo de trazer benfeitorias ao bairro, hoje este vínculo não existe mais.
Desde 09 de Junho de 1978, no Governo Municipal do prefeito da época Fernando
Wilson Magalhães que doou outra área para a construção de uma sede sob a gestão
do Sr. Arthur Gonzalez Fernandes Filho para desvincular a escola da associação.
Em 1972 a EMSF realizou convênios com as Secretarias Estaduais e
Municipais, hoje ficando apenas com o município e alguns professores estaduais.
Um fato curioso é que na área interna da unidade de ensino em tela, mora um
casal com seus filhos, Sr. e Sra. Barreto, são fundadores junto com outros da
Sociedade Fraternal, que atuaram como Agente de Portaria e Auxiliar de Serviços
Gerais pelo município, hoje estão aposentados, mas por morarem na área interna da
escola atuam como força na proteção da escola.
Segundo o histórico da escola, fornecido pela coordenação pedagógica, a
EMSF tem como finalidade criar condições de desenvolvimento da prática
pedagógica afastando rótulos, estigmas que alunos já carregam, compreendendo e
analisando as dificuldades escolares, fortalecendo e ampliando a sua visão de
mundo.
O Projeto Pedagógico – Proposta Curricular da Sociedade Fraternal tem como
prática pedagógica, o envolvimento (professores, alunos, funcionários, família e
comunidade) no processo ensino-aprendizagem. O principal desafio que se impõe à
escola é adequar a cultura organizacional; sem essa mudança as planejadas correm
o risco de não se tornarem eficazes. Dessa forma, se faz necessário tornar os alunos
51
sujeitos do currículo e não objeto. O currículo deverá ser construído observando-se a
realidade e as necessidades do educando.
Entretanto, o que pude perceber no curto período que passei na instituição escolar
em pauta, é que o Projeto Pedagógico encontra-se em construção e infelizmente, a
escola MSF não contempla uma educação das relações raciais (onde o grande
foco é o desenvolvimento da identidade cultural e étnico-racial da criança negra). O
fato é que há uma grande preocupação com as questões raciais por parte da
professora pesquisada embora, o que fica em evidência é uma postura de
silenciamento sobre tais questões, apesar de a escola comportar em sua grande
maioria, alunos negros.
____________________________
*Fonte: Histórico da escola cedido pela coordenadora pedagógica.
52
3.2 OS SUJEITOS DA PESQUISA
Os sujeitos da pesquisa foram uma professora e 16 alunos, com idade entre 5
e 6 anos matriculados numa turma de Educação Infantil. Sendo que a professora, que
possui formação em pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB e
Pós-graduação em educação pela mesma universidade, fora entrevistada, em virtude
de esta ser possuidora de informações concernentes ao desenvolvimento da
pesquisa e, as crianças foram observadas e também participaram da oficina de
contação de histórias, para efetivação do estudo proposto. Não foram incluídos para
efeito de estudo os demais funcionários da instituição educacional. Entretanto, a
professora em sua entrevista citou a postura da diretora, mulher negra, segundo a
educadora detentora de uma auto-estima admirável, mas que não tem tratado das
questões raciais , seja nas reuniões, conversas informais, etc.
Diante disso, resolvi ter uma conversa informal com a gestora em tela a fim de
saber o que ela pensa sobre Identidade e educação das relações étnico-raciais e se
existe por parte dela enquanto representante de uma instituição de educação formal,
uma preocupação a respeito de tal fato já que tem se discutido bastante as relações
raciais, seja no âmbito acadêmico ou na sociedade de um modo geral. Entretanto,
após três tentativas no sentido de realizar tal conversa, obtive por parte de
funcionários da escola que a mesma encontrava-se de férias.
Considero importante ressaltar que quase todos os alunos da turma
pesquisada são negros, com base na caracterização à brasileira que se baseia na cor
da pele para determinar a raça, diferentemente de outros países, como Estados
Unidos e América do Sul. De modo que fique claro o quantitativo de alunos negros
naquele espaço de aprendizagem.
53
3.3 INSTRUMENTOS DA PESQUISA
Os instrumentos de coleta de dados utilizados para efetivação desta pesquisa
foram: a observação participante, a entrevista e as oficinas de contação de histórias.
Conforme preceitua Martins (2000) a observação participante é uma técnica
comum de pesquisa para coleta e análise de dados (...). O pesquisador observador
torna-se parte integrante de uma estrutura social e, na relação face a face com os
sujeitos da pesquisa, coleta dados e informações. O papel do observador-participante
pode ser tanto formal como informal, encoberto ou revelado, pode ser parte integrante
do grupo social ou ser simplesmente periférico em relação a ele. Nos estudos de
caso, a observação participante constitui importante técnica para coleta de dados e
informações.
