DEVIRES E DIMENSÕES DOS PROCESSOS DE APRENDIZADO:
LINHAS DE FUGA E CONTINUIDADE
BECOMING AND DIMENSIONS OF THE LEARNING PROCESSES: CONTINUITY AND
ESCAPE LINES
JÉFERSON LUIS DE AZEREDO1
RESUMO Aqui, relaciona-se o ‘aprender’ deleuziano, destacando-se como um agenciamento
complexo: formação da ideia e formulação do problema. Na sala de aula, um aspecto reducionista seria
delimitar a função do professor e dos alunos (a ensinar e a aprender, respectivamente), fechando-se a
inúmeras possibilidades como: agenciamentos, fluxos variados, linhas cortantes, contradições,
problemáticas (ir)relevantes, caos e angústias. Deleuze relaciona seis princípios: conexão,
heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante, cartografia, decalcomania e arborecência. O
rizoma é o método do anti-método, e seus "princípios" constitutivos são regras de prudência a respeito
de todo vestígio ou de toda reintrodução da árvore e do Uno no pensamento.
Palavras-chave: Aprendizado; Rizoma; Raíz; Aula; Multiplicidade; Criação.
ABSTRACT: Here, we relate the 'learning' of Deleuzian, standing out as a complex assemblage:
formation of the idea and formulation of the problem. In the classroom, one aspect would be reductionist
to delimit the role of teacher and students (teaching and learning, respectively), closing the numerous
possibilities such as assemblages, varying flows, sharp lines, contradictions, problems relevant or
irrelevant, chaos and distress. Deleuze lists six principles: connection, heterogeneity, multiplicity, the non
significant rupture, cartography, decal and arborecent . The rhizome is the method of the anti-method, and
its "principles" are constitutive rules of prudence in respect of any trace or any reintroduction of the tree
and the One in thought.
Keywords: Learning; Rhizome, Root; Class; Multiplicity; Creation.
O aprender deleuzeano
A multiplicidade do pensamento é uma ideia-força, que é pensada no
entendimento e constituição de uma sala de aula, e consequentemente do aprendizado.
Trata-se da criação do próprio conhecimento, dos desdobramentos e re-dobramentos
possíveis, talvez daí, a pergunta “o que é aprender?” incite a inúmeros questionamentos
e posições variadas, que se voltam ao espaço em sala e inferem modelos que
impossibilitam tal desejo (CORAZZA, 2010).
1
Mestre, Licenciado e Bacharel em Filosofia. Professor de Filosofia na Universidade do Extremo Sul
Catarinense – UNESC. e UNIBAVE – Orleans. [email protected]
O seguinte artigo, da reflexão e da pesquisa infindáveis, mais do que inaugurar ou
definir, desvela, traz à “luz” o que talvez possibilite pensar o caminho e o caminhante. É
certo que são muito mais perguntas que possibilidades a serem escolhidas, mas é
igualmente certo que ganha-se mais com a desobstrução de tudo aquilo que encerra as
discuções, de todos os pensamentos que engessam esse ‘fantástico’ movimento do
pensamento, da vida...
Para (nem) tanto, Gilles Deleuze (“talvez com Nietzsche”) possibilita um
agenciamento em que várias conexões são possíveis e talvez impossíveis, entretanto
mostra-se aberto a continuar esse percurso de descobrimentos e aprendizado. Para ele o
aprender ocupa (ou desocupa – cf. o conceito de caos 2), um lugar de destaque, trata-se
de um ato de adaptação e de criação, um agenciamento complexo, que concerne às
condições de possibilidade do próprio pensamento: formação da ideia e formulação do
problema. O aprender vai além do saber, esposando a vida toda, inteira, em seu curso
apaixonado e imprevisível.
A sala de aula é o lugar em que há o ensinar e o fazer com que se aprenda
[d’apprendre et de faire apprendre]; uma constante ação entre o que ensina e aquele
que é ensinado, aquele que fala e aquele que escuta e recebe.
Para Deleuze, “aprender” consiste numa repetição da diferença que se atualiza.
