Espaço Aberto
A Leitura dos Estudantes do Curso de Licenciatura em
Química: Analisando o Caso do Curso a Distância
Ana Luiza de Quadros e Luciana Campos Miranda
A linguagem química permite uma leitura elaborada do mundo. Um mundo que o homem interpretou, transformou, registrou e revelou em palavras num processo contínuo e espiral, em que ações de interpretação, registro,
revelação e transformação, influenciam-se mutuamente. Ler o mundo é, também, ler as palavras que sintetizam
a forma como cada ramo da sociedade entende esse mundo. Aos que ingressam na graduação, a leitura é uma
ferramenta indispensável. Investigamos as leituras que estudantes do curso de Licenciatura em Química – na modalidade a distância – afirmam fazer. Percebemos que muitos deles limitam essa atividade e, portanto, as chances
de desenvolverem estratégias de entendimento do texto, necessárias para o próprio curso e a outros interesses.
leitura, formação de professores, aprendizagem
Recebido em 21/10/08, aceito em 19/07/09
Não se deve, porém, imaginar o domínio da cultura
como uma entidade espacial
qualquer, que possui limites,
mas que possui também um
território interior. Não há território interior no domínio cultural:
ele está inteiramente situado
sobre fronteiras, fronteiras que
passam por todo lugar, através
de cada momento seu, e a
unidade sistemática da cultura
se estende aos átomos da
vida cultural, como o sol se
reflete em cada gota. Todo ato
cultural vive por essência sobre
fronteiras: nisso está sua seriedade e importância; abstraído
da fronteira, ele perde terreno,
torna-se vazio, pretensioso,
degenera e morre. (Bakhtin,
1998, p. 29)
(p. 32). Uma vez validado e, portanto,
tro, de amigo para amigo etc. É o que
aceito pela comunidade científica,
chamaremos de cultura do dia a dia.
esse conhecimento torna-se uma das
Mortimer (1998) nos fala que
formas possíveis – considerada não
as linguagens usadas nesses dois
problemática – de explicar o mundo
mundos – o da ciência e o do dia
material e os fenômenos que nele
a dia – também diferem. O mundo
acontecem. Essa explicação faz uso
da ciência clássica tem, em sua
de “entidades” tais como átomos,
linguagem, características atempomoléculas, cátions, ânions e tantos
rais, a-históricas e a ausência do
outros. Os autores nos dizem, ainda,
sujeito. Essas características foram
que esse conhecimento construído
sendo construídas ao longo do depela comunidade científica “é comusenvolvimento científico como forma
nicado através da
de registrar, divulgar
cultura e das instie ampliar o conheO conhecimento é a
tuições sociais da
cimento. A forma
atividade pela qual o
ciência” (p. 32).
como a linguagem
homem toma consciência
Considerando
científica é estrutuda realidade e procura
que o conhecimenrada pode provocar
compreendê-la e explicá-la.
to é a atividade pela
“estranheza” para
qual o homem toma
os sujeitos externos
consciência da realidade e procura
à comunidade da área de ciências
compreendê-la e explicá-la, podemos
da natureza.
afirmar que os conhecimentos do dia
A linguagem do dia a dia tende
Segundo Driver e cols. (1999),
a dia também são desenvolvidos,
a ser mais narrativa e, portanto, di“os objetos da ciência não são os
validados e comunicados. Eles se
ferente da linguagem da ciência. Na
fenômenos da natureza, mas construdesenvolvem na cultura popular e
perspectiva apresentada por Bruner
ções desenvolvidas pela comunidade
são, normalmente, transmitidos de
(1997; 2001) – no qual o narrador
científica para interpretar a natureza”
pai para filho, de um vizinho para ouestá inserido e a história narrada
segue uma lógica mais linear –,
o uso da linguagem narrativa, em
A seção “Espaço aberto” visa abordar questões sobre Educação, de um modo geral, que sejam de interesse dos
sala de aula, pode situar e engajar
professores de Química.
