“A Capela Interna do Convento
do Desterro da Bahia:
legado artístico das Clarissas Franciscanas”
Maria Herminia Olivera Hernández
Assim como em o céu da Religião dos Menores, e na sua primeyra
ordem foi Antonio aquelle iluminoso Astro, ou luzido Sol, a quem
depois seguirão tantos, e tão resplandecentes Planetas; tãobem
no mesmo Céu desta Religião, e na sua segunda ordem foi a
glorioza Santa Clara outra nova constellação, *tão Clara, como
ella mesma, e tão luzente, como Clara [...] 1.
Introdução
O Convento de Nossa Senhora do Desterro, também conhecido como
Convento das Clarissas 2, implantado no Bairro do Desterro, Salvador/BA,
constitui um importante exemplar dos conjuntos arquitetônicos erguidos pelos
franciscanos no Brasil, sendo, inclusive, o primeiro mosteiro reservado à Ordem
Segunda, ramo feminino, existente no país. Apesar disso, ainda são escassos
os estudos relacionados aos seus aspectos históricos, arquitetônicos e também
1 JABOATAM, 1859: 625.
2 A regra do Papa Urbano IV, de 1623, conhecida por “Regra Segunda”, distinguia as Clarissas Urbanistas.
Vem dai o termo Clarissas e a definição de que a Ordem levasse o nome de: Ordem de Santa Clara, em
reconhecimento a sua fundadora. Ver: http://www.procasp.org.br. Acessado em 13 de maio de 2012.
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Maria Herminia Olivera Hernández
artísticos, dedicados ao esclarecimento do significado da referida instituição
religiosa para o desenvolvimento econômico e urbano da cidade de Salvador,
sem perder de vista as contradições com as instâncias de poder e outras ordens
religiosas, desde sua fundação nos finais do século XVII até o século XX.
As limitações em termos de fontes primárias e mesmo publicações
especializadas têm dificultado o avanço na direção do conhecimento e da
compreensão da historiografia da ordem franciscana no Brasil, principalmente
da Ordem Segunda, que se relaciona diretamente com o espaço aqui estudado.
Nesse sentido, as poucas referências existentes acabam desempenhando papéis
fundamentais nas investigações, como a obra Novo Orbe Seráfico Brasílico, ou
Chronica dos Frades Menores da Província do Brasil, do cronista da Ordem
dos Franciscanos, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatam (1859). Escrita na
segunda metade do século XVIII, a publicação oferece-nos, a partir de uma rica
narrativa, dados históricos relevantes que compreendem elementos da fundação
do Desterro e os modos de vida de sua comunidade religiosa.
Outra referência de particular importância é a obra Patriarcado e religião:
as enclausuradas Clarissas do Convento do Desterro da Bahia. 1677-1890,
de Anna Amélia Vieira Nascimento, publicada em 1994. Nela, constam
informações preciosas sobre a fundação do Convento, o papel das religiosas
na sociedade, seu patrimônio móvel e imóvel, além de considerações sobre o
legado artístico daquela Ordem.
As obras citadas, somadas a outras de igual relevância e também ao
conhecimento obtido in loco, ou seja, através de visitas realizadas ao
Convento, constituem a base do presente texto, que se propõe a desvelar um
dos espaços mais ricos e inacessíveis ao olhar externo do ambiente de clausura
das Clarissas do Convento do Desterro, a Capela Interna, também chamada
de Capela do Noviciado e Capela de Santa Clara, esta que, parafraseando
George Duby 3, foi dotada de funções conjugadas, inerentes à obra de arte,
3 1990:13.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
como a função iniciática e emblemática, a sacrifical e a propiciatória. A
criação artística, nesse sentido, se situa no encontro do econômico com
o espiritual, sendo a edificação do convento e a particularidade de seus
interiores um exemplo disso. A Capela Interna trata-se, com efeito, de um
legado artístico das Clarissas franciscanas com participação fundamental no
processo constitutivo da arte luso-brasileira.