Isso ilustra uma da vias deleuzianas, uma das grandes ideias sobre um aprendizado que
nunca se encerrará na aquisição de um saber, mas que consiste em um processo a ser
incessantemente recomeçado, talvez aqui, pensando com Nietzsche, um “eterno
retorno” (FORNAZARI, 2005, p. 103).
Tal aprender consiste em liberar todo pensamento daquilo que o entrava e o
deforma; Impulso de liberação, de desembaraçamento, igualmente válido naquilo que
chama-se de prática da vida cotidiana ou na vida política: desembaraçar-se das divisões
e regras artificiais, dos poderes, das instituições, dos impedimentos, das representações,
das idéias feitas, dos clichês; de tudo que desvia e bloqueia os processos postos em
movimento. Desembaraçar-se de tudo o que imobiliza, que sedentariza3.
É exatamente um apelo a reativar sem parar o movimento4.
2
DELEUZE, G. GUATTARI, F. O que é Filosofia? 1995, p. 357.
Conceito melhor desenvolvido por Schöpke (2004, p. 14), em que inicia seu livro, fazendo uma
distinção de “nômade” e “sedentário”: “De um lado temos os filósofos da transcendência, metafísicos por
excelência, pensadores de um espaço ‘estriado’; em outras palavras, sedentários. Do outro, os nômades,
os verdadeiros habitantes das estepes, homens que transitam em um espaço ‘liso’, pensadores da
imanência que fazem do pensamento uma aventura de alto risco. Entre os dois, a diferença é de natureza”.
3
Para uma “ativação’ da aprendizagem, é preciso desencavar as multiplicidades e
as singularidades; Um deslocamento das subjetividades do ser do eu e da consciência
para os devires, este é o centro do aprender em Deleuze, que aparecerá, sob todas as
formas, ao longo dos diversos temas e pontos de vista em sua filosofia.
Mas, em meio às diferenças, permanece um ponto comum, um denominador
comum: não se pode aprender sem começar a se desprender. Um desprender, dos
preconceitos anteriores, e antes de tudo, e sempre, um desprender-se a si mesmo. Ideia
que se encontra igualmente em Michel Foucault e tem sido, antes de tudo, comentada a
partir dele, de sua ocorrência na “História da sexualidade”, no prefácio para “O
cuidado de si”, o qual foi utilizado como pretexto para a afirmação de que ele
anunciava um “retorno ao sujeito”. Mas a ideia é também, e simultaneamente
deleuziana. É inclusive uma das primeiras ideias, o primeiro impulso, de uma filosofia
que iria inventar, para o pensamento, uma outra concepção, abandonando sua imagem,
ou dando-lhe uma outra.
Assim, Deleuze ensina a desviar, a mudar de direção, a não mais exigir o eu e sua
implantação, mas a concentração, na ideia, no problema, eis aí outras coisas que ele
ensinou e às quais o “aprender” está imediatamente associado. Embora não aja espaço
neste artigo para abordar todas essas questões, elas são da mesma natureza, da “mesma
constelação” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 46). Pois, segundo Deleuze: as ideias
não estão na cabeça, mas fora de nós. Elas não estão dentro, mas fora. Predominância
do fora; como em Foucault. E o grande paradoxo que se deduz desse “estar fora” da
ideia é que somente assim chega-se a “pensar por si mesmos”, a ser “únicos”. Foi de
Nietzsche, que Deleuze reconhece: “Ele dá um gosto perverso (...): o gosto para cada
um dizer coisas simples em nome próprio (...)” (DELEUZE, 1998, p. 14); mas para logo
precisar:
Dizer algo em nome próprio (...) não é um absoluto quando nos
tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito que falamos em
nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro nome
próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalização (...)
(idem, ibid.).
Ou seja, é preciso aprender a “se abrir às multiplicidades que nos atravessam”, a
praticar uma “despersonalização de amor, não de submissão”.
4
Uma proximação a Bergson, em: BERGSON, H. O pensamento e o movente. Trad. de Bento Prado
Neto. Sao Paulo: Martins Fontes, 2006.