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mais o estudante nas aulas, por ser
mais compreensível e, portanto, não
causar “estranheza”. Para ressaltar
essa diferença, apropriamo-nos do
exemplo citado por Mortimer (1998)
ao referir-se à relação entre a solubilidade e a temperatura:
236
e permitir avançar nas fronteiras entre
(2007), a leitura de textos escritos é,
uma e outra é a leitura. Ler é um ato
na maioria das vezes, a base do saber
de decodificar símbolos, de juntar
construído no ambiente da educação
letras e signos, de formar palavras.
formal. Para eles, a leitura tem grande
Juntando palavras, elaboram-se fraimportância no processo de aprenses e, assim, se constrói textos. No
dizagem, e quem lê mais aprende
entanto, ela não se limita a isso! A
mais. Na modalidade de ensino a
leitura é, também, aprofundar-se no
distância (EaD), as interações entre
Dia a dia: ao colocarmos
significado do que é dito e do que
os estudantes e o conhecimento são
sal em água e aquecermos,
está nas entrelinhas. É envolver-se na
predominantemente mediadas por
conseguimos dissolver uma
trama literária, tanto pelo que ela traz
informações gráficas, impressas ou
quantidade maior do que em
em termos de conteúdo quanto pela
digitais. Mesmo nas interações com
água fria.
sua forma ou envolver-se na “trama”
os colegas, professores e tutores, o
científica, tanto pela explicação que
estudante regularmente utiliza recurCientífica: o aumento da temela traz quanto pela
sos que requerem o
peratura provoca um aumento
sua elaboração episuso contínuo das hada solubilidade do sal. (p. 103)
Um caminho para facilitar o
temológica.
bilidades de leitura e
entendimento de diferentes
Como nos lemescrita, como fóruns
Mesmo que a linguagem narrativa
linguagens e permitir
bra Paulo Freire, os
eletrônicos, correio
esteja presente nas salas de aula, ela
avançar nas fronteiras entre
seres humanos leem
eletrônico, postanão costuma ser usada em artigos
uma e outra é a leitura.
o mundo antes de
gem de atividades
de divulgação científica. Portanto, ao
lerem a palavra. Do
e envio de relatórios.
adentrar no mundo da ciência por
ponto de vista histórico, o homem
Considerando a importância do
meio da leitura, o sujeito se deparará
transformou o mundo, revelou esse
ato de ler para todos os cidadãos
com a linguagem mais formal e terá
mundo e, a seguir, escreveu as pae, aqui, mais especificamente, para
que entender o significado do que lê.
lavras (Freire e Macedo, 1990). As
os adeptos das ciências tradicionalVillani e Nascimento (2003) afirpalavras e os entendimentos que
mente classificadas como exatas,
mam que:
delas fazemos representam o modo
desenvolvemos este trabalho. Ele
A linguagem científica é,
como significamos e ressignificamos
surgiu a partir da constatação de que
portanto, mais que o registro
os fenômenos/fatos/acontecimentos
os estudantes de graduação em Quído pensamento científico. Ela
do mundo. A Química é uma ciência
mica, tanto da licenciatura quanto do
possui uma estrutura particular
permeada por modos de ver o munbacharelado, costumam alegar que a
e características específicas,
do, de representar, ler e interpretar os
dedicação ao curso e o cumprimento
indissociáveis do próprio cofenômenos desse mundo.
das exigências nele contidas limitam
nhecimento científico, estruA leitura é uma habilidade básica
a atividade de leitura à bibliografia
turando e dando mobilidade
para o exercício pleno dos direitos de
básica sugerida pelos professores. O
ao próprio pensamento cientícidadania. Segundo Soares (1998),
objetivo foi de investigar a adesão à
fico. O domínio da linguagem
não é suficiente que as pessoas
leitura entre os alunos da Licenciatura
científica é uma competência
sejam alfabetizadas, saibam ler e
em Química da modalidade EaD.
