Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade Defensora das causas das mulheres Michelle Bachelet Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi Roza Otunbayeva Uma questão de compromisso Michaëlle Jean Direitos garantidos, liberdades confiscadas Sana Ben Achour Crime sem castigo Aminetou Mint El Moctar Sem medo de nada Sultana Kamal Uma advogada de caráter inabalável Asma Jahangir Resistir à tirania Mónica González Mujica Paciência, vamos chegar lá Humaira Habib Estrelas de minha galáxia pessoal Luisa Futoransky O Correio Abril – Junho 2011 D A U NE S CO ISSN 2220-2269 Michaëlle Jean (Canadá) Michelle Bachelet Mónica González Mujica (Chile) Humaira Habib (Afeganistão) Asma Jahangir (Paquistão) Aminetou Mint El Moctar (Mauritânia) Maggy Barankitse (Burundi) Lautaro Pozo (Equador) Sultana Kamal (Bangladesh) Giusy Muzzopappa (Itália) Feriel Lalami-Fates (Algéria) Ernest Pépin Sana Ben Achour (Guadalupe) (Tunísia) Lorena Aguilar (Costa Rica) Roza Otunbayeva (Quirguistão) Katrin Bennhold (Alemanha) Noémie Antony Laura Martel (França) Navin Chawla Anbarasan Ethirajan Shiraz Sidhva (Índia) Princesse Loulwah (Arábia Saudita) Luisa Futoransky (Argentina) NOSSOS AUTORES E AUTORAS Igualdade de gênero: uma prioridade para a UNESCO Condição necessária para a realização de todos dos os outros objetivos de desenvolvimento negociados no plano internacional, rnacional, a igualdade de gênero é vital para combater a pobreza extrema, reduzir zir a propagação do HIV e da AIDS, atenuar os efeitos das mudanças climáticas e alcançar desenvolvimento e paz sustentáveis. Sempre atenta à promoção dos direitos das as mulheres, a UNESCO elevou a igualdade de gênero ao nível de suas prioridades idades globais. A Organização tem empreendido uma série de ações que visam isam a reduzir as desigualdades em matéria de educação, começando pelo acesso cesso à escolarização, até a garantia da qualidade do ensino em todos oss níveis, passando por crescente participação das mulheres na ciência, na tecnologia, nologia, na inovação e na pesquisa. A UNESCO também busca combater os estereótipos de que as mulheres são vítimas, assim como as desigualdades a que elas são submetidas em matéria de acesso, utilização e participação ção em todos os sistemas de comunicação e de informação. Ao mesmo o tempo em que a Organização desperta nos profissionais maior or consciência quanto à necessidade de integrar uma perspectiva pectiva de igualdade de gênero nos conteúdos midiáticos, ela organiza programas de formação destinados a aumentar a segurança ça para as mulheres jornalistas. Além disso, a UNESCO esforça-se em promover o empoderamento das mulheres e a igualdade de gênero, integrando essas considerações iderações na sua ação normativa em áreas como a éticaa da ciência, a cultura e os direitos humanos. O Departamento para a Igualdade de Gênero nero é o responsável pela execução da prioridade “Igualdade de Gênero”, utilizando como roteiro o Plano de Ação 2008-2013. J Scutum, escultura em bronze de Annette Jalilova. © Annette JALILOVA, Paris O Correio DA UNESCO ABRIL-JUNHO 2011 64º aniversário 2011 - n° 2 O Correio da UNESCO é átualmente trimestral, publicado em sete línguas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 7, place de Fontenoy 75352, Paris 07 SP, France Assinatura da versão eletrônica gratuita: www.unesco.org/new/pt/unesco-courier Diretor da publicação: Eric Falt Redatora- chefe: Jasmina Šopova [email protected] Secretária de Redação: Katerina Markelova [email protected] Redatores: Árabe : Khaled Abu Hijleh Chinês : Weiny Cauhape Espanhol : Francisco Vicente-Sandoval Francês : Françoise Demir Inglês : Cathy Nolan Português : Ana Lúcia Guimarães Russo : Irina Krivova Editorial – Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO 5 Mulheres na conquista por novos espaços de liberdade Defensora da causa das mulheres Entrevista com Michelle Bachelet por Jasmina Šopova 7 Mulheres à conquista do espaço político – Shiraz Sidhva 9 Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi Entrevista com Roza Otunbayeva por Katerina Markelova 13 Uma questão de compromisso Entrevista com Michaëlle Jean por Katerina Markelova 15 Crime sem castigo Entrevista com Aminetou Mint El Moctar por Laura Martel 17 Mamãe Maggy e seus 20.000 filhos Jasmina Šopova encontra com Maggy Barankitse 20 Sem medo de nada Entrevista com Sultana Kamal por Anbarasan Ethirajan 22 Uma advogada de caráter inabalável Entrevista com Asma Jahangir por Irina Zoubenko-Laplante 25 Direitos garantidos, liberdades confiscadas – Sana Ben Achour 28 Os artigos podem ser reproduzidos sob a condição de estarem acompanhados do nome do autor e da menção “Reproduzido do Correio da UNESCO”, precisando a data da edição. Agora ou nunca – Giusy Muzzopappa 30 Resistir à tirania Entrevista com Mónica González Mujica por Carolina Jerez e Lucía Iglesias 32 Paciência, vamos chegar lá – Humaira Habib 34 Os artigos exprimem a opinião de seus autores e não necessariamente a da UNESCO. Uma lenta conquista do mercado de trabalho – Feriel Lalami-Fates 36 Igualdade de gênero: um bem público mundial Saniye Gülser Corat e Estelle Raimondo 37 A mulher é o futuro de Davos – Katrin Bennhold 39 Lançando as sementes do futuro Entrevista com Lorena Aguilar por Alfredo Trujillo Fernández 41 Estrelas de minha galáxia pessoal – Luisa Futoransky 43 Madre Teresa: a mulher mais poderosa do mundo – Navin Chawla 47 Manuela Sáenz, guerreira à serviço da América Latina Lautaro Pozo 48 Photos : Ariane Bailey Paginação: Baseline Arts Ltd, Oxford Impressão: UNESCO – CLD Informações e direitos de reprodução: + 33 (0)1 45 68 15 64 . [email protected] Plataforma web: Chakir Piro e Van Dung Pham Agradecimentos a: Elisabeth Cloutier e Marie-Christine Pinault Desmoulins As fotos que pertencem à UNESCO podem ser reproduzidas com a menção ©UNESCO seguida do nome do fotógrafo. Para obter as fotos em alta resolução, favor dirigir-se ao Banco de Fotos: [email protected]. As fronteiras retratadas nos mapas não implicam reconhecimento oficial pela UNESCO ou pelas Nações Unidas, assim como as denominações de países ou de territórios mencionados. POST-SCRIPTUM Homenagem a Edouard Glissant: pensar o Tout-Monde – Ernest Pépin 50 © DR A nossa riqueza é a juventude Entrevista com a Princesa Loulwah da Arábia Saudita por Linda Tinio Pensamento universal: Tagore, Neruda, Césaire, a poesia a serviço de um novo humanismo – Noémie Antony e Jasmina Šopova 52 53 O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 3 Nesta edição Neste ano, celebramos o centenário da primeira manifestação internacional que reuniu, nos dois lados do Atlântico, milhares de mulheres, reivindicando o direito ao voto. Esse é o passado, mas, no que diz respeito ao futuro, o ano de 2011 marca uma virada muito mais decisiva para a condição feminina em escala internacional: a criação da ONU Mulheres. Figura principal desta edição, Michelle Bachelet explica a missão e os objetivos dessa nova entidade da Organização das Nações Unidas, da qual ela é a primeira diretora-executiva (p. 7). Ao seu lado, vamos encontrar outras mulheres importantes que entraram de maneira triunfante na cena política internacional: Roza Otunbayeva, que fala sobre seu mandato como a primeira presidente do Quirguistão (p. 13), e Michaëlle Jean, ex-governadora-geral do Canadá, que aborda o pacto de solidariedade em favor do Haiti, seu país natal (p. 15). Se na cena política os progressos em direção à igualdade de gênero continuam em ritmo lento (p. 9-12), o mesmo não acontece no âmbito dos direitos humanos. Nesse ponto as mulheres também precisam de muita força de vontade para romper com obstáculos seculares, como têm feito a mauritana Aminetou Mint El Moctar (p. 17), a burundiense Maggy Barankitse (p. 20), a bengalesa Sultana Kamal (p. 23), a paquistanesa Asma Jahangir (p. 25) e a tunisiana Sana Ben Achour (p. 28). A determinação de todas elas é a mesma das italianas que se mobilizaram em todos os cantos do mundo para defender sua dignidade desrespeitada (p. 30). Para ter sucesso, essas difíceis conquistas não podem dispensar a contribuição dos meios de comunicação. Duas mulheres, uma chilena e uma afegã, correram vários riscos para defender a liberdade de expressão e explicam-nos o que signif ica o “jornalismo feminino” (p. 32-35). Como o trabalho digno constitui, neste ano, o tema central da celebração do Dia Internacional da Mulher, também nos interessa a situação das argelinas que, em suas atividades laborais, se deparam com situações precárias. Quando falamos de trabalho, também estamos falando de economia, outro elemento determinante para a liberdade das mulheres. No âmbito internacional, é possível observar sinais de mudança em relação à imagem e à posição 4 . O CORREIO DA UNESCO . ABRIL-JUNHO 2010 ocupada pelas mulheres, em um espaço que foi, durante muito tempo, ocupado exclusivamente por homens. Enquanto isso, em âmbito local, constatamos que, devido a seu papel na agricultura, as mulheres estão na vanguarda da preservação do meio ambiente e do combate aos efeitos das mudanças climáticas (p. 36-42). Para encerrar o tema central, vamos redescobrir, graças à poetisa argentina Luisa Futoransky, algumas figuras femininas que se destacaram nas artes e na literatura (p. 43-46). Também recordamos Madre Teresa, que teria completado 100 anos de vida este ano, e a equatoriana Manuela Sáenz Aizpuru, uma guerreira a serviço da América Latina (p. 47-48). Como complemento desta edição, prestamos homenagem a Édouard Glissant (1928-2011), ex-chefe de redação do Correio da UNESCO, entrevistamos a princesa Loulwah da Arábia Saudita e apresentamos um novo projeto da UNESCO, Tagore, Neruda e Césaire: pelo universal reconciliado. Jasmina Šopova Editorial Irina Bokova M Ames (Almas), esculturas da artista francesa Hélène Hiribarne. © Alicia Cloeren, Texas “Ser mulher, aqui, é semelhante a uma ferida aberta que permanece incurável”, escreve Toni Morrison1, no livro Misericórdia (A Mercy, 2008); no meu entender, trata-se de um dos romances mais comoventes que já foram escritos sobre a condição feminina. Os destinos de quatro mulheres – uma europeia, uma africana, uma indígena e uma jovem surgida misteriosamente do mar – estão emaranhados nesse texto, cada qual mais trágico do que o outro, inextricavelmente ligados entre si e profundamente enraizados no solo que, um século mais tarde, daria origem aos Estados Unidos. Essas quatro figuras femininas, cada uma mais consistente que a outra, apresentam-se como outras tantas cariátides, dando sustentação à sociedade norte-americana nascente. No entanto, afirma a romancista, são “feridas abertas”. Será que, de uma extremidade à outra de nosso vasto mundo, o destino comum das mulheres é serem pilares e vítimas da sociedade? Não é preciso dizer que, desde então, a situação das mulheres evoluiu consideravelmente nos últimos 100 anos. O Conselho Internacional das Mulheres (CIM), criado em 1888, e a Aliança Internacional da Mulher (AIM), criada em 1904, assim como a Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM), criada 1945, desempenharam papel determinante na luta pela igualdade de gênero. A igualdade de gênero está no âmago dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, que são valores essenciais para a dignidade dos indivíduos, para a prosperidade das sociedades e para o Estado de direito. A igualdade entre homens e mulheres revelou-se também como vigoroso acelerador da transformação política, social e econômica; ela está no cerne da temática do desenvolvimento e da segurança. De fato, as meninas e as mulheres sofrem, de maneira desproporcional, com os conflitos armados. E, muitas vezes, são elas que trabalham mais ef icazmente em favor da reconciliação. O século passado ensinou-nos que todos têm o dever de promover a igualdade de gênero. É evidente que o poder público desempenha um papel-chave, mas a mesma exigência impõe-se, à sociedade civil e às empresas, aos professores e aos administradores, aos artistas e aos jornalistas. A comunidade internacional cumpre sua parte, ao fixar objetivos e ao mobilizar o apoio necessário para atingi-los. A UNESCO procura estreitar o vínculo entre a igualdade de gênero e os objetivos fixados pela comunidade internacional. Demos especial destaque a esse argumento em 2010, por ocasião do 15º aniversário da Quarta 1. A romancista norte-americana Toni Morisson recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993. J A diretora-geral, em visita às Tumbas dos Reis Buganda, em Kasubi (Uganda), acompanhada de Geraldine Namirembe Bitamawire, ministra da Educação e dos Esportes, e Elizabeth Paula Napeyok, delegada permanente de Uganda na UNESCO. © UNESCO/Tosin Animashawun O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 5 Conferência Mundial sobre as Mulheres, em Beijing, sendo novamente enfatizado durante a realização da Cúpula das Nações Unidas sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que aconteceu em Nova York, em setembro passado. Em colaboração com a Coreia do Sul, transformamos a educação em uma prioridade da agenda da Cúpula do G-20 realizada em Seul, e procedemos do mesmo modo no decorrer do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em 2011. Promovemos todas essas ações em estreita colaboração com a Iniciativa das Nações Unidas para a Educação das Meninas e vamos dar-lhes prosseguimento com a ONU Mulheres, a nova entidade dirigida por Michelle Bachelet. A igualdade de gênero está integrada nas atividades de todos os setores da UNESCO. Ela incentivou-me a reformar a Organização, além de orientar nossas ações de campo, principalmente, em contextos difíceis, como no Afeganistão, no Iraque ou no Paquistão. Durante a minha recente visita à República Democrática do Congo, assinei um acordo com o governo para estabelecer um Centro de Pesquisa e Documentação sobre as Mulheres, a Igualdade de Gênero e a Consolidação da Paz. Localizado em Kinshasa, esse centro da UNESCO irá abordar um problema crucial para os direitos humanos, a estabilidade social e o desenvolvimento na região africana dos Grandes Lagos. Ao evocar as lembranças de uma viagem feita na década de 1980, ao noroeste de seu país natal, o Zimbábue, Doris Lessing fez a seguinte afirmação: “aquela pobre moça que caminha na estrada empoeirada, sonhando com uma educação para os filhos, será que temos a certeza de sermos melhores do que ela – nós que estamos empanturrados de comida, com nossos armários cheios de roupas e sufocados sob o supérfluo? Estou convencida de que a situação daquela moça e das mulheres que falavam sobre livros e educação – e, no entanto, haviam passado três dias sem se alimentarem – ainda pode nos definir atualmente.”2 A famosa feminista britânica reafirmava, assim, fora dos limites de seu universo romanesco, sua fé nas mulheres, inclusive nas mais necessitadas. A UNESCO dispõe de outros recursos para reafirmar essa mesma fé: a fim de dar mais autonomia às meninas e às mulheres mais pobres do mundo, vamos lançar, em breve, uma nova iniciativa de educação que irá envolver parceiros dos setores público e privado. Esse projeto focalizará particularmente a utilização inovadora das novas tecnologias para estender a educação básica e a alfabetização à educação de meninas e mulheres em situações de conflito e desastres naturais, assim como aos quadros políticos e à formação de professores em todo o Sistema das Nações Unidas. De fato, apesar do avanço realizado, nos últimos dez anos, em matéria de igualdade de gênero no ensino primário – como é testemunhado pelo Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos 2011, publicado recentemente pela UNESCO –, convém reconhecer que as disparidades se tornaram mais evidentes no nível secundário, principalmente na África. E, mesmo que o número de mulheres tenha aumentado no ensino superior em todo no mundo , elas continuam representando apenas 29% dos pesquisadores. A proporção de mulheres analfabetas não evoluiu nos últimos 20 anos: elas ainda representam dois terços dos 796 milhões de analfabetos do planeta. “Se você pretende construir um barco”, escreveu o romancista francês, Antoine de SaintExupéry, “não se preocupe em reunir homens para buscar madeira, preparar ferramentas, distribuir tarefas, facilitar o trabalho, mas desperte nas pessoas a nostalgia pelo infinito do mar”. Essa nostalgia pelo infinito do mar servenos de orientação, desde 1911, e continua a inspirar-nos ainda hoje. 2. Discurso de Doris Lessing, por ocasião da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, em 2007. A MULHER NOS ARQUIVOS DO CORREIO DA UNESCO Descubra uma seleção de reportagens especiais e artigos (em espanhol) dedicados às mulheres, escrevendo o título desejado no campo “pesquisa personalizada” no link: http://www.unesco.org/fr. 10 REPORTAGENS ESPECIAIS Mujeres entre dos orillas (2008) Ciudadanas al poder (2000) Mujeres: la mitad del cielo (1995) Un pacto planetario: la voz de las mujeres (1992) La mujer: entre la tradición y el cambio (1985) La mujer invisible (1980) Hacia la liberación de la mujer (1975) Año Internacional de la Mujer (1975) Mujeres de la nueva Asia (1964) La mujer, ¿es un ser inferior? (1955) 6 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 10 ARTIGOS Chiapas: invertir en alfabetización (2005) Mujeres afganas: el saber y la rebelión (2001) El duro despertar de las mujeres del Este (2000) Mujeres: una alfabetización a medida (1999) Mujeres de Kabul (1998) Las mujeres, botín de guerra (1998) Las mujeres, un eslabón indispensable (1997) Las mujeres guardianas del medio ambiente (1995) ¿Con qué sueñan veinte muchachas? (1994) Las olvidadas (1993) O que incentivou a Sra. a definir as violências perpetradas contra as mulheres como principal prioridade da ONU Mulheres, e quais são os tipos de violência de que as mulheres são vítimas ao redor do mundo? A violência contra as mulheres constitui uma das violações mais comuns dos direitos humanos. Definimos essa realidade como uma das cinco prioridades da ONU Mulheres, porque, se conseguirmos registrar algum progresso nesse campo, poderemos avançar mais longe em outras áreas. Uma mulher que não é vítima de violências tem mais possibilidades de encontrar trabalho decente, de interessar-se por sua educação, de cuidar de sua saúde e de assumir cargos de responsabilidade em sua comunidade ou em outro lugar. As mulheres sofrem todos os tipos de violência: violência doméstica, estupro, violência sexual como arma de guerra, casamento precoce, mutilação genital. Um grande número de sociedades, em todo o mundo, enfrenta um ou outro desses problemas. Assim, se levarmos em consideração as experiências vivenciadas pelas mulheres ao longo da vida, a taxa de vítimas chega a atingir 76% da população feminina mundial. © UN Photo/Martine Perret Defensora da causa das mulheres As desigualdades entre homens e mulheres permanecem profundamente enraizadas em um grande número de sociedades. As mulheres deparam-se, muitas vezes, com a falta de acesso à educação e aos cuidados básicos, devem superar a segregação nos empregos e as diferenças de remuneração, estão sub-representadas nos processos de tomada de decisões e são vítimas de violências. Outros tantos desafios que Michelle Bachelet – diretora-executiva da nova Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, ONU Mulheres – pretende enfrentar com toda sua determinação. MICHELLE BACHELET responde às perguntas de Jasmina Šopova Quais são os outros temas prioritários que a Sra. pretende abordar e como vai mobilizar recursos para concretizar as ações programadas? Vamos desenvolver e apoiar projetos inovadores que visem a fortalecer a independência econômica das mulheres, confiar-lhes o papel de defensoras e de líderes nos processos de mudança, posicioná-las no centro dos processos de paz e de segurança, além de inscrever prioridades de igualdade de gênero nas estratégias nacionais. Mobilizar recursos para realizar esses objetivos servirá, entre outros aspectos, para demonstrar até que ponto as mulheres contribuem para o desenvolvimento não só de sua própria condição, mas também de sua sociedade como um todo. As provas de tais avanços são cada vez mais frequentes. O último Relatório Global de Desigualdade de Gênero (Global Gender Gap Index Report), publicado pelo Fórum Econômico Mundial, em 2010, mostra, por exemplo, que, entre 114 países, aqueles que atingiram o nível mais alto da igualdade entre homens e mulheres são os mais competitivos e exibem as mais elevadas taxas de crescimento. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 7 Quais são os recursos humanos e financeiros que atualmente estão à disposição da ONU Mulheres? Serão suficientes para realizar sua missão? A ONU Mulheres herdou recursos das quatro entidades da ONU que se fundiram para sua criação. Com base nesses recursos – que serão acrescidos de outras contribuições, de acordo com a recomendação do secretário-geral, Ban Ki-moon, proferida em janeiro de 2010 –, está previsto aumento anual no orçamento de, no mínimo, US$ 500 milhões. Esse é o objetivo para o qual conjugaremos todos nossos esforços. © UN Photo/John McIlwaine A Sra. pretende dar prioridade a determinados países? Quais seriam esses países e quais as razões desse interesse particular? Vamos trabalhar com todos os Estados-membros da ONU que solicitarem nossos serviços, sejam eles países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Atualmente, a ONU Mulheres está presente, em graus variáveis, em cerca de 80 países, e teremos de fortalecer nossa presença naqueles que têm necessidade de nosso apoio. Vamos intervir de forma gradual, à medida que desenvolvermos nossas capacidades e nossos recursos de ordem institucional. Em cada país, uma das prioridades consistirá em atingir os grupos de mulheres mais marginalizadas. São elas que têm mais necessidade do apoio da ONU Mulheres. Cooperar com elas pode ser a melhor maneira de utilizar nossos recursos. Como o UNICEF tem demonstrado, o método mais eficaz consiste em investir na parcela da população mais marginalizada. Qual é o lugar da igualdade de gênero nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)? Qual é a sua estratégia para atribuir maior importância a esse aspecto? Conseguir a igualdade de gênero – objetivo número três dos ODMs – é primordial para a realização de todos os outros objetivos. Vamos continuar a insistir, até 2015 (prazo final para a realização dos ODMs), no vínculo crucial existente entre a igualdade de gênero e todos os outros objetivos que dizem respeito à pobreza, à saúde, à educação ou ao meio ambiente. Um dos problemas prioritários relacionado a nossa missão é a mortalidade materna. No plano mundial, estamos longe de ter conseguido um avanço satisfatório. Podemos – e devemos – obter melhores resultados. Salvar maior número de vidas no momento do parto exige conhecimentos básicos e meios pouco onerosos que poderiam estar disponíveis facilmente em toda parte, se os governos e a comunidade internacional decidissem realmente reconhecer essa ação como prioritária. O número de mulheres eleitas para assumir a direção de Estados, governos e agências da ONU tem aumentado nos últimos anos. Esse fenômeno já apresentou efeitos positivos sobre questões sensíveis relativas às mulheres em âmbito mundial? Em uma perspectiva histórica, foi realizado um enorme progresso. Apesar de ainda existirem desafios a enfrentar, a igualdade de gênero entrou em uma dinâmica que nunca havia ocorrido no passado, tanto no plano internacional quanto internamente na maior parte dos países. A razão disso é que as mulheres assumiram a defesa da igualdade de gênero, assim como as questões mais sensíveis em diversos níveis, tanto no seio de sua comunidade quanto na direção dos Estados. A existência de mulheres líderes tem levado um número crescente de pessoas a compreender que as mulheres devem participar ativamente das atividades econômicas, que se deve acabar com a violência contra as mulheres e que se deve utilizar a capacidade das mulheres para que elas se tornem as promotoras de mudanças que irão beneficiar a todos. Para atingir esses objetivos, devemos fornecer os recursos e empreender as ações necessárias – como fizemos, em parte, ao criar a ONU Mulheres, que é a “defensora” obstinada dos direitos das mulheres no mundo. Cirurgiã por formação, Michelle Bachelet é a primeira secretária-geral adjunta e diretora-executiva da nova entidade ONU Mulheres. A ex-presidente do Chile (2006-2010) chamou a atenção, em particular, pela reforma da aposentadoria e dos programas de proteção social para mulheres e crianças, assim como pelos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Durante seu mandato presidencial, triplicou o número de centros de saúde gratuitos para crianças de famílias de baixa renda, além de ter criado cerca de 3.500 novos centros pediátricos no Chile. No momento de sua nomeação para dirigir a nova agência da ONU, a ONU Mulheres, em 14 de setembro de 2010, Michelle Bachelet comprometeu-se a transformá-la na “defensora da causa das mulheres”. A ONU Mulheres foi criada em julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações Unidas com o objetivo de acelerar a realização das metas da Organização associadas à igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres. Lançada oficialmente em 24 de fevereiro de 2011, a ONU Mulheres é o resultado da fusão de quatro componentes do Sistema das Nações Unidas: o Departamento da Promoção das Mulheres (Division for the Advancement of Women - DAW), o Instituto Internacional de Pesquisas e Formação para a Promoção das Mulheres (International Research and Training Institute for the Advancement of Women - INSTRAW), o Escritório da Conselheira Especial para a Problemática Homens-Mulheres (Office of the Special Adviser to the Secretary-General on Gender Issues - OSAGI); e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres (United Nations Development Fund for Women - UNIFEM). A principal missão da nova entidade ONU Mulheres consiste em apoiar organismos intergovernamentais, assim como os Estados-membros, na elaboração de políticas, regulamentos e normas, em âmbito nacional e mundial, em favor da igualdade de gênero. Compete à agência exigir às Nações Unidas a prestação de contas em relações a seus próprios compromissos, em particular, por meio do monitoramento regular dos progressos registrados no conjunto do Sistema ONU. Site oficial : www.unwomen.org/fr 8 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 © UN Photo/Evan Schneider Mulheres à conquista do espaço político Se, entre as personalidades mundiais, figuram algumas mulheres, seu número continua reduzido na presidência das democracias modernas: na história recente, menos de 50 mulheres alcançaram a cúpula do Estado e, atualmente, apenas 19 países aceitaram elevá-las até o posto supremo. Na cena política, a marcha em direção à igualdade de gênero é, portanto, lenta, mas inexorável. SHIRAZ SIDHVA, jornalista indiana residente nos EUA Apesar do consenso geral de que a representação das mulheres em sistemas de tomada de decisão é um fator essencial de mudança, elas raramente estão presentes nesses postos. De acordo com a União Interparlamentar, o número de mulheres aumenta nos parlamentos nacionais, com uma presença média recorde de 19,1% dos assentos, levando em consideração todos os organismos nacionais com atribuições legislativas. No entanto, “o objetivo de chegar ao equilíbrio entre homens e mulheres na política está ainda longe de ser alcançado em vários países”. Nas últimas décadas, registraram-se histórias notáveis de mulheres que conseguiram ultrapassar barreiras antes intransponíveis, vencendo todos os obstáculos para conquistar este bastião da masculinidade: o mais alto cargo à frente do Estado. Trata-se de pioneiras que derrubaram um tabu em seus respectivos países, incentivando outras mulheres, em todo o mundo, a manifestarem suas opiniões, sempre que políticas decisivas para o futuro de suas sociedades chegam à ordem do dia. A começar por Ellen Johnson Sirleaf, que entrou na história, em 2006, ao ser eleita presidente da Libéria, fato inédito na África. Defensora dos direitos das mulheres, essa mulher combativa, formada em Harvard, repetiu, no decorrer de sua campanha, que, se ganhasse a eleição, iria incentivar as mulheres africanas a alcançar postos mais altos no funcionalismo público. Essa dedicada avó, que, em 30 anos de carreira, enfrentou a prisão e o exílio, demonstrou determinação implacável para impor a paz em um país devastado por uma década de guerra civil. Ellen Johnson Sirleaf foi agraciada recentemente com o Prêmio Africano de Excelência em favor do Gênero 2011, como reconhecimento “pelos esforços despendidos pela Libéria para promover o direito das mulheres e, principalmente, a educação das jovens, a independência econômica das mulheres e as leis que punem a violência de que elas são vítimas”. “Ao incentivar a igualdade de gênero, ao emancipar nossas jovens, estamos também enaltecendo nosso país”, sublinhava ela, recentemente, diante de jovens diplomadas em programa de autonomia econômica. A ex-presidente islandesa, Vigdís Finnbogadóttir, também está convencida da importância da educação: “eu gostaria de dizer a todas as mulheres do mundo inteiro: estudem o máximo possível e nunca aceitem estudar menos do que seus irmãos. É essencial que vocês obtenham um grau acadêmico, leiam e descubram a vida. Nem todos conseguem ter acesso à universidade, mas, se os irmãos de vocês são caminhoneiros, aprendam, pelo menos, algo semelhante”. A “presidente Vigdís”, como é conhecida na Islândia – foi a primeira K Foto dos participantes do III Fórum Mundial da Aliança de Civilizações das Nações Unidas, realizado no Rio de Janeiro, Brasil, em maio de 2010. Única figura feminina: Cristina Fernández de Kirchner, presidente da Argentina. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 9 mulher no mundo a ocupar o cargo presidencial, sem estar filiada a um partido. Foi em 1980. “Abri as portas da política, não só para as mulheres, mas também para os homens”, afirma ela. Com efeito, quando uma mulher é bem-sucedida, “ela mostra o caminho a outras mulheres e a outras sociedades em todo o mundo”. A Islândia, entre outros países da Europa Setentrional, continua sendo o melhor exemplo em matéria de igualdade de gênero, sendo, atualmente, ainda uma mulher, Jóhanna Sigurdardóttir, que ocupa o cargo de primeiro-ministro. Contudo, há 30 anos, no momento de sua eleição, “as pessoas achavam algo realmente insensato que uma mulher fosse presidente de um país”, conta Vigdís Finnbogadóttir. “Os islandeses demonstraram uma coragem fora do comum, ao infringirem a tradição”, complementa. Ela havia sido precedida por outras dirigentes como Indira Gandhi, na Índia, Isabel Perón, na Argentina, e Sirimavo Bandaranaike, no Sri Lanka, que chegaram ao poder “por herança”, tendo assumido na sequência do pai ou do marido, enquanto Golda Meir e Margaret Thatcher foram apoiadas por partidos políticos. Por sua vez, Vigdís Finnbogadóttir não era a herdeira de ninguém, nem pertencia a um partido. Ela foi reeleita quatro vezes, de 1980 a 1996, fato que a torna a dirigente que permaneceu no cargo pelo período mais longo em toda a história. “Na primeira vez, ganhei por pouco”, reconhece ela. “Na segunda, a margem foi mais confortável. Convém dizer, entretanto, que eu tinha provado que uma mulher poderia ter sucesso, mesmo sendo uma mulher”. No entanto, será que o sexo tem realmente tanta importância para quem ocupa um cargo de direção, e será que ele exerce influência real sobre as qualidades de um líder? Os contextos que levaram essas mulheres, entre outras, a assumir o poder eram bastante heterogêneos, mas especialistas em ciência política identificam, mesmo assim, características comuns às dirigentes. Quais são, portanto, os obstáculos que elas devem vencer para chegar à cúpula do poder de seus respectivos países? Que qualidades elas devem ter para alimentar a expectativa de superar a mais intransponível das barreiras e abrir caminho para a magistratura suprema, às vezes, sem ninguém para mostrar-lhes a direção? Essas questões têm intrigado Laura Liswood, advogada, escritora e ativista Mary McAleese Presidente da Irlanda Ellen Johnson-Sirleaf Presidente da Libéria Angela Merkel Chanceler federal da Alemanha © UN Photo/Evan Schneider © UNESCO/Michel Ravassard © UN Photo/Evan Schneider Jóhanna Sigurdardóttir Primeira-ministra da Islândia Jadranka Kosor Primeira-ministra da Croácia Dalia Grybauskaitė Presidente da Lituânia © UNPhoto/Aliza Eliazarov © UN Photo/Jenny Rockett © UNPhoto/Rick Bajornas Laura Chinchilla Presidente da Costa Rica Pratibha Patil Presidente da Índia Dilma Rousseff Presidente do Brasil © UN Photo/Aliza Eliazarov © Bureau du Président de l’Inde © Roberto Stuckert Filho/Presidência da República/Agencia Brasil internacional dos direitos das mulheres. No âmbito do projeto Liderança Feminina (Women’s Leadership), nos EUA, promovido por sua iniciativa, ela fez viagem inédita ao redor do mundo, em 1992, para encontrar 15 mulheres chefes de Estado e de governo. As entrevistas com essas dirigentes – como Margaret Thatcher (Reino Unido), Gro Brundtland (Noruega), Benazir Bhutto (Paquistão), Corazón Aquino (Filipinas) ou Kazimiera 10 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 Prunskiene (Lituânia) – deram origem a um livro original: Líderes mundiais: quinze grandes mulheres políticas contam sua história (Women world leaders: fifteen great politicians tell their stories). Liderança feminina Há muito tempo, pesquisadores debatem o papel do gênero na liderança. “Em alguns casos, o sexo é irrelevante”, explica Michael A. Genovese, professor Tarja Halonen Presidente da Finlândia Iveta Radicová Primeira-ministra da Eslováquia Sheikh Hasina Wajed Primeira-ministra de Bangladesh © UN Photo/Erin Siegal © European People’s Party © UNPhoto/ Eskinder Debebe Julia Gillard Primeira-ministra da Austrália Kamla Persad-Bissessar Primeira-ministra de Trinidad e Tobago © UN Photo/Aliza Eliazarov Cristina Fernández de Kirchner Presidente da Argentina Micheline Calmy-Rey Presidente da Suíça Cissé Mariam Kaïdama Sidibé Primeira-ministra do Mali Rosario Fernández Figueroa Primeira-ministra do Peru © Patrick Lazic/OIF © Primature du Mali © Présidence du Conseil de Ministres © UN Photo/Mark Garten de Ciência Política e diretor do Instituto de Estudos da Liderança da Universidade Loyola Marymount, na Califórnia. “Nesse aspecto, Margaret Thatcher é um bom exemplo; em outros casos, ocorre o oposto, como no de Corazón Aquino”. De acordo com ele, é preferível “questionar-se quando e em que circunstâncias o gênero perde ou ganha importância. Existem forças estruturais internas que devem ser enfrentadas © UNPhoto/Jean Marc Ferre por todos os dirigentes, obrigando-os a assumir determinadas tarefas e responsabilidades de forma semelhante ou previsível: tarefas protocolares, obrigações constitucionais ou legais, expectativas relativas a funções. Todas provocam, em maior ou menor grau, as mesmas atitudes, independentemente de o líder ser homem ou mulher. É nas circunstâncias novas ou inesperadas – ou em período de crise – que o sexo deve ser levado em consideração, quando o que se espera do líder não está previsto. Nesses casos, a personalidade e o sexo podem revelar-se determinantes”. Como esperado, a maior parte dessas obstinadas mulheres assume funções com muitas qualificações acadêmicas e profissionais. Muitas delas foram escritoras, advogadas, diplomatas ou ministras, antes de ascenderem ao cargo mais alto no governo. A maior parte delas reconhece que, além dos estudos, o modelo dos pais, seguido desde a infância, lhes ensinou que uma mulher seria capaz de obter resultados semelhantes aos que são conseguidos por um homem. Michelle Bachelet, primeira presidente do Chile, depois de ser a primeira chilena a ocupar o cargo de ministra da Defesa, é bastante familiarizada com o que se refere ao trabalho de pioneira. “Como jovem mãe e pediatra, vivenciei a dificuldade de conseguir o equilíbrio entre carreira e vida familiar, tendo constatado que a impossibilidade de ter alguém para cuidar dos filhos impediu que as mulheres tivessem acesso a emprego remunerado”, declarava ela, na Libéria, por ocasião da comemoração do Dia Internacional da Mulher. “Foi também para remover esses obstáculos que entrei na política e que priorizei, nas despesas públicas, o acolhimento da primeira infância e a proteção social das famílias”. Será que as mulheres têm uma maneira peculiar de exercer a liderança, que seja diferente da atitude assumida pelos homens? “Em geral, acredita-se que os homens apresentam mais características de comando do que as mulheres e que essas adotam estilo mais colegial”, constata Michael Genovese, autoridade em matéria de liderança, tema ao qual já dedicou 28 livros. “As exceções são muitas, mas há algo de verdadeiro nesse ponto de vista. Os homens fazem afirmações; as mulheres discutem. Os homens falam para si; as mulheres estabelecem o diálogo”, sublinha ele. “Quanto aos assuntos que concernem as mulheres em postos de liderança, talvez seja motivo de surpresa o fato de que atualmente elas não defendem com mais vigor que os homens as ‘questões femininas’. Nesse aspecto, as diferenças ideológicas e partidárias são melhores indicadores do apoio a temas que tendem a ser considerados especificamente femininos, como educação, saúde etc.”. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 11 Preconceitos persistentes Ao contrário de seus homólogos masculinos, as mulheres que estão atualmente à frente das democracias devem lidar com um conjunto de preconceitos arraigados. Além disso, elas são julgadas mais severamente do que os homens pela mídia e pelos eleitores. “Não há qualquer obstáculo,” apenas uma grande barreira de homens”, insiste Laura Liswood. Em 1996, em companhia de Vigdís Finnbogadóttir, ela fundou o Conselho Mundial das Líderes, no qual exerce a função de secretária-geral. “O mais urgente consiste em preparar as mulheres, desde agora, para ocupar cargos de tomada de decisões, objetivo que não pode ser alcançado, sem modelos de funções aptos para incentivar outras mulheres nessa direção”, frisa ela. O Conselho dispõe do melhor equipamento possível para realizar tal tarefa. Em 1997, em companhia de outras ativistas, ela lançou o Projeto Casa Branca (White House Project) para apoiar a eleição de uma mulher para a presidência dos EUA. “Relatavam-me sempre a mesma história”, afirma ela. “As experiências eram as mesmas, independentemente do país, da cultura ou do percurso das líderes. Por toda a parte, os jornalistas e seus leitores davam-lhes o mesmo tratamento: elas eram sabatinadas em profusão. A imprensa considerava-as, antes de mais nada, como mulheres, criticando, de forma excessiva, inclusive sua aparência: roupas, penteado, bolsas, xales... “. “A idéia comumente aceita de que elas não conseguem ser líderes competentes é, sem dúvida, o maior obstáculo para a entrada maciça de mulheres na cena política”, opina Esther Duflo, professora de Economia do Desenvolvimento, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts – MIT. Fundadora, com outras colegas no MIT, do Laboratório Abdul Latif Jameel de luta contra a pobreza, ela empreendeu várias pesquisas pioneiras na Índia. De acordo com os resultados desses estudos, as mulheres governantes são avaliadas de forma mais negativa do que seus homólogos masculinos, apesar de elas tenderem a fornecer melhores serviços, como o acesso à água potável, e de serem muito menos corruptas. Esther Duflo recorreu a comediantes para identificar os preconceitos em centenas de aldeias indianas, nas quais um terço dos assentos nos Conselhos de Aldeia são reservados às mulheres, desde 1993 – cota recentemente elevada para 50%. Ela fez que o mesmo discurso político fosse lido ora por um homem, ora por uma mulher. Os camponeses que nunca tiveram uma líder tenderam a julgar as oradoras incompetentes, no entanto, os eleitores que já haviam presenciado uma mulher no exercício do poder não apresentaram esse viés. “A experiência reduz o preconceito”, conclui Esther Duflo, em uma entrevista concedida à revista New Yorker. Prova de que as políticas públicas podem quebrar os estereótipos de bases eleitorais. Brinda Karat, membro do comitê central do Partido Comunista da Índia e deputada na câmara alta do Parlamento indiano, acredita que “as líderes tendem a formular questões que despertam mais o interesse das mulheres do que dos homens”. No seu entender, a decisão de seu país de reservar metade dos assentos às mulheres nos Conselhos Locais (panchayats) começa a dar resultados: “o recorde de participação das mulheres nas eleições locais, apesar das barreiras sociais e culturais, abre capítulo encorajador na história política da Índia, que, a cada dia, se enriquece”. No entanto, o número de deputadas na Índia não é superior a 11% e, na maior parte das assembleias dos estados indianos, o percentual é ainda menor. “Será que isso significa que as mulheres são incapazes ou não demonstram mérito suficiente?”, questiona Brinda Karat, que, há 40 anos, é ativista de movimentos em prol das mulheres. “Essa seria uma conclusão precipitada e inaceitável”. A verdade é que as práticas discriminatórias de que elas continuam sendo alvo, quando da elaboração de listas eleitorais, as têm mantido afastadas de cargos eletivos. A luta travada pelas mulheres contra a discriminação nas esferas econômica e social deve estender-se também à esfera política. Qualquer discriminação baseada no sexo enfraquece a democracia. O movimento em favor da igualdade de representação é também uma luta em favor dos direitos democráticos e da cidadania”. Acesso pela porta dos fundos A marcha das mulheres em direção à liderança política pode parecer, portanto, lenta, mas – tanto para Michael Genovese quanto para Laura Liswood – é inexorável. “Nas últimas décadas, mudanças têm ocorrido”, observa Genovese. “Quando meu livro sobre as líderes foi publicado, 12 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 em 1993, eu poderia citar o nome de todas as mulheres chefes de governo. Atualmente, esse número cresceu, e elas estão mais presentes do nunca na cúpula dos governos, mesmo que tal constatação esteja muito longe de corresponder ao peso demográfico das mulheres na população”. “O importante é o número crescente de mulheres que ingressam na política pela porta dos fundos no âmbito local, assim como a grande afluência de mulheres que jogam na ‘segunda divisão’ com o pé já na ‘primeira’. Existem várias causas para essa evolução: o movimento feminista, o fato de que muitos partidos políticos – em particular na Europa – estabeleceram cotas para as mulheres em suas campanhas eleitorais, além da existência de grupos de apoio que oferecem recursos financeiros, como a Emily’s List, nos EUA, e finalmente uma verdadeira mudança de atitude das sociedades em relação às mulheres na política”. “É certo que mudanças estão ocorrendo”, constata Laura Liswood. “Mas será que seu ritmo é suficientemente rápido? Por toda a parte, as mulheres estão matriculadas no ensino superior, obtêm diplomas e ingressam no mercado de trabalho. Contudo, aparentemente é muito mais difícil para elas ter acesso aos cargos de direção. Esse é, portanto, o alvo a ser visado”. “Eu ainda hei de presenciar a eleição de uma mulher para a presidência [dos EUA]”, insiste Michael Genovese. “Essa longa espera talvez se explique, porque, além das questões já evocadas, os grandes países e as superpotências, envolvidos militarmente em vários lugares do mundo, tendem a procurar figuras masculinas que manifestem certa insensibilidade, sugerindo sua capacidade para recorrer à força, se necessário. Esse clichê continua pesando contra as mulheres, embora alguns líderes mais obstinados do pós-guerra fossem mulheres: por exemplo, Margaret Thatcher ou Golda Meir. É muito difícil acabar com os estereótipos.” Alguns extratos deste artigo foram retirados de: Laura A. Liswood Women World Leaders: Great Politicians Tell Their Stories, The Council Press, 2007 (edição original, Women World Leaders: Fifteen Great Politicians Tell Their Stories, Pandora, Harper Collins Publishers,1995). Michael A. Genovese (ed.) Women As National Leaders, Sage Publications, 1993. Inscrever o Quirguistão no mapa-múndi O principal problema enfrentado pelos Estados que recentemente se tornaram independentes é o da identidade, de acordo com Roza Otunbayeva, primeira mulher a ocupar o cargo de presidente do Quirguistão. A “dama de ferro” quirguiz já atravessou várias crises e superou alguns obstáculos no decorrer da longa carreira, que culminou na presidência do seu Estado, em julho de 2010. Seu país esteve sob risco de desmantelamento, sua nação, ameaçada de fragmentação, mas ela conseguiu enfrentar esses desafios. © Janarbek Amankulov ROZA OTUNBAYEVA responde às perguntas de Katerina Markelova Em sua biografia, é recorrente a utilização do qualificativo “primeiro”: primeira mulher a ocupar o Ministério das Relações Exteriores do Quirguistão; primeira mulher a assumir a embaixada de seu país nos Estados Unidos e, em seguida, no Reino Unido; e, finalmente, primeira mulher a ascender à presidência do Quirguistão. Qual é o segredo de tal sucesso? Na época da Perestroika – período em que eu era vice-presidente do Conselho de Ministros da República do Quirguistão –, fui convidada a exercer funções no Comitê da União Soviética para a UNESCO, em Moscou. Comecei como secretária executiva, antes de ser nomeada presidente desse Comitê. Representar a União Soviética não foi uma missão simples: esse país era, na época, uma superpotência, e, como os Estados Unidos não eram membros da UNESCO, éramos o principal doador da Organização. Foi nessa qualidade que entrei para o gabinete do Ministério das Relações Exteriores da União Soviétiva, sendo, coincidentemente, a primeira mulher a tomar assento nesse organismo. Com o desmantelamento da União Soviética, Askar Akaïev (primeiro presidente do Quirguistão, deposto pela Revolução de março de 2005) convidou-me para assumir as funções de ministra das Relações Exteriores, mas, como nessa época os Estados Unidos eram muito importantes para nós, assim como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, dos quais estávamos dependentes, fui designada para ocupar a embaixada de meu país em Washington, função que exerci durante dois anos, antes de retornar para o cargo de ministra das Relações Exteriores, no Quirguistão. Três anos mais tarde, em 1997, o autoritarismo crescente de Askar Akaïev começou a manifestar-se. Não chegávamos mais a nos entender. Eu passava criticando-o, e ele irritava-se. Acabei pedindo demissão. Minha intenção não era fazer oposição a ele: as pessoas ainda depositavam confiança ABRILJUNHO 2011 . 13 Como seus colaboradores e as pessoas comuns veem o cargo do chefe de Estado sendo ocupado por uma mulher? Com o respeito que é tradicionalmente dedicado às pessoas mais velhas, às mulheres e às mães. Além disso, entre meus colegas, sou provavelmente aquela que possui mais experiência. Afinal, mereci essa promoção. Lutei por meus ideais, tendo feito numerosos sacrifícios. Quanto ao povo quirguiz, ele também sabe que não estou na política por acaso, que não sou protegida de ninguém. Obviamente, há pessoas que pensam que uma mulher não é capaz de governar. Minha resposta para elas é a seguinte: o ano de 2010 foi um dos mais críticos da história do Quirguistão. Pouco faltou para que o país entrasse em colapso e a nação se dividisse. Entretanto 1. Kurmanbek Bakiev ascendeu ao poder pela Revolução das Tulipas e dirigiu o país entre 2005 e 2010. Em abril de 2010, foi forçado a abandonar o cargo, na sequência de uma revolta popular que deixou 87 mortos. conseguimos superar tudo isso. Saímos do caos e transpomos a crise, evitando o naufrágio e pisando em terra firme, apesar do silêncio e da inércia do mundo inteiro. Que tentem fazer o mesmo! Atualmente, todos os meios de comunicação social falam de países em crise, como a Líbia. No Quirguistão, a tempestade já passou. O nosso jovem país ainda precisa superar numerosas dificuldades, no entanto, o mais difícil já passou. Sua energia e seu zelo foram recompensados, neste ano, pelo Prêmio Mulheres de Coragem, atribuído pelo Departamento de Estado norte-americano. O que isso significa para a Sra.? Penso que esse prêmio foi atribuído a meu país e não tanto a mim. Os acontecimentos ocorridos nos países árabes demostram que o mundo está começando a entender que a movimentação das pessoas, dos países e, até mesmo, dos continentes em direção à democracia é irrefreável. O que temos visto comprova que meu país também está fazendo parte da evolução mundial. O que meu país e meu povo têm tido a coragem de demostrar é que eles estão motivados pelo amor da liberdade, pela crença no progresso e pela democracia. Limitei-me simplesmente a participar desse movimento. O Quirguistão já fez muito para instaurar a igualdade de gênero. Por exemplo, existe, no Parlamento, uma cota de 30% das cadeiras reservadas às mulheres. Em sua opinião, o que ainda deveria ser feito nesse sentido? A igualdade de gênero é um combate sem fim. Inscrever cotas na lei, como fizemos na última legislatura, é Primeira mulher a assumir o cargo de chefe de Estado na Ásia Central, Roza Otunbayeva nasceu em 1950. Formada em filosofia pela Universidade Estadual de Moscou e professora no início de sua vida profissional, ela ingressou precocemente no Partido Comunista da União Soviética e teve rápida ascensão política. Ela desempenhou um papel importante nos dois movimentos que derrubaram os regimes autoritários no Quirguistão – em março de 2005 e em abril de 2010. Em junho de 2010, por ocasião de plebiscito para nova Constituição, a população aprovou a candidatura única de Roza Otunbayeva para ascender à presidência de seu país. 14 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 © UNESCO/Danica Bijeljac nele e queriam que ele completasse as reformas. Quanto a mim, tornei-me a primeira pessoa a ocupar, como titular, a Embaixada do Quirguistão no Reino Unido. Esse também foi um esforço pioneiro importante, junto com os membros do Conselho de Segurança da ONU. Tínhamos, então, a missão de inscrever o Quirguistão no mapa-múndi. Em 2005, graças à união de vários partidos da oposição, fizemos a Revolução das Tulipas. Contudo, Kurmanbek Bakiev1 acabou usurpando nossa revolução: apoderou-se de tudo, instaurando uma ditadura familiar. Durante os cinco anos seguintes, lutamos por nossos ideais. Eu era a líder da oposição no Parlamento. Em 2010, finalmente vencemos! insuficiente. Na vida cotidiana, essas leis nem sempre são aplicadas. Atualmente, o Tribunal de Contas, para o qual também votamos a cota de 30%, prevê que três pessoas sejam nomeadas pelo presidente, três pela oposição e três pela coligação. Como a oposição e a coligação indicam unicamente homens, fico com a responsabilidade de propor mulheres. Esse procedimento é absolutamente cínico! Em nosso país, existem cargos importantes ocupados por mulheres. Além de mim, que sou o resultado de um consenso das forças políticas, o Banco Nacional é presidido por uma mulher, assim como o Supremo Tribunal e a Academia das Ciências. No governo, em compensação, temos apenas uma mulher, o que é simplesmente inaceitável. No plano econômico, nenhuma mulher faz parte dos Conselhos de Administração de nossas grandes empresas. Para as mulheres quirguizes, este ano é especial. Primeiramente, porque comemoramos o bicentenário do nascimento de Kurmanjan Datka. Essa mulher, que governava o Alai, no sul do país, despendeu enormes esforços para unificar essa região e anexá-la à Rússia. E era uma mulher progressista, dotada de vontade e energia notáveis. Ela desempenha um papel simbólico na formação das mulheres e de toda a nação. Em segundo lugar, este ano é também especial, porque minha presidência chega ao fim. Além disso, ele marca, provavelmente, o auge dos debates sobre o papel a ser exercido pelas mulheres no nosso país. Em sua opinião, qual seria a principal prioridade para seu país? É difícil responder a essa pergunta de forma categórica. Eu diria, no entanto, que a questão mais delicada a ser enfrentada pelos Estados que recentemente se tornaram independentes é a da identidade. Trata-se de um problema amplo, complexo e múltiplo. Todos nós, todos os quase duzentos membros da ONU, somos arrastados pela mesma corrente, chamada globalização. A questão da identidade é fonte de perturbação para toda nação, para cada ser pensante. Esse é um sério obstáculo ao desenvolvimento. Estamos todos sofrendo com essa conjuntura e devemos tentar superá-la. I Cena de uma rua em Porto Príncipe, capital do Haiti, um mês depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010. Mãe e suas filhas “preparadas com capricho, lindas e orgulhosas”, como destacou Michaëlle Jean. © UN Photo/Pasqual Gorriz número de pessoas para me apoiar, de recursos e de organizações para dizer coletivamente: “Não! Em um país como o Canadá, isso é inaceitável!”