Sobre a entrevista, Farias (2002) afirma que a entrevista é um procedimento
utilizado na investigação social para coletar dados, com a finalidade de fornecer
subsídios para obter diagnósticos, análises ou mesmo para discutir e buscar soluções
para alguma problemática de natureza social, ou seja, é uma forma de interação
social, em que uma das partes(pesquisador) busca colher dados, e a outra
(pesquisado) se propõe a fornecer informações.
Selecionei duas obras para fazer oficina com as crianças a fim de levantar as
representações e reações diante de histórias que tratam das questões relativas à
construção de identidade étnico-racial.
3.4 ENTREVISTA COM A PROFESSORA
Antes de iniciar as oficinas de contação de histórias, realizei com a professora
uma entrevista, do tipo conversa informal, a supracitada educadora foi fundamental
na realização deste trabalho já que foi uma pessoa muito solícita e sempre muito
preocupada com as questões raciais na escola. Foi possível perceber que a
professora é uma profissional muito dedicada, compromissada e que acredita numa
educação pública de qualidade, apesar das dificuldades que vem encontrando ao
longo destes 19 anos de docência. Vale salientar que a conheço desde o meu
54
Estágio Supervisionado, pela Universidade do Estado da Bahia, realizado no ano de
2009 quando nesta mesma turma ela foi a minha regente.
A entrevista foi realizada em dois momentos. Num primeiro momento ela fez
questão de relatar à problemática que vem enfrentando em sala de aula com relação
às questões raciais. A educadora em pauta me relatou sobre a chegada na turma, de
uma nova aluna, trata-se de uma menina branca, com olhos azuis, cabelos longos. O
fato é que todos os alunos estão deslumbrados por esta aluna, inclusive as meninas.
Todo
esse
deslumbramento
tem
afetado
as
situações
de
aprendizagem
especialmente, pelo fato de mexer com a concentração e atenção dos alunos quando
a aluna em tela encontra-se presente. Esta menina chamarei de AB, segue os
padrões europeus, muitas vezes bastante almejados pela criança negra que em
virtude de diversos sentimentos introjetados pelo adulto, acaba por se auto-rejeitar.
Sobre isso, a professora me relatou que “tem uma mãe que quando vai
apanhar a aluna na escola, uma criança negra, de cabelos crespos, observa
imediatamente o cabelo da filha, quase sempre a repreendendo por estes encontrarse assanhados”, este sentimento de frustração da mãe diante do cabelo crespo
assanhado acaba afetando a criança, que internaliza que seu cabelo é feio. Durante a
oficina de literatura esta mesma criança diz que “não gostou da personagem Luana”,
quando questionada a mesma responde que “não gostou por causa do cabelo que a
personagem tem”.
Ainda sobre a situação que envolve a aluna AB, a professora também relatou
que a mãe desta aluna fez uma festa de aniversário para a filha e confeccionou e
enviou para a turma apenas quatro convites, contemplando tão somente os alunos de
pele clara, a ponto de um dos pais dos alunos convidados proibir que o filho fosse à
festa ao perceber que a mãe convidou apenas os alunos de pele clara.
No segundo momento foi feito as perguntas relativas à pesquisa propriamente
dita. Iniciei perguntando-lhe se houve alguma mudança (já que estive lá no ano
passado e a escola não possuía nenhum exemplar) com relação à disponibilização de
obras de literatura infantil que tratam das questões étnico-raciais ou que trazem o
negro como protagonista na história, a educadora respondeu que a escola não possui
55
nenhuma obra literária que trate de tal temática apenas um vídeo que traz algumas
histórias a exemplo de Bruna e a galinha d´Angola mas, nenhuma obra escrita.
Em seguida perguntei sobre as dificuldades encontradas para realizar um
trabalho envolvendo as questões raciais, a aludida educadora apresentou alguns
pontos que considera como empercílios para a realização do trabalho, a falta de
formação, de informação, de preparo do professor no tocante às questões raciais,
segundo ela a Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Esporte e Lazer (SECULT)
deveria promover cursos para preparar o professor nesse sentido; o currículo que não
leva em consideração os diversos problemas que envolvem as questões raciais,
desde o racismo na escola até a própria presença em massa do negro nas escolas
públicas; ela afirma ainda que a própria escola, seja através dos professores e da
gestão, mesmo depois da implementação da Lei 10.639/2003 não tem demonstrado
preocupação com tais questões, é como se estas não existissem.
