XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
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A LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dania Monteiro Vieira Costa
UFES
RESUMO
O texto é parte de uma dissertação de mestrado que resultou do interesse pela
investigação sobre o trabalho realizado com a linguagem oral em uma instituição de
Ensino Infantil. Trata-se de um estudo de caso realizado no ano de 2006 em uma
instituição de Ensino Infantil do Sistema Municipal de Vitória, ES com crianças de 2 a
6 anos de idade. Fundamenta-se na abordagem bakhtiniana de linguagem que postulam
que as interações verbais são, ao mesmo tempo, constitutivas dos sujeitos e da
linguagem. A partir de dados coletados por meio de observação participante em salas de
aula, entrevistas com os sujeitos, gravações em audiovisual e fotografias, seleciona os
eventos nos quais as interações verbais foram mais evidentes. Destaca um evento no
qual as interações verbais que eram “motivadas” pela leitura de textos da literatura
infantil na roda de conversa. Para análise, toma por base os pressupostos teóricos da
perspectiva bakhtiniana de linguagem e também de autores brasileiros que
compartilham essa perspectiva. Evidencia que a conversação didática e a aferição das
respostas própria do discurso tipo IRA (Interrogação, Resposta, Avaliação) realizadas
pela professora após a leitura de um clássico da literatura infantil pouco contribuíram
para que as crianças se enunciassem ou se tornassem sujeitos da sua fala. Defende que o
trabalho pedagógico que tem como foco leitura como processo de construção de
sentidos deve ter a criança como participante ativa da interação verbal.
Palavras-chave: criança; leitura; interação verbal.
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A LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
O presente texto é parte de nossa dissertação de mestrado que resultou do interesse pela
investigação sobre o trabalho realizado com a linguagem oral em uma instituição de
Ensino Infantil. Trata-se de um estudo de caso realizado no ano de 2006 em uma
instituição de Ensino Infantil do Sistema Municipal de Vitória, ES com crianças de 2 a
6 anos de idade. Fundamenta-se na abordagem bakhtiniana de linguagem que postula
que as interações verbais são, ao mesmo tempo, constitutivas dos sujeitos e da
linguagem. A partir de dados coletados por meio de observação participante em salas de
aula, entrevistas com os sujeitos, gravações em audiovisual e fotografias, selecionamos
os eventos nos quais as interações verbais foram mais evidentes. Buscando dialogar
com a realidade observada por meio de dois tipos de situações: as rodas de conversa e
as brincadeiras infantis. Neste texto, destacaremos as interações verbais que eram
“motivadas” pela leitura de textos da literatura infantil nas rodas de conversas. Para
análise dessas situações, toma por base os pressupostos teóricos da perspectiva
bakhtiniana de linguagem e também de autores brasileiros que compartilham essa
perspectiva.
a) Roda de Conversa 1 – História de João e Maria
Para análise do evento observado, construímos um percurso analítico que começa pela
descrição das condições em que foram realizadas as rodas, para, em seguida, analisar as
interações/conversas sobre os textos lidos que se desenvolveram durante o evento
focalizado.
O evento observado ocorreu na sala da Turma 2. A estagiária Jaq, que ajudava a
professora, leu a história João e Maria. Ao mesmo tempo em que lia, mostrava as
ilustrações para as crianças. Às vezes, parava a leitura para fazer perguntas. Após o
término da leitura, a Professora 3 continuou o trabalho com a aplicação de um
questionário oral a respeito da história. Assim, a análise do evento está centrada no
momento em que a Professora 3 assume o trabalho no lugar da estagiária.