essencial tanto para a prática
escrever, é necessário que elas usem
da ciência quanto para o seu
O planejamento
essas habilidades, respondendo às
aprendizado. Neste sentido
exigências de leitura e escrita contiOs estudantes de Licenciatura em
aprender ciências requer mais
nuamente demandaQuímica, na modalidade a distância,
que conhecer esdas pela sociedade.
oferecido pela UFMG, adentraram
tes elementos. É
O mundo da ciência
Nesse sentido, a alnum mundo que, para alguns deles,
necessário que
clássica tem, em sua
fabetização, como
era até então desconhecido: das
os alunos selinguagem, características
meta social, cede
tecnologias de comunicação e inforjam capazes de
atemporais, anistóricas e
lugar a um anseio de
mação. O primeiro semestre letivo
estabelecer rea ausência do sujeito, que
um processo mais
representou, para os estudantes,
lações entre tais
foram sendo construídas ao
amplo, o letramenum grande desafio de apropriação
elementos dentro
longo do desenvolvimento
to, que compreende
dos recursos da informática como
da grande estrucientífico como forma de
tanto a apropriação
fonte, instrumento, meio e locus de
tura que organiza
registrar, divulgar e ampliar
das técnicas para o
produção de novos conhecimentos.
o conhecimento
o conhecimento.
desenvolvimento do
Uma vez vencido o desafio do uso
científico escolar.
processo de alfabetida informática, a disciplina Metodo(p. 188)
zação, quanto o aspecto de convívio
logia de Estudos Autônomos II foi
e hábito da leitura e da escrita.
idealizada como incentivadora do
Um caminho para facilitar o entenDe acordo com Dias e cols.
desenvolvimento de habilidades de
dimento dessas diferentes linguagens
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leitura. Na introdução da obra didátiNotamos que alguns deles não se
especialmente com esse objetivo.
ca (Dias e cols., 2007) usada nessa
mantiveram dentro do período sugeNa página de apoio – via moodle –,
disciplina, encontra-se que quem lê
rido para as leituras – ano de 2008 –,
são colocados, semanalmente, os
bem aprende mais e melhor (p. 9).
descrevendo leituras feitas em funconteúdos a serem estudados, as
Permeada por váção do vestibular ou
atividades decorrentes desse conterias discussões que
outros comentários
údo e as tarefas que os estudantes
Ao adentrar no mundo da
argumentavam sobre
que permitiam idendevem realizar. Para realizar esse
ciência por meio da leitura,
a importância da leitificá-la como sendo
conjunto de atividades, a leitura dos
o sujeito se deparará com
tura, apresentando
mais antiga. Como
textos acadêmico-científicos é fundaa linguagem mais formal
aspectos envolvidos
já esperávamos, em
mental. Acreditamos que os demais,
e terá que entender o
nessa atividade e sufunção da percepção
que não citaram essas leituras, a
significado do que lê.
gerindo estratégias
decorrente de nossa
fazem semanalmente para poderem
de leitura visando o
prática pedagógica,
se manter no curso.
entendimento do texto lido, a criação
a falta de tempo para ler foi o assunO que nos chamou a atenção é
de um fórum de discussão procurou
to dominante do fórum. O grupo de
que, dentre os 39 estudantes que
identificar que tipo de leitura esses esestudantes é formado por pessoas
alegaram fazer as leituras do curso,
tudantes costumavam fazer. O fórum
que trabalham e que ingressaram
21 deles se limitaram a descrever
foi colocado na página da disciplina,
na graduação recentemente. Muitos
apenas essas leituras. Muitos deles
que usa o moodle1 como ferramenta
deles já constituíram família. A leitura
alegaram falta de tempo e a necesde comunicação entre professor, tutor
acaba sendo, para muitos, aquilo do
sidade de priorizar o curso como
e estudantes. Os estudantes tiveram
qual eles podem desistir em função
justificativa para essa limitação.
quinze dias para participar, postando
de outras necessidades.
