Mulheres na
conquista
por novos
espaços de
liberdade
Defensora das causas das mulheres
Michelle Bachelet
Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi
Roza Otunbayeva
Uma questão de compromisso
Michaëlle Jean
Direitos garantidos, liberdades confiscadas
Sana Ben Achour
Crime sem castigo
Aminetou Mint El Moctar
Sem medo de nada
Sultana Kamal
Uma advogada de caráter inabalável
Asma Jahangir
Resistir à tirania
Mónica González Mujica
Paciência, vamos chegar lá
Humaira Habib
Estrelas de minha galáxia pessoal
Luisa Futoransky
O
Correio
Abril – Junho 2011
D A U NE S CO
ISSN 2220-2269
Michaëlle Jean
(Canadá)
Michelle Bachelet
Mónica González Mujica
(Chile)
Humaira Habib
(Afeganistão)
Asma Jahangir
(Paquistão)
Aminetou Mint El Moctar
(Mauritânia)
Maggy Barankitse
(Burundi)
Lautaro Pozo
(Equador)
Sultana Kamal
(Bangladesh)
Giusy Muzzopappa
(Itália)
Feriel Lalami-Fates
(Algéria)
Ernest Pépin
Sana Ben Achour
(Guadalupe)
(Tunísia)
Lorena Aguilar
(Costa Rica)
Roza Otunbayeva
(Quirguistão)
Katrin Bennhold
(Alemanha)
Noémie Antony
Laura Martel
(França)
Navin Chawla
Anbarasan Ethirajan
Shiraz Sidhva
(Índia)
Princesse Loulwah
(Arábia Saudita)
Luisa Futoransky
(Argentina)
NOSSOS AUTORES E AUTORAS
Igualdade de gênero: uma prioridade para a UNESCO
Condição necessária para a realização de todos
dos os outros objetivos de
desenvolvimento negociados no plano internacional,
rnacional, a igualdade de gênero é
vital para combater a pobreza extrema, reduzir
zir a propagação do HIV e da AIDS,
atenuar os efeitos das mudanças climáticas e alcançar desenvolvimento e paz
sustentáveis.
Sempre atenta à promoção dos direitos das
as mulheres, a UNESCO elevou
a igualdade de gênero ao nível de suas prioridades
idades globais. A Organização
tem empreendido uma série de ações que visam
isam a reduzir as desigualdades
em matéria de educação, começando pelo acesso
cesso à escolarização, até a
garantia da qualidade do ensino em todos oss níveis, passando por crescente
participação das mulheres na ciência, na tecnologia,
nologia, na inovação e na pesquisa.
A UNESCO também busca combater os estereótipos de que as mulheres
são vítimas, assim como as desigualdades a que elas são submetidas
em matéria de acesso, utilização e participação
ção em todos os sistemas
de comunicação e de informação. Ao mesmo
o tempo em que a
Organização desperta nos profissionais maior
or consciência
quanto à necessidade de integrar uma perspectiva
pectiva
de igualdade de gênero nos conteúdos
midiáticos, ela organiza programas de
formação destinados a aumentar a segurança
ça
para as mulheres jornalistas.
Além disso, a UNESCO esforça-se em
promover o empoderamento das mulheres e a
igualdade de gênero, integrando essas considerações
iderações
na sua ação normativa em áreas como a éticaa da ciência, a
cultura e os direitos humanos.
O Departamento para a Igualdade de Gênero
nero é o responsável
pela execução da prioridade “Igualdade de Gênero”, utilizando como
roteiro o Plano de Ação 2008-2013.
J Scutum, escultura em bronze de Annette Jalilova. © Annette JALILOVA, Paris
O
Correio
DA UNESCO
ABRIL-JUNHO 2011
64º aniversário
2011 - n° 2
O Correio da UNESCO é átualmente trimestral, publicado
em sete línguas pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura.
7, place de Fontenoy 75352, Paris 07 SP, France
Assinatura da versão eletrônica gratuita:
www.unesco.org/new/pt/unesco-courier
Diretor da publicação: Eric Falt
Redatora- chefe: Jasmina Šopova
[email protected]
Secretária de Redação: Katerina Markelova
[email protected]
Redatores:
Árabe : Khaled Abu Hijleh
Chinês : Weiny Cauhape
Espanhol : Francisco Vicente-Sandoval
Francês : Françoise Demir
Inglês : Cathy Nolan
Português : Ana Lúcia Guimarães
Russo : Irina Krivova
Editorial – Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO
5
Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade
Defensora da causa das mulheres
Entrevista com Michelle Bachelet por Jasmina Šopova
7
Mulheres à conquista do espaço político – Shiraz Sidhva
9
Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi
Entrevista com Roza Otunbayeva por Katerina Markelova
13
Uma questão de compromisso
Entrevista com Michaëlle Jean por Katerina Markelova
15
Crime sem castigo
Entrevista com Aminetou Mint El Moctar por Laura Martel
17
Mamãe Maggy e seus 20.000 filhos
Jasmina Šopova encontra com Maggy Barankitse
20
Sem medo de nada
Entrevista com Sultana Kamal por Anbarasan Ethirajan
22
Uma advogada de caráter inabalável
Entrevista com Asma Jahangir por Irina Zoubenko-Laplante
25
Direitos garantidos, liberdades confiscadas – Sana Ben Achour
28
Os artigos podem ser reproduzidos sob a condição de
estarem acompanhados do nome do autor e da menção
“Reproduzido do Correio da UNESCO”, precisando a data
da edição.
Agora ou nunca – Giusy Muzzopappa
30
Resistir à tirania
Entrevista com Mónica González Mujica por Carolina Jerez e Lucía Iglesias
32
Paciência, vamos chegar lá – Humaira Habib
34
Os artigos exprimem a opinião de seus autores e não
necessariamente a da UNESCO.
Uma lenta conquista do mercado de trabalho – Feriel Lalami-Fates
36
Igualdade de gênero: um bem público mundial
Saniye Gülser Corat e Estelle Raimondo
37
A mulher é o futuro de Davos – Katrin Bennhold
39
Lançando as sementes do futuro
Entrevista com Lorena Aguilar por Alfredo Trujillo Fernández
41
Estrelas de minha galáxia pessoal – Luisa Futoransky
43
Madre Teresa: a mulher mais poderosa do mundo – Navin Chawla
47
Manuela Sáenz, guerreira à serviço da América Latina
Lautaro Pozo
48
Photos : Ariane Bailey
Paginação: Baseline Arts Ltd, Oxford
Impressão: UNESCO – CLD
Informações e direitos de reprodução:
+ 33 (0)1 45 68 15 64 . [email protected]
Plataforma web: Chakir Piro e Van Dung Pham
Agradecimentos a: Elisabeth Cloutier e Marie-Christine
Pinault Desmoulins
As fotos que pertencem à UNESCO podem ser
reproduzidas com a menção ©UNESCO seguida do nome
do fotógrafo. Para obter as fotos em alta resolução, favor
dirigir-se ao Banco de Fotos: [email protected].
As fronteiras retratadas nos mapas não implicam
reconhecimento oficial pela UNESCO ou pelas Nações
Unidas, assim como as denominações de países ou de
territórios mencionados.
POST-SCRIPTUM
Homenagem a Edouard Glissant: pensar o Tout-Monde – Ernest Pépin 50
© DR
A nossa riqueza é a juventude
Entrevista com a Princesa Loulwah da Arábia Saudita por Linda Tinio
Pensamento universal: Tagore, Neruda, Césaire, a poesia a
serviço de um novo humanismo – Noémie Antony e Jasmina Šopova
52
53
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 3
Nesta edição
Neste ano, celebramos o centenário da
primeira manifestação internacional
que reuniu, nos dois lados do Atlântico,
milhares de mulheres, reivindicando o
direito ao voto. Esse é o passado, mas, no
que diz respeito ao futuro, o ano de 2011
marca uma virada muito mais decisiva
para a condição feminina em escala
internacional: a criação da ONU Mulheres.
Figura principal desta edição, Michelle
Bachelet explica a missão e os objetivos
dessa nova entidade da Organização
das Nações Unidas, da qual ela é a
primeira diretora-executiva (p. 7). Ao seu
lado, vamos encontrar outras mulheres
importantes que entraram de maneira
triunfante na cena política internacional:
Roza Otunbayeva, que fala sobre seu
mandato como a primeira presidente
do Quirguistão (p. 13), e Michaëlle Jean,
ex-governadora-geral do Canadá, que
aborda o pacto de solidariedade em favor
do Haiti, seu país natal (p. 15).
Se na cena política os progressos
em direção à igualdade de gênero
continuam em ritmo lento (p. 9-12),
o mesmo não acontece no âmbito
dos direitos humanos. Nesse ponto as
mulheres também precisam de muita
força de vontade para romper com
obstáculos seculares, como têm feito a
mauritana Aminetou Mint El Moctar
(p. 17), a burundiense Maggy Barankitse
(p. 20), a bengalesa Sultana Kamal (p. 23),
a paquistanesa Asma Jahangir (p. 25) e
a tunisiana Sana Ben Achour (p. 28). A
determinação de todas elas é a mesma
das italianas que se mobilizaram em
todos os cantos do mundo para defender
sua dignidade desrespeitada (p. 30).
Para ter sucesso, essas difíceis
conquistas não podem dispensar
a contribuição dos meios de
comunicação. Duas mulheres, uma
chilena e uma afegã, correram vários
riscos para defender a liberdade de
expressão e explicam-nos o que signif
ica o “jornalismo feminino” (p. 32-35).
Como o trabalho digno constitui,
neste ano, o tema central da celebração
do Dia Internacional da Mulher, também
nos interessa a situação das argelinas
que, em suas atividades laborais, se
deparam com situações precárias.
Quando falamos de trabalho, também
estamos falando de economia, outro
elemento determinante para a liberdade
das mulheres. No âmbito internacional,
é possível observar sinais de mudança
em relação à imagem e à posição
4 . O CORREIO DA UNESCO . ABRIL-JUNHO 2010
ocupada pelas mulheres, em um espaço
que foi, durante muito tempo, ocupado
exclusivamente por homens. Enquanto
isso, em âmbito local, constatamos
que, devido a seu papel na agricultura,
as mulheres estão na vanguarda da
preservação do meio ambiente e do
combate aos efeitos das mudanças
climáticas (p. 36-42).
Para encerrar o tema central, vamos
redescobrir, graças à poetisa argentina
Luisa Futoransky, algumas figuras
femininas que se destacaram nas artes
e na literatura (p. 43-46). Também
recordamos Madre Teresa, que teria
completado 100 anos de vida este ano,
e a equatoriana Manuela Sáenz Aizpuru,
uma guerreira a serviço da América
Latina (p. 47-48).
Como complemento desta edição,
prestamos homenagem a Édouard
Glissant (1928-2011), ex-chefe de
redação do Correio da UNESCO,
entrevistamos a princesa Loulwah da
Arábia Saudita e apresentamos um novo
projeto da UNESCO, Tagore, Neruda e
Césaire: pelo universal reconciliado.
Jasmina Šopova
Editorial
Irina Bokova
M Ames (Almas),
esculturas da artista
francesa Hélène Hiribarne.
© Alicia Cloeren, Texas
“Ser mulher, aqui, é semelhante a uma ferida
aberta que permanece incurável”, escreve
Toni Morrison1, no livro Misericórdia (A Mercy,
2008); no meu entender, trata-se de um dos
romances mais comoventes que já foram
escritos sobre a condição feminina. Os destinos
de quatro mulheres – uma europeia, uma
africana, uma indígena e uma jovem surgida
misteriosamente do mar – estão emaranhados
nesse texto, cada qual mais trágico do que
o outro, inextricavelmente ligados entre si e
profundamente enraizados no solo que, um
século mais tarde, daria origem aos Estados
Unidos. Essas quatro figuras femininas, cada uma
mais consistente que a outra, apresentam-se
como outras tantas cariátides, dando sustentação
à sociedade norte-americana nascente. No
entanto, afirma a romancista, são “feridas
abertas”. Será que, de uma extremidade à outra
de nosso vasto mundo, o destino comum das
mulheres é serem pilares e vítimas da sociedade?
Não é preciso dizer que, desde então, a situação
das mulheres evoluiu consideravelmente nos
últimos 100 anos. O Conselho Internacional
das Mulheres (CIM), criado em 1888, e a Aliança
Internacional da Mulher (AIM), criada em
1904, assim como a Federação Democrática
Internacional das Mulheres (FDIM), criada 1945,
desempenharam papel determinante na luta
pela igualdade de gênero.
A igualdade de gênero está no âmago dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais,
que são valores essenciais para a dignidade dos
indivíduos, para a prosperidade das sociedades
e para o Estado de direito. A igualdade entre
homens e mulheres revelou-se também como
vigoroso acelerador da transformação política,
social e econômica; ela está no cerne da temática
do desenvolvimento e da segurança. De fato,
as meninas e as mulheres sofrem, de maneira
desproporcional, com os conflitos armados. E,
muitas vezes, são elas que trabalham mais ef
icazmente em favor da reconciliação.
O século passado ensinou-nos que todos têm
o dever de promover a igualdade de gênero.
É evidente que o poder público desempenha um
papel-chave, mas a mesma exigência impõe-se,
à sociedade civil e às empresas, aos professores e
aos administradores, aos artistas e aos jornalistas.
A comunidade internacional cumpre sua
parte, ao fixar objetivos e ao mobilizar o apoio
necessário para atingi-los.
A UNESCO procura estreitar o vínculo
entre a igualdade de gênero e os objetivos
fixados pela comunidade internacional. Demos
especial destaque a esse argumento em 2010,
por ocasião do 15º aniversário da Quarta
1. A romancista norte-americana Toni Morisson
recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993.
J
A diretora-geral, em
visita às Tumbas dos
Reis Buganda, em Kasubi
(Uganda), acompanhada
de Geraldine Namirembe
Bitamawire, ministra
da Educação e dos
Esportes, e Elizabeth
Paula Napeyok, delegada
permanente de Uganda
na UNESCO.
© UNESCO/Tosin
Animashawun
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 5
Conferência Mundial sobre as Mulheres, em
Beijing, sendo novamente enfatizado durante
a realização da Cúpula das Nações Unidas sobre
os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio,
que aconteceu em Nova York, em setembro
passado. Em colaboração com a Coreia do Sul,
transformamos a educação em uma prioridade
da agenda da Cúpula do G-20 realizada em Seul,
e procedemos do mesmo modo no decorrer
do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em
2011. Promovemos todas essas ações em estreita
colaboração com a Iniciativa das Nações Unidas
para a Educação das Meninas e vamos dar-lhes
prosseguimento com a ONU Mulheres, a nova
entidade dirigida por Michelle Bachelet.
A igualdade de gênero está integrada nas
atividades de todos os setores da UNESCO. Ela
incentivou-me a reformar a Organização, além de
orientar nossas ações de campo, principalmente,
em contextos difíceis, como no Afeganistão, no
Iraque ou no Paquistão. Durante a minha recente
visita à República Democrática do Congo, assinei
um acordo com o governo para estabelecer
um Centro de Pesquisa e Documentação
sobre as Mulheres, a Igualdade de Gênero e a
Consolidação da Paz. Localizado em Kinshasa,
esse centro da UNESCO irá abordar um problema
crucial para os direitos humanos, a estabilidade
social e o desenvolvimento na região africana
dos Grandes Lagos.
Ao evocar as lembranças de uma viagem
feita na década de 1980, ao noroeste de seu
país natal, o Zimbábue, Doris Lessing fez a
seguinte afirmação: “aquela pobre moça que
caminha na estrada empoeirada, sonhando com
uma educação para os filhos, será que temos a
certeza de sermos melhores do que ela – nós que
estamos empanturrados de comida, com nossos
armários cheios de roupas e sufocados sob o
supérfluo? Estou convencida de que a situação
daquela moça e das mulheres que falavam
sobre livros e educação – e, no entanto, haviam
passado três dias sem se alimentarem – ainda
pode nos definir atualmente.”2
A famosa feminista britânica reafirmava,
assim, fora dos limites de seu universo
romanesco, sua fé nas mulheres, inclusive nas
mais necessitadas. A UNESCO dispõe de outros
recursos para reafirmar essa mesma fé: a fim de
dar mais autonomia às meninas e às mulheres
mais pobres do mundo, vamos lançar, em breve,
uma nova iniciativa de educação que irá envolver
parceiros dos setores público e privado. Esse
projeto focalizará particularmente a utilização
inovadora das novas tecnologias para estender
a educação básica e a alfabetização à educação
de meninas e mulheres em situações de conflito
e desastres naturais, assim como aos quadros
políticos e à formação de professores em todo o
Sistema das Nações Unidas.
De fato, apesar do avanço realizado, nos
últimos dez anos, em matéria de igualdade
de gênero no ensino primário – como é
testemunhado pelo Relatório de Monitoramento
Global de Educação para Todos 2011, publicado
recentemente pela UNESCO –, convém
reconhecer que as disparidades se tornaram mais
evidentes no nível secundário, principalmente
na África. E, mesmo que o número de mulheres
tenha aumentado no ensino superior em todo
no mundo , elas continuam representando
apenas 29% dos pesquisadores. A proporção de
mulheres analfabetas não evoluiu nos últimos 20
anos: elas ainda representam dois terços dos 796
milhões de analfabetos do planeta.
“Se você pretende construir um barco”,
escreveu o romancista francês, Antoine de SaintExupéry, “não se preocupe em reunir homens
para buscar madeira, preparar ferramentas,
distribuir tarefas, facilitar o trabalho, mas
desperte nas pessoas a nostalgia pelo infinito do
mar”. Essa nostalgia pelo infinito do mar servenos de orientação, desde 1911, e continua a
inspirar-nos ainda hoje. „
2. Discurso de Doris Lessing,
por ocasião da entrega do
Prêmio Nobel de Literatura,
em 2007.
A MULHER NOS ARQUIVOS DO CORREIO DA UNESCO
Descubra uma seleção de reportagens especiais e artigos (em espanhol) dedicados às mulheres, escrevendo o título desejado no
campo “pesquisa personalizada” no link: http://www.unesco.org/fr.
10 REPORTAGENS ESPECIAIS
Mujeres entre dos orillas (2008)
Ciudadanas al poder (2000)
Mujeres: la mitad del cielo (1995)
Un pacto planetario: la voz de las mujeres (1992)
La mujer: entre la tradición y el cambio (1985)
La mujer invisible (1980)
Hacia la liberación de la mujer (1975)
Año Internacional de la Mujer (1975)
Mujeres de la nueva Asia (1964)
La mujer, ¿es un ser inferior? (1955)
6 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
10 ARTIGOS
Chiapas: invertir en alfabetización (2005)
Mujeres afganas: el saber y la rebelión (2001)
El duro despertar de las mujeres del Este (2000)
Mujeres: una alfabetización a medida (1999)
Mujeres de Kabul (1998)
Las mujeres, botín de guerra (1998)
Las mujeres, un eslabón indispensable (1997)
Las mujeres guardianas del medio ambiente (1995)
¿Con qué sueñan veinte muchachas? (1994)
Las olvidadas (1993)
O que incentivou a Sra. a definir as
violências perpetradas contra as
mulheres como principal prioridade
da ONU Mulheres, e quais são os tipos
de violência de que as mulheres são
vítimas ao redor do mundo?
A violência contra as mulheres constitui
uma das violações mais comuns
dos direitos humanos. Definimos
essa realidade como uma das cinco
prioridades da ONU Mulheres, porque,
se conseguirmos registrar algum
progresso nesse campo, poderemos
avançar mais longe em outras áreas.
Uma mulher que não é vítima de
violências tem mais possibilidades
de encontrar trabalho decente, de
interessar-se por sua educação, de
cuidar de sua saúde e de assumir
cargos de responsabilidade em sua
comunidade ou em outro lugar.
As mulheres sofrem todos os tipos
de violência: violência doméstica,
estupro, violência sexual como
arma de guerra, casamento precoce,
mutilação genital. Um grande número
de sociedades, em todo o mundo,
enfrenta um ou outro desses problemas.
Assim, se levarmos em consideração as
experiências vivenciadas pelas mulheres
ao longo da vida, a taxa de vítimas
chega a atingir 76% da população
feminina mundial.
© UN Photo/Martine Perret
Defensora
da causa
das mulheres
As desigualdades entre homens e mulheres permanecem
profundamente enraizadas em um grande número de
sociedades. As mulheres deparam-se, muitas vezes, com a
falta de acesso à educação e aos cuidados básicos, devem
superar a segregação nos empregos e as diferenças de
remuneração, estão sub-representadas nos processos de
tomada de decisões e são vítimas de violências. Outros
tantos desafios que Michelle Bachelet – diretora-executiva
da nova Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de
Gênero e o Empoderamento das Mulheres, ONU Mulheres –
pretende enfrentar com toda sua determinação.
MICHELLE BACHELET responde às perguntas de Jasmina Šopova
Quais são os outros temas prioritários
que a Sra. pretende abordar e como vai
mobilizar recursos para concretizar as
ações programadas?
Vamos desenvolver e apoiar projetos
inovadores que visem a fortalecer a
independência econômica das mulheres,
confiar-lhes o papel de defensoras e
de líderes nos processos de mudança,
posicioná-las no centro dos processos
de paz e de segurança, além de inscrever
prioridades de igualdade de gênero nas
estratégias nacionais. Mobilizar recursos
para realizar esses objetivos servirá,
entre outros aspectos, para demonstrar
até que ponto as mulheres contribuem
para o desenvolvimento não só de sua
própria condição, mas também de sua
sociedade como um todo. As provas
de tais avanços são cada vez mais
frequentes. O último Relatório Global de
Desigualdade de Gênero (Global Gender
Gap Index Report), publicado pelo Fórum
Econômico Mundial, em 2010, mostra,
por exemplo, que, entre 114 países,
aqueles que atingiram o nível mais alto
da igualdade entre homens e mulheres
são os mais competitivos e exibem as
mais elevadas taxas de crescimento.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 7
Quais são os recursos humanos e
financeiros que atualmente estão à
disposição da ONU Mulheres? Serão
suficientes para realizar sua missão?
A ONU Mulheres herdou recursos
das quatro entidades da ONU que se
fundiram para sua criação. Com base
nesses recursos – que serão acrescidos
de outras contribuições, de acordo com
a recomendação do secretário-geral,
Ban Ki-moon, proferida em janeiro de
2010 –, está previsto aumento anual
no orçamento de, no mínimo, US$ 500
milhões. Esse é o objetivo para o qual
conjugaremos todos nossos esforços.
© UN Photo/John McIlwaine
A Sra. pretende dar prioridade a
determinados países? Quais seriam
esses países e quais as razões desse
interesse particular?
Vamos trabalhar com todos os Estados-membros da ONU que solicitarem
nossos serviços, sejam eles países
desenvolvidos ou em desenvolvimento.
Atualmente, a ONU Mulheres está
presente, em graus variáveis, em cerca
de 80 países, e teremos de fortalecer
nossa presença naqueles que têm
necessidade de nosso apoio. Vamos
intervir de forma gradual, à medida que
desenvolvermos nossas capacidades e
nossos recursos de ordem institucional.
Em cada país, uma das prioridades
consistirá em atingir os grupos de
mulheres mais marginalizadas. São elas
que têm mais necessidade do apoio
da ONU Mulheres. Cooperar com elas
pode ser a melhor maneira de utilizar
nossos recursos. Como o UNICEF tem
demonstrado, o método mais eficaz
consiste em investir na parcela da
população mais marginalizada.
Qual é o lugar da igualdade de gênero
nos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio (ODM)? Qual é a sua estratégia
para atribuir maior importância a esse
aspecto?
Conseguir a igualdade de gênero –
objetivo número três dos ODMs – é
primordial para a realização de todos
os outros objetivos. Vamos continuar
a insistir, até 2015 (prazo final para a
realização dos ODMs), no vínculo crucial
existente entre a igualdade de gênero
e todos os outros objetivos que dizem
respeito à pobreza, à saúde, à educação
ou ao meio ambiente.
Um dos problemas prioritários
relacionado a nossa missão é a
mortalidade materna. No plano
mundial, estamos longe de ter
conseguido um avanço satisfatório.
Podemos – e devemos – obter
melhores resultados. Salvar maior
número de vidas no momento do
parto exige conhecimentos básicos e
meios pouco onerosos que poderiam
estar disponíveis facilmente em toda
parte, se os governos e a comunidade
internacional decidissem realmente
reconhecer essa ação como prioritária.
O número de mulheres eleitas para
assumir a direção de Estados, governos
e agências da ONU tem aumentado
nos últimos anos. Esse fenômeno já
apresentou efeitos positivos sobre
questões sensíveis relativas às
mulheres em âmbito mundial?
Em uma perspectiva histórica, foi
realizado um enorme progresso. Apesar
de ainda existirem desafios a enfrentar,
a igualdade de gênero entrou em uma
dinâmica que nunca havia ocorrido no
passado, tanto no plano internacional
quanto internamente na maior parte dos
países.
A razão disso é que as mulheres
assumiram a defesa da igualdade de
gênero, assim como as questões mais
sensíveis em diversos níveis, tanto no
seio de sua comunidade quanto na
direção dos Estados. A existência de
mulheres líderes tem levado um número
crescente de pessoas a compreender
que as mulheres devem participar
ativamente das atividades econômicas,
que se deve acabar com a violência
contra as mulheres e que se deve
utilizar a capacidade das mulheres para
que elas se tornem as promotoras de
mudanças que irão beneficiar a todos.
Para atingir esses objetivos, devemos
fornecer os recursos e empreender as
ações necessárias – como fizemos, em
parte, ao criar a ONU Mulheres, que é a
“defensora” obstinada dos direitos das
mulheres no mundo. „
Cirurgiã por formação, Michelle Bachelet é a primeira secretária-geral adjunta
e diretora-executiva da nova entidade ONU Mulheres. A ex-presidente do Chile
(2006-2010) chamou a atenção, em particular, pela reforma da aposentadoria e
dos programas de proteção social para mulheres e crianças, assim como pelos
investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Durante seu mandato presidencial,
triplicou o número de centros de saúde gratuitos para crianças de famílias de baixa
renda, além de ter criado cerca de 3.500 novos centros pediátricos no Chile. No
momento de sua nomeação para dirigir a nova agência da ONU, a ONU Mulheres,
em 14 de setembro de 2010, Michelle Bachelet comprometeu-se a transformá-la na
“defensora da causa das mulheres”.
A ONU Mulheres foi criada em julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações
Unidas com o objetivo de acelerar a realização das metas da Organização associadas à
igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres.
Lançada oficialmente em 24 de fevereiro de 2011, a ONU Mulheres é o resultado
da fusão de quatro componentes do Sistema das Nações Unidas: o Departamento
da Promoção das Mulheres (Division for the Advancement of Women - DAW), o
Instituto Internacional de Pesquisas e Formação para a Promoção das Mulheres (International Research and Training Institute for
the Advancement of Women - INSTRAW), o Escritório da Conselheira Especial para a Problemática Homens-Mulheres (Office of
the Special Adviser to the Secretary-General on Gender Issues - OSAGI); e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as
Mulheres (United Nations Development Fund for Women - UNIFEM).
A principal missão da nova entidade ONU Mulheres consiste em apoiar organismos intergovernamentais, assim como os Estados-membros, na elaboração de políticas, regulamentos e normas, em âmbito nacional e mundial, em favor da igualdade de gênero.
Compete à agência exigir às Nações Unidas a prestação de contas em relações a seus próprios compromissos, em particular, por
meio do monitoramento regular dos progressos registrados no conjunto do Sistema ONU. Site oficial : www.unwomen.org/fr
8 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
© UN Photo/Evan Schneider
Mulheres
à conquista
do espaço político
Se, entre as personalidades mundiais, figuram algumas mulheres, seu número continua
reduzido na presidência das democracias modernas: na história recente, menos de 50
mulheres alcançaram a cúpula do Estado e, atualmente, apenas 19 países aceitaram
elevá-las até o posto supremo. Na cena política, a marcha em direção à igualdade de
gênero é, portanto, lenta, mas inexorável.
SHIRAZ SIDHVA, jornalista indiana residente nos EUA
Apesar do consenso geral de que a
representação das mulheres em sistemas
de tomada de decisão é um fator
essencial de mudança, elas raramente
estão presentes nesses postos. De acordo
com a União Interparlamentar, o número
de mulheres aumenta nos parlamentos
nacionais, com uma presença média
recorde de 19,1% dos assentos, levando
em consideração todos os organismos
nacionais com atribuições legislativas.
No entanto, “o objetivo de chegar ao
equilíbrio entre homens e mulheres
na política está ainda longe de ser
alcançado em vários países”.
Nas últimas décadas, registraram-se
histórias notáveis de mulheres que
conseguiram ultrapassar barreiras
antes intransponíveis, vencendo todos
os obstáculos para conquistar este
bastião da masculinidade: o mais alto
cargo à frente do Estado. Trata-se de
pioneiras que derrubaram um tabu em
seus respectivos países, incentivando
outras mulheres, em todo o mundo, a
manifestarem suas opiniões, sempre que
políticas decisivas para o futuro de suas
sociedades chegam à ordem do dia.
A começar por Ellen Johnson Sirleaf,
que entrou na história, em 2006, ao
ser eleita presidente da Libéria, fato
inédito na África. Defensora dos direitos
das mulheres, essa mulher combativa,
formada em Harvard, repetiu, no
decorrer de sua campanha, que, se
ganhasse a eleição, iria incentivar as
mulheres africanas a alcançar postos
mais altos no funcionalismo público.
Essa dedicada avó, que, em 30 anos de
carreira, enfrentou a prisão e o exílio,
demonstrou determinação implacável
para impor a paz em um país devastado
por uma década de guerra civil.
