FICHA DE IDENTIFICAÇÃO
Ana Georgina Peixoto Rocha
CPF: 477873685-00
Pesquisadora/bolsista SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais
da Bahia.
Economista / Mestra em Administração pela Escola de Administração – UFBA.
E-mail: [email protected]
Ana Mônica Hughes de Paula
CPF: 628569955-00
Pesquisadora/bolsista SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais
da Bahia.
Economista / Mestra em Economia pela Faculdade de Ciências Econômicas –
UFBA.
E-mail: [email protected]
Endereço para correspondência
Av. Luiz Viana Filho, 435 – 4ª avenida, 2º andar – CAB
Salvador / BA. 41.750-300
Tel. comercial (71) 3115-4709 / 3115-4823
Grupo de pesquisa: Instituições e Organizações na Agricultura
Forma de apresentação: apresentação com o presidente da sessão sem debatedor
Participação social e políticas de desenvolvimento rural
Resumo
A participação social é um dos temas centrais nas atuais políticas de desenvolvimento
rural. Desde a década de 1990, a importância econômica e social da agricultura familiar
tem sido crescentemente reconhecida, haja vista a implementação de políticas públicas
destinadas ao seu desenvolvimento. Essas políticas têm criado mecanismos
institucionais que incentivam a participação dos agricultores. Esse trabalho apresenta
algumas reflexões sobre o processo de participação social nas políticas públicas de
desenvolvimento rural, buscando discutir a concepção de participação dos programas e
as limitações para a efetiva participação dos agricultores. O Produzir, programa de
combate à pobreza no meio rural do estado da Bahia, é utilizado como referência para
discutir a construção do processo organizativo nas comunidades.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Desenvolvimento Rural. Participação Social.
Introdução
É inegável que o meio rural tem uma importância significativa para o desenvolvimento
socioeconômico brasileiro. A extensão de terras e o potencial dos recursos naturais, a
vitalidade do agronegócio, o número de agricultores familiares e os conflitos de terra
constatam que políticas voltadas para a agricultura e o desenvolvimento rural podem ser
cruciais na busca de crescimento econômico e sustentabilidade social.
Um dos temas centrais nas políticas de desenvolvimento rural é a participação social.
Desde a última década do século XX, as políticas públicas voltadas para o meio rural
têm criado mecanismos institucionais que incentivam a participação dos agricultores,
como, por exemplo, os conselhos municipais, parte de um contexto em que ganham
importância crescente questões como descentralização e novas relações entre Estado e
sociedade.
Esse artigo tem como objetivo analisar a participação social nas políticas de
desenvolvimento rural, trazendo reflexões sobre a concepção de participação das
políticas públicas, os seus avanços e recuos, bem como as principais limitações para
uma efetiva participação dos agricultores. Um dos principais programas do estado da
Bahia no setor rural – o Programa Produzir, coordenado pela Companhia de
Desenvolvimento e Ação Regional (CAR) – é utilizado como referência para discutir a
construção do processo organizativo nas comunidades.
Diversas pesquisas têm buscado investigar a participação dos agricultores nos conselhos
municipais de desenvolvimento rural e, particularmente, na implementação do
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Nessa linha,
um trabalho realizado pela SEI para a Oficina Regional da FAO para a América Latina
e o Caribe sobre “As reformas de descentralização e o desempenho dos serviços
públicos agropecuários: o caso da região Nordeste” apresentou resultados interessantes
sobre a importância das instituições locais e da implementação de novas formas de
participação para um melhor desempenho dos serviços públicos agropecuários.
Considera-se que o conhecimento dessa nova realidade é um elemento essencial para a
melhoria dos resultados das políticas públicas.
Agricultura familiar como unidade de análise
Fazendo uma análise da agricultura no Brasil até a década de 1980, essa era concentrada
na grande propriedade, com produção em larga escala e destinada ao mercado interno e
externo. A partir dos anos de 1990, a agricultura familiar começa a ganhar importância,
visto que a produção baseada em forte aporte tecnológico e no uso de grandes extensões
de terra ameaça o emprego agrícola. Dessa forma, várias definições buscam abranger o
significado da agricultura de base familiar para o desenvolvimento socioeconômico do
mundo rural brasileiro. Tal importância está relacionada à geração de emprego (agrícola
e não-agrícola), produção de alimentos, renda e ao desenvolvimento local, sendo que
estes constituem os principais elementos do equilíbrio no meio rural, tornando-o
dinâmico e capaz de manter a sua população.
A prova da importância que a agricultura vem adquirindo no país comprova-se nos
estudos que abordam o tema. Os trabalhos realizados sobre a agricultura familiar ainda
divergem conceitualmente. Os agricultores familiares já foram denominados de colonos,
camponeses, pequenos produtores, dentre inúmeras definições. Muitos dos conceitos ou
classificações diferem entre si em virtude do objetivo para o qual foram criados ou pelos
dados disponíveis existentes para delimitá-los.
A dificuldade teórica na construção de conceitos e categorias que representem a
diversidade existente no campo brasileiro, na verdade, não é recente. O caminho
percorrido pelos estudos reflete as transformações existentes na própria sociedade, e
particularmente no meio rural. O debate nos anos de 1950/60 focalizava as
especificidades do desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira e encontrava na
noção de campesinato um conceito que viabilizava um conjunto de análises, com
dimensões e níveis de abstração variados (PORTO; SIQUEIRA, 1997).