. Eis por que uma mulher negra, além disso militante feminista e ex-refugiada política, conseguiu tornar-se governadora-geral do Canadá. Uma questão de compromisso Assegurar que se tenha sempre presente a situação de urgência e fragilidade do Haiti é a primeira missão de Michaëlle Jean, ex-governadora-geral do Canadá, designada recentemente como enviada especial da UNESCO para o Haiti. Percurso de uma mulher excepcional, que herdou a coragem, a perseverança, o pragmatismo e o senso de compromisso das mulheres haitianas. MICHAËLLE JEAN responde às perguntas de Katerina Markelova Como uma imigrante haitiana se torna governadora-geral do Canadá? E como bônus, a responsabilidade de chefe de Estado, além de chefe de Estado-Maior das Forças Armadas (risos)! Creio que se trata, antes de mais nada, de uma questão de compromisso. Aprendi uma coisa preciosa no Haiti: não ficar indiferente! Em um país onde a indiferença provoca grandes danos, meus pais incentivaram-me a observar, a formar um ponto de vista e a agir. Herdei minha coragem, minha perseverança, meu pragmatismo e meu senso de compromisso das mulheres haitianas. Ainda criança, cheguei ao Canadá e compreendi rapidamente que integração significava participação. Muito cedo comecei a me envolver nas atividades do movimento das mulheres no Quebec e, em particular, no estabelecimento de uma rede de abrigos para mulheres vítimas de violência e seus filhos. Isso foi determinante para minha cidadania ativa e responsável. Essa experiência levou-me ao jornalismo: 18 anos na televisão pública! Frequentemente, os jornalistas de televisão tornam-se apresentadores de programas de variedades, quando dispõem de físico diferente do da maioria. No meu caso, fui nomeada imediatamente para um departamento de notícias: de uma sala de redação, até chefe do setor e âncora de programa, com presença em frente às câmeras. O Canadá é a encarnação da diversidade. No nosso país, a diversidade é real, enraizada no cotidiano. Em vez de uma ameaça, ela é considerada como uma riqueza, apesar de todos os desafios que isso representa. Em momentos em que fui vítima de discriminação ou de racismo – porque nenhuma sociedade está imune de tais deslizes –, eu sempre encontrei grande Quais são suas prioridades, enquanto enviada especial da UNESCO para o Haiti? Acima de tudo, ficar vigilante para que as pessoas tenham sempre presente a situação de urgência e fragilidade desse país. O Haiti era prioridade, durante todas as missões que efetuei em todo o mundo, na minha qualidade de governadora-geral. Tanto no Ocidente quanto na América Latina ou na África, sempre percebi da parte de meus interlocutores o desejo de participar de um pacto de solidariedade em favor do Haiti. Em razão disso, tenho intenção de retornar a essas terras, já trabalhadas, para obter apoio. O Haiti não poderá sair sozinho dessa situação. Trata-se de uma tragédia, tenho pleno conhecimento disso! Ao mesmo tempo, o Haiti também deve assumir a sua parte da responsabilidade. Creio que o mundo inteiro está observando o caso haitiano. Como será a resposta da comunidade internacional? Os haitianos e, em particular, o Estado haitiano, vão agir de forma responsável? Impõe-se a obrigação de sermos bem-sucedidos e enviarmos uma mensagem de esperança para toda a humanidade. O Haiti é um país de todas as urgências, de todos os tipos de misérias, mas é um país onde é possível agir, com uma condição: incluir os cidadãos, sem distinção entre homens e mulheres. Tenho o costume de dizer que, no Haiti, o modo de vida e de sobrevivência se baseia na esperança. Esse país sempre consegue superar uma catástrofe após a outra. Por meio da Revolução Haitiana, o país foi capaz de triunfar sobre a barbárie e abolir a escravatura... Com o terremoto, a esperança sofreu um golpe violento. Evoca-se, com frequência, a capacidade de resiliência dos haitianos. Eu gostaria que eles fossem O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 15 reconhecidos por sua capacidade para criar, pensar, exprimir-se. Isso porque, se nos limitarmos à sua capacidade de resiliência, acabaremos acreditando que o Haiti ainda pode esperar, uma vez que seu povo sabe suportar as piores situações possíveis. Em sua opinião, qual é o papel das mulheres na refundação do Haiti? Para minha visita ao Haiti, em março de 2010, escolhi deliberadamente o dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, para chegar ao país. As mulheres, no Haiti, tinham necessidade de ouvir alguém dizer que, sem elas, a reconstrução será um fracasso. Foi absolutamente espantoso ver que, nessa imensa hecatombe em que era praticamente impossível circular, 5.000 mulheres se deslocaram para comunicar-me sua vontade de ver a vida triunfar sobre essa catástrofe. O movimento das mulheres, no Haiti, está extremamente bem organizado. Mulheres importantes que haviam participado da construção desse movimento em todo o país perderam suas vidas, inclusive grandes amigas minhas. Todas aquelas que sobreviveram, estavam de luto, mas animadas, em seu interior, por uma energia sem limites, determinadas a assegurar que, ao final, a vida vença! E qual é o lugar ocupado pela diáspora? A diáspora teve de superar várias dificuldades: não é o primeiro problema enfrentado pelo Haiti. Com a saída dos Duvalier1, em 1986, todas as esperanças renasceram. Vimos emigrantes vender todos os seus bens e voltar para o país. Homens, mulheres e jovens quiseram contribuir para o renascimento do Haiti, assim como para a construção de um Estado democrático e de uma nova governança. Nessa época, já se falava de refundação, de reconstrução e de novo impulso. Contudo, o terreno estava minado. A sucessão de golpes de Estado e a repressão imposta pelas Forças Armadas acabaram asfixiando as esperanças. Após curto período de euforia, os haitianos têm vivido uma prolongada experiência dolorosa. Em 2008, por ocasião dos furacões – 1. François Duvalier, “Papa Doc”, e seu filho, Jean-Claude Duvalier, “Baby Doc”, usurparam o poder no Haiti, entre 1957 e 1986, período marcado pela corrupção, pela supressão das liberdades civis e pela institucionalização do terror. quando cerca de mil pessoas perderam a vida –, pressenti um sinal de mau agouro: não houve reação por parte da diáspora. Ah, como foi terrível ter constatado isso! Na verdade, as pessoas que vivem no exterior tinham ficado decepcionadas com o comportamento dos compatriotas no decorrer dos anos precedentes: a ajuda enviada por elas deteriorava-se em contêineres ou, então, beneficiava apenas funcionários corruptos. O terremoto de 2010 atingiu todos os corações e todas as mentes! A diáspora reanimou-se e tem contribuído. Neste exato momento em que estou falando, as pessoas estão em plena movimentação para participar nesta etapa da evolução do país, que pode ser determinante. Como já foi dito, é preciso fazer dessa catástrofe uma oportunidade para agir! Durante a sua estada no Haiti, em março de 2010, a Sra. sublinhou a importância da educação. Isso aconteceu no âmbito da mesaredonda, em Porto Príncipe, presidida pela Sra., em companhia da diretorageral da UNESCO, Irina Bokova. Quais serão suas ações nessa área? Durante essa visita, o mais importante, para mim, foi identificar as forças em ação. Essa é talvez a minha natureza de haitiana que me leva a pensar que, diante da adversidade, se deve reagir e, para reagir, deve-se apostar nas forças disponíveis. O Haiti é um país onde se pode fazer muito em termos de educação. Por quê? Porque, de maneira intrínseca, na cultura haitiana, no modo de ser do haitiano, na sua história, a educação foi sempre Michaëlle Jean, nascida em 1957, em Porto Príncipe (Haiti), exilou-se com a família no Canadá, em 1968, fugindo do regime ditatorial de François Duvalier. Depois de longa carreira no jornalismo (rede francesa da Radio-Canada e rede inglesa da CBC Newsworld), além de percurso militante na defesa dos direitos das mulheres, Michaëlle Jean assumiu a função de governadora-geral do Canadá (de setembro de 2005 a setembro de 2010). Em 8 de novembro de 2010, ela foi designada como enviada especial da UNESCO para o Haiti. Com o marido, o cineasta Jean-Daniel Lafond, Michaëlle Jean preside uma fundação com seu nome, dedicada à juventude e às artes. 16 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 sinônimo de emancipação e de acesso à liberdade. Nas plantações, os escravos permaneciam analfabetos, mas havia também outra categoria de pessoas: as crianças nascidas das relações entre os senhores e suas escravas. Essas crianças não eram enviadas para as plantações, o que permitiu que aprendessem a ler e a escrever. Os escravos domésticos, como eram chamados, tinham acesso ao conhecimento. Chegava-se, inclusive, a exibir suas proezas. E os escravos das plantações assistiam a tudo isso. Hoje, ao ver os alunos haitianos, é impossível imaginar as terríveis condições em que eles vivem! No entanto, quando vão à escola, essas crianças são sempre preparadas com todo o capricho, elas são lindas e manifestam um sentimento de grande satisfação, e os pais sentem orgulho dos filhos. Todas as famílias, até mesmo as mais pobres, estão dispostas a fazer tudo o que estiver a seu alcance para enviar os filhos à escola! Portanto, as condições são muito favoráveis. Se houver investimento em educação, se o Haiti for ajudado a compor um sistema de educação pública de qualidade, tais projetos serão imediatamente acolhidos como algo importante e útil pela população. Atualmente, há vários projetos educacionais dispersos, faltando ainda coordenação. Penso que a UNESCO dispõe de todas as competências para desempenhar um papel de liderança nessa área e para ajudar o Estado haitiano a criar um quadro normativo para as escolas. Michaëlle Jean, enviada especial da UNESCO para o Haiti. © Stg Serge Gouin, Rideau Hall Crime sem castigo Na Mauritânia, a escravidão tradicional foi substituída pelo trabalho doméstico forçado, lastima Aminetou Mint El Moctar, que está preocupada particularmente com o destino de jovens mulheres. © UN Photo/Jean Pierre Laffont AMINETOU MINT EL MOCTAR responde às perguntas de Laura Martel, jornalista da Rádio França Internacional (RFI) Na Mauritânia, a problemática da escravatura está intimamente relacionada com as mulheres, porque tradicionalmente a condição de escrava era hereditária e transmitida pela mãe. Desde 2007, a legislação mauritana considera a escravidão como crime, mas, na prática, ela continua sem ser condenada, sob formas mais ou menos disfarçadas. Com 55 anos, a Sra. já passou mais de quatro décadas combatendo todas as formas de discriminação, em particular, contra as mulheres. De onde vem seu espírito de militante? Já nasci rebelde! O contexto social e meu ambiente familiar apenas acentuaram essa característica. Com 11 anos, dei meus primeiros passos como militante de esquerda. Eu morava no sudeste de Nouakchott, capital da Mauritânia, em um reduto do Movimento Nacional Democrático. Esse movimento pró-marxista reivindicava emancipação socioeconômica, sem deixar de contestar o poder do presidente Ould Daddah e de seu partido único. Acabei adotando essas idéias, com as quais tive contato na rua, entre amigos ou na escola. Eu lia muito: sobre a resistência das mulheres vietnamitas, sobre a revolução bolchevique e, em particular, sobre a Comuna. A tal ponto que me deram o apelido de “A Comuna de Paris”. Esse ideal de libertação dos povos e de igualdade contrastava radicalmente com as ideias retrógradas e com o espírito feudal que prevalecia na minha família. Nós éramos ricos, tínhamos escravos, meu pai reinava como um patriarca dotado de poder absoluto. Como eu fugia de casa para participar de passeatas e distribuir folhetos, ele me dava surras e me prendia com correntes. Tudo isso fez com que, desde os 12 anos, eu fosse presa em várias ocasiões. Em razão de minha idade, eu era logo solta, mas foi em minha casa onde sofri os piores maus-tratos. Em decorrência dessa experiência, meu compromisso político antes espontâneo se transformou em convicções inabaláveis. Desde então, tenho lutado incansavelmente pela igualdade entre os homens e as mulheres, pelo fim da escravidão e pela defesa dos direitos humanos. Seu compromisso é muito antigo, mas só recentemente é que a Sra. criou a Associação das Mulheres Chefes de Família (Association des femmes chefs de famille - AFCF). O que a levou a tomar essa iniciativa? Durante muitos anos, fiz parte de várias associações, como o Comitê de Solidariedade para Viúvas (Comité de solidarité aux veuves) ou SOS Escravos (SOS Esclaves). Em 1999, assisti ao julgamento de uma mulher. Ela lutava para que os dois filhos fossem considerados herdeiros do falecido pai, uma vez que fora casada não formalmente com um empresário. O tribunal recusou-se a reconhecer tal paternidade. Ao ouvir o veredicto, ela foi literalmente fulminada e morreu a caminho do hospital. Sem marido, portanto, sem dinheiro e sem instrução; logo, sem possibilidade de encontrar trabalho, ela estava consciente de que, em companhia dos filhos, teria de pedir O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 17 esmola para sobreviver. Ela morreu por não ter sido capaz de defender seus direitos. Nesse instante, compreendi que já era tempo de lutar em favor dessas mulheres abandonadas por todo o mundo, e, imediatamente, fundei a Associação. Contudo, por razões administrativas, nossas atividades começaram realmente apenas em 2005. Atualmente, a AFCF tem mais de 10.000 sócios e garante emprego para 62 pessoas. Nossa equipe e nossos custos operacionais são pagos pelas cotizações. Além disso, nossos projetos são financiados com o apoio recebido de várias entidades. A sociedade mauritana é multicultural com dois componentes principais: os árabes-berberes e os negros africanos. Será que as mulheres ocupam a mesma posição nessas duas comunidades? No cerne das duas comunidades, a mulher exerce tradicionalmente a mesma função: ela é “feita para o casamento e para satisfazer o desejo do homem”, mas tal entendimento traduz-se de forma diferente na vida cotidiana. O tipo de obrigações é variável. Para as negras africanas, uma boa esposa ocupa-se essencialmente das tarefas domésticas, da educação dos filhos e da satisfação do marido. Se a mulher ganha dinheiro, ela deve entregá-lo, em geral, ao “dono da casa”. Por sua vez, as mulheres árabe-berberes escapam, na maior parte das vezes, às tarefas domésticas. Não apenas porque suas famílias são, muitas vezes, mais abastadas, mas também porque a mulher deve ser “preservada” para que possa ser casada da melhor maneira possível. Mimá-la e forçá-la a alimentar-se constitui investimento. A honra da família apoia-se, em particular, no fato de que as moças se casam precocemente: “ela casou-se cedo” é um adágio utilizado com frequência pelos griôs como elogio. A tradição nômade outorga mais liberdades às mulheres árabe-berberes que a suas irmãs negras africanas, no que se refere às respectivas atividades. Além disso, as árabes-berberes mauritanas têm uma concepção tradicional do divórcio bem particular: não só ele é aceito, mas pode constituir um valor agregado para a mulher! A mulher que se divorciou várias vezes é altamente cobiçada. Eu mesma tenho três filhos de pais diferentes e já casei cinco, seis ou sete vezes... mas agora acabou! (risos) O divórcio é, pelo contrário, mal visto entre os negros africanos, que tradicionalmente praticam a poligamia com maior frequência do que ocorre com os árabes-berberes, embora a atual tendência obscurantista esteja implicando ressurgimento dessa prática entre estes. Tudo isso não passa, é claro, de generalidades, mas existem muitas exceções. Alimentação forçada, casamento precoce, mutilação genital feminina, escravidão, trabalho doméstico… a lista de violações dos direitos das mulheres é longa. Qual é a sua prioridade? O mais urgente consiste em estabelecer igualdade entre homens e mulheres no plano legal. No decorrer dos séculos, a jurisprudência tem feito uso de imperativos religiosos com costumes tradicionais para criar instrumentos discriminatórios. Na Mauritânia, a mulher tem, ao longo de sua vida, um tutor legal, que pode ser o pai, o marido ou, até mesmo, o filho. Portanto, ela não tem nenhum direito em relação à sua própria pessoa. Consideremos o exemplo do casamento. Segundo o Código do Estatuto Pessoal, a idade legal do casamento é de 18 anos, mas, havendo acordo do tutor, ele pode ser celebrado mais cedo. Esse dispositivo legaliza o casamento precoce e retira o poder de decisão das mulheres. Foi assim que, certo dia, ao voltar para casa depois da escola, me dei conta de que estava casada com um amigo do meu pai. Eu tinha 13 anos. Além disso, os filhos homens têm direito a dois terços da herança, e o pedido de divórcio só pode ser apresentado pelo homem. A Mauritânia assinou a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação 18 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 contra a Mulher, mas com duas reservas, precisamente em relação ao divórcio e à herança. Atualmente, a AFCF faz campanha para que tais reservas sejam retiradas. Por meio da inserção da igualdade entre homens e mulheres na lei, teremos à nossa disposição os meios necessários para combater as discriminações de fato, mesmo que se trate apenas de uma primeira etapa, já que um grande número de leis não são aplicadas. Esse é o caso, em particular, da lei de 2007 que criminaliza a escravidão. A Sra. sublinha frequentemente que nenhuma condenação foi pronunciada desde a adoção desse texto: isso significa que deixou de haver escravos na Mauritânia? É algo dificilmente quantificável, por se tratar de assunto tabu. No entanto, sabemos que persiste a escravidão, porque temos acolhido vítimas nessa situação regularmente. A AFCF tem denunciado, com outras associações e em várias oportunidades, casos de escravidão às autoridades, mas, até agora, nenhum processo resultou em condenação. Os “senhores”, que, muitas vezes, ocupam posições elevadas na hierarquia social, são protegidos. A problemática da escravidão está intimamente relacionada com as mulheres, já que, segundo a tradição, ela é hereditária e transmitida pela mãe. É, portanto, mais interessante para o “senhor” dispor de mulheres escravas, L Durante séculos, imperativos religiosos e costumes tradicionais criaram instrumentos discriminatórios no que se refere às mulheres na Mauritânia, segundo Aminetou Mint El Moctar. © Pepa Martin, Espagne Em sua opinião, a Mauritânia é uma plataforma para o tráfico de crianças e adolescentes? Esse tráfico existe há muito tempo, mas ganhou maior amplitude nos últimos anos. Os traficantes vão à procura de crianças e adolescentes nas famílias pobres das zonas rurais, prometendo aos pais que as filhas terão um emprego, ou uma peregrinação religiosa, um casamento de prestígio, uma quantia em dinheiro... As meninas passam por Nouakchott, antes de serem levadas para o Golfo, onde são vendidas e acabam casando. Se forem negras, elas são despigmentadas. Ao atingirem a idade de 18, 20 anos, os maridos jogam-nas na rua, porque já não são suficientemente jovens para seu gosto, e, na maior parte das vezes, elas ingressam na prostituição. Mesmo que não tenham atingido a maioridade, eventualmente podem ser expulsas. Há três anos, no aeroporto, encontrei 14 meninas com cerca de 15 anos de idade que tinham vivenciado esse tormento e estavam sem destino. A rede de prostituição estende-se também para a Europa. Atualmente, a AFCF procura angariar fundos para financiar uma pesquisa que visa a avaliar a amplitude desse fenômeno. Existem áreas em que há uma evolução positiva? A mutilação genital feminina! Embora ela esteja desaparecendo em ritmo bastante lento, essa prática começa a ser abandonada coletivamente, graças às diversas convenções e às contribuições de entidades que têm despendido muito dinheiro em campanhas de informação, além do comprometimento de algumas personalidades religiosas. Em 2010, foi assinada uma fatwa (lei religiosa) contra a mutilação genital feminina. A polícia e a justiça estão igualmente sensibilizadas, porém, mais uma vez, não há praticamente nenhuma condenação. A alimentação forçada está em declínio também, em particular pela mudança progressiva nos critérios de beleza. No entanto, mais de 20% das mauritanas ainda comprometem sua saúde, na tentativa de engordar, ainda mais que atualmente os métodos tradicionais estão sendo substituídos por suplementos alimentares, muitas vezes perigosos para o organismo. Finalmente, em termos de representação política, alcançamos progressos consideráveis entre 2005 e 2007, inclusive com a instauração de cota de 20% de mulheres nas instituições eletivas. Atualmente, temos uma ministra das Relações Exteriores, mas o número de cargos de responsabilidade ocupados por mulheres (secretarias de Estado, prefeituras, governadorias) está diminuindo desde 2008. Simbolicamente, o Ministério da Promoção Feminina voltou a ser incluído no Ministério dos Assuntos Sociais. Além disso, a Mauritânia, à semelhança de outros países, enfrenta pressões por parte de uma corrente obscurantista que pretende reduzir as mulheres à função de donas de casa. Na sua opinião, o que deve ser feito pelas mulheres para defenderem melhor seus direitos? Tradicionalmente, as mulheres não recebem educação religiosa aprofundada; elas aprendem “apenas o que é necessário para rezar”. Ora, o fato de conhecer melhor a religião deveria permitir que elas se livrassem de certas práticas. Por exemplo, eles ficariam sabendo que a mutilação genital feminina ou a poligamia não são impostas pelo Alcorão. Penso também que as religiões, incluindo o Islã, devem adaptar-se ao mundo contemporâneo: devemos solicitar aos eruditos uma interpretação “moderna” dos textos sagrados. Na Mauritânia, as mulheres são a maioria: elas representam 52% da população. Existe, por conseguinte, potencial para que uma elite feminina se desenvolva, sendo capaz de superar divisões ideológicas e raciais. Em colaboração com a ONG norteamericana Parceria de Aprendizagem das Mulheres (Women’s Learning Partnership), a AFCF está formando anualmente 100 mulheres para que desempenhem funções de liderança. A política é um meio para atingir nossos fins, mas convém reconhecer que não é necessariamente o melhor, porque muitas mulheres, uma vez que assumem seus cargos, costumam ceder ao oportunismo individual. Nesse caso, impõe-se uma tomada de consciência coletiva, que está começando a se formar. Por que razão a Sra. não ingressou na vida política? Porque prefiro o trabalho de campo, junto das vítimas. Ao mobilizar as mulheres de rua, conseguiremos ganhar mais credibilidade. Sei que se trata de um trabalho exaustivo, mas sinto claramente que estamos em um momento de virada: os esforços da Associação foram recompensados pela atribuição do Prêmio dos Direitos Humanos da República Francesa, em 2007, e do Prêmio Heróis em Luta contra a Escravidão Moderna (Heroes Acting To End Modern-Day Slavery Award), concedido pelo Departamento de Estado norte-americano, em 2010. Este reconhecimento encoraja um número cada vez maior de organismos internacionais a financiar nossos projetos. A jurista mauritana Aminetou Mint El Moctar fundou a Associação das Mulheres Chefes de Família (Association des femmes chefs de famille – ACFC). O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 19 © Cridem.org uma vez que ele se apropria da prole delas. No entanto, essa expressão tradicional da escravidão – em que as pessoas, de geração em geração, são propriedade do “senhor” – está em declínio. Infelizmente, ela está sendo substituída por uma forma de escravidão mais “moderna”: o trabalho doméstico. Famílias pobres levam as filhas para casas de famílias ricas, recebendo em troca, muitas vezes, apenas alojamento e comida. Essas meninas, em geral muito jovens, não têm qualquer instrução e, não raro, são vítimas de violência. Em Nouakchott, é possível encontrar inúmeros casos desse tipo. Essas meninas vêm principalmente das zonas rurais do país, mas também dos Estados vizinhos, como Senegal, Mali e Gâmbia. Em cooperação com a associação de solidariedade internacional Terra dos Homens, lançamos, em 2009, um programa que nos permitiu ajudar 2.200 crianças e adolescentes. Mamãe Maggy e seus 20.000 filhos Encontro com Maggy Barankitse © UNESCO/Danica Bijeljac JASMINA ŠOPOVA Seu país ainda estava em guerra quando ela começou a construir sua casa. Para começar, usou um carrinho de mão. Transportou e enterrou os restos mortais de 72 pessoas assassinadas na sua frente, a maior parte das quais haviam procurado refúgio nas instalações da diocese em que ela trabalhava. Em seguida, ela foi aos campos de batalha para procurar por crianças sobreviventes. “Algumas estavam cegas, enquanto outras tinham perdido os braços”. Ela forneceu-lhes curativos e alimentação... mas era necessário também uma casa para abrigá-las. 20 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 Maggy Barankitse tinha 37 anos de idade quando a guerra civil eclodiu em Burundi, um dos menores e mais pobres países do continente africano. De 1993 até o início da década de 2000, o conflito entre tutsis e hutus ceifou mais de 200.000 vidas, mas acabou poupando a sua. Ela então dedicou-se a salvar a vida de milhares de crianças em sua região natal de Ruyigi, perto da fronteira com a Tanzânia, e também em todo o país. “Atualmente, eu sou a mãe mais feliz do mundo - tenho 20.000 filhos”, declara com um sorriso radiante nos lábios. “Tentamos instruir as crianças de uma geração fratricida para criar uma nova geração que seja capaz de respeitar o semelhante. Não fazemos distinção entre filhos de vítimas e filhos de criminosos, elas todas são apenas crianças que precisam ser amadas e reconfortadas. Atualmente, 75% dos meus colegas – médicos, psicólogos, economistas, enfermeiros, professores – fazem parte das crianças tutsis e hutus que cresceram juntas na Casa Shalom.” Não se deve imaginar essa casa com quatro paredes cobertas com um telhado. Há 17 anos, “mamãe Maggy” utilizou diferentes espaços que lhe foram emprestados ou cedidos para abrigar os órfãos da guerra, antes de criar três grandes orfanatos. “Mas eu me dei conta”, confessa ela, “de que as crianças que crescem nesses lugares perdem o senso de responsabilidade. Acabei fechando os orfanatos para montar uma série de estabelecimentos vinculados à nossa associação. Pouco a pouco, criei, por todo o país, centros para abrigar pequenos grupos de irmãos – hoje contamos com três centros. Consegui também que algumas crianças fossem É difícil exprimir em números exatos o alcance da ação da Casa Shalom. “Como trabalhamos em todo o território nacional, eu não posso dizer quantas pessoas receberam nosso apoio. Nossas escolas acolhem todas as crianças dos municípios onde foram construídas por nossa iniciativa. Do mesmo modo, as bibliotecas e as salas de cinema instaladas por nós são acessíveis a todo o mundo.” Atualmente, a associação garante emprego a 220 assalariados, sem contar os voluntários. Além disso, ela recebe o apoio de mais de 40 instituições de caridade, de organizações diversas e de governos. De fato, Maggy Barankitse é muito convincente na hora de pedir ajuda, mas talvez por causa disso ela não Relatório Mundial de Monitoramento sobre a Educação para Todos 2011, dedicado ao impacto dos conflitos armados sobre a educação. “Essa menina, vítima de estupro na República Democrática do Congo, de quem se falou hoje na conferência, é que deveria ter sido convidada no meu lugar. É ela que deve falar de si mesma. Temos que abrir as portas das salas de reuniões para essas pessoas. Elas têm voz e não necessitam de porta-vozes! Mesmo que não falem inglês nem francês, elas devem ter direito à palavra.” E para concluir o capítulo das críticas: “eu gostaria que houvesse um questionamento quanto à ação das Agências das Nações Unidas. Que elas deixassem de organizar tantas reuniões © Maison Shalom, Ruyigi recebidas por famílias. Eu comparo a Casa Shalom com um barco, cujo capitão é Deus.” Cristã fervorosa, Maggy Barankitse tem uma única religião: o amor. “Os homens e as mulheres têm amor suficiente em seus corações para dizer ‘não’ ao destino e ‘não’ ao ódio fratricida”, afirma essa mulher que organizou uma “votação democrática” com as crianças quando chegou o momento de batizar sua associação. “Foram as crianças que deram à sua casa o nome de ‘Shalom’. Trata-se de uma palavra de origem hebraica, mas seu alcance é universal, porque significa ‘paz’. As crianças muçulmanas também levantaram a mão na hora de votar.” No decorrer dos anos, ela também construiu para seus filhos um centro de ensino de profissões, onde eles podem aprender técnicas de carpintaria, agricultura, pecuária, costura e trabalhos hidráulicos. No entanto, seu maior motivo de orgulho é o hospital que, por sua iniciativa, foi construído em Ruyigi, incluindo um centro de proteção materna e infantil: “consegui colocar em prática um grande hospital, de modo a prevenir a ocorrência de alguns incidentes. Eu não suportava mais acolher bebês que haviam perdido a mãe no momento do parto – ninguém no mundo pode substituir a ternura de uma mãe; nenhuma instituição, nenhum centro é capaz de substituir uma mãe. Construí uma bela maternidade e montei uma escola de enfermagem. Bati em todas as portas para conseguir uma ambulância. Em seguida, visitei as mães em suas aldeias para dizer-lhes que, agora, elas têm a possibilidade de recorrer a nossos serviços sempre que tiverem necessidade de ajuda.” Para as mulheres soropositivas e para as doentes de AIDS, Maggy Barankitse abriu um centro especial no qual, além de serem acolhidas, alimentadas e tratadas com medicamentos antivirais, elas recebem ajuda psicológica e orientações para o seu futuro. “Elas aprendem a se organizar, a criar associações e pequenas cooperativas. Veja isto aqui”, diz ao chamar nossa atenção para o belo vestido colorido que ela usa durante o nosso encontro, na sede da UNESCO, “foram elas que confeccionaram! O essencial não consiste em dar assistência a essas mulheres, mas em ajudá-las a se tornarem autossuficientes”. K Maggy Barankitse tem muito orgulho deste hospital que ajudou a construir em uma zona rural da região de Ruyigi, no Burundi. evita criticar abertamente determinados comportamentos. Por exemplo, mesmo que o UNICEF ajude a Casa Shalom, ela indigna-se com as centenas de escolas feitas de plástico espalhadas pelo país que ostentam a logomarca do UNICEF. “Ao invés de nos enviar o plástico fabricado em empresas do Ocidente e nocivo para a saúde das crianças, eu me pergunto por que o Fundo não nos ajuda a comprar palha – um material muito mais adaptado ao nosso ambiente e ao nosso clima –, para que nós mesmos possamos construir nossas escolas e, ao mesmo tempo, receber um salário que nos permita escolarizar nossos filhos?” Esse tom enérgico também é utilizado em relação à UNESCO. Com efeito, ela participou, na sede da Organização, do lançamento do internacionais, que deixassem de se basear tanto nas estatísticas e que estivessem mais presentes onde fazem falta: nos lugares que necessitam de ação.” “Quanto a mim, eu vivo no mato, em uma região esquecida do mundo”, declara Maggy Barankitse, ainda com mais veemência. “Vivo em uma ‘zona de risco’, por onde, de vez em quando, passa um jornalista que vem bater algumas fotos e logo se apressa em ir embora. Vivo em um lugar onde os funcionários estrangeiros passam três semanas antes de ir descansar em Zanzibar! Quando comecei meu trabalho, eu ficava chocada com esses comportamentos. Mas depois compreendi: deve-se abrir a boca e falar. Quem não critica não ama o que faz, porque não existe amor sem a verdade.” O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 21 Sem medo de nada SULTANA KAMAL responde às perguntas de Anbarasan Ethirajan, jornalista indiano na BBC – Bangladesh Em Bangladesh, as mulheres têm ocupado posições políticas de alto nível e, no entanto, a discriminação sexual não deixa de ser institucionalizada nesse país, segundo a militante Sultana Kamal. A progressão do fundamentalismo – neste país que se propõe laico, mas onde o islamismo continua sendo a religião de Estado – assim como as interrupções do processo democrático têm incidências diretas sobre a condição das mulheres. Neste ano, o Bangladesh