Ellen Johnson Sirleaf foi agraciada
recentemente com o Prêmio Africano
de Excelência em favor do Gênero 2011,
como reconhecimento “pelos esforços
despendidos pela Libéria para promover
o direito das mulheres e, principalmente,
a educação das jovens, a independência
econômica das mulheres e as leis que
punem a violência de que elas são
vítimas”. “Ao incentivar a igualdade de
gênero, ao emancipar nossas jovens,
estamos também enaltecendo nosso
país”, sublinhava ela, recentemente,
diante de jovens diplomadas em
programa de autonomia econômica.
A ex-presidente islandesa,
Vigdís Finnbogadóttir, também está
convencida da importância da educação:
“eu gostaria de dizer a todas as mulheres
do mundo inteiro: estudem o máximo
possível e nunca aceitem estudar menos
do que seus irmãos. É essencial que
vocês obtenham um grau acadêmico,
leiam e descubram a vida. Nem todos
conseguem ter acesso à universidade,
mas, se os irmãos de vocês são
caminhoneiros, aprendam, pelo menos,
algo semelhante”.
A “presidente Vigdís”, como é
conhecida na Islândia – foi a primeira
K Foto dos participantes do III Fórum Mundial
da Aliança de Civilizações das Nações Unidas,
realizado no Rio de Janeiro, Brasil, em maio de
2010. Única figura feminina: Cristina Fernández
de Kirchner, presidente da Argentina.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 9
mulher no mundo a ocupar o cargo
presidencial, sem estar filiada a um
partido. Foi em 1980. “Abri as portas da
política, não só para as mulheres, mas
também para os homens”, afirma ela.
Com efeito, quando uma mulher é
bem-sucedida, “ela mostra o caminho a
outras mulheres e a outras sociedades
em todo o mundo”.
A Islândia, entre outros países
da Europa Setentrional, continua
sendo o melhor exemplo em matéria
de igualdade de gênero, sendo,
atualmente, ainda uma mulher, Jóhanna
Sigurdardóttir, que ocupa o cargo de
primeiro-ministro. Contudo, há 30 anos,
no momento de sua eleição, “as pessoas
achavam algo realmente insensato
que uma mulher fosse presidente de
um país”, conta Vigdís Finnbogadóttir.
“Os islandeses demonstraram uma
coragem fora do comum, ao infringirem
a tradição”, complementa. Ela havia sido
precedida por outras dirigentes como
Indira Gandhi, na Índia, Isabel Perón, na
Argentina, e Sirimavo Bandaranaike, no
Sri Lanka, que chegaram ao poder “por
herança”, tendo assumido na sequência
do pai ou do marido, enquanto Golda
Meir e Margaret Thatcher foram
apoiadas por partidos políticos. Por sua
vez, Vigdís Finnbogadóttir não era a
herdeira de ninguém, nem pertencia
a um partido. Ela foi reeleita quatro
vezes, de 1980 a 1996, fato que a torna
a dirigente que permaneceu no cargo
pelo período mais longo em toda a
história. “Na primeira vez, ganhei por
pouco”, reconhece ela. “Na segunda, a
margem foi mais confortável. Convém
dizer, entretanto, que eu tinha provado
que uma mulher poderia ter sucesso,
mesmo sendo uma mulher”.
No entanto, será que o sexo tem
realmente tanta importância para quem
ocupa um cargo de direção, e será
que ele exerce influência real sobre as
qualidades de um líder? Os contextos
que levaram essas mulheres, entre
outras, a assumir o poder eram bastante
heterogêneos, mas especialistas em
ciência política identificam, mesmo
assim, características comuns às
dirigentes. Quais são, portanto, os
obstáculos que elas devem vencer
para chegar à cúpula do poder de seus
respectivos países? Que qualidades elas
devem ter para alimentar a expectativa
de superar a mais intransponível
das barreiras e abrir caminho para a
magistratura suprema, às vezes, sem
ninguém para mostrar-lhes a direção?
Essas questões têm intrigado Laura
Liswood, advogada, escritora e ativista
Mary McAleese
Presidente da Irlanda
Ellen Johnson-Sirleaf
Presidente da Libéria
Angela Merkel
Chanceler federal da Alemanha
© UN Photo/Evan Schneider
© UNESCO/Michel Ravassard
© UN Photo/Evan Schneider
Jóhanna Sigurdardóttir
Primeira-ministra da Islândia
Jadranka Kosor
Primeira-ministra da Croácia
Dalia Grybauskaitė
Presidente da Lituânia
© UNPhoto/Aliza Eliazarov
© UN Photo/Jenny Rockett
© UNPhoto/Rick Bajornas
Laura Chinchilla
Presidente da Costa Rica
Pratibha Patil
Presidente da Índia
Dilma Rousseff
Presidente do Brasil
© UN Photo/Aliza Eliazarov
© Bureau du Président de l’Inde
© Roberto Stuckert Filho/Presidência
da República/Agencia Brasil
internacional dos direitos das mulheres.
No âmbito do projeto Liderança
Feminina (Women’s Leadership), nos EUA,
promovido por sua iniciativa, ela fez
viagem inédita ao redor do mundo, em
1992, para encontrar 15 mulheres chefes
de Estado e de governo. As entrevistas
com essas dirigentes – como Margaret
Thatcher (Reino Unido), Gro Brundtland
(Noruega), Benazir Bhutto (Paquistão),
Corazón Aquino (Filipinas) ou Kazimiera
10 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
Prunskiene (Lituânia) – deram origem a
um livro original: Líderes mundiais: quinze
grandes mulheres políticas contam sua
história (Women world leaders: fifteen
great politicians tell their stories).
Liderança feminina
Há muito tempo, pesquisadores
debatem o papel do gênero na liderança.
“Em alguns casos, o sexo é irrelevante”,
explica Michael A. Genovese, professor
Tarja Halonen
Presidente da Finlândia
Iveta Radicová
Primeira-ministra da Eslováquia
Sheikh Hasina Wajed
Primeira-ministra de Bangladesh
© UN Photo/Erin Siegal
© European People’s Party
© UNPhoto/ Eskinder Debebe
Julia Gillard
Primeira-ministra da Austrália
Kamla Persad-Bissessar
Primeira-ministra de Trinidad e
Tobago © UN Photo/Aliza Eliazarov
Cristina Fernández de Kirchner
Presidente da Argentina
Micheline Calmy-Rey
Presidente da Suíça
Cissé Mariam Kaïdama Sidibé
Primeira-ministra do Mali
Rosario Fernández Figueroa
Primeira-ministra do Peru
© Patrick Lazic/OIF
© Primature du Mali
© Présidence du Conseil de Ministres
© UN Photo/Mark Garten
de Ciência Política e diretor do Instituto
de Estudos da Liderança da Universidade
Loyola Marymount, na Califórnia.
“Nesse aspecto, Margaret Thatcher é
um bom exemplo; em outros casos,
ocorre o oposto, como no de Corazón
Aquino”. De acordo com ele, é preferível
“questionar-se quando e em que
circunstâncias o gênero perde ou ganha
importância. Existem forças estruturais
internas que devem ser enfrentadas
© UNPhoto/Jean Marc Ferre
por todos os dirigentes, obrigando-os
a assumir determinadas tarefas e
responsabilidades de forma semelhante
ou previsível: tarefas protocolares,
obrigações constitucionais ou legais,
expectativas relativas a funções. Todas
provocam, em maior ou menor grau, as
mesmas atitudes, independentemente
de o líder ser homem ou mulher. É nas
circunstâncias novas ou inesperadas – ou
em período de crise – que o sexo deve
ser levado em consideração, quando o
que se espera do líder não está previsto.
Nesses casos, a personalidade e o sexo
podem revelar-se determinantes”.
Como esperado, a maior parte dessas
obstinadas mulheres assume funções
com muitas qualificações acadêmicas
e profissionais. Muitas delas foram
escritoras, advogadas, diplomatas ou
ministras, antes de ascenderem ao
cargo mais alto no governo. A maior
parte delas reconhece que, além dos
estudos, o modelo dos pais, seguido
desde a infância, lhes ensinou que uma
mulher seria capaz de obter resultados
semelhantes aos que são conseguidos
por um homem.
Michelle Bachelet, primeira
presidente do Chile, depois de ser
a primeira chilena a ocupar o cargo
de ministra da Defesa, é bastante
familiarizada com o que se refere ao
trabalho de pioneira. “Como jovem
mãe e pediatra, vivenciei a dificuldade
de conseguir o equilíbrio entre carreira
e vida familiar, tendo constatado
que a impossibilidade de ter alguém
para cuidar dos filhos impediu que as
mulheres tivessem acesso a emprego
remunerado”, declarava ela, na Libéria,
por ocasião da comemoração do Dia
Internacional da Mulher. “Foi também
para remover esses obstáculos que entrei
na política e que priorizei, nas despesas
públicas, o acolhimento da primeira
infância e a proteção social das famílias”.
Será que as mulheres têm uma
maneira peculiar de exercer a liderança,
que seja diferente da atitude assumida
pelos homens? “Em geral, acredita-se
que os homens apresentam mais
características de comando do que as
mulheres e que essas adotam estilo mais
colegial”, constata Michael Genovese,
autoridade em matéria de liderança,
tema ao qual já dedicou 28 livros. “As
exceções são muitas, mas há algo de
verdadeiro nesse ponto de vista. Os
homens fazem afirmações; as mulheres
discutem. Os homens falam para si;
as mulheres estabelecem o diálogo”,
sublinha ele. “Quanto aos assuntos que
concernem as mulheres em postos
de liderança, talvez seja motivo de
surpresa o fato de que atualmente elas
não defendem com mais vigor que os
homens as ‘questões femininas’. Nesse
aspecto, as diferenças ideológicas e
partidárias são melhores indicadores
do apoio a temas que tendem a ser
considerados especificamente femininos,
como educação, saúde etc.”.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 11
Preconceitos persistentes
Ao contrário de seus homólogos
masculinos, as mulheres que estão
atualmente à frente das democracias
devem lidar com um conjunto de
preconceitos arraigados. Além disso,
elas são julgadas mais severamente
do que os homens pela mídia e pelos
eleitores. “Não há qualquer obstáculo,”
apenas uma grande barreira de homens”,
insiste Laura Liswood. Em 1996, em
companhia de Vigdís Finnbogadóttir, ela
fundou o Conselho Mundial das Líderes,
no qual exerce a função de secretária-geral. “O mais urgente consiste em
preparar as mulheres, desde agora, para
ocupar cargos de tomada de decisões,
objetivo que não pode ser alcançado,
sem modelos de funções aptos para
incentivar outras mulheres nessa
direção”, frisa ela. O Conselho dispõe
do melhor equipamento possível para
realizar tal tarefa.
Em 1997, em companhia de outras
ativistas, ela lançou o Projeto Casa
Branca (White House Project) para
apoiar a eleição de uma mulher para a
presidência dos EUA. “Relatavam-me
sempre a mesma história”, afirma ela.
“As experiências eram as mesmas,
independentemente do país, da cultura
ou do percurso das líderes. Por toda
a parte, os jornalistas e seus leitores
davam-lhes o mesmo tratamento:
elas eram sabatinadas em profusão. A
imprensa considerava-as, antes de mais
nada, como mulheres, criticando, de
forma excessiva, inclusive sua aparência:
roupas, penteado, bolsas, xales... “.
“A idéia comumente aceita de
que elas não conseguem ser líderes
competentes é, sem dúvida, o maior
obstáculo para a entrada maciça de
mulheres na cena política”, opina
Esther Duflo, professora de Economia
do Desenvolvimento, do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts – MIT.
Fundadora, com outras colegas no MIT,
do Laboratório Abdul Latif Jameel de luta
contra a pobreza, ela empreendeu várias
pesquisas pioneiras na Índia. De acordo
com os resultados desses estudos, as
mulheres governantes são avaliadas
de forma mais negativa do que seus
homólogos masculinos, apesar de elas
tenderem a fornecer melhores serviços,
como o acesso à água potável, e de
serem muito menos corruptas.
Esther Duflo recorreu a comediantes
para identificar os preconceitos em
centenas de aldeias indianas, nas quais
um terço dos assentos nos Conselhos
de Aldeia são reservados às mulheres,
desde 1993 – cota recentemente elevada
para 50%. Ela fez que o mesmo discurso
político fosse lido ora por um homem,
ora por uma mulher. Os camponeses
que nunca tiveram uma líder tenderam
a julgar as oradoras incompetentes,
no entanto, os eleitores que já haviam
presenciado uma mulher no exercício
do poder não apresentaram esse viés.
“A experiência reduz o preconceito”,
conclui Esther Duflo, em uma entrevista
concedida à revista New Yorker. Prova de
que as políticas públicas podem quebrar
os estereótipos de bases eleitorais.
Brinda Karat, membro do comitê
central do Partido Comunista da Índia e
deputada na câmara alta do Parlamento
indiano, acredita que “as líderes tendem
a formular questões que despertam mais
o interesse das mulheres do que dos
homens”. No seu entender, a decisão
de seu país de reservar metade dos
assentos às mulheres nos Conselhos
Locais (panchayats) começa a dar
resultados: “o recorde de participação
das mulheres nas eleições locais, apesar
das barreiras sociais e culturais, abre
capítulo encorajador na história política
da Índia, que, a cada dia, se enriquece”.
No entanto, o número de deputadas na
Índia não é superior a 11% e, na maior
parte das assembleias dos estados
indianos, o percentual é ainda menor.
“Será que isso significa que as
mulheres são incapazes ou não
demonstram mérito suficiente?”,
questiona Brinda Karat, que, há 40 anos,
é ativista de movimentos em prol das
mulheres. “Essa seria uma conclusão
precipitada e inaceitável”. A verdade é
que as práticas discriminatórias de que
elas continuam sendo alvo, quando da
elaboração de listas eleitorais, as têm
mantido afastadas de cargos eletivos.
A luta travada pelas mulheres contra a
discriminação nas esferas econômica
e social deve estender-se também à
esfera política. Qualquer discriminação
baseada no sexo enfraquece a
democracia. O movimento em favor
da igualdade de representação é
também uma luta em favor dos direitos
democráticos e da cidadania”.
Acesso pela porta dos fundos
A marcha das mulheres em direção
à liderança política pode parecer,
portanto, lenta, mas – tanto para
Michael Genovese quanto para Laura
Liswood – é inexorável. “Nas últimas
décadas, mudanças têm ocorrido”,
observa Genovese. “Quando meu
livro sobre as líderes foi publicado,
12 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
em 1993, eu poderia citar o nome de
todas as mulheres chefes de governo.
Atualmente, esse número cresceu, e
elas estão mais presentes do nunca
na cúpula dos governos, mesmo que
tal constatação esteja muito longe de
corresponder ao peso demográfico das
mulheres na população”.
“O importante é o número
crescente de mulheres que ingressam
na política pela porta dos fundos no
âmbito local, assim como a grande
afluência de mulheres que jogam
na ‘segunda divisão’ com o pé já
na ‘primeira’. Existem várias causas
para essa evolução: o movimento
feminista, o fato de que muitos partidos
políticos – em particular na Europa –
estabeleceram cotas para as mulheres
em suas campanhas eleitorais, além
da existência de grupos de apoio que
oferecem recursos financeiros, como a
Emily’s List, nos EUA, e finalmente uma
verdadeira mudança de atitude das
sociedades em relação às mulheres na
política”.
“É certo que mudanças estão
ocorrendo”, constata Laura
Liswood. “Mas será que seu ritmo é
suficientemente rápido? Por toda a
parte, as mulheres estão matriculadas
no ensino superior, obtêm diplomas
e ingressam no mercado de trabalho.
Contudo, aparentemente é muito mais
difícil para elas ter acesso aos cargos
de direção. Esse é, portanto, o alvo a
ser visado”.
“Eu ainda hei de presenciar a eleição
de uma mulher para a presidência
[dos EUA]”, insiste Michael Genovese.
“Essa longa espera talvez se explique,
porque, além das questões já evocadas,
os grandes países e as superpotências,
envolvidos militarmente em vários
lugares do mundo, tendem a procurar
figuras masculinas que manifestem
certa insensibilidade, sugerindo sua
capacidade para recorrer à força, se
necessário. Esse clichê continua pesando
contra as mulheres, embora alguns
líderes mais obstinados do pós-guerra
fossem mulheres: por exemplo, Margaret
Thatcher ou Golda Meir. É muito difícil
acabar com os estereótipos.” „
Alguns extratos deste artigo foram retirados de:
Laura A. Liswood
Women World Leaders: Great Politicians Tell Their Stories,
The Council Press, 2007 (edição original, Women
World Leaders: Fifteen Great Politicians Tell Their Stories,
Pandora, Harper Collins Publishers,1995).
Michael A. Genovese (ed.)
Women As National Leaders, Sage Publications, 1993.
Inscrever o Quirguistão no
mapa-múndi
O principal problema enfrentado pelos Estados que
recentemente se tornaram independentes é o da
identidade, de acordo com Roza Otunbayeva, primeira
mulher a ocupar o cargo de presidente do Quirguistão.
A “dama de ferro” quirguiz já atravessou várias crises e
superou alguns obstáculos no decorrer da longa carreira,
que culminou na presidência do seu Estado, em julho de
2010. Seu país esteve sob risco de desmantelamento, sua
nação, ameaçada de fragmentação, mas ela conseguiu
enfrentar esses desafios.
© Janarbek Amankulov
ROZA OTUNBAYEVA responde às perguntas de Katerina Markelova
Em sua biografia, é recorrente a
utilização do qualificativo “primeiro”:
primeira mulher a ocupar o
Ministério das Relações Exteriores
do Quirguistão; primeira mulher a
assumir a embaixada de seu país nos
Estados Unidos e, em seguida, no Reino
Unido; e, finalmente, primeira mulher a
ascender à presidência do Quirguistão.
Qual é o segredo de tal sucesso?
Na época da Perestroika – período
em que eu era vice-presidente do
Conselho de Ministros da República do
Quirguistão –, fui convidada a exercer
funções no Comitê da União Soviética
para a UNESCO, em Moscou. Comecei
como secretária executiva, antes de
ser nomeada presidente desse Comitê.
Representar a União Soviética não foi
uma missão simples: esse país era, na
época, uma superpotência, e, como os
Estados Unidos não eram membros da
UNESCO, éramos o principal doador da
Organização. Foi nessa qualidade que
entrei para o gabinete do Ministério
das Relações Exteriores da União
Soviétiva, sendo, coincidentemente, a
primeira mulher a tomar assento nesse
organismo.
Com o desmantelamento da União
Soviética, Askar Akaïev (primeiro
presidente do Quirguistão, deposto
pela Revolução de março de 2005)
convidou-me para assumir as funções
de ministra das Relações Exteriores, mas,
como nessa época os Estados Unidos
eram muito importantes para nós,
assim como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional, dos quais
estávamos dependentes, fui designada
para ocupar a embaixada de meu país
em Washington, função que exerci
durante dois anos, antes de retornar
para o cargo de ministra das Relações
Exteriores, no Quirguistão.
Três anos mais tarde, em 1997,
o autoritarismo crescente de Askar
Akaïev começou a manifestar-se. Não
chegávamos mais a nos entender. Eu
passava criticando-o, e ele irritava-se.
Acabei pedindo demissão. Minha
intenção não era fazer oposição a ele: as
pessoas ainda depositavam confiança
ABRILJUNHO 2011 . 13
Como seus colaboradores e as pessoas
comuns veem o cargo do chefe de Estado
sendo ocupado por uma mulher?
Com o respeito que é tradicionalmente
dedicado às pessoas mais velhas, às
mulheres e às mães. Além disso, entre
meus colegas, sou provavelmente
aquela que possui mais experiência.
Afinal, mereci essa promoção. Lutei por
meus ideais, tendo feito numerosos
sacrifícios. Quanto ao povo quirguiz, ele
também sabe que não estou na política
por acaso, que não sou protegida de
ninguém.
Obviamente, há pessoas que
pensam que uma mulher não é capaz
de governar. Minha resposta para elas
é a seguinte: o ano de 2010 foi um dos
mais críticos da história do Quirguistão.
Pouco faltou para que o país entrasse em
colapso e a nação se dividisse. Entretanto
1. Kurmanbek Bakiev ascendeu ao poder pela
Revolução das Tulipas e dirigiu o país entre 2005
e 2010. Em abril de 2010, foi forçado a abandonar
o cargo, na sequência de uma revolta popular que
deixou 87 mortos.
conseguimos superar tudo isso. Saímos
do caos e transpomos a crise, evitando
o naufrágio e pisando em terra firme,
apesar do silêncio e da inércia do mundo
inteiro. Que tentem fazer o mesmo!
Atualmente, todos os meios de
comunicação social falam de países em
crise, como a Líbia. No Quirguistão, a
tempestade já passou. O nosso jovem
país ainda precisa superar numerosas
dificuldades, no entanto, o mais difícil
já passou.
Sua energia e seu zelo foram
recompensados, neste ano, pelo
Prêmio Mulheres de Coragem,
atribuído pelo Departamento de
Estado norte-americano. O que isso
significa para a Sra.?
Penso que esse prêmio foi atribuído
a meu país e não tanto a mim. Os
acontecimentos ocorridos nos países
árabes demostram que o mundo
está começando a entender que a
movimentação das pessoas, dos países
e, até mesmo, dos continentes em
direção à democracia é irrefreável. O
que temos visto comprova que meu
país também está fazendo parte da
evolução mundial. O que meu país
e meu povo têm tido a coragem de
demostrar é que eles estão motivados
pelo amor da liberdade, pela crença no
progresso e pela democracia. Limitei-me
simplesmente a participar desse
movimento.
O Quirguistão já fez muito para
instaurar a igualdade de gênero. Por
exemplo, existe, no Parlamento, uma
cota de 30% das cadeiras reservadas
às mulheres. Em sua opinião, o que
ainda deveria ser feito nesse sentido?
A igualdade de gênero é um combate
sem fim. Inscrever cotas na lei, como
fizemos na última legislatura, é
Primeira mulher a assumir o cargo de chefe de
Estado na Ásia Central, Roza Otunbayeva nasceu
em 1950. Formada em filosofia pela Universidade
Estadual de Moscou e professora no início de sua
vida profissional, ela ingressou precocemente
no Partido Comunista da União Soviética e teve
rápida ascensão política. Ela desempenhou um
papel importante nos dois movimentos que
derrubaram os regimes autoritários no Quirguistão
– em março de 2005 e em abril de 2010. Em junho
de 2010, por ocasião de plebiscito para nova
Constituição, a população aprovou a candidatura
única de Roza Otunbayeva para ascender à
presidência de seu país.
14 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
© UNESCO/Danica Bijeljac
nele e queriam que ele completasse as
reformas. Quanto a mim, tornei-me a
primeira pessoa a ocupar, como titular,
a Embaixada do Quirguistão no Reino
Unido. Esse também foi um esforço
pioneiro importante, junto com os
membros do Conselho de Segurança
da ONU. Tínhamos, então, a missão de
inscrever o Quirguistão no mapa-múndi.
Em 2005, graças à união de
vários partidos da oposição, fizemos
a Revolução das Tulipas. Contudo,
Kurmanbek Bakiev1 acabou usurpando
nossa revolução: apoderou-se de tudo,
instaurando uma ditadura familiar.
Durante os cinco anos seguintes,
lutamos por nossos ideais. Eu era a líder
da oposição no Parlamento. Em 2010,
finalmente vencemos!
insuficiente. Na vida cotidiana, essas leis
nem sempre são aplicadas. Atualmente,
o Tribunal de Contas, para o qual
também votamos a cota de 30%, prevê
que três pessoas sejam nomeadas
pelo presidente, três pela oposição e
três pela coligação. Como a oposição
e a coligação indicam unicamente
homens, fico com a responsabilidade de
propor mulheres. Esse procedimento é
absolutamente cínico!
Em nosso país, existem cargos
importantes ocupados por mulheres.
Além de mim, que sou o resultado de
um consenso das forças políticas, o
Banco Nacional é presidido por uma
mulher, assim como o Supremo Tribunal
e a Academia das Ciências. No governo,
em compensação, temos apenas
uma mulher, o que é simplesmente
inaceitável. No plano econômico,
nenhuma mulher faz parte dos
Conselhos de Administração de nossas
grandes empresas.
Para as mulheres quirguizes, este
ano é especial. Primeiramente, porque
comemoramos o bicentenário do
nascimento de Kurmanjan Datka. Essa
mulher, que governava o Alai, no sul
do país, despendeu enormes esforços
para unificar essa região e anexá-la à
Rússia. E era uma mulher progressista,
dotada de vontade e energia notáveis.
Ela desempenha um papel simbólico
na formação das mulheres e de toda
a nação. Em segundo lugar, este ano
é também especial, porque minha
presidência chega ao fim. Além disso,
ele marca, provavelmente, o auge dos
debates sobre o papel a ser exercido
pelas mulheres no nosso país.
Em sua opinião, qual seria a principal
prioridade para seu país?
É difícil responder a essa pergunta
de forma categórica. Eu diria, no
entanto, que a questão mais delicada
a ser enfrentada pelos Estados
que recentemente se tornaram
independentes é a da identidade.
Trata-se de um problema amplo,
complexo e múltiplo. Todos nós,
todos os quase duzentos membros da
ONU, somos arrastados pela mesma
corrente, chamada globalização. A
questão da identidade é fonte de
perturbação para toda nação, para
cada ser pensante. Esse é um sério
obstáculo ao desenvolvimento. Estamos
todos sofrendo com essa conjuntura e
devemos tentar superá-la. „
I
Cena de uma rua em Porto Príncipe, capital
do Haiti, um mês depois do terremoto de 12 de
janeiro de 2010. Mãe e suas filhas “preparadas com
capricho, lindas e orgulhosas”, como destacou
Michaëlle Jean.
© UN Photo/Pasqual Gorriz
número de pessoas para me apoiar, de
recursos e de organizações para dizer
coletivamente: “Não! Em um país como
o Canadá, isso é inaceitável!”. Eis por que
uma mulher negra, além disso militante
feminista e ex-refugiada política,
conseguiu tornar-se governadora-geral
do Canadá.
Uma questão
de compromisso
Assegurar que se tenha sempre presente a situação
de urgência e fragilidade do Haiti é a primeira missão
de Michaëlle Jean, ex-governadora-geral do Canadá,
designada recentemente como enviada especial da
UNESCO para o Haiti. Percurso de uma mulher excepcional,
que herdou a coragem, a perseverança, o pragmatismo e o
senso de compromisso das mulheres haitianas.
MICHAËLLE JEAN responde às perguntas de Katerina Markelova
Como uma imigrante haitiana se torna
governadora-geral do Canadá?
E como bônus, a responsabilidade
de chefe de Estado, além de chefe
de Estado-Maior das Forças Armadas
(risos)! Creio que se trata, antes de mais
nada, de uma questão de compromisso.
Aprendi uma coisa preciosa no Haiti:
não ficar indiferente! Em um país onde
a indiferença provoca grandes danos,
meus pais incentivaram-me a observar, a
formar um ponto de vista e a agir. Herdei
minha coragem, minha perseverança,
meu pragmatismo e meu senso de
compromisso das mulheres haitianas.
Ainda criança, cheguei ao Canadá
e compreendi rapidamente que
integração significava participação.
Muito cedo comecei a me envolver
nas atividades do movimento das
mulheres no Quebec e, em particular, no
estabelecimento de uma rede de abrigos
para mulheres vítimas de violência e
seus filhos. Isso foi determinante para
minha cidadania ativa e responsável.
Essa experiência levou-me ao
jornalismo: 18 anos na televisão pública!
Frequentemente, os jornalistas de
televisão tornam-se apresentadores
de programas de variedades, quando
dispõem de físico diferente do da
maioria. No meu caso, fui nomeada
imediatamente para um departamento
de notícias: de uma sala de redação, até
chefe do setor e âncora de programa,
com presença em frente às câmeras.
O Canadá é a encarnação da
diversidade. No nosso país, a diversidade
é real, enraizada no cotidiano. Em vez de
uma ameaça, ela é considerada como
uma riqueza, apesar de todos os
desafios que isso representa. Em
momentos em que fui vítima de
discriminação ou de racismo – porque
nenhuma sociedade está imune de tais
deslizes –, eu sempre encontrei grande
Quais são suas prioridades, enquanto
enviada especial da UNESCO para o
Haiti?
Acima de tudo, ficar vigilante para que
as pessoas tenham sempre presente a
situação de urgência e fragilidade desse
país. O Haiti era prioridade, durante
todas as missões que efetuei em todo
o mundo, na minha qualidade de
governadora-geral. Tanto no Ocidente
quanto na América Latina ou na África,
sempre percebi da parte de meus
interlocutores o desejo de participar
de um pacto de solidariedade em
favor do Haiti. Em razão disso, tenho
intenção de retornar a essas terras, já
trabalhadas, para obter apoio. O Haiti
não poderá sair sozinho dessa situação.
Trata-se de uma tragédia, tenho pleno
conhecimento disso! Ao mesmo tempo,
o Haiti também deve assumir a sua parte
da responsabilidade.
Creio que o mundo inteiro está
observando o caso haitiano. Como será a
resposta da comunidade internacional?
Os haitianos e, em particular, o Estado
haitiano, vão agir de forma responsável?
Impõe-se a obrigação de sermos bem-sucedidos e enviarmos uma mensagem
de esperança para toda a humanidade.
O Haiti é um país de todas as urgências,
de todos os tipos de misérias, mas é
um país onde é possível agir, com uma
condição: incluir os cidadãos, sem
distinção entre homens e mulheres.
Tenho o costume de dizer que, no
Haiti, o modo de vida e de sobrevivência
se baseia na esperança. Esse país sempre
consegue superar uma catástrofe após
a outra. Por meio da Revolução Haitiana,
o país foi capaz de triunfar sobre a
barbárie e abolir a escravatura... Com
o terremoto, a esperança sofreu um
golpe violento.