A leitura de um texto didáticoopiniões, informações, respondendo
Entre os que descreveram leituras,
científico deve propiciar ao leitor a
aos questionamentos feitos tanto
agrupamo-las de acordo com caracancoragem do novo conhecimento
pelo professor quanto pelo tutor e,
terísticas comuns, que chamamos de
ao repertório de conhecimentos que
até mesmo, comentando sobre as
categorias. A Tabela 1 mostra essas
ele já dispõe, de forma a ampliar ou
leituras dos colegas.
categorias e o número de ocorrência
transformar saberes. A leitura vem a
De um total de 205 alunos, de cinde cada uma delas. Ressaltamos
ser um diálogo entre o conhecimento
co polos, que frequentavam a disciplique o número de ocorrências é
já processado e o novo conhecimenna, 117 participaram do fórum. Esse
maior que o número
to, estabelecendo
índice de abstenção não é específico
de participantes do
nexos, criando relaLer é um ato de decodificar
para esse fórum. Por mais que cause
fórum em função de
ções, ampliando sasímbolos, de juntar letras
estranhamento, no primeiro semestre
alguns deles terem
beres. Para que isso
e signos, de formar
do curso, os estudantes apresendescrito leituras que
aconteça, usamos
palavras. Juntando palavras,
taram dificuldades técnicas para
pertencem a duas
uma série de opeelaboram-se frases e, assim,
participarem das atividades virtuais.
ou três categorias
rações mentais. Esse constrói textos.
Essas dificuldades variavam desde
diferentes.
sas operações são
a falta de computadores em casa até
Apesar de o fóderivadas de certa
inabilidade para operar o equipamenrum esclarecer que os estudantes não
competência de leitura adquirida ao
to. Consideramos, para este trabalho,
deveriam se referir às leituras exigidas
longo da vida. Se não há o hábito de
os 117 participantes. Algumas das
no curso, a maior ocorrência se refere
leitura, é muito provável que essas
participações aparentam terem sido
a essa categoria. Para cada uma das
competências não estejam formadas,
feitas com intenção de cumprir tarefa,
disciplinas a serem cursadas, os estutornando o texto didático-científico
mas outras mostraram o estudante
dantes receberam um livro construído
uma leitura feita por obrigação ou
empolgado por relatar suas leituras e
Tabela 1: Leitura dos estudantes de Licenciatura em Química – EaD.
com postura de incentivar os demais
Nº de
Única
a adentrar no mundo da leitura.
Categorias de leituras
As leituras dos estudantes
No fórum criado para discutir a
leitura dos estudantes, foi solicitado
que descrevessem as feitas em 2008
e, quando possível, fizessem um
comentário sobre o que leram, registrando detalhes sobre a leitura, de
forma a despertar a “vontade” de ler
nos demais participantes e fomentar
mais comentários.
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ocorrências
ocorrência
Para atender às exigências do curso
39
21
Revistas/jornais
37
05
Influenciadas pelas atividades profissionais dos estudantes
32
11
Literaturas diversas
28
05
Influenciadas pelas crenças religiosas dos estudantes
17
04
Livros de autoajuda
12
-
Ligadas às atividades do cotidiano
10
-
Ligadas às demandas dos filhos
7
01
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238
porque exigência do professor, sem
Roseman, 2004) apontam o livro didásolicitados a descrever leituras, esses
que esta produza a aprendizagem
tico como principal fonte de contato
estudantes lembraram-se desta, proesperada.
dos professores com o conhecimento
vavelmente por terem associado essa
Ao priorizar a leitura dos textos
mais próximo do científico, além de
modalidade de leitura a uma prática
específicos das disciplinas de graser definidor do que e de como se
corriqueira deles.