comemora o 40º aniversário de sua independência. Desde então, quais foram as mudanças verificadas na vida das bengalesas? Muitas coisas mudaram desde a libertação do país. Atualmente, as mulheres estão, em geral, muito mais conscientes de seus direitos, reivindicando-os com maior determinação, e conseguindo manifestar suas opiniões no cenário político e social. Certamente, a situação não evolui no mesmo ritmo em todas as regiões do país, e poderia ter havido mais avanços, não fossem as interrupções do processo democrático ou a progressão do fundamentalismo. De maneira geral, os bengaleses nunca chegaram a aprovar a ortodoxia religiosa no país. Em razão disso, as mulheres sempre se beneficiaram de um clima bastante liberal, que tem sido utilizado por elas para manifestar suas opiniões, participar de debates e envolver-se em vários aspectos da vida social. Em Bangladesh, as funções de primeiro-ministro e de líder da oposição são ocupadas por mulheres, Sheikh Hasina e Khaleda Zia, ou seja, uma situação no mínimo insólita em um país cuja população é majoritariamente muçulmana. Gosto da maneira como você apresenta as coisas, ao afirmar que se trata de uma situação insólita em um país cuja população é majoritariamente muçulmana. De fato, o Bangladesh é um país em que a maioria da população é 22 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 muçulmana, mas não nos consideramos como um Estado muçulmano. É um país onde vivem pessoas de diferentes religiões e coabitam numerosas culturas que, por sua vez, são reverenciadas e respeitadas. Entretanto, no que se refere ao fato de os cargos mais elevados do Estado serem ocupados por mulheres, convém lembrar o seguinte: ao dar o voto a Sheikh Hasina, os eleitores estavam votando, na realidade, em seu falecido pai, Sheikh Mujibur Rahman, o primeiro presidente do país. E no caso de Khaleda Zia, o voto era dado efetivamente a seu falecido marido, o general Ziaur Rahman, ex-ditador militar. Os bengaleses conservam uma imagem bem marcante desses dois líderes famosos de nossa sociedade. No entanto, o simples fato de essas mulheres desempenharem uma função de poder e exercerem controle real sobre a situação no país dá às bengalesas um sentimento de confiança, a convicção de que as mulheres podem também chegar ao topo da hierarquia social. Qual é a identidade predominante no Bangladesh: a bengalesa ou a muçulmana? Um grande número de meus compatriotas questiona-se para I Em Bangladesh, as filas de mulheres esperando para votar são quase sempre mais longas que as dos homens. © Faizal Tajuddin, Kuala Lumpur saber se eles são, em primeiro lugar, muçulmanos ou bengaleses. Esse conflito tem suas raízes na época em que o Bangladesh fazia parte do Paquistão: os líderes militares paquistaneses desafiavam constantemente os habitantes do Paquistão Oriental a provarem sua lealdade como paquistaneses. Era exigido que provassem ser verdadeiros muçulmanos, vinculando, desse modo, a identidade muçulmana com a identidade paquistanesa. A maioria dos bengaleses, todavia, pensa que é possível ter várias identidades. Sim, sou muçulmana, ou nasci no seio de uma família muçulmana; mas sou também bengalesa, sou também mulher e sou também militante em favor dos direitos humanos. Tenho um grande número de identidades diferentes. Da mesma forma, há hindus e cristãos que têm várias identidades. Como já disse, o povo de Bangladesh acredita, fundamentalmente, no pluralismo. Aliás, acredita no sufismo: sua relação com a natureza, com Deus e com todos os mistérios da vida está, creio eu, intimamente associada à própria percepção de si mesmo e da natureza. O amor dos bengaleses por seu país mistura-se com seu amor pelos rios, pelas árvores e pela natureza. A cultura bengalesa está intimamente associada à harmonia fundamental que meus compatriotas procuram ver em todos os lugares. Inicialmente, não havia a cultura do confronto: essa foi forjada e tem sido apoiada constantemente por forças presentes na sociedade que, de vez em quando, conseguem tomar o poder e estender sua influência, por meio dos sistemas econômico e educativo, além dos organismos culturais. Em que medida as forças fundamentalistas islâmicas têm modificado a vida social e cultural em Bangladesh? Os fundamentalistas apoderaram-se dos setores-chave da sociedade: bancos, companhias de seguro, saúde, educação etc. Sua influência é mais prejudicial no sistema de ensino, porque eles modificaram todos os programas e todos os métodos de informação no país. A interpretação correta da religião passa necessariamente por seu ensino ou pela submissão à sua maneira de pensar. Eles servem-se do terror para ter acesso ao poder ou manter-se nele. Todos os danos infligidos à sociedade de Bangladesh pelos fundamentalistas têm sido causados pelas armas. Eles fazem uso do dogma que nos diz que nada pode ser questionado. A população não tem, portanto, outra escolha, além de submeter-se. Eles servem-se também da liberdade de expressão e das oportunidades oferecidas pela democracia para impor obrigações de cunho religioso. E repetem incessantemente: “queremos a cabeça dessa pessoa” ou, então, “esse indivíduo deve ser enforcado, porque é um traidor”, sempre que uma pessoa diz algo que eles consideram como blasfêmia. Tais métodos aterrorizam a população. Contudo, você terá observado também que poucas pessoas apoiam realmente essas práticas. Um grande número de bengaleses manifesta-se contra essas acusações, desde que eles tenham a certeza de que sua tomada de posição não terá repercussões, nem implicará represálias por parte dos fundamentalistas. No entanto, existem outros atores da sociedade que os apoiam, incentivam e protegem, cada vez que se sentem em perigo, como nos períodos eleitorais. Nos últimos anos, os tribunais de Bangladesh têm proferido vários julgamentos, proibindo que a mulher seja obrigada a usar a burca ou o véu. Em Daca, observa-se que tais decisões são aceitas, mas, fora da capital, percebe-se que as mulheres continuam usando o traje islâmico tradicional. Em primeiro lugar, convém lembrar que as mulheres das zonas rurais dispõem de recursos bem precários para serem independentes no plano econômico e social. Essas mulheres pertencem, na maior parte das vezes, à classe média baixa ou às camadas menos favorecidas da sociedade. Então, servem-se desse tipo de estratégia para poderem sair de suas casas. Quando falamos com elas, confidenciam-nos que a família não permite que venham para a rua sem burca. Portanto, elas são obrigadas a usá-la, se pretendem ir para a escola, para o trabalho ou para uma reunião. A que se deve tal situação? Nas zonas rurais, os homens também são privados de inúmeras oportunidades pelos líderes sociais, que, infelizmente, estão associados com a hierarquia religiosa. Com isso, tais líderes influenciam os maridos a controlar as respectivas mulheres dessa maneira. Como, durante anos, este país foi dirigido por generais que estabeleceram sólidas alianças com as forças religiosas, essas práticas foram incentivadas, alimentadas e, até mesmo, protegidas pelo Estado. Em razão disso, não será fácil para que algumas mulheres deixem de usar a burca da noite para o dia. É possível ver, atualmente, um número muito maior de burcas no Bangladesh, em relação ao que se via quando o país fazia parte do Paquistão. Para mim, essa é uma das consequências das interrupções do processo democrático, durante as quais o povo bengalês foi obrigado a submeter-se a determinados poderes e a certas forças que não desejavam que ele se exprimisse e reanimasse o espírito da Guerra de Libertação, de 1971. Nessa época, havia um conflito aberto entre os grupos da linha dura, contrários à independência, e as forças que haviam lutado pela independência de Bangladesh. Outro tema delicado: os ataques à base de ácido contra as mulherese o assédio sexual das meninas, que levam frequentemente ao suicídio das vítimas. Será possível controlar essas práticas pela simples promulgação de leis? Como se trata de um problema social, ele deve ser tratado com medidas de cunho social. Temos de criar um ambiente em que as mulheres tenham confiança suficiente para lutar contra essas práticas. Além disso, é necessário envolver o Estado, a sociedade e as famílias na proteção das mulheres. Temos de conversar com as famílias, levando-as a compreender, com toda a clareza, que, neste país, as mulheres têm os mesmos direitos e a mesma dignidade que os homens, e que estes princípios devem ser respeitados. Nesse ponto, é impossível fazer qualquer tipo de concessão. A luta contra essas práticas deve inscrever-se em um movimento social. No entanto, a legislação é, igualmente, útil, por conferir uma espécie de poder e confiança no que concerne à possibilidade de combater esses problemas no plano legal. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 23 Será que a discriminação sexual se encontra institucionalizada em Bangladesh? Se analisarmos a legislação civil vigente em Bangladesh, eu tenderia a dar-lhe uma resposta afirmativa. De acordo com esses textos, o povo deve ser governado por leis religiosas que, por sua vez, discriminam claramente as mulheres. Todavia, o Estado não faz nada para lutar contra essa discriminação. Desde 1972, estamos pedindo a adoção de um código civil ou de um código da família uniforme para todos. O governo é incapaz de agir sobre esse ponto, de modo que ainda não definimos claramente o que é a discriminação positiva ou a igualdade de gênero neste país. Temos esbarrado em uma forte resistência no coração da sociedade que se reflete nas políticas do Estado. Atualmente, há uma polêmica sobre o modo pelo qual Bangladesh está tratando os refugiados da etnia rohingya, da vizinha Myanmar. Qual sua opinião a respeito? Em primeiro lugar, creio que os partidários do fundamentalismo em Bangladesh estão explorando a situação dessas pessoas. Esse é um aspecto do problema; outro aspecto, segundo nosso ministro das Relações Exteriores, é de ordem econômica. A partir do momento em que se reconhece a condição de refugiados a essas pessoas, temos de tratá-las conforme os tratados internacionais existentes, e L Em Sultana Kamal, na inauguração de projeto de construção de escola para crianças carentes e órfãs. © ASK, Dakha) isso acarretará um peso econômico que Bangladesh não pode assumir. Outro problema diz respeito ao número dessas pessoas. O Bangladesh não tem condições de acolher uma população tão grande. No entanto, como militante da causa dos direitos humanos, eu gostaria que se reconhecesse a existência de todos esses problemas para que pudéssemos tratá-los de forma adequada. Tenho a convicção de que essas pessoas têm direitos que devem ser respeitados. Falemos, agora, de sua vida. O que levou a Sra. a tornar-se militante em favor dos direitos das mulheres? Cresci em um ambiente frequentado por um grande número de ativistas sociais e políticos. Meus pais estavam envolvidos intensamente no movimento antibritânico. Em seguida, minha mãe iniciou o movimento das mulheres em Bangladesh e desempenhou um papel importante no movimento em favor da língua bengali, assim como nos movimentos culturais das décadas de 1950 e 1960. Envolvi-me na vida pública, no momento da Guerra de Libertação do país. Durante a guerra, que durou nove meses, passei vários meses na Índia com minha irmã. Chegamos a montar um hospital para tratar os feridos da luta pela independência. Anteriormente, eu tinha ajudado meus compatriotas a obter informações ou refúgio, além de auxiliá-los a atravessar a fronteira. Após a libertação, em 1971, comecei a trabalhar com as mulheres que haviam sido atingidas impiedosamente pela guerra e visitavam minha mãe. Na maior parte das vezes, elas tinham perdido os maridos e encontravam dificuldades para conviver com a família deles. Outras desejavam saber se podiam casar-se novamente e conservar os filhos do primeiro casamento. Foi por isso que decidi estudar direito e me tornei advogada. Percebi que, como detentora de uma bagagem jurídica, eu poderia ser útil a essas mulheres. Eu queria ajudá-las a compreender que elas tinham direitos e podiam viver com dignidade. A Sra. tem sido ameaçada em muitas ocasiões e, inclusive, já sofreu um atentado. Já chegou a pensar em desistir? Para dizer a verdade, não, porque meus pais ensinaram-me que, ao abandonar o combate, perde-se metade da batalha. Por que haveria eu de abandonar as causas em favor das quais tenho lutado e deixar que algumas pessoas pensassem que tinham vencido minha resistência? Temos apenas uma vida a perder, é nisso que está a sua força. Descontentes pelo fato de eu ter casado com um hindu e por eu me relacionar com determinadas pessoas, os fundamentalistas incendiaram minha casa, em 1995. Por um triz, não perdemos a vida. Mais tarde, lançaram também uma bomba na minha residência. No entanto, nunca fiquei preocupada com o meu bem-estar ou com a minha vida. Com certeza, sinto responsabilidade em relação a meu marido e a minha filha. Eles têm direito de contar comigo. No entanto, mesmo nesse aspecto, penso que a maneira como fui criada e comecei a perceber os problemas da vida me ensinou que nunca deveria ter medo. O medo não serve para nada, não traz solução para os problemas. Sultana Kamal, militante bangladeshiana em favor dos direitos das mulheres, é diretora-executiva de Ain Shalish Kendra (ASK): essa ONG do Bangladesh, que garante assessoria jurídica e defesa dos direitos humanos, fundada em 1986, beneficia-se do apoio financeiro da Embaixada dos Países Baixos, da agência alemã NETZ, da Save the Children e de outras organizações. Seus fundos provêm, igualmente, dos serviços prestados, principalmente, no domínio da formação e das publicações. Levando em consideração apenas os números de 2010, a ASK forneceu ajuda jurídica gratuita a 4.000 mulheres. Uma advogada de caráter inabalável “A lei é que é criminosa”, costuma responder a advogada Asma Jahangir, quando um juiz lhe censura o fato de que ela sempre assume a defesa de mulheres acusadas de cometer crimes. Nada consegue deter essa ativista paquistanesa no combate contra os chamados crimes de honra, a favor dos direitos econômicos das mulheres e, acima de tudo, em defesa da universalidade dos direitos humanos, aplicáveis a todos, sem exceção. © DR ASMA JAHANGIR responde às perguntas de Irina Zoubenko-Laplante A Sra. passou a vida defendendo os direitos humanos. Como advogada, o que a incentivou a especializar-se nessa área? Cresci em uma família envolvida na política. Meu pai, Malik Jilani, foi um líder político que sempre esteve na oposição e, por isso, sofreu por toda a sua vida. Fui testemunha do que signif ica o fato de dirigir-se a um tribunal, sabendo de antemão que a justiça não seria feita. Com o tempo, compreendi a importância do trabalho dos advogados. No início da década de 1980, a Sra. criou o centro de assistência jurídica AGHS, gerenciado exclusivamente por mulheres. Pode nos falar sobre ele? Ao concluir meus estudos, após a obtenção do diploma de Direito pela Universidade de Punjab, dei-me conta de que nenhum escritório de advocacia me contrataria. Pensei comigo mesma que a melhor solução seria com certeza montar o meu próprio escritório. Então, associei-me com duas amigas e, depois, com minha irmã, Hina Jilani. Nesse momento, as mulheres encontravam-se totalmente oprimidas. O movimento feminista estava dando seus primeiros passos, mas já havia um movimento dos advogados. Encontramo-nos no centro desses dois grupos e, em seguida, começamos a defender nossas causas. Que dificuldades teve de enfrentar como ativista dos direitos humanos? Nos últimos cinco ou seis anos, recebi várias mostras de reconhecimento, tanto no exterior quanto no meu país. Contudo ainda hoje, se você falar de mim com alguém que não acredita na universalidade dos direitos humanos, essa pessoa vai dizer que sou uma mulher ocidentalizada, sendo que na verdade nunca estudei nem vivi no exterior. Vai dizer também que sou contra a religião, porque penso que todas as pessoas têm o direito à escolha de ter ou não uma religião. Por fim, dirá que sou contra o Paquistão, porque acredito que meu país deve viver em paz com seus vizinhos… No entanto, eu também venho de uma sociedade feita de contradições. Em nosso país, as mulheres são objeto de violência e de desprezo, sendo que, o Paquistão foi o primeiro Estado muçulmano do mundo em que uma mulher ocupou o cargo de primeiroministro: Benazir Bhutto, uma pessoa muito corajosa. Em nosso país, existem pessoas que ameaçam as mulheres como eu, mas também há outras que nos dão apoio, proteção e incentivo. Aprendi muito e devo muito a meus compatriotas. Com o tempo, compreendi quais são as três qualidades necessárias para defender nossos ideais: em primeiro lugar, é necessário ter um caráter inabalável; em segundo lugar, é preciso ser perseverante; e, em terceiro lugar, deve-se constantemente buscar novas soluções. Ainda me lembro que quando comecei a defender os trabalhadores braçais (pessoas que estão submetidas Em 10 de dezembro de 2010, Dia dos Direitos Humanos, a diretora-geral da UNESCO, Irina Bokova, e o prefeito de Bilbao (Espanha), Iñaki Azkunale, entregaram o Prêmio UNESCO/Bilbao para a Promoção de uma Cultura dos Direitos Humanos à advogada paquistanesa Asma Jahangir. Ela nos concedeu esta entrevista na ocasião do recebimento do Prêmio. Irina Zoubenko-Laplante trabalha na Divisão de Direitos Humanos, Filosofia e Democracia da UNESCO. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 25 K Esta jovem faz parte do grande grupo de deslocados internos que, em junho de 2009, abandonou no Paquistão, fugindo dos combates. © UNICEF/NYHQ2009-0931/Marta Ramoneda a uma certa forma de escravidão), o juiz lhes perguntava: “Vocês reconhecem esta mulher? Ela é a advogada de vocês?” Eles estavam tão amedrontados que acabavam negando que me conheciam. Por pouco não fui expulsa da ordem dos advogados, porque meus próprios clientes afirmavam que não haviam me contratado. Porém, com perseverança, consegui ganhar a confiança deles e fiz com que se decidissem falar. Um dia, uma trabalhadora que viera depor perante a Corte Suprema respondeu com toda a confiança ao empregador que a havia acusado de mentir: “quem é o mentiroso: você ou eu? Vou dizer a este Tribunal que, além de ser mentiroso, você é um explorador”. Naquele dia, eu disse comigo mesma que tinha vencido a causa! Atualmente, a servidão por dívidas não desapareceu por completo, mas um grande número de trabalhadores ganhou a liberdade. Para defender seus princípios, também se deve ter um caráter inabalável. Lembro-me que, em 1983, algumas pessoas propuseram, em nome do Islã, uma lei que reduziria pela metade o valor do testemunho das mulheres em relação ao dos homens. Muitas mulheres – em particular da classe alta – saíram às ruas para protestar, sem ter consciência do perigo que corriam. A polícia interveio: além de nos arrastar pelos cabelos, ela nos espancou. Mais tarde, um mulá declarou que nossos casamentos estavam dissolvidos e que nossos maridos deveriam divorciar-se, mas nenhum deles levou isso a sério. Essa foi uma experiência difícil, mas encheu-nos de coragem, não só às 150 mulheres que foram espancadas pela polícia, mas também a muitas outras mais. Desde então, o número de militantes femininas tem-se multiplicado. Quando estou em situação de perigo, um dos meus filhos me diz: “Mamãe, os direitos humanos, ainda que a senhora não lute por eles, acabarão chegando de qualquer forma no momento oportuno, ainda que com apenas um minuto de atraso!”. Eu penso que é justamente esse minuto que justif ica o trabalho dos ativistas dos direitos humanos. Qual é a sua principal preocupação quanto à condição das mulheres? Quando comecei minha carreira de advogada, muitas mulheres eram condenadas à prisão por causa de uma lei nova que considerava crime as relações sexuais fora do casamento. Ainda hoje isso acontece, ainda que de forma mais atenuada. Até mesmo as mulheres que haviam sido vítimas de estupro, mas que não podiam comprová-lo, eram presas. Durante os processos, os juízes perguntavam: “a senhora não tem outros clientes além dessas criminosas?”. Ao que eu respondia: “Meritíssimo, criminosa é a lei que as coloca atrás das grades”. 2 6 . LOE CCOORURRE RI OI E R D AD EU N L ’EUSNCEOS C. O A B. RHI LO RJ U S NS H É ROI E2 0. 1M0 A R S 2 0 1 1 Em vários países, incluindo o meu, as mulheres enfrentam problemas muito graves, que podem inclusive colocar suas vidas em perigo. As mulheres devem comportar-se de determinada maneira, caso contrário correm o risco de serem mortas em nome da honra. No início da minha carreira de advogada, quando eu levantava a questão desses “crimes de honra”, alguns juízes me respondiam, dizendo que não sabiam do que eu estava falando. Aos poucos, nosso movimento contra esses crimes criou raízes no Paquistão e, da mesma forma, chamou a atenção de muitas organizações internacionais e da opinião pública em todo o mundo. Hoje, contamos com um grande apoio contra esse tipo de delito, mas, há apenas dez anos, algumas personalidades políticas negavam seu apoio aos defensores das vítimas de crimes de honra, dizendo que seus argumentos contrariavam as normas sociais comumente aceitas. Agora esses políticos se envergonham por terem feito tais comentários. O que pode ser feito para melhorar a condição das mulheres? Acima de tudo, deve-se promover os direitos econômicos das mulheres, cuja ausência é acintosa em vários países. As mulheres não têm o mesmo status dos homens. Mesmo as que têm uma atividade remunerada não recebem um salário igual ao dos homens pelo mesmo trabalho. Além disso, a violência contra as mulheres é crescente. Devemos começar a fornecer às mulheres mais e melhores informações quanto a seus direitos, uma área em que já houve progressos consideráveis. Em seguida, temos de realizar um trabalho de conscientização sobre os direitos das mulheres junto aos diferentes atores da vida social e política, como o Poder Judiciário, o Poder Legislativo, os meios de comunicação social etc. Já conseguimos alguns avanços, mas esses ainda são insuficientes. A promoção da igualdade entre os gêneros pode contribuir para que se alcancem os Objetivos do Milênio, em especial a redução da pobreza? Penso que essa aspiração das Nações Unidas é louvável, mas é evidente que esses objetivos não poderão ser alcançados até o prazo fixado, em 2015. No entanto, essa constatação não é motivo para se baixar os braços. Acredito que o problema das crianças e da pobreza é particularmente grave hoje em dia, pois estou convencida de que as primeiras vítimas da pobreza são as crianças, sejam crianças provenientes das camadas desfavorecidas da sociedade, crianças vítimas de abusos sexuais, crianças obrigadas a mendigar (uma prática cada vez mais comum) ou crianças que são objeto de tráfico. Levando em conta sua experiência como relatora especial das Nações Unidas sobre a liberdade religiosa ou de crença, o que a Sra. pensa sobre as capacidades humanas de tolerância e de abertura? Tenho aprendido muito no exercício desse cargo, muito delicado, mas também intelectualmente estimulante. Por exemplo, em qualquer país do mundo existem preconceitos e, ao mesmo tempo, em todos os países também existem pessoas que combatem a intolerância. As diferentes instâncias de poder, que têm como função elaborar políticas de combate aos preconceitos e à intolerância devem estar conscientes dessa realidade. A educação desempenha um papel particularmente importante, mas depende de que tipo de educação se está tratando. Na região do mundo de onde venho, algumas pessoas têm tratado a educação como um instrumento de radicalização e de militarização da população como um todo. Desejamos uma educação de qualidade, que não seja baseada unicamente em manuais, mas também nas interações entre as crianças das diversas comunidades. A educação não deve se contentar em ensinar tabus, mas sim um respeito verdadeiro pela dignidade humana. Por exemplo, ninguém ensina às crianças que as pessoas podem vestir-se de maneira diferente: que um homem pode se vestir como uma mulher, sem que seja depreciado por isso; ou que uma mulher possa usar véu, sem que isso signifique que ela não possa pensar de forma diferente. Não vejo esse tipo de ensinamento em nenhum manual escolar, seja no Ocidente ou no Oriente. Por causa dos conflitos, alguns países se isolam e cortam relações com seus vizinhos, o que, no entanto, é uma coisa fundamental. Ao mesmo tempo, penso que o mundo deve conservar sua diversidade e suas diferentes ideologias, mas é preciso insistir que certos limites não devem ser transpostos. Não posso forçar uma pessoa a pensar da minha maneira, ameaçando-lhe com uma arma. Posso tentar convencê-la, respeitando certos limites, sem abusos ou ameaças. Se eu agir desse modo, estarei dando provas de intolerância, e o mesmo acontece com os que estabelecem leis discriminatórias. Quanto à justificação das leis com base nas normas sociais e religiosas, é algo que deverá ser reconsiderado pelas autoridades públicas. É um insulto ao próprio povo dizer que ele é menos digno do que os habitantes de outros países. A dignidade é universal. O trabalho dos defensores dos direitos humanos não é nada fácil. Por exemplo, em um país como o meu, em que são constantes as situações de conflito, os militantes islâmicos que cometem assassinatos também têm direitos. No entanto, quando nós, defensores dos direitos humanos, chamamos atenção para isso, as pessoas se perguntam se não somos partidários dos talibãs. É claro que não estou do lado deles, mas o fato de suspeitar que um homem é talibã não é razão para eliminá-lo. Qual é o papel do Estado na promoção do progresso social? Penso que, entre os diversos atores sociais, o Estado deve ser o último a se envolver-se nesse processo. Atualmente, a ação compete à sociedade civil, em particular aos grupos de militantes e aos movimentos como os que existem na América Latina. São eles que promoveram campanhas e levantaram questões importantes. Por exemplo, a sociedade civil e os grupos de ativistas ocidentais foram os primeiros a denunciar as prisões arbitrárias ocorridas após os atentados de 11 de Setembro de 2001. Esse movimento contou com o apoio de advogados, de defensores dos direitos humanos, de estudantes e de muitas outras pessoas, quer dizer, com o respaldo de todos os atores que compõem a sociedade civil. Qual é a relação entre a democracia e os direitos humanos? Os direitos humanos não podem se desenvolver em um país que não seja democrático, como podemos constatar em várias ocasiões. No entanto, isso não significa que um país, pelo simples fato de ser democrático, automaticamente vá respeitar os direitos humanos. Os ativistas dos direitos humanos devem esforçar-se em vincular os direitos civis e políticos aos direitos sociais e econômicos. Na realidade, os movimentos a favor dos direitos humanos estão empenhados em consolidar a democracia. É indispensável que esse esforço ocorra em todas as sociedades. Nas últimas décadas, temos assistido à estagnação da democracia, até mesmo nos países ocidentais que possuem uma longa tradição democrática. A Sra. pensa que a situação dos direitos humanos está melhorando? O mais difícil é fazer com que as mentalidades evoluam. Se olharmos 30 anos para trás, devemos reconhecer que houve mudanças. Em outras épocas, era impossível criticar o governo, sem que se corresse o risco de ser preso. Atualmente, em nosso país, já não existem mais prisões para presos políticos. Isso não significa que os direitos humanos deixaram de ser violados, mas já foram dados alguns passos à frente. Também foram dados alguns passos para trás, porque o mundo é cada vez mais complexo e apresenta novos desafios e ameaças. É preciso buscar, conjuntamente, soluções para os problemas comuns. Não se trata apenas de monitorar a aplicação dos direitos humanos, mas também determinar em que áreas devemos manter nossos esforços, de que formas podemos nos aperfeiçoar e que estratégias devemos adotar. Há muito tempo, um líder da sociedade civil disse-me: “asma, você não pode defender seus ideais usando apenas as pernas para as passeatas na rua, você também deve usar a sua cabeça”. Atualmente, tenho consciência de que as pernas e a cabeça devem caminhar juntas. Advogada e presidente da Associação dos Advogados da Suprema Corte do Paquistão, Asma Jahangir também é presidente da Comissão paquistanesa de Direitos Humanos e relatora especial das Nações Unidas sobre liberdade de religião e de crença. O Prêmio UNESCO/Bilbao lhe foi-lhe conferido como recompensa por seu trabalho em defesa dos direitos humanos, em particular os das minorias religiosas, das mulheres e das crianças. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 27 Milhares de pessoas, entre as quais grande número de mulheres, desfilaram em Túnis, em 19 de janeiro de 2011, a fim de defender os princípios da laicidade. A Associação Tunisiana das Mulheres Democratas, dirigida por Sana Ben Achour, foi uma das principais organizadoras dessa manifestação Sana Ben Achour. © A. Gabus, Tunis Direitos garantidos, Para compreender os obstáculos que impedem a autonomia das mulheres nos países árabes – incluindo a Tunísia, país onde o sufrágio feminino existe desde 1957 – a jurista, Sana Ben Achour, analisa detalhes do direito de família. Ela denuncia as falsas aparências do feminismo de Estado que estão longe de responder às exigências tanto da igualdade de gênero quanto da indivisibilidade dos direitos. SANA BEN ACHOUR No mundo árabe, o atual debate sobre os direitos das mulheres está focalizado na reforma do direito de família. De fato, em nome de um Islã consagrado como religião de Estado, as leis modernas reservam às mulheres um status inferior ao dos homens. Do Mashrek ao Magreb, elaborou-se, em torno das mulheres, sistema normativo subordinado à charia ou ao fiqh (lei e jurisprudência islâmicas), que legitima, sob diversas modalidades, toda a espécie de combinação entre religião e identidade política, entre poder político e aplicação das leis ditadas pela charia, entre casamento e endogamia religiosa... As leis sobre a família consolidam os vínculos entre as ordens religiosa e política, de modo que a família é constituída como um bastião da dominação masculina. Basta tomar como exemplo as regras do casamento – que vão da tutela matrimonial à proibição da união entre uma muçulmana e um não muçulmano – ou as relações entre cônjuges baseadas no dever de manutenção, o que confere papel proeminente aos homens. Da mesma forma, pode-se acrescentar as regras da filiação e do parentesco, estabelecidas com base na genealogia patrilinear e aplicadas às leis sobre nacionalidade: as mulheres não podem conceder sua nacionalidade aos maridos nem aos filhos. 28 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 Dezesseis dos 22 membros da Liga Árabe aderiram à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em 1981. No entanto, praticamente todos eles introduziram reservas substanciais, de caráter geral ou específico, em relação a artigos do texto da Convenção. Isso explica por que os movimentos feministas, surgidos na década de 1980, tenham orientado sua mobilização no âmbito das políticas públicas e contra discriminações institucionalizadas e diferenças entre direitos humanos universais e legislações no plano nacional. Reféns do regime político Convém mencionar que as reformas econômicas, sociais e culturais foram iniciadas por governos autoritários, na maioria dos casos oriundos dos movimentos de libertação nacional, que exploraram o campo das relações familiares como meio de implementação de suas políticas nacionais. Por conseguinte, os códigos relativos ao estatuto pessoal e à família – apesar de derivarem do direito muçulmano clássico – inserem-se em uma política legislativa que sinaliza certo grau de influência do racionalismo da época moderna. Esse foi o caso das leis egípcias (1917, 1920 e 1929), dos Códigos do Estatuto Pessoal da Jordânia (1951 e 1976), da Síria (1953), da Tunísia (1956), do Marrocos (1957 e 1958) e do Iraque (1959). Outros países aderiram recentemente a esse modelo: a Argélia e o Kuwait, em 1984, e a Mauritânia, em 2001. Em todos os casos, as reformas culminaram na modificação do direito e na recomposição da normatividade islâmica em torno das mulheres. Com efeito, o que está em jogo, é a elaboração de uma política legislativa (siyassa tachrîya), levando em consideração a arbitragem entre os princípios de organização identitária e as reivindicações em matéria de igualdade das sociedades civis. Isso é precisamente o que confere ao direito relativo ao estatuto pessoal e à família oscilação entre espírito da tradição e espírito da inovação. Além disso, nenhuma dessas políticas foi implementada, sem a intervenção autoritária dos poderes centrais: decretos do chefe de Estado (como na Tunísia, sob a presidência do Conselho de Habib Burguiba), imposição de estado de emergência (como no Egito, durante a presidência de Anwar el-Sadat) ou ato (dhahir) do rei (como no Marrocos). Em geral, tais políticas são acompanhadas pela implantação de Uniões Nacionais de Mulheres, organizações femininas subsidiárias, fortemente ligadas à estrutura estatal e ao partido que detém o poder. As organizações servem de canal para transmissão de políticas sociais em matéria de saúde materna e da criança, de escolarização e alfabetização, de planejamento e desenvolvimento rural, de divulgação dos novos direitos relativos aos estatutos pessoais e à família. Esses “feminismos de Estado” resultaram na tomada das mulheres como reféns e transformaram-nas em garantia da estabilidade dos regimes políticos. K Solidariedade entre irmãs, obra do escultor italiano Silvio Russo, oferecida à ONU, em 1996, simbolizando a solidariedade das mulheres árabes com as mulheres do mundo inteiro. © UN Photo/Eskinder Debebe Manutenção do status quo Atualmente, nos países onde os movimentos islâmicos e o conformismo se fortalecem, textos legais marcados por deficit democrático parecem limitar-se a uma existência precária. A qualquer momento, eles podem ser questionados, como foi o caso, no Egito, da Lei Jihane, de 1979 (nome da esposa de el-Sadat), que permitia às mulheres obter automaticamente o divórcio, durante o ano subsequente ao segundo casamento do marido. Essa lei foi revogada em 1985, em razão ao novo Artigo 2º da Constituição, que reconhece a lei islâmica como principal fonte legal. Esse também foi o caso na Tunísia, onde as ameaças de “retorno às fontes” se multiplicaram, no momento da destituição do presidente Burguiba, em 1987. Mais uma vez, foi necessária a intervenção tutelar da cúpula do Estado para impedir qualquer alteração no Código do Estatuto Pessoal, conceder Em dezembro de 2008, Sana Ben Achour foi nomeada presidente da Associação Tunisiana das Mulheres Democratas – ATFD (Association tunisienne des femmes démocrates), cujos objetivos principais são: a adesão aos valores universais da igualdade de gênero, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e o combate ao menosprezo dos direitos econômicos e sociais das mulheres. Professora de Direito Público e conferencista na Faculdade de Ciências Júridicas, Políticas e Sociais de Túnis, Sana Ben Achour também faz parte da Liga Tunisiana dos Direitos Humanos – LTDH (Ligue tunisienne des droits de l’Homme). a seus princípios reconhecimento de direito adquirido em âmbito nacional e, após o processo de “normalização” do movimento islâmico, reprimi-lo duramente, assim como os democratas. Isso significa que, nos bastidores dessas políticas legislativas sobre a família, não está em causa a reforma do direito tradicional, mas a manutenção do status quo. O questionamento da assimetria tradicional entre os direitos dos homens e os das mulheres constituiria ameaça para a ordem pública vigente. Assim, os poderes instituídos reatualizam permanentemente essa assimetria, ao concederem direitos e garantias judiciais às mulheres, sem nunca perderem de vista a superioridade dos homens. No contexto geral das legislações sobre família nos países islâmicos, a Tunísia é, sem dúvida, o Estado que mais transgrediu a lei divina: divórcio por mútuo consentimento, autorizado desde 1956; direito de voto para as mulheres, conquistado em 1957; aborto legalizado, desde 1962… Todavia, assim como outros países, não conseguiu renunciar ao privilégio atribuído aos homens. Daí, o reconhecimento do marido como chefe de família, a manutenção do dote como condição de formação do casamento – nem que seja simbolicamente por meio de um dinar –, a regra segundo a qual os homens se beneficiam de dois terços da herança etc. Nessas condições, é possível avaliar a enorme distância entre o discurso dos governantes sobre a reforma do estatuto pessoal ou sobre a melhoria dos direitos da família e as reivindicações feministas sobre a autonomia da mulher, a igualdade e a indivisibilidade dos direitos. © Sana Ben Achour O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 29 Agora GIUSY MUZZOPAPPA journalista italiana ou nunca As lutas empreendidas pelas feministas das décadas passadas frequentemente reduziam os homens a inimigos que deviam ser combatidos por todos os meios. Atualmente as italianas se mobilizam, ao lado dos homens, para conservar suas preciosas conquistas e formular novas reivindicações, como salário igual para trabalho igual ou flexibilidade nas condições de trabalho que não implique precariedade. Não esperávamos um número tão grande de pessoas”. Foram os termos utilizados pelas organizadoras das passeatas de 13 de fevereiro de 2011, como início de resposta a quem lhes solicita um comentário sobre a iniciativa. A organização de uma ação no plano nacional, em um período tão curto, que conseguiu estender-se mundialmente poderia deixar a impressão de um empreendimento gigantesco. Tudo começou por um movimento de indignação, definitivo e irrevogável, que sensibilizou um grupo de mulheres, muito diferentes entre si, reunidas na associação De Novo (Di Nuovo) e, há muito tempo, envolvidas na defesa dos direitos das mulheres. Centenas de milhares de pessoas responderam a seu apelo, um milhão, de acordo com as organizadoras: mulheres que saíram às ruas com seus companheiros, pais, filhos e irmãos para expressarem claramente seu apoio em favor da emancipação das mulheres italianas. “Cada uma de nós telefonou para pessoas conhecidas, contatou suas redes e, em uma fração de segundo, obtivemos respostas entusiasmadas de todos”, explica a jovem Elisa Davoglio. O slogan da passeata, “Agora ou Nunca” (Se non ora quando?) – referência ao título de um romance do famoso escritor italiano Primo Levi (1919-1987) – traduz claramente a cruel degeneração das representações relativas à mulher na mídia e na política italianas. O mal-estar que está na origem desse protesto é fomentado pela erosão das conquistas que, para as mulheres italianas, haviam sido adquiridas definitivamente na sequência dos combates travados nas décadas de 1960 e 1970, em favor dos direitos civis e de igualdade de gênero. Nesse período de lutas políticas – que forjou uma verdadeira geração de feministas italianas –, acreditava-se que importantes vitórias haviam sido conquistadas: o direito da família foi radicalmente modificado (com a legalização do divórcio, em 1974) e as mulheres obtiveram liberdade de decidir sobre sua gravidez (graças à revogação, em 1981, de uma lei particularmente restritiva sobre o aborto). Os momentos de exaltação desses anos parecem que gradualmente foram se tornando menos intensos no decorrer das décadas seguintes, que assistiram ao distanciamento entre essa primeira geração de feministas italianas e suas filhas e netas. Recomecemos a luta juntas Ao comparar essa época com a recente mobilização das mulheres italianas, Francesca Izzo, professora de História das Doutrinas Políticas na Universidade de Estudos Orientais de Nápoles, observa como esse movimento “lançou rapidamente uma ponte que facilita a comunicação entre as gerações”, no termo deste duplo reconhecimento: “por um lado, a geração reivindicadora da década de 1970 tomou plena consciência de que suas conquistas corriam o risco de ser alvo de perigoso questionamento, se não houvesse a coragem de retomar 30 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 a palavra, até mesmo para reconhecer os erros do passado. Por outro lado, as novas gerações compreenderam finalmente que os direitos e as conquistas de que haviam usufruído, mesmo que sem perceberem, estavam sob a ameaça de desaparecer. A partir desse momento, tivemos esta percepção: vamos recomeçar a luta juntas”. Juntas e em companhia dos homens. Elisa Davoglio é muito incisiva no que se refere a esse ponto: “os homens contribuíram de forma muito significativa. A mobilização surgiu em um clima de colaboração sincera e de partilha espontânea dos motivos de indignação”. Francesca Izzo aprofunda o tema e L Manifestação “Agora ou Nunca” na Praça do Povo, em Roma, Itália, em 13 de fevereiro de 2011. © Grazia Basile, Rome identifica nele aspecto radicalmente novo, em relação aos antigos movimentos feministas: “as mais jovens, em particular, não teriam compreendido – com toda a razão – as reivindicações das lutas feministas das décadas passadas, que, muitas vezes, reduziam os homens a inimigos que deviam ser combatidos por todos os meios. Atualmente, as jovens compartilham, com os homens de sua idade, medos, frustrações e aspirações e, muitas vezes, sentem-se frágeis e inadequadas. Elas nunca teriam aderido a uma mobilização que tivesse reconhecido unicamente às mulheres o direito de indignar-se”. Conforme é constatado por Cristina Comencini – cineasta e escritora que contribuiu com a irmã, Francesca, para organizar a manifestação –, “é a primeira vez que os homens se encontram em pé de igualdade com as mulheres e vão para a rua, ao lado delas, para mostrar conjuntamente a força política e humana das mulheres. Um desafio político “A Itália não é um país para as mulheres” é outro slogan que se podia ler nas faixas exibidas nas ruas da Itália e de outros lugares. Dado confirmado, de forma indiferente e implacável, pelas estatísticas. De acordo com o relatório de 2010 sobre educação mundial da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as mulheres, na Itália, estudam mais que os homens (elas representam 61% dos diplomados), mas enfrentam maiores dificuldades para inserir-se no mercado de trabalho. Os dados também aparecem no Relatório Salários na Itália, 2000-2010: a década perdida (Salari in Italia, 2000-2010: il decennio perduto) da Confederação Geral Italiana do Trabalho (CGIL), o principal sindicato italiano. Os salários das mulheres são inferiores em 12%, em média, aos de seus homólogos masculinos. A taxa de inatividade feminina – o percentual de mulheres que não trabalham ou não estudam – atinge, segundo o relatório de 2010 do Instituto Nacional de Estatísticas (ISTAT), 48,9%, ou seja, o nível mais elevado da União Europeia, depois de Malta. A presença de Susanna Camusso, primeira mulher a ocupar o posto de secretária-geral da CGIL, no palanque da Praça do Povo, em Roma, no dia 13 de fevereiro, é fato ainda mais simbólico. Isso porque condições de trabalho, direito de escolher entre carreira profissional e maternidade, direito à equiparação de salários entre homens e mulheres e direito à flexibilidade nas condições de trabalho que não implique precariedade são questões impostas ao desafio político inaugurado pelo movimento “Agora ou Nunca”. A falta de consideração do papel da mulher na sociedade é acompanhada pela imagem grotesca e distorcida da figura feminina que é veiculada pelos principais meios de comunicação social. No ano passado, um documentário de Lorella Zanardo, militante em favor dos direitos das mulheres, intitulado O Corpo das Mulheres, chamou a atenção da opinião pública: após ter assistido a esse filme, nenhuma italiana pode esquecer o ambiente grotesco mostrado pela montagem de trechos de programas televisivos, transmitidos diariamente em todas as redes de televisão na Itália. A redução das mulheres a um corpo para ser consumido exerce profunda repercussão, em particular, sobre as gerações mais jovens. É precisamente esse ponto que permite às instâncias que promoveram a mobilização formularem questões de maior amplitude. “Lançamos esse apelo para dizer que este não é o país que corresponde aos nossos anseios”, sublinha Elisa Davoglio. “Para conseguir isso”, prossegue ela, “decidimos tomar a dianteira para evitar qualquer manipulação de nossa mensagem, providenciando sua circulação nas nossas redes, por meio do Facebook, e criando um blog para iniciar um K Cena da manifestação “Agora ou Nunca”, na Praça do Povo, em Roma, Itália, em 13 de fevereiro de 2011. © Grazia Basile, Rome debate que não esteja submetido à mídia tradicional. Pedimos a todos que deixassem em casa símbolos políticos ou de filiação a qualquer grupo e optamos por assumir a divulgação da mensagem e das diretrizes com palavras compreensíveis e simples, para evitar que a mídia tradicional venha a apropriar-se, de uma maneira ou de outra, de nossa mobilização”. Quais serão as próximas etapas, os próximos problemas que o movimento vai decidir enfrentar? A questão permanece em aberto. “Objetivos importantes não faltam”, observa Francesca Izzo, “mas trata-se de saber como pretendemos alcançá-los. A democracia, no fundo, é isso mesmo: uma tensão constante entre objetivos e meios. A questão dos direitos das mulheres está no centro da profunda crise da representação democrática. A tarefa colossal a ser enfrentada consiste em reorganizar a democracia, um objetivo que exige determinação e paciência”. As mulheres do movimento “Agora ou Nunca” desejam reapropriar-se do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, cujo sentido foi perdido na Itália. Elisa Davoglio conclui: “trata-se de celebrar um dia não apenas pelo fato de a mulher receber flores ou, até mesmo, ser convidada ao restaurante. O dia 8 de março está relacionado com direitos, trabalho e emancipação”. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 31 Resistir à tirania “Calar-se é tornar-se cúmplice”, declara Mónica González Mújica, vencedora do Prêmio Mundial UNESCO/Guillermo Cano de Liberdade de Imprensa 2010. Essa mulher, que sofreu as piores torturas durante a ditadura militar no Chile, nunca renunciou à sua liberdade de expressão. Para ela, para além da barreira do gênero, o importante é denunciar as injustiças. MÓNICA GONZÁLEZ MUJICA responde às perguntas de Carolina Jerez e Lucia Iglesias (UNESCO) Existe uma maneira feminina de fazer jornalismo? Quais são os trunfos e os obstáculos que teve de superar, como mulher, no decorrer de sua carreira? PFalemos, em primeiro lugar, sobre as vantagens de ser mulher, porque elas existem. Temos uma sensibilidade que nos é peculiar e que, no meu ponto de vista, é muito útil, quando se faz jornalismo investigativo: há maior facilidade para perceber quem diz a verdade, quem mente, quem se esconde sob uma carapaça, uma máscara ou um disfarce. Tenho também a impressão que, quando nós, mulheres, nos lançamos em um empreendimento, somos mais persistentes e não desistimos, enquanto a tarefa não estiver concluída. Somos obstinadas! E digo isso sem ser feminista. É claro que há obstáculos, em particular, quando os torturadores, os carrascos, abusam sexualmente de nós, a fim de nos anular. Sob a ditadura, descobri que o estupro visa, antes de mais nada, a quebrar nossa resistência. Nessas circunstâncias, ninguém pode ter prazer, ao estuprar uma mulher. O prazer consiste em humilhar a mulher e em desapossá-la de sua identidade. Porém, no meu caso, tal situação tornou-me mais forte. 32 . O L E CCOORURRE RI OI E R D AD EU N L ’EUSNCEOS C O . APRILJUNE 2011 Quais foram os momentos mais importantes de sua vida profissional? O momento mais importante para mim foi o fato de eu ter conseguido fazer a transição da ditadura para a democracia, sem abandonar o jornalismo. Durante a ditadura, não renunciei à minha atividade, nem na prisão, nem sob tortura, nem quando meus amigos foram mortos, nem quando tive de me separar de minhas filhas, tampouco quando me senti destruída pela dor de todos os compatriotas. Quando a democracia voltou, percebi que havia tanto a construir! Meu mérito é o de não ter abandonado o jornalismo e de ter reinventado minha vida sempre que estive desempregada. Recebi a ajuda de muitas pessoas: não sou uma super-mulher! Tive a sorte de encontrar pessoas que me deram suporte e me incentivaram a perseverar, quando eu estava mais aterrorizada. Além disso, nessa profissão, somos postos à prova todos os dias, e espero viver assim até minha morte. Qual é a situação atual do jornalismo investigativo? É, sem dúvida, o jornalismo que se encontra em maior crise em todo o mundo. O jornalismo investigativo foi a primeira vítima da crise econômica de 2008. Os jornalistas mais bem pagos foram os primeiros a perderem seus empregos; e eram eles mesmos que faziam o trabalho de investigação em profundidade. Como os serviços de investigação constituem, muitas vezes, fonte de problemas e conflitos, a crise forneceu uma ótima desculpa para que esses serviços fossem encerrados! Eles são ainda os mais bem preparados para aprofundar questões realmente sensíveis que podem desempenhar papel determinante na vida dos cidadãos. L A Praça da Itália, em Santiago do Chile, em 10 de dezembro de 2006, data da morte do general Pinochet. © Eduardo Aguayo, Santiago Apesar disso, devo salientar que, em termos de qualidade, o jornalismo investigativo na América Latina não deixa a desejar, se comparado ao jornalismo anglo-saxão. Digo isso não apenas em relação ao cenário atual, uma vez que chegamos a exercê-lo sob ditaduras. No Chile, por exemplo, os jornalistas correram riscos impressionantes para denunciar os crimes do regime de Pinochet. Um jornalista deve denunciar as irregularidades e os horrores, caso contrário ele se torna cúmplice dessas práticas. É verdade que o jornalismo investigativo implica sempre grande dose de sacrifício pessoal. É preciso também desembolsar dinheiro do próprio bolso, porque, sejamos honestos, nenhum grupo de comunicação está disposto a pagar um jornalista, durante um longo período, para que ele possa fazer sua investigação com tranquilidade. Atualmente, o jornalismo investigativo, na América Latina, enfrenta um grave problema: os cartéis de narcotraficantes, que estão prestes a corroer nossa sociedade. O objetivo final desses cartéis consiste em privar-nos de espaços de lazer, de felicidade e de vida. É por isso que é tão importante enfrentar esse tema e, então, garantir aos jornalistas a possibilidade de investigar e de fornecer informações, ao contrário do que ocorre atualmente na maior parte dos países da região. Qual é a sua opinião sobre o panorama da mídia na América Latina? Dois perigos ameaçam, de forma cada vez mais intensa – e cada vez mais rápida –, o direito à informação. O primeiro é a impressionante concentração dos meios de comunicação, que estão nas mãos de reduzido número de proprietários. Os grupos que controlam esses conglomerados, comprando canais de televisão, estações de rádio e jornais, têm, ao mesmo tempo, interesses em outros setores, como agricultura, mineração, serviços, imobiliário, etc. Um grupo de comunicação não é capaz de informar com objetividade sobre empresas cujos proprietários sejam também acionistas desse grupo. Isso é extremamente grave. Os jornalistas estão perdendo autonomia, dignidade equalidades, estão tornando-se simples testas-de-ferro. K México: jornalistas protestando contra os atentados e os sequestros de que eles têm sido vítimas. © Raul Urbina, Mexico O segundo perigo vem de governos autoritários que, embora tenham chegado ao poder por via democrática, transformam os jornalistas em seus inimigos, submetendo-os a ameaças permanentes. Quanto a isso, infelizmente ainda não há oposição capaz de defender a liberdade de informação, como deveria ocorrer. Isso porque, a liberdade de informação não consiste em ser a favor do governo ou da oposição, mas em fazer jornalismo de qualidade. Do mesmo modo que é inaceitável que os cartéis do crime organizado declarem guerra contra os jornalistas, também é inaceitável que os governos democraticamente eleitos se deixem envolver em práticas autoritárias. Tudo isso para dizer que, objetivamente, o panorama da mídia latino-americana é desanimador. A precariedade do jornalismo afeta profundamente a sociedade. A democracia é menosprezada, porque o cidadão, quando mal informado, torna-se presa fácil dos tiranos. Nós que sofremos sob ditaduras e recuperamos a liberdade em troca da morte de grande número de pessoas, acreditamos que não se pode deixar a democracia se fragilizar e ser manipulada por poderes autoritários. Mónica González Mujica é, provavelmente, uma das jornalistas investigativas mais persistentes do Chile e mais comprometidas com o exercício de sua profissão. Exilada na França após o golpe militar de 1973, ela voltou para o Chile, em 1978, mas só conseguiu retomar sua atividade a partir de 1983. Desde maio de 2007, ela dirige o Centro de Informação e Pesquisa Jornalística (Centro de Información e Investigación Periodística – CIPER), instituição independente e sem fins lucrativos, especializada em jornalismo investigativo. N Mónica González Mújica, durante sua intervenção no Colóquio Internacional sobre a Liberdade de Expressão, realizado na UNESCO, em 26 de janeiro de 2011. © UNESCO/Danica Bijeljac O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 33 Sima e Storey, jornalistas da Rádio Sahar, preparam-se, de manhã bem cedo, para seu programa de rádio em Herat, no noroeste do Afeganistão. © www.valentinamonti.com Paciência, vamos chegar lá HUMAIRA HABIB O Afeganistão tem, atualmente, cerca de 300 mulheres jornalistas para uma população de 25 milhões de habitantes. Após período sombrio que o país atravessou na década de 1990, o novo milênio abriu as portas para a liberdade de expressão que começa a se afirmar. Embora a insegurança, o peso da tradição e outros obstáculos importantes ainda devam ser superados, ao escutar Humaira Habib percebe-se que as jornalistas afegãs estão decididas a prosseguir nesse caminho, mesmo se ainda for necessário um longo tempo para alcançarem seu objetivo. “Tenho a intenção de guardar todos os convites que recebi para entrevistas coletivas, a fim de mostrá-los, mais tarde, a minhas filhas e meus netos. Acho que eles vão sentir orgulho de mim”, disse-me, certo dia, Zakia Zaki, jornalista e diretora da estação de rádio A voz da paz, situada na província de Parwan, no centro do Afeganistão. Estávamos em uma coletiva na capital, Cabul. Fiquei com a impressão de que ela estava preocupada: há alguns dias, estava recebendo ameaças anônimas. Duas semanas mais tarde, foi baleada em sua casa por homens armados. Isso aconteceu em junho de 2007. O Afeganistão, que se reergue de três décadas de guerra e destruição, encontra-se em uma fase de transição. Nesse país afetado pela pobreza e pelas migrações forçadas, objeto de manobras políticas tanto no plano nacional quanto no internacional, assiste-se atualmente a uma expansão, sem precedentes, da imprensa em uma sociedade semidemocrática, na qual a liberdade de expressão está desabrochando. Sem nenhuma tradição histórica no país, a mídia apareceu repentinamente na esteira da propaganda política e comercial. De acordo com Adela Kabiri, jornalista e professora de Jornalismo na Universidade de Herat, anteriormente, as mulheres não tinham lugar no mundo do jornalismo no Afeganistão; essa disciplina jovem, que se estabeleceu no país ao mesmo tempo que a constituição, foi dominada, durante muito tempo, exclusivamente por homens. Foi precisamente no momento em que as mulheres estavam começando a participar no desenvolvimento do jornalismo – em particular ao redor de Cabul – que a dominação dos talibãs ganhou terreno: essa é a explicação para a ainda precária experiência das mulheres afegãs nessa área. Se, na década de 1980, um pequeno grupo de mulheres, entre as quais Zakia Kohzad, havia comprovado que as afegãs também eram capazes de contribuir para o jornalismo, na década de 1990, sob o regime autoritário dos talibãs, elas estiveram praticamente ausentes desse setor. Apesar disso, algumas mulheres conseguiram permanecer ativas durante esse período, em particular, Belqais Maqiz e Fatana Ishaq Gailani, que, em Peshawar (Paquistão), fundaram as revistas Zan-e J Em um tribunal em Herat, mulher que entrou com pedido de divórcio responde a perguntas de Farawia, repórter da Rádio Sahar. © ww.valentinamonti.com 34 . O CORREIO DA UNESCO . ABRIL-JUNHO 2010 Afghan (A mulher afegã) e Rozaneh (A esperança). O desenvolvimento, rápido e generalizado, dos diferentes tipos de mídia, além do apoio à liberdade de expressão, constitui uma das principais conquistas da era pós-talibã, iniciada em 