Assim, se percebe que a exaltação nietzschiana de si, ou até mesmo do “eu”, não
tem nada a ver com o recuo implicado no narcisismo contemporâneo; que se trata, bem
ao contrário, de uma maneira de se abrir, de se entregar às forças que nos atravessam, de
aumentar a intensidade da potência de ser e de agir. Deslocando-se da história da
filosofia, que não sabe fazer outra coisa do que se apegar à letra dos textos, Deleuze e
sua linguagem transpõem, com um salto, as incompatibilidades e afirmam os paradoxos
que são, ao mesmo tempo, revelações.
Falar em seu próprio nome é parar de se instalar nas significações correntes, de
responder à “palavra de ordem” da linguagem do ensino, de se submeter (uma
despersonalização que é uma submissão); é abrir-se, mas que não recebe, por essa razão,
um privilégio particular. Aprender não é reproduzir, mas inaugurar; inventar o ainda não
existente, e não se contentar em repetir um saber: “fala-se – percorro outra vez o mesmo
texto –, do fundo daquilo que não se sabe, de seu próprio sentido, de seu próprio
desenvolvimento, de um conjunto de singularidades soltas”; pois é preciso desfazer os
“aparelhos de saber”, as organizações preexistentes, incluída a do corpo, para devir,
entrar em “devires” que comandam e balizam toda criação.
Assim, o aprender com Deleuze, que é o do incessante surgimento de formulações
novas, da invenção ou da criação na continuidade de uma trajetória. É o não se deixar
deter pelas prevenções, ensinar a ler e a reler, a escolher.
Todavia, deve-se também considerar a pars construens e a nova imagem do
pensamento tratada por Deleuze desde “Diferença e repetição”, a qual, segundo uma
fórmula decididamente paradoxal, virá a ser chamada “teoria do pensamento sem
imagem” (BIANCO, 2005, p. 5).
Essa dualidade crítico-criativa (criticar uma imagem para propor uma outra que,
todavia, tem a peculiaridade de refutar e de evitar todas as imagens) será uma constante
em toda obra deleuziana e passará por todo tipo de dualidade (pensamento paranóico e
esquizofrênico, arborescente e rizomático, molecular e molar, maior e menor etc.). A
nova imagem do pensamento opõe-se à imagem dogmática do pensamento: acima de
tudo, o pensamento não pressupõe um ato voluntário de fundação que eliminaria os
pressupostos para iniciar do zero, já que o pensamento começa sempre pela diferença,
no meio de alguma coisa ou talvez, por causa de alguma coisa que impulsiona o
pensador ao movimento.
Aquilo que força o pensamento provoca um choque que faz com que cada
faculdade saia de seus eixos, os quais coincidem com os limites do bom senso e do
senso comum. O pensamento cria; não reconhece, não encontra a solução dos problemas
dados e já feitos, como faz um aluno com o professor, mas põe problemas sempre novos
e, com eles, as suas soluções. Os elementos privilegiados do pensamento não são,
portanto, tanto as categorias do verdadeiro e do falso – características da representação
–, mas aquelas do sentido e do non-sense, do interessante e do não interessante.
Por fim, seguindo Nietzsche, a noção de método – que pressupõe a boa vontade
do pensador e a sua determinação de eliminar todo obstáculo na obtenção da verdade –
é substituída pela de “cultura”: na acepção nietzschiana, a cultura consiste numa
“educação”, que acontece no encontro com o Fora e com a produção do novo, e cujo
objetivo é favorecer o encontro com as forças que impelem a faculdade a ultrapassar o
seu próprio limite, impulsionando o pensamento a superar o seu estado natural de torpor
(DELEUZE, 1976, p. 88-89). Assim, Deleuze com uma “pedagogia do sentido”, indica
como prática apta a impelir a sensibilidade a um uso transcendente e não empírico:
“Apreender a intensidade, independentemente da extensão ou antes da qualidade nos
quais ela se desenvolve, é o objeto de uma distorção dos sentidos. Uma pedagogia dos
sentidos volta-se para esse objetivo e integra o ‘transcendentalismo’” (DELEUZE,
1988, p. 449-451).
