Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo
VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013
Leitura crítica do filme A Fonte das Mulheres1
Roger BRADBURY2
RESUMO
Este estudo fez uma leitura crítica do filme “A Fonte das Mulheres”, ressaltando aos
aspectos relativos às relações de poder e de gênero no Islamismo, a partir da
contribuição de autores das Ciências da Religião. Foi apresentado como monografia da
disciplina “Religião, Sociedade e Cultura: questões epistemológicas” e também foi
apresentado para debate no Grupo de Pesquisa Mandrágora / NETMAL, pertencentes ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da UMESP. O filme trata do
poder de mobilização – conseguido a partir do domínio da cultura letrada, da greve de
sexo e busca da hegemonia - de mulheres muçulmanas de uma aldeia, no Oriente
Médio, contra da tradicional divisão sexual do trabalho e seu reflexo na qualidade de
vida daquelas mulheres.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Mídia; Educação; Gênero; Islamismo
Introdução
O filme A Fonte das Mulheres 3(La source des femmes, 2011), que estreou em
20 de janeiro de 20124, o qual mescla bem os gêneros ficção e documentário, drama e
sutil comédia, é uma crônica moderna a respeito de um pequeno vilarejo muçulmano de qualquer parte que se situe entre o Norte da África e o Oriente Médio, onde as
políticas públicas e o desenvolvimento urbano demoram a chegar, e quando chegam,
mais fazem é instigar o consumismo – como creem os varões do filme, e testemunha a
“modernidade”, a exemplo do celular e a televisão. Uma região, a qual depois de tantas
colonizações vive o drama da resistência da tradição (dos anciões) contra a as inovações
1
Trabalho apresentado na VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesical (Eclesiocom), realizada em São
Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013
2
Mestrando em Ciências da Religião na UMESP.
3
Indicado Palma de Ouro no Festival de Cannes 2011, rendeu meio milhão de ingressos na França em apenas um
mês. Disponível em: http://casadecultura-uel.blogspot.com.br/2012/02/fonte-das-mulheres-estreia-hoje-no-cine.html.
Acesso em: 22. mar.2013.
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da “modernidade”, por um lado e a necessidade imperiosa de adquirir condições dignas
e mínimas de subsistência perante a seca, o desemprego e a falta de serviços públicos de
saúde, educação e a distribuição de água e energia elétrica, por outro lado.
É uma sutil comédia dramática que tem como foco principal a condição da
mulher na sociedade islâmica, que como diz Pierucci (1997, p. 117), realiza-se com a
“sanção religiosa da dominação masculina na esfera privada”, que torna estas mulheres
objeto de posse de seus maridos - e pais, inclusive com a possibilidade de renda devido
à instituição do dote de casamento – com papéis sexuais delimitados à esfera privada
(espaço doméstico, aos cuidados da prole e “obrigações” sexuais para com o marido).
1. Sinopse do filme
O filme introduz com o narrador perguntando: “Conto de fadas ou uma história
real? Um conto de fadas é claro, o que é real? Não estamos na corte de um sultão”.
Inspirada em um caso real ocorrido na Turquia em 2001, a história do drama mescla a
temática da opressão e do poder de articulação e superação da mulher na vida real, na
literatura árabe (Alcorão e os Contos das Mil e uma Noites) e numa peça de teatro de
Aristófanes (Lisístrata).
Continua o narrador dizendo que a história se passa “numa pequena aldeia norteafricana ou árabe, onde uma fonte corra e o amor seque”. Ou seja, no interior do mundo
árabe e das tradições islâmicas, onde as condições de vida dos (as) moradores (as) de
pequena comunidade muçulmana se deterioram – em especial aquelas condições de vida
das mulheres - com as mudanças ambientais devido à seca e ao subdesenvolvimento.
Uma região situada no “velho mundo”, que após sucessivas colonizações, as
quais impregnaram a população local de seu “espírito do Império”, tal como afirmam os
autores Míguez, Rieger e Sung (2012, p. 16):
Com essa expressão, [...] vamos referir-nos [...] a um ethos, uma
forma de pensar, administrar, uma cosmovisão e até de certa teologia
[...]. Ou seja, aquelas condições de subjetividade e de auto concepção
cultural que o Império gera em si e nos outros, mas que são ao mesmo
tempo resultado e condição do seu modo de propor o político e de
exercer seu domínio econômico. O fato do Império como
conformação de governo e poder, dada, além disso, a pretensão de
globalidade que hoje adquire, gera um "espirito coletivo", uma
construção antropológica, se se preferir, que permite e avaliam certas
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condutas, reações, sentimentos e atitudes dos atores sociais e políticos,
que conforma uma determinada lógica e modo de conceber a vida, que
se impõe e se traduz em valores e cosmovisões hegemônicas.
