Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos vinte
anos da Constituição Federal de 19881
Ingo Wolfgang Sarlet.
Doutor em Direito do Estado (Munique, 1997). Pós-Doutor em Direito pelo Instituto
Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (onde atua como
correspondente científico e representante brasileiro desde 2000) e pela Universidade
de Munique, tendo sido bolsista e pesquisador visitante pelo do Instituto e pelo DAAD
por vários períodos, entre 2001 e 2005. Pesquisador visitante junto ao Georgetown
Law Center (2004) e na Harvard Law School (2008). Professor Titular da Faculdade
de Direito e dos Programas de Pós-Graduação em Direito e em Ciências Criminais
(Mestrado e Doutorado) da PUCRS. Professor do Programa de Doutorado em Direitos
Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha).
Coordenador do Mestrado e Doutorado em Direito e do Centro de Pesquisas da
Faculdade de Direito da PUCRS, bem como do GEDF – Grupo de Estudos e
Pesquisas em Direitos Fundamentais (CNPq/PUCRS). Professor da Escola Superior
da Magistratura (AJURIS) e Juiz de Direito no RS.
1 – Considerações iniciais: contextualizando e delimitando o tema
Poder integrar um qualificado ciclo de debates que tem como um dos seus objetivos
avaliar, transcorridos praticamente vinte anos de sua promulgação, a “trajetória existencial”
da nossa Constituição Federal, identificando, dentre outros aspectos, se tal caminhada tem
sido marcada por mais sucessos do que derrotas, representa uma honra, mas, acima de tudo,
constitui um desafio, não apenas, mas particularmente para todos os que elegeram o estudo e
a prática do direito constitucional como preocupação central de sua atividade diária. Aliás, é
justamente esta (a evolução constitucional desde 1988) a temática a respeito da qual versa o
notável ensaio de Luís Roberto Barroso, que integra a presente coletânea. Neste contexto,
oportuna a manifestação de Paulo Ricardo Schier, ao apontar que a comemoração dos vinte
anos da nossa Constituição não deve restar limitada a uma exortação da qualidade e
substancial permanência (apesar das reformas) do texto constitucional, mas, acima de tudo,
resultar em reflexão sobre o seu atual sentido, englobando a constituição nos seus sentidos
formal e material, como projeto em permanente reconstrução2. Cientes da correção e
relevância de tal observação, é possível afirmar que, tanto no plano textual, quanto no que diz
com a vivência constitucional, os direitos fundamentais em geral - e os direitos sociais em
1
O presente texto constitui versão revista, atualizada e parcialmente reformulada de trabalho redigido
anteriormente sobre o tema, que, todavia, enfatizava, de um modo geral, o problema das resistências aos direitos
sociais, e que, além de remetido para publicação em coletâneas (Editoras Forense e Saraiva) versando sobre os
20 anos da Constituição Federal de 1988, foi objeto de veiculação na Revista do Instituto de Hermenêutica
Jurídica. 20 Anos de Constitucionalismo Democrático – E Agora? Porto Alegre-Belo Horizonte, 2008, p. 163206.
2
Cf. Paulo Ricardo Schier, “Constitucionalização e 20 anos da Constituição: reflexão sobre a exigência de
concurso público (entre a isonomia e segurança jurídica)”, capítulo I, publicado nesta coletânea.
particular – têm ocupado, tanto por ocasião das discussões travadas no âmbito do processo
Constituinte, quanto no próprio texto constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988 e
na evolução subseqüente, uma posição de destaque sem precedentes no contexto da história
constitucional brasileira e, em se lançando um olhar sobre o direito comparado, mesmo em
relação a outras ordens constitucionais, certamente não haverá de ser contestado seriamente.
Não apenas em termos quantitativos, ou seja, no que diz respeito ao número expressivo de
direitos sociais expressa e implicitamente consagrados pela Constituição, mas também em
termos qualitativos, considerando especialmente o regime jurídico-constitucional dos direitos
sociais, a Assembléia Constituinte de 1988 foi inequivocamente (para alguns em demasia!)
amiga dos direitos sociais, o que não significa, de acordo com a conhecida advertência de
Lenio Streck, que com o advento da nossa atual Constituição as promessas da modernidade
tenham sido efetivamente cumpridas entre nós 3.
Além disso, constata-se que passada uma (rápida) fase de maior ufanismo, não apenas
a constitucionalização de direitos sociais, mas uma série de outros aspectos ligados ao texto
resultante do embate no âmbito da Assembléia Constituinte, voltaram ou mesmo passaram a
ser objeto de acirrada crítica, inclusive no meio jurídico, o que, à evidência, não é em si um
dado necessariamente negativo, já que mesmo indispensável ao processo democráticodeliberativo, mas acabou, não raras vezes, assumindo dimensões preocupantes, especialmente
quando se tentou difundir a mensagem da ilegitimidade do processo constituinte (não que este
tenha sido isento de problemas), inclusive com o objetivo de, entre outras medidas, justificar a
revisão ampla do texto constitucional, acompanhada da exclusão até mesmo de uma série de
direitos fundamentais expressamente consagrados pelo Constituinte, como é o caso, v.g., dos
direitos dos trabalhadores.