Ainda sobre a entrevista com a professora, perguntei se ela cria possibilidades
que viabilizem uma discussão sobre o negro a fim de auxiliar na construção de
identidade da criança negra, a educadora em tela respondeu positivamente, citou o
Projeto Eu, a leitura e o mundo, desenvolvido pela escola no ano passado onde a
turma dela retratou sobre Jorge Aragão, homem negro e renomado cantor brasileiro.
Um dado interessante é que ao ser questionada se considera importante
discutir tais questões em sala de aula, a educadora foi enfática em dizer que sim.
Um fato interessante ressaltado pela aludida educadora foi a comparação que
a aluna B. fez com uma mãe de um aluno quando a comparou com o Shirek
(personagem de desenho animado dotado de características animalizadas, pele
verde, orelhas grandes,etc.). Perguntei-lhe qual a postura da mulher comparada pela
criança e ela respondeu que a mesma não disse nada. Diante do exposto, é possível
verificar que esta mãe silencia diante da comparação feita pela aluna de modo que
adota “uma estratégia para evitar o conflito étnico”. (CAVALLEIRO, 2003).
Por fim, perguntei-lhe como os alunos têm reagido quando lhes são
apresentados obras literárias que trazem o negro de forma positiva, a aludida docente
respondeu que, obras que tratam do tema proposto nesta pesquisa – a construção de
56
identidade étnico-racial são raríssimas na escola e, muitas não são destinadas ao
público infantil por isso na maioria das vezes é obrigada a fazer uma ressignificação
das obras a fim de adequá-las ao público o qual trabalha, citou como exemplo o título
literário Luana e as sementes de Zumbi, elogiou a forma como são apresentadas as
figuras e disse que a turma aceitou muito bem a aludida obra. Vale lembrar que esta
será uma das obras utilizadas na oficina de literatura.
57
3.5 O ENCONTRO DOS ALUNOS COM A LITERATURA – AS OFICINAS DE
CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS
Selecionei duas obras, trata-se de Luana e as sementes de Zumbi e As
tranças de Bintou para fazer as oficinas com as crianças, após sistematizar quatro
categorias de observação com o intuito de levantar as representações e reações
diante das histórias citadas já que estas apresentam um foco especial no tocante à
identidade étnico-racial da criança negra. São as seguintes categorias: 1. Se as
crianças demonstram atitudes, expressões ou falas de reconhecimento de suas
origens. 2. Reflexão sobre a escravidão, releitura, como elas vêm a escravidão. 3. Se
já ouviram histórias sobre a África? Quais? Se gostaram? Por quê. Permitir que as
contem, valorizando os conhecimentos prévios dos alunos. 4. Reações e
representações das crianças diante de narrativas e ilustrações que exaltam a beleza
negra.
Em virtude da dificuldade em encontrar obras infantis, o trabalho foi realizado
com duas obras de literatura infanto-juvenil, ambas foram ressignificadas a fim de
tornar mais fácil a compreensão pelas crianças, foi substituído algumas palavras para
que esta compreensão fosse contundente, foi feito duas oficinas só com a obra Luana
já que esta contém muito texto.
As oficinas foram realizadas por mim e pela professora que teve um papel
fundamental já que dispõe de anos de experiência, procedeu a contação da maior
parte da obra Luana e as Sementes de Zumbi e dirigiu diálogos com as crianças que
foram essenciais para a construção deste estudo. As oficinas se deram em três dias,
totalizando quase doze horas de trabalho com as crianças que não apresentaram
nenhuma dificuldade decorrente de minha presença e também, não demonstraram
nenhuma dificuldade em efetivar as atividades propostas muito pelo contrário, a turma
foi bastante colaborativa. Contudo, ainda acredito que por conta da minha presença
algumas das crianças pesquisadas tenham de certa forma, se sentido inibidas em
demonstrar, apresentar ou expressar de algum modo o que acham sobre o que lhes
foi perguntado.
58
A escola está trabalhando com o Projeto intitulado Bola pra frente que a escrita
é com a gente. “Os alunos irão construir a sua biografia, a sua história a partir da
sensibilização destes” afirma a professora.
Os alunos demonstraram ter uma relação muito especial com as obras
literárias que permanecem expostas numa caixa de madeira na sala de aula. A
professora permite que eles tenham acesso às obras, tocam, olham e contam as
histórias através da leitura das figuras ou fazendo de conta que estão lendo as
narrativas propriamente dita. Entretanto, obras com personagens negros na posição
se protagonistas são inexistentes naquele espaço de aprendizagem.
