FESTA DA IMACULADA CONCEIÇÃO DE MARIA (ADVENTO 2013)
«O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem, prometida em
casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o nome da Virgem era Maria. O anjo entrou
onde ela estava e disse: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!”. Maria ficou perturbada com essas
palavras e Começou a pensar qual seria o significado da saudação. O anjo, então, disse-lhe: “Não tenhas medo,
Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome
de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele
reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim”. Maria perguntou ao anjo: “Como
acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?”. O anjo respondeu: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do
Altíssimo te cobrirá com sua sombra. Por isso, o menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus.
Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada
estéril, porque para Deus nada é impossível”. Maria, então, disse: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim
segundo a tua palavra!” E o anjo retirou-se» (Lc. 1,26-38).
Prestes a celebrar o maior evento da história humana, as leituras da liturgia de hoje
nos fazem mergulhar mais intensamente no paciente, cuidadoso, arcano designo de
Deus. Ajudam a compreender que, atrás e além daquilo que enxergamos, há outra
realidade que apenas com os nossos meios não poderíamos imaginar e que nos
surpreende por sua grandeza.
A figura de Maria é colocada diretamente em continuidade com a “Eva”, a primeira
mulher feita assim como Deus deseja uma mulher, ou seja um ser em harmonia com tudo
o que o Criador faz; em harmonia até com os próprios limites vividos junto com os limites
do seu companheiro, Adão. Ambos sabem de ser “nus”, isto é, limitados, necessitados de
proteção... mas não tem vergonha disso nem diante do outro nem diante de Deus. O
homem harmonizado é fundamentalmente uma pessoa que sabe que, atrás daquilo que
seus olhos enxergam, existe um amor acolhedor, um projeto de vida, uma mão forte e
segura com a qual Deus conduz, afirma, acalenta. O homem em harmonia percebe a sua
vida como num paralelo existencial, como um único carril constituído por dois trilhos
construídos com a oferta que Deus faz e com a resposta que o homem dá usando da sua
liberdade de confiar ou não. Este sempre foi e é o drama que se repete em todos os
homens e em cada homem que nasce. No momento em que levemente os dois trilhos
começam a divergir a consequência será um distanciamento sempre maior entre a
criatura e o Criador. É essa “distância” que a Igreja sempre indicou usando de uma
terminologia militar a qual indicava a distância entre o alvo e o lugar onde uma flecha
caía, a palavra é traduzida na nossa língua com “pecado que está na origem, original e
originante” de tantos outros pecados.
Se “Eva” representa a escolha de um distanciamento devido à presunção da
autossuficiência, em Maria encontramos exatamente o oposto, isto é, a confiança que
nasce de quem sabe de não estar à altura. A confiança é própria do sentimento de
pobreza que o Evangelista identifica em Maria, e nos propõe através das palavras do
Magnificat: «O Altíssimo volveu o seu olhar para a humildade de sua serva...».
Na leitura do Antigo Testamento e na do Evangelho percebemos a presença implícita
de um projeto que corre paralelamente na nossa vida, é uma realidade que somente o
olhar de quem realmente confia em Deus pode contemplar. Deus não age ostensivamente
nem de modo abrupto quase a violentar a liberdade das pessoas usando do Seu poderio.
Quem é chamado por Deus a participar de modo mais intenso ao Seu projeto, é
convidado como uma pessoa livre, não esmagada pela “demonstração de Deus”. Os
eventos nos quais somos continuamente envolvidos, eventos que nos trazem ora alegria,
ora aquela inumerável sequência de sentimentos negativos, na verdade em grande parte
deles são apenas sinais, manifestações limitadas de algo que é infinitamente maior.
Quando não somos capazes de entrever a mão de Deus que nos conduz com uma lógica,
todos os sentimentos que experimentamos assumem forma de sensações absolutas, que
tomam contas da nossa vida. Eles tomam o lugar principal de grande parte da existência,
por isso fazemos o que nos agrada, fugimos daquilo que não nos agrada etc. Isso apenas
porque se perde a capacidade de contemplar, qualidade esta, tão evidenciada pelo
Evangelista em Maria.
Saber e sentir de estar envolvidos por uma lógica que têm sentido, pode proporcionar
a cada um de nós a fascinante sensação que provém daquela e paz e segurança própria
de quem se sente amado e protegido; de quem não é obrigado a viver a angustia
insinuada e transmitida pela cultura ateia que simplesmente “prescinde” de Deus. Esse
modo de pensar, fazendo-se paladino da liberdade do homem, acaba entregando-o ao
caos, ao acaso, ao desnorteio existencial típico de quem não vê que a vida tem um
sentido e uma meta. Com isto, aumenta a angústia e insegurança total na qual conseguiu
mergulhar o homem contemporâneo. Ao contrário, a resposta a um chamado de Deus,
como vimos em Maria, gera um profundo sentimento de certeza e serenidade na vida, já
que a partir do momento em que entregamos a nossa vida a Deus, sabemos, como por
um pacto implícito, de que Ele assumirá a responsabilidade sobre a nossa vida a qual
renunciamos por amor. E, o amor, nunca decepciona!