Evoca-se, com frequência,
a capacidade de resiliência dos
haitianos. Eu gostaria que eles fossem
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 15
reconhecidos por sua capacidade para
criar, pensar, exprimir-se. Isso porque,
se nos limitarmos à sua capacidade de
resiliência, acabaremos acreditando
que o Haiti ainda pode esperar, uma vez
que seu povo sabe suportar as piores
situações possíveis.
Em sua opinião, qual é o papel das
mulheres na refundação do Haiti?
Para minha visita ao Haiti, em março de
2010, escolhi deliberadamente o dia 8 de
março, Dia Internacional da Mulher, para
chegar ao país. As mulheres, no Haiti,
tinham necessidade de ouvir alguém
dizer que, sem elas, a reconstrução
será um fracasso. Foi absolutamente
espantoso ver que, nessa imensa
hecatombe em que era praticamente
impossível circular, 5.000 mulheres se
deslocaram para comunicar-me sua
vontade de ver a vida triunfar sobre
essa catástrofe. O movimento das
mulheres, no Haiti, está extremamente
bem organizado. Mulheres importantes
que haviam participado da construção
desse movimento em todo o país
perderam suas vidas, inclusive grandes
amigas minhas. Todas aquelas que
sobreviveram, estavam de luto, mas
animadas, em seu interior, por uma
energia sem limites, determinadas a
assegurar que, ao final, a vida vença!
E qual é o lugar ocupado pela
diáspora?
A diáspora teve de superar várias
dificuldades: não é o primeiro problema
enfrentado pelo Haiti. Com a saída dos
Duvalier1, em 1986, todas as esperanças
renasceram. Vimos emigrantes vender
todos os seus bens e voltar para o país.
Homens, mulheres e jovens quiseram
contribuir para o renascimento do
Haiti, assim como para a construção
de um Estado democrático e de uma
nova governança. Nessa época, já se
falava de refundação, de reconstrução
e de novo impulso. Contudo, o terreno
estava minado. A sucessão de golpes
de Estado e a repressão imposta pelas
Forças Armadas acabaram asfixiando
as esperanças. Após curto período de
euforia, os haitianos têm vivido uma
prolongada experiência dolorosa.
Em 2008, por ocasião dos furacões –
1. François Duvalier, “Papa Doc”, e seu filho, Jean-Claude Duvalier, “Baby Doc”, usurparam o poder
no Haiti, entre 1957 e 1986, período marcado pela
corrupção, pela supressão das liberdades civis e pela
institucionalização do terror.
quando cerca de mil pessoas perderam a
vida –, pressenti um sinal de mau agouro:
não houve reação por parte da diáspora.
Ah, como foi terrível ter constatado isso!
Na verdade, as pessoas que vivem no
exterior tinham ficado decepcionadas
com o comportamento dos compatriotas
no decorrer dos anos precedentes: a
ajuda enviada por elas deteriorava-se
em contêineres ou, então, beneficiava
apenas funcionários corruptos.
O terremoto de 2010 atingiu todos
os corações e todas as mentes! A
diáspora reanimou-se e tem contribuído.
Neste exato momento em que estou
falando, as pessoas estão em plena
movimentação para participar nesta
etapa da evolução do país, que pode ser
determinante. Como já foi dito, é preciso
fazer dessa catástrofe uma oportunidade
para agir!
Durante a sua estada no Haiti, em
março de 2010, a Sra. sublinhou
a importância da educação. Isso
aconteceu no âmbito da mesaredonda, em Porto Príncipe, presidida
pela Sra., em companhia da diretorageral da UNESCO, Irina Bokova. Quais
serão suas ações nessa área?
Durante essa visita, o mais importante,
para mim, foi identificar as forças em
ação. Essa é talvez a minha natureza
de haitiana que me leva a pensar
que, diante da adversidade, se deve
reagir e, para reagir, deve-se apostar
nas forças disponíveis. O Haiti é um
país onde se pode fazer muito em
termos de educação. Por quê? Porque,
de maneira intrínseca, na cultura
haitiana, no modo de ser do haitiano,
na sua história, a educação foi sempre
Michaëlle Jean, nascida em 1957, em
Porto Príncipe (Haiti), exilou-se com a
família no Canadá, em 1968, fugindo do
regime ditatorial de François Duvalier.
Depois de longa carreira no jornalismo
(rede francesa da Radio-Canada e rede
inglesa da CBC Newsworld), além de
percurso militante na defesa dos direitos
das mulheres, Michaëlle Jean assumiu a
função de governadora-geral do Canadá
(de setembro de 2005 a setembro de
2010). Em 8 de novembro de 2010, ela
foi designada como enviada especial da
UNESCO para o Haiti. Com o marido, o
cineasta Jean-Daniel Lafond, Michaëlle
Jean preside uma fundação com seu
nome, dedicada à juventude e às artes.
16 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
sinônimo de emancipação e de acesso
à liberdade. Nas plantações, os escravos
permaneciam analfabetos, mas havia
também outra categoria de pessoas: as
crianças nascidas das relações entre os
senhores e suas escravas. Essas crianças
não eram enviadas para as plantações,
o que permitiu que aprendessem a ler
e a escrever. Os escravos domésticos,
como eram chamados, tinham acesso
ao conhecimento. Chegava-se, inclusive,
a exibir suas proezas. E os escravos das
plantações assistiam a tudo isso.
Hoje, ao ver os alunos haitianos,
é impossível imaginar as terríveis
condições em que eles vivem! No
entanto, quando vão à escola, essas
crianças são sempre preparadas com
todo o capricho, elas são lindas e
manifestam um sentimento de grande
satisfação, e os pais sentem orgulho
dos filhos.
Todas as famílias, até mesmo as
mais pobres, estão dispostas a fazer
tudo o que estiver a seu alcance para
enviar os filhos à escola! Portanto, as
condições são muito favoráveis. Se
houver investimento em educação, se o
Haiti for ajudado a compor um sistema
de educação pública de qualidade, tais
projetos serão imediatamente acolhidos
como algo importante e útil pela
população.
Atualmente, há vários projetos
educacionais dispersos, faltando ainda
coordenação. Penso que a UNESCO
dispõe de todas as competências para
desempenhar um papel de liderança
nessa área e para ajudar o Estado
haitiano a criar um quadro normativo
para as escolas. „
Michaëlle Jean, enviada especial da UNESCO
para o Haiti.
© Stg Serge Gouin, Rideau Hall
Crime sem
castigo
Na Mauritânia, a escravidão tradicional foi substituída
pelo trabalho doméstico forçado, lastima Aminetou
Mint El Moctar, que está preocupada particularmente
com o destino de jovens mulheres.
© UN Photo/Jean Pierre Laffont
AMINETOU MINT EL MOCTAR
responde às perguntas de
Laura Martel, jornalista da Rádio
França Internacional (RFI)
Na Mauritânia, a problemática da escravatura está intimamente relacionada com as mulheres,
porque tradicionalmente a condição de escrava era hereditária e transmitida pela mãe. Desde
2007, a legislação mauritana considera a escravidão como crime, mas, na prática, ela continua
sem ser condenada, sob formas mais ou menos disfarçadas.
Com 55 anos, a Sra. já passou mais
de quatro décadas combatendo
todas as formas de discriminação,
em particular, contra as mulheres. De
onde vem seu espírito de militante?
Já nasci rebelde! O contexto social
e meu ambiente familiar apenas
acentuaram essa característica. Com
11 anos, dei meus primeiros passos
como militante de esquerda. Eu morava
no sudeste de Nouakchott, capital
da Mauritânia, em um reduto do
Movimento Nacional Democrático. Esse
movimento pró-marxista reivindicava
emancipação socioeconômica, sem
deixar de contestar o poder do
presidente Ould Daddah e de seu
partido único. Acabei adotando essas
idéias, com as quais tive contato
na rua, entre amigos ou na escola.
Eu lia muito: sobre a resistência das
mulheres vietnamitas, sobre a revolução
bolchevique e, em particular, sobre a
Comuna. A tal ponto que me deram o
apelido de “A Comuna de Paris”. Esse
ideal de libertação dos povos e de
igualdade contrastava radicalmente
com as ideias retrógradas e com o
espírito feudal que prevalecia na minha
família. Nós éramos ricos, tínhamos
escravos, meu pai reinava como um
patriarca dotado de poder absoluto.
Como eu fugia de casa para participar
de passeatas e distribuir folhetos, ele
me dava surras e me prendia com
correntes. Tudo isso fez com que, desde
os 12 anos, eu fosse presa em várias
ocasiões. Em razão de minha idade, eu
era logo solta, mas foi em minha casa
onde sofri os piores maus-tratos. Em
decorrência dessa experiência, meu
compromisso político antes espontâneo
se transformou em convicções
inabaláveis. Desde então, tenho lutado
incansavelmente pela igualdade entre
os homens e as mulheres, pelo fim da
escravidão e pela defesa dos direitos
humanos.
Seu compromisso é muito antigo, mas
só recentemente é que a Sra. criou a
Associação das Mulheres Chefes de
Família (Association des femmes
chefs de famille - AFCF). O que a levou
a tomar essa iniciativa?
Durante muitos anos, fiz parte de
várias associações, como o Comitê de
Solidariedade para Viúvas (Comité de
solidarité aux veuves) ou SOS Escravos
(SOS Esclaves). Em 1999, assisti ao
julgamento de uma mulher. Ela
lutava para que os dois filhos fossem
considerados herdeiros do falecido
pai, uma vez que fora casada não
formalmente com um empresário.
O tribunal recusou-se a reconhecer tal
paternidade. Ao ouvir o veredicto, ela
foi literalmente fulminada e morreu
a caminho do hospital. Sem marido,
portanto, sem dinheiro e sem instrução;
logo, sem possibilidade de encontrar
trabalho, ela estava consciente de que,
em companhia dos filhos, teria de pedir
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 17
esmola para sobreviver. Ela morreu por
não ter sido capaz de defender seus
direitos. Nesse instante, compreendi
que já era tempo de lutar em favor
dessas mulheres abandonadas por todo
o mundo, e, imediatamente, fundei
a Associação. Contudo, por razões
administrativas, nossas atividades
começaram realmente apenas em
2005. Atualmente, a AFCF tem mais
de 10.000 sócios e garante emprego
para 62 pessoas. Nossa equipe e nossos
custos operacionais são pagos pelas
cotizações. Além disso, nossos projetos
são financiados com o apoio recebido
de várias entidades.
A sociedade mauritana é multicultural
com dois componentes principais: os
árabes-berberes e os negros africanos.
Será que as mulheres ocupam a mesma
posição nessas duas comunidades?
No cerne das duas comunidades, a
mulher exerce tradicionalmente a
mesma função: ela é “feita para o
casamento e para satisfazer o desejo
do homem”, mas tal entendimento
traduz-se de forma diferente na vida
cotidiana. O tipo de obrigações é
variável. Para as negras africanas, uma
boa esposa ocupa-se essencialmente
das tarefas domésticas, da educação
dos filhos e da satisfação do marido.
Se a mulher ganha dinheiro, ela deve
entregá-lo, em geral, ao “dono da
casa”. Por sua vez, as mulheres árabe-berberes escapam, na maior parte
das vezes, às tarefas domésticas. Não
apenas porque suas famílias são, muitas
vezes, mais abastadas, mas também
porque a mulher deve ser “preservada”
para que possa ser casada da melhor
maneira possível. Mimá-la e forçá-la a
alimentar-se constitui investimento. A
honra da família apoia-se, em particular,
no fato de que as moças se casam
precocemente: “ela casou-se cedo” é
um adágio utilizado com frequência
pelos griôs como elogio. A tradição
nômade outorga mais liberdades às
mulheres árabe-berberes que a suas
irmãs negras africanas, no que se
refere às respectivas atividades. Além
disso, as árabes-berberes mauritanas
têm uma concepção tradicional do
divórcio bem particular: não só ele é
aceito, mas pode constituir um valor
agregado para a mulher! A mulher que
se divorciou várias vezes é altamente
cobiçada. Eu mesma tenho três filhos
de pais diferentes e já casei cinco, seis
ou sete vezes... mas agora acabou!
(risos) O divórcio é, pelo contrário, mal
visto entre os negros africanos, que
tradicionalmente praticam a poligamia
com maior frequência do que ocorre
com os árabes-berberes, embora a
atual tendência obscurantista esteja
implicando ressurgimento dessa prática
entre estes. Tudo isso não passa, é claro,
de generalidades, mas existem muitas
exceções.
Alimentação forçada, casamento
precoce, mutilação genital feminina,
escravidão, trabalho doméstico…
a lista de violações dos direitos
das mulheres é longa. Qual é a sua
prioridade?
O mais urgente consiste em estabelecer
igualdade entre homens e mulheres no
plano legal. No decorrer dos séculos,
a jurisprudência tem feito uso de
imperativos religiosos com costumes
tradicionais para criar instrumentos
discriminatórios. Na Mauritânia, a
mulher tem, ao longo de sua vida, um
tutor legal, que pode ser o pai, o marido
ou, até mesmo, o filho. Portanto, ela
não tem nenhum direito em relação
à sua própria pessoa. Consideremos
o exemplo do casamento. Segundo o
Código do Estatuto Pessoal, a idade
legal do casamento é de 18 anos, mas,
havendo acordo do tutor, ele pode ser
celebrado mais cedo. Esse dispositivo
legaliza o casamento precoce e retira
o poder de decisão das mulheres. Foi
assim que, certo dia, ao voltar para casa
depois da escola, me dei conta de que
estava casada com um amigo do meu
pai. Eu tinha 13 anos.
Além disso, os filhos homens
têm direito a dois terços da herança,
e o pedido de divórcio só pode ser
apresentado pelo homem. A Mauritânia
assinou a Convenção sobre a Eliminação
de todas as Formas de Discriminação
18 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
contra a Mulher, mas com duas reservas,
precisamente em relação ao divórcio
e à herança. Atualmente, a AFCF faz
campanha para que tais reservas sejam
retiradas. Por meio da inserção da
igualdade entre homens e mulheres
na lei, teremos à nossa disposição os
meios necessários para combater as
discriminações de fato, mesmo que se
trate apenas de uma primeira etapa, já
que um grande número de leis não são
aplicadas.
Esse é o caso, em particular, da lei de
2007 que criminaliza a escravidão.
A Sra. sublinha frequentemente que
nenhuma condenação foi pronunciada
desde a adoção desse texto: isso
significa que deixou de haver escravos
na Mauritânia?
É algo dificilmente quantificável, por
se tratar de assunto tabu. No entanto,
sabemos que persiste a escravidão,
porque temos acolhido vítimas nessa
situação regularmente. A AFCF tem
denunciado, com outras associações
e em várias oportunidades, casos de
escravidão às autoridades, mas, até
agora, nenhum processo resultou em
condenação. Os “senhores”, que, muitas
vezes, ocupam posições elevadas na
hierarquia social, são protegidos.
A problemática da escravidão está
intimamente relacionada com as
mulheres, já que, segundo a tradição,
ela é hereditária e transmitida pela mãe.
É, portanto, mais interessante para o
“senhor” dispor de mulheres escravas,
L Durante séculos, imperativos religiosos e
costumes tradicionais criaram instrumentos
discriminatórios no que se refere às mulheres na
Mauritânia, segundo Aminetou Mint El Moctar.
© Pepa Martin, Espagne
Em sua opinião, a Mauritânia é uma
plataforma para o tráfico de crianças e
adolescentes?
Esse tráfico existe há muito tempo,
mas ganhou maior amplitude nos
últimos anos. Os traficantes vão à
procura de crianças e adolescentes
nas famílias pobres das zonas rurais,
prometendo aos pais que as filhas terão
um emprego, ou uma peregrinação
religiosa, um casamento de prestígio,
uma quantia em dinheiro... As meninas
passam por Nouakchott, antes de
serem levadas para o Golfo, onde são
vendidas e acabam casando. Se forem
negras, elas são despigmentadas. Ao
atingirem a idade de 18, 20 anos, os
maridos jogam-nas na rua, porque já
não são suficientemente jovens para
seu gosto, e, na maior parte das vezes,
elas ingressam na prostituição. Mesmo
que não tenham atingido a maioridade,
eventualmente podem ser expulsas. Há
três anos, no aeroporto, encontrei 14
meninas com cerca de 15 anos de idade
que tinham vivenciado esse tormento
e estavam sem destino. A rede de
prostituição estende-se também para
a Europa. Atualmente, a AFCF procura
angariar fundos para financiar uma
pesquisa que visa a avaliar a amplitude
desse fenômeno.
Existem áreas em que há uma evolução
positiva?
A mutilação genital feminina! Embora
ela esteja desaparecendo em ritmo
bastante lento, essa prática começa
a ser abandonada coletivamente,
graças às diversas convenções e
às contribuições de entidades que
têm despendido muito dinheiro em
campanhas de informação, além
do comprometimento de algumas
personalidades religiosas. Em 2010,
foi assinada uma fatwa (lei religiosa)
contra a mutilação genital feminina.
A polícia e a justiça estão igualmente
sensibilizadas, porém, mais uma
vez, não há praticamente nenhuma
condenação.
A alimentação forçada está em
declínio também, em particular pela
mudança progressiva nos critérios de
beleza. No entanto, mais de 20% das
mauritanas ainda comprometem sua
saúde, na tentativa de engordar, ainda
mais que atualmente os métodos
tradicionais estão sendo substituídos
por suplementos alimentares, muitas
vezes perigosos para o organismo.
Finalmente, em termos de
representação política, alcançamos
progressos consideráveis entre 2005
e 2007, inclusive com a instauração
de cota de 20% de mulheres nas
instituições eletivas. Atualmente,
temos uma ministra das Relações
Exteriores, mas o número de cargos
de responsabilidade ocupados
por mulheres (secretarias de
Estado, prefeituras, governadorias)
está diminuindo desde 2008.
Simbolicamente, o Ministério da
Promoção Feminina voltou a ser
incluído no Ministério dos Assuntos
Sociais. Além disso, a Mauritânia, à
semelhança de outros países, enfrenta
pressões por parte de uma corrente
obscurantista que pretende reduzir as
mulheres à função de donas de casa.
Na sua opinião, o que deve ser feito
pelas mulheres para defenderem
melhor seus direitos?
Tradicionalmente, as mulheres
não recebem educação religiosa
aprofundada; elas aprendem “apenas
o que é necessário para rezar”. Ora,
o fato de conhecer melhor a religião
deveria permitir que elas se livrassem
de certas práticas. Por exemplo, eles
ficariam sabendo que a mutilação
genital feminina ou a poligamia não são
impostas pelo Alcorão. Penso também
que as religiões, incluindo o Islã, devem
adaptar-se ao mundo contemporâneo:
devemos solicitar aos eruditos uma
interpretação “moderna” dos textos
sagrados.
Na Mauritânia, as mulheres são
a maioria: elas representam 52% da
população. Existe, por conseguinte,
potencial para que uma elite feminina
se desenvolva, sendo capaz de
superar divisões ideológicas e raciais.
Em colaboração com a ONG norteamericana Parceria de Aprendizagem
das Mulheres (Women’s Learning
Partnership), a AFCF está formando
anualmente 100 mulheres para que
desempenhem funções de liderança.
A política é um meio para atingir
nossos fins, mas convém reconhecer
que não é necessariamente o melhor,
porque muitas mulheres, uma vez que
assumem seus cargos, costumam ceder
ao oportunismo individual. Nesse caso,
impõe-se uma tomada de consciência
coletiva, que está começando a se
formar.
Por que razão a Sra. não ingressou na
vida política?
Porque prefiro o trabalho de campo,
junto das vítimas. Ao mobilizar as
mulheres de rua, conseguiremos
ganhar mais credibilidade. Sei que se
trata de um trabalho exaustivo, mas
sinto claramente que estamos em
um momento de virada: os esforços
da Associação foram recompensados
pela atribuição do Prêmio dos Direitos
Humanos da República Francesa, em
2007, e do Prêmio Heróis em Luta
contra a Escravidão Moderna (Heroes
Acting To End Modern-Day Slavery
Award), concedido pelo Departamento
de Estado norte-americano, em 2010.
Este reconhecimento encoraja um
número cada vez maior de organismos
internacionais a financiar nossos
projetos. „
A jurista mauritana Aminetou Mint
El Moctar fundou a Associação
das Mulheres Chefes de Família
(Association des femmes chefs de famille
– ACFC).
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 19
© Cridem.org
uma vez que ele se apropria da prole
delas. No entanto, essa expressão
tradicional da escravidão – em que
as pessoas, de geração em geração,
são propriedade do “senhor” – está
em declínio. Infelizmente, ela está
sendo substituída por uma forma de
escravidão mais “moderna”: o trabalho
doméstico. Famílias pobres levam
as filhas para casas de famílias ricas,
recebendo em troca, muitas vezes,
apenas alojamento e comida. Essas
meninas, em geral muito jovens, não
têm qualquer instrução e, não raro, são
vítimas de violência. Em Nouakchott,
é possível encontrar inúmeros casos
desse tipo. Essas meninas vêm
principalmente das zonas rurais
do país, mas também dos Estados
vizinhos, como Senegal, Mali e Gâmbia.
Em cooperação com a associação
de solidariedade internacional Terra
dos Homens, lançamos, em 2009, um
programa que nos permitiu ajudar 2.200
crianças e adolescentes.
Mamãe Maggy
e seus 20.000 filhos
Encontro com Maggy Barankitse
© UNESCO/Danica Bijeljac
JASMINA ŠOPOVA
Seu país ainda estava em guerra quando ela começou a
construir sua casa. Para começar, usou um carrinho de mão.
Transportou e enterrou os restos mortais de 72 pessoas
assassinadas na sua frente, a maior parte das quais haviam
procurado refúgio nas instalações da diocese em que ela
trabalhava. Em seguida, ela foi aos campos de batalha para
procurar por crianças sobreviventes. “Algumas estavam
cegas, enquanto outras tinham perdido os braços”. Ela
forneceu-lhes curativos e alimentação... mas era necessário
também uma casa para abrigá-las.
20 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
Maggy Barankitse tinha 37 anos de
idade quando a guerra civil eclodiu em
Burundi, um dos menores e mais pobres
países do continente africano. De 1993
até o início da década de 2000, o
conflito entre tutsis e hutus ceifou mais
de 200.000 vidas, mas acabou poupando
a sua. Ela então dedicou-se a salvar a vida
de milhares de crianças em sua região
natal de Ruyigi, perto da fronteira com
a Tanzânia, e também em todo o país.
“Atualmente, eu sou a mãe mais feliz do
mundo - tenho 20.000 filhos”, declara
com um sorriso radiante nos lábios.
“Tentamos instruir as crianças de uma
geração fratricida para criar uma nova
geração que seja capaz de respeitar o
semelhante. Não fazemos distinção entre
filhos de vítimas e filhos de criminosos,
elas todas são apenas crianças que
precisam ser amadas e reconfortadas.
Atualmente, 75% dos meus colegas
– médicos, psicólogos, economistas,
enfermeiros, professores – fazem parte
das crianças tutsis e hutus que cresceram
juntas na Casa Shalom.”
Não se deve imaginar essa casa
com quatro paredes cobertas com um
telhado. Há 17 anos, “mamãe Maggy”
utilizou diferentes espaços que lhe foram
emprestados ou cedidos para abrigar
os órfãos da guerra, antes de criar três
grandes orfanatos. “Mas eu me dei
conta”, confessa ela, “de que as crianças
que crescem nesses lugares perdem
o senso de responsabilidade. Acabei
fechando os orfanatos para montar uma
série de estabelecimentos vinculados à
nossa associação. Pouco a pouco, criei,
por todo o país, centros para abrigar
pequenos grupos de irmãos – hoje
contamos com três centros. Consegui
também que algumas crianças fossem
É difícil exprimir em números exatos
o alcance da ação da Casa Shalom.
“Como trabalhamos em todo o território
nacional, eu não posso dizer quantas
pessoas receberam nosso apoio. Nossas
escolas acolhem todas as crianças dos
municípios onde foram construídas
por nossa iniciativa. Do mesmo modo,
as bibliotecas e as salas de cinema
instaladas por nós são acessíveis a todo
o mundo.”
Atualmente, a associação garante
emprego a 220 assalariados, sem contar
os voluntários. Além disso, ela recebe
o apoio de mais de 40 instituições de
caridade, de organizações diversas e de
governos. De fato, Maggy Barankitse
é muito convincente na hora de pedir
ajuda, mas talvez por causa disso ela não
Relatório Mundial de Monitoramento
sobre a Educação para Todos 2011,
dedicado ao impacto dos conflitos
armados sobre a educação. “Essa
menina, vítima de estupro na República
Democrática do Congo, de quem se
falou hoje na conferência, é que deveria
ter sido convidada no meu lugar. É ela
que deve falar de si mesma. Temos que
abrir as portas das salas de reuniões
para essas pessoas. Elas têm voz e não
necessitam de porta-vozes! Mesmo
que não falem inglês nem francês, elas
devem ter direito à palavra.”
E para concluir o capítulo das
críticas: “eu gostaria que houvesse um
questionamento quanto à ação das
Agências das Nações Unidas. Que elas
deixassem de organizar tantas reuniões
© Maison Shalom, Ruyigi
recebidas por famílias. Eu comparo a
Casa Shalom com um barco, cujo capitão
é Deus.”
Cristã fervorosa, Maggy Barankitse
tem uma única religião: o amor. “Os
homens e as mulheres têm amor
suficiente em seus corações para
dizer ‘não’ ao destino e ‘não’ ao ódio
fratricida”, afirma essa mulher que
organizou uma “votação democrática”
com as crianças quando chegou o
momento de batizar sua associação.
“Foram as crianças que deram à sua
casa o nome de ‘Shalom’. Trata-se de
uma palavra de origem hebraica, mas
seu alcance é universal, porque significa
‘paz’. As crianças muçulmanas também
levantaram a mão na hora de votar.”
No decorrer dos anos, ela também
construiu para seus filhos um centro
de ensino de profissões, onde eles
podem aprender técnicas de carpintaria,
agricultura, pecuária, costura e trabalhos
hidráulicos. No entanto, seu maior
motivo de orgulho é o hospital que,
por sua iniciativa, foi construído em
Ruyigi, incluindo um centro de proteção
materna e infantil: “consegui colocar
em prática um grande hospital, de
modo a prevenir a ocorrência de alguns
incidentes. Eu não suportava mais
acolher bebês que haviam perdido a
mãe no momento do parto – ninguém
no mundo pode substituir a ternura de
uma mãe; nenhuma instituição, nenhum
centro é capaz de substituir uma mãe.
Construí uma bela maternidade e
montei uma escola de enfermagem.
Bati em todas as portas para conseguir
uma ambulância. Em seguida, visitei as
mães em suas aldeias para dizer-lhes
que, agora, elas têm a possibilidade de
recorrer a nossos serviços sempre que
tiverem necessidade de ajuda.”
Para as mulheres soropositivas e para
as doentes de AIDS, Maggy Barankitse
abriu um centro especial no qual, além
de serem acolhidas, alimentadas e
tratadas com medicamentos antivirais,
elas recebem ajuda psicológica e
orientações para o seu futuro. “Elas
aprendem a se organizar, a criar
associações e pequenas cooperativas.
Veja isto aqui”, diz ao chamar nossa
atenção para o belo vestido colorido
que ela usa durante o nosso encontro,
na sede da UNESCO, “foram elas que
confeccionaram! O essencial não
consiste em dar assistência a essas
mulheres, mas em ajudá-las a se
tornarem autossuficientes”.
K Maggy Barankitse tem muito orgulho deste hospital que ajudou a construir em uma zona rural da região de
Ruyigi, no Burundi.
evita criticar abertamente determinados
comportamentos. Por exemplo, mesmo
que o UNICEF ajude a Casa Shalom, ela
indigna-se com as centenas de escolas
feitas de plástico espalhadas pelo país
que ostentam a logomarca do UNICEF.
“Ao invés de nos enviar o plástico
fabricado em empresas do Ocidente e
nocivo para a saúde das crianças, eu me
pergunto por que o Fundo não nos ajuda
a comprar palha – um material muito
mais adaptado ao nosso ambiente e ao
nosso clima –, para que nós mesmos
possamos construir nossas escolas e, ao
mesmo tempo, receber um salário que
nos permita escolarizar nossos filhos?”
Esse tom enérgico também é
utilizado em relação à UNESCO.
Com efeito, ela participou, na sede
da Organização, do lançamento do
internacionais, que deixassem de se
basear tanto nas estatísticas e que
estivessem mais presentes onde fazem
falta: nos lugares que necessitam
de ação.”
“Quanto a mim, eu vivo no mato,
em uma região esquecida do mundo”,
declara Maggy Barankitse, ainda com
mais veemência. “Vivo em uma ‘zona de
risco’, por onde, de vez em quando, passa
um jornalista que vem bater algumas
fotos e logo se apressa em ir embora.
Vivo em um lugar onde os funcionários
estrangeiros passam três semanas antes
de ir descansar em Zanzibar! Quando
comecei meu trabalho, eu ficava chocada
com esses comportamentos. Mas depois
compreendi: deve-se abrir a boca e falar.
Quem não critica não ama o que faz,
porque não existe amor sem a verdade.” „
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 21
Sem medo de nada
SULTANA KAMAL responde às perguntas de Anbarasan Ethirajan, jornalista indiano na BBC – Bangladesh
Em Bangladesh, as mulheres têm ocupado posições políticas
de alto nível e, no entanto, a discriminação sexual não deixa
de ser institucionalizada nesse país, segundo a militante
Sultana Kamal. A progressão do fundamentalismo – neste
país que se propõe laico, mas onde o islamismo continua
sendo a religião de Estado – assim como as interrupções
do processo democrático têm incidências diretas sobre a
condição das mulheres.