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Ela inicia o trabalho na roda dizendo às crianças que gostaria de ver “[...] quem
lembrava a historinha que a tia Jaq leu”. As crianças disseram o nome da história para a
professora. Em seguida, ela começou a fazer as perguntas. As perguntas elaboradas pela
professora foram construídas a partir das ilustrações e do texto do livro. Dessa forma,
ela retomou toda a história por meio das perguntas. Apresentaremos um recorte do
evento observado em que a Professora 3 apresenta a ilustração na qual João ouve seus
pais conversando sobre deixá-los na floresta para não vê-los morrer de fome. Como
João ouviu a conversa de seus pais, teve a ideia de pegar pedras para sinalizar o
caminho e, assim, não se perder na floresta.
•
Como João e Maria retornam para casa
T36 Prof. 3: pegou pedrinhas... pra jogar onde? pra ir pra floresta... pra não ficar perdido... pra jogar no...
T37Jos: na folha...
T38 Prof.: no ca... não... quando a gente anda... lembra...que vocês até fizeram de pedrinhas... colocar
no... ca...
T39 Rua: rua...
T40 Prof. 3: não... começa com ca... que a gente anda pra chegar na floresta... no ca-mi...
T41 Crianças: cami... ((repetem o que a professora diz))
T42 Prof. 3: no caminho... gente... quando a gente anda...
No turno 36, a professora pergunta às crianças onde João jogou as pedrinhas. A criança
Jos (T37) responde que João jogou as pedrinhas na folha. Considerando a ilustração do
livro apresentada pela professora, podemos dizer que essa era uma resposta possível,
pois havia folhas de árvores caídas pelo chão da floresta por onde os meninos da
história caminharam. Entretanto a professora não ouve a resposta da criança e, no turno
38, tenta levar as crianças a se lembrarem da palavra dizendo a sua primeira sílaba.
Ainda faz referência a uma atividade (colagem de pedrinhas na rua desenhada em um
cartaz) realizada com elas a partir da música “Se essa rua fosse minha”. A criança Rua,
no turno 39, diz à professora que João jogou as pedrinhas na rua. Certamente, a pista
dada pela professora possibilitou essa resposta. Apesar disso, ela refuta a resposta com
um não e continua indicando novamente a sílaba inicial da palavra que deseja obter
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como resposta. A Professora segue com os questionamentos indagando às crianças
quem ficou alegre após João e Maria terem conseguido voltar para casa:
T56 Prof. 3: [...] mas quem ficou alegre? quando João e Maria chegou?
T57 Rua: João... JOÃO...
[
T58 Mano: o pai...
[
T59 Prof. 3: o pai::: e a?
[
T60 Mano: mãe:::
De acordo com essa transcrição, a criança Rua responde, no turno 57, que João ficou
alegre, ao chegar à sua casa. No entanto, ela não obtém resposta da professora que
alterna o turno para outras crianças que enunciam respostas que atendem à sua
expectativa. No turno 58, a aluna Man diz que quem ficou alegre foi o pai dos meninos.
Essa era a resposta desejada pela professora e, para demonstrar a sua concordância com
a resposta, no turno 59, ela repete a resposta da criança e completa com uma nova
pergunta “e a?”. Imediatamente, no turno 60, Man completa dizendo que a mãe também
ficou feliz.
Desse modo, assim como evidenciado no trecho, a professora tinha uma resposta para a
pergunta formulada. Por isso, mesmo que a resposta de Rua seja adequada, porque,
provavelmente, João também ficou muito alegre por conseguir chegar à sua casa, após
ficar com sua irmã perdido na floresta, a professora não discute a resposta. Vemos, nos
dois exemplos, que a professora esperava para as perguntas, respostas únicas que
consistiam na repetição do escrito no texto. Dessa forma, a produção de sentidos é
cerceada e o diálogo com o texto não se instaura. A professora segue a atividade na roda
dizendo às crianças que os pais de João e Maria conversaram, novamente, sobre o fato
de não terem comida para darem aos seus filhos. Vejamos, na transcrição, como se deu
essa interação verbal:
•
João e Maria são, novamente, levados para a floresta
T63 Prof. 3: [...] TEmos que levar João e Maria para a::: floresta... João ouviu novamente... só que a casa
estava trancada... ((faz uma pergunta ao Rua que não estava prestando atenção)) não estava... Rua?