De qualquer sorte, independentemente de tais discussões, que aqui são referidas
apenas em caráter ilustrativo e não constituem o objeto da nossa abordagem, certo é que,
especialmente no que diz com a constitucionalização de direitos e deveres em matéria social,
não são poucas as objeções registradas entre nós e no direito comparado, tanto é que, a
despeito da evolução constitucional contemporânea em matéria de direitos fundamentais e do
sistema internacional de tutela dos direitos humanos, diversas constituições seguem refratárias
à inserção de direitos sociais em seus textos. Com isto não se está a dizer – é bom enfatizar que os níveis de proteção social, concretizados pela via da legislação ordinária e das políticas
3
Cf. Lenio Luiz Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004,
especialmente p. 57 e ss., destacando, inclusive, a necessidade de promover a defesa das instituições da
modernidade que se revelam indispensáveis à instauração de um efetivo Estado Democrático (e Constitucional!)
de Direito.
públicas, não sejam em vários casos até mesmo mais altos do que em países onde a opção foi
pela constitucionalização dos direitos sociais, o que, por sua vez, acaba, para alguns, servido
de argumento adicional para justificar não apenas a desnecessidade e mesmo inconveniência
da inserção de direitos sociais nas constituições. Da mesma forma, segue acesa a controvérsia
na esfera doutrinária e jurisprudência, seja no que diz respeito à própria fundamentação e
legitimação dos direitos sociais, seja no que concerne ao seu conteúdo e regime jurídico.
Assim, resulta evidente que mesmo à vista da expressa previsão de direitos sociais no
catálogo constitucional dos direitos fundamentais, também entre nós tais temas têm sido
objeto de crescente e cada vez mais intenso (em termos quantitativos e qualitativos) debate.
Dentre os temas preferidos pela doutrina (e que acabam refletindo, com maior ou
menor intensidade, na esfera jurisprudencial, legislativa e administrativa) destacam-se,
notadamente em matéria dos assim chamados direitos sociais, tanto as teses que questionam a
própria constitucionalização de tais direitos sociais (sustentando até mesmo que, no todo ou
em parte, tais direitos sequer deveriam estar na Constituição!) quanto as vozes daqueles, que,
embora admitam a possibilidade de ter tais direitos previstos no texto constitucional, refutam
a sua condição de autênticos direitos fundamentais. Além disso, assume particular relevância
a controvérsia em torno do regime jurídico-constitucional dos direitos sociais, uma vez
reconhecida a sua condição de direitos fundamentais, o que, por sua vez, remete ao problema
de sua eficácia e, por conseguinte, de sua efetividade.
De outra parte, resulta evidente que a mera previsão de direitos sociais nos textos
constitucionais, ainda que acompanhada de outras providências, como a criação de um
sistema jurídico-constitucional de garantias institucionais, procedimentais, ou mesmo de outra
natureza, nunca foi o suficiente para, por si só, neutralizar as objeções da mais variada
natureza ou mesmo impedir um maior ou menor déficit de efetividade dos direitos sociais,
notadamente no que diz respeito aos padrões de bem-estar social e econômico vigentes. Saber
em que medida os direitos sociais, a despeito do regime jurídico que lhes foi atribuído pela
Constituição (em que pese a controvérsia sobre qual exatamente é este regime jurídico), de
fato representam mais do que manifestação de um constitucionalismo simbólico, já seria
matéria mais do que suficiente para ocupar uma monografia de envergadura, e, por certo, não
haveria como ser suficientemente discutido nos limites deste breve ensaio. Todavia, embora
não seja o nosso propósito discorrer sobre o constitucionalismo simbólico4, não há como
4
Sobre o tema v. os referenciais desenvolvimentos de Marcelo Neves, A Constitucionalização Simbólica, 2ª
ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. Enfocando a questão no plano dos direitos humanos e fundamentais, v.,
do mesmo autor, “A Força Simbólica dos Direitos Humanos”, in: Cláudio Pereira Souza Neto e Daniel
desconsiderar que o tema guarda íntima vinculação (também) com o problema das
resistências aos direitos sociais, seja no que diz com o uso meramente retórico do discurso dos
direitos, seja no que diz respeito à sua eficácia e efetividade.
Considerando que prescinde de maior esforço reflexivo a constatação de que o tema
ora abordado constitui uma fonte praticamente inesgotável de tópicos e problemas a serem
mapeados e analisados, desde logo há que frisar que não é nosso intento sequer buscar um
levantamento mais preciso dos diversos aspectos que dizem respeito ao conteúdo dos direitos
sociais e ao seu regime jurídico, nem mesmo no pertinente ao problema de sua eficácia
efetividade. Aliás, sequer em relação aos tópicos selecionados isto seria possível. O que nos
move, em primeiro plano, é a vontade de identificar alguns dos problemas centrais vinculados
à teoria e prática dos direitos sociais no âmbito do sistema constitucional pátrio, pinçando
alguns aspectos de maior relevo, notadamente em relação à sua eficácia e efetividade,
procedendo, em relação a cada uma delas, uma análise que, de algum modo, possa contribuir
para um balanço e desenvolvimento do debate em torno do tema. Certo é que ao fim destes
quase vinte anos, estamos em boas condições de realizar tal tarefa. Com efeito, a farta
produção científica surgida desde então, somada à trajetória da jurisprudência, mas também o
conjunto de políticas públicas criadas, a legislação infraconstitucional que regulamenta e
concretiza os projetos sociais e os próprios direitos sociais da Constituição, assim como os
inúmeros indicadores sociais e econômicos, revelam que material não nos falta para isso.