Estabelecimento
No Novo Orbe Seráfico Brasílico, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatam
afirma que as primeiras solicitações feitas ao Rei D. João IV para que fosse
concedida licença para implantação de um mosteiro de religiosas datam de
1644. Os solicitantes eram oficiais da Câmara e pessoas representativas da
Cidade do Salvador, que alegavam a inexistência de Mosteiros de Religiosas 4
nas Colônias portuguesas de além-mar. Desta vez, porém, o requerimento
não foi deferido, pois, à época, o Brasil figurava como terra de “conquista”
e, justamente por isso, o interesse dos portugueses estava voltado para o
povoamento, fator decisivo na consolidação de seu domínio.
Anos depois, em 1662, os baianos escreveram novamente ao Rei, agora
D. Afonso VI, filho de D. João IV. Na ocasião, por decisão do povo reunido
na Câmara, um procurador, Dr. João de Góes de Araujo, foi enviado à Corte
para representar os interesses dos solicitantes, no caso, a autorização para
fundação do convento. Uma decisão favorável veio três anos depois através
da Provisão Real, onde consta:
4 Até 1738 somente três havia entre Ásia, África e América: o de Macau e o da Bahia, ambos consagrados a
Santa Clara, e o das Freiras Mônicas, em Gôa. NASCIMENTO, 1973:16.
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Maria Herminia Olivera Hernández
Eu El Rey faço saber, aos que esta minha Provisão virem, que
tendo respeito ao que por muitas vezes me tern representado
os oficiais da Câmara da Cidade do Salvador, Bahia de todos
os Santos, Nobreza, e Povo dela, sobre lhes haver de conceder
licença para fundarem naquela Cidade um Mosteiro de
Religiosas [...] 5
O documento indicava o número de religiosas que deveriam integrar
a comunidade monástica, sob a observância de São Francisco, sujeitas
e governadas pelo ordinário da Bahia, razão justificada pelo prejuízo de o
serem por Religiosos. Indicava ainda o dote da renda do Mosteiro em foros
de casas, fazendas e currais de gado, devendo pagar sempre os dízimos
correspondentes, sem, para isso, se valer de privilégio algum.
Ao tempo do requerimento ao Rei, os mesmos solicitantes tramitaram
junto à Sé Apostólica a tal concessão, cuja resposta veio através de Breve
do Pontífice Clemente IX, de 13 de maio de 1669. Naquele, constavam
determinações a serem cumpridas pela nova fundação, dentre elas:
[...] fundarem de novo na mesma Cidade, um Mosteiro para
cinqüenta Freiras com Abadessa, ou Prioresa trienal, as quais
guardem a segunda Regra de São Francisco, chamadas Urbanas,
e usem véu negro, e estejam sujeitas à jurisdição do ordinário do
Brasil [...]. E, para assinarem a Regra no novo Mosteiro sobredito
e para instruírem as Religiosas dele na vida, disciplina e costumes
regulares, vão para ele quatro Freiras de algum Mosteiro existente
no Reino de Portugal, ou dos Algarves [...] 6
5 Provisão Real de 6 de julho de 1665. JABOATAM, 1859: 627.
6 JABOATAM, 1859: 638.
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Em 7 de fevereiro de 1665, meses antes da provisão acima citada, o
próprio Rei autorizava o local de assentamento das Religiosas, designando,
conforme apelo dos oficiais da Câmara, o sitio 7 da Ermida de Nossa Senhora
do Desterro, existente desde finais de 1600, por ser adequado para vida e
clausura das religiosas. O ano de 1665 representa o da fundação do Mosteiro
das Religiosas de Santa Clara na Bahia, porém, as obras construtivas do futuro
convento foram iniciadas posteriormente.