O espírito do império, de certo modo, se fundiu à cultura popular, que não
tardou a população assimilar mais um imperialismo, o Islamismo, expandir-se na
conquista da península ibérica, na designação conhecida de mouros ou sarracenos,
sendo responsáveis pela islamização da região.
Esta situação é agravada pela falta de investimentos de infraestrutura por parte
do governo, que por sua vez, gera a baixa produtividade no campo, a pobreza, o
desemprego, e consequentemente a ociosidade (juntamente com a falta de sensibilidade
e solidariedade) dos homens, a qual, por sua vez, gera a sobrecarga de trabalhos
domésticos para as mulheres.
Que no dizer da personagem principal Leila (interpretada por Leïla Bekhti, uma
atriz francesa de origem argelina, nascida em março de 1984): “a falta de emprego, de
dinheiro e a seca fez o coração dos homens virar pedra antes de morrer”, e ironiza outra
personagem, a velha Fuzil (interpretada por Biyouna, que é cantora, dançarina e atriz
argelina nascida em 1954): “ você quer que o amor volte à aldeia através de uma
tubulação?”.
Enquanto que os desocupados varões e patriarcas da aldeia passam o tempo, se
divertindo, fumando, jogando conversa fora e bebendo chá, as mulheres têm de
transportar água nos ombros por escorregadios caminhos de difícil acesso de um local
distante no topo do monte até suas casas. Não importando se estão grávidas ou com
cólicas menstruais (indispostas).
É justamente para defender as gestantes – que por vezes se acidentam, causando
abortos em metade da prole das famílias – que a jovem estrangeira Leila, sempre
apoiada pela intrépida viúva e curandeira, apelidada de velha fuzil, propõe uma medida
revolucionária de sensibilização dos maridos – do estrato social dominante: os homens de modo que resolvam o problema do transporte de água: a greve de sexo.
A polêmica se inicia no interior do próprio grupo de mulheres, algumas zombam
outras resistem enquanto outras ignoram devido ao medo das consequências. Tal
medida acaba interferindo nas relações familiares, religiosas e organizacionais
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(profissionais e administrativas) de todos os habitantes, provocando uma discussão de
valores (amor, solidariedade, respeito, violência, educação, liberdade, entre outros).
A questão, então, coloca em choque não apenas a divisão sexual das tarefas entre
homens (mais ligadas ao espaço público) e mulheres (mais ligadas ao espaço privado do
lar), mas as arcaicas relações contratuais de matrimônio como: a instituição do dote; a
possibilidade do repúdio da mulher e novo consórcio - inclusive para o caso dissolução
do matrimônio pela não virgindade da mulher, o tabu devido ao casamento fora do “clã”
e do casamento arranjado em detrimento das uniões por amor.
E também, nas relações religiosas, onde somente os homens tem o direito de se
reunir e decidir em assembleia oficial e legal nos espaços públicos (como na sinagoga,
no salão comunitário) – diferente das mulheres que se reuniam em assembleia de forma
extraoficial e informal, na clandestinidade de uma sala de banho (espaço privativo); na
interpretação androcêntrica do Alcorão que é questionada pela esperta e bem preparada
líder “feminista” Leila, pois aprendeu a ler; e também nas práticas (como o servir do
chá) e nos símbolos de dominação masculina (como o uso do véu).
O exemplo disso encontramos a citação no filme pelo Imam: “Em Sura 4:34 está
escrito as mulheres virtuosas são obedientes; aquelas da parte das quais você teme
insubordinação exorte-as, recuse-se a dividir a cama com elas, e bata nelas”. Ao que
responde Leila ao provar nas escrituras a igualdade de homens e mulheres: “todo o resto
é apenas, é apenas interpretação; é um desvio da escritura por interesses pessoais.”
E por último, nas relações organizacionais, onde se colocou em cheque a ética
profissional do professor, do Imam (líder religioso da mesquita local) e do prefeito;
também como se estruturam as relações de trabalho entre homens e mulheres, e mais
importante como se estabelece a divisão entre o lazer e trabalho, seguidos do direito à
comunicação: ao celular, e à televisão.