Nos anos de 1970, no contexto do processo de modernização, a idéia de pequena
produção procurava abranger as diversas categorias empíricas que reproduziam a
natureza heterogênea do modelo agrícola. O tamanho do estabelecimento era o elemento
comum, inserido nas discussões sobre a funcionalidade da pequena produção. A
consolidação dos complexos agroindustriais fortalece a idéia de subordinação da
pequena produção ao capital, nos anos de 1980. Segundo Porto e Siqueira (1997),
ocorre uma crescente polarização no debate no decorrer desse período, definida pela
pequena produção integrada (tipo agricultura familiar moderna, farmer, agricultura
familiar integrada ao mercado) versus pequena produção excluída (assentados,
barrageiros, sem-terra etc.).
A modernização da agricultura brasileira gerou um crescente processo de diferenciação
social e de tecnificação dos agricultores. O que se observa é a sua variedade e
complexidade, exigindo uma classificação das formas possíveis da produção familiar.
Além das definições utilizadas por instituições públicas, existem outras que vêm sendo
adotadas por estudiosos do assunto, como Graziano da Silva e Ângela Kageyama, entre
outros. Contudo, é possível identificar um ponto comum que diferencia a agricultura
familiar das demais formas de exploração da terra: a participação da mão-de-obra
familiar no processo produtivo dentro da propriedade.
Para Abramovay (1997), a agricultura familiar é assim denominada quando a gestão, a
propriedade e a maior parte do trabalho vêm de indivíduos que mantêm laços de sangue
ou de casamento entre si. Para Wanderley (1996), a agricultura familiar representa a
estrutura que é, ao mesmo tempo, proprietária dos meios de produção e assume os
trabalhos no estabelecimento produtivo. Moraes (1999) identifica como familiares os
estabelecimentos em que sejam predominantes as interações entre gestão e trabalho; a
direção da estrutura produtiva pelos proprietários; ênfase na diversificação dos recursos;
e, o trabalho familiar complementado pelo assalariado.
É essa estrutura de produção familiar que tem sido alvo crescente de políticas públicas,
por ser atualmente entendida como um elemento essencial no processo de
desenvolvimento rural. De acordo com o estudo FAO/INCRA (2000), os agricultores
familiares representam 85,2% do total de estabelecimentos rurais brasileiros, ocupam
30,5% da área total e são responsáveis por 37,9% do Valor Bruto da Produção
Agropecuária Nacional. São 4.139.369 estabelecimentos familiares, ocupando uma área
de 107,8 milhões de hectares.
A região Nordeste apresenta o maior percentual de agricultores familiares, sendo
responsável por 49,7% de todos os estabelecimentos familiares brasileiros. É também
no Nordeste que se encontra o maior número de minifúndios: 58,8% dos
estabelecimentos familiares têm menos de 5 hectares. Na Bahia, 89,1% do total de
estabelecimentos rurais são caracterizados como familiares, ocupando 37,9% da área
total e sendo responsável por 39,8% do Valor Bruto da Produção. A agricultura familiar
é a principal geradora de postos de trabalho no meio rural brasileiro, sendo responsável
por 76,9% do pessoal ocupado. Dos 17,3 milhões de pessoal ocupado na agricultura,
13.780.201 estão empregados na agricultura familiar.
Esses números revelam a importante participação da produção familiar, apesar do alto
grau de concentração agrária. Essa estrutura perversa é agravada pelas adversidades
climáticas, que, em regiões como o semi-árido baiano, tornam a produção agrícola
insustentável.
O processo de descentralização 1
Mudanças econômicas, sociais e políticas que caracterizam as últimas décadas do século
XX colocaram no centro das discussões o debate sobre a crise e reforma do Estado e
sobre novas articulações entre o Estado e a sociedade, provocando uma redefinição do
papel de diferentes instituições no desenvolvimento econômico e social. É nesse
contexto que se insere o debate, em muitos países, sobre o processo de descentralização
e os seus efeitos na eficiência da ação estatal e na distribuição dos bens e serviços
públicos.
Como colocam Silva e Costa (1996), processos de descentralização têm caracterizado,
em grande número de países, o esforço de reforma administrativa do aparato estatal.
Tais esforços são, em sua maioria, determinados por novas condições econômicas,
1
Esse item é baseado em Rocha et al (2004).
políticas e sociais experimentadas pelo capitalismo internacional em sua atual etapa de
desenvolvimento. Trata-se de transformações no sentido de redefinir o papel do Estado,
sua natureza, alcance e limites de intervenção, em contraponto à forma de intervenção
predominante entre os anos 1950 e 1970.
O próprio significado e o conteúdo desses processos podem ser diferenciados. Os
autores consideram que a descentralização significa um processo de redistribuição de
recursos, espaços de decisão, competências, atribuições e responsabilidades; enfim,
poder político-econômico, em cada formação social específica. Nesse sentido, a forma
efetiva em que se configura o processo de descentralização é variada, conforme as
condições específicas de cada Estado, já que a descentralização ocorre em um espaço de
conflitos de interesses econômicos, políticos e sociais.