duação, o estudante pode estar limideve ensinar. Dessa forma, limitar as
Outros sete participantes, por já
tando a possibilidade de desenvolver
leituras dos futuros professores ao
terem constituído família e já terem
estratégias de entendimento do texto
livro didático compromete sua autofilhos, descrevem a leitura infantil.
e, consequentemente, de aprender.
nomia e capacidade crítica frente aos
Eles alegam que precisam incentivar
A leitura de revistas ou jornais
conteúdos nele apresentados.
os filhos à leitura, reconhecendo a imtambém foi bastante citada. Alguns
Os outros sete participantes cujas
portância dela e, por isso, dedicamalegam fazer uso de jornais ou revistas
leituras são influenciadas pelo trabase a ler com os filhos. Um destes
que chegam ao seu local de trabalho.
lho atuam na área desportiva, jurídica,
descreve apenas a leitura infantil.
Outros, dentro desse grupo, descrevesocial e outras. Descrevem que a
Se considerarmos que o exemplo é
ram essa modalidade de leitura como
leitura os auxilia a falar melhor do seu
um bom incentivador, então a leitura
algo esporádico,
próprio trabalho.
desse “pai” é limitada, por apenas
mencionando, por
Passamos, agoler para o filho sem, no entanto, fazer
A leitura é aprofundar-se no
exemplo, leitura num
ra, para a quinta cauma leitura mais específica que o
significado do que é dito e
consultório médico
tegoria (voltaremos
ajude a adquirir conhecimentos de
do que está nas entrelinhas.
ou dentário enquanto
à quarta posteriormundo e que o faça ser um exemplo
aguarda a sua vez
mente). As crenças
para o filho. Esse pai afirma:
de ser atendido. Para esses últimos,
religiosas são descritas como sendo
Minhas leituras, este ano,
a leitura não pode ser considerada
a leitura de 17 estudantes. No geral,
foram voltadas para meu filho
um hábito. Menos de dez estudantes
percebemos uma grande ênfase nesde seis anos, para desenvolver
alegaram assinar um jornal ou uma
sa leitura já que, em alguns casos, é
nele o gosto pela leitura, já que
revista para essas leituras.
leitura diária e, em quatro casos, é a
está sendo alfabetizado [...],
Na terceira categoria, apareúnica leitura descrita. É bem provável
essas leituras são uma diversão
cem as leituras influenciadas pela
que a dedicação a esse tipo de leitura
para mim e para ele.
atividade de trabalho. Entre esses
de cada um dos pesquisados desse
estudantes, estão os professores.
grupo acabe por interferir no trabalho
Apenas um dos pesquisados
Das 32 participações que alegaram
de sala de aula. Freire (1987), referindesse grupo cita leituras literárias,
ler em função do trabalho, 25 são
do-se ao professor, cita que “nosso
além das infantis. Os demais, junto
professores. Nesse grupo, há os
papel não é falar ao povo sobre a
com as leituras infantis, descrevem as
que trabalham com pedagogia ou
nossa visão de mundo, ou tentar impôreligiosas, do cotidiano e de trabalho.
atividades pedagógicas mais gerais
la a ele, mas dialogar com ele sobre a
Vamos aqui tomar as palavras
e, para isso, leem livros e artigos
sua e a nossa” (p. 87). Considerando a
de Machado (2001), ao referir-se à
relacionados à educação. Os profeshegemonia da própria ciência em exleitura dos professores, afirma que
sores de ciências – Química, Física e
plicar o mundo, não teríamos, nesses
“imaginar que quem não lê pode fazer
Biologia – dedicam-se mais à procura
casos, o risco de outro extremo: a heler é tão absurdo quanto pensar que
de leituras sobre fenômenos atuais
gemonia religiosa? Sendo assim, em
alguém que não sabe nadar pode
como, por exemplo, efeito estufa
sala de aula, como
se converter em insou algo semelhante. Todos os que
serão conduzidos
trutor de natação”
A leitura é envolver-se na
ministram aulas – ciências e outras
possíveis diálogos
(p. 122). Segunda
trama literária, tanto pelo
áreas – citam o livro didático como
conflituosos entre ciela, para formar leique ela traz em termos
atividade de leitura. Sendo ele uma
ência versus religião?