2.
Da Contextualização Sóciohistórica
O filme é uma coprodução entre França, Bélgica e Itália e foi dirigido pelo o
judeu romeno Radu Mihaileanu - que também colaborou na elaboração do roteiro com
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Alain-Michel Blanc – já agraciado pela crítica, no Festival de Veneza de 1998, com a
produção Trem da Vida.
Em uma entrevista que deu à Agência O Globo, o diretor judeu romeno assim
justifica o termo “fonte” no título da produção: “ Acreditar na força do poder feminino é
acreditar na serenidade. Eu uso a palavra ‘fonte’ no título do meu filme porque as
mulheres são a fonte de tudo o que é sereno.”5
O choque em entre o tradicional e o moderno é uma constante no filme. Como
num jogo de antíteses, o diretor faz-nos refletir sobre os problemas e limites na
comunicação, antiga e moderna. Bom exemplo disto são as cenas em que aparecem o
celular e aquelas em que a comunicação é por carta – embora o meio decisivo para
resolução do problema foi o bom e velho meio de comunicação de massa, o jornal.
Diz o diretor que o que lhe inspirou foi uma notícia que leu “em 2001 sobre uma
aldeia no interior da Turquia na qual as moradoras fizeram uma greve de amor para
forçar seus maridos a resolver o problema de abastecimento de água no local”. Continua
ele: “aquela notícia me fez rir, pelo inusitado de ver uma reação assim, similar ao que
ocorria na antiguidade, ser tomada neste mundo de alta tecnologia” (Agência O Globo).
3. Da Resistência e do Reclamo dos Oprimidos
Esta tensão ocorre por vez de forma imperceptível, pela “mão invisível” do
mercado, mas neste conflito de interesses não há conciliação possível, pois como
afirmam Míguez, Rieger e Sung (2012, p. 34-35):
Só a livre concorrência em todas as esferas da vida produz a
verdadeira liberdade, e qualquer interferência não faz senão alterar as
possibilidades de expressão da pessoa. Esta deve ser posta a salvo de
qualquer elemento que obstaculize sua livre capacidade de posse,
portanto o Estado (e, por conseguinte, a política e a democracia) deve
ser reduzido a sua mínima expressão. Apenas o necessário para que o
mercado opere livremente. Portanto, conceitos como "solidariedade"
ou "justiça social" ficam explicitamente injuriados, em seus escritos,
como expressões de um passado de opressão a ser superado.
5
Percebe-se que o diretor não conseguiu fugir aos estereótipos típicos das representações de gênero que colocam
qualificativos opostos para homens e mulheres.
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Entretanto a moral da história (do filme), é que de onde menos se espera, do
“infinitamente pequeno”, do lado mais fraco e mais oprimido levanta-se um poder
contestador da ordem vigente. Esta moral foi sintetizada nas palavras do intelectual
disfarçado de entomólogo (jornalista?): “Nunca devemos nos dar por vencidos. O
infinitamente pequeno pode se relevar, mais majestoso do que tudo que parece grande.
A água, o frescor, a vida e até o amor podem brotar a qualquer momento.”
Assim, podemos concluir que não há uma uniformidade na adesão dos
colonizados ao “espírito do império”, ou seja, “que não existe uma homogeneidade
unívoca, e isso produz, por sua vez, certos antagonismos: ora, assim como existe um
"espirito do Império", surge uma visão contra imperial, que não se deve desconhecer.
(MÍGUEZ, RIEGER e SUNG, 2012, p. 16).
Assim a mesma força que move o império, ou seja, a força do trabalho do
oprimido, do colonizado, do escravizado também pode insurgir-se contra o império, e
colocar fim a este:
Na medida em que as relações humanas foram imperializadas, a crítica
ao Império só pode vir de um extra novis, a partir de um fora que
manifeste o limite [...]. É aqui que o poder "laocrático", o reclamo do
excluído, da não pessoa, para a Império, torna-se o fator dinamizador
do tempo político, anúncio de tempos messiânicos, escatológicos, se
nos perdoam a linguagem teológica que hoje se tornou novamente
referência em escritos políticos. (MÍGUEZ, RIEGER e SUNG, 2012,
p. 45)
O poder de mobilização e de denúncia gerado pela greve de sexo obteve uma
repercussão que transpassou os limites da comunidade ganhando destaque na imprensa.