A crise do Estado é entendida como uma crise que, de forma diferenciada, determina
uma série de transformações, que podem ser nas bases produtivas e de financiamento
das economias nacionais, bem como da articulação entre elas, tanto no plano produtivo
quanto financeiro; nas formas e nos mecanismos de organização e representação de
interesses políticos; no formato da estrutura social e dos níveis de desigualdade e
heterogeneidade prevalecentes, dentre outras. Dessa forma,
políticas e ações descentralizadoras visam, nessa perspectiva, desencadear
um movimento de mudança ao longo de um eixo ‘centralizaçãodescentralização’ que caracteriza a intervenção estatal. O resultado desse
movimento de mudança será sempre e tão-somente a conformação de uma
nova posição nesse eixo, o que isoladamente não indica, a priori, a melhoria
ou a piora da qualidade ou da quantidade da ação estatal considerada
(SILVA; COSTA, 1996, p. 263).
Os efeitos do processo de descentralização – sejam negativos ou positivos – estão
condicionados a uma série de fatores vinculados à própria natureza desse processo e às
características específicas do Estado nacional. Nesse aspecto, as reformas de
descentralização não podem deixar de considerar o conteúdo político e social em que
são implementadas.
A descentralização brasileira está fortemente associada ao processo de democratização
do país e ao esgotamento das condições de financiamento do Estado. A discussão sobre
a descentralização confunde-se com a luta pela democracia, já que o Estado autoritário –
e centralizador – é visto como um grande responsável pelas desigualdades sociais
existentes. O Estado desenvolvimentista, responsável pelas transformações estruturais
da economia brasileira desde a década de 1950, vai gradativamente perdendo a sua
capacidade de intervenção, principalmente em função da crise fiscal e financeira que
impõe mudanças na sua forma de atuação.
O debate sobre os processos de descentralização envolve questões como a redefinição
do papel de cada uma das esferas de poder, a democracia e a maior participação
popular, o desenvolvimento local e a eficiência e a eqüidade da ação estatal. Neste
último aspecto, Affonso (1996) destaca que o avanço para uma maior eqüidade e
eficiência do gasto público exige mudanças institucionais mais profundas nas estruturas
dos poderes das esferas subnacionais de governo, bem como na sua interrelação.
Elementos como a hipertrofia do Executivo dos estados e municípios, a incapacidade
técnica na execução das novas funções e a falta de continuidade das políticas devem ser
considerados para a garantia de eficiência e eqüidade no gasto público.
As políticas de descentralização têm como principais orientações a definição das
competências entre as esferas de governo na prestação de serviços, a distribuição de
recursos financeiros, essencial para uma maior autonomia dos governos subnacionais, e
a participação dos diferentes níveis de governo nos processos decisórios. As
disparidades intra e inter regionais verificadas no país acarretam grande complexidade
nas relações intergovernamentais no federalismo brasileiro, com diferentes implicações
no processo de formulação e implementação de políticas públicas descentralizadoras.
Destaca-se também o papel do estado-membro na implementação da descentralização
em direção aos municípios, podendo funcionar como um obstáculo para o processo já
que ocorre aí uma disputa de poder. Os estados acabam dificultando a implementação
de políticas públicas descentralizantes, que passam a ocorrer conforme as conveniências
políticas de cada governo estadual (GUIMARÃES, 2000).
A discussão sobre a descentralização no país abrange a questão do papel que os
municípios desempenham (ou devem desempenhar) no federalismo brasileiro. A
Constituição de 1988 reconhece a autonomia político-administrativa dos municípios,
amplia suas competências no planejamento e na execução de serviços, além de
possibilitar a ampliação da arrecadação de impostos no âmbito local e a participação na
repartição das receitas tributárias. Dessa forma, a década de 1980 marca um período de
destaque da participação dos municípios na federação brasileira. As sucessivas crises
econômicas, o avanço do processo de descentralização e o aumento das demandas
sociais, em função da redemocratização do país, incentivam mudanças no papel dos
municípios brasileiros no pacto federativo.
As esferas subnacionais de governo, no entanto, assumiram novos encargos o que gerou
uma situação contraditória de autonomia político-administrativa, de um lado, e
dependência financeira das transferências dos estados e da União, de outro. Isso é
particularmente relevante no caso de pequenos municípios rurais, cuja base econômica é
bastante precária e insuficiente para a prestação dos serviços básicos para a população.
A base de tributação municipal depende do grau de urbanização e da situação
econômica dos municípios. Os municípios menores, e principalmente aqueles com
atividades predominantemente agrícolas, dependem geralmente das transferências
constitucionais.
A descentralização política, proporcionada pela Constituição de 1988, estimulou a
criação de novos municípios. Como conseqüência, houve um processo de fragmentação,
fazendo com que o número de municípios atingisse os atuais 5.560, tendo tido um
crescimento anual médio de 2,4% entre 1988 e 2001. Tal processo reflete a conjuntura
política favorável à descentralização federativa, evidenciando a marca da autonomia dos
entes federados na criação de novas unidades político-administrativas. Também
territorialmente, as diferenças regionais são marcantes: em algumas regiões, tem-se uma
grande fragmentação do território, com numerosos pequenos municípios; em outras,
enormes territórios pertencentes a apenas um município. No Nordeste, encontram-se
1.792 municípios, representando 30,3% do total de municípios brasileiros (IBGE,
2003).