Nessa concepção ‘Deleuze-nietzscheniana’ (guattariana), numa sala de aula, um
aspecto altamente reducionista seria delimitar a função do professor e dos alunos, o
primeiro a ensinar e o segundo a aprender, fechando assim, qualquer outra possibilidade
que não se encontre nesse “modelo”. Isso deixa de fora inúmeras possibilidades, como:
agenciamentos, fluxos variados, linhas cortantes, contradições, problemáticas relevantes
e irrelevantes, caos e angústias.
Pois cada aula “dada” é formada diferentemente, há uma singularidade que foge a
qualquer controle e sua construção não cabe a sujeitos delimitados.
Isso, percebido através de um deslocamento da concepção Deleuze-guattariana de
livro, especialmente trabalhado na obra Mil Platôs, no texto “Rizoma”, citado abaixo:
Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias
diferentemente formadas, de datas e velocidades muito diferentes.
Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este
trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações. Fabrica-se
um bom Deus para movimentos geológicos. Num livro, como em
qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos,
territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de
desterritorialização e desestratificação. As velocidades comparadas de
escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenômenos de
retardamento relativo, de viscosidade ou, ao contrário, de precipitação
e de ruptura. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.11)
É possível fazer a relação aula – livro, quando igualmente se tem a aula como uma
“coisa”, com suas linhas de articulação, segmentadas em si e para si, suas
territorialidades, visíveis e invisíveis fugas, e vários movimentos que desterritorializa e
reterritorializa. Tais efeitos são anteriores ao tempo atual da aula, eles começam muito
antes da “hora da aula”, na tradução em forma de organização pedagógica nos espaços
portadores de fragmentos da virtualidade da aula.
Tudo isto, as linhas e as velocidades mensuráveis, constituem um
agenciamento. Um livro é um tal agenciamento e, como tal,
inatribuível. É uma multiplicidade — mas não se sabe ainda o que o
múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuído, quer dizer,
quando é elevado ao estado de substantivo. Um agenciamento
maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida,
uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou
bem uma determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos
direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o
organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes,
intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos quais não
deixa senão um nome como rastro de uma intensidade. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.12)
Percebe-se que, a partir desse apontamento, pode-se considerar a aula como um
agenciamento, com linhas e velocidades múltiplas; um movimento sempre intensivo, no
qual permite a transito de partículas constituintes dela e dos corpos que nela se formam.
Modelo rizomático: livro-rizoma – aula-rizoma
Pensar a aula como esse agenciamento, permite estabelecer inúmeras relações,
deixando de lado uma aula com uma imagem estática, imóvel em si mesma. Desse
agenciamento, de uma explicação tem-se e obriga-se a ter, perguntas e exigência de
compreensão dos alunos; é uma passagem de uma “pergunta-mortis” a uma “perguntavitae”, ou seja, não são perguntas limitadas ao que significa tal coisa, ou teoria, e sim ao
que se pode pensar e fazer com o que foi feito em aula. Estende-se assim, ao como
funciona e suas conexões, sejam elas com outras coisas ou outras aulas.
Passa-se a um plano de conexões do que se pode fazer.
Considerado como agenciamento, o livro (escrito nosso), ele está
somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com
outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro
quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada
compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em
conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que
multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos
sem órgãos ele faz convergir o seu. (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p.12)
Assim, como Deleuze entende que há dois tipos de livro, o livro-raiz e o livrorizoma, essa dupla interpretação permite pensar (em referência) também em dois tipos
de aula, a aula-raiz e a aula-rizoma.
Na primeira, o modelo que se segue é o de uma aula onde se procede apenas a
repetição de outras aulas feitas em outras salas, períodos, semestres, anos… Um
repetido exercícios de aplicação em que o esperado são as mesmas respostas tidas
anteriormente. A aula ‘aqui’, se torna espaço de uma verdade instituída, dogmatizada e
de um ‘patrão’ que dela se apropria e faz-se portador maior. Nesta concepção, tem-se
um conhecimento binário do mundo, em que há o certo e o errado, bom e ruim, belo e
feio, em que o mundo limita-se a referencias de dualidades, em oposição.
[…] a Raiz como imagem, não pára de desenvolver a lei do Uno que
se torna dois, depois dois que se tornam quatro.... A lógica binária é a
realidade espiritual da árvore-raiz. (DELEUZE; GUATTARI, 1995a,
p.13)
A aula-raiz, pensa o aluno como aquele que não sabe nada antes da aula, que
encaminha o aluno ao conhecimento, preocupa-se exclusivamente com a mediação.