Vamos juntos tentar nos enriquecer com a Palavra que Deus hoje nos dirige,
Palavra que é extremamente rica e que nos obriga a tocar apenas alguns pontos para que
possam nos ajudar a agir como Maria, com aquela sua capacidade de “contemplar” tão
apreciada pelo evangelista Lucas.
A cena do encontro não é retratada, como escrevem alguns Evangelhos Apócrifos,
no Templo ou em algum lugar de oração, como no caso do anúncio que o mesmo Anjo,
Gabriel, fez a Zacarias quanto ao nascimento de João Batista. A intenção é proposital,
colocar o anúncio num lugar alheio à liturgia e ao mundo da religiosidade indica que o
novo mundo, a nova história não nasce de dentro de um “templo” ou esquemas religiosos
que pretendem aproximar o homem a Deus usando os meios humanos. O reinar de Deus
não nasce quando o homem “conquista Deus”, mas quando ele se deixa conquistar por
Deus. Não importa o “lugar” nem a condição em que a pessoa se encontre, basta que
seja aberta e não diga “não” a uma mão forte e carinhosa que se estende. A Nova Aliança
nasce com uma fisionomia bem diferente do moralismo e ritualismo da religiosidade
antiga; é Deus quem vai «no lugar onde ele está». no lugar onde qualquer homem está, no
lugar de um momento qualquer; na vida de cada dia Deus escolhe de tornar-se presente
para todos os homens. É a antecipação das escolhas que Jesus fará ao longo da Sua
vida, as escolhas de um pastor que «vai em busca da ovelha perdida».
A oração mais usada no mundo inteiro, a “Ave-Maria” retoma as palavras iniciais
desse diálogo entre Gabriel e Maria. Nós o fazemos ao modo “romano” onde a saudação
“ave” indica um favor, um desejo, um augúrio de bem. Sim, de algum modo pode ser
também esse o sentido que damos à nossa oração, contudo, mais apropriadamente, na
narração do Evangelho, o anjo não utiliza tal saudação. As suas palavras (na língua
grega) ressoam mais ou menos assim: “Alegra-te porque você se tornou objeto especial
do favor gratuito”. Desse modo se entende perfeitamente o espanto, o questionamento, a
surpresa de uma moça que não se considerava objeto de nenhuma atenção especial por
parte de Deus, uma moça que se sentia como todas as moças da Galileia. Não é assim,
com esse sentimento de insuficiência, que às vezes recomeça o nosso caminho de fé?
Ou quando Deus nos chama mais de perto para um projeto que apenas Ele conhece?
Não é esse sentimento de insuficiência que nos invade? O coração parece dizer: “Será
que sou eu mesmo?”, “Será que entendi certo que Deus deseja bem a mim?”.
No mundo antigo, principalmente no mundo oriental, a saudação não era apenas
um cumprimento; em muitos casos as palavras usadas serviam para indicar aquilo que
uma pessoa via na outra. Ora, com essa perspectiva se abre uma nova consideração
sobre a pessoa de Maria; quando o Anjo diz “cheia de graça” indica a Maria aquilo que
Deus vê Nela. O Altíssimo a vê como “cheia da gratuidade”. Uma mulher que vive de
gratuidade. Uma mulher que aprendeu na sua vida a dar graças a Deus por tudo e
retribuir com a mesma intensidade a Ele, isto é, dando tudo de si mesma. Esta é Maria
para Deus! É isso que o Altíssimo viu numa alma simplesmente “grata”. Embora a
expressão “cheia de graça” não seja literalmente correspondente , de fato não é
incompatível com a linguagem grega e manifesta claramente um dos mais bonitos
aspectos da personalidade da Mãe de Jesus, da nossa Mãe!
Seguindo ainda a linguagem do Anjo, tal atitude de gratuidade presente no coração
de Maria, se transforma em “momento propício” (καιρος, tal raiz é presente na própria
saudação), ou seja um momento único, capaz de unir Deus ao homem, de fazer encontrar
Deus e o homem no patamar da gratuidade. Um coração que é educado a viver de
gratuidade, que se sente amado gratuitamente e responde sem medir com gratidão,
transmite uma luz nova, gera, para quem estiver disposto, um “momento propício” para o
encontro com Deus. Aquela que transborda de amor gratuito faz da sua vida um anúncio
do amor de Deus sem precisar de palavras humanas. É a luz que Isabel viu na sua prima,
transmissão de vida a quem está em busca da vida.