É preciso esclarecer que, embora a outorga do sítio para o estabelecimento
almejado tenha sido uma deliberação Real, o lugar pertencia, desde 1663, aos
Padres Carmelitas Descalços ou Teresios que pretendiam nele instalar seu
hospício. A posse foi resultado da solicitação dos padroeiros da Ermida, os
Srs. Antônio de Araújo e Francisco Rodrigues Braga, que alegaram, perante
sua Majestade, a devoção daqueles religiosos e o fato de não possuírem bem
de raiz e viverem de esmolas. Foi necessária a intervenção de procuradores
na Corte para que os Teresios desistissem de sua pretensão, recebendo da
Câmara, em 1664, conforme ordenado pelo Rei, outro local adequado.
Os outros pretendentes a fundar, na mesma Capelinha, um Recolhimento para
Religiosas da sua Ordem foram os Padres Agostinhos Descalços. Estes chegaram,
inclusive, a interferir, em 1676, na vinda ao Brasil das Religiosas fundadoras
já embarcadas no Porto de Lisboa. Segundo Jaboatam 8, tais desentendimentos
foram decorrentes do ineficaz trabalho dos Camaristas da Bahia.
Em 22 de outubro de 1678, o Governador Roque da Costa Barreto
colocou a primeira pedra para a construção do convento, no lugar onde
já existia um pequeno hospício com apenas cinco ou seis celas 9, junto
à igreja, reservado às irmãs fundadoras, vindas do Convento de Santa
7 O sitio do Desterro, encontrava-se nas adjacências da antiga Cidade do Salvador, em terreno alto, ladeado
pelo Dique de Tororo e Convento de São Francisco. A invocação da Ermida era a Sagrada Família na sua fuga
para o Desterro, ou para o Egito. ACCIOLI, 1937: 233, V.5.
8 1859: 633.
9 Conforme Nascimento (1973: 109), aquelas estavam localizadas na área da atual portaria do Mosteiro.
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Clara de Évora, em Portugal. Em seu desenvolvimento, o conjunto
arquitetônico do Desterro apresenta um processo semelhante ao de outros
estabelecimentos monásticos, evoluídos a partir do núcleo inicial. Ao
longo do tempo, a edificação foi adquirindo novas áreas, completando
o que seria o conjunto arquitetônico, composto pelo templo, convento e
outros espaços anexos, circundado por uma barreira, comumente chamada
de cerca conventual, que o isolava do mundo exterior 10.
Por determinação da Câmara, foram iniciadas, em 1679, as obras do
mosteiro, tendo como responsável o engenheiro e mestre de obras do Senado
Francisco Pinheiro 11. Em dois anos, já estava apto a receber as primeiras
noviças. Essas obras coincidiram com a chegada de uma substancial
doação de D. Antônia de Goes, a qual foi empregada na edificação do coro.
Posteriormente, com a chegada de novos recursos, foram empreendidas as
obras dos dormitórios e diversas ampliações necessárias, como a conclusão
da última quadra, determinante para que a clausura ficasse fechada.
Cuidaram com zelo as Abadessas do local, onde faziam os seus ofícios, da
oficina maior do convento, registrando-se as atividades do primeiro entalhador
da Igreja do Desterro, Antônio Dias Cabasso 12 (1695). Sucessivamente,
outros mestres e oficiais conhecidos atuaram na realização das obras civis
e decorativas do conjunto, entre eles, os mestres pedreiros Manuel Antunes
Lima 13 (1719-1721), Joaquim de Souza Caldas 14 (1740).
Cabe mencionar que, em 1733, diante do número considerável de
monjas Clarissas, foi autorizado, através de Provisão Régia, a fundação de
10 HERNÁNDEZ, 2009: 26.
11 Procedente de Portugal, com atuação em numerosas obras da Cidade do Salvador, entre elas: a sacristia da
Igreja da Misericórdia (1674); novo risco do claustro do Convento de São Francisco (1686); Planta nova para a Igreja
de São Francisco (1708); Construção do Salão Nobre da Ordem Terceira do Carmo (1709). VICENTE, 2011: 194.
