LEGALIZAÇÃO DO ABORTO: UM ESPAÇO PARA UMA ÉTICA DO FEMININO EM
SUBJETIVAÇÃO.1
Paulo Roberto da Costa Ferreira
[email protected]
Universidade Regional do Cariri - URCA
O trabalho o qual agora vos apresento fora inicialmente publicado com o título:
Subjetividade da mulher e biopoder nos anais do I Seminário Nacional de Gêneros e Práticas
Culturais em João Pessoa na Paraíba (FERREIRA, 2007). A proposta inicialmente concebida para
este trabalho fora a de abordar o problema da legalização do aborto em sua relação com o biopoder,
conceito este esboçado por Michel Foucault, No entanto, não se fará aqui, portanto, uma
demonstração esmiuçada daquilo que fundamenta tal relação: Assim sendo, nos interessará apenas
abordar de que forma este conceito exemplifica uma representação do feminino.
O problema de definir critérios sobre que condições deveriam efetuar a interrupção ou não
de uma vida, é o que trata qualquer discussão ou prática acerca do aborto. A racionalidade de tipo
legislativa assegura o direito à vida, este direito na sua realização concreta é contextual, seu valor
reveste-se de possibilidades múltiplas; sua legalidade não é um dado universal, há sociedades e
culturas que não o reconhecem como legítimo e, até mesmo, em nossa sociedade sua legalidade não
é assegurada integralmente. Vê-se, a partir daí, que a questão é bastante intricada, a vida, seu valor,
não é que propomos aqui.
O que, realmente, propomos é um deslocamento do foco de nossa atenção para o sujeito que
se situa no centro de toda problemática que envolve o aborto: a mulher, seu agir e, principalmente,
sua ética. O que permite Tiburi (2007) definir ética nestes termos: “A ética, neste caso, é o campo
não do poder como manipulação, mas do poder como potência de transformação.” Como também,
as representações orientadas por práticas discursivas, das quais a lei que estabelece critérios restritos
para a prática do aborto é uma delas, tendem a circunscrever um espaço social bem delimitado na
constituição das mulheres como sujeitos de ação. Como podemos observar no seguinte artigo:
Art. 124. - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. (Código Penal Brasil, 2008)
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Este trabalho fora orientado pela profª. Drª. Cláudia Rejane Granjeiro – (URCA)
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“20 anos de Constituição. Parabéns! Por quê?”
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Considerando esse novo enfoque vê-se logo que o problema apresenta implicações mais
concretas, mais relacionais, que, propriamente, o de saber onde tem início a vida, o seu valor, o seu
direito inalienável, etc.
Toda mobilização da sociedade brasileira em discutir estes assuntos que envolvem,
primeiramente, as mulheres como sujeitos, são os ecos de uma progressiva luta histórica, cujo início
se deu no século XIX, pelo reconhecimento dos direito das mulheres, sua participação ativa como
parte da sociedade, o direito de se organizarem politicamente, enfim, direito por uma vida pública
para não serem mais restringidas ao ambiente doméstico. Tiburi (2007) comenta: “As mulheres
fazem parte deste mundo pela forma da exceção: pertencem à pólis enquanto – reclusas em seus
lares, impedidas da vida política – não podem participar dela”.
O que as mulheres reclamavam era o direito de tomar parte nas decisões que envolviam toda
a sociedade, na qual elas se encontravam. Reclamavam para si o direito à igualdade promulgada por
essa mesma sociedade dita democrática que as excluíam das decisões políticas. Esta tomada de
consciência era reprovada por uma moral que apresentava o auto-sacrificio como sinônimo de
“virtude feminina”. Gilligan comenta:
Contrariando a acusação de egoísmo, o pecado principal na escala da virtude
feminina que tende para um ideal de perfeita devoção e abnegação não só perante
Deus, mas também perante os homens, estas pioneiras proponentes dos direitos das
mulheres equiparavam auto-sacrifício a escravatura e afirmavam que o
desenvolvimento da mulher, tal como o do homem, serviria para promover o bem
geral. (GILLIGAN, 1997, p.202)
Estas lutas carregavam um sentido: a necessidade de assumir responsabilidades, de
assumirem um maior controle sobre suas vidas, de exercerem a liberdade e de atuarem, de forma
legítima, na vida pública. Tudo isso deve ser entendido como decorrente dos acontecimentos
históricos, que percorreram os séculos XVIII, XIX, XX, nos quais as mulheres se constituíram
como força de trabalho.
