Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade O gênero e a história: a discussão da categoria gênero na historiografia brasileira Paola Lili Lucena*1 Resumo: A partir da década de 1970, o conceito de gênero começou a se destacar enquanto uma categoria de análise histórica privilegiada, na medida em que se mostrou capaz de evidenciar as diferenças, as relações sociais e as construções culturais, que envolvem os dois sexos. Nesse sentido, é preciso apontar como se estabeleceu a relação entre o gênero e a historia social das mulheres, observando os principais termos do debate entre as historiadoras Joan Scott e Louise Tilly. Além disso, é necessário destacar como que o gênero ganhou espaço dentro da historiografia brasileira, evidenciando os trabalhos de historiadoras como Rachel Soihet e Margareth Rago, por exemplo, e esclarecendo como as historiadoras brasileiras participam do debate sobre as potencialidades e os limites da categoria gênero. Palavras-chave: gênero, historiografia brasileira, história das mulheres. A emergência de demandas oriundas do movimento feminista, bem como o contexto de transformação historiográfico, caracterizado pela quebra dos paradigmas tradicionais da escrita da história, são elementos que propiciaram o desenvolvimento de uma história, cujo objetivo seria dar visibilidade à mulher, considerando-a como sujeito ativo. Esse campo específico de estudos, conhecido como história das mulheres, consistiu em uma força desafiadora, que questionou pressupostos tradicionais da história, tais como a existência de um sujeito universal, representado pelo homem branco, que não atentava para as diferenças provenientes da raça e do sexo. Esse questionamento apontou para o fato da insustentabilidade de um conhecimento histórico que não esteja apoiado na multiplicidade de sujeitos históricos. A História das Mulheres começa a se desenvolver durante a década de 60, quando as feministas estavam preocupadas em resgatar a história de suas ancestrais, para legitimar seus projetos futuros. Assim, ela nasce atrelada ao projeto político * Graduada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007. 1 feminista, motivo pelo qual alguns historiadores questionaram o profissionalismo e os métodos de pesquisa utilizados por esse novo campo historiográfico. 2 A partir desse momento, é perceptível a proliferação crescente de estudos que enfatizam a participação das mulheres na história, em várias partes do mundo ocidental. Na França, nos Estados Unidos3 e no Brasil (neste país, principalmente a partir dos anos 80), as mulheres conquistaram um maior espaço nos meios acadêmicos, o que a acarretou em um relativo aumento no número de artigos, monografias, comunicações, teses, dentre outros trabalhos científicos, que envolviam a questão da participação feminina na história. Em suma, se tratava de um novo campo que se abria para resgatar as vidas e as expectativas das mulheres nas sociedades passadas, descobrindo-as como sujeitos da história e objeto de estudo. 4 No entanto, os historiadores ocupados com a História das mulheres se depararam com certos problemas, alguns deles já presentes desde o início da sua trajetória enquanto campo de estudo. Dentre esses problemas, destaca-se isolamento intelectual, ao qual esses profissionais estavam submetidos, uma vez que a história das mulheres permanecia quase exclusivamente, sob a responsabilidade das historiadoras, constituindo em um campo dissociado dos rumos da história geral. Tendo em vista essa segregação, seria preciso aprimorar determinados conceitos, para assim integrar a história das mulheres ao restante da história. É possível notar uma outra ordem de deficiências, que se referiam às temáticas comumente evocadas para estudar as mulheres. Dentre essas temáticas, pode-se citar o estudo do corpo, da sexualidade, da maternidade, das profissões próximas de uma “natureza” feminina, dentre outras. Esses temas não são irrelevantes, mas eles precisavam ser submetidos a uma maior problematização, para que possam revelar as práticas culturais e sociais que lhes são inerentes. Logo, em alguns casos, esses estudos se distanciavam um pouco do que era produzido pela história política e social. 2 Joan Scott contesta a alegada impossibilidade de conciliar profissionalismo e ideologia, através da atuação das historiadoras feministas norte-americanas. SCOTT, Joan. História das Mulheres, In: Burke, Peter (org.), A Escrita da História - Novas Perspectivas, S. Paulo, UNESP,1992. 