Algumas expressões que o Evangelista Lucas usa na narração da Anunciação a
Maria, fazem referencia explicita a um episódio importantíssimo na história de Israel
narrado no 2livro de Samuel, cap. 7 (primeira leitura de hoje). Ali se narra de quando o rei
Davi decidiu construir um templo. Inicialmente o profeta Natã considerou positivo esse seu
desejo, mas durante a noite se deu contas do problema que estava por detrás de um
desejo aparentemente inócuo e, até louvável. Na verdade a construção de um Templo
manifestava a ambição daquele rei, o qual não queria ser “a menos” do que os outros reis
e dos outros povos, que se gloriavam de ter templos suntuosos para o próprio deus. Mas
Natã retrucou a Davi com uma nova Promessa de Jahvé: «Você quer construir uma casa para
mim?... Eu sou quem construirá uma casa para ti», indicando dessa forma que Deus não se
importaria com um templo feito de muros, mas sim com um “templo feito de pessoas”; e
continuou: «farei uma descendência para ti e o teu filho reinará para sempre». Deus estava falando de
um povo que seria o templo vivo de Deus, um povo construído por um descendente,
alguém que a fé judaica chamava «Filho de Davi».
Quando Lucas nos relata o evento do Anúncio, o carrega de uma série grandíssima
de significados teológicos e espirituais. Ao saudar aquela moça o Anjo evocava na
lembrança Dela o inteiro episódio, que Ela bem conhecia como o conhecia toda moça a
quem a própria mãe ensinava as histórias dos antigos patriarcas enquanto elas rodavam
as pedras para moer o trigo do dia. Aquela que tinha sido até então uma história
patrimônio de um passado, de repente se transformava numa história para Ela, pois Ela
mesma, Maria, seria a mãe do vaticinado “filho de Davi”, isto é, filho da promessa. Nela
uma confusa esperança tornar-se-ia o sinal visível de que Deus não decepciona; de que,
mesmo à distância de séculos, Deus é capaz de realizar aquilo que promete. Ela seria a
portadora viva deste sinal.
Nunca se ouviu na história de Israel e no médio oriente em geral que uma mulher
tenha dado o nome ao seu filho. Mas é isto que o Anjo pede para Maria como para indicar
a absoluta e única relação Dela com o Senhor: «Você lhe dará o nome: Jesus». Quando Saulo
teve o privilégio de ter uma relação nova com Deus através do encontro com Jesus, seu
nome mudou para Paulo. Quando Simão fez a sua profunda profissão de fé e de adesão
a Jesus recebeu um nome novo: Pedro; assim no livro de Apocalipse nos Escritos
Paulinos etc. Ao receber a incumbência de dar o nome ao Filho do Altíssimo, Maria é vista
pelo Anjo na sua nova relação com Deus, colocando-A na condição que Lhe permitiria
participar plenamente (e não como figura periférica –como pensam alguns) do projeto de
salvação; o nome Jesus significa “Deus salva”!
Maria soube, naquele momento que Ela seria o lugar onde, como na antiga Arca da
Aliança, todos poderiam se encontrar com um sinal da presença autêntica da Palavra de
Deus, mas desta vez com uma profunda diferença que Paulo descreve assim, falando de
Jesus: «aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças» (Ef. 2,15).
Maria é portadora de uma Palavra viva, sensível, compreensível também para
quem não estudou a Lei. Visível no olhar de quem sente os sentimentos do homem
quando sofre; uma palavra que permite olhar para adiante quando não parece mais existir
futuro. A Maria, Deus entregava esta característica específica na participação ao Seu
projeto. Quando a Palavra não consegue ainda solicitar o ouvido do nosso coração, a
Maria Deus entrega a missão de trazer sempre a vida da sua Palavra, a esperança de
que Deus não decepciona, que é fiel. Nela a única Palavra sempre pronunciada pelo Pai,
o Verbo, torna-se vida visível.
Deus estava construindo o seu templo em Maria. Não era o templo que Davi
desejava construir, um lugar onde dificilmente seria possível distinguir entre fé e
religiosidade. O templo que Deus estava fazendo para si é um templo de disponibilidade
extrema e de confiança no poder do Altíssimo que vai acima do imaginável. Como na
tenda no deserto, assim em Maria a presença do Altíssimo seria encoberta por uma
“sombra” que contemporaneamente indicaria e esconderia o Senhor do universo.
Discretamente o Evangelista nos sugere que esta continua sendo a maneira com a qual
Deus quer se fazer presente no meio dos homens: de modo escondido, invisível para
quem não quer ver, visível para quem aprender a contemplar.
Que este Santo Natal nos recorde sempre a capacidade que cada filho de Deus
tem de entrever o que a maioria dos homens não vê. Que a Arca viva da Nova Aliança,
Maria, nos recorde a diferença entre fé e culto.
Se, em alguns momentos, nos parecer inútil e sem resultado crer, se as violências
dos violentos nos deixam, em alguns momentos, com o sentimento de fracasso e
acabamos com nos considerar como iludidos, gostaria apenas de recordar a delicadeza
que o Evangelista usa nesta narração quando aplica a Maria as palavras: «conceberás e darás
à luz um filho»; são as mesmas que o livro de Gênesis usa logo depois do primeiro
homicídio, quando Caim –o arquétipo dos homicidas- rompe de modo ofensivo o projeto
amoroso de Deus. Eva, novamente, “concebeu e deu à luz um filho”, com esta expressão
Anjo nos diz também que nada pode impedir o projeto amoroso de Deus; quer indicar que
sempre a vida é maior que a morte. Não existe algum mal que seja mais poderoso que o
amor! Maria soube disso, acreditou.
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