tores, é preciso ser
de conteúdo quanto pela
referência tanto para estudantes
As dez participaleitor. Assim, o pai
sua forma ou envolver-se
como para professores, é lembrado
ções que chamamos
que lê para formar
na “trama” científica, tanto
ao citar as leituras que fazem. Apede ligadas ao coo filho leitor sem, no
pela explicação que ela traz
sar de oferecer uma modalidade de
tidiano referem-se
entanto, ter o hábito
quanto pela sua elaboração
leitura, o livro didático já se configura
a leituras de uma
da leitura está mais
epistemológica.
como uma ferramenta de trabalho
receita, um extrato
próximo do velho
presumível para o professor e, nesse
bancário, bula de
jargão “faça o que
sentido, provavelmente não ampliará
medicamentos etc. Na parte introdueu digo, mas não faça o que eu faço”.
as estratégias de entendimento do
tória do livro didático da disciplina na
Para o tipo de leitura que espetexto lido, à medida que esse profesqual foi realizado este trabalho, havia
rávamos ver debatido no fórum – e
sor não diversifica sua leitura. Vários
a descrição das várias possibilidades
agora voltamos para a quarta categotrabalhos (Freitag, 1993; Loguercio
de leitura e, entre elas, essa que reria –, apenas 28 estudantes fizeram
e cols., 2001; Martins, 2002; Stern e
lacionamos ao cotidiano. Ao serem
referência. Estes citaram um ou mais
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livros que leram no ano de 2008,
senvolver estratégias adequadas
professores – estratégias eficientes
sendo tanto literatura nacional quanto
ao entendimento do texto lido e,
para envolver nossos estudantes em
internacional. Os títulos mais citados
portanto, ampliar conhecimentos, é
leituras diversificadas, que desenvolforam O mundo de Sofia, Olga, O
necessário o envolvimento do sujeito
vam estratégias de entendimento do
caçador de pipas, A cidade do sol, O
na leitura de uma variedade de formas
lido e que colaborem na formação de
código Da Vinci, A cor púrpura, Perdas
e assuntos. Nesse sentido, alguns
professores/leitores.
e ganhos, Sagarana, Chatô, O grande
dos pesquisados – 21 que só leem
Solé (1998) trata de estratégias de
mentecapto, Laços de família, Os
material do curso, 5 que leem apenas
leitura para o entendimento do lido.
sertões e outros ou citaram autores
jornais e revistas, 11 que leem apenas
Ela sugere uma leitura compartilhada,
de posição consolidada no cenáo que está diretana qual professor
rio literário como Sidney Sheldon,
mente relacionado
e alunos realizem
A alfabetização, como
Monteiro Lobato, Agatha Christie. Se
ao próprio trabalho,
previsões sobre o
meta social, cede lugar
considerarmos os 117 participantes,
4 que afirmam ler
texto a ser lido e,
a um anseio de um
as 28 referências a obras literárias
apenas assuntos liposteriormente, soprocesso de letramento,
significam cerca de 24% dos estugados à religião e 1
bre o que foi lido, esque compreende tanto a
dantes. No entanto, se considerarmos
que só lê livros infanclarecendo dúvidas
apropriação das técnicas
o número total de matriculados, ou
tis – estão limitando
e resumindo ideias.
para o desenvolvimento do
seja, de estudantes que matricularam
consideravelmente
A autora argumenta
processo de alfabetização,
na disciplina, independente de terem
as possibilidades
que essa estratégia
quanto o aspecto de
participado do fórum, esse percentual
de desenvolver esbusca o diálogo e a
convívio e hábito da leitura
será de, aproximadamente, 13%.
sas estratégias. Para
discussão sobre o
e da escrita.