3 Michelle Perrot enfatiza que a história das mulheres se inscreve no campo mais vasto das ciências humanas e que ela não é produto exclusivo da França, mas sim do mundo Ocidental. No entanto, os Estados Unidos foram os pioneiros na discussão da inserção feminina na História. Na década de 1970, a história das mulheres na França estava preocupada em desvendar aspectos do patriarcalismo e da dominação, bem como as questões que envolvem a família e o casamento.Cf. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história;tradução Viviane Ribeiro. Bauru, SP:EDUSC, 2005, p15-16. 4 MATOS, Maria Izilda S. Estudos de Gênero: percursos e possibilidades na historiografia contemporânea. IN: Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, P.67. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: 2 EDUFOP, 2007. Diante de vários impasses, a história das mulheres se viu obrigada a lançar mão de instrumentos analíticos mais eficazes. É preciso ressaltar ainda, que na década de 80 a história das mulheres foi levada a questionar a categoria universal do feminino, base sobre a qual se assentava. Insistir em uma condição feminina inalterável no tempo, faria com que as historiadoras reiterassem a idéia de naturalização, contra a qual elas tanto lutaram. O feminino não deveria ser entendido com algo naturalizado, mas sim enquanto uma construção histórica. O momento vivenciado era então, o de mutação no campo do conhecimento, que se distanciava um pouco das problematizações levantadas até então pelo feminismo. Configurava-se um contexto propício para um maior aprofundamento do conceito de gênero, categoria analítica, que transcende os limites do feminismo. O gênero: uma categoria privilegiada de análise histórica Gênero é um termo utilizado para teorizar a diferença sexual desde a década de 70. A socióloga Ann Oakley procurou diferenciar sexo e gênero, afirmando o seguinte: Sexo' é uma palavra que faz referência às diferenças biológicas entre machos e fêmeas [...]. 'Gênero', pelo contrário, é um termo que remete à cultura: ele diz respeito à classificação social em 'masculino' e 'feminino' [...]. Deve-se admitir a invariância do sexo tanto quanto deve-se admitir a variabilidade do gênero. "5 Logo, o gênero pode variar de acordo com as experiências sociais e culturais do indivíduo, não sendo necessariamente, determinado pela configuração biológica sexual que este possa apresentar. Percebendo o gênero como um instrumento de combate contra o determinismo biológico, alguns historiadores pensaram na viabilidade de trazêlo para o campo histórico. Nesse particular, destaca-se a atuação das historiadoras feministas norte-americanas, pioneiras na utilização e conceituação do gênero. Durante a década de 80, de acordo com Joan Scott, a categoria gênero ganha força, se distanciando um pouco da política, no sentido da ideologia feminista6. Scott entende o gênero enquanto uma categoria de análise útil ao conhecimento histórico. Para essa historiadora norte-americana o gênero aplicado à disciplina histórica, significaria o saber a respeito das diferenças sexuais. Tal saber é produzido pelas culturas e sociedades e se desenvolve a partir das relações humanas, mais 5 OAKLEY, Ann: Sex, Gender, and Society. New York, Harper Colophon Books. 1972, p. 16. SCOTT, Joan. "História das Mulheres".In: Burke, Peter (org.), A Escrita da História - Novas Perspectiva., S. Paulo: UNESP, 1992,p.64. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: 3 EDUFOP, 2007. 6 especificamente, as relações entre homens e mulheres. Para ela, os usos e significados desse saber são frutos de uma disputa política e são os meios pelos quais as relações de poder - de dominação e de subordinação - são construídas. Assim, o gênero deve contribuir para uma visão mais completa da história, pois consiste em um instrumento analítico para os historiadores, na medida em que é capaz de gerar um saber novo sobre as mulheres e sobre a diferença sexual e inspirar desafios críticos às políticas da história ou, também, de qualquer outra disciplina. 7 Joan Scott, afirma que a opção pela palavra gênero (gender, em inglês) indica a rejeição ao determinismo biológico e aponta para o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. 8 Mais especificamente, a introdução do gênero na história promoveu uma nova concepção a respeito das categorias de homem e mulher, estabelecendo o que Lia Zanotta Machado chamou de desnaturalização biológica das categorias de homem e mulher, para implementar uma radicalização da construção simbólica (entendendo-se aqui a natureza da dimensão social e cultural) das noções de feminino e masculino.9 Em outras palavras, essa categoria analítica é capaz de perceber que as diferenças sexuais e sociais se estruturam a partir das significações histórica e socialmente construídas por mulheres e homens. Logo, as diferenciações e os comportamentos atribuídos a homens e mulheres e a relação entre os sexos não são discursos neutros, mas representações construídas repletas de significados e de relações de poder. 