Mas cabe, sobretudo, pensarmos o efeito que decorre dessas experiências de lutas, dessa voz
feminina que rompe o silêncio que lhe fora imputado, para nos fazer deslocar os espaços bem
constituídos, nos quais costumávamos ver o seu pronunciamento; espaços, que, para a sociedade,
constituía sua posição “natural”; local, onde, jamais se pensaria vê-lo ultrapassado. Contudo, vemos
esse espaço se romper, ou melhor, multiplicar-se; não obstante toda reação coercitiva e degradante a
qual são submetidas as mulheres.
O espaço doméstico tornou-se um espaço onde se controla e se testa a subjetividade
feminina e a constitui como prática de auto-sacrifício. Neste contexto, responsabilidades equivaliam
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a uma atividade de dedicação aos outros, e o que se diferisse disso, tomando uma direção voltada
para si, era o suficiente para a mulher ser acusada de “egoísta”. Gilligan nos diz:
Assim a questão do auto-desenvolvimento das mulheres continua a levantar o
espectro do egoísmo, o receio de que a liberdade para as mulheres conduza ao
abandono das responsabilidades nas relações. (GILLIGAN, 1997, p.203)
Houve épocas e culturas para as quais a feminilidade, caracterizada pelo seu aspecto de
maternidade era superestimada devida à relação desta com a fertilidade. Hoje, a realidade atual de
nossa sociedade se confirma, obstinadamente, o contrário, a mulher pode rechaçar o signo de
maternidade. Na sociedade de patriarcado, como a nossa, tal situação gera um desconforto,
provocado pelo deslocamento daquele espaço habitual que se costumava colocar a mulher, na
categoria lógica desta racionalidade; o espaço, privado ao qual, comumente, se associa a
fecundidade do corpo feminino, que pela sua naturalidade, os seus limites se nos apresenta
nitidamente demarcados. Tiburi (2007) “O papel da mulher como procriadora foi definido usando
um fator natural elevado à vigência cultural”.
Todos os mitos que atravessam o sujeito feminino derivam do signo de maternidade.
De sorte que, quando observamos que no decorrer de lutas históricas pelos direitos de legitimidade
de acesso à vida pública, a qual tem sua permanência em nossos dias, cujo signo de maternidade é
confrontado e reavaliado sob uma nova ótica, esta é uma perspectiva que causa temor, para a qual
se exerce uma resistência que encontra sua força em todas as instituições históricas de poder. Então,
como pensar, neste momento, a relação disto com a biopolítica? Justamente quando ela decide sobre
a ocupação da vida nos diversos territórios, a função que deve exercer, o valor social que se lhe
atribui, etc. Márcia Tiburi (2007) faz a seguinte declaração: “A biopolítica é a decisão sobre o
direito dos corpos e o direito à ocupação do espaço público sustentada sobre a decisão quanto ao
corpo da mulher”.
A moral feminina, pautada no signo de maternidade, torna-se moral maternal; moral que tem
sua razão de ser na atenção e dedicação, permanente, para com os outros. Responsabilidade e
preocupação com os outros por um lado, e o auto-desenvolvimento e a relação para consigo por
outro lado, constituem o conflito moral central para as mulheres, na sua formação como sujeitos de
moral, como também no exercício de sua conduta moral.