Neste ano, o Bangladesh comemora o
40º aniversário de sua independência.
Desde então, quais foram as mudanças
verificadas na vida das bengalesas?
Muitas coisas mudaram desde a
libertação do país. Atualmente, as
mulheres estão, em geral, muito
mais conscientes de seus direitos,
reivindicando-os com maior
determinação, e conseguindo
manifestar suas opiniões no cenário
político e social.
Certamente, a situação não evolui
no mesmo ritmo em todas as regiões
do país, e poderia ter havido mais
avanços, não fossem as interrupções do
processo democrático ou a progressão
do fundamentalismo. De maneira
geral, os bengaleses nunca chegaram
a aprovar a ortodoxia religiosa no país.
Em razão disso, as mulheres sempre
se beneficiaram de um clima bastante
liberal, que tem sido utilizado por elas
para manifestar suas opiniões, participar
de debates e envolver-se em vários
aspectos da vida social.
Em Bangladesh, as funções de
primeiro-ministro e de líder da
oposição são ocupadas por mulheres,
Sheikh Hasina e Khaleda Zia, ou
seja, uma situação no mínimo
insólita em um país cuja população é
majoritariamente muçulmana.
Gosto da maneira como você apresenta
as coisas, ao afirmar que se trata de
uma situação insólita em um país
cuja população é majoritariamente
muçulmana. De fato, o Bangladesh é um
país em que a maioria da população é
22 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
muçulmana, mas não nos consideramos
como um Estado muçulmano. É um
país onde vivem pessoas de diferentes
religiões e coabitam numerosas culturas
que, por sua vez, são reverenciadas e
respeitadas. Entretanto, no que se refere
ao fato de os cargos mais elevados do
Estado serem ocupados por mulheres,
convém lembrar o seguinte: ao dar
o voto a Sheikh Hasina, os eleitores
estavam votando, na realidade, em seu
falecido pai, Sheikh Mujibur Rahman,
o primeiro presidente do país. E no
caso de Khaleda Zia, o voto era dado
efetivamente a seu falecido marido,
o general Ziaur Rahman, ex-ditador
militar. Os bengaleses conservam uma
imagem bem marcante desses dois
líderes famosos de nossa sociedade.
No entanto, o simples fato de
essas mulheres desempenharem uma
função de poder e exercerem controle
real sobre a situação no país dá às
bengalesas um sentimento de
confiança, a convicção de que as
mulheres podem também chegar ao
topo da hierarquia social.
Qual é a identidade predominante
no Bangladesh: a bengalesa ou a
muçulmana?
Um grande número de meus
compatriotas questiona-se para
I Em Bangladesh, as filas de mulheres esperando
para votar são quase sempre mais longas que as dos
homens.
© Faizal Tajuddin, Kuala Lumpur
saber se eles são, em primeiro lugar,
muçulmanos ou bengaleses. Esse
conflito tem suas raízes na época
em que o Bangladesh fazia parte
do Paquistão: os líderes militares
paquistaneses desafiavam
constantemente os habitantes do
Paquistão Oriental a provarem sua
lealdade como paquistaneses. Era
exigido que provassem ser verdadeiros
muçulmanos, vinculando, desse
modo, a identidade muçulmana com a
identidade paquistanesa.
A maioria dos bengaleses, todavia,
pensa que é possível ter várias
identidades. Sim, sou muçulmana,
ou nasci no seio de uma família
muçulmana; mas sou também
bengalesa, sou também mulher e
sou também militante em favor dos
direitos humanos. Tenho um grande
número de identidades diferentes.
Da mesma forma, há hindus e cristãos
que têm várias identidades. Como já
disse, o povo de Bangladesh acredita,
fundamentalmente, no pluralismo.
Aliás, acredita no sufismo: sua relação
com a natureza, com Deus e com
todos os mistérios da vida está, creio
eu, intimamente associada à própria
percepção de si mesmo e da natureza.
O amor dos bengaleses por seu país
mistura-se com seu amor pelos rios,
pelas árvores e pela natureza. A cultura
bengalesa está intimamente associada
à harmonia fundamental que meus
compatriotas procuram ver em todos os
lugares. Inicialmente, não havia a cultura
do confronto: essa foi forjada e tem sido
apoiada constantemente por forças
presentes na sociedade que, de vez em
quando, conseguem tomar o poder e
estender sua influência, por meio dos
sistemas econômico e educativo, além
dos organismos culturais.
Em que medida as forças
fundamentalistas islâmicas têm
modificado a vida social e cultural em
Bangladesh?
Os fundamentalistas apoderaram-se dos
setores-chave da sociedade: bancos,
companhias de seguro, saúde, educação
etc. Sua influência é mais prejudicial no
sistema de ensino, porque eles
modificaram todos os programas e
todos os métodos de informação no
país. A interpretação correta da religião
passa necessariamente por seu ensino
ou pela submissão à sua maneira de
pensar.
Eles servem-se do terror para ter
acesso ao poder ou manter-se nele.
Todos os danos infligidos à sociedade
de Bangladesh pelos fundamentalistas
têm sido causados pelas armas. Eles
fazem uso do dogma que nos diz
que nada pode ser questionado. A
população não tem, portanto, outra
escolha, além de submeter-se. Eles
servem-se também da liberdade
de expressão e das oportunidades
oferecidas pela democracia para impor
obrigações de cunho religioso. E
repetem incessantemente: “queremos
a cabeça dessa pessoa” ou, então, “esse
indivíduo deve ser enforcado, porque
é um traidor”, sempre que uma pessoa
diz algo que eles consideram como
blasfêmia. Tais métodos aterrorizam
a população. Contudo, você terá
observado também que poucas pessoas
apoiam realmente essas práticas.
Um grande número de bengaleses
manifesta-se contra essas acusações,
desde que eles tenham a certeza de
que sua tomada de posição não terá
repercussões, nem implicará represálias
por parte dos fundamentalistas. No
entanto, existem outros atores da
sociedade que os apoiam, incentivam e
protegem, cada vez que se sentem em
perigo, como nos períodos eleitorais.
Nos últimos anos, os tribunais de
Bangladesh têm proferido vários
julgamentos, proibindo que a mulher
seja obrigada a usar a burca ou o véu.
Em Daca, observa-se que tais decisões
são aceitas, mas, fora da capital,
percebe-se que as mulheres continuam
usando o traje islâmico tradicional.
Em primeiro lugar, convém lembrar que
as mulheres das zonas rurais dispõem
de recursos bem precários para serem
independentes no plano econômico e
social. Essas mulheres pertencem, na
maior parte das vezes, à classe média
baixa ou às camadas menos favorecidas
da sociedade. Então, servem-se desse
tipo de estratégia para poderem sair de
suas casas. Quando falamos com elas,
confidenciam-nos que a família não
permite que venham para a rua sem
burca. Portanto, elas são obrigadas a
usá-la, se pretendem ir para a escola,
para o trabalho ou para uma reunião.
A que se deve tal situação? Nas
zonas rurais, os homens também são
privados de inúmeras oportunidades
pelos líderes sociais, que, infelizmente,
estão associados com a hierarquia
religiosa. Com isso, tais líderes
influenciam os maridos a controlar as
respectivas mulheres dessa maneira.
Como, durante anos, este país foi
dirigido por generais que estabeleceram
sólidas alianças com as forças religiosas,
essas práticas foram incentivadas,
alimentadas e, até mesmo, protegidas
pelo Estado. Em razão disso, não será
fácil para que algumas mulheres deixem
de usar a burca da noite para o dia.
É possível ver, atualmente, um
número muito maior de burcas no
Bangladesh, em relação ao que se
via quando o país fazia parte do
Paquistão. Para mim, essa é uma das
consequências das interrupções do
processo democrático, durante as
quais o povo bengalês foi obrigado a
submeter-se a determinados poderes
e a certas forças que não desejavam
que ele se exprimisse e reanimasse o
espírito da Guerra de Libertação, de
1971. Nessa época, havia um conflito
aberto entre os grupos da linha dura,
contrários à independência, e as forças
que haviam lutado pela independência
de Bangladesh.
Outro tema delicado: os ataques à
base de ácido contra as mulherese
o assédio sexual das meninas, que
levam frequentemente ao suicídio das
vítimas. Será possível controlar essas
práticas pela simples promulgação de
leis?
Como se trata de um problema social,
ele deve ser tratado com medidas
de cunho social. Temos de criar um
ambiente em que as mulheres tenham
confiança suficiente para lutar contra
essas práticas. Além disso, é necessário
envolver o Estado, a sociedade e as
famílias na proteção das mulheres.
Temos de conversar com as famílias,
levando-as a compreender, com toda
a clareza, que, neste país, as mulheres
têm os mesmos direitos e a mesma
dignidade que os homens, e que estes
princípios devem ser respeitados. Nesse
ponto, é impossível fazer qualquer
tipo de concessão. A luta contra
essas práticas deve inscrever-se em
um movimento social. No entanto,
a legislação é, igualmente, útil, por
conferir uma espécie de poder e
confiança no que concerne à
possibilidade de combater esses
problemas no plano legal.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 23
Será que a discriminação sexual
se encontra institucionalizada em
Bangladesh?
Se analisarmos a legislação civil vigente
em Bangladesh, eu tenderia a dar-lhe
uma resposta afirmativa. De acordo com
esses textos, o povo deve ser governado
por leis religiosas que, por sua vez,
discriminam claramente as mulheres.
Todavia, o Estado não faz nada para
lutar contra essa discriminação. Desde
1972, estamos pedindo a adoção de
um código civil ou de um código da
família uniforme para todos. O governo
é incapaz de agir sobre esse ponto,
de modo que ainda não definimos
claramente o que é a discriminação
positiva ou a igualdade de gênero neste
país. Temos esbarrado em uma forte
resistência no coração da sociedade que
se reflete nas políticas do Estado.
Atualmente, há uma polêmica sobre
o modo pelo qual Bangladesh está
tratando os refugiados da etnia
rohingya, da vizinha Myanmar. Qual
sua opinião a respeito?
Em primeiro lugar, creio que os
partidários do fundamentalismo em
Bangladesh estão explorando a situação
dessas pessoas. Esse é um aspecto do
problema; outro aspecto, segundo
nosso ministro das Relações Exteriores,
é de ordem econômica. A partir do
momento em que se reconhece
a condição de refugiados a essas
pessoas, temos de tratá-las conforme
os tratados internacionais existentes, e
L Em Sultana Kamal, na inauguração de projeto
de construção de escola para crianças carentes
e órfãs.
© ASK, Dakha)
isso acarretará um peso econômico que
Bangladesh não pode assumir.
Outro problema diz respeito ao
número dessas pessoas. O Bangladesh
não tem condições de acolher uma
população tão grande.
No entanto, como militante da causa
dos direitos humanos, eu gostaria que
se reconhecesse a existência de todos
esses problemas para que pudéssemos
tratá-los de forma adequada. Tenho a
convicção de que essas pessoas têm
direitos que devem ser respeitados.
Falemos, agora, de sua vida. O que
levou a Sra. a tornar-se militante em
favor dos direitos das mulheres?
Cresci em um ambiente frequentado
por um grande número de ativistas
sociais e políticos. Meus pais estavam
envolvidos intensamente no movimento
antibritânico. Em seguida, minha mãe
iniciou o movimento das mulheres em
Bangladesh e desempenhou um papel
importante no movimento em favor
da língua bengali, assim como nos
movimentos culturais das décadas de
1950 e 1960.
Envolvi-me na vida pública, no
momento da Guerra de Libertação do
país. Durante a guerra, que durou nove
meses, passei vários meses na Índia com
minha irmã. Chegamos a montar um
hospital para tratar os feridos da luta pela
independência. Anteriormente, eu tinha
ajudado meus compatriotas a obter
informações ou refúgio, além de auxiliá-los a atravessar a fronteira.
Após a libertação, em 1971, comecei
a trabalhar com as mulheres que haviam
sido atingidas impiedosamente pela
guerra e visitavam minha mãe. Na maior
parte das vezes, elas tinham perdido
os maridos e encontravam dificuldades
para conviver com a família deles.
Outras desejavam saber se podiam
casar-se novamente e conservar os filhos
do primeiro casamento. Foi por isso
que decidi estudar direito e me tornei
advogada. Percebi que, como detentora
de uma bagagem jurídica, eu poderia ser
útil a essas mulheres. Eu queria ajudá-las
a compreender que elas tinham direitos e
podiam viver com dignidade.
A Sra. tem sido ameaçada em muitas
ocasiões e, inclusive, já sofreu um
atentado. Já chegou a pensar em
desistir?
Para dizer a verdade, não, porque meus
pais ensinaram-me que, ao abandonar o
combate, perde-se metade da batalha.
Por que haveria eu de abandonar
as causas em favor das quais tenho
lutado e deixar que algumas pessoas
pensassem que tinham vencido minha
resistência? Temos apenas uma vida a
perder, é nisso que está a sua força.
Descontentes pelo fato de eu ter
casado com um hindu e por eu me
relacionar com determinadas pessoas,
os fundamentalistas incendiaram
minha casa, em 1995. Por um triz, não
perdemos a vida. Mais tarde, lançaram
também uma bomba na minha
residência. No entanto, nunca fiquei
preocupada com o meu bem-estar ou
com a minha vida. Com certeza, sinto
responsabilidade em relação a meu
marido e a minha filha. Eles têm direito
de contar comigo. No entanto, mesmo
nesse aspecto, penso que a maneira
como fui criada e comecei a perceber
os problemas da vida me ensinou que
nunca deveria ter medo. O medo não
serve para nada, não traz solução para
os problemas. „
Sultana Kamal, militante
bangladeshiana em favor dos direitos
das mulheres, é diretora-executiva de
Ain Shalish Kendra (ASK): essa ONG do
Bangladesh, que garante assessoria
jurídica e defesa dos direitos humanos,
fundada em 1986, beneficia-se do apoio
financeiro da Embaixada dos Países
Baixos, da agência alemã NETZ, da Save
the Children e de outras organizações.
Seus fundos provêm, igualmente, dos
serviços prestados, principalmente, no
domínio da formação e das publicações.
Levando em consideração apenas os
números de 2010, a ASK forneceu ajuda
jurídica gratuita a 4.000 mulheres.
Uma
advogada
de caráter
inabalável
“A lei é que é criminosa”, costuma responder a
advogada Asma Jahangir, quando um juiz lhe
censura o fato de que ela sempre assume a defesa
de mulheres acusadas de cometer crimes. Nada
consegue deter essa ativista paquistanesa no
combate contra os chamados crimes de honra, a
favor dos direitos econômicos das mulheres e, acima
de tudo, em defesa da universalidade dos direitos
humanos, aplicáveis a todos, sem exceção.
© DR
ASMA JAHANGIR responde às perguntas de Irina Zoubenko-Laplante
A Sra. passou a vida defendendo os
direitos humanos. Como advogada,
o que a incentivou a especializar-se
nessa área?
Cresci em uma família envolvida na
política. Meu pai, Malik Jilani, foi
um líder político que sempre esteve
na oposição e, por isso, sofreu por toda a
sua vida. Fui testemunha do que
signif ica o fato de dirigir-se a um tribunal,
sabendo de antemão que a justiça não
seria feita. Com o tempo, compreendi a
importância do trabalho dos advogados.
No início da década de 1980, a Sra.
criou o centro de assistência jurídica
AGHS, gerenciado exclusivamente por
mulheres. Pode nos falar sobre ele?
Ao concluir meus estudos, após a
obtenção do diploma de Direito pela
Universidade de Punjab, dei-me conta
de que nenhum escritório de advocacia
me contrataria. Pensei comigo mesma
que a melhor solução seria com certeza
montar o meu próprio escritório. Então,
associei-me com duas amigas e, depois,
com minha irmã, Hina Jilani. Nesse
momento, as mulheres encontravam-se
totalmente oprimidas. O movimento
feminista estava dando seus primeiros
passos, mas já havia um movimento
dos advogados. Encontramo-nos no
centro desses dois grupos e, em seguida,
começamos a defender nossas causas.
Que dificuldades teve de enfrentar
como ativista dos direitos humanos?
Nos últimos cinco ou seis anos, recebi
várias mostras de reconhecimento,
tanto no exterior quanto no meu país.
Contudo ainda hoje, se você falar de
mim com alguém que não acredita na
universalidade dos direitos humanos,
essa pessoa vai dizer que sou uma
mulher ocidentalizada, sendo que na
verdade nunca estudei nem vivi no
exterior. Vai dizer também que sou
contra a religião, porque penso que
todas as pessoas têm o direito à escolha
de ter ou não uma religião. Por fim, dirá
que sou contra o Paquistão, porque
acredito que meu país deve viver em paz
com seus vizinhos…
No entanto, eu também venho de
uma sociedade feita de contradições.
Em nosso país, as mulheres são objeto
de violência e de desprezo, sendo
que, o Paquistão foi o primeiro Estado
muçulmano do mundo em que uma
mulher ocupou o cargo de primeiroministro: Benazir Bhutto, uma pessoa
muito corajosa. Em nosso país, existem
pessoas que ameaçam as mulheres
como eu, mas também há outras que
nos dão apoio, proteção e incentivo.
Aprendi muito e devo muito a meus
compatriotas.
Com o tempo, compreendi quais
são as três qualidades necessárias para
defender nossos ideais: em primeiro
lugar, é necessário ter um caráter
inabalável; em segundo lugar, é preciso
ser perseverante; e, em terceiro lugar,
deve-se constantemente buscar novas
soluções.
Ainda me lembro que quando
comecei a defender os trabalhadores
braçais (pessoas que estão submetidas
Em 10 de dezembro de 2010, Dia dos Direitos
Humanos, a diretora-geral da UNESCO, Irina
Bokova, e o prefeito de Bilbao (Espanha), Iñaki
Azkunale, entregaram o Prêmio UNESCO/Bilbao
para a Promoção de uma Cultura dos Direitos
Humanos à advogada paquistanesa Asma Jahangir.
Ela nos concedeu esta entrevista na ocasião do
recebimento do Prêmio.
Irina Zoubenko-Laplante trabalha na Divisão de
Direitos Humanos, Filosofia e Democracia da
UNESCO.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 25
K Esta jovem faz parte do grande grupo de deslocados internos que, em junho de 2009, abandonou no
Paquistão, fugindo dos combates. © UNICEF/NYHQ2009-0931/Marta Ramoneda
a uma certa forma de escravidão), o juiz
lhes perguntava: “Vocês reconhecem
esta mulher? Ela é a advogada de vocês?”
Eles estavam tão amedrontados que
acabavam negando que me conheciam.
Por pouco não fui expulsa da ordem
dos advogados, porque meus próprios
clientes afirmavam que não haviam me
contratado. Porém, com perseverança,
consegui ganhar a confiança deles e
fiz com que se decidissem falar. Um
dia, uma trabalhadora que viera depor
perante a Corte Suprema respondeu
com toda a confiança ao empregador
que a havia acusado de mentir: “quem
é o mentiroso: você ou eu? Vou dizer a
este Tribunal que, além de ser mentiroso,
você é um explorador”. Naquele dia,
eu disse comigo mesma que tinha
vencido a causa! Atualmente, a servidão
por dívidas não desapareceu por
completo, mas um grande número de
trabalhadores ganhou a liberdade.
Para defender seus princípios,
também se deve ter um caráter
inabalável. Lembro-me que, em 1983,
algumas pessoas propuseram, em
nome do Islã, uma lei que reduziria pela
metade o valor do testemunho das
mulheres em relação ao dos homens.
Muitas mulheres – em particular
da classe alta – saíram às ruas para
protestar, sem ter consciência do perigo
que corriam. A polícia interveio: além
de nos arrastar pelos cabelos, ela nos
espancou. Mais tarde, um mulá declarou
que nossos casamentos estavam
dissolvidos e que nossos maridos
deveriam divorciar-se, mas nenhum
deles levou isso a sério. Essa foi uma
experiência difícil, mas encheu-nos de
coragem, não só às 150 mulheres que
foram espancadas pela polícia, mas
também a muitas outras mais. Desde
então, o número de militantes femininas
tem-se multiplicado.
Quando estou em situação de
perigo, um dos meus filhos me diz:
“Mamãe, os direitos humanos, ainda que
a senhora não lute por eles, acabarão
chegando de qualquer forma no
momento oportuno, ainda que com
apenas um minuto de atraso!”. Eu penso
que é justamente esse minuto que justif
ica o trabalho dos ativistas dos direitos
humanos.
Qual é a sua principal preocupação
quanto à condição das mulheres?
Quando comecei minha carreira de
advogada, muitas mulheres eram
condenadas à prisão por causa de
uma lei nova que considerava crime
as relações sexuais fora do casamento.
Ainda hoje isso acontece, ainda que
de forma mais atenuada. Até mesmo
as mulheres que haviam sido vítimas
de estupro, mas que não podiam
comprová-lo, eram presas. Durante
os processos, os juízes perguntavam:
“a senhora não tem outros clientes
além dessas criminosas?”. Ao que eu
respondia: “Meritíssimo, criminosa é a lei
que as coloca atrás das grades”.
2 6 . LOE CCOORURRE RI OI E R
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Em vários países, incluindo o meu, as
mulheres enfrentam problemas muito
graves, que podem inclusive colocar
suas vidas em perigo. As mulheres
devem comportar-se de determinada
maneira, caso contrário correm o risco
de serem mortas em nome da honra. No
início da minha carreira de advogada,
quando eu levantava a questão desses
“crimes de honra”, alguns juízes me
respondiam, dizendo que não sabiam
do que eu estava falando. Aos poucos,
nosso movimento contra esses crimes
criou raízes no Paquistão e, da mesma
forma, chamou a atenção de muitas
organizações internacionais e da
opinião pública em todo o mundo. Hoje,
contamos com um grande apoio contra
esse tipo de delito, mas, há apenas dez
anos, algumas personalidades políticas
negavam seu apoio aos defensores das
vítimas de crimes de honra, dizendo
que seus argumentos contrariavam
as normas sociais comumente aceitas.
Agora esses políticos se envergonham
por terem feito tais comentários.
O que pode ser feito para melhorar a
condição das mulheres?
Acima de tudo, deve-se promover os
direitos econômicos das mulheres, cuja
ausência é acintosa em vários países.
As mulheres não têm o mesmo status
dos homens. Mesmo as que têm uma
atividade remunerada não recebem
um salário igual ao dos homens pelo
mesmo trabalho. Além disso, a violência
contra as mulheres é crescente.
Devemos começar a fornecer às
mulheres mais e melhores informações
quanto a seus direitos, uma área em que
já houve progressos consideráveis. Em
seguida, temos de realizar um trabalho
de conscientização sobre os direitos
das mulheres junto aos diferentes
atores da vida social e política, como
o Poder Judiciário, o Poder Legislativo,
os meios de comunicação social etc. Já
conseguimos alguns avanços, mas esses
ainda são insuficientes.
A promoção da igualdade entre os
gêneros pode contribuir para que se
alcancem os Objetivos do Milênio, em
especial a redução da pobreza?
Penso que essa aspiração das Nações
Unidas é louvável, mas é evidente
que esses objetivos não poderão ser
alcançados até o prazo fixado, em
2015. No entanto, essa constatação
não é motivo para se baixar os braços.
Acredito que o problema das crianças
e da pobreza é particularmente grave
hoje em dia, pois estou convencida de
que as primeiras vítimas da pobreza são
as crianças, sejam crianças provenientes
das camadas desfavorecidas da
sociedade, crianças vítimas de abusos
sexuais, crianças obrigadas a mendigar
(uma prática cada vez mais comum) ou
crianças que são objeto de tráfico.
Levando em conta sua experiência
como relatora especial das Nações
Unidas sobre a liberdade religiosa ou
de crença, o que a Sra. pensa sobre as
capacidades humanas de tolerância e
de abertura?
Tenho aprendido muito no
exercício desse cargo, muito delicado,
mas também intelectualmente
estimulante. Por exemplo, em qualquer
país do mundo existem preconceitos
e, ao mesmo tempo, em todos os
países também existem pessoas que
combatem a intolerância. As diferentes
instâncias de poder, que têm como
função elaborar políticas de combate
aos preconceitos e à intolerância devem
estar conscientes dessa realidade.
A educação desempenha um papel
particularmente importante, mas
depende de que tipo de educação se
está tratando. Na região do mundo
de onde venho, algumas pessoas
têm tratado a educação como um
instrumento de radicalização e de
militarização da população como
um todo. Desejamos uma educação
de qualidade, que não seja baseada
unicamente em manuais, mas também
nas interações entre as crianças das
diversas comunidades. A educação
não deve se contentar em ensinar
tabus, mas sim um respeito verdadeiro
pela dignidade humana. Por exemplo,
ninguém ensina às crianças que as
pessoas podem vestir-se de maneira
diferente: que um homem pode se
vestir como uma mulher, sem que
seja depreciado por isso; ou que uma
mulher possa usar véu, sem que isso
signifique que ela não possa pensar
de forma diferente. Não vejo esse tipo
de ensinamento em nenhum manual
escolar, seja no Ocidente ou no Oriente.
Por causa dos conflitos, alguns
países se isolam e cortam relações com
seus vizinhos, o que, no entanto, é uma
coisa fundamental. Ao mesmo tempo,
penso que o mundo deve conservar sua
diversidade e suas diferentes ideologias,
mas é preciso insistir que certos limites
não devem ser transpostos. Não posso
forçar uma pessoa a pensar da minha
maneira, ameaçando-lhe com uma arma.
Posso tentar convencê-la, respeitando
certos limites, sem abusos ou ameaças.
Se eu agir desse modo, estarei dando
provas de intolerância, e o mesmo
acontece com os que estabelecem
leis discriminatórias. Quanto à
justificação das leis com base nas
normas sociais e religiosas, é algo
que deverá ser reconsiderado pelas
autoridades públicas. É um insulto ao
próprio povo dizer que ele é menos
digno do que os habitantes de outros
países. A dignidade é universal.
O trabalho dos defensores dos
direitos humanos não é nada fácil. Por
exemplo, em um país como o meu, em
que são constantes as situações de
conflito, os militantes islâmicos que
cometem assassinatos também têm
direitos. No entanto, quando nós,
defensores dos direitos humanos,
chamamos atenção para isso, as pessoas
se perguntam se não somos partidários
dos talibãs. É claro que não estou do
lado deles, mas o fato de suspeitar que
um homem é talibã não é razão para
eliminá-lo.
Qual é o papel do Estado na promoção
do progresso social?
Penso que, entre os diversos atores
sociais, o Estado deve ser o último a se
envolver-se nesse processo. Atualmente,
a ação compete à sociedade civil, em
particular aos grupos de militantes e
aos movimentos como os que existem
na América Latina. São eles que
promoveram campanhas e levantaram
questões importantes. Por exemplo, a
sociedade civil e os grupos de ativistas
ocidentais foram os primeiros a
denunciar as prisões arbitrárias ocorridas
após os atentados de 11 de Setembro
de 2001. Esse movimento contou com
o apoio de advogados, de defensores
dos direitos humanos, de estudantes
e de muitas outras pessoas, quer dizer,
com o respaldo de todos os atores que
compõem a sociedade civil.
Qual é a relação entre a democracia e
os direitos humanos?
Os direitos humanos não podem se
desenvolver em um país que não seja
democrático, como podemos constatar
em várias ocasiões. No entanto, isso não
significa que um país, pelo simples fato
de ser democrático, automaticamente vá
respeitar os direitos humanos.
Os ativistas dos direitos humanos
devem esforçar-se em vincular os
direitos civis e políticos aos direitos
sociais e econômicos.
Na realidade, os movimentos a
favor dos direitos humanos estão
empenhados em consolidar a
democracia. É indispensável que esse
esforço ocorra em todas as sociedades.
Nas últimas décadas, temos assistido à
estagnação da democracia, até mesmo
nos países ocidentais que possuem uma
longa tradição democrática.
A Sra. pensa que a situação dos direitos
humanos está melhorando?
O mais difícil é fazer com que as
mentalidades evoluam. Se olharmos
30 anos para trás, devemos reconhecer
que houve mudanças. Em outras
épocas, era impossível criticar o
governo, sem que se corresse o risco
de ser preso. Atualmente, em nosso
país, já não existem mais prisões para
presos políticos. Isso não significa que
os direitos humanos deixaram de ser
violados, mas já foram dados alguns
passos à frente.
Também foram dados alguns
passos para trás, porque o mundo é
cada vez mais complexo e apresenta
novos desafios e ameaças. É preciso
buscar, conjuntamente, soluções para os
problemas comuns. Não se trata apenas
de monitorar a aplicação dos direitos
humanos, mas também determinar
em que áreas devemos manter nossos
esforços, de que formas podemos nos
aperfeiçoar e que estratégias devemos
adotar. Há muito tempo, um líder da
sociedade civil disse-me: “asma, você
não pode defender seus ideais usando
apenas as pernas para as passeatas
na rua, você também deve usar a sua
cabeça”. Atualmente, tenho consciência
de que as pernas e a cabeça devem
caminhar juntas. „
Advogada e presidente da Associação
dos Advogados da Suprema Corte
do Paquistão, Asma Jahangir
também é presidente da Comissão
paquistanesa de Direitos Humanos e
relatora especial das Nações Unidas
sobre liberdade de religião e de
crença. O Prêmio UNESCO/Bilbao lhe
foi-lhe conferido como recompensa
por seu trabalho em defesa dos
direitos humanos, em particular os das
minorias religiosas, das mulheres e das
crianças.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 27
Milhares de pessoas, entre as quais grande número de mulheres,
desfilaram em Túnis, em 19 de janeiro de 2011, a fim de defender
os princípios da laicidade. A Associação Tunisiana das Mulheres
Democratas, dirigida por Sana Ben Achour, foi uma das
principais organizadoras dessa manifestação
Sana Ben Achour. © A. Gabus, Tunis
Direitos garantidos,
Para compreender os obstáculos que impedem a autonomia das mulheres nos países
árabes – incluindo a Tunísia, país onde o sufrágio feminino existe desde 1957 – a jurista,
Sana Ben Achour, analisa detalhes do direito de família. Ela denuncia as falsas aparências
do feminismo de Estado que estão longe de responder às exigências tanto da igualdade de
gênero quanto da indivisibilidade dos direitos.