10 Sendo assim esses papéis sociais confiados aos homens e às mulheres não se constituem em meros desdobramentos de suas respectivas condições biológicas, pois feminino e o masculino não são noções naturais, universais e abstratas, que designam os sexos. Em suma, incorporação do gênero, como categoria de análise na historiografia, tem o interesse de destacar as diferenças sexuais, a partir do reconhecimento de que a 7 SCOTT, Joan W. Prefácio a gender and politics of history. IN Cadernos Pagu desacordos, desamores e diferenças.(3). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1994, p.25. 8 Scott, Joan . Gênero:uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. Porto Alegre, v.16, n.2, jul/dez.1990, p.5. Apud. ARCHANJO, Lea R. Ser mulher na década de 50, representações sociais veiculas em jornais. In:TRINDADE, Etelvina M.C e MARTINS, Ana Paula V.(org). Mulheres na história: Paraná- Séculos 19 e 20. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. Departamento de história, 1997. 9 MACHADO, Lia Z. Gênero um novo paradigma? : Cadernos Pagu Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, p. 107. 10 POSSAS, Lídia M. Vianna. Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado.In: GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si e escrita da história.Rio de Janeiro: FGV, 2004,p.265. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: 4 EDUFOP, 2007. realidade histórica é social e culturalmente constituída. 11 O gênero permitiu sexualizar as experiências humanas, esclareceu pontos da dimensão sexual, que constitui a subjetividade e interfere nas práticas cotidianas. Além disso, o que ele trouxe para a história a possibilidade de se perceber o quanto às diferenças sexuais são construções históricas e culturalmente determinadas, o que possibilitou a desnaturalização de representações e conceitos. O estudo da história de gênero abre novas possibilidades de abordagens a partir da introdução e novos conceitos e novas fontes, o que diferencia o da história das mulheres. Os estudos que priorizam o gênero não substituem a história das mulheres, tal como esclarece Rago, a categoria gênero atende à necessidade de ampliação de nosso vocabulário para darmos conta da multiplicidade das dimensões constitutivas das práticas sociais e individuais. 12 Pode-se afirmar que o gênero possui seu espaço dentro da historiografia, em face da insuficiência dos corpos teóricos existentes para explicar a persistência da desigualdade entre mulheres e homens13. Maria Izilda Matos atenta para o fato de que o gênero procura dialogar com outras categorias históricas já existentes, por isso sua inserção na história social, política ocorre com muito mais eficiência, se comparada com a história das mulheres. Nesse sentido Lia Zanotta concluiu que a metodologia da desconstrução de gênero será capaz de superar alguns dos impasses característicos dos “Estudos das Mulheres”: 14 Alguns apontamentos sobre o desacordo Tilly, Varikas e Scott Pode-se afirmar que Joan Scott é uma das historiadoras pioneiras, no que se refere à iniciativa de revelar a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos do gênero, buscando a utilização de formulações teóricas, que possam ser mais eficazes para a produção historiográfica. O uso descritivo faz com que o gênero perca a sua peculiaridade diante do estudo referente às mulheres, pois fica desprovido de força de análise para debater e até mesmo transformar os paradigmas históricos existentes. Assim a produção fruto desse uso descritivo, ainda que possua uma alta qualidade no desvendamento das questões relativas às mulheres, permanece marginal em relação ao 11 MATOS, Maria Izilda S. Estudos de Gênero: percursos e possibilidades na historiografia contemporânea. In: Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, p.70. 12 RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. IN: Cadernos Pagu Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998,p.93. 13 MATOS, Maria Izilda S.,op.cit., p.68. 