Gilligan nos afirma:
[...] é precisamente este dilema – o conflito entre compaixão e autonomia,
entre virtude e poder – que a voz feminina procura resolver, no seu esforço de
reinvidicação do eu e na procura de uma solução para o problema moral, de tal
forma que ninguém seja magoado. (GILLIGAN, 1997, p.115)
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Vê-se, aqui, que não se trata de uma questão de opção, mas exatamente de conciliação.
Trata-se de pôr em harmonia sua feminilidade e seu auto-desenvolvimento. Obviamente, que a
feminilidade pode ultrapassar o lugar-comum representado pelo signo de maternidade, este não é
necessariamente uma condição atávica, isto nos remete a seguinte observação: Tiburi (2007) “a
‘natureza feminina’ dada na maternidade como se a cultura não fosse capaz de questiona-la e
administrar sua vigência”.
Com efeito, esta forma de subjetivação do feminino não se efetiva sem possibilidade de
resistência; isto nos leva a pensar sobre a ética entendida como uma reflexão sobre o agir que
envolve a própria existência, isto é, como se conduzir, governar-se a si mesmo. Toda essa reflexão
fez surgir o que Foucault chamou de “técnicas de si”, para entender observemos a citação abaixo:
O fio condutor que parece ser o mais útil, nesse caso, é constituído por aquilo que
poderia se chamar de “técnicas de si”, isto é, os procedimentos, que, sem dúvida,
existem em toda civilização, pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar
sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isso
graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si.
(FOUCAULT, 1997, p. 109)
Esta reflexão, que não está dissociada da moral, mas que se faz no interior dela mesma, tem
o sentido de constituir sujeitos de moral no exercício de uma ética; logo, percebemos que um
imperativo legal o qual criminaliza a prática do aborto acarretando desconforto para as mulheres,
pois as estigmatizam; impede, também, qualquer reflexão sobre o agir, a construção da
subjetividade numa possível ética. Tiburi (2007) declara: “Hoje o aborto, correto ou não, continua
sendo um poder de decisão das mulheres sobre seu próprio corpo. Ele significa a opção de não
parir. De escapar ao mito da maternidade. Ele é uma fissura no poder patriarcal que mistifica a
maternidade”.
Talvez este trabalho não tenha oferecido soluções que pudéssemos chamar de “fáceis”, as
quais resolveriam de modo satisfatório um problema tão tenso e emaranhado de relações de poder.
Contudo, qual foi exatamente o objetivo do presente trabalho? Não foi o de questionar certas
relações lógicas de representação do feminino? Não será as imagens constituídas por tais
representações “lógicas” o primeiro impedimento à realização de uma ética, como também ao
deslocamento desses espaços de subjetivação pré-fixados?
Se pudermos pensar como tais representações se definiram historicamente no espaço
público, orientadas por práticas de governo precisas ligadas as mais diversas instituições de poder,
dessa forma, acreditamos ter atingidos o nosso objetivo.
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Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel. Subjetividade e verdade. In: ___ Resumos dos Cursos do Collège de
France. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.109-115.
FERREIRA, P. R. C. . subjetividade da mulher e biopoder. In: I seminário de gêneros e práticas
culturais, 2007, joão pessoa. i seminário de gêneros e práticas culturais: desafios históricos e
saberes interdisciplinares, 2007.
GILLIGAN, Carol. Conceitos do Eu e da Moralidade. In: ___ Teoria Psicológica e
Desenvolvimento da Mulher. Tradução de Natércia Rocha. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997. p.105-167.
______ Os Direitos das Mulheres e os seus Juízos Morais. In: ___ Teoria Psicológica e
Desenvolvimento da Mulher. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
TIBURI, Marcia. Aborto e Biopolítica – Questão de Mais Valia Moral. Disponível em:
<www.marciatiburi.com.br>. 29 jul. 2007.
CÓDIGO PENAL BRASIL. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/. 25 abr. 2008.
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