SANA BEN ACHOUR
No mundo árabe, o atual debate sobre
os direitos das mulheres está focalizado
na reforma do direito de família. De fato,
em nome de um Islã consagrado como
religião de Estado, as leis modernas
reservam às mulheres um status inferior
ao dos homens. Do Mashrek ao Magreb,
elaborou-se, em torno das mulheres,
sistema normativo subordinado à charia
ou ao fiqh (lei e jurisprudência islâmicas),
que legitima, sob diversas modalidades,
toda a espécie de combinação entre
religião e identidade política, entre
poder político e aplicação das leis
ditadas pela charia, entre casamento e
endogamia religiosa...
As leis sobre a família consolidam
os vínculos entre as ordens religiosa
e política, de modo que a família
é constituída como um bastião da
dominação masculina. Basta tomar
como exemplo as regras do casamento
– que vão da tutela matrimonial
à proibição da união entre uma
muçulmana e um não muçulmano – ou
as relações entre cônjuges baseadas no
dever de manutenção, o que confere
papel proeminente aos homens. Da
mesma forma, pode-se acrescentar
as regras da filiação e do parentesco,
estabelecidas com base na genealogia
patrilinear e aplicadas às leis sobre
nacionalidade: as mulheres não podem
conceder sua nacionalidade aos maridos
nem aos filhos.
28 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
Dezesseis dos 22 membros da Liga
Árabe aderiram à Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, em 1981.
No entanto, praticamente todos eles
introduziram reservas substanciais, de
caráter geral ou específico, em relação
a artigos do texto da Convenção.
Isso explica por que os movimentos
feministas, surgidos na década de 1980,
tenham orientado sua mobilização no
âmbito das políticas públicas e contra
discriminações institucionalizadas
e diferenças entre direitos humanos
universais e legislações no plano nacional.
Reféns do regime político
Convém mencionar que as reformas
econômicas, sociais e culturais foram
iniciadas por governos autoritários,
na maioria dos casos oriundos dos
movimentos de libertação nacional,
que exploraram o campo das
relações familiares como meio de
implementação de suas políticas
nacionais. Por conseguinte, os códigos
relativos ao estatuto pessoal e à família
– apesar de derivarem do direito
muçulmano clássico – inserem-se em
uma política legislativa que sinaliza
certo grau de influência do racionalismo
da época moderna. Esse foi o caso das
leis egípcias (1917, 1920 e 1929), dos
Códigos do Estatuto Pessoal da Jordânia
(1951 e 1976), da Síria (1953), da Tunísia
(1956), do Marrocos (1957 e 1958) e do
Iraque (1959). Outros países aderiram
recentemente a esse modelo: a Argélia
e o Kuwait, em 1984, e a Mauritânia, em
2001. Em todos os casos, as reformas
culminaram na
modificação do direito e na
recomposição da normatividade
islâmica em torno das mulheres.
Com efeito, o que está em jogo, é a
elaboração de uma política legislativa
(siyassa tachrîya), levando em
consideração a arbitragem entre os
princípios de organização identitária
e as reivindicações em matéria de
igualdade das sociedades civis. Isso é
precisamente o que confere ao direito
relativo ao estatuto pessoal e à família
oscilação entre espírito da tradição e
espírito da inovação.
Além disso, nenhuma dessas
políticas foi implementada, sem a
intervenção autoritária dos poderes
centrais: decretos do chefe de Estado
(como na Tunísia, sob a presidência
do Conselho de Habib Burguiba),
imposição de estado de emergência
(como no Egito, durante a presidência
de Anwar el-Sadat) ou ato (dhahir)
do rei (como no Marrocos). Em geral,
tais políticas são acompanhadas pela
implantação de Uniões Nacionais de
Mulheres, organizações femininas
subsidiárias, fortemente ligadas à
estrutura estatal e ao partido que
detém o poder. As organizações
servem de canal para transmissão de
políticas sociais em matéria de saúde
materna e da criança, de escolarização
e alfabetização, de planejamento e
desenvolvimento rural, de divulgação
dos novos direitos relativos aos
estatutos pessoais e à família. Esses
“feminismos de Estado” resultaram
na tomada das mulheres como reféns
e transformaram-nas em garantia da
estabilidade dos regimes políticos.
K
Solidariedade entre irmãs, obra do escultor
italiano Silvio Russo, oferecida à ONU, em 1996,
simbolizando a solidariedade das mulheres árabes
com as mulheres do mundo inteiro.
© UN Photo/Eskinder Debebe
Manutenção do status quo
Atualmente, nos países onde os
movimentos islâmicos e o conformismo
se fortalecem, textos legais marcados
por deficit democrático parecem
limitar-se a uma existência precária.
A qualquer momento, eles podem
ser questionados, como foi o caso, no
Egito, da Lei Jihane, de 1979 (nome da
esposa de el-Sadat), que permitia às
mulheres obter automaticamente o
divórcio, durante o ano subsequente
ao segundo casamento do marido. Essa
lei foi revogada em 1985, em razão ao
novo Artigo 2º da Constituição, que
reconhece a lei islâmica como principal
fonte legal. Esse também foi o caso na
Tunísia, onde as ameaças de “retorno às
fontes” se multiplicaram, no momento
da destituição do presidente Burguiba,
em 1987. Mais uma vez, foi necessária a
intervenção tutelar da cúpula do Estado
para impedir qualquer alteração no
Código do Estatuto Pessoal, conceder
Em dezembro de 2008, Sana Ben Achour
foi nomeada presidente da Associação
Tunisiana das Mulheres Democratas –
ATFD (Association tunisienne des femmes
démocrates), cujos objetivos principais
são: a adesão aos valores universais da
igualdade de gênero, dos direitos humanos
e das liberdades fundamentais e o
combate ao menosprezo dos direitos
econômicos e sociais das mulheres.
Professora de Direito Público e
conferencista na Faculdade de Ciências
Júridicas, Políticas e Sociais de Túnis, Sana
Ben Achour também faz parte da Liga
Tunisiana dos Direitos Humanos – LTDH
(Ligue tunisienne des droits de l’Homme).
a seus princípios reconhecimento de
direito adquirido em âmbito nacional
e, após o processo de “normalização”
do movimento islâmico, reprimi-lo
duramente, assim como os democratas.
Isso significa que, nos bastidores
dessas políticas legislativas sobre a
família, não está em causa a reforma do
direito tradicional, mas a manutenção
do status quo. O questionamento
da assimetria tradicional entre
os direitos dos homens e os das
mulheres constituiria ameaça para
a ordem pública vigente. Assim,
os poderes instituídos reatualizam
permanentemente essa assimetria,
ao concederem direitos e garantias
judiciais às mulheres, sem nunca
perderem de vista a superioridade
dos homens. No contexto geral das
legislações sobre família nos países
islâmicos, a Tunísia é, sem dúvida, o
Estado que mais transgrediu a lei divina:
divórcio por mútuo consentimento,
autorizado desde 1956; direito de
voto para as mulheres, conquistado
em 1957; aborto legalizado, desde
1962… Todavia, assim como outros
países, não conseguiu renunciar ao
privilégio atribuído aos homens. Daí, o
reconhecimento do marido como chefe
de família, a manutenção do dote como
condição de formação do casamento –
nem que seja simbolicamente por meio
de um dinar –, a regra segundo a qual
os homens se beneficiam de dois terços
da herança etc. Nessas condições, é
possível avaliar a enorme distância
entre o discurso dos governantes sobre
a reforma do estatuto pessoal ou sobre
a melhoria dos direitos da família e
as reivindicações feministas sobre a
autonomia da mulher, a igualdade e a
indivisibilidade dos direitos. „
© Sana Ben Achour
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 29
Agora
GIUSY MUZZOPAPPA
journalista italiana
ou nunca
As lutas empreendidas pelas feministas das décadas passadas frequentemente reduziam
os homens a inimigos que deviam ser combatidos por todos os meios. Atualmente as
italianas se mobilizam, ao lado dos homens, para conservar suas preciosas conquistas e
formular novas reivindicações, como salário igual para trabalho igual ou flexibilidade nas
condições de trabalho que não implique precariedade.
Não esperávamos um número tão
grande de pessoas”. Foram os termos
utilizados pelas organizadoras das
passeatas de 13 de fevereiro de 2011,
como início de resposta a quem lhes
solicita um comentário sobre a iniciativa.
A organização de uma ação no plano
nacional, em um período tão curto, que
conseguiu estender-se mundialmente
poderia deixar a impressão de um
empreendimento gigantesco. Tudo
começou por um movimento de
indignação, definitivo e irrevogável,
que sensibilizou um grupo de mulheres,
muito diferentes entre si, reunidas na
associação De Novo (Di Nuovo) e, há
muito tempo, envolvidas na defesa
dos direitos das mulheres. Centenas de
milhares de pessoas responderam a seu
apelo, um milhão, de acordo com as
organizadoras: mulheres que saíram às
ruas com seus companheiros, pais, filhos
e irmãos para expressarem claramente
seu apoio em favor da emancipação
das mulheres italianas. “Cada uma de
nós telefonou para pessoas conhecidas,
contatou suas redes e, em uma fração
de segundo, obtivemos respostas
entusiasmadas de todos”, explica a
jovem Elisa Davoglio.
O slogan da passeata, “Agora ou
Nunca” (Se non ora quando?) – referência
ao título de um romance do famoso
escritor italiano Primo Levi (1919-1987)
– traduz claramente a cruel degeneração
das representações relativas à mulher na
mídia e na política italianas. O mal-estar
que está na origem desse protesto é
fomentado pela erosão das conquistas
que, para as mulheres italianas, haviam
sido adquiridas definitivamente na
sequência dos combates travados nas
décadas de 1960 e 1970, em favor dos
direitos civis e de igualdade de gênero.
Nesse período de lutas políticas – que
forjou uma verdadeira geração de
feministas italianas –, acreditava-se
que importantes vitórias haviam sido
conquistadas: o direito da família
foi radicalmente modificado (com a
legalização do divórcio, em 1974) e as
mulheres obtiveram liberdade de decidir
sobre sua gravidez (graças à revogação,
em 1981, de uma lei particularmente
restritiva sobre o aborto). Os momentos
de exaltação desses anos parecem
que gradualmente foram se tornando
menos intensos no decorrer das
décadas seguintes, que assistiram ao
distanciamento entre essa primeira
geração de feministas italianas e suas
filhas e netas.
Recomecemos a luta juntas Ao comparar essa época com a recente
mobilização das mulheres italianas,
Francesca Izzo, professora de História
das Doutrinas Políticas na Universidade
de Estudos Orientais de Nápoles,
observa como esse movimento “lançou
rapidamente uma ponte que facilita
a comunicação entre as gerações”, no
termo deste duplo reconhecimento: “por
um lado, a geração reivindicadora da
década de 1970 tomou plena consciência
de que suas conquistas corriam o risco
de ser alvo de perigoso questionamento,
se não houvesse a coragem de retomar
30 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
a palavra, até mesmo para reconhecer
os erros do passado. Por outro lado, as
novas gerações compreenderam
finalmente que os direitos e as conquistas
de que haviam usufruído, mesmo que
sem perceberem, estavam sob a ameaça
de desaparecer. A partir desse momento,
tivemos esta percepção: vamos
recomeçar a luta juntas”.
Juntas e em companhia dos homens.
Elisa Davoglio é muito incisiva no que
se refere a esse ponto: “os homens
contribuíram de forma muito
significativa. A mobilização surgiu em um
clima de colaboração sincera e de partilha
espontânea dos motivos de indignação”.
Francesca Izzo aprofunda o tema e
L Manifestação “Agora ou Nunca” na Praça do
Povo, em Roma, Itália, em 13 de fevereiro de 2011.
© Grazia Basile, Rome
identifica nele aspecto radicalmente
novo, em relação aos antigos
movimentos feministas: “as mais jovens,
em particular, não teriam compreendido
– com toda a razão – as reivindicações
das lutas feministas das décadas
passadas, que, muitas vezes, reduziam
os homens a inimigos que deviam
ser combatidos por todos os meios.
Atualmente, as jovens compartilham,
com os homens de sua idade, medos,
frustrações e aspirações e, muitas vezes,
sentem-se frágeis e inadequadas. Elas
nunca teriam aderido a uma mobilização
que tivesse reconhecido unicamente
às mulheres o direito de indignar-se”.
Conforme é constatado por Cristina
Comencini – cineasta e escritora que
contribuiu com a irmã, Francesca, para
organizar a manifestação –, “é a primeira
vez que os homens se encontram em
pé de igualdade com as mulheres e vão
para a rua, ao lado delas, para mostrar
conjuntamente a força política e humana
das mulheres.
Um desafio político
“A Itália não é um país para as mulheres”
é outro slogan que se podia ler nas
faixas exibidas nas ruas da Itália e de
outros lugares. Dado confirmado, de
forma indiferente e implacável, pelas
estatísticas. De acordo com o relatório
de 2010 sobre educação mundial da
Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE),
as mulheres, na Itália, estudam mais
que os homens (elas representam
61% dos diplomados), mas enfrentam
maiores dificuldades para inserir-se no
mercado de trabalho. Os dados também
aparecem no Relatório Salários na Itália,
2000-2010: a década perdida (Salari in
Italia, 2000-2010: il decennio perduto) da
Confederação Geral Italiana do Trabalho
(CGIL), o principal sindicato italiano. Os
salários das mulheres são inferiores em
12%, em média, aos de seus homólogos
masculinos. A taxa de inatividade
feminina – o percentual de mulheres
que não trabalham ou não estudam –
atinge, segundo o relatório de 2010 do
Instituto Nacional de Estatísticas (ISTAT),
48,9%, ou seja, o nível mais elevado
da União Europeia, depois de Malta. A
presença de Susanna Camusso, primeira
mulher a ocupar o posto de secretária-geral da CGIL, no palanque da Praça do
Povo, em Roma, no dia 13 de fevereiro,
é fato ainda mais simbólico. Isso
porque condições de trabalho, direito
de escolher entre carreira profissional
e maternidade, direito à equiparação
de salários entre homens e mulheres e
direito à flexibilidade nas condições de
trabalho que não implique precariedade
são questões impostas ao desafio
político inaugurado pelo movimento
“Agora ou Nunca”.
A falta de consideração do papel da
mulher na sociedade é acompanhada
pela imagem grotesca e distorcida da
figura feminina que é veiculada pelos
principais meios de comunicação social.
No ano passado, um documentário de
Lorella Zanardo, militante em favor dos
direitos das mulheres, intitulado O Corpo
das Mulheres, chamou a atenção da
opinião pública: após ter assistido a esse
filme, nenhuma italiana pode esquecer
o ambiente grotesco mostrado pela
montagem de trechos de programas
televisivos, transmitidos diariamente
em todas as redes de televisão na
Itália. A redução das mulheres a um
corpo para ser consumido exerce
profunda repercussão, em particular,
sobre as gerações mais jovens. É
precisamente esse ponto que permite
às instâncias que promoveram a
mobilização formularem questões
de maior amplitude. “Lançamos esse
apelo para dizer que este não é o país
que corresponde aos nossos anseios”,
sublinha Elisa Davoglio. “Para conseguir
isso”, prossegue ela, “decidimos
tomar a dianteira para evitar qualquer
manipulação de nossa mensagem,
providenciando sua circulação nas
nossas redes, por meio do Facebook,
e criando um blog para iniciar um
K Cena da manifestação “Agora ou Nunca”, na Praça
do Povo, em Roma, Itália, em 13 de fevereiro de 2011.
© Grazia Basile, Rome
debate que não esteja submetido à
mídia tradicional. Pedimos a todos que
deixassem em casa símbolos políticos
ou de filiação a qualquer grupo e
optamos por assumir a divulgação
da mensagem e das diretrizes com
palavras compreensíveis e simples, para
evitar que a mídia tradicional venha
a apropriar-se, de uma maneira ou de
outra, de nossa mobilização”.
Quais serão as próximas etapas, os
próximos problemas que o movimento
vai decidir enfrentar? A questão
permanece em aberto. “Objetivos
importantes não faltam”, observa
Francesca Izzo, “mas trata-se de saber
como pretendemos alcançá-los. A
democracia, no fundo, é isso mesmo:
uma tensão constante entre objetivos
e meios. A questão dos direitos das
mulheres está no centro da profunda
crise da representação democrática.
A tarefa colossal a ser enfrentada
consiste em reorganizar a democracia,
um objetivo que exige determinação
e paciência”. As mulheres do
movimento “Agora ou Nunca” desejam
reapropriar-se do 8 de março, Dia
Internacional da Mulher, cujo sentido
foi perdido na Itália. Elisa Davoglio
conclui: “trata-se de celebrar um dia não
apenas pelo fato de a mulher receber
flores ou, até mesmo, ser convidada
ao restaurante. O dia 8 de março está
relacionado com direitos, trabalho e
emancipação”. „
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 31
Resistir à
tirania
“Calar-se é tornar-se cúmplice”, declara Mónica González
Mújica, vencedora do Prêmio Mundial UNESCO/Guillermo
Cano de Liberdade de Imprensa 2010. Essa mulher, que
sofreu as piores torturas durante a ditadura militar no
Chile, nunca renunciou à sua liberdade de expressão.
Para ela, para além da barreira do gênero, o importante é
denunciar as injustiças.
MÓNICA GONZÁLEZ MUJICA
responde às perguntas de Carolina
Jerez e Lucia Iglesias (UNESCO)
Existe uma maneira feminina de fazer
jornalismo? Quais são os trunfos e os
obstáculos que teve de superar, como
mulher, no decorrer de sua carreira?
PFalemos, em primeiro lugar, sobre
as vantagens de ser mulher, porque
elas existem. Temos uma sensibilidade
que nos é peculiar e que, no meu
ponto de vista, é muito útil, quando
se faz jornalismo investigativo: há
maior facilidade para perceber quem
diz a verdade, quem mente, quem
se esconde sob uma carapaça, uma
máscara ou um disfarce. Tenho também
a impressão que, quando nós, mulheres,
nos lançamos em um empreendimento,
somos mais persistentes e não
desistimos, enquanto a tarefa não
estiver concluída. Somos obstinadas! E
digo isso sem ser feminista.
É claro que há obstáculos, em
particular, quando os torturadores, os
carrascos, abusam sexualmente de nós,
a fim de nos anular. Sob a ditadura,
descobri que o estupro visa, antes de
mais nada, a quebrar nossa resistência.
Nessas circunstâncias, ninguém pode
ter prazer, ao estuprar uma mulher. O
prazer consiste em humilhar a mulher
e em desapossá-la de sua identidade.
Porém, no meu caso, tal situação
tornou-me mais forte.
32 . O
L E CCOORURRE RI OI E R
D AD EU N
L ’EUSNCEOS C O .
APRILJUNE 2011
Quais foram os momentos mais
importantes de sua vida profissional?
O momento mais importante para mim
foi o fato de eu ter conseguido fazer a
transição da ditadura para a democracia,
sem abandonar o jornalismo. Durante
a ditadura, não renunciei à minha
atividade, nem na prisão, nem sob
tortura, nem quando meus amigos
foram mortos, nem quando tive de me
separar de minhas filhas, tampouco
quando me senti destruída pela dor
de todos os compatriotas. Quando a
democracia voltou, percebi que havia
tanto a construir! Meu mérito é o de
não ter abandonado o jornalismo e de
ter reinventado minha vida sempre
que estive desempregada. Recebi a
ajuda de muitas pessoas: não sou uma
super-mulher! Tive a sorte de encontrar
pessoas que me deram suporte e me
incentivaram a perseverar, quando eu
estava mais aterrorizada. Além disso,
nessa profissão, somos postos à prova
todos os dias, e espero viver assim até
minha morte.
Qual é a situação atual do jornalismo
investigativo?
É, sem dúvida, o jornalismo que se
encontra em maior crise em todo o
mundo. O jornalismo investigativo foi
a primeira vítima da crise econômica
de 2008. Os jornalistas mais bem pagos
foram os primeiros a perderem seus
empregos; e eram eles mesmos que
faziam o trabalho de investigação em
profundidade. Como os serviços de
investigação constituem, muitas vezes,
fonte de problemas e conflitos, a crise
forneceu uma ótima desculpa para
que esses serviços fossem encerrados!
Eles são ainda os mais bem preparados
para aprofundar questões realmente
sensíveis que podem desempenhar
papel determinante na vida dos
cidadãos.
L A Praça da Itália, em Santiago do Chile, em 10
de dezembro de 2006, data da morte do general
Pinochet. © Eduardo Aguayo, Santiago
Apesar disso, devo salientar que,
em termos de qualidade, o jornalismo
investigativo na América Latina não
deixa a desejar, se comparado ao
jornalismo anglo-saxão. Digo isso
não apenas em relação ao cenário
atual, uma vez que chegamos a
exercê-lo sob ditaduras. No Chile,
por exemplo, os jornalistas correram
riscos impressionantes para denunciar
os crimes do regime de Pinochet.
Um jornalista deve denunciar as
irregularidades e os horrores, caso
contrário ele se torna cúmplice
dessas práticas. É verdade que o
jornalismo investigativo implica
sempre grande dose de sacrifício
pessoal. É preciso também desembolsar
dinheiro do próprio bolso, porque,
sejamos honestos, nenhum grupo de
comunicação está disposto a pagar
um jornalista, durante um longo
período, para que ele possa fazer sua
investigação com tranquilidade.
Atualmente, o jornalismo
investigativo, na América Latina,
enfrenta um grave problema: os cartéis
de narcotraficantes, que estão prestes a
corroer nossa sociedade. O objetivo
final desses cartéis consiste em privar-nos de espaços de lazer, de felicidade e
de vida. É por isso que é tão importante
enfrentar esse tema e, então, garantir
aos jornalistas a possibilidade de
investigar e de fornecer informações, ao
contrário do que ocorre atualmente na
maior parte dos países da região.
Qual é a sua opinião sobre o panorama
da mídia na América Latina?
Dois perigos ameaçam, de forma
cada vez mais intensa – e cada vez
mais rápida –, o direito à informação.
O primeiro é a impressionante
concentração dos meios de
comunicação, que estão nas mãos de
reduzido número de proprietários.
Os grupos que controlam esses
conglomerados, comprando canais de
televisão, estações de rádio e jornais,
têm, ao mesmo tempo, interesses
em outros setores, como agricultura,
mineração, serviços, imobiliário, etc.
Um grupo de comunicação não é capaz
de informar com objetividade sobre
empresas cujos proprietários sejam
também acionistas desse grupo. Isso
é extremamente grave. Os jornalistas
estão perdendo autonomia, dignidade
equalidades, estão tornando-se simples
testas-de-ferro.
K México: jornalistas protestando contra os atentados e os sequestros de que eles têm sido vítimas.
© Raul Urbina, Mexico
O segundo perigo vem de
governos autoritários que, embora
tenham chegado ao poder por
via democrática, transformam
os jornalistas em seus inimigos,
submetendo-os a ameaças
permanentes. Quanto a isso,
infelizmente ainda não há oposição
capaz de defender a liberdade de informação, como deveria ocorrer. Isso
porque, a liberdade de informação não
consiste em ser a favor do governo ou
da oposição, mas em fazer jornalismo
de qualidade. Do mesmo modo que
é inaceitável que os cartéis do crime
organizado declarem guerra contra
os jornalistas, também é inaceitável
que os governos democraticamente
eleitos se deixem envolver em práticas
autoritárias.
Tudo isso para dizer que,
objetivamente, o panorama da mídia
latino-americana é desanimador.
A precariedade do jornalismo afeta
profundamente a sociedade. A
democracia é menosprezada, porque
o cidadão, quando mal informado,
torna-se presa fácil dos tiranos.
Nós que sofremos sob ditaduras e
recuperamos a liberdade em troca
da morte de grande número de
pessoas, acreditamos que não se pode
deixar a democracia se fragilizar e ser
manipulada por poderes autoritários. „
Mónica González Mujica é,
provavelmente, uma das jornalistas
investigativas mais persistentes do Chile
e mais comprometidas com o exercício
de sua profissão. Exilada na França após
o golpe militar de 1973, ela voltou para o
Chile, em 1978, mas só conseguiu retomar
sua atividade a partir de 1983. Desde maio
de 2007, ela dirige o Centro de Informação e
Pesquisa Jornalística (Centro de Información e
Investigación Periodística – CIPER), instituição
independente e sem fins lucrativos,
especializada em jornalismo investigativo.
N Mónica González Mújica, durante sua intervenção
no Colóquio Internacional sobre a Liberdade de
Expressão, realizado na UNESCO, em 26 de janeiro
de 2011.
© UNESCO/Danica Bijeljac
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 33
Sima e Storey, jornalistas da
Rádio Sahar, preparam-se, de
manhã bem cedo, para seu
programa de rádio em Herat,
no noroeste do Afeganistão.
© www.valentinamonti.com
Paciência,
vamos chegar lá
HUMAIRA HABIB
O Afeganistão tem, atualmente, cerca de 300 mulheres jornalistas para uma população de
25 milhões de habitantes. Após período sombrio que o país atravessou na década de 1990,
o novo milênio abriu as portas para a liberdade de expressão que começa a se afirmar.
Embora a insegurança, o peso da tradição e outros obstáculos importantes ainda devam
ser superados, ao escutar Humaira Habib percebe-se que as jornalistas afegãs estão
decididas a prosseguir nesse caminho, mesmo se ainda for necessário um longo tempo
para alcançarem seu objetivo.
“Tenho a intenção de guardar todos
os convites que recebi para entrevistas
coletivas, a fim de mostrá-los, mais
tarde, a minhas filhas e meus netos.
Acho que eles vão sentir orgulho de
mim”, disse-me, certo dia, Zakia Zaki,
jornalista e diretora da estação de rádio
A voz da paz, situada na província de
Parwan, no centro do Afeganistão.
Estávamos em uma coletiva na capital,
Cabul. Fiquei com a impressão de que
ela estava preocupada: há alguns dias,
estava recebendo ameaças anônimas.
Duas semanas mais tarde, foi baleada
em sua casa por homens armados. Isso
aconteceu em junho de 2007.
O Afeganistão, que se reergue de
três décadas de guerra e destruição,
encontra-se em uma fase de transição.
Nesse país afetado pela pobreza e pelas
migrações forçadas, objeto de manobras
políticas tanto no plano nacional quanto
no internacional, assiste-se atualmente
a uma expansão, sem precedentes,
da imprensa em uma sociedade
semidemocrática, na qual a liberdade
de expressão está desabrochando.
Sem nenhuma tradição histórica no
país, a mídia apareceu repentinamente
na esteira da propaganda política e
comercial. De acordo com Adela Kabiri,
jornalista e professora de Jornalismo na
Universidade de Herat, anteriormente,
as mulheres não tinham lugar no
mundo do jornalismo no Afeganistão;
essa disciplina jovem, que se
estabeleceu no país ao mesmo tempo
que a constituição, foi dominada,
durante muito tempo, exclusivamente
por homens. Foi precisamente no
momento em que as mulheres
estavam começando a participar no
desenvolvimento do jornalismo – em
particular ao redor de Cabul – que a
dominação dos talibãs ganhou terreno:
essa é a explicação para a ainda
precária experiência das mulheres
afegãs nessa área.
Se, na década de 1980, um pequeno
grupo de mulheres, entre as quais
Zakia Kohzad, havia comprovado que
as afegãs também eram capazes de
contribuir para o jornalismo, na década
de 1990, sob o regime autoritário dos
talibãs, elas estiveram praticamente
ausentes desse setor. Apesar disso,
algumas mulheres conseguiram
permanecer ativas durante esse
período, em particular, Belqais Maqiz e
Fatana Ishaq Gailani, que, em Peshawar
(Paquistão), fundaram as revistas Zan-e
J
Em um tribunal em Herat, mulher que entrou
com pedido de divórcio responde a perguntas
de Farawia, repórter da Rádio Sahar.
© ww.valentinamonti.com
34 . O CORREIO DA UNESCO . ABRIL-JUNHO 2010
Afghan (A mulher afegã) e Rozaneh (A
esperança).
O desenvolvimento, rápido e
generalizado, dos diferentes tipos de
mídia, além do apoio à liberdade de
expressão, constitui uma das principais
conquistas da era pós-talibã, iniciada
em 2001. O país pode vangloriar-se de
contar com uma dezena de estações
de rádio e redes de televisão, algumas
centenas de revistas e jornais, além
de numerosas agências de notícias e
editoras.
No decorrer dos últimos dez anos,
as mulheres têm desempenhado um
papel ativo na cena midiática e social,
atingindo um nível de participação sem
precedentes na história do país.
I
Em uma aldeia, perto de Herat, mulher escuta a rádio enquanto trabalha.
© www.valentinamonti.com
jornalismo, é essencial incrementar sua
participação em entrevistas coletivas –
no plano internacional – e valorizar seu
trabalho – no âmbito nacional. Quanto ao
futuro das jornalistas, Fawzia considera
primordial que um maior número de
mulheres ingressem na prof issão.
Mais que isso, para atingir essa meta,
é necessário fornecer-lhes melhores
condições de trabalho e facilitar seu
acesso às diferentes áreas do jornalismo.