Essa imagem de árvore-raiz fica evidente em muitas escolas quando o processo de
decisões parte da direção da escola, e as funções são atribuídas (ramificadas) aos setores
(docentes, funcionários, secretaria, orientadores…) até a “ponta”, os estudantes.
É o perfeito
desenho de
uma
árvore-raiz,
hierarquizada,
produzindo
conhecimentos de estruturação curricular; modelo arbóreo.
Em contrapartida a isto, o modelo rizomático, em exemplo do livro-rizoma antes
citado, foge do que seria reprodução.
Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem
reprodução externa como árvore-imagem, nem reprodução interna
como a estrutura-árvore. (...) É uma memória curta ou uma
antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista,
captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia,
oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser
produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível,
modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 32)
Tal como o livro-rizoma, a aula neste sentido se configura em linhas de fuga,
desmontável, sem conexão, reversível, com múltiplas entradas e saídas. Com isso, temse uma aula com uma multiplicidade de possibilidades, algumas traças por Deleuze, que
possibilita pensar os deslocamentos na aula.
Uma primeira possibilidade pode ser assim pensada, segundo Deleuze:
1o e 2o - Princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto
de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. (...)
Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a
um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí
conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas,
políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes
de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p.15)
A conexão permite uma interconectividade a partir de qualquer parte e constante,
em que a aula possa se conectar com qualquer parte da escola, seja por meio do
professor, seja por meio dos alunos. Assim, tal princípio conecta os saberes e práticas da
escola e fora dela, dispersos ou não na sociedade, permitindo ‘extratificar’, levando
muito além apenas das aulas planejadas.
No segundo princípio, o da heterogeneidade, complementar ao primeiro, expressa
a multiforme diversidade do efeito do primeiro princípio, potencializando a percepção
das formas presentes nas práticas pedagógicas, que ainda não se conhece.
Esses princípios permitem pensar uma aula rizomática, em que há uma conexão
um vasto campo de vivências dos estudantes e professores, alterando a dinâmica
espaço-temporal da aula. É um reconhecer que o espaço da aula é apenas mais um
dentre tantos espaços de aprendizagem com os quais há interação dos alunos; povoado
de muitas experiências e conteúdos, não apenas os planejados, mais igualmente os que
escapam, os que fogem da linearidade previamente pensada.
Por este reconhecimento, exploram-se outras conexões possíveis que possibilitem
atualizações de potencias ainda apenas virtualizadas.
No terceiro princípio, o da multiplicidade, Deleuze e Guattari (1995a, p.16) dizem
que:
[…] é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como
substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação
com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou
espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas
e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes.(...) Uma
multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente
determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que
mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a
multiplicidade).
Portanto, igualmente em complemento aos dois outros princípios, a multiplicidade
na aula aparece como uma ação coletiva em que sujeito e objeto são indetermináveis,
negando assim, que qualquer um na escola com suas premissas, não pode exercer-se
como um pilar em que se ramificam as práticas pedagógicas, professor ou não.
A multiplicidade, permite que todos exercem independência e descentralização,
formando diversidade, velocidades outras, e intensidades variadas. Assim, direção,
comunidade, alunos, professores, secretaria, funcionários formam coletividade de
ensino e aprendizado simultâneos, sem tempo ou espaço definidos, ou seja, ocorrem em
todo tempo e em qualquer lugar.
4° - Princípio de ruptura a-significante: um rizoma pode ser rompido,
quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou
outra de suas linhas e segundo outras linhas. (...) Todo rizoma
compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é
estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc;
mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele
foge sem parar. (DELEUZE E GUATTARI, 1995a, p.18)
Com este princípio, alguma conexão sendo rompida é retomada em outro lugar,
qualquer lugar. Portanto, uma aula pensada por este princípio, a livra da possibilidade
de ser associada a tamanho e formato, pois cada lugar, por menor que possa ser, é uma
parte da aprendizagem. Depende-se assim, mais da sensibilização do que da quantidade
de aulas dadas.