Esta transparência representou uma ameaça aos poderes constituídos, que para não
causar um levante maior, diz o personagem Sami:
A prefeitura me convocou. Foi organizada uma grande comissão. O
artigo de Sofiani causou um terrível debate na assembleia. Ele acusa o
governo de deixar o povo passar sede. Eles temem que as mulheres
por todo o pais se aliem à causa por solidariedade com outras
exigências além da água.
Podemos concluir que as situações de hegemonia – como aquela conseguida no
filme – são resultantes do desenlace de situações de crise orgânica. Assim, na medida
em que as relações entre os sexos, e as relações entre religião e secularização, entre
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comunidade local e governo, entraram em uma crise, é quando se encontra uma situação
propícia para mudanças profundas na sociedade.
Fazendo uma leitura weberiana do conflito entre a ordem estabelecida pelo
sacerdócio oficial – nas figuras da mesquita local e do Imam - e aquela reclamada por
Leila, pode-se ver a personagem principal como o (a) "profeta" (tiza) de Weber (2000,
p. 303) entendida “aqui o portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude
de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino”.
Embora não haja nenhuma referência no filme à ideia de profecia atribuída a
Leila, antes ela é desprezada como feiticeira, esta é outra categoria explorada por
Weber, a do “mago”, mas creio que Leila enquadre-se mais com a revolucionária
categoria de “profeta”.
O conceito weberiano de “profeta” é bastante elástico para abarcar também a
figura de Leila, não se importando queremos em “fundamentalmente entre o profeta que
anuncia de novo uma revelação antiga (de fato ou suposta) e aquele que reivindica para
si uma revelação totalmente nova” (2000, p. 303).
Não era a intenção de Leila fundar nova religião, mas apenas reformar
exatamente naquilo que considerava desumano, antiético e um descumprimento da
vontade divina escrita no Alcorão – tal como outras figuras históricas como Jesus,
Maomé ou Lutero que sem o pretender, fundaram novas religiões. Diz Weber (2000, p.
305) que “não é a intenção do próprio profeta que decide se de sua revelação nasce ou
não uma nova comunidade; esta pode surgir também devido às doutrinas de
reformadores não-proféticos”, ou seja, são fatores históricos (sociais, políticos,
econômicos, culturais entre outros) que transcendem a esfera de controle do profeta que
irão determinar o surgimento de nova ordem religiosa dissidente ou apenas uma nova
adequação interna da doutrina religiosa.
Para Weber (2000, p. 303) o decisivo está na distinção entre o profeta e o
sacerdote – e para nosso caso entre Leila e o Imam – baseada na “vocação pessoal”,
enquanto que “o segundo reclama autoridade por estar a serviço de uma tradição
sagrada, e o primeiro, ao contrário, em virtude de sua revelação pessoal ou de seu
carisma”.
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Inicialmente não se pode atribuir qualquer carisma a Leila, senão aquele de
enfeitiçar seu esposo (Sami) pela sua beleza e personalidade cativante, seu carisma
junto à comunidade é construído a partir do momento em que levanta a bandeira de uma
providência urgente aos abortos provocados por acidentes no transporte de água da
fonte para a aldeia, e a consequente degradação social destas como párias – tal como
Sara esposa do personagem bíblico Abraão – por se tornar estéreis e não podem mais
“gerar pros seus maridos [bravos guerreiros de Atenas] os novos filhos de Atenas” –
parafraseando Chico Buarque6.
Tanto para os autores Míguez, Rieger e Sung (2012) – como vimos
anteriormente - quanto para Weber o (a) profeta (tiza) – como a personagem fictícia
Leila - surge em momentos de tensão social com o papel de poder moderador, tais quais
os legisladores (aisimnetas), diz Weber (2000, p. 305):
Ao contrário, ele é chamado - nem sempre, mas em regra - para
exercer seu cargo quando existem tensões sociais. Isto ocorre com
muita frequência quando se apresenta a situação típica, a mais antiga
por toda parte, na qual se exige uma "política social" planejada: [...] O
aisimneta deve reconciliar os estamentos e criar um novo direito
"sagrado", vigente para sempre e divinamente confirmado.