No Afeganistão, país em transição,
que passa de uma sociedade tradicional
para uma sociedade moderna, todos
os setores estão experimentando,
atualmente, um crescimento súbito
e sem precedentes, e a maior parte
dos produtos é importada. Nesse
contexto, as jornalistas afegãs acreditam
que a paciência é necessária para a
construção de um futuro melhor e que
seus problemas de segurança serão
resolvidos com o decorrer do tempo.
Elas convocam a comunidade
internacional a ajudá-las a atenuar esses
problemas e outras dificuldades que
têm de enfrentar no exercício de sua
profissão. Estão convencidas de que
o apoio internacional será uma etapa
essencial para o desenvolvimento
futuro de suas atividades, uma vez que
eliminará as ameaças de que são vítimas
e evitará que outras jornalistas sejam
condenadas ao mesmo destino de
Zakia Zaki. „
© www.valentinamonti.com
O Afeganistão tem, atualmente, mais de
300 mulheres jornalistas e diretoras de
publicações. Uma dezena de estações
de rádio foi criada por mulheres, e
várias províncias – em particular, Herat e
Bamiyan – abrigam centros e fundações
destinados a mulheres jornalistas.
Apesar de inúmeras restrições
sociais e políticas ainda existentes,
muitas mulheres continuam exercendo
seu ofício de jornalistas. No entanto,
Najida Ayoubi – escritora e poeta de
renome que dirige o grupo de mídia
Kilid – afirma que as jornalistas afegãs
não têm motivo para estarem satisfeitas,
porque, em relação ao número de
mulheres que vivem no Afeganistão,
a porcentagem daquelas que
desempenham um papel na imprensa é
muito limitada.
De acordo com Najida Ayoubi, as
mulheres afegãs enfrentam muitas
dificuldades no círculo do jornalismo,
e é necessário agir para aumentar
sua participação nesse domínio. Ela
acredita que compete aos institutos
de formação e aos centros de ensino
do jornalismo fornecer-lhes mais
possibilidades de acesso à profissão.
A baixa proporção de mulheres
presentes na mídia deve ser atribuída
ao deficit em matéria de educação e
alfabetização de que elas foram vítimas
no decorrer das três décadas de guerra
que devastaram o Afeganistão. Diante
dessa situação, somente medidas de
discriminação positiva aplicadas aos
meios de comunicação poderão fazer a
diferença. Najida Ayoubi acredita que
as mulheres afegãs dispõem de menos
possibilidades de obter emprego como
jornalistas do que seus compatriotas
masculinos, além de menor grau de
responsabilidade no setor da mídia,
um domínio dominado amplamente
por homens. Em suma, é necessário
chamar a atenção de representantes e
profissionais da mídia afegãos sobre o
problema da igualdade de gênero.
À semelhança do que se passa em
outros setores profissionais, o jornalismo representa verdadeiro desafio
para as afegãs. As jornalistas têm de
enfrentar, em particular, preconceitos
da sociedade tradicional afegã,
discriminação social e pressões por
parte das famílias. Por demandar grande
dedicação, a profissão de jornalista é
considerada, às vezes, como impeditivo
para que as mulheres desempenhem
seu papel no seio da família.
Na opinião de Farida Nekzad,
laureada, em 2007, com o prêmio
da Associação Canadense dos
Jornalistas pela Liberdade de Expressão
(Association canadienne des journalistes
pour la liberté d’expression), grande
número de diplomadas afegãs
renunciam à carreira de jornalista,
em razão de restrições por parte da
família, dando preferência às profissões
de ensino. Além disso, as jornalistas
afegãs sofrem com a falta de relações
sociais (que não são muito bem vistas
no caso de mulheres) e com a ideia
preconcebida de que as ações das
mulheres são menos importantes que
as dos homens.
No entanto, para Farida, a
insegurança é o principal problema
enfrentado pelas jornalistas no
Afeganistão. Com efeito, no decorrer
dos últimos dez anos, muitas jornalistas
afegãs perderam a vida por causa de
seu ofício: além de Zakia Zaki, pode-se
citar Shaima Rezai e Shakiba Sanga
Amaj. Outras jornalistas, tais como a
própria Farida Nekzad e Najia Khodayar,
acabaram por abandonar a profissão
por terem recebido ameaças graves.
Manizha Naderi, diretora de uma
ONG que promove os direitos das
mulheres afegãs, considera que as
ameaças e os ataques são reflexo da
violência militar vigente no país. Ela
acredita que as mulheres, em geral,
e as jornalistas, em particular, são
atacadas, em decorrência do potencial
de que dispõem para exercer o papel
que lhes corresponde na sociedade.
Em sua opinião, os autores desses atos
de violência procuram desqualificar
e minimizar a função da mulher na
sociedade.
De acordo com Fawzia Fakhri,
fundadora do Centro para as Mulheres
Jornalistas de Herat, para alcançar
o objetivo de atribuir às afegãs um
lugar mais importante no círculo do
Humaira Habib, jornalista afegã,
é diretora da estação de rádio
comunitária para as mulheres
Radio Sahar, em Herat, no oeste do
Afeganistão.
As fotos que ilustram este artigo foram tiradas do
documentário Girls on the Air, um filme Valentina
Monti.
O CORREIO DA UNESCO . ABRIL-JUNHO 2011 . 35
Uma lenta
conquista
do mercado de
trabalho
FERIEL LALAMI
Como o trabalho digno se encontra no centro da celebração do Dia Internacional da
Mulher em 2011, o Correio da UNESCO apresenta o caso da Argélia, país onde, desde a
década de 1990, tem ocorrido uma rápida expansão do trabalho feminino. Atualmente,
ao enfrentarem o mercado de trabalho, as mulheres argelinas – até mesmo titulares de
diplomas universitários – deparam-se frequentemente com situações de precariedade ou são
impedidas de assumir funções de diretoria no âmbito das empresas.
“Meu nome é Hassiba e tenho 38 anos.
Sou casada e tenho três filhos. Exerço
a profissão de agente técnica em uma
empresa privada. Para chegar ao local
do meu trabalho, tenho que tomar dois
ônibus e sair de casa pelo menos uma
hora e meia antes do horário de abertura
do escritório para não chegar atrasada.
Quero evitar o risco de ser despedida,
porque nos dias de hoje, é muito difícil
encontrar trabalho. Nem me passa pela
cabeça a ideia de perder o meu salário,
pois nossa família não poderia viver apenas
com o salário do meu marido. É difícil
para minha mãe aceitar que eu esteja
empregada, uma vez que no seu tempo as
mulheres só trabalhavam em casa”.
O testemunho dessa argelina do
bairro de Ain Naaja, em Argel – coletado
por mim em novembro de 2010, no
âmbito de uma pesquisa sobre as mudanças nas relações familiares –, mostra que,
apesar dos obstáculos, as mulheres na
Argélia tiveram e têm acesso de forma
duradoura ao mercado de trabalho. Essa
tendência tem-se confirmado em ritmo
lento, mas consolidado, no decorrer
das últimas três décadas, embora
ainda não tenha produzido resultados
consideráveis. Na verdade, com as
mulheres representando apenas 15%
do total da população economicamente
ativa (porcentagem que se manteve
inalterada entre 2007 e 2010), a Argélia
K Argelinas seguem treinamento de professores para
o ensino de inglês financiado pelo Departamento de
Estado dos Estados Unidos. © Ruth Petzold, Alexandria
está muito atrás dos países vizinhos,
Tunísia e Marrocos, cujas proporções se
elevam a 25% e 28%, respectivamente.
De qualquer modo, a taxa relativa
à atividade remunerada das mulheres
aumentou 10% entre os anos 1980 e o
início da década de 2000. Por quê? Em
primeiro lugar, em decorrência do triste
episódio da história do país designado
por alguns como “a tragédia argelina
da década de 1990” ou “a Segunda
Guerra da Argélia”. Em seguida, o fim
do controle dos preços exercido pelo
Estado, os cortes nas despesas públicas e
o consequente aumento do desemprego
deixaram as famílias em situação de
pobreza. Nessas circunstâncias, as
mulheres começaram a procurar trabalho
remunerado, sem que as famílias
ousassem impedi-las, invocando o
considerável peso da tradição: afinal, elas
tinham necessidade de alimentar-se.
Deve-se acrescentar a isso outra
especificidade argelina: as mulheres
trabalhadoras são mais qualificadas
do que os homens. Em 2003, mais da
metade das mulheres em atividade
remunerada eram titulares de, ao menos,
o diploma de estudos secundários,
contra apenas um quinto dos homens.
Essa situação deve-se essencialmente
à política de democratização do ensino
promovida pelo Estado, que, desde
o fim do período colonial (1962), se
traduziu em um rápido aumento da taxa
de escolarização feminina: em 2010,
meninas e adolescentes representavam
57% da população estudantil do país.
36 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
Outro dado importante: até a década
de 1990, a maioria das mulheres com
atividade remunerada tinham entre 19
e 24 anos e eram solteiras (com exceção
das viúvas e das divorciadas). Na maior
parte dos casos, o casamento ou o
nascimento de um filho colocava fim à
carreira profissional dessas mulheres.
Atualmente, o número de mulheres
economicamente ativas casadas
aumentou consideravelmente, e elas são
quase tão numerosas (18%) quanto as
solteiras (20%).
No entanto, as estatísticas não
esgotam a análise desse tema. Deve-se
considerar também o amplo leque
das profissões: embora seus setores
preferidos sejam o ensino, a saúde
e a administração, as mulheres têm
entrado cada vez mais em outros
campos de atividade, como o jornalismo.
Atualmente, 60% dos profissionais da
mídia são mulheres.
Obstáculo intransponível e
trabalho precário
O exercício dessas profissões também
permite que as mulheres adquiram
uma maior visibilidade na vida pública.
Contudo, não se deve ignorar o fato
de que, na evolução de suas carreiras –
incluindo as ocupações “feminizadas” – as
mulheres se deparam com um obstáculo
intransponível: os postos de trabalho
com alto nível de responsabilidades
continuam sendo um campo reservado
aos homens. Enquanto na educação
as mulheres constituem 50% dos
© A-M Tournebize, Paris
profissionais, em 2005 elas ocupavam
apenas 9,15% dos cargos de diretoria de
estabelecimentos escolares e 5,6% das
funções de inspetor do ensino básico.
Além disso, o desemprego atinge as
mulheres de forma mais dura do que os
homens: respectivamente 19,1% contra
8,1%, em 2010, de acordo com a Agência
Nacional de Estatísticas (Office National
des Statistiques – ONS). Ainda pior é o fato
de que, entre as pessoas mais
qualificadas, as mulheres desempregadas
são três vezes mais numerosas do que
os homens: 33,6% contra 11,1%. Diante
da saturação do mercado de trabalho,
as mulheres muitas vezes preferem criar
suas próprias empresas no comércio,
nos serviços ou no artesanato. De acordo
com o Centro Nacional de Registro do
Comércio (Centre National du Registre du
Commerce), entre 2006 e 2007, o número
de mulheres comerciantes aumentou
4%. Ainda que na maioria dos casos se
trate de microempresas, a proporção de
mulheres na categoria dos empregadores
passou de 3% para 6%. Um novo fenômeno é o número crescente de mulheres
que exercem profissões como as de
agentes do ramo imobiliário e de viagens
e ainda empresárias do setor agrícola.
O aumento do número de mulheres
que exercem atividades remuneradas
também teve como consequência a
criação de empregos informais, como
os de babá e de empregada doméstica.
Essa economia informal – reservada, em
geral, às mulheres – estende-se também
ao comércio de pequeno porte e ao
setor privado, criando outros tantos
empregos precários e mal remunerados,
que não garantem uma cobertura da
seguridade social.
É certo que o acesso das mulheres
argelinas ao mercado de trabalho
acarreta novas configurações familiares,
graças às quais elas adquirem maior
autonomia. O modelo do “homem
provedor de recursos” está lentamente
se tornando ultrapassado. No entanto, se
no passado as mulheres tiveram que lutar
contra a cultura patriarcal para exercer
uma atividade remunerada, atualmente
elas enfrentam um obstáculo igualmente
difícil de ser superado:
a extrema escassez de
empregos. „
Cientista política
argelina, Feriel Lalami,
é responsável por
curso na Universidade
de Poitiers (França).
Igualdade de
gênero
um bem público mundial
SANIYE GÜLSER CORAT e ESTELLE RAIMONDO
À semelhança de outros bens públicos mundiais, a
igualdade entre homens e mulheres apresenta vantagens
coletivas a longo prazo, às quais se opõem interesses
específicos a curto prazo. A ONU Mulheres, nova entidade
das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e ao
empoderamento das mulheres, tem a missão de superar
os principais obstáculos que impedem o investimento
adequado nas meninas e nas mulheres.
Em um contexto de desacelaração
do crescimento econômico mundial,
combinada com as crises dos alimentos,
da energia e do meio ambiente, a reflexão sobre os “bens comuns globais” e a
busca de respostas estão passando por
um período de renovação. No entanto,
a temática da igualdade de gênero
continua sendo a grande ausência na
lista dos bens públicos mundiais (BPM)1.
Apesar disso, é impossível alcançar
metas como o crescimento econômico,
a governança responsável e a paz no
mundo, se metade da população do
planeta – as mulheres – continua sendo
excluída tanto dos processos que
definem as prioridades mundiais,
quanto da tomada de decisão.
É importante investir em meninas
e mulheres, principalmente em um
momento de restrições orçamentárias
como o atual, em que os países
doadores estabelecem como prioridade
apenas os investimentos com alta taxa
de retorno e efeito multiplicador
significativo. Chegou a hora de mudar a
perspectiva no que diz respeito ao
financiamento do desenvolvimento e à
ajuda internacional aos países pobres.
O altruísmo e a geopolítica devem dar
lugar à utilidade para todos. Ao invés de
tratar meninas e mulheres como simples
1. Os bens públicos mundiais podem ser definidos
como elementos importantes para a comunidade
internacional, cuja gestão só pode ocorrer de forma
satisfatória, por meio de uma ação coletiva em
escala mundial. São exemplos: a proteção ao meio
ambiente e o respeito aos direitos humanos.
vítimas da marginalização, deve-se
considerá-las como protagonistas e
agentes cruciais da mudança, capazes
de contribuir significativamente para
a produtividade das economias em
âmbito nacional, regional e global.
Sabe-se que as mulheres gastam,
em média, 90% de suas rendas em
educação, saúde e alimentação de suas
famílias e comunidades, enquanto os
homens utilizam apenas 40% de seus
ganhos nessas áreas. Dados recentes
mostram que o aumento do número de
mulheres em cargos de direção tem um
efeito positivo sobre o desempenho das
empresas e sobre o grau de confiança
que lhes é atribuído pelos acionistas.
Do mesmo modo que o simples fato
de uma empresa ter mão de obra
feminina repercute positivamente
sobre a produtividade, no plano
macroeconômico.
Alcançar a igualdade de gênero na
esfera política, portanto, introduzir as
mulheres nas estruturas políticas e nos
processos de tomada de decisões ao
lado dos homens, produz igualmente
fortes efeitos de persuasão. Em âmbito
local, por exemplo, com o sistema
de cotas reservadas às mulheres em
munícipios indianos (panchayat)
comprovou-se que as mulheres são
mais eficazes do que os homens na
administração de bens públicos, como o
abastecimento de água.
Ruanda também oferece um bom
exemplo. A reforma constitucional
impôs um mínimo de 30% de
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 37
da falta de coordenação, pois oferece
aos Estados-membros um fórum no
qual eles podem reunir-se e tratar das
questões mundiais. Ele também é capaz
de superar o problema do passageiro
clandestino ao responsabilizar as
instituições internacionais e os governos
por seus compromissos, em particular
os relativos à aplicação da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra a Mulher e
da Declaração e Programa de Ação de
Beijing2. Finalmente, o sistema pode
superar o obstáculo do curto prazo da
cena política, ao exercer pressão sobre
os Estados-membros para que eles
cumpram suas obrigações nos prazos
previstos.
A nova Entidade das Nações
Unidas para a Igualdade de Gênero
e o Empoderamento das Mulheres
(ONU Mulheres) tem o potencial para
desempenhar essa função crucial, desde
que tenha visão e liderança estratégicas,
no sentido de estabelecer uma agenda
e um programa de ação aprovados pelos
principais interessados, e de que seja
dotada de recursos humanos e
financeiros necessários para cumprir
suas responsabilidades. „
K
O aumento do número de mulheres em cargos
de direção tem efeito positivo no desempenho das
empresas.
© Den_Bar pixburger.com 2011
2. A Declaração e o Programa de Ação de Beijing
foram adotados na 4ª Conferência Mundial sobre a
Mulher: Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento
e a Paz, que foi realizada na capital chinesa em
setembro de 1995.
Graduada pela Universidade do Bósforo (Istambul, Turquia), Saniye Güser Corat
(à esquerda na foto) é também doutora em Ciências Políticas pela Universidade
de Carleton (Canadá), onde ela trabalhou como professora antes de dirigir o
Departamento de Igualdade de Gênero da UNESCO.
Estelle Raimondo é mestre em Economia do Desenvolvimento pela
Universidade de Columbia (EUA) e em Negócios Internacionais pelo Instituto de
Ciências Políticas de Paris (França). Atualmente, é especialista auxiliar do Serviço
de Supervisão Interna da UNESCO.
38 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
© UNESCO/Danica Bileljac
representação feminina no parlamento.
Com isso, as mulheres parlamentares
conseguiram colocar a saúde e a
educação entre as matérias prioritárias
da agenda legislativa nacional. A
taxa de crescimento do país também
está intrinsecamente vinculada à
participação ativa da mão de obra
feminina (80%) e ao talento das
empresárias: 42% das empresas do
setor formal e 58% do setor informal são
dirigidas por mulheres.
A Ruanda também faz parte dos
raros países – ao lado da Libéria e da
Guatemala – nos quais as mulheres
participaram, em pé de igualdade com
os homens, nos processos formais
de consolidação da paz, nos quais as
negociações nesse âmbito têm sido mais
construtivas do que em outros países.
Definir a igualdade de gênero como
um BPM se impõe ainda mais quando
os Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio são considerados. É evidente
que a igualdade de sexos é condição
essencial para reduzir a mortalidade
infantil, para melhorar a saúde das
gestantes, para alcançar a igualdade
de gênero na educação, assim como
para diminuir a fome e a pobreza em
geral, na medida em que a maior parte
da população mundial em situação de
pobreza é constituída por mulheres.
Quanto à sustentabilidade do meio
ambiente, como seria possível atingir
tal objetivo sem as mulheres, as quais
são responsáveis, em grande parte,
pela proteção da biodiversidade?
Finalmente, como criar uma parceria
mundial para o desenvolvimento, se as
mulheres estão ausentes ou têm pouca
representatividade na formulação e na
tomada de decisões políticas?
O que se pode fazer para evitar
que a igualdade entre homens e
mulheres tenha o mesmo destino de
outros BPMs no que se refere ao deficit
de investimento? Deve-se alterar os
incentivos aos planos de ação, de modo
a superar estes três grandes obstáculos:
a falta de coordenação entre os agentes;
o chamado “problema do passageiro
clandestino” (deixar que outros lutem
por um bem do qual a pessoa vai-se
beneficiar); e a visão política de curto
prazo vinculada ao problema relativo
à escolha das políticas públicas (na
medida em que a igualdade de gênero
não é uma prioridade das plataformas
eleitorais).
Em todos esses aspectos, o Sistema
das Nações Unidas apresenta uma
vantagem comparativa real. Esse sistema
tem condições de superar o obstáculo
A mulher
é o futuro de Davos
O Fórum Econômico Mundial reuniu, em janeiro passado, em Davos (Suíça), cerca de 35 chefes de
Estado e de governo, além de 2.500tomadores de decisão, dos quais apenas 16% eram mulheres.
Apesar disso, a participação feminina praticamente duplicou, desde 2001, e, de acordo com Ben
Verwaayen – um dos fundadores do Fórum –, o futuro de Davos vai depender delas.
KATRIN BENNHOLD, journalista alemã do International Herald Tribune
O homem de Davos é um animal
singular. Onipotente, mundano e
frequentemente muito rico, em geral,
ele sabe mais sobre as taxas aplicadas
nas bolsas de valores do que os preços
dos supermercados. Além disso, ele
dispõe de todos os acessórios dignos de
sua posição: uma villa na Côte d’Azur,
um jato particular sob medida e um
projeto filantrópico.
Por sua vez, a mulher de Davos é
igualmente cosmopolita, rica e
influente. No entanto, a presença
feminina ainda é rara.
Aquelas que assistem a essa
recepção anual da elite mundial, nos
Alpes suíços, se encontram em uma
situação um tanto particular: apesar de
pertencerem a essa esfera elitista, elas
são consideradas iniciantes com status
minoritário.
As mulheres representam apenas
16% dos participantes no Fórum
Econômico Mundial. De fato, como
a maioria das senhoras em seus
casacos de pele, abrindo caminho no
chão coberto de neve, estão aqui na
qualidade de esposas, é fácil confundi-las com as verdadeiras participantes
do fórum: “em um coquetel, em
Davos, é mais provável que você seja
considerada a esposa de alguém,
ao invés de empresária”, lamenta
Este artigo é reproduzido, graças à autorização
do International Herald Tribune. Inicialmente, foi
publicado em inglês, com o título “Mulheres marcam
presença em Davos, embora ainda em minoria”
(Women Make Their Mark at Davos, Though Still a
Distinct Minority), no suplemento “O Fator Feminino”
(The Female Factor), de 26 de janeiro de 2011.
a presidente da Manpower França,
Françoise Gri, que aparece, nos últimos
sete anos, na lista das 50 mulheres mais
poderosas do mundo, estabelecida pela
revista Fortune. Esta é a segunda vez
que ela vai a Davos.
“Este evento continua sendo como
um clube de cavalheiros”, prossegue
ela: “enquanto mulher, fico com a
impressão de que realmente não faço
parte desse grupo”. Para Christine
Lagarde, ministra das finanças da
França1 e frequentadora assídua de
Davos há mais de dez anos, “a química
da dominação masculina” acaba por
desestabilizar a autoconfiança: “você
sabe que é competente, conhece bem
o conteúdo dos documentos, mas, de
alguma forma, sente-se inibida”
As mulheres ricas não vivem em um
mundo à parte
OHá uma tendência de considerar
os ricos e os poderosos como uma
entidade em que não há diferença entre
os sexos, operando em um mundo à
parte de privilégios ilimitados, a anos-luz da vida cotidiana das classes médias
de diferentes países – uma distância
que se tornou ainda maior pela atual
crise econômica.
As mulheres da elite,
diferentemente de seus colegas
masculinos, mantêm vínculos bem
sólidos com suas irmãs menos
privilegiadas. Como observa Dominique
Reiniche, diretora da Coca-Cola Europa:
“a igualdade entre os sexos é uma
preocupação que permeia todas as
classes […]. As mulheres de todas as
camadas sociais compartilham essa
causa”.
Compreende-se a razão pela qual a
filantropia feminina, que está em pleno
crescimento, visa a melhorar a condição
das mulheres menos afortunadas,
explica Jacki Zehner, vice-presidente
da Rede de Captação de Fundos para
Mulheres (Women’s Funding Network)
e primeira mulher a tornar-se sócia da
Goldman Sachs. Algumas artistas, como
a norte-americana Angelina Jolie e a
britânica Annie Lennox – ambas pela
primeira vez em Davos –, promovem os
direitos da mulher em nome das Nações
Unidas e de outras organizações.
Há outras razões que explicam o
fato de as mulheres correrem, sem
dúvida, menos riscos, ao viver em um
mundo à parte.
Uma mãe, por maior que seja
sua fortuna e prosperidade, assume,
em geral, suas responsabilidades em
relação aos filhos, correndo o risco de
ter sua carreira estagnada ou alterar o
equilíbrio entre trabalho e vida familiar.
No entanto, ela conserva o contato
com a sociedade: com as babás – que,
na maior parte das vezes, são mulheres
menos favorecidas e, talvez, de origem
estrangeira –, com os professores e com
as mães dos amigos dos filhos.
As mulheres estão, frequentemente,
mais envolvidas que os homens em
atividades relacionadas com os filhos,
como festas de aniversário ou compras.
“Nada melhor que os adolescentes para
manter-se em contato com o mundo”,
observa Dominique Reiniche, que criou
três filhos.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 39
K Uma participante do Fórum Econômico Mundial, que ocorreu em janeiro de 2011, em Davos.
© World Economic Forum/swiss-image.ch/Michael Wuertenberg
Além disso, as elites femininas
costumam ser menos engajadas em
sua função profissional que as elites
masculinas, de acordo com a opinião
de Christine Lagarde: “por todo o
tipo de razões históricas, culturais e
econômicas, as mulheres tendem a
permanecer mais próximas do mundo
real”, insiste a ministra, que é mãe de
dois filhos.
“Eu não conheço muitos colegas
que vão ao supermercado fazer
compras, mas eu tenho esse costume”,
acrescenta ela. Segundo Lagarde,
o mesmo acontece com Anne
Lauvergeon, presidente da Areva, uma
gigante do setor nuclear, com Angela
Merkel, chanceler alemã; ou com Lubna
Olayan, executiva saudita.
Viver isolado da realidade é uma
das principais críticas dirigidas contra as
elites e as instituições de grande porte,
como o Fórum Econômico Mundial.
A paridade: um must
Se Davos pretende continuar
desempenhando seu papel nas
próximas décadas, o Fórum deverá
reservar mais espaço para as mulheres,
tanto no que se refere aos participantes
quanto aos conferencistas, sublinha
Zainab Salbi, fundadora da ONG
humanitária Mulheres para as Mulheres
Internacional (Women for Women
International) e apontada como uma
das Jovens Líderes Globais pelo Fórum
de Davos.
“Conheço um grande número de
mulheres que já manifestaram sua
intenção de não voltar a Davos”, declara
ela, antes da reunião deste ano. “O
Fórum foi um grande evento do século
XX, agora, ele deve provar que está à
altura do século XXI”, complementa.
Ben Verwaayen, presidente da
Alcatel-Lucent e membro fundador do
Fórum, compartilha esse ponto de vista.
De acordo com ele, “o futuro de nossa
organização apoia-se na igualdade
entre homens e mulheres: nossa
sobrevivência depende disso”.
Essa necessidade tornou-se urgente
nos últimos anos, sobretudo depois que
40 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
uma executiva francesa, “cansada” de
não ser convidada para Davos, montou
o Fórum das Mulheres de Deauville
(França).
O percentual de participantes
mulheres no Fórum praticamente
duplicou, desde 2001. As sessões
dedicadas às mulheres, antes relegadas
ao primeiro horário da manhã e fora
da sede principal, ocorrem, agora, no
Centro de Conferências e nos horários
de maior circulação de pessoas.
Há, inclusive, recepções, jantares e
coquetéis dedicados às redes femininas.
Neste ano, pela primeira vez, os
organizadores do Fórum chegaram
a um acordo com as 100 principais
empresas parceiras para adotar uma
quota de 20% de mulheres. Dentre
cinco delegados enviados pelas
empresas, pelo menos um deve ser
mulher, ou a empresa renuncia ao
envio do quinto delegado masculino. O
número de mulheres mais que dobrou.
No entanto, considerando que a medida
diz respeito a apenas 500 dos 2.500
participantes, o aumento da presença
feminina permanece pouco
significativo. Para os organizadores, essa
situação é satisfatória.
“Na medida em que nossa
organização seleciona seus membros
entre as mil empresas mais importantes
no mundo, é normal que ela reflita
a distribuição de cargos”, constata
Saadia Zahidi, diretora do Programa de
Mulheres Líderes e Paridade de Gênero
(Women Leaders and Gender Parity
Program) do Fórum Econômico Mundial.
As mulheres de Davos poderão
contar, em breve, com uma importante
aliada: Nicole Schwab, filha do
fundador do Fórum Econômico
Mundial, prepara-se para atribuir um
certificado de paridade entre homens
e mulheres às empresas que venham a
corresponder a critérios (ainda a serem
definidos) de igualdade de salários, de
representação paritária das mulheres
e de satisfação das funcionárias em
relação a essa pariadade.
“O objetivo consiste em transformar
a paridade em uma vantagem
competitiva para as empresas que
tenham necessidade de atrair pessoal
qualificado e investimentos”, ressalta
Aniela Unguresan, sócia de Nicole
Schwab no âmbito do Projeto Igualdade
de Gênero (Gender Equality Project).
Ainda falta convencer as elites para
que se disponham a transformar esse
objetivo em um must, ao lado do iate e
do professor de ioga. „
Lançando as sementes
do futuro
K Mulheres em uma
plantação na região de
Kayanza, no Burundi.
© IUCN/Intu Boedhihartono
Enquanto fala, agitando energicamente seus cabelos, Lorena Aguilar pronuncia distintamente
cada uma de suas palavras e pontua com a mão cada uma de suas frases. Há mais de 25 anos,
ela dedica-se ao desenvolvimento de políticas públicas destinadas a enfrentar os problemas
decorrentes das mudanças climáticas, com o objetivo de produzir novos conhecimentos sobre
temas ainda não abordados, com base em uma perspectiva de igualdade de gênero.
LORENA AGUILAR responde às perguntas de ALFREDO TRUJILLO FERNÁNDEZ, jornalista espanhol
Por que é necessário abordar as
mudanças climáticas sob a perspectiva
de gênero? Em sua opinião, qual é a
contribuição das mulheres?
Homens e mulheres estabelecem
diferentes relações com os recursos
naturais. Sendo assim, devemos
basear-nos nesses dois pontos de
vista. Infelizmente, quando se trata de
encontrar soluções, a balança tende
a inclinar-se para um só lado. Muitas
vezes, as estratégias são implementadas
de maneira parcial, com base em um só
ponto de vista: o do homem. É também
uma questão de defesa dos direitos das
mulheres. Não devemos nos esquecer
que elas representam mais da metade
da população mundial, portanto,
elas deveriam participar na tomada
de decisões, o que nem sempre tem
acontecido, até agora.