3.6 ANÁLISE DOS DADOS
Para a realização do estudo de caso foram elaboradas algumas categorias,
estas baseadas nas análises feitas das obras: Luana e as sementes de Zumbi, As
tranças de Bintou e As panquecas de mama Panya. Para tanto foi feito observação
participante e oficinas de contação de histórias.
Foi confeccionado um roteiro de entrevista semi-estruturada, elaborada
mediante questões com perguntas abertas e previamente definidas conforme citado
na entrevista com a professora, no item 3.4.
Sendo assim, foram feitas as seguintes análises dos dados coletados:
•
Se
as
crianças
demonstram
atitudes,
expressões
ou
falas
de
reconhecimento das suas origens.
Apesar de a professora ter uma postura muito adequada diante dos alunos, é
uma educadora que se preocupa com as proposições feitas por Cavalleiro (2001)
quando adota uma educação anti-racista já que no trato com as crianças a mesma
não apresenta nenhum tipo de distinção, dar a mesma atenção e carinho a todos, os
coloca no colo e os trata com o mesmo entusiasmo quando estes lhe apresentam
uma atividade que está construindo. Com certeza, tal postura funciona como
elemento facilitador no processo de construção de identidade racial da criança negra.
59
Destarte, o que se verifica é uma turma de alunos com idade entre 5 e 6 anos
que ao verbalizarem a sua raça quando questionados a qual grupo pertencem
mostram-se confusos, dizendo-se negro mas quando se pede para que se
identifiquem em livros e revistas a maioria se assume como brancos e em
contrapartida muitos destes assumem os pais como negros.
Tal percepção foi possível diante das atividades que foram efetuadas durante
as oficinas, depois de contar a historinha, pedi que identificassem todas as alunas
que pareciam com a personagem negra Luana, pedi que todos escolhessem uma
imagem de pessoa que se parecesse com a sua própria imagem. A grande maioria
da turma fez o recorte de pessoas brancas.
Ainda sobre essa atividade, o aluno J, 5 anos me chamou num tom de
frustração dizendo: “ Pró! Não tô achano nenhum como eu, negro.” O acalmei
dizendo: Espere um pouco que irei te dar outra revista.
Quando disponibilizei outra, ele recortou a figura de uma pessoa negra e me
entregou para que eu pudesse colar no cartaz que foi confeccionado junto com eles.
Figura 8 – J, 5 anos de idade, Jardim II.
Entretanto, o mesmo aluno ao ser anunciado á classe que a história do dia
seria As tranças de Bintou e ao apresentar a figura da personagem disposta na capa
60
do livro em tela, expressou: “Eca”! Esta expressão é compreendida pelo senso
comum como nojo, repúdio, aversão.
Logo interroguei: Por que você falou assim J? Houve certa relutância por parte
dele, mas logo respondeu colocando as mãos na cabeça: “Esse cabelo dela”.
O cabelo é uma parte do corpo que tem grande representação junto às
crianças pesquisadas. Sobre tal fato Gomes (2008) que o cabelo crespo é objeto de
constante insatisfação, principalmente das mulheres negras que o carrega. Tal
insatisfação fica evidente junto às crianças pesquisadas, sejam os meninos ou as
meninas, estes vêm o cabelo crespo, característica física do negro, como algo
inferiorizante.
•
Reflexão sobre a escravidão, releitura; como elas vêm à escravidão.
Para introduzir uma discussão sobre esta categoria, após contar a história de
Luana e as sementes de Zumbi que é uma obra que traz uma discussão sobre
escravidão, sobre o sonho de Zumbi, as lutas deste e de todo o povo negro. Iniciei
perguntando se eles sabiam que os negros trazidos da África para o Brasil não foram
sempre escravos. Eles foram escravizados, tinham uma vida como a nossa, tinham
família, casas para morar, etc.
Foi ressaltado para os alunos ainda sobre a questão da diversidade racial que
temos hoje em nosso país; foi falado das lutas desenvolvidas pelo povo negro no
sentido de conquistar melhores condições de vida, enfatizando que o Quilombo de
Palmares foi fundamental nesse contexto de luta onde os negros não permaneceram
submissos e acomodados com sua condição de escravidão diferentemente, do que
se tem propagado por muitos, inclusive por novelas globais.
Neste momento, foi feito uma reconstrução histórica a fim de demonstrar que a
partir de todas essas lutas, hoje nós temos um cenário bastante diferente, urge por
mudança, mas que temos bastantes avanços. Foi citado que temos negros ocupando
diversos espaços na sociedade.
61
O fato é que após manter essa conversa com as crianças, as indaguei sobre o
que elas sabem sobre escravidão. As mesmas só souberam falar sobre a novela
global veiculada na televisão, nas tardes de segunda a sexta-feira, citaram os
castigos praticados contra o negro e demonstraram bastante pesar diante de tal
situação.