Os processos instituídos e institucionalizadores, levam a pensar em movimentos
que desterritorializam e reterritorializam.
5º e 6o - Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não
pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é
estranho a qualquer idéia de eixo genético ou de estrutura profunda.
Um eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual
se organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes,
como que uma seqüência de base decomponível em constituintes
imediatos, enquanto que a unidade do produto se apresenta numa
outra
dimensão,
transformacional
e
subjetiva.
(DELEUZE;
GUATTARI, 1995a, p.21)
Pode-se entender do quinto princípio, o modelo aula-rizoma como sendo um
mapa, mas não acabado, fechado, e sim cartografável continuamente, pois pode ser
conectável por qualquer parte de seu contorno a outros mapas, possuindo assim,
múltiplas entradas.
Esse mapa constitui-se de coordenadas diferentes dependendo de como lhe é
composto; desmontável; adaptável. E não possui material próprio nem estrutura em que
é desenhado próprio.
Uma aula “mapa”, por este principio, desmonta-se ‘re-conectando-se’ em
qualquer de suas extremas partes. Professores e alunos (e outros), aproveitam pontos
diferentes, conectam-se em diferentes extremidades, permitindo-lhes maior pertinência.
No sexto principio, Deleuze e Guattari desconfiam nos decalques feitos,
remetendo a um conceito de arborecência, contrariando o sentido de diferença e
multiplicidade. Uma atitude assim, numa aula, geraria a composição de um currículo
definido em diretrizes e normatizações, deixando o espaço da aula para rizomas,
composto de mapas e conexões possíveis.
Nessa linha de raciocínio, será que não há um dualismo entre mapas e decalques?
Não é de se negar que se este for o ponto que se chegou, estaria-se contrariando o
próprio conceito de rizoma, ou ainda, estaria-se distorcendo a diferença.
Entretanto, mais do que afirmações o processo é de negações que acabam
delimitando ou obscurecendo o próprio processo do pensamento. Os decalques
impedem o desejo.
Um rizoma mostra-se rico e fértil, pode brotar em qualquer lugar e tempo, macro
ou micro, e incitar seu crescimento.
No coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um
galho, um novo rizoma pode se formar. Ou então é um elemento
microscópico da árvore raiz, uma radícula, que incita a produção de
um rizoma. (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p.28)
Mesmo em estruturas institucionais ou discursivas é possível fazer brotar um
rizoma; encontrar linhas de fuga. Mais interessante que fazer frente a estruturas
arborescentes, fazer oposição a suas composições, trata-se de criar, de fazer produzir ou
brotar rizomas a partir destas estruturas.
Mesmo a escola buscando esquadrinhar todas as possibilidades, definir
hierarquicamente o lugar da verdade e do conhecimento, ainda assim é possível, num
“galho” da aula, num “oco” da escola, numa “axila” do currículo, fazer rizoma.
O que fica? Uma postura “rizomática”
Em geral, várias outras coisas podem ser pensadas como rizomas, mesmo o
pensamento, que geralmente é tido como arborescente. Pois é mais fácil pensar uma
estrutura, um decalque em uma disciplina ou em uma aula, pois isso gera maior
segurança no desenvolver. O que se propõe não são negações; afastar o planejamento,
isso talvez seria um ato completamente imaturo e a-profissional, o que se pretende é
assumir os planos e planejamentos como “ponta-pés” iniciais para o processo
rizomático, em que serão compostas cartografias diferentes ao longo do processo de
aprendizado.
O exercício mutante dos fluxos é a proposta de uma adesão ao conceito rizoma,
inicio de uma caracterização a um professor rizoma. De uma diferença positiva, não
amaldiçoada (talvez a maior tarefa de Deleuze: desamaldiçoar rigorozamente a
diferença (DELEUZE, 1988, p. 65/ FORNAZARI, 2005 – tese de doutorado).
Entretanto cabe ressaltar que não se pensa em fazer da diferença um modelo, mas como
anteriormente dito, um espaço ao novo, um impulso constante e forte ao que há por vir,
um ‘ser-se-fazendo’, pois “o novo, tanto em Nietzsche como em Deleuze, é aquilo que
ativa o pensamento, que o força a pensar, que o impele a agir” (SCHOPKE, 2004, p.