Por outro lado, as mulheres são
detentoras de conhecimentos cruciais
para combater os efeitos das mudanças
climáticas. Um exemplo: em muitos
países e regiões do mundo, como a
Ásia, a África e a América, os homens
vêm praticando a monocultura,
enquanto as mulheres cultivam uma
grande variedade de vegetais em
seus quintais e hortas. De acordo
com o clima que preveem para um
determinado ano, elas decidem quais
sementes plantar. Essa diversidade
constitui, atualmente, uma verdadeira
mina de ouro para os cientistas
interessados em reintroduzir espécies
que haviam desaparecido em alguns
países, em decorrência da adoção de
determinadas políticas agrícolas.
Em países como Cuba, em alguns
casos, as mulheres chegaram a
conservar até 250 variedades de feijão
e 75 variedades de arroz. No Peru, é
possível contar até 60 variedades de
iúca, e em Ruanda, até 600 variedades
de arroz! Essa é, pelo menos, a
informação fornecida pela Organização
das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação (FAO).
Essa riqueza na diversidade das
sementes e nos saberes tradicionais que
lhe são inerentes é um excelente meio
para combater as mudanças climáticas.
Em primeiro lugar, porque algumas
espécies de sementes adaptam-se
melhor às condições de variação
climática que conhecemos atualmente.
Em segundo, porque essa capacidade
de adaptação terá como resultado um
nível de produção agrícola capaz de
suprir as necessidades da população
do planeta.
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 41
Quais são as suas ações no sentido de
incentivar essas mudanças?
Para começar, apresentamos o tema de
maneira diferente. Está fora de questão
dizer que as mulheres são mais sensíveis
ou melhores pelo simples fato de serem
mulheres, ou que o gesto de abraçar
as árvores é próprio de nossa natureza.
Ao contrário, o sentimentalismo não
leva a lugar nenhum! Nosso argumento
tem a ver com o desenvolvimento, é
um argumento positivo e preventivo,
com embasamento técnico e científico.
Trata-se de um discurso de defesa dos
direitos que tem ressonância universal.
A Liga Árabe tornou-se, por exemplo,
um dos nossos principais aliados, ao
lado de países como a Finlândia e a
Dinamarca.
Neste ano, estamos desenvolvendo
três estratégias que associam diferença
de gênero e adaptação às mudanças
climáticas, em Moçambique, na
Jordânia e na América Central. Nossa
ação consiste essencialmente em visitar
essas regiões para verificar o que tem
sido realizado quanto às mudanças
climáticas, para assim formular
estratégias adaptadas a cada
situação particular. Não é um modelo
aplicado de maneira uniforme, uma
vez que levamos em consideração as
especificidades regionais.
Na América Central, por exemplo,
os sete países da região (Belize, Costa
Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras,
Nicarágua e Panamá) desenvolveram
uma estratégia comum com o objetivo
de atenuar as mudanças climáticas e
adaptar-se a seus efeitos. Além de terem
sido consultadas, as mulheres foram
convidadas a compartilhar e aplicar seus
conhecimentos. Ao integrarmos suas
necessidades a essa nova estratégia,
conseguimos incorporar o aspecto
do gênero nas medidas que serão
implementadas quanto à atenuação dos
efeitos das mudanças climáticas.
Atualmente, mais de 25 países
estão dispostos a desenvolver ações
semelhantes, o que permitirá a redução
das diferenças que provocam uma
maior mortalidade entre as mulheress
Como esses novos projetos são
acolhidos pelas comunidades?
Algumas tribos indígenas da América
Central têm participado ativamente,
tanto no desenvolvimento dos
conhecimentos, quanto nos processos
de capacitação. Seus saberes são
fundamentais. No entanto, também
nos deparamos com certa relutância:
algumas comunidades têm medo de
que os erros do passado venham a se
repetir. Por exemplo, sabemos que 70%
das pessoas mais pobres do mundo
são mulheres, mas quando analisamos
os beneficiários da cooperação nos
projetos, percebemos que os recursos
quase não chegam às mulheres.
No entanto, também sabemos que,
ao receberem o benefício, 95% das
42 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
mulheres utilizam-no para melhorar
as condições de vida de suas famílias,
ao passo que essa porcentagem não
ultrapassa 15% quando os beneficiários
são homens. Essa é a razão pela qual
elas temem que esses projetos voltem
a beneficiar os homens, como ocorreu
no passado com os programas de
compensação financeira destinados a
comunidades rurais para o combate ao
desmatamento.
De maneira concreta, quais são os seus
temores em relação ao futuro?
Nós temos vários receios, porque
a maioria dos programas de
desenvolvimento realizados até
hoje não levam em consideração
as desigualdades entre os sexos, e
é exatamente isso o que queremos
evitar, para que não se repitam os
erros do passado. O Banco Mundial,
por exemplo, ao avaliar mais de 200
projetos relacionados ao uso dos
recursos hídricos, concluiu que os
mais eficazes foram aqueles que
promoveram a igualdade de gênero.
O que nós desejamos é chamar a
atenção do mundo para essa realidade:
que essa é uma batalha a ser vencida
e que estamos lutando para alcançar
esse objetivo. „
A costa-riquenha Lorena Aguilar é
a primeira latino-americana a ocupar
o cargo de conselheira mundial de
gênero na União Internacional para a
Conservação da Natureza (IUCN).
© Andrea Quesada-Aguilar
De que maneira as mudanças climáticas
afetam as mulheres?
As mulheres são mais vulneráveis,
sobretudo, em casos de catástrofes
naturais associadas às mudanças
climáticas. Ao procederem à análise
de 141 catástrofes em todo o mundo,
os pesquisadores da London School
of Economics chegaram à conclusão
que, nos países em que as diferenças
entre os sexos são mais acentuadas,
se registra um número de mortes de
mulheres até quatro vezes superior
ao de homens! Esse fato não está
relacionado à fraqueza das mulheres,
mas à sua falta de formação: uma
mulher que nunca foi à escola, ao ouvir
no rádio que estão previstas rajadas
de vento de 260 km/h, não vai dar a
devida importância a essa informação.
Ela não dispõe das ferramentas nem dos
conhecimentos suficientes para reagir a
essa ameaça.
O mesmo problema ocorre em
alguns países muçulmanos, nos quais as
mulheres, para saírem de casa, devem
estar acompanhadas por uma pessoa
do sexo masculino. Em Bangladesh, em
1991, um ciclone fez cerca de 150.000
vítimas, das quais no mínimo 90%,
eram mulheres! Em muitos casos, elas
recusaram-se a deixar suas casas sem
a companhia de um homem, ou não
sabiam nadar.
O estudo também constata que,
nos países em que as diferenças
entre homens e mulheres são menos
pronunciadas, uma catástrofe natural
causa um número semelhante de
vítimas de ambos os sexos. Nosso
trabalho na União Internacional para
a Conservação da Natureza (IUCN)
consiste em insistir no fato de que as
mulheres são agentes de mudança,
pois somos dotadas de saberes e
conhecimentos específicos, além de
termos o direito de tomar decisões e de
participar dos processos políticos.
J
Else Lasker-Schüler : A Pantera Azul e a Sexta-feira
(Der blaue Jaguar und Freytag), por volta de 1928.
© Galerie Michael Werner, Berlin, Köln and New York
Ela deixou a Argentina,
seu país natal, em 1974,
pouco antes da tomada do
poder pela junta militar, e
viajou para os EUA, China,
Japão, Itália... antes de ter
escolhido, sete anos mais
tarde, residir na França, em
Paris. Durante todos esses
anos, dezenas de figuras
femininas têm preenchido
sua solidão. Hoje, Luisa
Futoransky presta-lhes uma
homenagem.
Estrelas de minha
galáxia pessoal
“De onde você fala?”, essa era a pergunta
mais frequente feita pelas feministas da
década de 1960 às pessoas, conhecidas
ou não, que tomavam a palavra no
decorrer dos acalorados debates
da época. De onde você vem para
atrever-se, dessa maneira, a exprimir sua
opinião?
Estou falando, e não poderia ser
de outra maneira, de um território – o
meu – que, do ponto de vista da relação
entre o espaço e o tempo, já pode ser
considerado como antigo. Um território
ocupado, de uma extremidade à outra,
por um imaginário construído com base
no tesouro incomensurável que nos
é fornecido pelos livros, mas também
pela cartografia do real, uma vez que
a vida fez com que eu me agarrasse
à existência, em países que estavam
atravessando momentos cruciais de suas
histórias. Assim, a sorte permitiu-me sair
ilesa do continente latino-americano,
na época em que se encontrava sob
o jugo das piores ditaduras. E pude
acompanhar, com meus próprios olhos,
durante vários anos, as mudanças
vertiginosas ocorridas em países da Ásia,
como China e Japão.
Nessa caminhada, devo reconhecer
que nunca estive sozinha. Evolui em uma
galáxia de figuras femininas, unidas por um
imperativo comum: observar, exprimir-se e
criar, contra tudo e contra todos.
LUISA FUTORANSKY
Às vezes, parecia que recuávamos,
mas não, é que, nos momentos difíceis,
avançávamos como os caranguejos:
de lado.
Ao deixar meu próprio período
romântico, durante o qual fui quase
exclusivamente atraída por artistas cujas
existências foram marcadas por destinos
tristes e fins trágicos, como Silvia Plath,
Alejandra Pizarnik, Camille Claudel ou
Charlotte Salomon, comecei a admirar
a luta de combatentes obcecadas –
embora elas não tivessem as melhores
cartas nas mãos – como Janet Frame,
Else Lasker-Schüler, Tina Modotti ou
Frida Kahlo, entre outras. Sem esquecer
as grandes viajantes, como Isabelle
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 43
Eberhardt, Alexandra David-Neel, Freya
Stark ou Ella Maillart.
Ao ler estas linhas, fico com
a impressão de que, em minhas
relações, dei preferência ao que
designei como minhas “mal-amadas”.
Se aprofundarmos esse tema, o mito
fundador da mal-amada é Lilith, a
primeira mulher rebelde de Adão,
aquela que se encontra representada
em diferentes pórticos de catedral,
reivindicada, às vezes, por alguma
superstição ou obra literária. Vou
ilustrar essa representação com duas
figuras ambíguas e contraditórias que,
após longos sofrimentos impostos
por vicissitudes do corpo e tragédias
inacreditáveis, vivenciaram um
renascimento como o da fênix, do
tipo justiceiro e, na maioria das vezes,
anacrônico.
Eu gostaria de homenagear apenas
duas mulheres, entre as centenas a
quem eu desejaria prestar tributo. Os
limites deste texto não me permitem
fazer uma análise dessas grandes líderes
que são Golda Meir, Bandaranaike – mãe
e filha –, Indira e Sonia Gandhi, Benazir
Bhutto, Angela Merkel, Evita, Michelle
Bachelet ou Cristina Kirchner. Tampouco
seria possível deter-me – apesar de,
no fundo, continuar aplaudindo-as
– na tenacidade de uma Carla del
Ponte, de uma Mary Robinson, ou na
bravura de Karla Michel Salas e sua
luta incansável para instaurar, perante
a Corte Interamericana dos Direitos
Humanos, o processo relacionado
com o polêmico caso das mulheres
assassinadas em Ciudad Juárez (México).
Eu não poderia evocar, de forma mais
detalhada, Waris Dirie, primeira mulher
a denunciar publicamente a mutilação
genital feminina, prática essencialmente
africana; mas acredito que se deve
proclamar sua luta, em alto e bom
som, para que encontre eco em maior
número de pessoas. Há muito tempo,
aliás, ele tem sido reiterado por uma
centenária, dotada de invejável energia,
Rita Levi-Montalcini, apelidada “a dama
do neurônio”. Todos os dias, ela vai à
sede de sua fundação, em Roma, para
apoiar os programas de educação
destinados às mulheres africanas. Um
asteróide, descoberto em 1981, ostenta
seu nome, o que já é algo bastante
significativo.
O caminho da emancipação
empreendida pelas mulheres, há quase
100 anos, tem sido marcado por grandes
K
A poetisa alemã Else Lasker-Schüler, por volta de 1925. © Acervo particular
dificuldades e continua permeado de
ambiguidades, contradições, armadilhas
e confrontos intermináveis entre as
forças da luz e aquelas que se obstinam
a lançar-nos no reino das trevas. Ao
testemunhar os destinos de duas
escritoras, estas estrelas fulgurantes,
eu gostaria, aqui, de resgatá-las do
esquecimento: Else Lasker-Schüler e
Janet Frame.
Else Lasker-Schüler, uma estrangeira
em seu país
Há anos que sua fotografia e suas cartas
estão ao meu lado. Ela reúne elementos
tão diferentes, quanto o abandono e
a arrogância, a rebelião e a submissão.
E uma imensa privação e uma grande
miséria. No entanto, acima de tudo, Else
é uma voz interior, perseguindo, até
suas últimas consequências, a poesia,
a sua poesia. Um dom e um destino.
“Todo mundo aprecia minhas poesias,
mas ninguém se apaixona por mim”, ela
costumava a afirmar com lucidez e ironia
sarcástica.
As obras de Else Lasker-Schüler mencionadas neste
artigo estão expostas, de 21 de janeiro a 1º de
maio de 2011, no Museu para o Presente de Berlim
(Estação de Hamburgo). Essa exposição, organizada
pelo Museu Judeu de Frankfurt-am-Main, em
cooperação com a Galeria Nacional e o Museu
Estadual de Berlim, tem o apoio da Sociedade dos
Amigos da Galeria Nacional.
44 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
O destino de Else Lasker-Schüler
é paradoxal: na sua época, os nazistas
condenaram seus livros à fogueira, em
razão da “arte degenerada” (entartete
Kunst), pouco depois de lhe terem
concedido o Prêmio Kleist, distinção
máxima da literatura alemã. Em Israel,
ela não era apreciada, ou, dito por
outras palavras, seus livros não eram
lidos, porque ela escrevia no “idioma
do inimigo”, a língua amaldiçoada.
Atualmente, suas “pátrias malvadas” – a
Alemanha, sua terra natal, e Israel, a
terra onde se encontra sua sepultura
– disputam sua cidadania. Com efeito,
cada uma a reivindica como sua poetisa
nacional, atribuindo-lhe o qualificativo,
nada menos que isso, de “Musa de
Berlim” e “Estrela de Weimar”.
Else nunca se contentou com o
mundo tal como ele é. Em razão disso,
ela teve de transformá-lo e renomeou
as circunstâncias à sua maneira,
começando por si mesma. Ela fantasiava
sobre a sua idade, sobre a profissão de
seus avós, sobre o nome dos maridos
e dos amantes. A Sulamita, o príncipe
de Tebas, o príncipe Jussuf, o Tino de
Bagdá. A realidade era mais árida e,
muitas vezes, o sofrimento (a perda
precoce de um irmão e do filho único),
o terror (a ascensão do nazismo) e a
miséria (sua atividade como escritora
nunca lhe permitiu satisfazer suas
K Else Lasker-Schüler : O Príncipe Jussuf de Tebas, por volta de 1928, pastel e giz, nanquim, giz de cera e alumínio
sobre papel, 26,7 x 21,6 cm. © Jüdisches Museum Frankfurt am Main. Ursula Seitz-Gray.
necessidades básicas) vieram aninhar-se
nas paredes de subsolos tão úmidos e
sempre precários que lhe serviam de
moradia.
Um amigo meu, livreiro já idoso de
Jerusalém, lembrava-se de um encontro
com ela, no Attara, único bar reservado
aos insones da cidade na época:
vestida grotescamente, praticamente
aos farrapos, sempre excêntrica e sem
um centavo para pagar seu precário
consumo, ela retirava do peito, à frente
dele, pedacinhos de papel dourado,
como se tratasse de pedras preciosas ou
de sóis, para entregar ao garçom, que
ficava enfurecido com tal atrevimento.
O que faço aqui?, com esse título, o
editor Salman Shocken, refugiado nos
EUA, reuniu as correspondências que
ele havia mantido com a poetisa. Nessas
cartas, ela recrimina com amargura
a Jerusalém terrena: clima rigoroso,
descortesia dos habitantes e, em geral,
indigência da vida literária e cultural.
Em Else, no que se refere ao
desgosto, prevalece a nostalgia do
expatriado. Sua obra mais importante,
Meu piano azul (Mein blaues Klavier), é
dedicada a meus inesquecíveis amigos
e amigas das cidades da Alemanha – e
àqueles que, à semelhança do que se
passou comigo, foram expulsos e, agora,
estão espalhados por todo o mundo.
Com minha fidelidade!”
O julgamento lento e tardio da
posteridade acabou por reconhecer
o valor de Else. Em 20 de novembro
de 2003, em seu discurso por ocasião
do recebimento do Prêmio Nobel de
Literatura, Elfriede Jelinek prestou-lhe homenagem: “enquanto aluna,
adorava a figura extravagante, exótica
e multicolorida de Else Lasker-Schüler.
Eu desejava, a qualquer preço, escrever
poemas como ela, e, mesmo que eu não
os tenha escrito, fui consideravelmente
influenciada por ela”.
Janet Frame, à beira do alfabeto
Na década de 1950, os distúrbios
mentais eram tratados à base de
eletrochoques: Janet Frame foi
submetida à cerca de 200. Eles foram
aplicados por pessoas obstinadas, com
plena consciência ou indiferentes, no
entanto, esse procedimento não afetou
em nada sua paixão pela escrita.
A lenda de sua vida alimenta-se de
literatura. Em 1952, ela estava prestes
a ser operada no hospital Seacliff de
Otago, na Nova Zelândia. Diagnóstico
J
Janet Frame, romancista e poetisa neozelandesa
(1924-2004).
© Janet Frame Estate/Reg Graham; Janet Frame Literary
Trust; www.janetframe.org.nz
(errôneo, conforme apurado mais
tarde): esquizofrenia. Chegam a
propor-lhe uma lobotomia para que ela
venha a recuperar sua “normalidade”.
Contudo, foi então que, contra todas as
expectativas, surge a fada madrinha da
literatura: sua primeira coletânea,
O lago: histórias, recebe o prêmio de
maior prestígio do país.
Foi um milagre que o cirurgião Blake
Palmer e a burocracia do hospital Otago
tenham lido na imprensa, nesse dia,
que o júri acabava de atribuir o Prêmio
Hubert Igreja de Prosa à internada Janet
Frame.
Vamos situá-la no espaço e no
tempo: ela nasceu em Dunedin, em 28
de agosto de 1924, e deixou-nos, em 29
de janeiro de 2004.
Um Anjo em Minha Mesa, filme de
Jane Campion, que, em 1990, se inspirou
na autobiografia em três volumes de
Janet Frame, recebeu o Prêmio Especial
do Júri no Festival de Veneza e suscitou
admiração internacional pela escritora.
A reação de Janet foi a seguinte :
“antes do filme de Jane Campion, eu
era considerada uma escritora maluca.
Agora, sou uma escritora maluca e
obesa”. Sua especialidade consiste em
analisar tudo meticulosamente, sem
medo de ser atingida em seu amor
próprio. Ela nunca deixou de pensar na
amiga Nola e em todas aquelas pessoas
que, não tendo chegado a livrar-se da
lobotomia por nenhum prêmio literário,
foram transformadas irreversivelmente
em zumbis silenciosos e dóceis.
Janet Frame é a escritora mais
penetrante e mais brilhante que se
ela não conseguiu encontrar trabalho,
em decorrência de seus antecedentes
psiquiátricos. Novamente, o estigma
da doença mental, e, novamente,
por sua própria iniciativa, ela volta a
ser internada, desta vez, no hospital
Maudsley. A fada fez sua terceira visita,
sob a figura do médico Alan Miller, que
rejeita o diagnóstico inicial, livrando-a
de qualquer tipo de esquizofrenia. Ele
incentiva-a a fazer terapia analítica e a
exorcizar toda sua trajetória, servindo-se
das palavras para exprimir o que ela
tinha vivenciado.
Em conformidade com a força
mágica dos números, tendo escrito
sete romances, ela voltou à Nova
Zelândia sete anos mais tarde. E a vida
continuava.
A partir de então, houve uma
sucessão de prêmios, bolsas,
residências de escritores, diplomas,
viagens e doutorados honoris causa,
assim como controvérsias em torno
de sua obra e de sua pessoa, além de
indicações periódicas ao Prêmio Nobel,
que, até agora, não lhe foi atribuído.
“À beira do alfabeto, onde todas
as palavras desmoronam e todas as
formas de comunicação entre os vivos
não têm sentido”, escreve ela. Com
toda a razão!. „
Luisa Futoransky, Luisa Futoransky,
nascida em Buenos Aires (Argentina),
em 1939, escreve em vários estilos:
é poetisa, romancista, tradutora,
jornalista e ensaísta. É autora, em
particular, de Contos chineses (Son
contos chinos), Partir, digo, De Pe à Pa
(De Pe a Pa) A formosa (El formosa) e
Luas de mel (Lunas de miel).
(seu site, em espanhol, é: http://www.
luisafutoransky.com.ar)
© Tamara Pince
atreveu a explorar a loucura, com base
em seu interior. Em suas obras, ela
define-se como “a sem-teto do ego”.
Em sua obra, Rostos na água, ela
observa que a loucura definitiva ou
a morte nunca ocorrem, quando são
procuradas ou convocadas. Frame
instala sua voz em outro mundo, o dos
vencidos, no próprio avesso da trama,
por trás das grades, dos sedativos e das
camisas de força: seu testemunho é o
dos corpos e do pensamento confinado
na prisão que é o asilo.
Como ela iria aprender por conta
própria, existe uma hierarquia entre os
pacientes: há os “bons”, os “birutas” e
os desobedientes, os que, a exemplo
dela, não renunciam a pensar. Para
estes, é reservado o eletrochoque, uma
armadilha que volta a fechar-se “nas
trevas do abismo”.
Os filhos da família Frame eram
cinco: um rapaz e quatro moças. O
pai era ferroviário; a mãe, empregada
doméstica, que esteve a serviço, durante
algum tempo, da família da escritora
Katherine Mansfield.
Várias tragédias marcaram
profundamente a vida dessa família:
em um lapso 10 anos, duas meninas
morreram afogadas. Por sua vez, o rapaz
era epiléptico.
Rejeitada na infância por seu físico
pouco atrativo, Janet foi alvo de chacota,
na adolescência, por sua excessiva
timidez. Após uma tentativa de suicídio,
um professor pelo qual se apaixonara
chegou a convencê-la a internar-se.
Em decorrência disso, ela permaneceu
quase oito anos no hospital psiquiátrico,
“uma terra eterna do presente, sem
horizontes para acompanhá-la”.
Segunda intervenção notável
da fada madrinha dos escritores: na
sequência do pesadelo hospitalar, ela
conheceu Frank Sargeson, mentor
da nova safra de escritores da Nova
Zelândia, quem iria alimentar seu apetite
insaciável pela leitura, convencendo-a
a escrever em tempo integral. Com
essa finalidade, Sargenson ofereceu-lhe a possibilidade de instalar-se em
um galpão de sua propriedade, em
Takapuna, ao norte de Auckland. Um
ano depois, ela concluiu seu primeiro
romance, As corujas realmente choram
(Owls do cry). Sargeson iria ajudá-la
também a juntar os recursos necessários
para uma temporada na Europa.
Londres, Paris, Barcelona, Ibiza e,
mais uma vez, Londres, cidade onde
46 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
Michelle Bachelet, nascida em 1951, é diretora-executiva da ONU Mulheres, desde 2010. Ela foi
presidente do Chile, de 2006 a 2010.
Chandrika Bandaranaike, nascida em 1945, foi
presidente do Sri Lanka, de 1994 a 2005.
Sirimavo Bandaranaike (1916-2000) foi
primeira-ministra do Sri Lanka em três ocasiões,
entre 1960 e 2000.
Benazir Bhutto (1953-2007) foi, em duas
ocasiões, primeira-ministra do Paquistão.
Jane Campion, nascida em 1954, é cineasta e
cenarista neozelandesa.
Camille Claudel (1864-1943) artista plástica
francesa.
Alexandra David-Neel (1868-1969), orientalista
franco-belga, foi também cantora de ópera,
jornalista, escritora e exploradora.
Carla Del Ponte, nascida em 1947, é magistrada.
Ex-procuradora do Tribunal Penal Internacional
para a ex-Iugoslávia (TPIY) e do Tribunal
Penal para a Ruanda (TPIR), é, desde 2008,
embaixadora da Suíça na Argentina.
Waris Dirie, nascida em 1965, na Somália, é
embaixadora da Boa Vontade do Fundo de
População das Nações Unidas (UNFPA).
Isabelle Eberhardt (1877-1904) escritora suíça.
Janet Frame (1924 - 2004) romancista e poetisa
neozelandesa.
Indira Gandhi (1917-1984) foi primeira-ministra
da Índia, de 1966 a 1977, e, em seguida, de 1980
até sua morte.
Sonia Gandhi, nascida em 1946, na Itália,
ingressou no cenário político indiano, em 1991,
na sequência do assassinato do marido, o
primeiro-ministro Rajiv Gandhi.
Elfriede Jelinek, nascida em 1946, na Áustria,
recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 2004.
Frida Kahlo (1907-1954) pintora mexicana.
Cristina Kirchner, nascida em 1953, é
presidente da Argentina, desde 2007.
Else Lasker-Schüler (1969-1945) poetisa alemã.
Rita Levi-Montalcini, nascida em 1909, na Itália,
recebeu o Prêmio Nobel de Medicina, em 1986.
Ella Maillart (1903-1997) exploradora, escritora
e fotógrafa suíça.
Katherine Mansfield (1888-1923) romancista e
poeta neozelandesa.
Golda Meir (1898-1978) foi ministra das
Relações Exteriores e primeira-ministra de Israel.
Angela Merkel, nascida em 1954, é chanceler da
Alemanha, desde 2005.
Karla Michel Salas, advogada mexicana,
recebeu o Prêmio Direitos Humanos 2010 do
Conselho Europeu dos Advogados.
Tina Modotti (1896-1942) fotógrafa italiana.
Evita, ou melhor Eva Perón (1919-1952) foi
primeira-dama da Argentina, de 1946 até sua
morte.
Alejandra Pizarnik (1936-1972) poetisa
argentina.
Silvia Plath (1932-1963) poetisa norte-americana.
Mary Robinson, nascida em 1944, foi a primeira
mulher presidente da Irlanda, de 1990 a 1997.
Em seguida, assumiu a função de alta comissária
das Nações Unidas para Direitos Humanos, de
1997 a 2002.
Charlotte Salomon (1917-1943) artista plástica
e pintora alemã.
Freya Stark (1893-1993) escritora e exploradora
britânica.
Madre Teresa
a mulher mais poderosa do mundo
Ela dedicou sua vida aos
desfavorecidos e deixou
como herança uma obra de
envergadura internacional.
Esboçado por um hindu, este
é o retrato de uma católica
albanesa nascida sob o
Império Otomano, na cidade
de Skopje1, e falecida em
Calcutá, na Índia, Prêmio
Nobel da Paz de 1979 e
beatificada em 2003 pelo
papa João Paulo II: Madre
Teresa de Calcutá (1910-1997).
NAVIN CHAWLA
Madre Teresa, com quem mantive
contato durante 23 anos, era uma
personalidade com múltiplas facetas, ao
mesmo tempo simples e complexa. Ela
dedicava-se inteiramente àqueles que
encontrava em seu caminho – pobres,
ricos, pessoas com deficiências, pessoas
com hanseníase e indigentes – e, ao
mesmo tempo, dirigia uma poderosa
congregação religiosa, as Missionárias da
Caridade, implantada em 123 países até
1997, o ano de sua morte. Restaurantes
comunitários, escolas, hospícios,
albergues, orfanatos para crianças com
hanseníase ou abandonadas, centros
de desintoxicação e serviços de visita
a domicílio para pessoas doentes e
idosos – tudo isso representa a força de
sua obra. E tudo isso foi construído de
forma meticulosa e paciente pelas irmãs
e irmãos de sua ordem.
Foi por acidente que escrevi a
biografia de Madre Teresa. Eu já a
conhecia há vários anos e colaborava
com ela em suas atividades em Nova
1. Capital da República da Macedônia que, até 1991,
fazia parte da Iugoslávia.
K
Madre Teresa, rodeada por Navin Chawla e sua família. © Navin Chawla
Deli. Certo dia, ela me contou algo
muito engraçado, e ambos rimos com
a história. Foi então que me dei conta
de que esse traço de sua personalidade
ainda não havia sido relatado nos
livros já publicados sobre essa mulher.
“Talvez eu devesse escrever um livro”,
eu disse. Aparentemente, ela não
estava disposta a aceitar essa ideia: “já
existem tantos livros!”. Então, deixei
escapar estas palavras: “será que
somente católicos podem escrever a
seu respeito? Um funcionário hindu não
teria autorização para fazer isso?”. Eu
me arrependi imediatamente de minhas
palavras e me deixei invadir por um
silêncio constrangido, porque eu sabia
perfeitamente que ela nunca seria capaz
de discriminar alguém. No entanto, ela
levou minha pergunta a sério e disse:
“Tudo bem, mas não escreva sobre mim,
mas sobre as nossas ações”.
Apesar de ser profundamente
católica, Madre Teresa não tinha
uma concepção sectária da religião.
Convencida de que cada pessoa de
que cuidava era a encarnação do Cristo
sofredor, ela dispunha-se a ajudar seu
semelhante, sem qualquer distinção
de crença. Essa fé que fazia parte de
sua natureza exasperava seus críticos,
que a consideravam como o símbolo
de uma conspiração de direita, ou pior
ainda, como a porta-voz das posições do
Vaticano contra o aborto. Essa espécie
de crítica nunca repercutiu na Índia, país
no qual Madre Teresa era respeitada e
venerada por um grande número de
pessoas.