Destarte, o que se percebe é uma total falta de informação por parte destas
crianças no tocante à sua própria história, se distanciam tanto da pessoa do negro
escravizado que é como se estes não pertencessem a tal grupo.
A escola tem uma responsabilidade muito grande por não adequar o currículo
à realidade do aluno, mas fica evidente que a família também é muito importante
nesse processo de construção da identidade étnico-racial da criança negra. O fato é
que ao manter uma conversa com uma criança da turma pesquisada (trata-se de R, 6
anos), uma mãe de outra criança ( G, 6 anos) se aproxima e diz: “A mãe de R é
altona, negra, parece aquele povo da África”. (J, negra, mãe do aluno G). A mãe se
refere ao povo negro vindo da África de modo muito distante, é como se ela não
fizesse parte deste contexto.
•
Se já ouviram histórias sobre a África? Quais? Se gostaram? Por quê?
Permitir que as contassem, valorizando os conhecimentos prévios dos
alunos.
Os alunos novamente fizeram alusão à novela Escrava Isaura que traz a
personagem branca Izaura como a “grande defensora” dos negros, a protagonista
que segue todos os padrões de beleza européia é a maior “esperança dos escravos”.
Neste momento, a professora (que teve um papel fundamental durante as
oficinas, procedeu a contação da história de Luana em sua maior parte, fez
inferências, indagações aos alunos, etc.), procedeu questionando-os: “O que eles
fazem na novela? Os alunos de um modo geral responderam: “Ficam em correntes”.
São castigados. Ó negros!”. E o aluno G acrescenta dizendo: “Zumbi tem a força de
um lobisomem”.
62
Figura 9 - G, 5 anos.
Diante das afirmações dos alunos é possível perceber que eles desconhecem
a história da África, resumem esta à escravidão, comparam Zumbi com um
personagem lendário que é metade homem, metade animal, associando este à força
e medo. Tal comparação advém da forma como o guerreiro Zumbi vem sendo
delineado no meio social em que o aluno convive, a percepção que este tem do negro
que tanto lutou por liberdade, está vinculada a uma visão estereotipada, difundida
pelos meios de comunicação e que vigora no imaginário da sociedade brasileira,
onde o negro é associado ao feio, caricaturado, animalizado.
Para contar a história do negro é preciso falar da escravidão uma vez que esta
infelizmente fez parte desta história, mas é preciso não se limitar apenas a isso, a
própria cultura afro-brasileira é riquíssima e pode e deve ser abordada na Educação
Infantil.
Lima (2000) chama atenção para esta questão quando afirma que os
personagens povoam o imaginário social, influenciando também, na auto-percepção
das crianças e jovens. A autora salienta ainda, que toda obra literária transmite
mensagens não só através do texto escrito, como também através das imagens
ilustradas, pois elas constroem enredos e cristalizam as percepções sobre o mundo
imaginado pela criança ou jovem. Sendo assim, vale destacar que a diferença de
representação:
63
(...) para uma criança não-negra está no número de opções em que ela se
vê para elaborar sua identidade, podemos encontrá-la nas mais diferentes
formas, papéis e jeitos o que compensa uma ou outra desqualificação. O
mesmo não acontece para a criança negra, que encontra imagens poço
dignas para se reconhecer. (LIMA, 2000, p. 103).
Diante disso, é inegável a importância que a literatura desempenha diante de
crianças negras e não-negras, é também indispensável que as obras literárias sejam
desvinculadas de conceitos pré-concebidos e que valorizem a cultura africana que faz
parte da vida e da história destas crianças.
•
Reações e representações das crianças diante de narrativas e ilustrações
que exaltam a beleza negra.
Os alunos demonstraram muito interesse pelas histórias contadas (Luana e as
sementes de Zumbi e As tranças de Bintou) e apresentadas para que eles pudessem
apreciar as imagens (Luana a menina que viu o Brasil neném; Histórias da Preta e,
Uma história africana: Doúm, Alabá e o senhor Elegbara em a verdade sempre tem
dois lados escrita por Jaime Sodré).
Contudo, as reações foram variadas, ora as crianças apresentavam
aceitabilidade com relação às personagens acredito que tal aceitabilidade advém do
trabalho desenvolvido pela professora, esta tem uma prática pedagógica que valoriza
a diversidade existente em sala de aula, ora não conseguiam aceitar as personagens
principais, Luana e Bintou, aquela por conta das tranças, esta por conta dos birotes e
do cabelo crespo.