Estudo do IBAM (BREMAEKER, 2003) chama a atenção para o elevado grau de
endividamento dos municípios brasileiros. Em 2001, 31,5% dos municípios
apresentavam déficit fiscal. Um dos mais elevados percentuais estava na faixa de
municípios entre 10 mil e 20 mil habitantes, em que 36,4% apresentaram uma situação
de déficit fiscal no ano de 2001. Em 2002, 44% dos municípios brasileiros apresentaram
déficit fiscal. Nas faixas de municípios até 20 mil habitantes, o mais elevado percentual
foi encontrado entre o grupo de municípios entre 5 mil e 10 mil habitantes (45,8%).
O levantamento realizado pelo IBAM também revela a magnitude dos gastos
municipais com atividades que são de competência da União e dos estados. As despesas
realizadas pelos municípios com as atividades de competência da União e dos estados
atingiram, em 2002, 4,5% das receitas municipais. A participação dos gastos com
serviços da União e dos estados sobre a receita total é maior nas regiões mais
“abandonadas” e nos municípios de menor porte demográfico, ou seja, onde é
necessária uma atuação mais intensa por parte dos municípios para garantir o
fornecimento dos serviços para a população. Na faixa de municípios até 10 mil
habitantes, esses gastos alcançam 10,85% da receita total e, entre 10 e 20 mil habitantes,
representam 7,13% da receita total.
Participação social e desenvolvimento
Participação parece ser um daqueles conceitos que se revestem de um caráter fortemente
abstrato. Afinal, o que é participação? Como avaliar se um programa é realmente
participativo ou não? Em situação de pobreza e baixo nível educacional, quais as
condições que pequenos agricultores têm de participar efetivamente na definição e
implementação de políticas públicas? Até que ponto ocorre uma inversão das políticas
públicas, abandonando o tradicional modelo de “cima para baixo”?
Para Teixeira, participação cidadã é um
processo complexo e contraditório entre sociedade civil, Estado e mercado,
em que os papéis se redefinem pelo fortalecimento dessa sociedade civil
mediante a atuação organizada dos indivíduos, grupos e associações. Esse
fortalecimento dá-se, por um lado, com a assunção de deveres e
responsabilidades políticas específicas e, por outro, com a criação e exercício
de direitos. Implica também o controle social do Estado e do mercado,
segundo parâmetros definidos e negociados nos espaços públicos pelos
diversos atores sociais e políticos (TEIXEIRA, 2001, p. 30).
Buscando entender o que é esse processo, Teixeira destaca que a participação cidadã é
diferente da chamada “participação comunitária”, já que não objetiva a mera prestação
de serviços à comunidade ou à sua organização isolada; também não se trata de simples
participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos ou
expressão de identidades. Não se confunde com a expressão “participação popular”,
muito utilizada para designar a ação desenvolvida pelos movimentos – em grande parte
de caráter reivindicativo – visando ao atendimento de carências ou à realização de
protestos. A participação cidadã teria objetivos muito mais amplos.
Ao referir a “participação cidadã” tenta-se, portanto, contemplar dois elementos
contraditórios presentes na atual dinâmica política. Primeiro, o “fazer ou tomar parte”,
no processo político-social, por indivíduos, grupos, organizações que expressam
interesses, identidades, valores que poderiam se situar no campo do “particular”, mas
atuando num espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade. O segundo, o
elemento “cidadania”, no sentido “cívico”, enfatizando as dimensões de universalidade,
generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres. A dimensão cívica
articula-se à idéia de deveres e responsabilidades, à propensão ao comportamento
solidário, inclusive relativamente àqueles que, pelas condições econômico-sociais,
encontram-se excluídos do exercício dos direitos, do “direito a ter direitos” (Teixeira,
2001). 2
Tratando sobre os diversos tipos de participação, Teixeira (2001) destaca o seu caráter
contraditório, envolvendo uma relação multifacetada de poder entre atores com
identidades, interesses e valores distintos. A idéia de participação, na sua concepção,
significa “fazer parte”, “tomar parte”, “ser parte” de um ato ou processo, de uma
atividade pública, de ações coletivas.
Referir ‘a parte’ implica pensar o todo, a sociedade, o Estado, a relação das
partes entre si e destas com o todo e, como este não é homogêneo,
diferenciam-se os interesses, aspirações, valores e recursos de poder.
Apresenta-se assim o problema de como responder aos interesses gerais em
face do particularismo e do corporativismo dos atores, exigindo-se condições
objetivas e subjetivas e espaços públicos onde possam ocorrer negociações e
compromissos para que as argumentações, livremente expostas, permitam
chegar-se a um consenso traduzível em decisões no sistema político
(TEIXEIRA, 2001, p. 27).
A participação é também um instrumento de controle do Estado pela sociedade,
portanto, de controle social e político: possibilidade de os cidadãos definirem critérios e
parâmetros para orientar a ação pública. O entendimento do controle social tem duas
dimensões básicas. A primeira corresponde à accountability, a prestação de contas
conforme parâmetros estabelecidos socialmente em espaços públicos próprios. A
segunda, decorrente da primeira, consiste na responsabilização dos agentes políticos
pelos atos praticados em nome da sociedade, conforme os procedimentos estabelecidos
nas leis e padrões éticos vigentes.