12 ALVES, 1976: 41.
13 ALVES, 1976: 94.
14 ALVES, 1976: 42.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
um segundo convento feminino na Bahia, novamente sob a regra de São
Francisco de Assis, o de Nossa Senhora da Lapa. Suas fundadoras seriam
irmãs procedentes do Desterro.
Durante o século XIX, quando os grupos religiosos começaram a sofrer
limitações impostas pelo Governo, que, àquela altura, revia suas relações
com a Igreja Católica, a comunidade de religiosas Clarissas do Desterro viu
diminuir o número de seus membros, assim como seu prestigio diante da
sociedade como um todo. As perdas foram tão grandes que a comunidade foi
extinta no primeiro quartel do século XX, junto com o registro do falecimento
de seus três últimos membros. Atualmente a administração é responsabilidade
da Congregação das Irmãs Franciscanas do Sagrado Coração de Jesus,
pertencentes à Terceira Ordem Regular de São Francisco de Assis.
Algumas intervenções estruturais e artísticas, realizadas nos séculos
XVIII e XIX, foram determinantes para que o conjunto arquitetônico
conventual do Desterro conquistasse sua atual fisionomia, cujos méritos
podem ser atribuídos à fachada da igreja, com sua portada exibindo
um exemplo particular de rococó flamboyant, ao bulbo que finaliza sua
torre e, no convento, à elevação do mirante, o primeiro a participar de
um edifício com fins religiosos na Bahia. O mirante, inserido por volta
de 1720, era comum nos conventos 15 de Lisboa, Évora e Ponta Delgada
(Portugal), desde o século XVI. Porém, na arquitetura luso-brasileira, seu
uso permaneceu, até então, restrito às construções civis.
Em termos de decoração interna, a Igreja do Desterro sofreu duas
intervenções até chegar à sua atual configuração. A primeira, ocorrida da
década de 1750, conferiu ao templo seu primeiro tratamento decorativo, de
influência barroca. São dessa ocasião, os púlpitos e as guarnições das portas
feitas por André Ferreira de Andrade 16, a talha da Capela-Mor realizada por
15 AZEVEDO, 1975: v.1.
16 ALVES, 1976:25.
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Euzébio da Costa Dourado 17 e as grades de ferro batido para a sacristia,
tribuna e comungatório, confiada a Braz Lourenço de Sá 18.
A outra intervenção, ocorrida nos oitocentos, assumiu a qualidade de
reforma, estando associada a um movimento maior, conhecido como reforma
neoclássica 19. Na oportunidade, a talha e o douramento de feição barroca
foi substituída por uma de gosto classicizante. Esse processo considerou, em
seu programa iconográfico, os postulados da ordem e os do universo cristão
oitocentista. Em 1847, a talha do retábulo, tribunas e forro da capela-mor foi
alterada pelo entalhador Luís Francisco da Silva. Seguidamente, as Clarissas
contrataram Cipriano Francisco de Souza 20 para dar continuidade aos
trabalhos, particularmente à reedificação do novo retábulo, tarefa concluída
em 1854. Na ocasião, também foi feito o douramento de toda a talha nova do
interior da Igreja e finalizada a pintura das grades do coro e da sacristia. Estes
últimos serviços 21 foram executados pelo dourador Manoel Joaquim Lino.