Ressaltamos esse tipo de leitura em
estes, com um único
significado do texto.
função de considerarmos que ampliar
tipo de leitura citada,
A leitura deve posconhecimento por meio da leitura
quando terão facilidade de entendisibilitar a construção de sentidos,
significa ler uma variedade de formas
mento do texto lido, inclusive do texto
relacionando-os com a realidade do
e assuntos.
didático-científico com o qual estão
leitor. Um êxito maior de entendimenPoderíamos justificar essa pouca
mais em contato durante o curso?
to do texto ocorre pela fusão da atileitura por serem estudantes de ciA limitação da leitura a livros
vidade cognitiva com o envolvimento
dades interioranas, cujas bibliotecas
didáticos, no curso de Licenciatuemotivo do leitor.
escolares podem estar defasadas
ra em Química, é justificada pelo
O incentivo à leitura não deve ser
ou conterem poucos livros de qualipouco tempo disponível em função
uma prerrogativa de alguns cursos
dade e cujas bibliotecas municipais
das diversas atividades didáticas
específicos, mas de todos e, princisofreriam do mesmo mal. Entretanto,
exercidas pelos estudantes. Para espalmente, dos cursos de formação de
algumas questões
tes, a pouca leitura
professores. Só um professor leitor
emergem dessa
pode não desenvolserá capaz de incentivar a leitura em
As palavras e os
especulação! Será
ver as competências
seus estudantes. E, para isso, é nosentendimentos que delas
essa uma realidade
necessárias para o
sa responsabilidade iniciarmos um
fazemos representam o
apenas do interior
entendimento de
processo de discussão dessa leitura
modo como significamos
do estado? Os esum texto. Portanto,
dentro dos cursos de formação de
e ressignificamos os
tudantes do curso
ao limitá-la a textos
professores.
fenômenos/fatos/
de Licenciatura em
didático-científicos,
Machado (2001) nos diz que:
acontecimentos do mundo.
Química presencial,
podem estar refor[...] ninguém resiste à tentasituados na capital,
çando um ciclo de
ção de saber o que se esconde
têm um hábito maior de leitura? Para
não entendimento do lido, ou seja,
dentro de algo fechado – seja
aqueles que têm o hábito de leitura,
por lerem pouco não desenvolvem
a sabedoria do bem e do mal
esse é mantido durante o curso de
competências para o entendimento
no fruto proibido, seja na caixa
Licenciatura em Química? Para os
da leitura e o pouco lido torna-se
de Pandora, seja o quarto do
que não têm esse hábito desenvolvicada vez mais difícil de ser entendido.
Barba Azul. Mas, para isso, é
do, o curso de graduação incentiva
Chartier (1991) refere-se, com propreciso saber que existe algo
o desenvolvimento? Deveriam os
priedade, à representação que fazelá dentro. Se ninguém jamais
cursos de formação de professores
mos do mundo e à grande distância
comenta sobre as maravilhas
– de todas as áreas – ensinar a ler o
entre os letrados de talento – os que
encerradas, a possível abertura
mundo e as palavras? Estaria a área
entendem o texto lido – e os leitores
deixa de ser uma porta ou uma
de Ciências envolvida num “silêncio”
menos hábeis, que precisam oralizar
tampa e o possível tesouro
sobre a leitura de seus estudantes?
o que leem para poder compreender.
fica sendo apenas um bloco
Para que formemos letrados de
compacto ou uma barreira
Aprendendo com os dados
talento, é preciso que usemos – tamintransponível. (p.149)
Consideramos que, para debém nós professores formadores de
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240
Consideramos urgente que o tipo
podemos ensinar nossos estudantes a
de leitura feita pelos estudantes de
descobrir, de tanto lerem, o “caminho
um curso de Licenciatura em Química
das pedras” e não esperar que, como
seja objeto de análise e discussão. O
aconteceu com muitos de nós – numa
aprender a aprender (uma das preépoca de pouca televisão e de não
missas da UNESCO
existência de internet
para a educação),
–, aprendêssemos
Ao transformarmos o
como forma de edusozinhos.