Os (as) profetas (tizas) weberianos (as) são interessados em problemas políticosociais. Diz Weber (2000, p. 305) que estes (as) “Advertem aqueles que oprimem e
escravizam os pobres, acumulam cada vez mais terras, violam a jurisdição em troca de
presentes”. Não é esta a crítica de Leila? Da opressão e escravização das mulheres em
condições pauperizadas e “melindrosas” como a gestação e o casamento arranjado?
Conceitua ainda Weber (2000, p. 306) que é específico na categoria de
“profeta”, estes (as) assumam suas missões não por serem encarregados e empossados
nesta função pelas autoridades (políticas, militares e/ou religiosas) mas o fazem por
usurpação do poder constituído – até aqui nossa amotinada e subversiva líder Leila bem
se enquadra na categoria weberiana de “profeta” - sob a alegação de suposta “revelação
divina e preponderantemente para fins religiosos, e sua propaganda religiosa típica
segue o caminho oposto ao da política religiosa” – neste aspecto não há qualquer
6
HOLANDA, Chico Buarque de; BOAL, Augusto. Mulheres de Atenas. Letra de canção popular composta para a
peça de Augusto Boal “Mulheres de Atenas”. Gravada no álbum “Meus caros amigos”, de Chico Buarque de
Hollanda [Música], 1976.
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menção implícita ou explicita de uma hierofania ocorrida com Leila, aqui nossa
personagem se afasta de Weber e aproxima-se mais de uma liderança feminista e
classista (sindicalista) do tipo marxista e/ou gramsciana.
Logo, como adverte Weber (2000, p. 306) - e serve também para a figura de
Leila:
se excluem do conceito todas as formas até aqui mencionadas, muitas
vezes bastante próximas dele, arte da categoria dos profetas por não
pretenderem atuar em virtude nem de uma revelação substancialmente
nova, nem muito menos de um encargo divino especial, [...] a falta da
efetiva prédica emocional, a qual, ocorra ela ora1mente ou em forma
de panfletos ou revelações propagada por escrito [...] Estes estão
sempre mais próximos dos demagogos ou dos publicistas políticos
[...].
4. Da Educação como Instrumento Revolucionário
É por isso que a estas camadas de excluídos – em especial às mulheres – nega-se
ou dificulta-se o acesso à cultura letrada para que não possam acessar informações
privilegiadas na literatura – como a perspicácia de uma Scheherazade, personagem
feminina do clássico "Mil e Uma Noites", a qual consegue se livrar da morte e opressão
do sultão que matava diariamente uma das mulheres de seu harém, ou como ousadia da
personagem também feminina Lisístrata, nome homônimo de uma comédia escrita por
Aristófanes7 no ano 411 AEC, que organiza entre as mulheres atenienses uma greve de
sexo até que seus maridos parem a guerra e estabeleçam a paz.
Foi de maneira intencional que o diretor Mihaileanu colocou como personagens
principais um professor e uma jovem alfabetizada, pois para ele (Agência O Globo,
2012):
O analfabetismo é sempre um fantasma social. E ninguém, num
âmbito institucional, representa melhor a luta em prol da educação do
que as mulheres. Basta você pensar no arquétipo clássico de família:
são as mulheres que zelam pela formação dos filhos [...] Depois das
minhas visitas ao Brasil, eu me dei conta de que o maior desafio de
vocês, mesmo com todo o desenvolvimento econômico alcançado na
década passada, é a educação.
7
Disse o diretor em entrevista à Agência O Globo (2012) “Voltei a Aristófanes para buscar seu humor preservando a
dimensão política do gesto daquelas mulheres. A atitude delas foi uma afirmação de poder pelo sexo. Era um gesto
que servia para criar uma alegoria cinematográfica sobre a recente ascensão feminina à liderança governamental de
vários locais em diversos países.”
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A falta de energia elétrica no vilarejo tornava a leitura e escrita além do aspecto
de superação, pois na sua ausência usavam lanternas de mineração nas testas, mas o ar
de clandestinidade, de resistência à proibição do ato de ler.
Sami e Leila leem as páginas de "Mil e Uma Noites", à noite em seu quarto
privativo. Sami transcrevendo a opinião da comunidade confessa: “Eles dizem que fiz
mal em ensina-la a ler. Que despertei o diabo dentro de você.” A escrita também é
clandestina, principalmente quando Leda escreve para sua cunhada correspondências de
amor.
A prática da escrita é por vezes insinuada como poderoso instrumento de
autoridade, um tom de protesto, de manifestação anônima de insatisfação, na “pichação”
da parede do bar – sede do reduto masculino, ou na manifestação declarada pela
reprodução da fonte d’água em galhos secos de espinheiros com uma “faixa” com
dizeres de ordem.