A Capela Interna
O dote das religiosas respaldadas pelas suas famílias constituiu o maior
provento para o desenvolvimento das ações construtivas e decorativas do
Convento do Desterro. As melhores famílias da Bahia ali recolhiam suas filhas,
nem sempre com vocação religiosa, para as quais aqueles faziam de tudo na
tentativa de rodeá-las do maior luxo e conforto possível. Algumas candidatas
ingressavam no convento, acompanhadas de suas escravas. Outras, com clara
17 ALVES, 1976:54.
18 ALVES, 1976: 155.
19 FREIRE, 2006: 20.
20 ALVES, 1976:171.
21 ALVES, 1976:94.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
inclinação para negócios, acabaram logrando respeitável pecúlio, fazendo
doces e bordados ou emprestando dinheiro a juros. Naturalmente, o ambiente
também acolhia religiosas que, contrastando com essa realidade, mantinhamse dedicadas e devotadas na sua entrega ao serviço de louvar a Graça de Deus.
Algumas dessas irmãs, impregnadas por uma aura de santidade, realizavam
consideráveis sacrifícios, inclusive, corporais com o propósito de alcançar
graças e a elevação da alma.
A condição econômica privilegiada de algumas candidatas permitiu que estas
usufruíssem de celas com preparo diferenciado. Desse modo, as decorações
interiores mais arrojadas incluíam bens móveis, como leitos de jacarandá
torneados e guarda-roupas com gavetas trabalhadas, arcas de jacarandá e
vinhático, cadeiras de encosto pintadas de laca chinesa, escrivaninhas de
tartaruga, caixas e baús de xarão da Índia, painéis, contadores, oratórios
de jacarandá com imagens de marfim, presépios, acompanhando, em sua
maioria, os estilos em voga nos setecentos. Aos itens citados, somavam-se os
acabamentos de tapetes, azulejos e/ou tetos pintados. As louças comumente
provinham de Macau e da Companhia das Índias. Conforme os inventários 22,
esse refinamento também caracterizava as vestes e jóias das religiosas.
Parte dos valores auferidos ou após o falecimento da religiosa, seu pecúlio
destinava-se, com bastante frequência, à encomenda de peças preciosas de
ourivesaria, talha, pintura, imaginária, marcenaria voltadas para os ambientes
interiores comuns à vida monástica. Como antes assinalado, também foi
considerável a contribuição dos patrimônios acumulados para o adiantamento
ou complementação das obras civis do conjunto.
Exemplos representativos da prática de empregar as riquezas econômicas na
criação de verdadeiros relicários de arte em favor da Graça Divina são a Capela
do Senhor dos Passos e a Capela Interna. A existência da primeira, também
conhecida como Capela do Senhor Morto ou Capela do Santíssimo Crucifixo
22 Ver Nascimento (1973: 50-51)
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Maria Herminia Olivera Hernández
dos Passos 23 se deve à Madre Vitória da Encarnação, responsável pela inserção,
no Convento, do culto ao Senhor dos Passos na forma de procissão e também
pela materialização do ambiente da celebração em espaço localizado na clausura
próximo da sua cela. Sobre o empreendimento, existe o seguinte registro:
Ajuntou algumas esmolas de Pessoas pias para erigir hua
Capellinha, em que a devota Imagem do Senhor estivesse com a
devida decência, até que finalmente se aperfeiçou a obra. Acabou
tão bem todo o aparato, que requeria a dita procissao, para a
qual alcançou de hua Religiosa outra muito perfeita Imagem. E
por remate deste seu devoto empenho, deixou o que lhe pareceu
bastante para que se dourasse a Capellinha, adquirindo tudo
pelo seu grande zelo, respeito, e ardente amor [...]. 24
A Capela do Senhor Morto apresenta dois retábulos, provavelmente
pertencentes à primeira decoração empregada na igreja do convento 25. Um
dos exemplares revela sua raiz setecentista na decoração com pintura e no
seu solitário relicário, cujo tratamento os aproxima das banquetas originais
da maioria dos altares das igrejas baianas, registradas antes das grandes
reformas decorativas. Nesse recinto, também se destaca o conjunto de talha
que se desenvolve em uma das paredes do espaço, que apresenta altar barroco
e nichos que o ladeiam com as imagens de São João Batista e Santa Helena.