Villas Boas (1994) destaca ainda que é nos canais institucionais plurais, na disputa de
interesses entre os diferentes setores sociais, que pode ser construída uma leitura da
realidade global do município, estabelecendo parâmetros para o que é de interesse
público, para superar o corporativismo e para romper com o caráter pessoal que
tradicionalmente marcou as relações com o poder municipal. Os canais de participação
propiciam, em um primeiro momento, a socialização das informações, permitindo que
os diferentes setores sociais tenham conhecimento e se apropriem do funcionamento da
máquina administrativa, dos seus limites e possibilidades. Dessa forma, a informação é
apenas um instrumento para viabilizar a participação, e é preciso dar um salto para que
os canais se tornem espaços de formulação e deliberação de políticas. Isso significa
dizer que a institucionalização dos canais de participação passa pela própria
participação e mobilização dos diferentes movimentos sociais na construção desses
instrumentos.
No Brasil, a relação entre organizações da sociedade civil e governos locais é bastante
deficiente, sendo influenciada por diversos fatores: desde o longo período de regime
autoritário até a falta de um nível mínimo de instrução de parcela significativa da
população. O processo de descentralização é considerado, no entanto, como um fator
que tem contribuído para transformações nessa relação. Novas organizações e novos
tipos de ações têm configurado um cenário de mudanças importantes, especialmente na
2
Embora o conceito de participação utilizado nesse trabalho esteja relacionado ao termo “participação
cidadã”, de Teixeira (2001), optou-se pelo uso da expressão “participação social” ou apenas
“participação”.
esfera local, apesar do peso das tradicionais – e autoritárias – relações de poder
existentes. Surgem novos arranjos institucionais, criando espaços de interlocução e de
decisão entre sociedade civil e poder público. É o caso dos conselhos de gestão, que
funcionam como instâncias de interlocução e de proposição, com a participação de
representantes da sociedade civil; ou dos fóruns, espaços de discussão de temas de
interesse geral, abertos à participação de qualquer cidadão ou entidade.
Falar em participação também implica discutir a idéia de desenvolvimento, não mais o
desenvolvimento estritamente econômico. Vale aqui considerar que a visão mais ampla
do desenvolvimento foi uma das bandeiras principais do trabalho desenvolvido pelas
organizações não-governamentais (ONGs) nos anos de 1990. Muitas das práticas
participativas dessas instituições foram incorporadas nas políticas públicas (ROCHA,
2001). Pode-se considerar que foram essas instituições as primeiras a trabalharem a
idéia de desenvolvimento rural sustentável, buscando práticas e tecnologias chamadas
alternativas em busca de um desenvolvimento socioeconômico e ecologicamente
equilibrados.
Partindo de uma crítica aos programas governamentais de desenvolvimento rural, as
ONGs foram construindo metodologias participativas, objetivando uma outra forma de
intervenção na realidade socioeconômica, particularmente no meio rural. As críticas
consideravam que as políticas públicas eram baseadas no modelo convencional de
desenvolvimento agrícola, sem considerar os aspectos socioeconômicos e ambientais de
cada comunidade, concentrando-se na simples transferência de tecnologias. Não se
levava em consideração a participação da comunidade local. De modo geral, os projetos
não eram originados na própria comunidade pelos seus membros. Na realidade, a
comunidade aderia a um determinado programa sem que, muitas vezes, este
correspondesse às suas reais necessidades (ROCHA, 2001).
Para Sen (2000), “...o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão
das liberdades reais que as pessoas desfrutam (p. 17). Falar em liberdades implica
considerar outros determinantes que não os estritamente econômicos e tecnológicos,
como o acesso aos serviços de educação e saúde e os direitos civis, tal como a liberdade
de participar de discussões públicas. Ou seja, Sen considera que o desenvolvimento
requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania,
carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos
serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos.
Uma visão ampla e integrada do desenvolvimento reconhece que as liberdades não são
apenas os fins primordiais do desenvolvimento, mas também os meios principais. O
processo de desenvolvimento, como coloca Sen (2000), deve ser analisado considerando
aspectos econômicos, sociais e políticos, como um processo integrado de liberdades
substantivas interligadas. Liberdades diferentes influenciam-se mutuamente.
Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e eleições livres)
ajudam a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma
de serviços de educação e saúde) facilitam a participação econômica.
Facilidades econômicas (na forma de oportunidades de participação no
comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância individual, além
de recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes tipos
podem fortalecer umas às outras (SEN, 2000, p. 25-26).
Nesse sentido, o processo de desenvolvimento local depende de uma série de fatores e
implica na atuação conjunta de diferentes instituições e organizações, particularmente
no estabelecimento de parcerias entre o Estado e a sociedade civil. O desenvolvimento
local é impulsionado quando o poder público procura fazer parceria com a população
local que, por seu turno, dispõe-se a assumir “responsabilidades e dividir; existe um
trabalho de promover a “concertação” dos diferentes atores sociais no esforço para o
desenvolvimento; há uma intenção de mobilizar as comunidades para o exercício da
cidadania municipal” (SANTOS, 1998, p. 34).