É também às escondidas que Sami prepara Leda para enfrentar o Imam da
comunidade, escolhendo trechos do Alcorão que demonstram a igualdade entre os
sexos: “Em nome de Deus, o misericordioso. Homens temam seu Senhor que os criou a
partir de um só ser, e dele criou sua esposa.”
Lembremos que Antônio Gramsci (1891-1937), pensador marxista italiano, foi
um defensor da escolarização aos filhos dos trabalhadores, como forma de o acesso à
cultura. Assim definem Rosana Mara C. Rodrigues e Antônio Dias Nascimento (2011) a
contribuição de Gramsci para a educação em busca da hegemonia:
Enquanto os marxistas clássicos afirmavam que a escola estava fadada
a reproduzir as desigualdades sociais produzidas pelo sistema
capitalista, Gramsci acreditava que ela poderia ser transformadora, à
medida em que se ofereçam às classes subalternas os meios
necessários para que, após uma longa trajetória de conscientização e
luta, esta se organizassem e se tornassem capazes de assumir o
comando da sociedade.
5. Da Busca da Hegemonia
Diz Antonio Gramsci que a busca da hegemonia perpassa pela conquista de
intelectuais, chamados orgânicos. Tomemos de empréstimo o conceito de hegemonia de
Míguez, Rieger e Sung (2012, p. 41):
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Em nossa concepção, a hegemonia é uma dimensão da construção
social, onde entram em jogo os fatores que provocam a dominação,
que opera no campo do político e da cultura política, e nesse espaço
intermediário em que se gera a relação entre o político e a
subjetividade, tanto individual como na criação dos sujeitos coletivos,
dos sujeitos que se tomam atores sociais e atores políticos. Não
equivale a domínio ou a imposição, e sim ao consenso internalizado
do domínio, a participação do dominado no espaço ideológico do
dominante, assumindo-o como sua própria construção ideológica: "a
ideologia dominante e a ideologia do dominado", no sentido em que a
simbólica dominante é integrada na expressão também daqueles que
ficam subalternizados, e terminam incorporando esta simbólica em
seu próprio imaginário. Não e a simples aceitação resignada do
domínio, e sim uma incorporação ativa que introduz a cosmovisão, o
"espirito" da dominação como ethos dominante. O conjunto social
opera segundo a simbólica que geram as forças hegemônicas, de tal
maneira que mesmo aquilo que parece diverso e expresso na simbólica
dele; por isso é totalizante [Grifos nossos].
Como se pode perceber, não é simples a ação contra ideológica em busca de uma
nova hegemonia, mesmo dentre grupos oprimidos, pois estes já incorporaram o discurso
dominante que legitima como natural e divino mesmo aquelas condições mais
degradantes – como aquelas vividas pelos dalits na Índia, cuja identidade “tem sido
construída e reforçada ao longo de gerações em um contexto indiano regido por esses
critérios, que determinam todos os aspectos da vida dos dalits, incluindo educação,
adoração, ocupação, moradia e casamento” (DA FONSECA, 2012, p. 658).
No filme, a estrangeira e rejeitada Leila, tratada de feiticeira e de pária por ter
abortado e não ter condições de procriar, para conseguir a adesão incondicional do
grupo de mulheres buscou a apoio e aliança com a velha anciã (curandeira) da aldeia
(velha fuzil).
Muitas mulheres incorporavam o próprio discurso dominante (o “espírito do
império”), reproduzindo um forte preconceito da sociedade contra elas próprias. Mas
para conquistar seus objetivos, a Leila precisou conquistar o próprio esposo, que após
alguns vacilos (a ameaça de desemprego, de traição por Leila ter escondido o namoro
anterior ao casamento, a ameaça de mal estar com os pais) defendeu a reivindicação das
mulheres em sua própria casa, na sinagoga local, em seu local de trabalho (a escola
primária), na prefeitura e na imprensa.
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É por Sami, o professor e esposo de Leila, que conquista parte da ala masculina
da aldeia, a mais jovem e mais liberal que rivaliza com a outra ala, a dos mais velhos e
conservadores, representantes de uma estrutura tradicionalmente patriarcal, que leva em
conta também os preceitos islâmicos. E aqueles que se mostram tolerantes passam a ser
hostilizados pelos mais velhos do grupo.