Assim, procedendo a uma seleção de aspectos a serem abordados, iniciaremos por
analisar alguns aspectos da discussão, cada vez mais intensa entre nós, a respeito da própria
condição dos direitos sociais como direitos fundamentais, já que, a despeito de assim terem
sido designados no texto constitucional, há quem siga – e fundado em razões respeitáveis contestando tal condição. Umbilicalmente ligada a este aspecto, visto que da afirmação da
fundamentalidade
dos
direitos
sociais
decorrem
também
certas
conseqüências,
designadamente no que concerne ao regime jurídico de tais direitos, situa-se a problemática
da eficácia e efetividade dos direitos fundamentais sociais, possivelmente um dos temas mais
debatidos na doutrina e jurisprudência constitucional brasileira nos dias atuais. Neste
contexto, abordaremos alguns pontos polêmicos vinculados à problemática do assim
designado “custo dos direitos” e da polêmica reserva do possível, especialmente no que diz
respeito às resistências em aceitar o controle dos atos legislativos e administrativos com base
nos direitos sociais e a possibilidade de fazer valer a sua condição de direitos subjetivos.
Sarmento (Coord.), Direitos Sociais, Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 417 e ss., doravante referido apenas como Direitos Sociais.
Outrossim, convém salientar, evitando que o leitor habitual venha a se sentir frustrado nas
suas expectativas, que estamos revisitando temas já tratados em trabalhos anteriores, de tal
sorte que, embora o novo contexto, a reestruturação do texto e uma significativa atualização
bibliográfica, em grande parte estamos a reafirmar e reproduzir produção intelectual anterior,
que, todavia, necessita de permanente reafirmação e reconstrução em função da difusão de um
expressivo número de novas e relevantes contribuições, agregando subsídios e outros olhares
ao debate, em parte mesmo veiculando críticas a serem levadas a sério, implicando, se não
uma correção de rumo, pelo menos o ônus de uma constante “testagem” do nosso próprio
trabalho. Por derradeiro, antes de investirmos, no próximo segmento, na discussão sobre a
fundamentalidade dos direitos sociais, há que agradecer aos ilustres amigos e colegas
CLÁUDIO PEREIRA SOUZA NETO, DANIEL SARMENTO e GUSTAVO BINENBOJM
pela acolhida deste texto na presente coletânea e pelo convite para o excepcional encontro de
Professores em Petrópolis, uma das experiências acadêmicas e pessoais mais gratificantes das
quais tive a ocasião de participar.
2 – Algumas notas em torno dos direitos sociais como direitos fundamentais na ordem
constitucional brasileira
Embora aparentemente estejamos diante de uma obviedade, o fato de existirem
segmentos da doutrina, ainda que bem intencionados e mesmo amparados em argumentos de
relevo, que estejam negando a condição de autênticos direitos fundamentais dos direitos
sociais (existe até quem negue a própria existência de direitos sociais5!) torna oportuna a
lembrança de que ao se tratar de direitos fundamentais na Constituição não há como abrir mão
de uma perspectiva dogmático-jurídica (mas não necessariamente formal-positivista) da
abordagem, reafirmando-se, de tal sorte, a necessidade de uma leitura constitucionalmente
adequada da própria fundamentação (inclusive filosófica) tanto da assim designada
fundamentalidade quanto do próprio conteúdo dos direitos sociais. De outra parte, é a nossa
Constituição (doravante citada como CF) e não outra - o que é bom sempre recordar! – que
nos servirá como referencial, inclusive quanto aos compromissos expressa e/ou
implicitamente firmados pelo Constituinte, seja no que diz com a aderência a determinadas
5
Cf., por exemplo, Fernando Atria, “Existem Direitos Sociais?” in: Cláudio Ari Mello (Coord.), Os Desafios
dos Direitos Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 09-46, destacando-se que não temos
como empreender aqui o debate com as teses esgrimidas pelo autor. Para uma crítica às objeções de Atria, v.,
especialmente, Carlos Bernal Pulido, “Fundamento, Conceito e Estrutura dos Direitos Sociais: uma crítica a
“Existem direitos sociais?” de Fernando Atria”, in: Direitos Sociais, p. 137 e ss.
concepções de Justiça, especialmente no que diz com a noção de justiça social (que foi
expressamente inserida como objetivo a ser alcançado no âmbito da ordem econômica da
Constituição, designadamente no seu artigo 170, “caput”6), seja no concernente a determinada
ordem de valores que, de acordo com concepção amplamente consagrada, encontra expressão
também e acima de tudo por meio dos princípios e dos direitos fundamentais7.