14 MACHADO, Lia Z.,op.cit.,p.108 Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: 5 EDUFOP, 2007. conjunto da disciplina. Assim, Scott evidencia o que considera como sendo os limites das abordagens descritivas, que não são capazes de questionar os conceitos dominantes pertencentes à disciplina histórica, ou pelo menos, não os questionam de modo a contestar seu poder, para assim transforma-los. Ainda sobre essa questão, Scott destaca que o uso descritivo do gênero, insistindo em temáticas que enfatizam a família e a sexualidade, por exemplo, transmite a idéia de não existe espaço para a aplicação do gênero em temas como a guerra, a política, o trabalho, dentre outros. Na verdade as relações de gêneros permeiam todas as instâncias que são objetos da história. É justamente dentro dessa questão do uso descritivo do Gênero que ocorre um embate entre Joan Scott, Louise Tilly e Eleni Varikas. Como esclarece Rachel Soihet, esse debate demonstra a pluralidade das concepções acerca das questões de gênero.15Ao atentar para a necessidade de se superar o uso descritivo do gênero, Scott acredita que tal fenômeno não possa ocorrer com eficiência no campo da história social. Segundo Scott é preciso utilizar uma “epistemologia mais radical”, que pode ser encontrada no âmbito do pós-estruturalismo, em especial nos trabalhos de Michel Foucault e Jacques Derrida. A historiadora verifica a necessidade de se abandonar o caráter fixo a oposição existente entre feminino e masculino, submetendo tais conceitos a uma historicização e "desconstrução" semelhantes às propostas de Jacques Derrida. As constatações efetivadas por Scott, contrárias a História social e a respeito da marginalização das experiências femininas, bem como a sua avaliação do gênero, em sua forma descritiva, como um subproduto de determinados enfoques históricos, não encontram ressonância nas palavras de Tilly e Varikas. Diferentemente de Scott elas questionam se as epistemologias situadas no âmbito do pós-estruturalismo possuem o poder de construir tanto uma visão não determinista da história, quanto uma visão das mulheres como sujeitos da história. Impasses e limitações da Categoria Gênero A categoria gênero oferece alguns problemas que devem ser apresentados e debatidos. Os historiadores que optam por adotar uma perspectiva de gênero precisam estar cientes a respeito dessas limitações, para contorná-las. Tal como aponta Maria 15 Sobre essa questão do debate cf. VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly- Scott. In Cadernos Pagu desacordos, desamores e diferenças.(3). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1994,pp.63-84. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: 6 EDUFOP, 2007. Izilda Matos, alguns problemas de definição, fontes, método e explicação persistem, e entre eles está à diversidade que envolve a própria categoria gênero. 16 Ao averiguar a produção historiografia brasileira, pode-se constatar que ainda são grandes os desafios. É notável a predominância dos estudos que enfatizam o feminino em detrimento do masculino. Além disso, ainda são poucos os estudos que se dedicam a discutir questões relativas à homossexualidade e a Transsexualidade. Ainda sobre essa questão, Claudia de Lima Costa considera que o gênero colocou um problema a mais para a história das mulheres, principalmente para o feminismo. Se antes era preciso somente investigar as experiências femininas, agora é preciso apontar também para a experiência masculina, na medida em que o enfoque de gênero deve se preocupar com a relação estabelecida entre o feminino e o masculino. Para ela, o gênero ficava, por assim dizer, entre o homem e a mulher, e não nas relações de poder que estruturam sistemas de desigualdade e opressão.17 Costa parece especialmente preocupada com os estudos acerca das masculinidades, pois considera que muitos deles fogem ao olhar crítico feminista. Avalia que antes de se preocupar em desenvolver abordagens sobre o masculino, é preciso que os historiadores de gênero aprimorem os estudos a respeito dos aspectos femininos. Ela conclui que no final dos anos 90 o gênero estava se convertendo em masculinidade. Essa é uma afirmação um pouco apressada, na medida em que os estudos sobre os aspectos relativos feminino são muito mais numerosos que aqueles que se dedicam ao masculino. Vale ressaltar a necessidade de se desenvolver pesquisas que abarcam o masculino, pois os homens ainda não tiveram suas experiências sócio-culturais totalmente contempladas. Assim, cabe enfatizar que o gênero concerne tanto aos homens como às mulheres, ainda que muitos trabalhos utilizem essa categoria erroneamente, para se referir às mulheres. Além dessa questão, é preciso voltar à outra problemática já enunciada por Scott: o uso descritivo do gênero, que resulta no seu distanciamento das conjunturas políticas, sociais e econômicas. Ainda é muito complicado para alguns historiadores, abandonar o uso descritivo do gênero, adotando uma postura mais analítica, que seja capaz de relacionar os avanços obtidos pela utilização dessa categoria aos 16 MATOS, Maria Izilda S., op.cit.,p.70. COSTA, Cláudia de L. O Tráfico do Gênero. In: Cadernos Pagu Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998,p.131. 