Ainda sobre as reações diante das histórias, no primeiro dia de oficina foi
iniciada a contação da história Luana e as sementes de Zumbi, ao término foi
questionado se elas gostaram e por que, a maioria respondeu que gostou porque
Luana tem um berimbau mágico, outros porque ela joga capoeira. Nenhum aluno fez
alusão à beleza da personagem. Nesse momento, a aluna M, 6 anos afirmou o
seguinte:
MJ: “Pró! Eu não gostei”.
Professora: “Por que MJ, você não gostou”?
64
A aludida aluna reluta em responder e a aluna AB pergunta em tom de afirmação:
AB: “Por que ela é feia”?
A aluna MJ responde:
MJ: “Porque Luana tem o cabelo duro”.
Pró: “Ela é linda e o cabelo dela é igual ao seu”.
MJ:” Mas minha mãe deu alisante”.
Pró:” A sua mãe deu alisante por que você não gosta”?
A aluna responde:
MJ: “Não! Porque é duro”.
Pró: “Você não gosta do seu cabelo”?
MJ: “Gosto”!
Todos os alunos foram questionados sobre se gostam de seus cabelos e todos
responderam que sim embora, alguns não apresentaram firmeza nas respostas.
O fato é que a aluna MJ demonstra ter assimilado algumas idéias veiculadas
pelo adulto, pela mídia, pelo mercado que tanto valoriza o código da “boa aparência”,
assimilou também as frustrações da mãe que segundo a professora, ao chegar para
apanhá-la, a primeira coisa que cobra é a arrumação dos cabelos que ela assanhou
por conta das brincadeiras, afinal MJ só tem 6 anos e precisa brincar não é verdade?
Destarte, quando a aluna MJ afirma que tem o cabelo “duro” fica evidente em
seu rosto a tristeza pela “sina” de ter nascido com o cabelo “assim”. Desta forma, ela
rejeita não só a personagem, mas a si mesma.
Outro caso muito interessante é o da aluna M, 6 anos, negra, a turma
reconhece a semelhança desta com a personagem Luana entretanto, quando solicito
a classe que confeccione o desenho da personagem Luana, M é a primeira a dizer
que não quer desenha-la, “Pró! Não quero fazer não!”, fala M, demonstrando vontade
de chorar, após conversar com M, a mesma resolve fazer, trata-se de um desenho
minúsculo e sem pintar.
65
Figura 10- M, 6 anos
Cumpre ressaltar que M escreve o seu nome na referida atividade e a aluna
AB, branca, apaga e escreve com sua letra, M não fala nada e permite que a colega
tenha certo domínio sob sua atividade. Entretanto, a professora ao perceber, indaga
M “Por que você deixou que AB apagasse o que você escreveu? Vá e escreva com
sua letra”! M retorna para sua mesa e reescreve o seu nome na atividade. É como se
ela se anulasse diante da aluna AB.
Outro fato interessante sobre M foi que, durante a contação da historinha
Luana e as Sementes de Zumbi, a professora era quem procedia com a leitura,
quando teve que chamar a atenção de M, que se distraíra acariciando com a mão o
cabelo de AB que em contrapartida, começou a puxar as tranças de M, esta permitia
e a professora questionou: “M! Por que você está deixando que ela puxe o seu
cabelo”? M diz: “É carinho pró”. A pró diz que “carinho pode, mas puxar não”.
Uma afirmativa de Silva (1989) em minha opinião sintetiza e explica em parte o
que tem causado tanta aceitabilidade por parte de M no sentido de se anular diante
da colega e de suas atitudes, quando a autora destaca que:
A inculcação de uma imagem negativa do negro e de uma imagem positiva
do branco tende a fazer com que aquele se, não se estime e procure
aproximar-se em tudo deste e dos seus valores, tidos como bons e
perfeitos. Esse processo de fuga de si próprio e dos seus valores é
conseqüência da política de branqueamento característica do Estado e das
suas instituições oficiais. (SILVA, 1989, p. 57).
66
Nas representações feitas através da confecção de desenhos pelas crianças
ficou evidente que aqueles que têm pais, avós de pele clara demonstram-se
satisfeitos e até motivados em desenhá-los. Em contrapartida, os alunos de pele mais
escura, apesar de reconhecer semelhanças com as personagens, não demonstravam
interesse em desenhá-las.
Sobre tal fato, foi possível perceber que o aluno G, 5 anos, negro não
consegue desenhar a sua família como ela é, apesar de lhe ter sido disponibilizado
todas as cores em lápis de cor e lápis de giz já que esta foi uma das preocupações
que tive, durante a construção dos desenhos. Foi pedido que o aluno G desenhasse
suas avós, ele desenhou a que ele não gosta em tamanho menor e pintou algumas
partes em preto:
Figura 11- G, 5 anos.