Uma primeira constatação que se impõe e que resulta já de um superficial exame do
texto constitucional, é a de que o Poder Constituinte de 1988 acabou por reconhecer, sob o
rótulo de direitos sociais, um conjunto heterogêneo e abrangente de direitos (fundamentais), o
que, sem que se deixe de admitir a existência de diversos problemas ligados a uma precária
técnica legislativa e sofrível sistematização (que, de resto, não constituem uma particularidade
do texto constitucional, considerando o universo legislativo brasileiro) acaba por gerar
conseqüências relevantes para a compreensão do que são, afinal de contas, os direitos sociais
como direitos fundamentais. Neste sentido, verifica-se, desde logo e na esteira do que já tem
sido afirmado há algum tempo entre nós, que também os direitos sociais (sendo, ou não, tidos
como fundamentais) abrangem tanto direitos prestacionais (positivos) quanto defensivos
(negativos), partindo-se aqui do critério da natureza da posição jurídico-subjetiva reconhecida
ao titular do direito, bem como da circunstância de que os direitos negativos (notadamente os
direitos de não-intervenção na liberdade pessoal e nos bens fundamentais tutelados pela
Constituição) apresentam uma dimensão “positiva” (já que sua efetivação reclama uma
atuação positiva do Estado e da sociedade) ao passo que os direitos a prestações (positivos)
fundamentam também posições subjetivas “negativas”, notadamente quando se cuida de sua
proteção contra ingerências indevidas por parte dos órgãos estatais, mas também por parte de
organizações sociais e de particulares8.
6
Sobre os princípios que informam a ordem econômica em geral v., entre nós, o já clássico contributo de Eros
Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 3ª ed., São Paulo:
Malheiros, 1997; No âmbito da literatura mais recente, v. Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e
Desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988, São Paulo: Malheiros, 2005.
7
A respeito deste tópico, v., por todos (no âmbito da doutrina estrangeira), Konrad Hesse, Grundzüge des
Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland (existe tradução para o português, publicada pela Editora
Sérgio Fabris, Porto Alegre), 20ª ed., Heidelberg: C. F. Muller, 1995, p. 133 e ss. Entre nós, além do nosso A
Eficácia dos Direitos Fundamentais, 9ªed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 158 e ss., onde
desenvolvemos de modo mais detido esta dimensão dos direitos fundamentais, à luz de farta doutrina
nacional e estrangeira, v. também, entre outros, especialmente Daniel Sarmento, “A Dimensão Objetiva dos
Direitos Fundamentais”, in: Ricardo Lobo Torres e Celso Albuquerque Mello (Org.). Arquivos de Direitos
Humanos, vol. IV. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 63-102 e, mais recentemente, Dimitri Dimoulis e
Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, São Paulo: RT, 2007, p. 116 e ss., assim como
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito
Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 255 e ss..
8
Sobre o ponto, inclusive para maior desenvolvimento do problema da classificação dos direitos
fundamentais, remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit., p. 176 e ss. Por último,
com destaque para a estrutura diferenciada dos direitos sociais como direitos a prestações, v. Virgílio Afonso
Que tais constatações não podem ter o condão de tornar obsoleta ou mesmo
equivocada a classificação dos direitos fundamentais em direitos de defesa e direitos a
prestações – muito embora assim tenha sido sustentado por alguns – afigura-se como
evidente. Com efeito, especialmente em se tendo presente a distinção entre texto (enunciado
semântico) constitucional e norma jurídica (resultado da interpretação do texto), de acordo
com o qual pode haver mais de uma norma contida em determinado texto, assim como
normas sem texto expresso que lhe corresponda diretamente9, sabe-se que a partir de um
determinado texto há como extrair uma norma (ou normas) que pode (ou não) reconhecer um
direito como fundamental e atribuir uma determinada posição jurídico-subjetiva (sem prejuízo
dos efeitos jurídicos já decorrentes da dimensão objetiva) à pessoa individual ou
coletivamente considerada, posição que poderá ter como objeto uma determinada prestação
(jurídica ou fática) ou uma proibição de intervenção10.
Se os direitos sociais a prestações (segundo Alexy, os direitos a prestações em sentido
estrito, no sentido de direitos subjetivos a prestações materiais vinculados aos deveres estatais
do Estado na condição de Estado Social de Direito11), na sua dimensão subjetiva, implicam
direitos subjetivos negativos, também há que destacar que a Constituição de 1988, pelo menos
9
10
11
da Silva, “O Judiciário e as Políticas Públicas: entre Transformação Social e Obstáculo à Realização dos
Direitos Sociais”, in: Direitos Sociais, p. 589 e ss.
Sobre o tema (distinção entre texto e norma e seu significado), no âmbito da doutrina nacional, indispensável,
dentre outros, Eros Roberto Grau, Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 19 e ss.(retomando aqui os desenvolvimentos efetuados na já citada obra sobre a ordem
econômica na constituição), afirmando, em apertada síntese, ser a norma produto da interpretação, não sendo
idêntica ao texto, mas neste se encontrando parcialmente contida, porém em estado potencial, bem como
Lenio Luiz Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito, 5ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, especialmente p. 310 e ss., em capítulo que
ostenta o significativo título “O caráter não-relativista da hermenêutica ou de como a afirmação ‘a norma é
(sempre) o produto da atribuição de sentido a um texto’ não pode significar que o intérprete esteja autorizado
a ‘dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, destacando que a distinção entre texto e norma não pode ser
compreendida como uma absoluta independência entre ambas as figuras e muito menos como uma
irrelevância do texto. Na mesma linha, v., ainda entre nós, o arguto magistério de Humberto Ávila, Teoria
dos Princípios, 6ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 30 e ss., apontando para o fato de que o intérprete
“utiliza como ponto de partida os textos normativos, que oferecem limites à construção de sentidos...” (p. 3334). Neste mesmo contexto, aliás, há que relembrar a conhecida – e correta - afirmação de Konrad Hesse,
Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20ª ed., Heidelberg: C.F. Müller, 1995,
especialmente p. 29 e ss. no sentido de que o texto constitucional atua como limite para o intérprete, aspecto
que, assim como os demais que lhe são conexos, aqui não estamos em condições de desenvolver.