17 Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007. 7 acontecimentos mais conjunturais, estabelecendo articulações mais amplas com o restante da história. Por fim, deve-se mencionar a questão da semântica enfatizada por Maria Lygia de Moraes. A palavra gênero deriva do termo em inglês “gender”,substantivo que designa a condição física e/ou social do masculino e do feminino. Diferentemente, a palavra gênero, em português, é um substantivo masculino que designa uma classe que se divide em outras, que são chamadas espécies. Existe, portanto, uma dificuldade semântica que confunde o leitor médio e que obriga, na verdade, a uma constante necessidade em definir o que seja gênero, sempre que utilizamos tal categoria em português.18 Uma dificuldade semelhante pode ser verificada quando se traduz “gender” para a língua francesa. Estudos de Gênero na Historiografia Brasileira O uso do conceito gênero se tornou uma constante no campo intelectual brasileiro, a partir da década de 80. Sociólogos, antropólogos, psicanalistas, historiadores, dentre outros profissionais, adotaram o uso do gênero em função da nova metodologia da análise que ele fundou, estabelecendo uma ruptura radical entre sexo biológico e gênero social; privilegiando as relações de gênero sob qualquer categoria em especial (homem, mulher, masculino, feminino); proporcionando o entendimento de que a construção do gênero é social e não natural ou intrínseca ao sexo biológico. Dentro dessa perspectiva de expansão, a categoria gênero começou a penetrar na historiografia brasileira em meados da década de 80. Nesse sentido, uma iniciativa importante se destaca: a criação do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu. Tudo começou com a construção de um grupo de estudo em gênero que contava com a participação de Adriana Piscitelli, Elisabeth Lobo, Mariza Corrêa e Margareth Rago. A realização de um seminário intitulado “Uma questão de Gênero” reuniu intelectuais de diversas áreas de conhecimento, todos comprometidos com a questão do gênero. Após a efervescência dos debates, algumas dessas intelectuais decidiram criar na Universidade de Campinas (UNICAMP) o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu. Tal centro de estudos se caracteriza pela implantação de debates, seminários e publicações, que tem por objetivo discutir a feminilidade e a masculinidade. 18 MORAES, Maria Lygia Q. Usos e limites da categoria gênero. In: Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, p.111. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: 8 EDUFOP, 2007. Nesse contexto, os estudos no campo das mulheres e das relações de gênero se ampliaram na década de 90, não só em São Paulo, mas também em outras regiões do país. Mattos enfatiza que esse crescimento possibilitou a diversificação dos temas e das abordagens. Tais estudos buscaram analisar a questão da violência numa perspectiva histórica, aprofundar as investigações sobre imaginário feminino, diversificar a documentação, utilizando criativamente a música, a literatura e os cronistas, a imprensa, o cinema e a mídia.19 Essa historiadora afirma que a categoria gênero foi bem aceita e empregada pela historiografia brasileira, realizando desnaturalização das identidades sexuais e postulando a dimensão relacional entre o masculino e o feminino. Historiadoras como Margareth Rago e Rachel Soihet, parecem compartilhar dessa mesma impressão a respeito do desenvolvimento da categoria gênero na produção brasileira, destacando os seus próprios trabalhos e os das suas companheiras nessa tentativa de abarcar as relações de gênero sob diferentes enfoques e épocas. No entanto, alguns apontamentos esboçados por Andréa Lisly revelam como os debates internacionais sobre História das Mulheres e o gênero incidiram na historiografia brasileira, demonstrando uma percepção um pouco diferente da identificada acima. Para ela, o primeiro ponto a ser discutido se refere à adoção de concepções essencialistas sobre a mulher, o que a faz acreditar que talvez uma parte de nossa historiografia sobre as relações de gênero mantenha a idéia