Ficando sob ele e protegido pelo frontal, a escultura primorosa do Senhor
Morto, a qual se encontra lacrada e sem visualização.
23 Conforme Nascimento (1994:226), esta ultima designação foi dada em 1757, junto à autorização do Papa
Benedito XIV, que permitia a realização de missas na Capela “presentemente ornada” para as religiosas velhas
e doentes que não podiam atender este sacrifício na Igreja. A devoção ao Senhor dos Passos, foi inserida no
Convento na forma de procissão pela religiosa Madre Vitória da Encarnação.
24 JABOATAM, 1859: 705.
25 FLEXOR, 2010:236.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
Já a Capela Interna, também conhecida como Capela do Noviciado ou Capela
de Santa Clara e que aqui figura como objeto de estudo, também reúne um grande
número de méritos artísticos. A construção do espaço ocorreu provavelmente na
segunda metade do século XVIII e Jaboatam 26 reforça esta ideia, informando que
a Madre Margarida da Coluna, quando eleita Abadessa, em 1732, deu princípio
aos exercícios de S. Ignácio, Boa Morte e Via-Sacra. Acredita-se que, na ocasião,
tenha surgido a proposta de construção da Capela, destinada a guardar, na mesa do
altar, a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte. Nesse sentido, Madre Margarida
da Coluna seguiria o exemplo de Madre Vitória da Encarnação, que, em virtude
de sua devoção ao Senhor dos Passos, mandou erigir, no âmbito da clausura, uma
Capelinha denominada Capela do Santíssimo Crucifixo dos Passos.
A Capela do Noviciado localiza-se na clausura fechada das dependências
monacais, no primeiro andar, no lance esquerdo do segundo claustro. Com efeito,
as restrições em termos de acesso representaram as principais contribuintes para
que o recinto e todos os seus elementos integrantes se mantivessem desconhecidos
do público externo, assim como desprovidos de estudos específicos. O fato é que
os autores, quando tratam do conjunto do Desterro, fazem geralmente referência
apenas à Capela do Senhor dos Passos. Mas essa não é uma prática generalizada,
como o provam a pesquisadora Mônica Farias 27 e o restaurador José Dirson
Argolo 28, cujas considerações sobre o recinto dialogam ao destacar sua qualidade
e completude em relação às linguagens artísticas.
A Capela apresenta planta em formato retangular e, em seu partido decorativo,
a configuração de dois ambientes é sugerida pela presença do arco mixtilineo
(FIGURA N.º 1), que funciona como divisa, e também dos pormenores dos enfeites das
portas e janelas e pintura dos forros, os quais apresentam tratamentos estilísticos
diferenciados.
26 (1859: 773)
27 (VICENTE, 2012 – A pintura de falsa arquitetura em Salvador: José Joaquim da Rocha – 1750 – 1850).
28 (ARGOLO, 2007 – Convento de Santa Clara do Desterro. Proposta de restauro bens móveis e integrados).
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FIGURA 1
Pormenor do arco
Fonte: Virginia Muri
No recinto, existem dois retábulos, um dedicado ao Cristo Crucificado
(Figura n.º 2) e o seguinte consagrado à padroeira do Convento, Santa
Clara de Assis. O primeiro, disposto no eixo longitudinal da capela, possui,
no centro do camarim, uma imagem em devoção ao Cristo Crucificado,
feita em madeira policromada, sendo este tipo de veneração uma das mais
importantes sugeridas pelo barroco e uma das que formam parte do acervo
dos franciscanos nordestinos 29. Como invocações secundárias, constam nos
nichos laterais do referido retábulo, imagens de Nossa Senhora da Anunciação
e do Sagrado Coração de Jesus, esta última feita em gesso maciço, dourado
e policromado, pertencente ao século XX. A mesa, à maneira de arca, traz
uma rara imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, que, por encontrar-se
totalmente protegida pelo frontal, não pode ser apreciada.