A discussão sobre a participação está também associada ao processo de revalorização da
esfera local, enquanto instância de representação de poder. É no âmbito dos governos
municipais que diversos mecanismos inovadores de gestão pública, baseados em uma
maior participação popular, vêm sendo implementados – fóruns, conselhos, comissões,
impulsionados pelo próprio processo de descentralização, de um lado, e, de outro, pelas
mudanças na relação entre o Estado e a sociedade.
Nunes (1996), ao levantar discussões sobre a valorização do poder local e o processo de
descentralização, questiona duas imagens difundidas. A primeira imagem sustenta que o
poder local é mais factível de ser democratizado e de proporcionar maior participação,
dada a sua proximidade com o cidadão. Para o autor, “a proximidade do poder é no
mínimo ambígua, pois é também o lugar da reprodução do poder discricionário das
oligarquias” (NUNES, 1996, p. 34). A segunda imagem está vinculada ao argumento
que o município é a realidade onde o povo vive, enquanto o poder central é mera
abstração. Ele considera que o município não é nem mais nem menos abstrato que os
demais níveis de governo, apenas suas pautas, em geral administrativas, seriam mais
concretas, por serem compreendidas de uma forma mais fácil pela maioria da
população, através da vivência cotidiana.
Segundo Bava (1994), as prefeituras têm grande capacidade de intervenção na economia
dos municípios, sendo capazes de potencializar as vocações econômicas locais e
eliminar obstáculos para a socialização da riqueza gerada. De um lado, isso exige mais
transparência das ações dos governos locais e estímulo das administrações na criação de
espaços públicos para formulação, negociação e decisão das políticas municipais,
garantindo a participação. De outro lado, a efetiva participação implica a capacidade das
entidades, associações e movimentos populares interferirem, de forma constante, nas
definições e decisões de políticas públicas, com autonomia em relação ao poder local.
O problema é que essas condições, muitas vezes, não estão colocadas no âmbito
municipal: não há interesse nas administrações locais de estimular a participação
popular e não há organizações populares capazes de dialogar com os governos locais.
Na prática, a participação tem sido impulsionada de “cima para baixo”, pela necessidade
colocada por requisitos legais para a participação das organizações em projetos e a
inclusão dos municípios em determinados programas. Além disso, há falhas nos
processos participativos das populações rurais através de suas associações que foram
constituídas, em grande parte, com a finalidade de obter recursos financeiros.
Conforme Nunes et al (2004), uma política pública descentralizada, voltada para
articular as iniciativas da sociedade civil, deve contribuir para a publicização, sendo
capaz de levar seus objetivos e ações a todos os atores sociais, além de criar condições
para que possa ser exercida a fiscalização sobre as decisões tomadas e o uso dos
recursos públicos. Em um contexto de descentralização, a existência de espaços de
concertação entre os atores, ou seja, entre a sociedade civil organizada e o governo local
contribui para a transferência de informações. São esses espaços (e o seu funcionamento
efetivo) que impulsionam a prestação de serviços públicos de melhor qualidade e que
atendam às demandas locais.
Como resultado da Constituição de 1988 e do próprio processo de descentralização, a
maioria dos municípios tem conselhos bipartite, em que estão representados, de forma
igualitária, o governo e a sociedade civil. São conselhos nas áreas de saúde, direito
infantil, serviço social, merenda escolar, ensino, desenvolvimento rural, mulheres,
desenvolvimento urbano, meio ambiente, cultura, esporte, transporte, emprego e
orçamento. Os conselhos foram amplamente reconhecidos como novos espaços
institucionais de “democracia participativa”.
Em uma pesquisa realizada nos municípios rurais do Nordeste (SEI, 2003), as
organizações de produtores foram questionadas sobre o significado do CMDRS
(Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável). Para 32%, os conselhos
são vistos como um espaço de comunicação e informação; 42% disseram ser um espaço
de representação e participação; 25% disseram ser um espaço de decisão e partilha de
poder. No, entanto, 46% ainda vêem os conselhos como um “órgão vinculado ao poder
público”.
O surgimento dos conselhos é uma necessidade para o acesso aos recursos públicos, não
sendo resultado das iniciativas e ações das organizações de base e do poder local. A
implantação dos conselhos é fortemente vinculada à exigência do governo central ou
estadual para a operacionalização de algum programa, em especial do PRONAF. De
qualquer forma, essa imposição tem se revestido em um processo de aprendizagem,
gerando, muitas vezes, uma nova dinâmica de participação no âmbito local, vencendo as
barreiras do clientelismo.
Como colocam Campanhola e Silva (2000, p. 64), o local torna-se “uma arena”, um
espaço onde aparecem os conflitos, as diferenças e as disputas que existem entre os
grupos sociais. Mas, são também espaços que permitem “a construção de novas relações
sociais que assumem como premissa que os interesses comuns sejam respeitados,
discutidos e compartilhados”. Para esses autores, as políticas públicas deveriam
proporcionar condições mínimas de sobrevivência e qualidade de vida às populações
pobres. Para isso, procurariam viabilizar nos municípios pobres a infra-estrutura
necessária como os serviços de educação, saúde, saneamento básico, moradia,
segurança, renda mínima etc.