de signos atemporais e universais, compartilhados por todas as mulheres. O segundo ponto vincula o tema do gênero e das mulheres à história social. Por último, ela considera que não são muitos os estudos brasileiros que contaram com as contribuições trazidas pela introdução da categoria gênero, concentrando-se mais no campo das mulheres. Embora suas considerações sejam bastante pessimistas em relação à utilização do gênero no Brasil, uma vez que ele está presente em alguns trabalhos bem conceituados, sua análise possui pontos interessantes, tal como a presença quase que constante da história social em trabalhos de gênero. Lisly não é a única historiadora a apontar as deficiências da introdução da categoria gênero no Brasil. Adriana Piscitelli declarou que a situação atual dos estudos de gênero no Brasil é preocupante e o que mais a perturba é o fato de os estudos de 19 MATOS, Maria Izilda S. Por uma história da mulher. Bauru, SP: EDUSC, Coleção Essência, 2000, p.17. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007. 9 gênero serem pressionados e empobrecidos por fatos que lhe são internos e externos.20 Tais fatores consistem no que ela chama de esvaziamento específico da categoria gênero e na explosão dos estudos sobre masculinidade, que se concentram nas experiências dos homens, dificultado a percepção em termos de gênero. Diante de todas essas questões, é preciso questionar como a historiografia brasileira vai trabalhar com categoria gênero nos próximos anos. Será que os trabalhos serão capazes de aglutinar as descobertas realizadas através do gênero com as questões sociais, políticas e econômicos, tal como deseja Scott? A feminilidade continuará a se sobrepor sobre a masculinidade no estudo de gênero? Em que medida a historiografia brasileira poderá contribuir para o fortalecimento e do desenvolvimento da aplicação do gênero enquanto uma categoria analítica? Bibliografia: ARCHANJO, Lea R. Ser mulher na década de 50, representações sociais veiculas em jornais. In:TRINDADE, Etelvina M.C e MARTINS, Ana Paula V.(org). Mulheres na história: Paraná- Séculos 19 e 20. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. Departamento de história, 1997. COSTA, Cláudia de L. O Tráfico do Gênero. IN: Cadernos Pagu Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998,pp.127-140. MACHADO, Lia Z. Gênero um novo paradigma? : Cadernos Pagu Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, pp.107-125 MATOS, Maria Izilda S. Estudos de Gênero: percursos e possibilidades na historiografia contemporânea. IN: Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, pp.67-75. ----------------------------------- Por uma história da mulher. Bauru, SP: EDUSC, Coleção Essência, 2000. MORAES, Maria Lygia Q. Usos e limites da categoria gênero. IN: Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, pp.99-105. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história;tradução Viviane Ribeiro. Bauru, SP:EDUSC, 2005. PISCITELLI, Adriana. Gênero em perspectiva. In: Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, pp.141-155. POSSAS, Lídia M. Vianna. Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado.In: GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si e escrita da história.Rio de Janeiro: FGV, 2004. 20 Cf. PISCITELLI, Adriana. Gênero em perspectiva. In: Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, pp.148-155. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: 10 EDUFOP, 2007. RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. IN: Cadernos Pagu Cadernos Pagu trajetórias do gênero, masculinidades.(11). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1998, pp.89-98 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (Tradução de). Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Avila. Recife, SOS Corpo, 1991. ---------------- SCOTT, Joan W. Prefácio a gender and politics of history. IN Cadernos Pagu desacordos, desamores e diferenças.(3). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1994, pp.11-27. ----------------. "História das Mulheres", IN: Burke, Peter (org.), A Escrita da História Novas Perspectivas, S. Paulo, UNESP, 1992. SCOTT, Joan, TILLY, Louise e VARIKAS, Eleni. “Debate” IN: Cadernos Pagu desacordos, desamores e diferenças (3). Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, 1994, pp.11-84. VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo TillyScott. IN Cadernos Pagu desacordos, desamores e diferenças.(3). Campinas, Núcleo de Estudos de História de Gênero/UNICAMP, 1994,pp.63-84. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007. 11