29 CARVALHO, 2008: 26.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
FIGURA 2
Retábulos de Cristo Crucificado e Santa Clara
Fonte: Virgínia Muri
O segundo retábulo (FIGURA N.º 2), consagrado à padroeira do Convento,
Santa Clara de Assis, apresenta imagem em madeira dourada e policromada
dedicada à mística franciscana.
Ambas as composições retabilísticas constituem exemplares de rara
beleza, da segunda metade do século XVIII, apresentando elementos que os
aproximam das linguagens barroca e rococó, decorados com elementos curvos
e simétricos, com recortes de roacailles, colunas salomônicas, cariátides, etc.
Chama a atenção a rica policromia, presente no interior dos nichos e no frontal
das mesas, responsável por tornar esses exemplares casos particulares do
acervo retabilístico setecentista da Bahia. Alguns detalhes, porém, apontam
para acréscimos posteriores de caráter basicamente neoclássico, tais como o
papel de parede utilizado nos nichos laterais do altar do Cristo Crucificado,
que cobre a preciosa pintura semelhante à do fundo do camarim 30.
30 Conforme Argolo (2007), e da constatação no local, as prospecções feitas no nicho lateral direito mostraram
a existência da pintura setecentista original sob o papel de parede com motivos pompeanos.
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Maria Herminia Olivera Hernández
Essa decoração filia-se ao denominado Quarto Ciclo Decorativo,
assim definido pelo estudo de Carvalho 31, quando refere à maioria das
decorações em talha das edificações religiosas franciscanas, no período
compreendido de meados do século XVIII às duas primeiras décadas do
século XIX, essencialmente caracterizadas pelo emprego de elementos
e motivos de inspiração rococó. Houve, portanto, uma convivência dos
elementos ornamentais barrocos, rococós e ainda neoclássicos.
Dispostas sobre as peanhas, colocadas nas paredes laterais do recinto,
encontram-se as imagens de Nossa Senhora da Anunciação e de São
Domingos de Gusmão (ambas do século XVIII), São Francisco de Assis
(século XIX) e São José (século XX). Esta ultima, feita em gesso oco,
certamente substitui a original que seguia a tipologia do conjunto.
O paramento que perfaz o fundo da Capela traz o azulejo que, como
revestimento decorativo, tornou-se elemento de abundante uso nas igrejas
e conventos do Brasil, influência direta da sua utilização em Portugal,
onde se desenvolveu uma manufatura considerável de peças. Este painel
com recorte mixtilíneo superior, tipicamente barroco, de dimensões 2.37
x 5.56m, em tons de azul e branco, articula um programa iconográfico
estruturado sob o influxo da inspiração mística na vida de Santa Clara,
apresentando guarnições internamente delimitadas com motivos
concheados e arquitetônicos em perspectiva, que direcionam para a serie
distribuída em três secções (FIGURA N.º 3).
31 CARVALHO, 2008: 26.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
FIGURA 3
Painel de azulejos – pormenor da seção central
Fonte: (foto da autora)
A arcada mixtilinea, elaborada em madeira recortada, entalhada e vazada,
apresenta guirlandas, frisos, molduras e pinturas escaioladas. A peça divide
o espaço, exatamente no plano do acabamento superior, possibilitando a
ambiência cenográfica de dois forros de madeira pintados a óleo, delimitados
por cimalhas douradas e policromadas com pinturas em escaiola. Um deles,
disposto sobre o espaço onde figura o altar de Santa Clara, apresenta pintura
em medalhão e o outro, na ambiência do altar do Cristo Crucificado, exibe
pintura em quadratura. Ambas representam passagens da vida de Jesus.
O primeiro forro mencionado (FIGURA N.º 4) recria a cena do Batismo de Cristo por
São João, disposta em um medalhão circundado por moldura entalhada, cuja
estrutura compositiva e triangular traz a figura de Deus Pai observando toda a
cena. Clarival do Prado Valladares sugere, como hipótese, que a pintura seja
fruto do trabalho “de um dos pintores evoluídos entre os séculos XVIII e XIX,
mas ainda ao nível de aprendiz, pois há evidência de certa insegurança.