T64 Rua: tava...
T65 Prof. 3: ele não conseguiu pegar a pedrinha... o quê? que ele pegou? pra voltar pra floresta?
T66 Crianças: pedri-nhas...
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T67 Prof. 3: não... depois... o quê::? que ele pegou o quê? que a gente come de manhã com manteiga?
pegou o quê?
T68 Crianças: pão:::
No turno 63, a professora fala para as crianças que os pais de João e Maria não tinham
comida para dar a seus filhos e, pela segunda vez, combinam deixar as crianças na
floresta. Nesse contexto, ela relembra, no turno 65, que, desta vez, João não conseguiu
pegar pedrinhas e pergunta o que ele levou, para não se perder na floresta. Como as
crianças não respondiam, ela dirige a interação verbal, a fim de obter delas a resposta
que considerava adequada (T68). Nos turnos 69 a 82, transcritos em seguida, temos uma
sucessão de perguntas realizadas pela professora, visando à obtenção da resposta
esperada que se efetiva no turno 82. Vejamos:
•
O passarinho come as migalhas de pão que João jogou para marcar o
caminho e os irmãos ficam perdidos na floresta
T69 Prof. 3: pão:: aí... ele foi jogando... isso... ele foi jogando no caminho... quem foi que comeu? ((pede
a Pau que mostre a ilustração para os colegas)) mostra... mostra aqui... tá aqui... tá certo.. tá na página...
mostra aqui... o passarinho pra eles... quem foi que comeu os pães? os pedacinhos de pães? quem foi que
comeu? mostra pra tia... mostra aí Pau... tá na sua mão...
T70 Jose: que o menino comeu tudo... comeu tudo...
T71 Prof. 3: quem comeu?
T72 Jose: o menino...
T73 Prof. 3: não::: foi uma outra pessoa que comeu... quem comeu?
T74 Rua:a bru-XA...
T75 Prof. 3: não... o pão foi a bruxa que comeu?
Cria: não...
T76 Prof. 3: aqui Maria no seu... mostra a ele... deixa eu ver? ah...cadê Maria? você achou... eu não achei
não...
T77 Esta: aqui tem também... oh...
T78 Prof. 3: quem foi que comeu os pedacinhos de pães que ele jogou no caminho? Olha... quem comeu?
que bichinho é esse aqui? Manoele... ah::: tem aqui::: quem foi que comeu da segunda vez?
T79 Mano: as meninas e meninos...
T80 Prof. 3: não isso aqui é as meninas e os... ((olha a ilustração)) é::: isso aqui é João e Maria... mas da
segunda vez quem comeu? os pe-dacinhos de pão que ele colocou na estradinha pra voltar pra casa?
((mostra a ilustração)) que animalzinho é esse? que voa?
T81 Eman: o passarinho...
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T82 Prof. 3: ah o passarinho... comeu todas as migalhas de pão... todos os pedacinhos ... não foi? aí...
João e Maria... ficaram o quê? Rua... vem cá...
Nesse contexto, a professora queria saber quem havia comido o pão que João tinha
jogado no caminho. As crianças não conseguem responder, pois ela fornece uma
indicação inadequada. No turno 72, Jos diz que foi o menino. Já no turno 74, a criança
Rua, diante da intervenção da professora, diz que foi a bruxa. Assim, após a professora
mostrar a ilustração com o passarinho, a aluna Ema (T82) diz que foi ele quem comeu o
pão.
Posteriormente, a Professora 3 pergunta como João e Maria ficaram, quando
descobriram que o passarinho havia comido as migalhas de pão que marcavam o
caminho de volta. A transcrição a seguir detalha como ocorreu o diálogo entre a
professora e as crianças sobre essa questão:
T82 Prof. 3: ah o passarinho... comeu todas as migalhas de pão... todos os pedacinhos ... não foi? aí...