O próprio irmão mais velho de Sami espanca e estupra sua esposa todas as
noites, na presença dos filhos que dormem no mesmo compartimento.
Ainda mais decisiva foi a conquista do intelectual orgânico, que cumpre o papel
de jornalista. A princípio ela rejeita a ideia (dada pela velha fuzil) de pedir esta adesão
ao ex-namorado. Mas a intervenção do ciumento esposo Sami, o jornalista consegue a
publicação da matéria na impressa, fato este que desencadeará na mobilização da
prefeitura para a canalização urgente da água da para a aldeia.
De certa forma também a conquista da neutralidade do Imam chefe, foi
importante para o movimento. Leila sendo alfabetizada pode advogar a causa
“feminista” provando que no próprio Alcorão havia bases para um tratamento mais
igualitário entre homens e mulheres.
6. A Religião como Espaço e Fator de Coesão Social
Embora oprimidas pela religião o grupo de mulheres resguardava para si espaços
de interação e convivência grupal, onde a religião era mais “um cimento” social a
manter a coesão social mesmo sob as mais terríveis condições para elas.
O que é o Islã? [pergunta Leila ao Imam] E a sabedoria santa do
profeta? O que é a religião? É a feliz comunhão com Alá? O Islã nos
dá regras de vida em comunidade, respeito e amor, e sacia nossa cede
de espiritualidade, e nos eleva a todos os homens e mulheres...
Para Eliade (1992, p. 18) a vida em sociedade se dá em dois tipos de espaço, o
sagrado que para o homem religioso este é heterogêneo apresentando porções
qualitativamente (simbolicamente) diferentes das outras; e o profano que é homogêneo
e neutro, sem nenhuma diferenciação qualitativa, entretanto ressalva o autor:
É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se
encontra no estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do
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mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida
profana não consegue abolir completamente o comportamento
religioso. Isto ficará mais claro no decurso de nossa exposição:
veremos que até a existência mais dessacralizada conserva ainda
traços de uma valorização religiosa do mundo.
Assim são os espaços das assembleias na sala de banho, na fonte e no local
coletivo de lavar roupa, espaços estes reservados, onde elas fazem as suas várias tarefas
diárias, sem ter os homens por perto.
Outro espaço de coesão do grupo, dividido sexualmente, é o espaço das
manifestações musicais. Espaço, por vezes, de protesto e reivindicação, e outras vezes
de descontração e rivalidade ou a manifestação da tristeza e lamentos da condição
feminina.
Considerações finais
Com tantas revoluções sangrentas que raiam no horizonte de uma “primavera
árabe”, onde rebeldes lutam e matam seus próprios irmãos das forças aliadas a governos
ditatoriais de despóticos na Tunísia, no Egito, na Síria e em outros países muçulmanos,
o diretor de “A fonte das mulheres” acredita que as mulheres “têm a habilidade de
encarar crises preservando sempre o bem-estar de seus pares. É assim em casa, é assim
no governo, vide os exemplos de Indira Gandhi e Golda Meir” (Agência O Globo,
2012).
Quem sabe se Aristófanes não tinha razão, e as mulheres, com sua “serenidade”
e seu dom de seduzir e encantar, consigam concretizar a utopia que sonhou Geraldo
Vandré, em seu clássico musical (Para não dizer que não falei das flores): “ E acreditam
nas flores vencendo canhão”.
REFERÊNCIAS
A FONTE DAS MULHERES (La source des femmes) Direção: Radu Mihaileanu. Bélgica/
Itália/ França: Paris Filmes, 2011 [produção]. 1 filme (135 min).
AGÊNCIA O GLOBO (2012). A fábula do poder feminino em 'A fonte das mulheres'.
Disponível em:< http://br.noticias.yahoo.com/f%C3%A1bula-poder-feminino-fonte-dasmulheres-102100076.html>. Acesso em: 22 março.2013.
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VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013
ARISTÓFANES. Lisístrata. Disponível em:< http://www.encontros dedramaturgia.com.br /wpcontent/uploads/2010/09/Arist%C3%B3fanes-LIS%C3%8DSTRATA.pdf >. Acesso em: 22
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(CD).
WEBER, Max. ECONOMIA E SOCIEDADE: fundamentos da sociologia compreensiva.
Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB, 2000.
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Leitura crítica do filme A Fonte das Mulheres