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Maria Herminia Olivera Hernández
Muito provavelmente, ao que se pode presumir, o anjo que carrega o manto que
ajuda o batismo, tem traços estilísticos de Teófilo de Jesus” 32.
O segundo forro (FIGURA N.º 5) apresenta pintura em perspectiva, tipo de
representação pictórica que teve como principais mecenas as Ordens e
Irmandades Religiosas, os quais fomentavam a fé enfatizando seus aspectos
visíveis e a exterioridade do culto por influência do Concílio Tridentino. A
pintura em falsa arquitetura, ali colocada, tem comprometida sua visualização,
em virtude de sua altura aproximada de apenas 4.60m. Monica Farias Vicente
destaca que se trata de uma pintura significativa e que sua autoria pode ser
atribuída ao pintor português Antônio Simões Ribeiro 33. Segundo a autora,
A falsa arquitetura projetada está constituída apenas de uma
platibanda recortada sustentada por mísulas volumosas e triplas.
Não há colunas, arcadas e portadas. Essas características é que
podem aproximar a autoria a Simões Ribeiro, pois essa mesma
solução foi observada por Mello em seus estudos sobre a
produtividade do artista 34.
Complementando a ambiência da Capela e ressaltando a ornamentação dos
vãos de portas e janelas, aparecem sanefas de bição e sem bição, guirlandas
e cabeças de anjos articuladas à linguagem decorativa do conjunto, que
se constitui, por excelência, em espaço representativo da arte conventual
feminina na Bahia.
32 VALLADARES, 1981.
33 Marieta Alves, 1976:145, comenta que provavelmente em 1745, Simões Ribeiro teria trabalhado na pintura
da Sacristia da Igreja do Desterro. Inferindo-se que poderia ter também participado da decoração da Capela
Interna, realizando a obra em quadratura.
34 VICENTE, 2012: 392. A mesma autora constata a presença da tratadística pozzeana e dos formulários
utilizados por Simões Ribeiro nas obras portuguesas.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
FIGURA 4
Forro em medalhão
Fonte: Mônica Farias
FIGURA 5
Forro em medalhão
Fonte: Mônica Farias
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Considerações finais
As considerações aqui expressas derivam de uma pesquisa que está em
seu estágio inicial de desenvolvimento e que, justamente por isso, merecem
aprofundamentos. As lacunas existentes a respeito da identificação de autorias
das realizações artísticas, assim como das atividades sacras inerentes ao
ambiente da Capela Interna em relação à comunidade religiosa dificultam a
elaboração de conclusões precisas e definitivas. Também é influente o estado
de conservação da documentação do Convento do Desterro, que se encontra,
há algum tempo, em processo de recuperação.
Isso, porém, não impediu a realização de reflexões esclarecedoras quanto
a aspectos importantes deste que é um dos primeiros Mosteiros sob a égide
dos franciscanos, designados à sua Ordem Segunda, fundados na Bahia. Foi
possível ainda incluir dados acerca do desenvolvimento artístico-construtivo
que envolveu diferentes agentes tanto da sociedade quanto dos poderes civis
e eclesiásticos, incluindo as próprias religiosas que participaram diretamente
nas atividades relacionadas às encomendas artísticas e de destacados artistas
e artífices executores dos empreendimentos.
Quanto à Capela Interna, pode-se afirmar que sua particularidade está no
fato de constituir-se em parte significativa da vida claustral das Clarissas
franciscanas, além de um caso representativo de comunhão das linguagens
artísticas aplicadas na Bahia, no período dos setecentos.
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado artístico das Clarissas Franciscanas”
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“A Capela Interna do Convento do Desterro da Bahia: legado