Cfr. paradigmaticamente demonstrado por Robert Alexy Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main:
Suhrkamp 1994, p. 53 e ss (quando apresenta seu conceito de norma de direito fundamental) e, mais
adiantem, especialmente no ponto em que examina a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais como
direitos de defesa e direitos a prestações (op. cit., p. 159 e ss.)
Com efeito, para Robert Alexy, op. cit., p. 395 e ss., os direitos a prestações em sentido estrito (direitos
sociais) se distinguem dos direitos a prestações em sentido amplo, já que estes dizem com a atuação positiva
do Estado no cumprimento dos seus deveres de proteção, já decorrentes da sua condição de Estado
democrático de Direito e não propriamente como garante de padrões mínimos de justiça social, ao passo que
os direitos a prestações em sentido estrito (direitos sociais) dizem com direitos a algo (prestações fáticas)
decorrentes da atuação do Estado como Estado Social.
de acordo com seu texto, incluiu no seu rol de direitos sociais posições, que, a despeito de
uma correlata dimensão (ou função) positiva ou prestacional, assumem a feição de típicos
direitos de caráter negativo (defensivo), como dão conta, entre outros, os exemplos do direito
de greve, da liberdade de associação sindical, das proibições de discriminação entre os
trabalhadores (direitos especiais de igualdade).
A partir disso, ao se empreender uma tentativa de definição dos direitos sociais
adequada ao perfil constitucional brasileiro, percebe-se que é preciso respeitar a vontade
expressamente enunciada do Constituinte, no sentido de que o qualificativo de social não está
exclusivamente vinculado a uma atuação positiva do Estado na promoção e na garantia de
proteção e segurança social, como instrumento de compensação de desigualdades fáticas
manifestas e modo de assegurar um patamar pelo menos mínimo de condições para uma vida
digna (o que nos remete ao problema do conteúdo dos direitos sociais e de sua própria
fundamentalidade). Tal consideração se justifica pelo fato de que também são sociais (sendo
legítimo que assim seja considerado) direitos que asseguram e protegem um espaço de
liberdade ou mesmo dizem com a proteção de determinados bens jurídicos para determinados
segmentos da sociedade, em virtude justamente de sua maior vulnerabilidade em face do
poder estatal, mas acima de tudo social e econômico, como demonstram justamente os
direitos dos trabalhadores12, isto sem falar na tradição da vinculação dos direitos dos
trabalhadores à noção de direitos sociais, registrada em vários momentos da evolução do
reconhecimento jurídico, na esfera internacional e interna, dos direitos humanos e
fundamentais.
Tais ponderações, embora digam respeito ao universo abrangente e heterogêneo dos
direitos sociais, não respondem por si só a pergunta a respeito de sua fundamentalidade e
sobre o regime jurídico que a esta é inerente. Sem que se pretenda aqui arrolar as diversas
objeções encontradas no seio da doutrina, é preciso, desde logo, afastar qualquer leitura
reducionista, designadamente naquilo em que – equivocadamente – se afirma que sustentamos
uma concepção estritamente formal de direitos fundamentais13. Em primeiro lugar, afirmar
que são fundamentais todos direitos como tais (como direitos fundamentais!) expressamente
12
13
Para um maior desenvolvimento especialmente do conceito e classificação dos direitos fundamentais sociais,
v., além do nosso “Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988”, in: Ingo Wolfgang Sarlet
(Org), Direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel, Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999, p. 140 e ss., bem como alguns desenvolvimentos mais recentes no igualmente
nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais,p. 176 e ss.
Pelo menos esta a leitura da nossa obra, no nosso sentir manifestamente equivocada neste ponto, realizada
por Alceu Maurício Júnior, “Direitos Prestacionais, Concepções de Direitos Fundamentais e Modelos de
Estado”, in: Celso Albuquerque Mello e Ricardo Lobo Torres (Dir.), Arquivos de Direitos Humanos vol. 7,
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 4 e ss.
consagrados na Constituição não significa que não haja outros direitos fundamentais, até
mesmo pelo fato de que se deve levar a sério a já referida cláusula de abertura (na condição de
norma geral inclusiva14) contida no artigo 5°, § 2°, da Constituição Federal. Vale lembrar,
nesta mesma perspectiva, que sempre – mesmo antes da inclusão do polêmico § 3 ° no artigo
5° da Constituição – defendemos, acompanhando a melhor doutrina15, a hierarquia
constitucional e a fundamentalidade (neste caso “apenas” material, vez que não incorporados
ao texto constitucional) dos direitos humanos consagrados nos tratados internacionais
ratificados pelo Brasil. Que neste ponto ainda há resistências a serem superadas, resulta
evidente, visto que mesmo tendo abandonado – tardiamente - a tese da paridade entre a lei
ordinária e os tratados internacionais (mesmo daqueles versando sobre direitos humanos!), o
nosso Supremo Tribunal Federal segue outorgando aos direitos previstos nos tratados
internacionais hierarquia infraconstitucional (negando-lhes, portanto, a condição de
“verdadeiros” direitos fundamentais), embora já reconheça que tais tratados devam prevalecer
sobre qualquer norma infraconstitucional (legal) interna.