Ainda sobre o aluno G, ao pedir que desenhasse o pai, imediatamente ele
disse vou desenhar o meu pai branquinho, o desenho da personagem Luana
também, conforme figuras abaixo:
Figura 12- G, 5 anos
67
Figura 13- G, 5 anos.
No último dia de oficina fora efetuada a contação da história As tranças de
Bintou, uma menina negra com quatro birotes na cabeça (polpas) que sonha em ter
tranças, um dado interessante é que após a contação e discussão pedi aos alunos
que desenhassem a personagem, entretanto, a maioria dos alunos demonstraram
desinteresse em confeccionar tal desenho inclusive as alunas identificadas pela turma
como semelhantes à personagem em pauta.
Diante de tudo isso, foi possível notar que a cor preta possui uma
representação junto aos alunos pesquisados, muito negativa, eles raramente utilizam
tal cor em seus desenhos mesmo quando tentam reproduzir a realidade (muitos
demonstraram preocupação em adequar as cores ao objeto real); associam as
pessoas de pele mais escura a personagens estereotipados ou a personagens
lendários que atuam no imaginário social de forma negativa, como aquele que bate
em criancinha, etc.
Um fato que corrobora para tal percepção foi quando estava efetivando o
último dia de oficina, a professora falava sobre combinados com a turma que ia
completando as frases ou criando os seus próprios termos, por exemplo: não bater no
coleguinha, não chingar, não mostrar a língua, etc. foi quando o aluno E, 6 anos,
negro, disse:
(E): “Não falar com negro”.
(Professora): “Por que”?
68
(E): “Ele é o homem do saco”.
(Professora): “Não pode falar com ele porque ele é negro ou por que ele é o homem
do saco”?
(E): “Porque ele é mau, é negro, ele pega o pau e mete na nossa cabeça”.
(Professora): “Ele é mau porque ele é negro, porque ele anda com o saco, quem te
contou essa história”?
O aluno não responde.
A professora conclui dizendo:
- Olhe para todos que estão na sala, todos nós temos raízes negras, temos sangue
de negro e de todos que foram trazidos da África.
- Lembram do caso de Isabela? Respondem positivamente.
- O pai fez a maldade com a própria filha e ele é branco.
O fato é que a professora faz um retorno à nossas origens africanas o que
considero muito pertinente para aquele momento e usa o caso Isabela, uma história
real que invadiu o lar de todos os brasileiros, no ano de 2008 para esclarecer que
qualquer pessoa independente da cor pode ser má.
No último dia de oficina ao distribuir alguns livros de literatura que trazem o
negro em posição de destaque, para que as crianças pudessem fazer apreciações,
de imediato a aluna C, negra, 5 anos apanhou o livro Histórias da Preta e começou a
contar a história através da leitura das figuras, a mesma falava baixo e por isso não
posso reproduzir o que falava. Aproximei-me de C e comecei a lhe fazer algumas
perguntas, ao ver a ilustração de uma figura feminina, cabelo crespo e muito curto, do
tipo corte masculino perguntei: A mulher é bonita? C respondeu “não”. Porque não é
bonita? “Ela é careca”. E mostrando para ela uma ilustração de outra mulher com
cabelos anelados e de comprimento mediano, perguntei-lhe: E esta é bonita? “Sim”.
Vê-se que o padrão de beleza estipulado pela mídia encontra-se internalizado
pela criança pesquisada que apesar de ser negra e de ter cabelos crespos muitas
vezes, não consegue ver nestas características um sinônimo de beleza.
Diante de tudo isso, é possível notar que apesar da pouca idade das crianças
e da sensibilidade da professora no trato das questões raciais o quanto estas
69
crianças encontram-se carregadas de racismo, preconceito, de atitudes e
representações que demonstram negação de sua identidade étnico-racial.
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este é apenas o início da construção de um trabalho já que a reflexão do tema
aqui proposto é um campo a desbravar. Trouxe apenas alguns pontos e não me
coloco com tanta abrangência, já que o estudo é limitado numa escola e com um
tempo de pesquisa muito aquém da necessidade e da complexidade que o tema
exige.
Buscar compreender o processo de construção de identidade étnico-racial é
um desafio já que este é um campo complexo e dinâmico, construído socialmente, é
marcado por relações vinculadas a critérios de inferioridade e superioridade.