João e Maria... ficaram o quê? Rua... vem cá...
[
T83 Rua: ficou triste...
[
T84 Prof. 3: ficou per::
[
T85 Rua: dido...
[
T86 Prof. 3: dido... conseguiu voltar para casa?
T87 Cria: não
T88 Prof. 3: não::: vem aqui... Rua... ((a professora chama a atenção da criança Rua que estava inquieto e
se afastava constantemente da roda))
A transcrição acima nos mostra que, após a professora perguntar como João e Maria
ficaram na floresta (T82), a criança Rua responde, no turno 84, que João ficou triste. A
professora não dá atenção à resposta dessa criança e conduz as crianças para a resposta
que desejava ouvir (T85). No entanto podemos considerar que, quando Rua diz que
João ficou triste, sua resposta não é inadequada, porque, ao descobrir que estava
perdida, a personagem da história, certamente, poderia ficar triste. Mais uma vez,
entretanto, a professora insiste em concordar com respostas que estão visíveis no texto
escrito. Ela continua dirigindo a interação verbal, perguntando às crianças o que João e
Maria encontraram na floresta:
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T94 Prof. 3: Mano::: o que eles viram na floresta? quando estava escuro? Ruan... o que que eles viram na
floresta quando estavam perdidos?
T95 Man: chocolate...
T96 Prof. 3: viram uma ca::: começa com ca... viram uma ca...
[
T97 Cria: viram uma::: ca:::
T98 Prof. 3: casa... cheia de que?
A menina Man responde, no turno 95, que João e Maria encontraram chocolate na
floresta. No turno seguinte, a professora indica que não aceita a resposta, ao continuar a
interação verbal, induzindo-as a dizerem a palavra casa. No entanto, se a casa era feita
de chocolate, João e Maria também encontraram chocolate. Finalizando, a Professora 3
pergunta o que foi que a bruxa fez com João e Maria, como podemos ver no trecho que
segue:
T104 Prof.3: [...] o que que foi a bruxa fez com João e Maria?
T105 Rua: NADA... NADA... ((fala alto))
A criança Rua demonstra, no turno 105, a sua insatisfação com o fato de suas respostas
não serem levadas em consideração pela professora. Assim, percebendo que não era
possível se enunciar, perde o interesse e demonstra sua chateação. Logo, quando a
professora pergunta o que foi que a bruxa fez com João e Maria? Ele responde de forma
enfática: NADA, NADA.
Feita a apresentação de alguns momentos da interação verbal que se estabeleceu nessa
roda de conversa, teceremos alguns comentários. Inicialmente, é importante salientar
que as crianças vivenciaram dificuldades na elaboração sentidos para o texto que
instaurou a conversa, a História de João e Maria. Conforme vimos, a Professora 3 faz
uso do discurso denominado triádico (IRA), pois faz constantes reformulações das
questões até que as crianças apresentem a resposta desejada por ela. O discurso tipo
IRA é uma forma interativa e de discurso que se estabelece entre professor/criança. Ele
é “[...] um padrão discursivo muito comum em sala de aula, que se caracteriza pela
seguinte seqüência: o professor inicia o intercâmbio, normalmente a partir de uma
pergunta (I), a criança responde (R), o professor faz um comentário avaliativo (A)”
(MONTEIRO; TEIXEIRA, 2003, p.1).
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A perspectiva bakhtiniana de linguagem que orienta este estudo compreende que a
realidade da linguagem se baseia numa estrutura socioideológica. Portanto não podemos
perder de vista que o discurso tipo IRA utilizado pela Professora 3 é um fenômeno
socioideológico, pois
A verdadeira substância da língua não é constituída por sistema abstrato de
formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações (BAKHTIN,
2004, p. 123).
Assim, a interação verbal que ocorreu entre a professora e as crianças não é, segundo a
perspectiva de Bakhtin (2004), meramente um fenômeno lingüístico, nem simplesmente
um fenômeno psicofisiológico, mas, principalmente, um fenômeno social. Para Bakhtin
(2004, p. 114), “[...] a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e
o estilo ocasionais da enunciação”. Nesse sentido, o fenômeno social explica o fato de a
professora se dirigir às crianças usando o discurso triádico (IRA)? Que relações sociais
são travadas na escola entre professor e criança que resultam nesse tipo de interação
verbal?
Bakhtin (2004) faz alguns apontamentos sobre essas questões. Para ele, “[...] na
realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que
procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém” (BAKHTIN, 2004, p.
113). Orlandi (1996, p. 26) concorda com Bakhtin afirmando que, “[...] quando se diz
algo, alguém o diz de algum lugar da sociedade para outro alguém também de algum
lugar da sociedade e isso faz parte da significação”. Assim, no contexto do evento
apresentado, a palavra procede da professora que ocupa o lugar de quem ensina e sua
palavra se dirige às crianças que ocupam o lugar de quem aprende.
De acordo com Orlandi (1996, p. 28), “[...] a escola se institui por regulamentos, por
máximas que aparecem como válidas para a ação, como modelos. Ela atua pelo
prestígio e pelo seu discurso, o DP (Discurso Pedagógico)”. Nesse contexto, conforme
observamos, o discurso triádico tipo IRA utilizado pela professora pouco contribuía
para que as crianças construíssem sentidos sobre o texto, pois as respostas aceitas por
ela já estavam estabelecidas previamente. Essa forma de conduta é resultado do “[...]
autoritarismo que está incorporado nas relações sociais. Está na escola, está no seu
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discurso” (ORLANDI, 1996, p. 32) e, também, traduzem as visões que se tem de
leitura. Desse modo, temos então a utilização de um DP tipicamente autoritário, porque,
segundo Orlandi (1996), nesse tipo de discurso, ocorre a contenção da polissemia, o
agente do discurso se coloca como único, ocultando o referente por meio do dizer, fato
que ocorre no evento que apresentamos. Nesse sentido, a forma como a professora
direciona a interação verbal está intimamente relacionada com a sua concepção de
linguagem, questão que discutiremos no final da análise da roda de conversa.
Geraldi (2003, p. 153-154), comentando a constituição do sujeito por meio dos
processos interacionais da linguagem, defende que, ao nos formamos como “[...]
locutores a cada turno de conversação, estamos investindo nos atos lingüísticos que
praticamos, no sentido de que a imagem que se tem de si próprio é uma identidade que a
interação constrói e, ao mesmo tempo, ameaça”. Assim, na roda de conversa que
apresentamos, que oportunidades as crianças tiveram de se constituírem como locutores
ou de se construírem como sujeitos? Que imagens de si próprias foram construídas? Ao
não comentar as respostas das crianças, a professora pouco contribui para que elas se
constituam como locutores e construam imagens positivas sobre elas próprias.
Conforme argumentamos, a produção de sentidos era contida pela professora por meio
da ausência de respostas às colocações das crianças. Ela seguia o trabalho de levar a
identificação dos sentidos contidos no texto escrito. É importante acentuarmos que
consideramos a leitura como uma atividade de constituição/produção de sentidos. Nessa
direção, o que se espera é que os sujeitos leitores tenham uma atitude ativa responsiva
no processo de leitura, o que implica concordar ou não com as ideias expressas no texto,
completá-las e adaptá-las, muitas vezes, ao próprio vocabulário utilizado pelo leitor no
seu cotidiano. Se a atividade de leitura é produção de sentido baseada na interação
autor-texto-leitor, na situação observada, estabelece-se, nessa relação, um terceiro
elemento – a professora – que conduz o processo de leitura para sentidos que ela própria
construiu. Por isso, é necessário discutir a maneira como a professora concebe a leitura
que, conforme vimos, aponta a compreensão de que o texto escrito é a única fonte de
sentidos. Assim, segundo essa concepção, a leitura se dá por meio da decodificação do
texto escrito.
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Desse modo, segundo Pfeiffer (2003), para essa perspectiva, o que dá legitimidade à
leitura é a escrita, resultando, assim, num apagamento da oralidade em detrimento da
escrita, sendo que esta última é “[...] entendida como legitimadora e evidenciadora dos
fatos – é porque está escrito que é. As coisas se tornam enquanto tais através da escrita”
(PFEIFFER, 2003, p. 91). Essa questão apontada pela autora é extremamente relevante
para este estudo, pois, conforme vimos, as respostas das crianças só eram legitimadas
ou aceitas pela professora, quando reproduziam os sentidos presentes no texto escrito.
Assim, para a professora, a leitura correta dos textos é aquela que apresenta os sentidos
que nele estão demarcados.
Nessa perspectiva, como fica, então, o espaço para a construção de sentidos pelas
crianças? Vimos, na análise dessa roda, o cerceamento da produção de sentidos pelas
crianças, quando a professora, na condução do processo de leitura, as direciona para o
reconhecimento dos sentidos presentes no texto considerados como os mais adequados à
sua compreensão. Assim, o foco da leitura é o texto e a concepção de língua que
fundamenta essa perspectiva é aquela que concebe a língua como um código, uma
estrutura ou um sistema, no qual os sentidos estão presentes na “suposta” linearidade do
texto, cabendo ao leitor reconhecer esses sentidos. Fato este que resulta num
apagamento do sujeito-leitor e, conseqüentemente, de sua história, de suas leituras e de
seu conhecimento de mundo.
Apesar de a professora controlar a produção de sentidos, as crianças constroem os seus
próprios sentidos sobre o texto, conforme apresentado nos turnos 39, 57, 82 e 95.
Assim, observamos que essas relações não são mecânicas e deterministas, pois as
crianças nos mostraram, nesse evento, que constroem sentidos, apesar da censura que
sofrem durante o processo de leitura, porque o “[...] sujeito-leitor se constrói em outros
lugares fora da escola e isso causa efeitos dentro dos muros escolares, assim como o
inverso também é verdadeiro” (PFEIFFER, 2003, p. 91).
Outra questão que deve ser mencionada é o fato de considerarmos que a proposta de
realizar leituras na roda de conversa pode ser uma atividade extremamente interessante
para as crianças e a professora, se essa última reconhecer ou conhecer a necessidade de
subsidiar essa prática com outra concepção de leitura, uma concepção que compreenda
a leitura numa perspectiva dialógica, que vislumbre a leitura como o encontro entre
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autor-texto-leitor numa relação interlocutiva, cujos sentidos são construídos por meio
desse encontro. Dito de outra forma por Geraldi (2006, p. 91),
[...] o autor, instância discursiva de que emana o texto, se mostra e se dilui nas
leituras de seu texto: deu-lhe uma significação, imaginou seus interlocutores,
mas não domina sozinho o processo de leitura de seu leitor, pois este, por sua
vez, reconstrói o texto na sua leitura, atribuído-lhe a sua (do leitor)
significação.
O encontro a que Geraldi (2006) faz referência deve ocorrer entre o leitor e o
texto/autor. O professor, nesse contexto, deve se portar como mediador dessa relação e,
também, como um leitor, é claro, mas que faz uma das leituras possíveis e não a leitura
considerada mais “correta” ou mais “adequada”. Assim, consideramos que a
compreensão da leitura, numa perspectiva discursiva, possibilitaria a efetiva
participação das crianças na roda de conversa, dando-lhes condições de construírem
seus sentidos sobre o texto. Nesse contexto, a professora entenderia as respostas das
crianças como produção de sentidos a partir do texto e não como respostas erradas ou
inadequadas, mas como interlocução com o texto que lhes foi apresentado. Dessa forma,
defendemos que a leitura deve ser compreendida numa perspectiva discursiva, pois é
produção/construção de sentidos pelo leitor e autor que estão situados num contexto
sócio-histórico e, por isso, ideologicamente constituídos. Para Orlandi (1996, p. 37-38),
[...] a leitura é o momento crítico da constituição do texto, o momento
privilegiado do processo de interação verbal, uma vez que é nele que se
desencadeia o processo de significação. No momento em que se realiza o
processo de leitura, se configura o espaço da discursividade em que se instaura
um modo de significação específico.
O texto só se constitui, segundo essa concepção, no processo de interação verbal, no
qual, efetivamente, há o desenvolvimento da significação ou da produção de sentidos,
no qual a produção do leitor é “[...] marcada pela experiência do outro, autor, tal como
este, na produção do texto que se oferece à leitura, se marcou pelos leitores que, sempre,
qualquer texto demanda. Se assim não fosse não seria interlocução” (GERALDI, 2003,
p. 166-167). E o professor, como mediador no processo de leitura, pode possibilitar a
interlocução, na medida em que compreende a leitura numa perspectiva dialógica,
possibilitando, assim, que as crianças falem sobre suas impressões a respeito do texto,
sobre suas dúvidas, seus questionamentos entre outros, podendo se constituir como
sujeito que diz, que produz significações. Um exemplo disso é o que faz o menino Rua,
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quando fala que João e Maria ficaram tristes. Sabemos que as pessoas que, por algum
motivo, ficam perdidas, sentem tristeza, preocupação. Infelizmente, não houve, por
parte da professora, uma valorização da fala do menino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalmente, insistimos que a conversação didática e a aferição das respostas própria do
discurso tipo IRA realizadas pela professora pouco contribuíram para que as crianças se
enunciassem ou se tornassem sujeitos da sua fala. As suas contribuições, em
determinados momentos, eram extremamente relevantes, entretanto, no contexto da
interação verbal, que se estabelecia, conforme apresentamos nos exemplos citados, eram
cerceadas pela professora. Desse modo, não é por acaso que a criança Rua, no turno
105, se rebela respondendo que a bruxa não fez nada com as crianças, demonstrando
certa “ironia” e irritação, pois não adianta elaborar respostas, já que suas palavras não
são ouvidas. A visão da linguagem pautada no dialogismo bakhtiniano postula a
linguagem como
[...] um acontecimento social, fruto de alguma atividade de comunicação social
(trabalho) realizada na forma de uma comunicação verbal determinada, isto é,
da interação verbal de um ou mais enunciados construídos num processo
dialógico de alternância dos sujeitos envolvidos, e não na concepção estática
(SOUZA, 2002, p. 77).
Acreditamos, portanto, que essa concepção de linguagem transforma o trabalho
pedagógico que tem como foco a linguagem numa perspectiva unívoca, estática e
mecânica para o estabelecimento de uma prática que veja a criança como participante
ativa da interação verbal, cujas falas representam o diálogo que ela constitui para os
textos.
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Referências
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.
GERALDI, João Wanderlei. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.
GRISOLIA, Dulcy. Joao e Maria. Ilustrações de Avelino Guedes. São Paulo: FTD,
2000.
MONTEIRO, M. A. A.; TEIXEIRA, O. P. B. O discurso do professor: uma proposta
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Encontro Internacional Linguagem, Cultura e Cognição – reflexões para o ensino (16-18
julho). Faculdade de Educação / UFMG, Belo Horizonte, 2003.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso.
São Paulo: Editora Pontes, 1996.
PFEIFFER, Claudia Castellanos. O leitor no contexto escolar. In: ORLANDI, Eni
Puccinelli. A leitura e os leitores. Campinas, SP: Pontes, 2003. p. 87-137.
SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto. São Paulo:
Humanitas, 2002.
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