O desenvolvimento rural deve ser um processo que deve partir do local com a efetiva
participação da comunidade, privilegiando as necessidades sociais e culturais da
população e voltado para a conquista da cidadania, mas que esteja de acordo com a
realidade local. Carminda Cavaco (1996) ressalta que o desenvolvimento rural não
acontece por determinações governamentais, leis ou decretos; é um processo de
construção social que envolve diversos elementos objetivos e subjetivos. Para a autora,
todo o processo de promover o desenvolvimento, com base local, é lento, de longo
prazo e incerto para áreas que se encontram em declínio econômico, estagnadas ou
abandonadas, sem recursos financeiros e sem lideranças e profissionais técnicos
(CAVACO, 1996).
A trajetória dos programas de combate à pobreza, o programa Produzir e a
concepção de participação
Os programas de redução da pobreza (PCPR) revelam as diferentes políticas e
experiências de participação da sociedade civil nos seus respectivos estados. É
interessante observar, no entanto, que esta situação vem mudando progressivamente
durante os últimos anos, com um crescente diálogo e aproximação entre os programas
estaduais, o Banco Mundial, as ONGs e os sindicatos.
Pode-se considerar que três fases distintas marcam a configuração desses programas: a
primeira geração, que remonta aos anos de 1980, é representada pelo PCPR que foi
inicialmente chamado de PAPP (Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural). Este
era um fundo social mais clássico, com uma estrutura pouco descentralizada, voltado a
combater à pobreza rural. Nesta fase, estimava-se que apenas 20% dos recursos
chegavam aos subprojetos, o restante sendo gasto na máquina governamental ou no
âmbito das capitais estaduais. Com o passar do tempo, o PAPP foi reestruturado
apresentando um modelo mais descentralizado e participativo à imagem do PCPR atual,
onde 80% dos recursos são aplicados na comunidade.
A segunda geração de programas (início e meados dos anos de 1990) foi marcada pela
tentativa de melhorar o desempenho operacional e garantir a descentralização dos
benefícios de vários projetos com dificuldades de implementação, através da criação de
fundos de pequenos projetos. Nesta segunda geração, também estão ainda projetos de
combate à pobreza rural baseados no PAPP, porém incorporando as lições apreendidas
desse modelo.
A partir de meados de 1990, refletindo as novas temáticas do desenvolvimento no final
do século XX, como meio ambiente e a questão de gênero, a terceira geração dos
programas já incorpora noções mais avançadas, como desenvolvimento sustentável e a
necessidade de incluir a participação efetiva da sociedade civil em seus desenhos. São
mais focalizados tematicamente e incorporam a participação de uma gama mais ampla
da sociedade civil (principalmente de ONGs e movimentos sociais) em praticamente
todas as fases de implementação. Vale dizer que essas mudanças são impulsionadas, em
grande parte, pelas próprias exigências das instituições de financiamento.
No estado da Bahia, um dos principais programas de desenvolvimento rural é o
Produzir, em execução desde 1993 e coordenado pela Companhia de Desenvolvimento
e Ação Regional (CAR), órgão da Secretaria de Planejamento do Estado. O seu
principal objetivo é a redução da pobreza rural e o fortalecimento das associações,
através do financiamento de projetos comunitários escolhidos pela própria comunidade.
Nesse sentido, contribui para a descentralização progressiva dos processos de decisão,
fazendo da participação o eixo central de sua estratégia dos investimentos.
Abrangendo atualmente 407 municípios baianos, o Produzir é um dos programas mais
importantes do governo estadual, tendo, inclusive, recebido destaque internacional no
ano de 2004. Com financiamento do Banco Mundial (o governo estadual participa com
40% dos recursos), o programa atua na zona rural e sedes urbanas com até 7.500
habitantes. Os recursos podem ser orientados para diferentes projetos, agrupados em
quatro categorias: projetos de infra-estrutura; sociais; de apoio à produção e
comercialização; e produtivos.
Os pequenos agricultores, formalmente constituídos através de associações, submetem
os seus projetos para análise da CAR. São três linhas de atuação do programa: o
Programa de Apoio Comunitário – PAC; o Fundo Municipal de Apoio Comunitário –
FUMAC; e o Fundo Municipal de Apoio Comunitário Piloto – FUMAC-P.
O PAC é uma ação conjunta da CAR e das associações comunitárias. A associação faz
seu pedido diretamente à CAR, que analisa o projeto. É a chamada “avaliação de
demanda”. No FUMAC, a ação envolve a CAR, as associações comunitárias e o
conselho municipal. Esse conselho, formado por, no mínimo, 80% de representações
das comunidades, coordena a execução do programa no município, em conjunto com a
CAR. É também o conselho que elabora o Plano de Investimento Municipal (PIM),
onde são registrados os projetos escolhidos. A seleção dos projetos é o resultado da
discussão e análise dos pedidos de financiamento apresentados pelas associações, após
reunião com os moradores nas diversas comunidades existentes (CAR, 2002).
O FUMAC-P, que também envolve a ação conjunta da CAR, das associações
comunitárias e do conselho municipal, diferencia-se do FUMAC pela maior atuação do
conselho. Neste caso, a administração direta dos recursos do PIM é feita pelo próprio
conselho: a CAR repassa todo o recurso para o conselho que, por sua vez, estabelece os
convênios com as associações que possuem projeto analisado e aprovado pelo conselho
e pela CAR (CAR, 2002).