32).
O professor revoluciona o pensar, que não pode mais ser visto, segunda tal
compreensão como uma linha estendida entre sujeito e objeto, mas como uma relação
que se faz antes, é um sem tempo para se-fazer (FOGEL, 2003, p. 27-30). Pode-se com
os afetos e perceptos, em zonas de risco, seguir uma linha de fuga constante.
A figura do ‘super-homem’ pensa o tempo como uma reta em frente, em que as
coisas comportam uma repetição apenas como complementaridade. Um professorrizoma compreende o conhecimento como algo que vai ao encontro da vida, uma seta
que atravessa ate o infinito. Uma resistência indo de encontro a uma cultura.
O rizoma, é portanto um anti-método que parece tudo autorizar e, talvez de fato o
autoriza, pois este é o seu rigor, do qual seus autores, sob o termo "sobriedade",
enfatizam de bom grado, pensando nos alunos apressados, o caráter ascético
(DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 150-160).
Um postura rizomática, ou seja, uma aula que se propõe a ser rizoma e não uma
modelo arborescente, não julgar previamente qual caminho é bom para o pensamento,
ou recorrer à experimentação, ou erigir a benevolência como princípio, ou ainda
considerar enfim o método uma alta barreira insuficiente contra o preconceito, uma vez
que ele conserva pelo menos sua forma (verdades primeiras): uma nova definição do
sério em filosofia, enfim contrária ao burocratismo puritano do espírito acadêmico e de
seu "profissionalismo" frívolo (ESCOBAR, 1991, p. 23).
Novamente: O rizoma é o método do anti-método, e seus "princípios"
constitutivos são regras de prudência a respeito de todo vestígio ou de toda reintrodução
da árvore e do Uno no pensamento (DELEUZE; GUATTARI, 1995a). Assim, a atitude
de um professor remete à experimentação, comportando pelo menos três princípios:
- pensar não é representar (não se busca uma adequação a uma suposta realidade
objetiva, mas um efeito real que relance a vida e o pensamento; desloque o que está em
jogo para eles, os relance mais longe e alhures);
- não há começo real senão no meio, ali onde a palavra "gênese" readquire
plenamente seu valor etimológico de "devir", sem relação com uma origem;
- se todo encontro é "possível" no sentido em que não há razão para desqualificar
a priori certos caminhos e não outros, todo encontro nem por isso é selecionado pela
experiência (certas montagens,certos acoplamentos não produzem nem mudam nada).
Tal ponto, não ilude com o jogo aparentemente gratuito ao qual convida o método do
rizoma, como se se tratasse de praticar cegamente qualquer colagem para obter arte ou
filosofia, ou como se toda diferença fosse a priori fecunda, segundo uma doxa
difundida. De certo quem espera pensar deve consentir em uma parte de tateamento
cego e sem apoio, em uma "aventura do involuntário”, e, apesar da aparência ou do
discurso dos mestres, esse tato é a aptidão menos partilhada, pois é negativo de excesso
de consciência e excesso de domínio - não consenti-se de forma nenhuma no rizoma.
A vigilância do pensamento nem por isso permanece menos requisitada, mas no
próprio cerne da experimentação: além das regras mencionadas acima, ela consiste no
discernimento do estéril (buracos negros, impasses, bloqueios) e do fecundo (linhas de
fuga). É aí que pensar conquista ao mesmo tempo sua necessidade e sua efetividade,
reconhecendo os signos que obriga a pensar porque englobam o que ainda não é
pensado. E eis por que Deleuze e Guattari podem dizer que o rizoma é questão de
cartografia (1995a), isto é, de clínica ou de avaliação imanente. Acontece, sem dúvida,
de o rizoma ser imitado, representado e não produzido, e servir de álibi a amálgamas
sem efeito ou a discursos enrolados: pois se acredita que basta que coisas não tenham
relação entre si para que haja interesse em vinculá-las. Mas o rizoma é tão benevolente
quanto seletivo: ele tem a crueldade do real, e só cresce onde efeitos determinados têm
lugar.
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