O trabalho realizado na escola integrante da pesquisa me possibilitou o contato
com pequenos detalhes e situações, evidenciados nas interações e representações a
partir de possibilidades criadas por esta pesquisa, na escola observada, apontaram
que paralelamente a pesquisas realizadas no contexto escolar como as de Eliane
Cavalleiro que faz referência ao preconceito e discriminação racial existentes no
espaço escolar, tendem à não afirmação da identidade racial por parte da criança
negra que muitas vezes, se anula diante do outro, no caso o branco, este foi um fato
perceptível na turma pesquisada.
Gostaria de me reportar à trajetória da literatura infanto-juvenil no tocante à
produção artística de estudiosos e escritores negros, que surgem como propiciadores
de noções de afirmação da identidade negra, entretanto, o que pretendo destacar é
que o que houve (e há ainda na atualidade) são produções limitadas, e poucos
escritores voltados para a abordagem de protagonistas negros, alguns destes são:
Joel Rufino dos Santos, Heloísa Pires Lima, Geny Guimarães, Júlio Emílio Braz,
Inaldete Pinheiro Andrade, Aroldo Macedo, Petrovich e Machado, Rogério Andrade
Barbosa.
Há escritores que no rol de suas produções, também publicaram narrativas
com personagens negros na posição de protagonistas, alguns destes apenas um
título, são eles: Ana Maria Machado, Ziraldo, Lúcia Pimentel Góes, Jonas Ribeiro,
Mirna Pinsky, ganymédis José, Luís Galdino e Giselda Laporta Nicoelis, Carla
Caruso.
71
Vale destacar ainda que no mercado editorial, produções mais recentes (dos
anos 90 aos dias atuais), incluindo também as obras estrangeiras, reeditadas no
Brasil. São os livros de Gercilga de Almeida, Trish Cooke, Silvyane A. Diouf, Julius
Lester e Marie Sellier, nestas produções só há personagens e protagonistas negros e
o espaço social onde as histórias ocorrem é a África especialmente.
Nesse sentido, as narrativas aqui analisadas se aproximam dos propósitos do
movimento negro – ressignificação e valorização da história e cultura africana e afrobrasileira.
A dificuldade que a professora tem em encontrar livros com histórias de origem
africana ou livros de literatura que contenham personagens negros enquanto
protagonistas
e
que principalmente,
não
estejam
representados de forma
estereotipada, negativa corroboram para uma educação que não valoriza a
diversidade, as origens e acima de tudo, dificulta o processo de auto-conceito do
aluno negro e o desenvolvimento de sua identidade étnico-racial.
Vale salientar ainda que apesar da existência da Lei 10.639/2003 que foi
alterada para 11.645/2008 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB nº.
9.394/1996) onde torna obrigatório o Ensino da História da África e dos Afrobrasileiros, a escola pesquisada (com exceção da professora) apresenta certa
resistência e silenciamento diante das questões étnico-raciais, deixando de fora do
currículo escolar os diversos temas que envolvem tais questões.
Não acredito que apenas a representação positiva de personagens negros
(vale frisar que já seria um grande passo) seja suficiente para garantir á criança que
os acessa (seja através de contação, leitura ou vista das ilustrações), a afirmação de
identidade racial já que conforme vimos no decorrer dos capítulos anteriores, os
autores apresentados são unânimes em dizer que a construção de identidade se dá
principalmente, a partir da visão que o outro tem do negro, se dá mediante a
interação com o outro e de forma inconclusa – durante toda a vida, ou seja, nos
diversos espaços sociais e não apenas na escola apesar de esta ser constituída
enquanto lócus do saber.
72
É preciso que o professor esteja preparado para lidar com a diversidade
cultural em sala de aula e também, preparado para criticar o currículo e suas práticas
de modo a apontar sugestões atinentes ao trato das questões étnico-raciais na sala
de aula e até na escola como um todo.
Para que se possa elevar a auto-estima da criança negra e desenvolver nesta
um sentimento de pertencimento ao grupo o qual pertence faz-se necessário uma
participação mais efetiva por parte da gestão escolar, no sentido de viabilizar uma
educação voltada para as relações raciais, as questões identitárias e a cultura afrobrasileira; seria necessária também, a participação da família e de toda comunidade
escolar, neste processo.
Diante de tudo isso, verifica-se a necessidade deste tipo de pesquisa uma vez
que, esta favorece o reconhecimento e a divulgação da produção literária sobre a
temática aqui veiculada, patrocinando uma reflexão e um olhar mais crítico sobre as
obras publicadas para o público infantil e juvenil e também, suscitar maiores
discussões sobre as relações raciais na escola bem como sobre a literatura infantil e
a construção de identidade étnico-racial.
73
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Monografia Cristiana Ferreira dos Santos