2001. O país pode vangloriar-se de contar com uma dezena de estações de rádio e redes de televisão, algumas centenas de revistas e jornais, além de numerosas agências de notícias e editoras. No decorrer dos últimos dez anos, as mulheres têm desempenhado um papel ativo na cena midiática e social, atingindo um nível de participação sem precedentes na história do país. I Em uma aldeia, perto de Herat, mulher escuta a rádio enquanto trabalha. © www.valentinamonti.com jornalismo, é essencial incrementar sua participação em entrevistas coletivas – no plano internacional – e valorizar seu trabalho – no âmbito nacional. Quanto ao futuro das jornalistas, Fawzia considera primordial que um maior número de mulheres ingressem na prof issão. Mais que isso, para atingir essa meta, é necessário fornecer-lhes melhores condições de trabalho e facilitar seu acesso às diferentes áreas do jornalismo. No Afeganistão, país em transição, que passa de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna, todos os setores estão experimentando, atualmente, um crescimento súbito e sem precedentes, e a maior parte dos produtos é importada. Nesse contexto, as jornalistas afegãs acreditam que a paciência é necessária para a construção de um futuro melhor e que seus problemas de segurança serão resolvidos com o decorrer do tempo. Elas convocam a comunidade internacional a ajudá-las a atenuar esses problemas e outras dificuldades que têm de enfrentar no exercício de sua profissão. Estão convencidas de que o apoio internacional será uma etapa essencial para o desenvolvimento futuro de suas atividades, uma vez que eliminará as ameaças de que são vítimas e evitará que outras jornalistas sejam condenadas ao mesmo destino de Zakia Zaki. © www.valentinamonti.com O Afeganistão tem, atualmente, mais de 300 mulheres jornalistas e diretoras de publicações. Uma dezena de estações de rádio foi criada por mulheres, e várias províncias – em particular, Herat e Bamiyan – abrigam centros e fundações destinados a mulheres jornalistas. Apesar de inúmeras restrições sociais e políticas ainda existentes, muitas mulheres continuam exercendo seu ofício de jornalistas. No entanto, Najida Ayoubi – escritora e poeta de renome que dirige o grupo de mídia Kilid – afirma que as jornalistas afegãs não têm motivo para estarem satisfeitas, porque, em relação ao número de mulheres que vivem no Afeganistão, a porcentagem daquelas que desempenham um papel na imprensa é muito limitada. De acordo com Najida Ayoubi, as mulheres afegãs enfrentam muitas dificuldades no círculo do jornalismo, e é necessário agir para aumentar sua participação nesse domínio. Ela acredita que compete aos institutos de formação e aos centros de ensino do jornalismo fornecer-lhes mais possibilidades de acesso à profissão. A baixa proporção de mulheres presentes na mídia deve ser atribuída ao deficit em matéria de educação e alfabetização de que elas foram vítimas no decorrer das três décadas de guerra que devastaram o Afeganistão. Diante dessa situação, somente medidas de discriminação positiva aplicadas aos meios de comunicação poderão fazer a diferença. Najida Ayoubi acredita que as mulheres afegãs dispõem de menos possibilidades de obter emprego como jornalistas do que seus compatriotas masculinos, além de menor grau de responsabilidade no setor da mídia, um domínio dominado amplamente por homens. Em suma, é necessário chamar a atenção de representantes e profissionais da mídia afegãos sobre o problema da igualdade de gênero. À semelhança do que se passa em outros setores profissionais, o jornalismo representa verdadeiro desafio para as afegãs. As jornalistas têm de enfrentar, em particular, preconceitos da sociedade tradicional afegã, discriminação social e pressões por parte das famílias. Por demandar grande dedicação, a profissão de jornalista é considerada, às vezes, como impeditivo para que as mulheres desempenhem seu papel no seio da família. Na opinião de Farida Nekzad, laureada, em 2007, com o prêmio da Associação Canadense dos Jornalistas pela Liberdade de Expressão (Association canadienne des journalistes pour la liberté d’expression), grande número de diplomadas afegãs renunciam à carreira de jornalista, em razão de restrições por parte da família, dando preferência às profissões de ensino. Além disso, as jornalistas afegãs sofrem com a falta de relações sociais (que não são muito bem vistas no caso de mulheres) e com a ideia preconcebida de que as ações das mulheres são menos importantes que as dos homens. No entanto, para Farida, a insegurança é o principal problema enfrentado pelas jornalistas no Afeganistão. Com efeito, no decorrer dos últimos dez anos, muitas jornalistas afegãs perderam a vida por causa de seu ofício: além de Zakia Zaki, pode-se citar Shaima Rezai e Shakiba Sanga Amaj. Outras jornalistas, tais como a própria Farida Nekzad e Najia Khodayar, acabaram por abandonar a profissão por terem recebido ameaças graves. Manizha Naderi, diretora de uma ONG que promove os direitos das mulheres afegãs, considera que as ameaças e os ataques são reflexo da violência militar vigente no país. Ela acredita que as mulheres, em geral, e as jornalistas, em particular, são atacadas, em decorrência do potencial de que dispõem para exercer o papel que lhes corresponde na sociedade. Em sua opinião, os autores desses atos de violência procuram desqualificar e minimizar a função da mulher na sociedade. De acordo com Fawzia Fakhri, fundadora do Centro para as Mulheres Jornalistas de Herat, para alcançar o objetivo de atribuir às afegãs um lugar mais importante no círculo do Humaira Habib, jornalista afegã, é diretora da estação de rádio comunitária para as mulheres Radio Sahar, em Herat, no oeste do Afeganistão. As fotos que ilustram este artigo foram tiradas do documentário Girls on the Air, um filme Valentina Monti. O CORREIO DA UNESCO . ABRIL-JUNHO 2011 . 35 Uma lenta conquista do mercado de trabalho FERIEL LALAMI Como o trabalho digno se encontra no centro da celebração do Dia Internacional da Mulher em 2011, o Correio da UNESCO apresenta o caso da Argélia, país onde, desde a década de 1990, tem ocorrido uma rápida expansão do trabalho feminino. Atualmente, ao enfrentarem o mercado de trabalho, as mulheres argelinas – até mesmo titulares de diplomas universitários – deparam-se frequentemente com situações de precariedade ou são impedidas de assumir funções de diretoria no âmbito das empresas. “Meu nome é Hassiba e tenho 38 anos. Sou casada e tenho três filhos. Exerço a profissão de agente técnica em uma empresa privada. Para chegar ao local do meu trabalho, tenho que tomar dois ônibus e sair de casa pelo menos uma hora e meia antes do horário de abertura do escritório para não chegar atrasada. Quero evitar o risco de ser despedida, porque nos dias de hoje, é muito difícil encontrar trabalho. Nem me passa pela cabeça a ideia de perder o meu salário, pois nossa família não poderia viver apenas com o salário do meu marido. É difícil para minha mãe aceitar que eu esteja empregada, uma vez que no seu tempo as mulheres só trabalhavam em casa”. O testemunho dessa argelina do bairro de Ain Naaja, em Argel – coletado por mim em novembro de 2010, no âmbito de uma pesquisa sobre as mudanças nas relações familiares –, mostra que, apesar dos obstáculos, as mulheres na Argélia tiveram e têm acesso de forma duradoura ao mercado de trabalho. Essa tendência tem-se confirmado em ritmo lento, mas consolidado, no decorrer das últimas três décadas, embora ainda não tenha produzido resultados consideráveis. Na verdade, com as mulheres representando apenas 15% do total da população economicamente ativa (porcentagem que se manteve inalterada entre 2007 e 2010), a Argélia K Argelinas seguem treinamento de professores para o ensino de inglês financiado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. © Ruth Petzold, Alexandria está muito atrás dos países vizinhos, Tunísia e Marrocos, cujas proporções se elevam a 25% e 28%, respectivamente. De qualquer modo, a taxa relativa à atividade remunerada das mulheres aumentou 10% entre os anos 1980 e o início da década de 2000. Por quê? Em primeiro lugar, em decorrência do triste episódio da história do país designado por alguns como “a tragédia argelina da década de 1990” ou “a Segunda Guerra da Argélia”. Em seguida, o fim do controle dos preços exercido pelo Estado, os cortes nas despesas públicas e o consequente aumento do desemprego deixaram as famílias em situação de pobreza. Nessas circunstâncias, as mulheres começaram a procurar trabalho remunerado, sem que as famílias ousassem impedi-las, invocando o considerável peso da tradição: afinal, elas tinham necessidade de alimentar-se. Deve-se acrescentar a isso outra especificidade argelina: as mulheres trabalhadoras são mais qualificadas do que os homens. Em 2003, mais da metade das mulheres em atividade remunerada eram titulares de, ao menos, o diploma de estudos secundários, contra apenas um quinto dos homens. Essa situação deve-se essencialmente à política de democratização do ensino promovida pelo Estado, que, desde o fim do período colonial (1962), se traduziu em um rápido aumento da taxa de escolarização feminina: em 2010, meninas e adolescentes representavam 57% da população estudantil do país. 36 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 Outro dado importante: até a década de 1990, a maioria das mulheres com atividade remunerada tinham entre 19 e 24 anos e eram solteiras (com exceção das viúvas e das divorciadas). Na maior parte dos casos, o casamento ou o nascimento de um filho colocava fim à carreira profissional dessas mulheres. Atualmente, o número de mulheres economicamente ativas casadas aumentou consideravelmente, e elas são quase tão numerosas (18%) quanto as solteiras (20%). No entanto, as estatísticas não esgotam a análise desse tema. Deve-se considerar também o amplo leque das profissões: embora seus setores preferidos sejam o ensino, a saúde e a administração, as mulheres têm entrado cada vez mais em outros campos de atividade, como o jornalismo. Atualmente, 60% dos profissionais da mídia são mulheres. Obstáculo intransponível e trabalho precário O exercício dessas profissões também permite que as mulheres adquiram uma maior visibilidade na vida pública. Contudo, não se deve ignorar o fato de que, na evolução de suas carreiras – incluindo as ocupações “feminizadas” – as mulheres se deparam com um obstáculo intransponível: os postos de trabalho com alto nível de responsabilidades continuam sendo um campo reservado aos homens. Enquanto na educação as mulheres constituem 50% dos © A-M Tournebize, Paris profissionais, em 2005 elas ocupavam apenas 9,15% dos cargos de diretoria de estabelecimentos escolares e 5,6% das funções de inspetor do ensino básico. Além disso, o desemprego atinge as mulheres de forma mais dura do que os homens: respectivamente 19,1% contra 8,1%, em 2010, de acordo com a Agência Nacional de Estatísticas (Office National des Statistiques – ONS). Ainda pior é o fato de que, entre as pessoas mais qualificadas, as mulheres desempregadas são três vezes mais numerosas do que os homens: 33,6% contra 11,1%. Diante da saturação do mercado de trabalho, as mulheres muitas vezes preferem criar suas próprias empresas no comércio, nos serviços ou no artesanato. De acordo com o Centro Nacional de Registro do Comércio (Centre National du Registre du Commerce), entre 2006 e 2007, o número de mulheres comerciantes aumentou 4%. Ainda que na maioria dos casos se trate de microempresas, a proporção de mulheres na categoria dos empregadores passou de 3% para 6%. Um novo fenômeno é o número crescente de mulheres que exercem profissões como as de agentes do ramo imobiliário e de viagens e ainda empresárias do setor agrícola. O aumento do número de mulheres que exercem atividades remuneradas também teve como consequência a criação de empregos informais, como os de babá e de empregada doméstica. Essa economia informal – reservada, em geral, às mulheres – estende-se também ao comércio de pequeno porte e ao setor privado, criando outros tantos empregos precários e mal remunerados, que não garantem uma cobertura da seguridade social. É certo que o acesso das mulheres argelinas ao mercado de trabalho acarreta novas configurações familiares, graças às quais elas adquirem maior autonomia. O modelo do “homem provedor de recursos” está lentamente se tornando ultrapassado. No entanto, se no passado as mulheres tiveram que lutar contra a cultura patriarcal para exercer uma atividade remunerada, atualmente elas enfrentam um obstáculo igualmente difícil de ser superado: a extrema escassez de empregos. Cientista política argelina, Feriel Lalami, é responsável por curso na Universidade de Poitiers (França). Igualdade de gênero um bem público mundial SANIYE GÜLSER CORAT e ESTELLE RAIMONDO À semelhança de outros bens públicos mundiais, a igualdade entre homens e mulheres apresenta vantagens coletivas a longo prazo, às quais se opõem interesses específicos a curto prazo. A ONU Mulheres, nova entidade das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres, tem a missão de superar os principais obstáculos que impedem o investimento adequado nas meninas e nas mulheres. Em um contexto de desacelaração do crescimento econômico mundial, combinada com as crises dos alimentos, da energia e do meio ambiente, a reflexão sobre os “bens comuns globais” e a busca de respostas estão passando por um período de renovação. No entanto, a temática da igualdade de gênero continua sendo a grande ausência na lista dos bens públicos mundiais (BPM)1. Apesar disso, é impossível alcançar metas como o crescimento econômico, a governança responsável e a paz no mundo, se metade da população do planeta – as mulheres – continua sendo excluída tanto dos processos que definem as prioridades mundiais, quanto da tomada de decisão. É importante investir em meninas e mulheres, principalmente em um momento de restrições orçamentárias como o atual, em que os países doadores estabelecem como prioridade apenas os investimentos com alta taxa de retorno e efeito multiplicador significativo. Chegou a hora de mudar a perspectiva no que diz respeito ao financiamento do desenvolvimento e à ajuda internacional aos países pobres. O altruísmo e a geopolítica devem dar lugar à utilidade para todos. Ao invés de tratar meninas e mulheres como simples 1. Os bens públicos mundiais podem ser definidos como elementos importantes para a comunidade internacional, cuja gestão só pode ocorrer de forma satisfatória, por meio de uma ação coletiva em escala mundial. São exemplos: a proteção ao meio ambiente e o respeito aos direitos humanos. vítimas da marginalização, deve-se considerá-las como protagonistas e agentes cruciais da mudança, capazes de contribuir significativamente para a produtividade das economias em âmbito nacional, regional e global. Sabe-se que as mulheres gastam, em média, 90% de suas rendas em educação, saúde e alimentação de suas famílias e comunidades, enquanto os homens utilizam apenas 40% de seus ganhos nessas áreas. Dados recentes mostram que o aumento do número de mulheres em cargos de direção tem um efeito positivo sobre o desempenho das empresas e sobre o grau de confiança que lhes é atribuído pelos acionistas. Do mesmo modo que o simples fato de uma empresa ter mão de obra feminina repercute positivamente sobre a produtividade, no plano macroeconômico. Alcançar a igualdade de gênero na esfera política, portanto, introduzir as mulheres nas estruturas políticas e nos processos de tomada de decisões ao lado dos homens, produz igualmente fortes efeitos de persuasão. Em âmbito local, por exemplo, com o sistema de cotas reservadas às mulheres em munícipios indianos (panchayat) comprovou-se que as mulheres são mais eficazes do que os homens na administração de bens públicos, como o abastecimento de água. Ruanda também oferece um bom exemplo. A reforma constitucional impôs um mínimo de 30% de O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 37 da falta de coordenação, pois oferece aos Estados-membros um fórum no qual eles podem reunir-se e tratar das questões mundiais. Ele também é capaz de superar o problema do passageiro clandestino ao responsabilizar as instituições internacionais e os governos por seus compromissos, em particular os relativos à aplicação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e da Declaração e Programa de Ação de Beijing2. Finalmente, o sistema pode superar o obstáculo do curto prazo da cena política, ao exercer pressão sobre os Estados-membros para que eles cumpram suas obrigações nos prazos previstos. A nova Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) tem o potencial para desempenhar essa função crucial, desde que tenha visão e liderança estratégicas, no sentido de estabelecer uma agenda e um programa de ação aprovados pelos principais interessados, e de que seja dotada de recursos humanos e financeiros necessários para cumprir suas responsabilidades. K O aumento do número de mulheres em cargos de direção tem efeito positivo no desempenho das empresas. © Den_Bar pixburger.com 2011 2. A Declaração e o Programa de Ação de Beijing foram adotados na 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher: Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz, que foi realizada na capital chinesa em setembro de 1995. Graduada pela Universidade do Bósforo (Istambul, Turquia), Saniye Güser Corat (à esquerda na foto) é também doutora em Ciências Políticas pela Universidade de Carleton (Canadá), onde ela trabalhou como professora antes de dirigir o Departamento de Igualdade de Gênero da UNESCO. Estelle Raimondo é mestre em Economia do Desenvolvimento pela Universidade de Columbia (EUA) e em Negócios Internacionais pelo Instituto de Ciências Políticas de Paris (França). Atualmente, é especialista auxiliar do Serviço de Supervisão Interna da UNESCO. 38 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 © UNESCO/Danica Bileljac representação feminina no parlamento. Com isso, as mulheres parlamentares conseguiram colocar a saúde e a educação entre as matérias prioritárias da agenda legislativa nacional. A taxa de crescimento do país também está intrinsecamente vinculada à participação ativa da mão de obra feminina (80%) e ao talento das empresárias: 42% das empresas do setor formal e 58% do setor informal são dirigidas por mulheres. A Ruanda também faz parte dos raros países – ao lado da Libéria e da Guatemala – nos quais as mulheres participaram, em pé de igualdade com os homens, nos processos formais de consolidação da paz, nos quais as negociações nesse âmbito têm sido mais construtivas do que em outros países. Definir a igualdade de gênero como um BPM se impõe ainda mais quando os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são considerados. É evidente que a igualdade de sexos é condição essencial para reduzir a mortalidade infantil, para melhorar a saúde das gestantes, para alcançar a igualdade de gênero na educação, assim como para diminuir a fome e a pobreza em geral, na medida em que a maior parte da população mundial em situação de pobreza é constituída por mulheres. Quanto à sustentabilidade do meio ambiente, como seria possível atingir tal objetivo sem as mulheres, as quais são responsáveis, em grande parte, pela proteção da biodiversidade? Finalmente, como criar uma parceria mundial para o desenvolvimento, se as mulheres estão ausentes ou têm pouca representatividade na formulação e na tomada de decisões políticas? O que se pode fazer para evitar que a igualdade entre homens e mulheres tenha o mesmo destino de outros BPMs no que se refere ao deficit de investimento? Deve-se alterar os incentivos aos planos de ação, de modo a superar estes três grandes obstáculos: a falta de coordenação entre os agentes; o chamado “problema do passageiro clandestino” (deixar que outros lutem por um bem do qual a pessoa vai-se beneficiar); e a visão política de curto prazo vinculada ao problema relativo à escolha das políticas públicas (na medida em que a igualdade de gênero não é uma prioridade das plataformas eleitorais). Em todos esses aspectos, o Sistema das Nações Unidas apresenta uma vantagem comparativa real. Esse sistema tem condições de superar o obstáculo A mulher é o futuro de Davos O Fórum Econômico Mundial reuniu, em janeiro passado, em Davos (Suíça), cerca de 35 chefes de Estado e de governo, além de 2.500tomadores de decisão, dos quais apenas 16% eram mulheres. Apesar disso, a participação feminina praticamente duplicou, desde 2001, e, de acordo com Ben Verwaayen – um dos fundadores do Fórum –, o futuro de Davos vai depender delas. KATRIN BENNHOLD, journalista alemã do International Herald Tribune O homem de Davos é um animal singular. Onipotente, mundano e frequentemente muito rico, em geral, ele sabe mais sobre as taxas aplicadas nas bolsas de valores do que os preços dos supermercados. Além disso, ele dispõe de todos os acessórios dignos de sua posição: uma villa na Côte d’Azur, um jato particular sob medida e um projeto filantrópico. Por sua vez, a mulher de Davos é igualmente cosmopolita, rica e influente. No entanto, a presença feminina ainda é rara. Aquelas que assistem a essa recepção anual da elite mundial, nos Alpes suíços, se encontram em uma situação um tanto particular: apesar de pertencerem a essa esfera elitista, elas são consideradas iniciantes com status minoritário. As mulheres representam apenas 16% dos participantes no Fórum Econômico Mundial. De fato, como a maioria das senhoras em seus casacos de pele, abrindo caminho no chão coberto de neve, estão aqui na qualidade de esposas, é fácil confundi-las com as verdadeiras participantes do fórum: “em um coquetel, em Davos, é mais provável que você seja considerada a esposa de alguém, ao invés de empresária”, lamenta Este artigo é reproduzido, graças à autorização do International Herald Tribune. Inicialmente, foi publicado em inglês, com o título “Mulheres marcam presença em Davos, embora ainda em minoria” (Women Make Their Mark at Davos, Though Still a Distinct Minority), no suplemento “O Fator Feminino” (The Female Factor), de 26 de janeiro de 2011. a presidente da Manpower França, Françoise Gri, que aparece, nos últimos sete anos, na lista das 50 mulheres mais poderosas do mundo, estabelecida pela revista Fortune. Esta é a segunda vez que ela vai a Davos. “Este evento continua sendo como um clube de cavalheiros”, prossegue ela: “enquanto mulher, fico com a impressão de que realmente não faço parte desse grupo”. Para Christine Lagarde, ministra das finanças da França1 e frequentadora assídua de Davos há mais de dez anos, “a química da dominação masculina” acaba por desestabilizar a autoconfiança: “você sabe que é competente, conhece bem o conteúdo dos documentos, mas, de alguma forma, sente-se inibida” As mulheres ricas não vivem em um mundo à parte OHá uma tendência de considerar os ricos e os poderosos como uma entidade em que não há diferença entre os sexos, operando em um mundo à parte de privilégios ilimitados, a anos-luz da vida cotidiana das classes médias de diferentes países – uma distância que se tornou ainda maior pela atual crise econômica. As mulheres da elite, diferentemente de seus colegas masculinos, mantêm vínculos bem sólidos com suas irmãs menos privilegiadas. Como observa Dominique Reiniche, diretora da Coca-Cola Europa: “a igualdade entre os sexos é uma preocupação que permeia todas as classes […]. As mulheres de todas as camadas sociais compartilham essa causa”. Compreende-se a razão pela qual a filantropia feminina, que está em pleno crescimento, visa a melhorar a condição das mulheres menos afortunadas, explica Jacki Zehner, vice-presidente da Rede de Captação de Fundos para Mulheres (Women’s Funding Network) e primeira mulher a tornar-se sócia da Goldman Sachs. Algumas artistas, como a norte-americana Angelina Jolie e a britânica Annie Lennox – ambas pela primeira vez em Davos –, promovem os direitos da mulher em nome das Nações Unidas e de outras organizações. Há outras razões que explicam o fato de as mulheres correrem, sem dúvida, menos riscos, ao viver em um mundo à parte. Uma mãe, por maior que seja sua fortuna e prosperidade, assume, em geral, suas responsabilidades em relação aos filhos, correndo o risco de ter sua carreira estagnada ou alterar o equilíbrio entre trabalho e vida familiar. No entanto, ela conserva o contato com a sociedade: com as babás – que, na maior parte das vezes, são mulheres menos favorecidas e, talvez, de origem estrangeira –, com os professores e com as mães dos amigos dos filhos. As mulheres estão, frequentemente, mais envolvidas que os homens em atividades relacionadas com os filhos, como festas de aniversário ou compras. “Nada melhor que os adolescentes para manter-se em contato com o mundo”, observa Dominique Reiniche, que criou três filhos. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 39 K Uma participante do Fórum Econômico Mundial, que ocorreu em janeiro de 2011, em Davos. © World Economic Forum/swiss-image.ch/Michael Wuertenberg Além disso, as elites femininas costumam ser menos engajadas em sua função profissional que as elites masculinas, de acordo com a opinião de Christine Lagarde: “por todo o tipo de razões históricas, culturais e econômicas, as mulheres tendem a permanecer mais próximas do mundo real”, insiste a ministra, que é mãe de dois filhos. “Eu não conheço muitos colegas que vão ao supermercado fazer compras, mas eu tenho esse costume”, acrescenta ela. Segundo Lagarde, o mesmo acontece com Anne Lauvergeon, presidente da Areva, uma gigante do setor nuclear, com Angela Merkel, chanceler alemã; ou com Lubna Olayan, executiva saudita. Viver isolado da realidade é uma das principais críticas dirigidas contra as elites e as instituições de grande porte, como o Fórum Econômico Mundial. A paridade: um must Se Davos pretende continuar desempenhando seu papel nas próximas décadas, o Fórum deverá reservar mais espaço para as mulheres, tanto no que se refere aos participantes quanto aos conferencistas, sublinha Zainab Salbi, fundadora da ONG humanitária Mulheres para as Mulheres Internacional (Women for Women International) e apontada como uma das Jovens Líderes Globais pelo Fórum de Davos. “Conheço um grande número de mulheres que já manifestaram sua intenção de não voltar a Davos”, declara ela, antes da reunião deste ano. “O Fórum foi um grande evento do século XX, agora, ele deve provar que está à altura do século XXI”, complementa. Ben Verwaayen, presidente da Alcatel-Lucent e membro fundador do Fórum, compartilha esse ponto de vista. De acordo com ele, “o futuro de nossa organização apoia-se na igualdade entre homens e mulheres: nossa sobrevivência depende disso”. Essa necessidade tornou-se urgente nos últimos anos, sobretudo depois que 40 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 uma executiva francesa, “cansada” de não ser convidada para Davos, montou o Fórum das Mulheres de Deauville (França). O percentual de participantes mulheres no Fórum praticamente duplicou, desde 2001. As sessões dedicadas às mulheres, antes relegadas ao primeiro horário da manhã e fora da sede principal, ocorrem, agora, no Centro de Conferências e nos horários de maior circulação de pessoas. Há, inclusive, recepções, jantares e coquetéis dedicados às redes femininas. Neste ano, pela primeira vez, os organizadores do Fórum chegaram a um acordo com as 100 principais empresas parceiras para adotar uma quota de 20% de mulheres. Dentre cinco delegados enviados pelas empresas, pelo menos um deve ser mulher, ou a empresa renuncia ao envio do quinto delegado masculino. O número de mulheres mais que dobrou. No entanto, considerando que a medida diz respeito a apenas 500 dos 2.500 participantes, o aumento da presença feminina permanece pouco significativo. Para os organizadores, essa situação é satisfatória. “Na medida em que nossa organização seleciona seus membros entre as mil empresas mais importantes no mundo, é normal que ela reflita a distribuição de cargos”, constata Saadia Zahidi, diretora do Programa de Mulheres Líderes e Paridade de Gênero (Women Leaders and Gender Parity Program) do Fórum Econômico Mundial. As mulheres de Davos poderão contar, em breve, com uma importante aliada: Nicole Schwab, filha do fundador do Fórum Econômico Mundial, prepara-se para atribuir um certificado de paridade entre homens e mulheres às empresas que venham a corresponder a critérios (ainda a serem definidos) de igualdade de salários, de representação paritária das mulheres e de satisfação das funcionárias em relação a essa pariadade. “O objetivo consiste em transformar a paridade em uma vantagem competitiva para as empresas que tenham necessidade de atrair pessoal qualificado e investimentos”, ressalta Aniela Unguresan, sócia de Nicole Schwab no âmbito do Projeto Igualdade de Gênero (Gender Equality Project). Ainda falta convencer as elites para que se disponham a transformar esse objetivo em um must, ao lado do iate e do professor de ioga. Lançando as sementes do futuro K Mulheres em uma plantação na região de Kayanza, no Burundi. © IUCN/Intu Boedhihartono Enquanto fala, agitando energicamente seus cabelos, Lorena Aguilar pronuncia distintamente cada uma de suas palavras e pontua com a mão cada uma de suas frases. Há mais de 25 anos, ela dedica-se ao desenvolvimento de políticas públicas destinadas a enfrentar os problemas decorrentes das mudanças climáticas, com o objetivo de produzir novos conhecimentos sobre temas ainda não abordados, com base em uma perspectiva de igualdade de gênero. LORENA AGUILAR responde às perguntas de ALFREDO TRUJILLO FERNÁNDEZ, jornalista espanhol Por que é necessário abordar as mudanças climáticas sob a perspectiva de gênero? Em sua opinião, qual é a contribuição das mulheres? Homens e mulheres estabelecem diferentes relações com os recursos naturais. Sendo assim, devemos basear-nos nesses dois pontos de vista. Infelizmente, quando se trata de encontrar soluções, a balança tende a inclinar-se para um só lado. Muitas vezes, as estratégias são implementadas de maneira parcial, com base em um só ponto de vista: o do homem. É também uma questão de defesa dos direitos das mulheres. Não devemos nos esquecer que elas representam mais da metade da população mundial, portanto, elas deveriam participar na tomada de decisões, o que nem sempre tem acontecido, até agora. Por outro lado, as mulheres são detentoras de conhecimentos cruciais para combater os efeitos das mudanças climáticas. Um exemplo: em muitos países e regiões do mundo, como a Ásia, a África e a América, os homens vêm praticando a monocultura, enquanto as mulheres cultivam uma grande variedade de vegetais em seus quintais e hortas. De acordo com o clima que preveem para um determinado ano, elas decidem quais sementes plantar. Essa diversidade constitui, atualmente, uma verdadeira mina de ouro para os cientistas interessados em reintroduzir espécies que haviam desaparecido em alguns países, em decorrência da adoção de determinadas políticas agrícolas. Em países como Cuba, em alguns casos, as mulheres chegaram a conservar até 250 variedades de feijão e 75 variedades de arroz. No Peru, é possível contar até 60 variedades de iúca, e em Ruanda, até 600 variedades de arroz! Essa é, pelo menos, a informação fornecida pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Essa riqueza na diversidade das sementes e nos saberes tradicionais que lhe são inerentes é um excelente meio para combater as mudanças climáticas. Em primeiro lugar, porque algumas espécies de sementes adaptam-se melhor às condições de variação climática que conhecemos atualmente. Em segundo, porque essa capacidade de adaptação terá como resultado um nível de produção agrícola capaz de suprir as necessidades da população do planeta. O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 41 Quais são as suas ações no sentido de incentivar essas mudanças? Para começar, apresentamos o tema de maneira diferente. Está fora de questão dizer que as mulheres são mais sensíveis ou melhores pelo simples fato de serem mulheres, ou que o gesto de abraçar as árvores é próprio de nossa natureza. Ao contrário, o sentimentalismo não leva a lugar nenhum! Nosso argumento tem a ver com o desenvolvimento, é um argumento positivo e preventivo, com embasamento técnico e científico. Trata-se de um discurso de defesa dos direitos que tem ressonância universal. A Liga Árabe tornou-se, por exemplo, um dos nossos principais aliados, ao lado de países como a Finlândia e a Dinamarca. Neste ano, estamos desenvolvendo três estratégias que associam diferença de gênero e adaptação às mudanças climáticas, em Moçambique, na Jordânia e na América Central. Nossa ação consiste essencialmente em visitar essas regiões para verificar o que tem sido realizado quanto às mudanças climáticas, para assim formular estratégias adaptadas a cada situação particular. Não é um modelo aplicado de maneira uniforme, uma vez que levamos em consideração as especificidades regionais. Na América Central, por exemplo, os sete países da região (Belize, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá) desenvolveram uma estratégia comum com o objetivo de atenuar as mudanças climáticas e adaptar-se a seus efeitos. Além de terem sido consultadas, as mulheres foram convidadas a compartilhar e aplicar seus conhecimentos. Ao integrarmos suas necessidades a essa nova estratégia, conseguimos incorporar o aspecto do gênero nas medidas que serão implementadas quanto à atenuação dos efeitos das mudanças climáticas. Atualmente, mais de 25 países estão dispostos a desenvolver ações semelhantes, o que permitirá a redução das diferenças que provocam uma maior mortalidade entre as mulheress Como esses novos projetos são acolhidos pelas comunidades? Algumas tribos indígenas da América Central têm participado ativamente, tanto no desenvolvimento dos conhecimentos, quanto nos processos de capacitação. Seus saberes são fundamentais. No entanto, também nos deparamos com certa relutância: algumas comunidades têm medo de que os erros do passado venham a se repetir. Por exemplo, sabemos que 70% das pessoas mais pobres do mundo são mulheres, mas quando analisamos os beneficiários da cooperação nos projetos, percebemos que os recursos quase não chegam às mulheres. No entanto, também sabemos que, ao receberem o benefício, 95% das 42 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 mulheres utilizam-no para melhorar as condições de vida de suas famílias, ao passo que essa porcentagem não ultrapassa 15% quando os beneficiários são homens. Essa é a razão pela qual elas temem que esses projetos voltem a beneficiar os homens, como ocorreu no passado com os programas de compensação financeira destinados a comunidades rurais para o combate ao desmatamento. De maneira concreta, quais são os seus temores em relação ao futuro? Nós temos vários receios, porque a maioria dos programas de desenvolvimento realizados até hoje não levam em consideração as desigualdades entre os sexos, e é exatamente isso o que queremos evitar, para que não se repitam os erros do passado. O Banco Mundial, por exemplo, ao avaliar mais de 200 projetos relacionados ao uso dos recursos hídricos, concluiu que os mais eficazes foram aqueles que promoveram a igualdade de gênero. O que nós desejamos é chamar a atenção do mundo para essa realidade: que essa é uma batalha a ser vencida e que estamos lutando para alcançar esse objetivo. A costa-riquenha Lorena Aguilar é a primeira latino-americana a ocupar o cargo de conselheira mundial de gênero na União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). © Andrea Quesada-Aguilar De que maneira as mudanças climáticas afetam as mulheres? As mulheres são mais vulneráveis, sobretudo, em casos de catástrofes naturais associadas às mudanças climáticas. Ao procederem à análise de 141 catástrofes em todo o mundo, os pesquisadores da London School of Economics chegaram à conclusão que, nos países em que as diferenças entre os sexos são mais acentuadas, se registra um número de mortes de mulheres até quatro vezes superior ao de homens! Esse fato não está relacionado à fraqueza das mulheres, mas à sua falta de formação: uma mulher que nunca foi à escola, ao ouvir no rádio que estão previstas rajadas de vento de 260 km/h, não vai dar a devida importância a essa informação. Ela não dispõe das ferramentas nem dos conhecimentos suficientes para reagir a essa ameaça. O mesmo problema ocorre em alguns países muçulmanos, nos quais as mulheres, para saírem de casa, devem estar acompanhadas por uma pessoa do sexo masculino. Em Bangladesh, em 1991, um ciclone fez cerca de 150.000 vítimas, das quais no mínimo 90%, eram mulheres! Em muitos casos, elas recusaram-se a deixar suas casas sem a companhia de um homem, ou não sabiam nadar. O estudo também constata que, nos países em que as diferenças entre homens e mulheres são menos pronunciadas, uma catástrofe natural causa um número semelhante de vítimas de ambos os sexos. Nosso trabalho na União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) consiste em insistir no fato de que as mulheres são agentes de mudança, pois somos dotadas de saberes e conhecimentos específicos, além de termos o direito de tomar decisões e de participar dos processos políticos. J Else Lasker-Schüler : A Pantera Azul e a Sexta-feira (Der blaue Jaguar und Freytag), por volta de 1928. © Galerie Michael Werner, Berlin, Köln and New York Ela deixou a Argentina, seu país natal, em 1974, pouco antes da tomada do poder pela junta militar, e viajou para os EUA, China, Japão, Itália... antes de ter escolhido, sete anos mais tarde, residir na França, em Paris. Durante todos esses anos, dezenas de figuras femininas têm preenchido sua solidão. Hoje, Luisa Futoransky presta-lhes uma homenagem. Estrelas de minha galáxia pessoal “De onde você fala?”, essa era a pergunta mais frequente feita pelas feministas da década de 1960 às pessoas, conhecidas ou não, que tomavam a palavra no decorrer dos acalorados debates da época. De onde você vem para atrever-se, dessa maneira, a exprimir sua opinião? Estou falando, e não poderia ser de outra maneira, de um território – o meu – que, do ponto de vista da relação entre o espaço e o tempo, já pode ser considerado como antigo. Um território ocupado, de uma extremidade à outra, por um imaginário construído com base no tesouro incomensurável que nos é fornecido pelos livros, mas também pela cartografia do real, uma vez que a vida fez com que eu me agarrasse à existência, em países que estavam atravessando momentos cruciais de suas histórias. Assim, a sorte permitiu-me sair ilesa do continente latino-americano, na época em que se encontrava sob o jugo das piores ditaduras. E pude acompanhar, com meus próprios olhos, durante vários anos, as mudanças vertiginosas ocorridas em países da Ásia, como China e Japão. Nessa caminhada, devo reconhecer que nunca estive sozinha. Evolui em uma galáxia de figuras femininas, unidas por um imperativo comum: observar, exprimir-se e criar, contra tudo e contra todos. LUISA FUTORANSKY Às vezes, parecia que recuávamos, mas não, é que, nos momentos difíceis, avançávamos como os caranguejos: de lado. Ao deixar meu próprio período romântico, durante o qual fui quase exclusivamente atraída por artistas cujas existências foram marcadas por destinos tristes e fins trágicos, como Silvia Plath, Alejandra Pizarnik, Camille Claudel ou Charlotte Salomon, comecei a admirar a luta de combatentes obcecadas – embora elas não tivessem as melhores cartas nas mãos – como Janet Frame, Else Lasker-Schüler, Tina Modotti ou Frida Kahlo, entre outras. Sem esquecer as grandes viajantes, como Isabelle O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 43 Eberhardt, Alexandra David-Neel, Freya Stark ou Ella Maillart. Ao ler estas linhas, fico com a impressão de que, em minhas relações, dei preferência ao que designei como minhas “mal-amadas”. Se aprofundarmos esse tema, o mito fundador da mal-amada é Lilith, a primeira mulher rebelde de Adão, aquela que se encontra representada em diferentes pórticos de catedral, reivindicada, às vezes, por alguma superstição ou obra literária. Vou ilustrar essa representação com duas figuras ambíguas e contraditórias que, após longos sofrimentos impostos por vicissitudes do corpo e tragédias inacreditáveis, vivenciaram um renascimento como o da fênix, do tipo justiceiro e, na maioria das vezes, anacrônico. Eu gostaria de homenagear apenas duas mulheres, entre as centenas a quem eu desejaria prestar tributo. Os limites deste texto não me permitem fazer uma análise dessas grandes líderes que são Golda Meir, Bandaranaike – mãe e filha –, Indira e Sonia Gandhi, Benazir Bhutto, Angela Merkel, Evita, Michelle Bachelet ou Cristina Kirchner. Tampouco seria possível deter-me – apesar de, no fundo, continuar aplaudindo-as – na tenacidade de uma Carla del Ponte, de uma Mary Robinson, ou na bravura de Karla Michel Salas e sua luta incansável para instaurar, perante a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, o processo relacionado com o polêmico caso das mulheres assassinadas em Ciudad Juárez (México). Eu não poderia evocar, de forma mais detalhada, Waris Dirie, primeira mulher a denunciar publicamente a mutilação genital feminina, prática essencialmente africana; mas acredito que se deve proclamar sua luta, em alto e bom som, para que encontre eco em maior número de pessoas. Há muito tempo, aliás, ele tem sido reiterado por uma centenária, dotada de invejável energia, Rita Levi-Montalcini, apelidada “a dama do neurônio”. Todos os dias, ela vai à sede de sua fundação, em Roma, para apoiar os programas de educação destinados às mulheres africanas. Um asteróide, descoberto em 1981, ostenta seu nome, o que já é algo bastante significativo. O caminho da emancipação empreendida pelas mulheres, há quase 100 anos, tem sido marcado por grandes K A poetisa alemã Else Lasker-Schüler, por volta de 1925. © Acervo particular dificuldades e continua permeado de ambiguidades, contradições, armadilhas e confrontos intermináveis entre as forças da luz e aquelas que se obstinam a lançar-nos no reino das trevas. Ao testemunhar os destinos de duas escritoras, estas estrelas fulgurantes, eu gostaria, aqui, de resgatá-las do esquecimento: Else Lasker-Schüler e Janet Frame. Else Lasker-Schüler, uma estrangeira em seu país Há anos que sua fotografia e suas cartas estão ao meu lado. Ela reúne elementos tão diferentes, quanto o abandono e a arrogância, a rebelião e a submissão. E uma imensa privação e uma grande miséria. No entanto, acima de tudo, Else é uma voz interior, perseguindo, até suas últimas consequências, a poesia, a sua poesia. Um dom e um destino. “Todo mundo aprecia minhas poesias, mas ninguém se apaixona por mim”, ela costumava a afirmar com lucidez e ironia sarcástica. As obras de Else Lasker-Schüler mencionadas neste artigo estão expostas, de 21 de janeiro a 1º de maio de 2011, no Museu para o Presente de Berlim (Estação de Hamburgo). Essa exposição, organizada pelo Museu Judeu de Frankfurt-am-Main, em cooperação com a Galeria Nacional e o Museu Estadual de Berlim, tem o apoio da Sociedade dos Amigos da Galeria Nacional. 44 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 O destino de Else Lasker-Schüler é paradoxal: na sua época, os nazistas condenaram seus livros à fogueira, em razão da “arte degenerada” (entartete Kunst), pouco depois de lhe terem concedido o Prêmio Kleist, distinção máxima da literatura alemã. Em Israel, ela não era apreciada, ou, dito por outras palavras, seus livros não eram lidos, porque ela escrevia no “idioma do inimigo”, a língua amaldiçoada. Atualmente, suas “pátrias malvadas” – a Alemanha, sua terra natal, e Israel, a terra onde se encontra sua sepultura – disputam sua cidadania. Com efeito, cada uma a reivindica como sua poetisa nacional, atribuindo-lhe o qualificativo, nada menos que isso, de “Musa de Berlim” e “Estrela de Weimar”. Else nunca se contentou com o mundo tal como ele é. Em razão disso, ela teve de transformá-lo e renomeou as circunstâncias à sua maneira, começando por si mesma. Ela fantasiava sobre a sua idade, sobre a profissão de seus avós, sobre o nome dos maridos e dos amantes. A Sulamita, o príncipe de Tebas, o príncipe Jussuf, o Tino de Bagdá. A realidade era mais árida e, muitas vezes, o sofrimento (a perda precoce de um irmão e do filho único), o terror (a ascensão do nazismo) e a miséria (sua atividade como escritora nunca lhe permitiu satisfazer suas K Else Lasker-Schüler : O Príncipe Jussuf de Tebas, por volta de 1928, pastel e giz, nanquim, giz de cera e alumínio sobre papel, 26,7 x 21,6 cm. © Jüdisches Museum Frankfurt am Main. Ursula Seitz-Gray. necessidades básicas) vieram aninhar-se nas paredes de subsolos tão úmidos e sempre precários que lhe serviam de moradia. Um amigo meu, livreiro já idoso de Jerusalém, lembrava-se de um encontro com ela, no Attara, único bar reservado aos insones da cidade na época: vestida grotescamente, praticamente aos farrapos, sempre excêntrica e sem um centavo para pagar seu precário consumo, ela retirava do peito, à frente dele, pedacinhos de papel dourado, como se tratasse de pedras preciosas ou de sóis, para entregar ao garçom, que ficava enfurecido com tal atrevimento. O que faço aqui?, com esse título, o editor Salman Shocken, refugiado nos EUA, reuniu as correspondências que ele havia mantido com a poetisa. Nessas cartas, ela recrimina com amargura a Jerusalém terrena: clima rigoroso, descortesia dos habitantes e, em geral, indigência da vida literária e cultural. Em Else, no que se refere ao desgosto, prevalece a nostalgia do expatriado. Sua obra mais importante, Meu piano azul (Mein blaues Klavier), é dedicada a meus inesquecíveis amigos e amigas das cidades da Alemanha – e àqueles que, à semelhança do que se passou comigo, foram expulsos e, agora, estão espalhados por todo o mundo. Com minha fidelidade!” O julgamento lento e tardio da posteridade acabou por reconhecer o valor de Else. Em 20 de novembro de 2003, em seu discurso por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, Elfriede Jelinek prestou-lhe homenagem: “enquanto aluna, adorava a figura extravagante, exótica e multicolorida de Else Lasker-Schüler. Eu desejava, a qualquer preço, escrever poemas como ela, e, mesmo que eu não os tenha escrito, fui consideravelmente influenciada por ela”. Janet Frame, à beira do alfabeto Na década de 1950, os distúrbios mentais eram tratados à base de eletrochoques: Janet Frame foi submetida à cerca de 200. Eles foram aplicados por pessoas obstinadas, com plena consciência ou indiferentes, no entanto, esse procedimento não afetou em nada sua paixão pela escrita. A lenda de sua vida alimenta-se de literatura. Em 1952, ela estava prestes a ser operada no hospital Seacliff de Otago, na Nova Zelândia. Diagnóstico J Janet Frame, romancista e poetisa neozelandesa (1924-2004). © Janet Frame Estate/Reg Graham; Janet Frame Literary Trust; www.janetframe.org.nz (errôneo, conforme apurado mais tarde): esquizofrenia. Chegam a propor-lhe uma lobotomia para que ela venha a recuperar sua “normalidade”. Contudo, foi então que, contra todas as expectativas, surge a fada madrinha da literatura: sua primeira coletânea, O lago: histórias, recebe o prêmio de maior prestígio do país. Foi um milagre que o cirurgião Blake Palmer e a burocracia do hospital Otago tenham lido na imprensa, nesse dia, que o júri acabava de atribuir o Prêmio Hubert Igreja de Prosa à internada Janet Frame. Vamos situá-la no espaço e no tempo: ela nasceu em Dunedin, em 28 de agosto de 1924, e deixou-nos, em 29 de janeiro de 2004. Um Anjo em Minha Mesa, filme de Jane Campion, que, em 1990, se inspirou na autobiografia em três volumes de Janet Frame, recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza e suscitou admiração internacional pela escritora. A reação de Janet foi a seguinte : “antes do filme de Jane Campion, eu era considerada uma escritora maluca. Agora, sou uma escritora maluca e obesa”. Sua especialidade consiste em analisar tudo meticulosamente, sem medo de ser atingida em seu amor próprio. Ela nunca deixou de pensar na amiga Nola e em todas aquelas pessoas que, não tendo chegado a livrar-se da lobotomia por nenhum prêmio literário, foram transformadas irreversivelmente em zumbis silenciosos e dóceis. Janet Frame é a escritora mais penetrante e mais brilhante que se ela não conseguiu encontrar trabalho, em decorrência de seus antecedentes psiquiátricos. Novamente, o estigma da doença mental, e, novamente, por sua própria iniciativa, ela volta a ser internada, desta vez, no hospital Maudsley. A fada fez sua terceira visita, sob a figura do médico Alan Miller, que rejeita o diagnóstico inicial, livrando-a de qualquer tipo de esquizofrenia. Ele incentiva-a a fazer terapia analítica e a exorcizar toda sua trajetória, servindo-se das palavras para exprimir o que ela tinha vivenciado. Em conformidade com a força mágica dos números, tendo escrito sete romances, ela voltou à Nova Zelândia sete anos mais tarde. E a vida continuava. A partir de então, houve uma sucessão de prêmios, bolsas, residências de escritores, diplomas, viagens e doutorados honoris causa, assim como controvérsias em torno de sua obra e de sua pessoa, além de indicações periódicas ao Prêmio Nobel, que, até agora, não lhe foi atribuído. “À beira do alfabeto, onde todas as palavras desmoronam e todas as formas de comunicação entre os vivos não têm sentido”, escreve ela. Com toda a razão!. Luisa Futoransky, Luisa Futoransky, nascida em Buenos Aires (Argentina), em 1939, escreve em vários estilos: é poetisa, romancista, tradutora, jornalista e ensaísta. É autora, em particular, de Contos chineses (Son contos chinos), Partir, digo, De Pe à Pa (De Pe a Pa) A formosa (El formosa) e Luas de mel (Lunas de miel). (seu site, em espanhol, é: http://www. luisafutoransky.com.ar) © Tamara Pince atreveu a explorar a loucura, com base em seu interior. Em suas obras, ela define-se como “a sem-teto do ego”. Em sua obra, Rostos na água, ela observa que a loucura definitiva ou a morte nunca ocorrem, quando são procuradas ou convocadas. Frame instala sua voz em outro mundo, o dos vencidos, no próprio avesso da trama, por trás das grades, dos sedativos e das camisas de força: seu testemunho é o dos corpos e do pensamento confinado na prisão que é o asilo. Como ela iria aprender por conta própria, existe uma hierarquia entre os pacientes: há os “bons”, os “birutas” e os desobedientes, os que, a exemplo dela, não renunciam a pensar. Para estes, é reservado o eletrochoque, uma armadilha que volta a fechar-se “nas trevas do abismo”. Os filhos da família Frame eram cinco: um rapaz e quatro moças. O pai era ferroviário; a mãe, empregada doméstica, que esteve a serviço, durante algum tempo, da família da escritora Katherine Mansfield. Várias tragédias marcaram profundamente a vida dessa família: em um lapso 10 anos, duas meninas morreram afogadas. Por sua vez, o rapaz era epiléptico. Rejeitada na infância por seu físico pouco atrativo, Janet foi alvo de chacota, na adolescência, por sua excessiva timidez. Após uma tentativa de suicídio, um professor pelo qual se apaixonara chegou a convencê-la a internar-se. Em decorrência disso, ela permaneceu quase oito anos no hospital psiquiátrico, “uma terra eterna do presente, sem horizontes para acompanhá-la”. Segunda intervenção notável da fada madrinha dos escritores: na sequência do pesadelo hospitalar, ela conheceu Frank Sargeson, mentor da nova safra de escritores da Nova Zelândia, quem iria alimentar seu apetite insaciável pela leitura, convencendo-a a escrever em tempo integral. Com essa finalidade, Sargenson ofereceu-lhe a possibilidade de instalar-se em um galpão de sua propriedade, em Takapuna, ao norte de Auckland. Um ano depois, ela concluiu seu primeiro romance, As corujas realmente choram (Owls do cry). Sargeson iria ajudá-la também a juntar os recursos necessários para uma temporada na Europa. Londres, Paris, Barcelona, Ibiza e, mais uma vez, Londres, cidade onde 46 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 Michelle Bachelet, nascida em 1951, é diretora-executiva da ONU Mulheres, desde 2010. Ela foi presidente do Chile, de 2006 a 2010. Chandrika Bandaranaike, nascida em 1945, foi presidente do Sri Lanka, de 1994 a 2005. Sirimavo Bandaranaike (1916-2000) foi primeira-ministra do Sri Lanka em três ocasiões, entre 1960 e 2000. Benazir Bhutto (1953-2007) foi, em duas ocasiões, primeira-ministra do Paquistão. Jane Campion, nascida em 1954, é cineasta e cenarista neozelandesa. Camille Claudel (1864-1943) artista plástica francesa. Alexandra David-Neel (1868-1969), orientalista franco-belga, foi também cantora de ópera, jornalista, escritora e exploradora. Carla Del Ponte, nascida em 1947, é magistrada. Ex-procuradora do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPIY) e do Tribunal Penal para a Ruanda (TPIR), é, desde 2008, embaixadora da Suíça na Argentina. Waris Dirie, nascida em 1965, na Somália, é embaixadora da Boa Vontade do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Isabelle Eberhardt (1877-1904) escritora suíça. Janet Frame (1924 - 2004) romancista e poetisa neozelandesa. Indira Gandhi (1917-1984) foi primeira-ministra da Índia, de 1966 a 1977, e, em seguida, de 1980 até sua morte. Sonia Gandhi, nascida em 1946, na Itália, ingressou no cenário político indiano, em 1991, na sequência do assassinato do marido, o primeiro-ministro Rajiv Gandhi. Elfriede Jelinek, nascida em 1946, na Áustria, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 2004. Frida Kahlo (1907-1954) pintora mexicana. Cristina Kirchner, nascida em 1953, é presidente da Argentina, desde 2007. Else Lasker-Schüler (1969-1945) poetisa alemã. Rita Levi-Montalcini, nascida em 1909, na Itália, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina, em 1986. Ella Maillart (1903-1997) exploradora, escritora e fotógrafa suíça. Katherine Mansfield (1888-1923) romancista e poeta neozelandesa. Golda Meir (1898-1978) foi ministra das Relações Exteriores e primeira-ministra de Israel. Angela Merkel, nascida em 1954, é chanceler da Alemanha, desde 2005. Karla Michel Salas, advogada mexicana, recebeu o Prêmio Direitos Humanos 2010 do Conselho Europeu dos Advogados. Tina Modotti (1896-1942) fotógrafa italiana. Evita, ou melhor Eva Perón (1919-1952) foi primeira-dama da Argentina, de 1946 até sua morte. Alejandra Pizarnik (1936-1972) poetisa argentina. Silvia Plath (1932-1963) poetisa norte-americana. Mary Robinson, nascida em 1944, foi a primeira mulher presidente da Irlanda, de 1990 a 1997. Em seguida, assumiu a função de alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, de 1997 a 2002. Charlotte Salomon (1917-1943) artista plástica e pintora alemã. Freya Stark (1893-1993) escritora e exploradora britânica. Madre Teresa a mulher mais poderosa do mundo Ela dedicou sua vida aos desfavorecidos e deixou como herança uma obra de envergadura internacional. Esboçado por um hindu, este é o retrato de uma católica albanesa nascida sob o Império Otomano, na cidade de Skopje1, e falecida em Calcutá, na Índia, Prêmio Nobel da Paz de 1979 e beatificada em 2003 pelo papa João Paulo II: Madre Teresa de Calcutá (1910-1997). NAVIN CHAWLA Madre Teresa, com quem mantive contato durante 23 anos, era uma personalidade com múltiplas facetas, ao mesmo tempo simples e complexa. Ela dedicava-se inteiramente àqueles que encontrava em seu caminho – pobres, ricos, pessoas com deficiências, pessoas com hanseníase e indigentes – e, ao mesmo tempo, dirigia uma poderosa congregação religiosa, as Missionárias da Caridade, implantada em 123 países até 1997, o ano de sua morte. Restaurantes comunitários, escolas, hospícios, albergues, orfanatos para crianças com hanseníase ou abandonadas, centros de desintoxicação e serviços de visita a domicílio para pessoas doentes e idosos – tudo isso representa a força de sua obra. E tudo isso foi construído de forma meticulosa e paciente pelas irmãs e irmãos de sua ordem. Foi por acidente que escrevi a biografia de Madre Teresa. Eu já a conhecia há vários anos e colaborava com ela em suas atividades em Nova 1. Capital da República da Macedônia que, até 1991, fazia parte da Iugoslávia. K Madre Teresa, rodeada por Navin Chawla e sua família. © Navin Chawla Deli. Certo dia, ela me contou algo muito engraçado, e ambos rimos com a história. Foi então que me dei conta de que esse traço de sua personalidade ainda não havia sido relatado nos livros já publicados sobre essa mulher. “Talvez eu devesse escrever um livro”, eu disse. Aparentemente, ela não estava disposta a aceitar essa ideia: “já existem tantos livros!”. Então, deixei escapar estas palavras: “será que somente católicos podem escrever a seu respeito? Um funcionário hindu não teria autorização para fazer isso?”