A sustentação da fundamentalidade de todos os direitos assim designados no texto
constitucional (que alcança todo o Título II e, portanto, os direitos sociais do artigo 6° e os
direitos dos trabalhadores), por sua vez, implica reconhecer pelo menos a presunção em favor
da fundamentalidade também material desses direitos e garantias, ainda que possamos ter, a
depender da orientação ideológica ou concepção filosófica professada, boas razões para
questionar tal fundamentalidade. Mesmo para os direitos do Título II (que, reitere-se, não
excluem outros, tanto fundamentais em sentido formal e material, quanto fundamentais em
sentido apenas material) a posição adotada não está dissociada de critérios de ordem material,
já que sem dúvida se cuida de posições que – independentemente de outras razões que possam
justificar a fundamentalidade no plano material e axiológico - já de partida receberam no
momento do pacto constitucional fundante a proteção e força normativa reforçada peculiar
dos direitos fundamentais pela relevância de tais bens jurídicos na perspectiva dos “pais” da
Constituição (o que, aliás, aponta para uma legitimação democrática, procedimental e
deliberativa, mas também substancial!16), decisão esta que não pode pura e simplesmente ser
14
15
16
Como bem reforça, reafirmando toda uma tradição doutrinária, Juarez Freitas. A Interpretação Sistemática
do Direito, 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005.
Aqui remetemos, dentre tantos, ao magistério de Flávia Piovesan, “Reforma do Judiciário e Direitos
Humanos”, in: André Ramos Tavares et al (Coord.), Reforma do Judiciário Analisada e Comentada. São
Paulo: Editora Método, 2005, p. 103-105, e, mais recentemente Valério de Oliveira Mazzuoli, “O novo §3o
do art. 5o da Constituição e sua Eficácia”, in: Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Estado do Rio
Grande do Sul, v. 32 no 98.
Discutindo, ainda que não exatamente sob este ângulo, a questão da fundamentação dos direitos sociais
como direitos fundamentais pelo prisma democrático (no caso, democrático-deliberativo) v., dentre outros,
desconsiderada pelos que (na condição de poderes constituídos!) devem, por estar diretamente
vinculados, assegurar a esses direitos fundamentais a sua máxima eficácia e efetividade.
Em síntese, firma-se aqui posição em torno da tese de que – pelo menos no âmbito do
sistema de direito constitucional positivo nacional – todos os direitos, tenham sido eles
expressa ou implicitamente positivados, estejam eles sediados no Título II da CF (dos direitos
e garantias fundamentais), estejam localizados em outras partes do texto constitucional ou nos
tratados internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil, são direitos
fundamentais17. Como corolário desta decisão em prol da fundamentalidade dos direitos
sociais na ordem constitucional brasileira, e por mais que se possa, e, até mesmo (a depender
das circunstâncias e a partir de uma exegese sistemática, por mais que seja possível
reconhecer eventuais diferenças de tratamento, os direitos sociais – por serem fundamentais -,
comungam do regime da dupla fundamentalidade (formal e material) dos direitos
fundamentais. Aqui, todavia, verificam-se outros problemas e outras resistências, visto que,
no todo ou em parte (mesmo dentre os que aceitam, em princípio, a tese da fundamentalidade
dos direitos sociais) existe tanto quem queira negar aos direitos sociais a aplicação do regime
jurídico pleno assegurado pela Constituição aos direitos fundamentais, quanto quem discuta o
exato conteúdo deste regime, matéria que, aliás, constitui o objeto do próximo segmento.
17
Cláudio Pereira de Souza Neto. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Um estudo sobre o papel
do Direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 225 e ss., sustentando que os direitos sociais são (especialmente no campo do mínimo
existencial) condições fundamentais para a democracia. Nesta mesma linha de abordagem (embora uma série
de divergências entre o pensamento dos autores referidos e entre esses e a nossa concepção) v., ainda, entre
outros, a recente e indispensável coletânea de Marcelo Cattoni (Org). Jurisdição e Hermenêutica
Constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, 2006 e, por último, a instigante contribuição de Álvaro Ricardo de
Souza Cruz. Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. O constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e
a ontologia existencial, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, especialmente o capítulo 7, onde é discutida a
questão dos direitos sociais. Como contraponto, professando uma concepção de cunho mais substancialista
(adotando aqui a terminologia mais habitual) v. o referencial trabalho de Lenio Luiz Streck, Jurisdição
Constitucional e Hermenêutica, Rio de Janeiro: Forense, 2004 (especialmente capítulos I a V). Do mesmo
autor, já adotando uma postura crítica em relação aos excessos cometidos em nome dos princípios e valores
constitucionais, e aderindo em boa parte aos críticos da assim designada ponderação (em especial os já
citados Marcelo Cattoni e Àlvaro Cruz), o indispensável Verdade e Consenso, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007, assim como José Adércio Leite Sampaio. Direitos Fundamentais, Belo Horizonte: Del Rey,
2004. Embora a nossa resistência às abordagens de cunho prevalentemente procedimental (o que não temos
condições de desenvolver aqui), não há como desconsiderar a relevância da discussão produzida no Brasil
nos últimos anos a respeito do tema, contribuindo para uma qualificação substancial do debate sobre a
legitimidade e fundamentação dos direitos fundamentais e da própria ordem constitucional, a atuação do
Poder Judiciário na defesa da Constituição e dos direitos fundamentais, entre outros temas que têm integrado
a pauta acadêmica.
A respeito da abertura material dos direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, remete-se ao
nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 90 e ss.
3 – A discussão a respeito do regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais
sociais, especialmente sua aplicabilidade e eficácia
Um problema central relacionado com a própria eficácia e efetividade dos direitos
fundamentais sociais é o de estabelecer, no âmbito do marco constitucional brasileiro (e,
portanto, de modo afinado com os limites do nosso direito constitucional positivo), os
contornos do seu (dos direitos sociais) respectivo regime jurídico-constitucional, o qual, além
do que expressamente – e implicitamente - foi estabelecido pelo Constituinte, tem sido objeto
de fecundo – mas amplamente controverso - desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial.
Dados os limites deste ensaio e para que possamos tecer algumas considerações a
respeito e avaliar, pelo menos, alguns dos principais argumentos manejados pelos que se opõe
aos direitos sociais e lhes querem atribuir um regime jurídico mais débil em relação aos assim
– tradicionalmente - designados direitos individuais (ou direitos civis e políticos como
preferem outros), é preciso relembrar que os direitos fundamentais somente podem ser
considerados verdadeiramente fundamentais quando e na medida em que lhes é reconhecido
(e assegurado) um regime jurídico privilegiado no contexto da arquitetura constitucional.
Neste sentido, acabou sendo incorporada ao discurso constitucional brasileiro, até mesmo
pelo fato de que o direito constitucional positivo assim o exige, a conhecida formulação de
Robert Alexy ao enfatizar que os direitos fundamentais são posições jurídicas a tal ponto
relevantes que o seu reconhecimento não pode ser pura e simplesmente colocado plenamente
à disposição das maiorias parlamentares simples18. Também por esta razão, os direitos
fundamentais – para que tenham assegurada uma posição preferencial e privilegiada – devem
estar blindados contra uma supressão ou um esvaziamento arbitrário por parte dos órgãos
estatais, em outras palavras, pelos poderes constituídos, além de terem sua normatividade
plenamente garantida, o que implica o reconhecimento de uma dupla fundamentalidade
formal e material19. Alinhando-se à tradição constitucional contemporânea, também a CF de
1988 aderiu a este modelo e, além de inserir – expressa e implicitamente - os direitos
fundamentais no seleto rol das assim designadas “cláusulas pétreas”, tornando-os limites
materiais ao poder de reforma constitucional (artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF), afirmou que
18
19
Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 406.
Cf., novamente, Robert Alexy, op. cit., p. 473 e ss.
as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis (artigo
5º, § 1º, da CF)20.
O problema que se coloca é justamente a resistência em relação à aplicação desses
elementos nucleares do regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais aos direitos
sociais. Com efeito, tanto há quem diga que as normas de direitos sociais não se encontram
abrangidas pelo disposto no artigo 5°, § 1°, da CF, quanto quem sustente que os direitos
sociais não operam como limites materiais ao poder de reforma constitucional, por não terem
sido expressamente referidos no artigo 60, § 4°, inciso IV, da C F.
Voltando-nos desde logo ao primeiro aspecto, é possível partir da premissa de que a
despeito da circunstância de que a localização topográfica do dispositivo poderia sugerir uma
aplicação da norma contida no art. 5º, § 1º, da CF apenas aos direitos individuais e coletivos,
o fato é que este argumento não corresponde sequer à expressão literal do dispositivo, visto
que esta utiliza a formulação genérica “normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais”, tal como consignada na epígrafe do Título II da CF, revelando que, mesmo
em se procedendo a uma interpretação meramente literal, não há como sustentar, pelo menos
não sem contestação relevante, uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das
categorias específicas de direitos fundamentais consagradas em nossa Constituição21. Em
sentido contrário, houve inclusive quem propusesse uma “nova exegese” da norma contida no
art. 5º, § 1º, sustentando a sua necessária interpretação restritiva quanto ao alcance (embora
supostamente “reforçada” quanto à eficácia) já que o Constituinte “disse mais do que o
pretendido”22, advogando, por via de conseqüência, uma interpretação nitidamente inspirada
em um peculiar e manifestamente equivocado “originalismo”, curiosamente ancorado numa
“vontade do Constituinte” presumidamente contrária ao próprio teor literal do dispositivo.
Se optarmos por uma argumentação não embasada numa interpretação de viés
eminentemente literal (textual) será possível verificar que, também uma interpretação
sistemática e teleológica, conduzirá aos mesmos resultados. Neste sentido, percebe-se, desde
logo, que o Constituinte não pretendeu (e nem é legítimo presumir isto!) excluir, os direitos
políticos, de nacionalidade do âmbito do art. 5º, § 1º, de nossa Carta, que, assim como os
direitos sociais, integram o conjunto dos direitos cuja fundamentalidade foi expressamente
afirmada na Constituição. Também não há como sustentar, no direito pátrio, a concepção
20
21
22
Neste sentido, de modo um pouco mais desenvolvido, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p.
86 e ss.
Cf., para maior desenvolvimento, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais,, p. 277 e ss.