Na realidade, esses são os mecanismos de implementação do programa que, segundo
Silva (2002), são também instrumentos de gestão, atribuindo ao Produzir forma e
conteúdo, além de viabilizar os critérios de seleção e analisar as demandas oriundas da
comunidade. A escolha de um desses mecanismos está vinculada ao próprio grau de
organização das comunidades.
Ao longo do tempo, o Produzir sofreu transformações, incorporando as próprias
mudanças nas políticas públicas. Refletindo a experiência dos Programas de Combate à
Pobreza no Nordeste, serve hoje de referência ao Banco Mundial para a criação de
projetos semelhantes em outras regiões e em outros setores da sociedade. As várias
reformulações por que passou revelam uma tendência crescente de descentralização,
associada à busca de uma metodologia participativa estimulando o associativismo e a
organização das comunidades rurais. Como coloca Silva (2002, p. 29), “essa nova
dimensão incorporada ao processo de organização tem um significado histórico ainda
não suficientemente avaliado por que o tempo de implementação ainda é insuficiente”.
Falar de descentralização significa considerar a ausência de mediação entre o programa
e os beneficiários. Segundo a concepção do programa, as famílias de pequenos
produtores rurais organizam-se em torno de interesses comuns e participam de todo o
projeto, desde a escolha do tipo de investimento até o planejamento, execução e
controle das aplicações. De fato, o Produzir tem como principal característica a
demanda por projetos gerados na base, transferindo recursos diretamente para as
organizações locais da sociedade civil. No entanto, é importante considerar o caráter
complexo desse processo organizativo.
Descentralizar não significa apenas retirar do circuito da execução as
diversas instâncias de mediação, com a finalidade de que os benefícios
cheguem, de fato, aos beneficiários. Esta é uma das razões, todavia, a razão
principal é atribuir aos beneficiários o papel de sujeitos da ação (SILVA,
2002, p. 29).
Essas comunidades exerceram tradicionalmente um papel passivo no seu processo de
desenvolvimento, reflexo de um histórico de políticas públicas centralizadas e de um
poder local marcado pelo clientelismo. Dessa forma, um longo caminho começa a ser
percorrido para a transformação desse papel. Não se pode negar os avanços atingidos
pelo programa. Casos de sucesso podem ser citados, denotando que esse é um processo
de aprendizagem de nova forma de gestão pública com resultados bastante positivos.
Críticas também são apontadas, mostrando a fraqueza das instituições locais e o caráter
complexo e contraditório da participação. Os mecanismos de implementação são
passíveis de controle político, principalmente em um contexto de organizações frágeis,
o que gera o desvirtuamento de suas funções. Em um quadro de extrema pobreza, as
necessidades dos agricultores são muitas e não raro faltam serviços básicos. Não é por
acaso que grande parte dos projetos é referente aos recursos hídricos. Ou seja, muitas
associações concentram todos os seus esforços na busca da simples implementação de
água, ainda que não tenham acesso à educação, à saúde e ao emprego. Essa carência
limita as próprias escolhas das associações: busca-se água, mas também não se tem o
que comer.
Dessa forma, na prática, as ações acabam sendo pontuais e limitadas e, embora
contribuam para a melhoria da qualidade de vida e para o avanço do processo
organizativo, não são capazes de alterar a realidade socioeconômica característica
dessas comunidades rurais, marcada pela pobreza e por um limitado grau de
desenvolvimento (ou, melhor dizer, um elevado subdesenvolvimento).
Considerações finais
As políticas públicas de desenvolvimento rural têm assumido novas configurações,
caracterizando uma gestão pública mais descentralizada e com maior participação
social. As transformações na relação entre Estado e sociedade, o processo de
descentralização, a revalorização do espaço local são alguns dos temas que fazem parte
desse debate que, em sua essência, trata de uma nova forma de desenvolvimento,
baseado em um conceito mais amplo. Para Sen (2000), a liberdade de escolha é
essencial para o desenvolvimento.
É nesse contexto que esse artigo buscou apontar algumas reflexões sobre a participação
social nas políticas de desenvolvimento rural. Entender a concepção de participação das
políticas públicas e a forma como vem se concretizando nas comunidades rurais é
crucial para a melhoria da eficácia da intervenção do Estado.
O âmbito municipal tem sido um cenário importante para as transformações na gestão
pública, impulsionadas pelo processo de descentralização. O surgimento de novas
instituições é uma das características mais evidentes na esfera do poder local, capazes
de potencializar o desenvolvimento. No entanto, são também evidentes as fragilidades
desse processo organizativo. E é nesse ponto que o poder público tem um papel
essencial no sentido de criar mecanismos para fortalecer novos arranjos institucionais,
bem como criar as condições adequadas para a efetiva participação da sociedade civil.
A descentralização de recursos para o local não garante por si só a democratização da
alocação e do uso de recursos. A descentralização pode eliminar a mediação entre
programa e beneficiários, mas não garante a mudança no papel das instituições locais.
Nem sempre agricultores e suas organizações conseguem assumir o papel de “sujeitos
da ação”. O caminho é longo e o processo é marcado por avanços e recuos, por
contradições e conflitos, como revelam diversas experiências de desenvolvimento rural,
a exemplo do Programa Produzir, no estado da Bahia.
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