Certo dia, chamei sua atenção para
o fato de que ela era a mulher mais
poderosa do mundo. “Como assim?”,
respondeu ela. “Se isso fosse verdade, eu
traria a paz para o mundo”. Pergunteilhe, então, por que ela não utilizava
sua inegável influência para apaziguar
os conflitos, ao que ela retrucou: “as
guerras são consequências da política.
Se eu estivesse na política, eu deixaria de
amar: ficaria limitada a apoiar algumas
pessoas, quando meu dever é ser
solidária a todos”.
Os legados e os donativos recebidos
pela ordem de Madre Teresa eram
sempre bem-vindos e investidos
imediatamente para atender às
necessidades mais urgentes. Contudo,
sua lembrança mais viva era o que ela
chamava de “dinheiro sacrificado”:
como o do mendigo de Calcutá que lhe
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 47
Alto funcionário público aposentado,
o indiano Navin Chawla manteve
contato, durante vários anos, com
Madre Teresa de Calcutá. Ele é o autor
de uma biografia sobre a fundadora
das Missionárias da Caridade.
O centenário de nascimento de
Madre Teresa de Calcutá está sendo
comemorado, em todo o mundo, entre
agosto de 2010 e agosto de 2011.
48 . O CORREIO DA UNESCO
Manuela
Sáenz
© Oscar Monsalve, Coll. Casa Museo Quinta de
Bolivar, Ministère de la Culture de Colombie, Bogota
entregou algumas moedas recebidas
durante um dia inteiro, ou o do jovem
casal hindu que se amava tanto e que,
ainda assim, decidiu renunciar à festa de
casamento para lhe oferecer a quantia
que tinham poupado.
Antes de sua morte, eu manifestei
minhas preocupações sobre o futuro da
organização que ela tinha criado. Eu já
havia assistido à decadência de outras
instituições, a partir do falecimento
de seus fundadores carismáticos. Na
primeira vez em que lhe fiz a pergunta,
ela apenas levantou as mãos para o céu.
Na segunda vez, ela não me respondeu
diretamente, mas disse com um sorriso:
“em primeiro lugar, deixe-me ir embora”.
Diante da minha insistência, ela acabou
por responder: “você já visitou muitas
de nossas casas na Índia e no exterior.
Por toda parte, as irmãs vestem os
mesmos saris, comem o mesmo tipo
de comida, fazem o mesmo trabalho.
Madre Teresa não está em todos os
lugares e, no entanto, o trabalho não
deixa de ser feito.” Em seguida, ela
acrescentou: “enquanto permanecermos
comprometidos com os mais pobres dos
pobres e não estivermos a serviço dos
ricos, nossa obra irá prosperar”.
Como sou hindu e apenas um pouco
eclético, creio que precisei de mais tempo
do que outros para compreender que
Madre Teresa vivia permanentemente
com Cristo, não só durante a missa, mas
também quando ela oferecia ajuda a
alguém. No seu entender, o Cristo
crucificado não era diferente dos
moribundos que jaziam em seu hospício
de Kalighat. Para Madre Teresa, amar
o próximo era amar a Deus. Essa era a
única coisa importante para ela, e não a
amplitude de sua obra ou o poder que os
outros lhe atribuíam. Aliás, certo dia ela
me explicou isso com palavras simples e
que falam por si: “somos chamados não
para obter sucesso, mas para ser fiéis à
nossa missão”. „
guerreira à
serviço da
América Latina
LAUTARO POZO
A comemoração do bicentenário
das independências latino-americanas (2009-2011) tem sido uma
oportunidade para a historiografia oficial exaltar heróis esquecidos
ou desconhecidos, entre eles a equatoriana Manuela Sáenz
Aizpuru. Nascida no final do século XVIII, aquela que Simón Bolívar
chamava de “a libertadora do Libertador”, sobreviveu em algumas
memórias apenas como a pessoa que salvou a vida de Bolívar, em
uma tentativa de atentado em Bogotá, capital da Colômbia,
em 1828.
Nessa época, essa lindíssima mulher,
fervorosa admiradora de Bolívar, já
havia desempenhado várias façanhas
militares. Desde 1809-1810, ainda
adolescente, ela apoiou os insurgentes
em sua cidade natal de Quito
(Equador), na qual começou a luta pela
independência de seu país. Em 1821,
ela participou da libertação de Lima
(Peru), cidade onde se casou e onde
foi condecorada como “Cavaleira da
Ordem do Sol”, pelo general San Martín.
Após o retorno a Quito, ela participou
da batalha de Pichincha, que consagrou
a independência da Colômbia.Em 24 de
maio de 1822, por ocasião da entrada
triunfal do Libertador na mesma
cidade, os dois heróis encontraram-se,
permanecendo juntos até a morte de
Bolívar, em 1830.
Em 1823, Manuela tornou-se
sua secretária e arquivista oficial.
Conselheira experiente e dotada de
apurado senso político, ela sempre
atuou nos bastidores em favor desse
homem ilustre, como confidente e
mediadora dos grandes líderes militares,
desde Sucre até San Martín.
Acima de tudo, ela fez milagres
nos campos de batalha, ocupando-se
do recrutamento, do fornecimento de
armas e de alimentos, da organização,
do tratamento aos feridos, além de
estar presente, sem poupar esforços,
em todos os postos em que pudesse
ser útil. Manuela anotou em seu
diário: “(...) nós recrutamos aldeias
inteiras para a revolução, para a
pátria. Algumas mulheres costuravam
uniformes, enquanto outras tingiam
tecidos (...). Às crianças que estavam
conosco pedíamos que trouxessem
pedaços de ferro e de estanho para que
pudéssemos derretê-los e transformálos em espingardas, canhões, pregos,
ferraduras etc. Em suma, eu era uma
verdadeira comissária de guerra, que
não teve nenhum descanso até que a
nossa revolução triunfasse.”
Em 1824, após a batalha de Junín,
decisiva para a independência do
Peru, ela obteve a patente de capitã
de cavalaria e, em seguida, a de
coronela do exército colombiano. Essa
equatoriana incansável acabou seus
dias exilada em Paita (Peru), onde
morreu em 1856.
Entretanto, sua história ainda
teve continuidade, porque um século
e meio mais tarde, em 2007, ela foi
postumamente promovida à patente de
generala da República do Equador, pelo
presidente Rafael Correa. „
Lautaro Pozo é embaixador
delegado permanente do Equador
junto à UNESCO.
Post-scriptum
“Ao receber a notícia da morte de Édouard Glissant, fui invadido por grande número de
imagens que testemunham longo e fecundo companheirismo”. É com essas palavras que o
escritor guadalupiano, Ernest Pépin, começa a vibrante homenagem intitulada “Uma alma
inquieta do mundo” (Une âme inquiète du monde!). Publicamos um trecho desse texto, em
memória de Édouard Glissant, diretor de redação do Correio da UNESCO de 1982 a 1988.
A princesa Loulwah considera que a Arábia Saudita passa atualmente por “um período
fascinante”. Mais que isso, ela acredita que a verdadeira riqueza de seu país não é o petróleo,
mas a juventude. A princesa Loulwah da Arábia Saudita responde às perguntas de Linda Tinio
(do Bureau de Planejamento Estratégico da UNESCO)..
A obra de três gigantes da poesia mundial forma a trama do novo projeto da UNESCO
“Tagore, Neruda, Césaire, por um Universal Reconciliado”. Inaugurado em junho de 2011,
tem como objetivo suscitar a reflexão sobre os valores universais da humanidade nos círculos
acadêmicos e artísticos..
Post-scriptum
Homenagem a
Édouard Glissant
“Ao receber a notícia da
morte de Édouard Glissant,
fui invadido por grande
número de imagens que
testemunham longo e
fecundo companheirismo”.
Com essas palavras é que
o escritor guadalupiano,
Ernest Pépin, começa a
vibrante homenagem
intitulada “Uma alma
inquieta do mundo” (Une
âme inquiète du monde!).
Publicamos um trecho
desse texto, em memória
de Édouard Glissant, diretor
de redação do Correio da
UNESCO de 1982 a 1988.
ERNEST PÉPIN
No furor de suas obras poéticas,
dramáticas, romanescas e teóricas, às
vezes é difícil acompanhar as marcas
do pensamento de Édouard Glissant.
No entanto, elas atraem-nos como
esse campo de ilhas que ele pretendeu
construir no ápice do Todo-Mundo (ToutMonde). Ao ampliar incessantemente os
círculos concêntricos de uma escrita em
estado de alerta, ele acabou irrigando
um “sistema” proteiforme de rara
densidade [...].
1. Título de um romance publicado em 1993 e de
uma obra teórica editada em 1997, Tout-Monde
(Todo-Mundo) tornou-se um dos conceitos
fundadores do pensamento universalista de
Édouard Glissant. O Institut du Tout-Monde foi
inaugurado em Paris com o apoio do Conselho
Regional do Departamento de Île de France e do
Ministério do Ultramar francês. Disponível em:
<www.tout-monde.com>.
© UN Photo/ Jean Marc Ferré
Pensar o
Tout-Monde1
Para Glissant, o Todo-Mundo não
significava obedecer às hipocrisias da
globalização. Ao contrário, significava substituir o mito da identidade
imutável pelo “terremoto” do mundo.
Como expressa seu caráter inesperado
e imprevisível. Ou, dito por outras
palavras, sua “mundialidade”!
Ao questionar o mundo em seu
movimento incessante, Glissant
ensinou-nos a renunciar à idéia de
unidade nivelante e, em última instância,
imperialista.
Ele tornava impossível qualquer
assimilação e conduzia-nos a privilegiar
as fricções, os raios fulminantes,
as variações de uma heterogênea
efervescência intelectual e cultural.
Aquilo que permite a um francês ser um
chinês, a um chinês ser um caribenho,
a um caribenho ser um finlandês, sem
que, no entanto, se renuncie a si mesmo.
Glissant ensinou-nos a plasticidade
contra a rigidez. Atualmente, basta olhar,
ouvir alguns jovens para compreender
essa forma alternativa de pensamento
do mundo e de si. Glissant ensinou-nos
que a identidade não é um rosário que
se recita, mas um risco que se enfrenta
com o imaginário do mundo; não é um
repúdio dos outros, mas uma abertura
aos outros. “Perda de si!”, gritam os
nostálgicos da “pureza”. Não, respondia
Glissant, mas autorreorganização na
instabilidade criativa do mundo!
De fato, ele deixou como legado um
pensamento habitável para o século XXI.
Outros condenariam os componentes do
50 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
mundo a um confronto sem fim e sem
objetivo. Pensamento do habitar fora de
qualquer confinamento!
Suas obras recentes consolidaram
esse pensamento do Todo-Mundo. Os
lugares escapam aos estorvos nacionais.
As relações transcendem as fronteiras.
Os intercâmbios suprimem as solidões,
arrastando em sua esteira a identidade-mundo. Uma identidade sem hierarquia
de culturas, sem imperialismo, sem
exclusão nem exclusiva, capaz de aceitar
sem repugnância as formas imprevistas
da criação do homem pelo homem!
Porque este era o desafio: a
humanização de um mundo consciente
e responsável por sua diversidade!
Podemos absorver de tal obra e de
tal questionamento a sua indisciplina.
Denomino indisciplina o não respeito
a teorias pré-fabricadas, escritas imóveis,
estéticas convencionais. Ainda não foi
suficientemente salientado que Glissant
se situa em um pensamento dissidente
ou, se preferirmos, de ruptura.
Ruptura com o discurso europeu e
eurocêntrico.
Ruptura com o discurso
anticolonialista estático.
Ruptura com o discurso da
identidade prisioneiro do essencialismo.
Ruptura com a hegemonia
dissimulada que é a globalização.
Ruptura com as lacunas da
linguagem.
Ruptura com a ditadura das línguas
imperiais.
Enfim, ruptura com certa concepção
da literatura!
Por trás de cada ruptura, emerge a
adesão a outros valores, a outras formas
do conhecimento, a outras estéticas da
escrita, a outras funções do escritor e do
ser humano.
Glissant não nos convidava a
acompanhar o mundo; ele convidava-nos a passar a sua frente e a esperá-lo
em um lugar que não era seu destino!
Ao invés de convidar-nos a escrever,
ele convidava-nos a produzir uma obra.
Ao invés de convidar-nos a procurar
a transparência, ele convidava-nos a
respeitar as opacidades.
Post-scriptum
Se prestarmos bem atenção, ele
ergueu-se em total solidão, contra o mais
letal dos imperialismos: um pensamento
mutilado e mutilante a respeito do
mundo. Esse é o motivo pelo qual ele
irá permanecer como o homem que
derrubou os compartimentos estanques,
sem deixar de manter-se fiel à sua
Martinica e ao Caribe.
Ele tinha diante de si o enorme
continente da negritude, o soberano
império de um pensamento ocidental,
cujos críticos ele admirava (Rimbaud,
Breton, Arthaud, Segalen etc.). Ele
escolheu construir sua própria catedral,
recusando-se a ser colonizado. Em sua
honra, ela sempre foi erguida sobre
o alicerce da emancipação humana,
como é evidenciado pela criação do
Instituto Martinicano de Estudos (Institut
martiniquais d’études) e da revista
Acoma, por sua fiel dedicação ao Prêmio
Carbet do Caribe, pelo lançamento do
Prêmio Édouard Glissant, pela fundação
do Instituto do Todo-Mundo etc. Raros
foram aqueles que verdadeiramente
o compreenderam! Muitos tiveram
admiração por ele! É chegada a hora de
ler seus textos!
Para mim, escritor, originário de
Guadalupe, Glissant proporcionou a
amplitude de suas questões, o fervor
e a generosidade de suas respostas e
a exigência de habitar o mundo sem
qualquer chauvinismo.
Que sejamos gratos a ele por tudo
isso! „
A ASSINATURA INDELÉVEL DE ÉDOUARD GLISSANT
“A miscigenação [no Caribe] não é um consentimento passivo de valores
impostos”, afirmava o escritor martinicano, Édouard Glissant, em um artigo
publicado no Correio da UNESCO, em 1981, sob o título “A vocação de
compreender o outro”. Esse texto havia sido escrito um ano antes da nomeação
de Glissant para o cargo de diretor da redação desse periódico, que ele iria
dirigir até 1988. “O Caribe aparece […] como lugar exemplar da Relação, espaço
em que várias nações e comunidades – cada uma com suas originalidades –
não deixam de compartilhar o mesmo futuro”; eis a opinião desse pensador
do universal, a quem devemos o conceito de Todo-Mundo. Ele considerava
miscigenação como encontro das diferenças, ao invés de defini-la como simples
mistura de culturas, contribuindo assim para forjar a noção de diversidade
cultural defendida constantemente pela UNESCO.
Alguns meses depois de ter assumido a direção da redação do Correio
da UNESCO, Édouard Glissant publicou número intitulado “Guerra à guerra:
a palavra aos poetas” (novembro de 1982), com a participação de escritores
eminentes, como Adonis, Guinsberg, Labou Tan’si, Voznesensky, para citar
apenas alguns nomes.
Pouco depois, foram lançados edições dedicadas a “Teatros do mundo”,
“Civilizações do mar”, “Artes da América Latina”, “História do Universo”... O tom
tinha sido dado: o Correio da UNESCO afirmou-se internacionalmente como
fórum aberto para debates intelectuais. Esta “assinatura” de Édouard Glissant
deixa sua marca indelével nas páginas da nossa revista. – J. Šopova
Acesso aos artigos de Édouard Glissant publicados no Correio da UNESCO
http://www.unesco.org/new/fr/unesco-courier/edouard-glissant/
Visite igualmente o site de Édouard Glissant : www.edouardglissant.fr
L Édouard Glissant foi sepultado em 9 de fevereiro de 2011, no cemitério do Diamante, na Ilha de Martinica, nos arredores desse memorial aos escravos, em Anse Cafard.
© Elena Spasova
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 51
Post-scriptum
© UNESCO/Michel Ravassard
Em perspectiva
A nossa riqueza
é a juventude
A que a Sra. atribui os avanços obtidos
pela Arábia Saudita quanto a educação
primária para todos, um dos Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio?
Esse objetivo sempre foi planejado
com antecedência e de acordo com
as necessidades do país. Aliás, nunca
hesitamos em recorrer à assistência da
UNESCO ou das Nações Unidas para
que participem em tais esforços de
planejamento. Quanto à obtenção de um
sistema educativo perfeito, penso que se
trata de algo fora do alcance de qualquer
Estado. Entretanto, na Arábia Saudita,
conseguimos atingir o objetivo que
havíamos previamente fixado: fornecer
serviços eficazes à população e atender
às necessidades do país.
Há perspectivas de maior abertura
internacional para o sistema educativo
da Arábia Saudita?
Sempre houve intercâmbios com
outros países. Se observarmos a história
do nosso sistema de ensino, desde
a época do rei Abdelaziz (fundador
do reino da Arábia Saudita, no século
XIX), constatamos que, já naquela
época, estudantes eram enviados para
universidades em todo o mundo para
obter especialização em diferentes
áreas. Nosso sistema é internacional.
Neste momento, estamos construindo o
futuro em grande número de disciplinas.
Trata-se de um período fascinante para a
Arábia Saudita; com modelos formidáveis,
como a Universidade do rei Abdallah.
Atualmente, estamos concentrando
nossos esforços em pesquisa, um
setor que foi dinamizado, graças à
A princesa Loulwah considera que a Arábia Saudita passa
atualmente por “um período fascinante”. Mais que isso,
ela acredita que a verdadeira riqueza de seu país não é o
petróleo, mas a juventude.
A PRINCESA LOULWAH da Arábia Saudita responde às perguntas de
Linda Tinio, do Bureau de Planejamento Estratégico da UNESCO
criação dessa universidade, focalizada
precisamente nessa área.
Qual é o papel da Arábia Saudita
na promoção do diálogo entre as
culturas?
A iniciativa para esse diálogo partiu do
rei, tanto na Arábia Saudita quanto no
exterior. Ele é o principal incentivador.
A Arábia Saudita sempre acreditou no
diálogo. É muito importante. Não se
consegue nada sem o diálogo. Creio que
todos os projetos apresentados pelo rei –
seja em matéria religiosa, cultural, pessoal
ou política – baseiam-se nesse princípio.
Espero sinceramente que o resto do
mundo possa seguir seu exemplo.
“Neste momento, estamos
construindo o futuro em grande
número de disciplinas. Trata-se
de um período fascinante para a
Arábia Saudita.”
Como a Sra. encara o futuro das
relações entre a UNESCO e a Arábia
Saudita?
Nossa colaboração com a UNESCO não
se limita à Fundação do Pensamento
Árabe: temos colaborado em várias
áreas. Espero que a universidade pela
qual sou responsável (Universidade de
Effat – Effat College) venha a colaborar
também com a UNESCO. Ainda não
somos muitos a garantir suporte às
ações da Organização, tampouco para
receber os benefícios do esplêndido
trabalho efetuado pela UNESCO no
mundo. A UNESCO é, acima de tudo,
52 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
um espaço para o diálogo, assim como
a política da Arábia Saudita. E isso só
pode melhorar.
Qual é, atualmente, o lugar da geração
jovem na Arábia Saudita??
A juventude é a nossa verdadeira
riqueza, e não o petróleo. Devemos,
com isso, orientar nossa ação em
favor de seu pleno desenvolvimento.
Pertenço a uma geração que fez
tudo por seu país. A geração que me
precedeu e que havia construído o
país também se dedicou inteiramente
à sua pátria. Agora, portanto, devemos
permitir que a próxima geração venha a
fazer o mesmo.
Sua Alteza Real, a princesa Loulwah
Al-Faysal dedica-se à educação das
mulheres, assim como à ação social e
familiar. Desde 1994, ela dirige o Centro
Cognitivo e de Desenvolvimento de
Habilidades Al-Maharat (Al-Maharat
Cognitive and Skill Development
Center) de Jedá. E, desde 1999, ocupa
cargos proeminentes no Conselho
de Administração da Dar Al-Hanan
School e da Universidade de Effat (Effat
College), dois estabelecimentos de
ensino reservados às mulheres.
Esta seção, lançada pelo Bureau de
Planejamento Estratégico (BSP), no âmbito do
Programa de Prospecção da UNESCO aborda
temas de interesse para o público em geral e
para os Estados--membros da Organização. Ela
expõe opiniões, a fim de fortalecer a reflexão,
o planejamento e a ação da UNESCO em suas
diferentes esferas de atuação.
Post-scriptum
Pensamento universal
Tagore, Neruda, Césaire
a poesia a serviço
de um novo humanismo
NOÉMIE ANTONY e
JASMINA ŠOPOVA
“Mesmo que cada um tenha evoluído em esferas culturais distintas e sem praticamente
se terem encontrado no decorrer de suas vidas, esses três gigantes do pensamento e
da poesia desenvolveram visões convergentes “, afirma Irina Bokova, diretora-geral da
UNESCO, ao falar de Rabindranath Tagore, Pablo Neruda e Aimé Césaire.
A obra desses três gigantes da poesia
mundial – nascidos, respectivamente,
na Índia, no Chile e em Martinica –
constitui a trama de um novo projeto da
UNESCO: Tagore, Neruda, Césaire, por
um Universal Reconciliado. Inaugurado
em junho de 2011, tem como objetivo
suscitar a reflexão sobre os valores
universais da humanidade nos círculos
acadêmicos e artísticos.
“A ideia do projeto foi lançada, em
2008, por Olabiyi Babalola Joseph Yai,
delegado-permanente de Benin junto
à UNESCO e presidente do Conselho
Executivo da Organização”, explica
Françoise Rivière, que, na ocasião,
exercia a função de subdiretora-geral da
UNESCO para a Cultura. “Ele foi apoiado
pelas delegações permanentes do
Chile, da França e da Índia”, acrescenta
ela, antes de abordar o objetivo
propriamente dito: “tratava-se, acima
de tudo, de estabelecer um vínculo
entre esses escritores – que haviam
marcado sua época – e o atual contexto
mundial, observando os problemas
contemporâneos, à luz da obra de cada
um deles”.
“A poesia é sempre um ato de
paz. O poema nasce da paz
como o pão nasce da farinha.”
Pablo Neruda
Entre as questões que atualmente
se formulam com maior acuidade
está a temática relativa à alteridade,
que chama particularmente a atenção
desse projeto, como é sublinhado por
uma de suas criadoras, Annick Thébia-
-Melsan. “A relação com o outro deixou
de ser uma questão teórica”, afirma
essa especialista em Aimé Césaire,
que publicou uma entrevista com o
criador do movimento da Negritude,
no Correio da UNESCO, em maio de
1997. “Nunca chegamos a conceber
nossa singularidade como o oposto
e a antítese da universalidade […].
Nosso pensamento predominante
foi sempre uma preocupação
humanista, e pretendemos que ela
criasse raízes”, assim afirmava o poeta
martinicano, que acrescentava: “pelo
aprofundamento do singular é que
se vai ao universal”. Rabindranath
Tagore já tinha feito tal afirmação,
com palavras que lhe são peculiares,
na carta enviada a um amigo, datada
de 1921: “em sua essência, todos os
homens são dwija, nascidos duas
vezes... eles nascem, em primeiro lugar,
para sua comunidade e, em seguida,
para sua plena realização, eles devem
nascer para o vasto mundo”(Correio
da UNESCO, dezembro de 1961). Em
carta para outro amigo, redigida em
1934, ele indicava: “a individualidade
é preciosa; é unicamente por seu
intermédio que somos capazes de
realizar a universalidade” (Correio da
UNESCO, janeiro de 1994). Por sua vez,
Pablo Neruda, em discurso na UNESCO,
em 1972, no momento em que era
delegado-permanente do Chile junto
à Organização, afirmava o seguinte:
“estou longe de ser um individualista:
creio que o homem só é livre, na
medida em que é coletivista”. Em
termos poéticos, essa idéia traduz-se em
seu poema “Canto ao Exército Vermelho
em sua chegada às portas da Prússia”
(Canto al Ejército Rojo a su llegada a
las puertas de Prusia): “tive vontade de
cantar para vocês, para toda a terra, esta
canção de palavras obscuras, a fim de
que sejamos dignos da luz que chega”.
Outros temas de convergência
foram identificados no âmbito do
projeto Tagore, Neruda, Césaire, por
um Universal Reconciliado, que visa a
desenvolver a reflexão, em particular,
sobre cinco tópicos: a poesia como
mediadora entre o homem e o mundo;
um novo pacto entre o homem e a
natureza; a emancipação contra todas
as formas de opressão; uma visão das
relações entre a ciência, o homem e a
ética; a herança pedagógica dos três
autores. A fim de criar um laboratório
de pesquisa e de criação voltado para
essas formas de reflexão, a UNESCO
estuda constituir um comitê de
patrocínio composto por intelectuais,
cientistas e artistas, com a incumbência
de pensar a evolução do projeto.
“Uma verdadeira rede de parceiros foi
criada para implementar esse projeto”,
explica Edmond Moukala, coordenador
do programa. “Conseguimos criar
vínculos com universidades, centros
de investigação, ONGs, associações,
festivais e, até mesmo, com a
mídia, com o objetivo de organizar
“A revolução a se fazer na
Martinica será em nome do pão,
é claro, mas também em nome
do ar e da poesia.”
Aimé Césaire
O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 53
Post-scriptum
conferências e exposições ou de
incentivar projetos de pesquisas
científicas e documentários.
Como escritores comprometidos
e atores da história, Rabindranath
Tagore, Pablo Neruda e Aimé Césaire
compartilharam visão ao mesmo tempo
humanista e poética do mundo. O
desafio do projeto que lhes é dedicado
consiste em questionar as consciências
no mundo contemporâneo,
mobilizando atores dispostos a refletir
sobre o humanismo que se constrói
hoje. Desafio sutilmente definido
pelo poeta haitiano, René Depestre:
“essa viagem de exploração deveria
nos conduzir do universo particular
de cada um dos três autores a outras
áreas culturais e a um todo unificado
universo”.
Para outras informações sobre o projeto, entre
em contato com Emond Moukala, especialista em
diálogo intercultural e coordenador do programa:
[email protected] ;
LER:
“Uma arma milagrosa contra o mundo amordaçado” (Une arme miraculeuse
contre le monde bâillonné), entrevista com Aimé Césaire, Correio da UNESCO,
maio de 1997, p. 4-7.
http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001059/105969fo.pdf#105954
“Rabindranath Tagore: a verdade, fundamento do ser” (Rabindranath Tagore: la
vérité, soutien de l’être), Correio da UNESCO, janeiro de 1994, p. 44-45.
http://unesdoc.unesco.org/images/0009/000969/096900fo.pdf#96898
“Rabindranath Tagore: uma voz universal” (Rabindranath Tagore: une voix
universelle), Correio da UNESCO, dezembro de 1961, p. 4-27.
http://unesdoc.unesco.org/images/0006/000643/064331fo.pdf
“Rabindranath Tagore: fui seduzido pelo encantamento das linhas”
(Rabindranath Tagore: Je suis tombé sous l’enchantement des lignes), Correio da
UNESCO, agosto de 1957, p. 16-20.
http://unesdoc.unesco.org/images/0006/000676/067651fo.pdf#67668
“Rabindranath Tagore: sentinela do Leste” (Rabindranath Tagore, sentinelle de
l’Est), Correio da UNESCO, Supplemento, maio de 1949, p. 7.
http://unesdoc.unesco.org/images/0007/000739/073970fo.pdf#73982
RABINDRANATH TAGORE
(1861-1941)
aristocrata indiano, poeta,
dramaturgo, músico, artista plástico
e educador, é Prêmio Nobel de
Literatura de 1913. Sua obra
preconiza o respeito pela identidade
cultural e linguística, assim como
o diálogo com o Ocidente. Ele
aborda as questões fundamentais
formuladas pelos povos que lutaram
pela independência política.
PABLO NERUDA
(1904-1973)
poeta chileno, diplomata e
dramaturgo em favor da defesa e
do reconhecimento das civilizações
ameríndias. Ele lutou contra a
ditadura, a opressão, a exclusão social
e racial, a injustiça e a exploração
econômica. Sua obra foi agraciada
com o Prêmio Nobel, em 1971, dois
anos antes de sua morte e do golpe
militar no Chile.
54 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010
© UNESCO, Paris
© Fondation Pablo Neruda
© UNESCO/ Délégation permanente de l’Inde
“Cada um de nós é como um verso isolado em um poema, ele sente perfeitamente que rima com outro
verso e deve encontrá-lo, sob pena de nunca alcançar sua própria realização.”
Rabindranath Tagore
AIMÉ CÉSAIRE
(1913-2008)
poeta, dramaturgo e político
originário de Martinica, é um dos
fundadores do movimento da
Negritude. Sua obra constitui uma
forte crítica ao colonialismo, ao
imperialismo e à escravidão. Ele
figura entre os principais pensadores
da libertação política e cultural dos
povos colonizados, em particular,
na África.
Cinco eminentes
mulheres de
ciência – uma
por continente
– receberam,
em 3 de março,
na sede da
UNESCO, em
Paris, o Prêmio
L’Oréal/UNESCO
para Mulheres
na Ciência 2011.
Silvia Torres-Peimbert
(México)
Astrofísica
© V. Durruty e P. Guedj para a
Fundação L’Oréal
Vivian Wing-Wah Yam
(China)
Química
© V. Durruty e P. Guedj para a
Fundação L’Oréal
Faiza Al-Kharafi (Kuwait)
Química
© V. Durruty e P. Guedj para a
Fundação L’Oréal
Anne L’Huillier
(Suécia)
Física atômica
© V. Durruty e P. Guedj para a
Fundação L’Oréal
Jillian Banfield
(Estados Unidos)
Ciências da terra
© V. Durruty e P. Guedj para a
Fundação L’Oréal
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Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade