Contributo para uma leitura da obra Xeografías de Francisco Castro: corpo da geografia ou
geografia do corpo?
1. Sobre o autor
Francisco Castro Veloso é um dos escritores sonantes da literatura galega do
século XXI. Nascido em Vigo, em 1966, desde cedo despertou para as artes e para a
escrita. É autor de uma vasta e profícua obra literária narrativa, poética e infanto-juvenil.
Para além disso, dedica-se à redação de crónicas em vários meios de comunicação social
galegos, onde publica regularmente textos de opinião sobre a atualidade do mundo e, em
particular, da Galiza.
A qualidade literária e a mestria com que produz os seus textos têm sido bastante
reconhecidas nos últimos anos. Com efeito, em 2005, foi-lhe atribuído o Prémio Rosa
Reboredo de Narrativa da Associação Cultural Galega de Cornellà pela obra Venres
desesperado (look casual friday). Nesse mesmo ano, recebeu ainda os prémios Frei Martín
Sarmiento por Un bosque cheo de faias e o Prémio Modesto R. Figueiredo de narrativas
curtas por Ningún fascista morreu inxustamente. Viria a receber novamente o Prémio Frei
Martín Sarmiento em 2009 pela obra Ceo dos afogados e, mais recentemente, em 2011,
pela obra infanto-juvenil Chamádeme Simbad.
O ano de 2011 marca também o regresso às publicações de romances com In Vino
Veritas.
Do conjunto da sua vasta obra destaca-se, neste estudo, Xeografías, narrativa
erótica publicada em 2001. Trata-se da compilação de textos que refletem sobre os temas
do erotismo e do sexo na literatura ou, por outras palavras, um tratado sobre o quão difícil
ainda é entender o papel do sexo nas relações entre pessoas e até que ponto ele pode ser
encarado com naturalidade.
Atribuí-lhe a designação de “tratado” dado a estrutura da obra e sua divisão em
Teoría do Puritanismo, Fetichismos Simbólicos, O Pracer de Derrubar Ídolos, A Erótica do
Poder e A Perversión, onde vigora um pseudo quadro moral em que o interdito está à
espera de ser transgredido e em que o valor do sexo se encontra dependente da
intensidade (pensemos, por exemplo, no par amoroso de “Viva Zapata”: Nuria e Xavier) ou
da forma subtil como essa transgressão é realizada, cujo expoente máximo podemos
encontrar na figura de Don Xulían Cabaleiro, professor catedrático de geografia da
Universidade de Santiago de Compostela, por quem a dona da pensão nutre singular
respeito e descura, em absoluto, o comportamento sodomita do professor com os jovens
Santiago Sánchez e Isabel Castelo.
Considera Fernando Pinto do Amaral que “ao longo do século XX […] a
dessacralização do amor ajudou a vulgarizar o sexo que tem vindo a ser considerado
como uma fonte de prazer mais ou menos aperfeiçoável ou coadjuvada pelas relações
afectivas entre as pessoas, mas sem a carga melodramática que antes lhe estava
associada”.1
Para a compreensão deste fenómeno devemos, pois, fazer uma (re)leitura da
importância das palavras que estabelecem uma ligação entre o prazer e o interdito, na qual
o sexo se mostra, por um lado, irrepresentável e, por outro, inevitavelmente alheio ao
pudor.
1
Amaral, “O Prazer e o Dever”, in: Revista LER nº22, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 63.
1
2. Dimensão léxica do erotismo e erotismo do léxico
Em literatura raramente se utiliza o termo “rutura” com a tradição literária anterior
como algo assente e definitivo, uma vez que se trata de um saber que proporciona
inovação, mas também profunda ligação com o passado. Francisco Castro revela na obra
em estudo alguns tópicos comuns que perpassam desde as origens à atualidade. Refirome em concreto ao léxico utilizado. Atente-se, por exemplo, na seguinte passagem do
relato “Toy Story”:
Obrigaríaa a facerme unha felación salvaxe e pistoleira. Eu quixera ter unha pistola.
E a punta da pistola a polla que non teño. E ela había chupar. E cando me correse
soltaríalle un tiro nesa cariña que sempre tem de lado, como se fose feliz, a moi
2
porcona para encherlle a boca toda enteira de plomo-seme.
Ainda que o estilo utilizado seja o narrativo, o autor mostra-se conhecedor de toda a
tradição literária que lhe é anterior, desde os cancioneiros medievais, passando pelas histórias
tradicionais até Castelao e essa herança não está apenas contida no léxico utilizado; está também
na génese de personagens que seleciona para a construção da obra, da qual falaremos adiante.
No que diz respeito às passagens eróticas da obra, cuja citação previamente apresentada
pode ser mero indicador, salienta-se ainda a presença da nudez ou os fetichismos que dela
advêm e daí, por exemplo, as referências às meias ou à saia que acompanham as descrições
intensas da realização sexual dos personagens. Atente-se no excerto que se segue:
Espiuse. Ficou só cuns calecetíns – coma min – grosos, deses deportivos, e brancos que levaba
cos tenis, tamén brancos. Dous tolos en calcetíns. Montou riba do meu pene, que estaba xa listo
para facer preguntas. […] Abriu as pernas. Entrei. Pousei a miña cabeza trala súa, perdéndome na
almofada e no meu proprio ritmo. Notei o abrazo perfecto que coa súa feminidade roxa, coma o
corazón dunha vieira, me daba. Pareceume incluso, e aí case morrín, que un pouco de mim
3
quedaba fóra, descansando para meirandes ímpetos cando fose preciso.”
Ainda neste excerto importa destacar a presença da vieira, a concha, que desde sempre
perdurou no imaginário da literatura galega como representação velada do órgão genital feminino,
bem como a alusão à morte, linguagem metafórica do momento do orgasmo, do êxtase
puramente físico. Aliás, na literatura francesa utiliza-se frequentemente a expressão la petite-mort
como representação desse momento.
Considera George Bataille na obra L’ Érotisme que o domínio do erotismo é domínio da
violência e da violação, entendida como transgressão e daí a obscenidade que advém da
presença da nudez: “ La nudité c’est un état de communication. […] Les corps s’ ouvrent à la
continuité par ces conduits secrets qui nous donnent le sentiment de l’obscénité.”4
Associada à nudez, encontram-se as passagens eróticas realizadas pelo personagem do
Professor Catedrático de Geografia.
2.1.
Podem os velhos apaixonar-se?
Trata-se de uma questão sempre discutível e quase sempre distante da ideia platónica do
amor. Às relações mantidas pelos mais velhos, fortemente representadas na literatura sempre em
2
Castro, Xeografías, Santiago de Compostela, Ed. Positivas, 2001, p. 44.
Idem., pp. 29, 31.
4
Bataille, L’Erotisme, Paris, Minuit, 1957, p.24.
3
2
correlação com jovens, isto é, a ideia de transgressão na representação destas figuras, escassas
vezes é entre pessoas da mesma idade, ou seja, é quase sempre a representação do velho viúvo
rico que procura a donzela pobre para casar, satisfazer desejos sexuais e constituir nova família e
quase sempre o discurso literário em torno destes personagens faz-se acompanhar da ironia e de
um pseudo puritanismo.
Na obra em estudo, Don Xulían Cabaleiro poderia incluir-se neste retrato, contudo, longe
das aspirações matrimoniais. Este velho transgride toda a moral que vai contra os preceitos
religiosos de Compostela e, por essa razão, a sua caracterização encontra-se no que poderia ser
denominado o primeiro tratado da obra, Teoría do Puritanismo, designação irónica, como é
conveniente neste tipo de discurso narrativo. Este personagem expõe tudo o que de mais
perverso, sádico e obsceno pode ter a realização do erotismo e recupera ideias sempre
incipientes na literatura clássica como a homossexualidade, a sodomia e a violação. Atente-se nas
seguintes passagens:
Aínda reverberaban na súa memoria as palabras da vez primeira, sei que che gusta, es un
mariconazo dos grandes, ben se ve como miras para Andrés, pero ese está namorado da
quenteconas esa da Isabel, vouche dar eu o que ti precisas, maricón, guapiño de cara, que es un
5
guapiño de cara, non che da vergonza, ademais, sendo fillo dun capitán…
Non serei eu quen che leve o virgo, porcona. Á filla de dona Bernarda non a desvirgarei eu. E
6
facíallo por detrás, rompéndoa, de cada vez mais violento.
É interessante ver a forma como Francisco Castro concebe este personagem, que dará
posteriormente lugar ao fio condutor de toda a obra, isto porque não estando sempre presente,
muitos dos personagens que lhe seguem ou são descendentes diretos ou podem representar
fases da sua juventude e entrada na vida adulta.
Don Xulían e os seus apetites sexuais têm como pano de fundo a cidade de Santiago de
Compostela, expoente máximo do catolicismo peninsular e da comum alma galaico-portuguesa,
marcada pela tradição celta e pelos cultos, por um lado, religiosos e, por outro, esotéricos. Talvez
tenha sido esta a combinação que levou o autor a atribuir o título da obra ou quiçá a mais evidente
seja a relação de muitos personagens com a geografia, enquanto saber científico e académico.
3. Geografia do corpo ou corpo da geografia?
Vimos anteriormente como grande parte da obra está centrada na relação dos personagens
com a geografia. No entanto, desde os primórdios da literatura que o termo geografia pode
representar o corpo humano. Na literatura erótica, este vocábulo tem pois um valor polissémico e
essa referencialidade semântica pode desencadear a função do erotismo, ou seja, os elementos
da narração associados ao desejo, ao prazer e ao sexo coincidem com o aspeto funcional e
semântico que contribui para a possível caracterização do texto como sendo erótico. Por outras
palavras, a comunicação sexual e verbal estabelece um universo suficiente em si mesmo e
inclusive dá um carácter cíclico ao texto. Vejamos o excerto que se segue:
5
6
Castro, Op. Cit., p. 18.
Idem., p. 21.
3
Gran fillo da puta o seu director da tese. Seica lle vén de família, que seu pai xa fora
catedrático, segundo conta a lenda, de Xeografía había milleiros de anos, no xurásico
inferior da Universidade de Santiago. Contáronlle de todo daquel fulano. O seu fillo, lexítimo
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debedor de tan fedorenta fama, non quería quedar atrás.
Mas a geografia do corpo atravessará toda a obra e em contornos pouco explorados como
a necrolatria associada ao desejo sexual:
Daquela, Edgar admirou aquela beleza en calma, sentado á beira da mesa na que o corpo
sen vida de Yolanda xacía com placidez; agora xa non importaba nada, todos os problemas
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remataran para ela. Non a tocou. Observábaa con agarimo sincero.
Nesta geografia, cabe a descoberta do prazer (forçado ou deliberado), a expressão do
desejo através de elementos associados ao fetichismo (por exemplo, as bocas a que se refere o
protagonista do último relato da obra) e o gozo do sexo (umas vezes imaginado pelos leitores e
outras descrito pelos narradores da obra).
Conclusão
Inscrita no panorama literário galego dos primórdios do século XXI, Xeografías forma um
conjunto de relatos eróticos que poderiam estar enquadrados em poderosos tratados dedicados
ao erotismo e ao sexo.
Francisco Castro denota um conhecimento apurado das grandes questões associadas aos
dois temas e expõe, sem o pudor dos românticos e bem ao gosto dos cancioneiros medievais e
populares, temas recorrentes das literaturas clássicas, ainda que veladas, nomeadamente a
homossexualidade, a sodomia e a violação.
O amor carnal é, nesta obra, experiência de gozo e de prazer, transgressão e crítica à
falsa moralidade.
Diz-nos António Barahona que “Sexo e Literatura é o mesmo que dizer Seiva e Planta,
porque não há Sexo sem Literatura nem Literatura sem Sexo. O Sexo participa da Literatura
mesmo quando esta nada tem ou aparenta de erótico, porque, só o acto da escrita de per si,
implica uma espécie de ascese em que a sublimação da sexualidade latente adquire uma
importância fundamental.”9
7
Idem. Ibidem., p. 36.
Ibidem., pp. 72, 73.
9
Barahona, “Sexo Nu Livro”, in: Revista LER nº22, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 81.
8
4
Bibliografia
AA. VV., El Sexo en la Literatura, Huelva, Universidad de Huelva, 1997.
AMARAL, Fernando Pinto do, “O Prazer e o Dever”, Revista LER nº22, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1993.
BARAHONA, António, “Sexo Nu Livro”, Revista LER nº22, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993.
BATAILLE, Georges, L’Érotisme, Paris, Minuit, 1957.
CASTRO, Francisco, Xeografías, Santiago de Compostela, Edicións Positivas, 2001.
Trabalho realizado por:
Helena Lourenço nº 46158
UALG FCHS
LLC
2011-2012
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1 Contributo para uma leitura da obra Xeografías de Francisco Castro