leitor em potencial num
cação continuada,
Para que a linleitor na prática, ele
necessita de um enguagem científica
passa a desenvolver
volvimento na leitura,
não cause mais
as
competências para
com estratégias que
“estranheza” a esleitura que conferem a
capacitem cada um
ses estudantes, é
ele um repertório de
ao entendimento do
indicado que usem
estratégias para enfrentar as
lido e possibilitem
estratégias de leitura
dificuldades apresentadas
o real envolvimento
adequadas a cada
numa nova situação de
com o texto de forum deles. Estratéleitura.
ma que, interagindo
gias de leitura não
com ele, possam
são natas, devem
vivenciá-lo melhor e potencializar o
ser ensinadas. Para o entendimento
prazer da leitura e o aprendizado ali
do lido, pode ser necessário o uso
oferecido.
de estratégias cognitivas, tais como
Ao transformarmos o leitor em poa construção de esquemas, resumos,
tencial num leitor na prática, ele passa
mapas conceituais e outros. E estas,
a desenvolver as competências para
sim, podem ser ensinadas.
leitura que conferem a ele um reperA tarefa de ensinar a leitura não
tório de estratégias com as quais será
se restringe aos professores de porpossível escolher aquela que pareça
tuguês nem aos níveis fundamentais
mais conveniente para enfrentar as
da educação. Professores de todas
dificuldades apresentadas numa nova
as disciplinas, e em qualquer fase
situação de leitura. Nós, professores,
do percurso da educação escolar,
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imagem visual. 2002. Dissertação (Mestrado em Educação)- Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 2002.
podem e devem contribuir para o
letramento de seus estudantes. As
estratégias de entendimento de um
texto se desenvolvem com mais fluência entre aqueles que têm o hábito de
leitura e que diversificam a leitura que
fazem. Assim sendo, essa leitura propicia navegar da cultura do dia a dia
para a cultura científica e vice-versa,
fazendo com que o estudante se
sinta participante da comunidade da
ciência e, com esse conhecimento,
colabore no crescimento da cultura
do dia a dia.
Nota
1. Plataforma virtual na qual as
disciplinas estão inseridas.
Ana Luiza de Quadros ([email protected]),
licenciada em Química pela UNIJUÍ, especia­lista
em Ensino de Química pela UPF/RS, mestre
em Educação nas Ciências pela UNIJUÍ/RS, é
doutoranda no Programa de Pós-Graduação da
FAE/UFMG e professora de Ensino de Química
no Departamento de Química – ICEx – UFMG.
Luciana Campos Miranda (professoraluciana@
oi.com.br), licenciada em Química, especialista
em Ensino de Ciências e mestranda em Educação
pela UFMG, é professora de Química da Escola
Municipal Professor Tabajara Pedroso e tutora no
Curso de Licenciatura em Química modalidade a
distância da UFMG.
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Abstract: The reading in the course of Chemistry´s teacher: the case of the course in the distance. The chemical language allows an elaborated reading of the world. A world that the man interpreted,
transformed, registered and disclosed in words, a continuous and spiral process where actions of interpretation, register, revelation and transformation are influence mutually. To read the world is,
also, to read the words that synthesize the form as each part of the society understands this world. The reading is an indispensable tool to students of graduate. We investigate the readings that
students of the course of chemistry’s teacher formation - in the modality in the distance - affirm to make. We perceive that many of them, limit this activity and, therefore, the possibilities to develop
strategies of agreement of the text, necessary for the proper course and to other interests.
Keywords: reading, formation of teachers, learning.
QUÍMICA NOVA NA ESCOLA
A Leitura dos Estudantes do Curso de Licenciatura em Química Vol. 31, N° 4 , NOVEMBRO 2009
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