. Eu me arrependi imediatamente de minhas palavras e me deixei invadir por um silêncio constrangido, porque eu sabia perfeitamente que ela nunca seria capaz de discriminar alguém. No entanto, ela levou minha pergunta a sério e disse: “Tudo bem, mas não escreva sobre mim, mas sobre as nossas ações”. Apesar de ser profundamente católica, Madre Teresa não tinha uma concepção sectária da religião. Convencida de que cada pessoa de que cuidava era a encarnação do Cristo sofredor, ela dispunha-se a ajudar seu semelhante, sem qualquer distinção de crença. Essa fé que fazia parte de sua natureza exasperava seus críticos, que a consideravam como o símbolo de uma conspiração de direita, ou pior ainda, como a porta-voz das posições do Vaticano contra o aborto. Essa espécie de crítica nunca repercutiu na Índia, país no qual Madre Teresa era respeitada e venerada por um grande número de pessoas. Certo dia, chamei sua atenção para o fato de que ela era a mulher mais poderosa do mundo. “Como assim?”, respondeu ela. “Se isso fosse verdade, eu traria a paz para o mundo”. Pergunteilhe, então, por que ela não utilizava sua inegável influência para apaziguar os conflitos, ao que ela retrucou: “as guerras são consequências da política. Se eu estivesse na política, eu deixaria de amar: ficaria limitada a apoiar algumas pessoas, quando meu dever é ser solidária a todos”. Os legados e os donativos recebidos pela ordem de Madre Teresa eram sempre bem-vindos e investidos imediatamente para atender às necessidades mais urgentes. Contudo, sua lembrança mais viva era o que ela chamava de “dinheiro sacrificado”: como o do mendigo de Calcutá que lhe O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 47 Alto funcionário público aposentado, o indiano Navin Chawla manteve contato, durante vários anos, com Madre Teresa de Calcutá. Ele é o autor de uma biografia sobre a fundadora das Missionárias da Caridade. O centenário de nascimento de Madre Teresa de Calcutá está sendo comemorado, em todo o mundo, entre agosto de 2010 e agosto de 2011. 48 . O CORREIO DA UNESCO Manuela Sáenz © Oscar Monsalve, Coll. Casa Museo Quinta de Bolivar, Ministère de la Culture de Colombie, Bogota entregou algumas moedas recebidas durante um dia inteiro, ou o do jovem casal hindu que se amava tanto e que, ainda assim, decidiu renunciar à festa de casamento para lhe oferecer a quantia que tinham poupado. Antes de sua morte, eu manifestei minhas preocupações sobre o futuro da organização que ela tinha criado. Eu já havia assistido à decadência de outras instituições, a partir do falecimento de seus fundadores carismáticos. Na primeira vez em que lhe fiz a pergunta, ela apenas levantou as mãos para o céu. Na segunda vez, ela não me respondeu diretamente, mas disse com um sorriso: “em primeiro lugar, deixe-me ir embora”. Diante da minha insistência, ela acabou por responder: “você já visitou muitas de nossas casas na Índia e no exterior. Por toda parte, as irmãs vestem os mesmos saris, comem o mesmo tipo de comida, fazem o mesmo trabalho. Madre Teresa não está em todos os lugares e, no entanto, o trabalho não deixa de ser feito.” Em seguida, ela acrescentou: “enquanto permanecermos comprometidos com os mais pobres dos pobres e não estivermos a serviço dos ricos, nossa obra irá prosperar”. Como sou hindu e apenas um pouco eclético, creio que precisei de mais tempo do que outros para compreender que Madre Teresa vivia permanentemente com Cristo, não só durante a missa, mas também quando ela oferecia ajuda a alguém. No seu entender, o Cristo crucificado não era diferente dos moribundos que jaziam em seu hospício de Kalighat. Para Madre Teresa, amar o próximo era amar a Deus. Essa era a única coisa importante para ela, e não a amplitude de sua obra ou o poder que os outros lhe atribuíam. Aliás, certo dia ela me explicou isso com palavras simples e que falam por si: “somos chamados não para obter sucesso, mas para ser fiéis à nossa missão”. guerreira à serviço da América Latina LAUTARO POZO A comemoração do bicentenário das independências latino-americanas (2009-2011) tem sido uma oportunidade para a historiografia oficial exaltar heróis esquecidos ou desconhecidos, entre eles a equatoriana Manuela Sáenz Aizpuru. Nascida no final do século XVIII, aquela que Simón Bolívar chamava de “a libertadora do Libertador”, sobreviveu em algumas memórias apenas como a pessoa que salvou a vida de Bolívar, em uma tentativa de atentado em Bogotá, capital da Colômbia, em 1828. Nessa época, essa lindíssima mulher, fervorosa admiradora de Bolívar, já havia desempenhado várias façanhas militares. Desde 1809-1810, ainda adolescente, ela apoiou os insurgentes em sua cidade natal de Quito (Equador), na qual começou a luta pela independência de seu país. Em 1821, ela participou da libertação de Lima (Peru), cidade onde se casou e onde foi condecorada como “Cavaleira da Ordem do Sol”, pelo general San Martín. Após o retorno a Quito, ela participou da batalha de Pichincha, que consagrou a independência da Colômbia.Em 24 de maio de 1822, por ocasião da entrada triunfal do Libertador na mesma cidade, os dois heróis encontraram-se, permanecendo juntos até a morte de Bolívar, em 1830. Em 1823, Manuela tornou-se sua secretária e arquivista oficial. Conselheira experiente e dotada de apurado senso político, ela sempre atuou nos bastidores em favor desse homem ilustre, como confidente e mediadora dos grandes líderes militares, desde Sucre até San Martín. Acima de tudo, ela fez milagres nos campos de batalha, ocupando-se do recrutamento, do fornecimento de armas e de alimentos, da organização, do tratamento aos feridos, além de estar presente, sem poupar esforços, em todos os postos em que pudesse ser útil. Manuela anotou em seu diário: “(...) nós recrutamos aldeias inteiras para a revolução, para a pátria. Algumas mulheres costuravam uniformes, enquanto outras tingiam tecidos (...). Às crianças que estavam conosco pedíamos que trouxessem pedaços de ferro e de estanho para que pudéssemos derretê-los e transformálos em espingardas, canhões, pregos, ferraduras etc. Em suma, eu era uma verdadeira comissária de guerra, que não teve nenhum descanso até que a nossa revolução triunfasse.” Em 1824, após a batalha de Junín, decisiva para a independência do Peru, ela obteve a patente de capitã de cavalaria e, em seguida, a de coronela do exército colombiano. Essa equatoriana incansável acabou seus dias exilada em Paita (Peru), onde morreu em 1856. Entretanto, sua história ainda teve continuidade, porque um século e meio mais tarde, em 2007, ela foi postumamente promovida à patente de generala da República do Equador, pelo presidente Rafael Correa. Lautaro Pozo é embaixador delegado permanente do Equador junto à UNESCO. Post-scriptum “Ao receber a notícia da morte de Édouard Glissant, fui invadido por grande número de imagens que testemunham longo e fecundo companheirismo”. É com essas palavras que o escritor guadalupiano, Ernest Pépin, começa a vibrante homenagem intitulada “Uma alma inquieta do mundo” (Une âme inquiète du monde!). Publicamos um trecho desse texto, em memória de Édouard Glissant, diretor de redação do Correio da UNESCO de 1982 a 1988. A princesa Loulwah considera que a Arábia Saudita passa atualmente por “um período fascinante”. Mais que isso, ela acredita que a verdadeira riqueza de seu país não é o petróleo, mas a juventude. A princesa Loulwah da Arábia Saudita responde às perguntas de Linda Tinio (do Bureau de Planejamento Estratégico da UNESCO).. A obra de três gigantes da poesia mundial forma a trama do novo projeto da UNESCO “Tagore, Neruda, Césaire, por um Universal Reconciliado”. Inaugurado em junho de 2011, tem como objetivo suscitar a reflexão sobre os valores universais da humanidade nos círculos acadêmicos e artísticos.. Post-scriptum Homenagem a Édouard Glissant “Ao receber a notícia da morte de Édouard Glissant, fui invadido por grande número de imagens que testemunham longo e fecundo companheirismo”. Com essas palavras é que o escritor guadalupiano, Ernest Pépin, começa a vibrante homenagem intitulada “Uma alma inquieta do mundo” (Une âme inquiète du monde!). Publicamos um trecho desse texto, em memória de Édouard Glissant, diretor de redação do Correio da UNESCO de 1982 a 1988. ERNEST PÉPIN No furor de suas obras poéticas, dramáticas, romanescas e teóricas, às vezes é difícil acompanhar as marcas do pensamento de Édouard Glissant. No entanto, elas atraem-nos como esse campo de ilhas que ele pretendeu construir no ápice do Todo-Mundo (ToutMonde). Ao ampliar incessantemente os círculos concêntricos de uma escrita em estado de alerta, ele acabou irrigando um “sistema” proteiforme de rara densidade [...]. 1. Título de um romance publicado em 1993 e de uma obra teórica editada em 1997, Tout-Monde (Todo-Mundo) tornou-se um dos conceitos fundadores do pensamento universalista de Édouard Glissant. O Institut du Tout-Monde foi inaugurado em Paris com o apoio do Conselho Regional do Departamento de Île de France e do Ministério do Ultramar francês. Disponível em: <www.tout-monde.com>. © UN Photo/ Jean Marc Ferré Pensar o Tout-Monde1 Para Glissant, o Todo-Mundo não significava obedecer às hipocrisias da globalização. Ao contrário, significava substituir o mito da identidade imutável pelo “terremoto” do mundo. Como expressa seu caráter inesperado e imprevisível. Ou, dito por outras palavras, sua “mundialidade”! Ao questionar o mundo em seu movimento incessante, Glissant ensinou-nos a renunciar à idéia de unidade nivelante e, em última instância, imperialista. Ele tornava impossível qualquer assimilação e conduzia-nos a privilegiar as fricções, os raios fulminantes, as variações de uma heterogênea efervescência intelectual e cultural. Aquilo que permite a um francês ser um chinês, a um chinês ser um caribenho, a um caribenho ser um finlandês, sem que, no entanto, se renuncie a si mesmo. Glissant ensinou-nos a plasticidade contra a rigidez. Atualmente, basta olhar, ouvir alguns jovens para compreender essa forma alternativa de pensamento do mundo e de si. Glissant ensinou-nos que a identidade não é um rosário que se recita, mas um risco que se enfrenta com o imaginário do mundo; não é um repúdio dos outros, mas uma abertura aos outros. “Perda de si!”, gritam os nostálgicos da “pureza”. Não, respondia Glissant, mas autorreorganização na instabilidade criativa do mundo! De fato, ele deixou como legado um pensamento habitável para o século XXI. Outros condenariam os componentes do 50 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 mundo a um confronto sem fim e sem objetivo. Pensamento do habitar fora de qualquer confinamento! Suas obras recentes consolidaram esse pensamento do Todo-Mundo. Os lugares escapam aos estorvos nacionais. As relações transcendem as fronteiras. Os intercâmbios suprimem as solidões, arrastando em sua esteira a identidade-mundo. Uma identidade sem hierarquia de culturas, sem imperialismo, sem exclusão nem exclusiva, capaz de aceitar sem repugnância as formas imprevistas da criação do homem pelo homem! Porque este era o desafio: a humanização de um mundo consciente e responsável por sua diversidade! Podemos absorver de tal obra e de tal questionamento a sua indisciplina. Denomino indisciplina o não respeito a teorias pré-fabricadas, escritas imóveis, estéticas convencionais. Ainda não foi suficientemente salientado que Glissant se situa em um pensamento dissidente ou, se preferirmos, de ruptura. Ruptura com o discurso europeu e eurocêntrico. Ruptura com o discurso anticolonialista estático. Ruptura com o discurso da identidade prisioneiro do essencialismo. Ruptura com a hegemonia dissimulada que é a globalização. Ruptura com as lacunas da linguagem. Ruptura com a ditadura das línguas imperiais. Enfim, ruptura com certa concepção da literatura! Por trás de cada ruptura, emerge a adesão a outros valores, a outras formas do conhecimento, a outras estéticas da escrita, a outras funções do escritor e do ser humano. Glissant não nos convidava a acompanhar o mundo; ele convidava-nos a passar a sua frente e a esperá-lo em um lugar que não era seu destino! Ao invés de convidar-nos a escrever, ele convidava-nos a produzir uma obra. Ao invés de convidar-nos a procurar a transparência, ele convidava-nos a respeitar as opacidades. Post-scriptum Se prestarmos bem atenção, ele ergueu-se em total solidão, contra o mais letal dos imperialismos: um pensamento mutilado e mutilante a respeito do mundo. Esse é o motivo pelo qual ele irá permanecer como o homem que derrubou os compartimentos estanques, sem deixar de manter-se fiel à sua Martinica e ao Caribe. Ele tinha diante de si o enorme continente da negritude, o soberano império de um pensamento ocidental, cujos críticos ele admirava (Rimbaud, Breton, Arthaud, Segalen etc.). Ele escolheu construir sua própria catedral, recusando-se a ser colonizado. Em sua honra, ela sempre foi erguida sobre o alicerce da emancipação humana, como é evidenciado pela criação do Instituto Martinicano de Estudos (Institut martiniquais d’études) e da revista Acoma, por sua fiel dedicação ao Prêmio Carbet do Caribe, pelo lançamento do Prêmio Édouard Glissant, pela fundação do Instituto do Todo-Mundo etc. Raros foram aqueles que verdadeiramente o compreenderam! Muitos tiveram admiração por ele! É chegada a hora de ler seus textos! Para mim, escritor, originário de Guadalupe, Glissant proporcionou a amplitude de suas questões, o fervor e a generosidade de suas respostas e a exigência de habitar o mundo sem qualquer chauvinismo. Que sejamos gratos a ele por tudo isso! A ASSINATURA INDELÉVEL DE ÉDOUARD GLISSANT “A miscigenação [no Caribe] não é um consentimento passivo de valores impostos”, afirmava o escritor martinicano, Édouard Glissant, em um artigo publicado no Correio da UNESCO, em 1981, sob o título “A vocação de compreender o outro”. Esse texto havia sido escrito um ano antes da nomeação de Glissant para o cargo de diretor da redação desse periódico, que ele iria dirigir até 1988. “O Caribe aparece […] como lugar exemplar da Relação, espaço em que várias nações e comunidades – cada uma com suas originalidades – não deixam de compartilhar o mesmo futuro”; eis a opinião desse pensador do universal, a quem devemos o conceito de Todo-Mundo. Ele considerava miscigenação como encontro das diferenças, ao invés de defini-la como simples mistura de culturas, contribuindo assim para forjar a noção de diversidade cultural defendida constantemente pela UNESCO. Alguns meses depois de ter assumido a direção da redação do Correio da UNESCO, Édouard Glissant publicou número intitulado “Guerra à guerra: a palavra aos poetas” (novembro de 1982), com a participação de escritores eminentes, como Adonis, Guinsberg, Labou Tan’si, Voznesensky, para citar apenas alguns nomes. Pouco depois, foram lançados edições dedicadas a “Teatros do mundo”, “Civilizações do mar”, “Artes da América Latina”, “História do Universo”... O tom tinha sido dado: o Correio da UNESCO afirmou-se internacionalmente como fórum aberto para debates intelectuais. Esta “assinatura” de Édouard Glissant deixa sua marca indelével nas páginas da nossa revista. – J. Šopova Acesso aos artigos de Édouard Glissant publicados no Correio da UNESCO http://www.unesco.org/new/fr/unesco-courier/edouard-glissant/ Visite igualmente o site de Édouard Glissant : www.edouardglissant.fr L Édouard Glissant foi sepultado em 9 de fevereiro de 2011, no cemitério do Diamante, na Ilha de Martinica, nos arredores desse memorial aos escravos, em Anse Cafard. © Elena Spasova O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 51 Post-scriptum © UNESCO/Michel Ravassard Em perspectiva A nossa riqueza é a juventude A que a Sra. atribui os avanços obtidos pela Arábia Saudita quanto a educação primária para todos, um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio? Esse objetivo sempre foi planejado com antecedência e de acordo com as necessidades do país. Aliás, nunca hesitamos em recorrer à assistência da UNESCO ou das Nações Unidas para que participem em tais esforços de planejamento. Quanto à obtenção de um sistema educativo perfeito, penso que se trata de algo fora do alcance de qualquer Estado. Entretanto, na Arábia Saudita, conseguimos atingir o objetivo que havíamos previamente fixado: fornecer serviços eficazes à população e atender às necessidades do país. Há perspectivas de maior abertura internacional para o sistema educativo da Arábia Saudita? Sempre houve intercâmbios com outros países. Se observarmos a história do nosso sistema de ensino, desde a época do rei Abdelaziz (fundador do reino da Arábia Saudita, no século XIX), constatamos que, já naquela época, estudantes eram enviados para universidades em todo o mundo para obter especialização em diferentes áreas. Nosso sistema é internacional. Neste momento, estamos construindo o futuro em grande número de disciplinas. Trata-se de um período fascinante para a Arábia Saudita; com modelos formidáveis, como a Universidade do rei Abdallah. Atualmente, estamos concentrando nossos esforços em pesquisa, um setor que foi dinamizado, graças à A princesa Loulwah considera que a Arábia Saudita passa atualmente por “um período fascinante”. Mais que isso, ela acredita que a verdadeira riqueza de seu país não é o petróleo, mas a juventude. A PRINCESA LOULWAH da Arábia Saudita responde às perguntas de Linda Tinio, do Bureau de Planejamento Estratégico da UNESCO criação dessa universidade, focalizada precisamente nessa área. Qual é o papel da Arábia Saudita na promoção do diálogo entre as culturas? A iniciativa para esse diálogo partiu do rei, tanto na Arábia Saudita quanto no exterior. Ele é o principal incentivador. A Arábia Saudita sempre acreditou no diálogo. É muito importante. Não se consegue nada sem o diálogo. Creio que todos os projetos apresentados pelo rei – seja em matéria religiosa, cultural, pessoal ou política – baseiam-se nesse princípio. Espero sinceramente que o resto do mundo possa seguir seu exemplo. “Neste momento, estamos construindo o futuro em grande número de disciplinas. Trata-se de um período fascinante para a Arábia Saudita.” Como a Sra. encara o futuro das relações entre a UNESCO e a Arábia Saudita? Nossa colaboração com a UNESCO não se limita à Fundação do Pensamento Árabe: temos colaborado em várias áreas. Espero que a universidade pela qual sou responsável (Universidade de Effat – Effat College) venha a colaborar também com a UNESCO. Ainda não somos muitos a garantir suporte às ações da Organização, tampouco para receber os benefícios do esplêndido trabalho efetuado pela UNESCO no mundo. A UNESCO é, acima de tudo, 52 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 um espaço para o diálogo, assim como a política da Arábia Saudita. E isso só pode melhorar. Qual é, atualmente, o lugar da geração jovem na Arábia Saudita?? A juventude é a nossa verdadeira riqueza, e não o petróleo. Devemos, com isso, orientar nossa ação em favor de seu pleno desenvolvimento. Pertenço a uma geração que fez tudo por seu país. A geração que me precedeu e que havia construído o país também se dedicou inteiramente à sua pátria. Agora, portanto, devemos permitir que a próxima geração venha a fazer o mesmo. Sua Alteza Real, a princesa Loulwah Al-Faysal dedica-se à educação das mulheres, assim como à ação social e familiar. Desde 1994, ela dirige o Centro Cognitivo e de Desenvolvimento de Habilidades Al-Maharat (Al-Maharat Cognitive and Skill Development Center) de Jedá. E, desde 1999, ocupa cargos proeminentes no Conselho de Administração da Dar Al-Hanan School e da Universidade de Effat (Effat College), dois estabelecimentos de ensino reservados às mulheres. Esta seção, lançada pelo Bureau de Planejamento Estratégico (BSP), no âmbito do Programa de Prospecção da UNESCO aborda temas de interesse para o público em geral e para os Estados--membros da Organização. Ela expõe opiniões, a fim de fortalecer a reflexão, o planejamento e a ação da UNESCO em suas diferentes esferas de atuação. Post-scriptum Pensamento universal Tagore, Neruda, Césaire a poesia a serviço de um novo humanismo NOÉMIE ANTONY e JASMINA ŠOPOVA “Mesmo que cada um tenha evoluído em esferas culturais distintas e sem praticamente se terem encontrado no decorrer de suas vidas, esses três gigantes do pensamento e da poesia desenvolveram visões convergentes “, afirma Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO, ao falar de Rabindranath Tagore, Pablo Neruda e Aimé Césaire. A obra desses três gigantes da poesia mundial – nascidos, respectivamente, na Índia, no Chile e em Martinica – constitui a trama de um novo projeto da UNESCO: Tagore, Neruda, Césaire, por um Universal Reconciliado. Inaugurado em junho de 2011, tem como objetivo suscitar a reflexão sobre os valores universais da humanidade nos círculos acadêmicos e artísticos. “A ideia do projeto foi lançada, em 2008, por Olabiyi Babalola Joseph Yai, delegado-permanente de Benin junto à UNESCO e presidente do Conselho Executivo da Organização”, explica Françoise Rivière, que, na ocasião, exercia a função de subdiretora-geral da UNESCO para a Cultura. “Ele foi apoiado pelas delegações permanentes do Chile, da França e da Índia”, acrescenta ela, antes de abordar o objetivo propriamente dito: “tratava-se, acima de tudo, de estabelecer um vínculo entre esses escritores – que haviam marcado sua época – e o atual contexto mundial, observando os problemas contemporâneos, à luz da obra de cada um deles”. “A poesia é sempre um ato de paz. O poema nasce da paz como o pão nasce da farinha.” Pablo Neruda Entre as questões que atualmente se formulam com maior acuidade está a temática relativa à alteridade, que chama particularmente a atenção desse projeto, como é sublinhado por uma de suas criadoras, Annick Thébia- -Melsan. “A relação com o outro deixou de ser uma questão teórica”, afirma essa especialista em Aimé Césaire, que publicou uma entrevista com o criador do movimento da Negritude, no Correio da UNESCO, em maio de 1997. “Nunca chegamos a conceber nossa singularidade como o oposto e a antítese da universalidade […]. Nosso pensamento predominante foi sempre uma preocupação humanista, e pretendemos que ela criasse raízes”, assim afirmava o poeta martinicano, que acrescentava: “pelo aprofundamento do singular é que se vai ao universal”. Rabindranath Tagore já tinha feito tal afirmação, com palavras que lhe são peculiares, na carta enviada a um amigo, datada de 1921: “em sua essência, todos os homens são dwija, nascidos duas vezes... eles nascem, em primeiro lugar, para sua comunidade e, em seguida, para sua plena realização, eles devem nascer para o vasto mundo”(Correio da UNESCO, dezembro de 1961). Em carta para outro amigo, redigida em 1934, ele indicava: “a individualidade é preciosa; é unicamente por seu intermédio que somos capazes de realizar a universalidade” (Correio da UNESCO, janeiro de 1994). Por sua vez, Pablo Neruda, em discurso na UNESCO, em 1972, no momento em que era delegado-permanente do Chile junto à Organização, afirmava o seguinte: “estou longe de ser um individualista: creio que o homem só é livre, na medida em que é coletivista”. Em termos poéticos, essa idéia traduz-se em seu poema “Canto ao Exército Vermelho em sua chegada às portas da Prússia” (Canto al Ejército Rojo a su llegada a las puertas de Prusia): “tive vontade de cantar para vocês, para toda a terra, esta canção de palavras obscuras, a fim de que sejamos dignos da luz que chega”. Outros temas de convergência foram identificados no âmbito do projeto Tagore, Neruda, Césaire, por um Universal Reconciliado, que visa a desenvolver a reflexão, em particular, sobre cinco tópicos: a poesia como mediadora entre o homem e o mundo; um novo pacto entre o homem e a natureza; a emancipação contra todas as formas de opressão; uma visão das relações entre a ciência, o homem e a ética; a herança pedagógica dos três autores. A fim de criar um laboratório de pesquisa e de criação voltado para essas formas de reflexão, a UNESCO estuda constituir um comitê de patrocínio composto por intelectuais, cientistas e artistas, com a incumbência de pensar a evolução do projeto. “Uma verdadeira rede de parceiros foi criada para implementar esse projeto”, explica Edmond Moukala, coordenador do programa. “Conseguimos criar vínculos com universidades, centros de investigação, ONGs, associações, festivais e, até mesmo, com a mídia, com o objetivo de organizar “A revolução a se fazer na Martinica será em nome do pão, é claro, mas também em nome do ar e da poesia.” Aimé Césaire O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2011 . 53 Post-scriptum conferências e exposições ou de incentivar projetos de pesquisas científicas e documentários. Como escritores comprometidos e atores da história, Rabindranath Tagore, Pablo Neruda e Aimé Césaire compartilharam visão ao mesmo tempo humanista e poética do mundo. O desafio do projeto que lhes é dedicado consiste em questionar as consciências no mundo contemporâneo, mobilizando atores dispostos a refletir sobre o humanismo que se constrói hoje. Desafio sutilmente definido pelo poeta haitiano, René Depestre: “essa viagem de exploração deveria nos conduzir do universo particular de cada um dos três autores a outras áreas culturais e a um todo unificado universo”. Para outras informações sobre o projeto, entre em contato com Emond Moukala, especialista em diálogo intercultural e coordenador do programa: [email protected] ; LER: “Uma arma milagrosa contra o mundo amordaçado” (Une arme miraculeuse contre le monde bâillonné), entrevista com Aimé Césaire, Correio da UNESCO, maio de 1997, p. 4-7. http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001059/105969fo.pdf#105954 “Rabindranath Tagore: a verdade, fundamento do ser” (Rabindranath Tagore: la vérité, soutien de l’être), Correio da UNESCO, janeiro de 1994, p. 44-45. http://unesdoc.unesco.org/images/0009/000969/096900fo.pdf#96898 “Rabindranath Tagore: uma voz universal” (Rabindranath Tagore: une voix universelle), Correio da UNESCO, dezembro de 1961, p. 4-27. http://unesdoc.unesco.org/images/0006/000643/064331fo.pdf “Rabindranath Tagore: fui seduzido pelo encantamento das linhas” (Rabindranath Tagore: Je suis tombé sous l’enchantement des lignes), Correio da UNESCO, agosto de 1957, p. 16-20. http://unesdoc.unesco.org/images/0006/000676/067651fo.pdf#67668 “Rabindranath Tagore: sentinela do Leste” (Rabindranath Tagore, sentinelle de l’Est), Correio da UNESCO, Supplemento, maio de 1949, p. 7. http://unesdoc.unesco.org/images/0007/000739/073970fo.pdf#73982 RABINDRANATH TAGORE (1861-1941) aristocrata indiano, poeta, dramaturgo, músico, artista plástico e educador, é Prêmio Nobel de Literatura de 1913. Sua obra preconiza o respeito pela identidade cultural e linguística, assim como o diálogo com o Ocidente. Ele aborda as questões fundamentais formuladas pelos povos que lutaram pela independência política. PABLO NERUDA (1904-1973) poeta chileno, diplomata e dramaturgo em favor da defesa e do reconhecimento das civilizações ameríndias. Ele lutou contra a ditadura, a opressão, a exclusão social e racial, a injustiça e a exploração econômica. Sua obra foi agraciada com o Prêmio Nobel, em 1971, dois anos antes de sua morte e do golpe militar no Chile. 54 . O CORREIO DA UNESCO . ABRILJUNHO 2010 © UNESCO, Paris © Fondation Pablo Neruda © UNESCO/ Délégation permanente de l’Inde “Cada um de nós é como um verso isolado em um poema, ele sente perfeitamente que rima com outro verso e deve encontrá-lo, sob pena de nunca alcançar sua própria realização.” Rabindranath Tagore AIMÉ CÉSAIRE (1913-2008) poeta, dramaturgo e político originário de Martinica, é um dos fundadores do movimento da Negritude. Sua obra constitui uma forte crítica ao colonialismo, ao imperialismo e à escravidão. Ele figura entre os principais pensadores da libertação política e cultural dos povos colonizados, em particular, na África. Cinco eminentes mulheres de ciência – uma por continente – receberam, em 3 de março, na sede da UNESCO, em Paris, o Prêmio L’Oréal/UNESCO para Mulheres na Ciência 2011. Silvia Torres-Peimbert (México) Astrofísica © V. Durruty e P. Guedj para a Fundação L’Oréal Vivian Wing-Wah Yam (China) Química © V. Durruty e P. Guedj para a Fundação L’Oréal Faiza Al-Kharafi (Kuwait) Química © V. Durruty e P. Guedj para a Fundação L’Oréal Anne L’Huillier (Suécia) Física atômica © V. Durruty e P. Guedj para a Fundação L’Oréal Jillian Banfield (Estados Unidos) Ciências da terra © V. Durruty e P. Guedj para a Fundação L’Oréal