Cf. a posição (e crítica) de João Pedro Gebran Neto, A Aplicação Imediata dos Direitos e Garantias
Individuais São Paulo: RT, 2002, p. 153 e ss.
lusitana (lá expressamente prevista na Constituição) de acordo com a qual a norma que
consagra a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais abrange apenas os direitos,
liberdades e garantias (Título II) que, em princípio, correspondem aos direitos de defesa,
excluindo deste regime reforçado (e não apenas quanto a este aspecto) os direitos econômicos,
sociais e culturais do Título III da Constituição da República Portuguesa23. Parece evidente
que a ausência de uma distinção expressa entre o regime dos direitos sociais e os demais
direitos fundamentais, somada ao texto do § 1° do artigo 5° da CF, ainda mais em face da
circunstância de que os direitos sociais (mas pelo menos os elencados no Título II da CF) são
direitos fundamentais, deve prevalecer sobre uma interpretação notadamente amparada em
critério meramente topográfico. Por estas razões, há como sustentar, a exemplo do que tem
ocorrido no âmbito da doutrina hoje aparentemente majoritária24, a aplicabilidade imediata
(por força do art. 5º, § 1º, de nossa Lei Fundamental) de todas as normas de direitos
fundamentais constantes do Título II da Constituição (artigos. 5º a 17), bem como dos
localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. É preciso
enfatizar, que a extensão do regime material da aplicabilidade imediata aos direitos fora do
catálogo não encontra qualquer óbice no texto constitucional, harmonizando, além disso, com
a concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais consagrada, entre nós, no art. 5º,
23
O tratamento jurídico diferenciado de ambos os grupos de direitos fundamentais constitui, sem dúvida, um
dos marcos caracterizadores da posição reforçada que os direitos, liberdades e garantias assumiram em
relação aos direitos sociais no âmbito do constitucionalismo lusitano. Neste sentido, v., dentre tantos, José
Casalta Nabais, “Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa”, in: Boletim do Ministério da Justiça, nº
400 (1990), p. 21 e ss. Este tratamento diferenciado também se pode encontrar na Constituição Espanhola de
1978, na qual a parte significativa dos direitos fundamentais sociais de cunho prestacional está prevista no
capítulo dos “principios rectores de la política social y económica”, que, por sua vez, não se encontra ao
abrigo do princípio da aplicabilidade imediata dos “derechos y libertades” consagrado no artigo 53.1. Com
isto, não se está negando, aos princípios da ordem econômica e social, o caráter jurídico-normativo, já que,
de acordo com o artigo 9º, 1, da Constituição Espanhola “Los ciudadanos y los poderes públicos están sujetos
a la Constitución y al resto del ordenamiento jurídico”, princípio que se aplica a todas as normas
constitucionais. Todavia, reconhece-se – a exemplo do que leciona Francisco Fernández Segado, “La Teoría
Jurídica de los Derechos Fundamentales em la Constitución Española de 1978 y su Interpretación por el
Tribunal Constitucional”, in: Revista de Informação Legislativa nº 121 (1994), p. 80, que o valor normativo
da Constituição “necesita ser modulado en lo concerniente a los principios rectores de la política social y
económica.”
24
Neste sentido, além da linha argumentativa proposta já na nossa tese de Doutorado (Die Problematik der
sozialen Grundrechte in der brasilianischen Verfassung und im deutschen Grundgesetz – eine
rechtsvergleichende Untersuchung, Frankfurt am Main: Peter Lang, 1997, concluída em 1996), desenvolvida
com mais detalhes no nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 277 e ss., v., por exemplo, Flávia
Piovesan, Proteção Judicial contra Omissões Legislativas, São Paulo: RT, 1995, p. 90, que sustenta a
viabilidade de uma interpretação extensiva da norma que consagra a aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais. No mesmo sentido, v. também Dimitri Dimoulis, “Dogmática dos Direitos Fundamentais.
Conceitos Básicos”, in: Caderno do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Metodista de
Piracicaba, ano 5, nº 2 (2001), p. 22; e, mais recentemente, o magistério de Clémerson Merlin Cléve, “O
desafio da efetividade dos direitos fundamentais sociais”, in: Revista da Academia Brasileira de Direito
Constitucional”, vol. IV, p. 295.
§ 2º, da CF, que aqui não poderá ser analisada25.
Da mesma forma, será objeto de
considerações adicionais, logo mais adiante, a exegese imprimida ao artigo 5°, § 1°, da CF, no
que diz com o seu possível papel para a questão da aplicabilidade e eficácia dos direitos
fundamentais, com destaque para os direitos sociais.
Já com relação à inclusão dos direitos fundamentais sociais no elenco dos limites
materiais à reforma constitucional, em se tomando como ponto de partida o enunciado literal
do artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF, poder-se-ia afirmar – e, de fato, há quem sustente tal ponto
de vista – que apenas os direitos e garantias individuais do artigo 5º da CF se encontram
blindados contra a atuação do poder de reforma da Constituição. Caso fôssemos nos aferrar a
esta exegese de cunho estritamente literal, teríamos de reconhecer que não apenas os direitos
sociais (artigos 6º a 11), mas também os direitos de nacionalidade (artigos 12 e 13), bem
como os direitos políticos (artigos 14 a 17, com exceção do direito de voto, já previsto no
elenco do inciso IV do § 4° do art. 60) estariam todos excluídos da proteção outorgada pela
norma contida no artigo 60, § 4º, inc. IV, de nossa Lei Fundamental. Aliás, por uma questão
de coerência, até mesmo os direitos coletivos (de expressão coletiva) constantes no rol do
artigo 5º não seriam merecedores desta proteção. Já esta simples constatação indica que tal
interpretação dificilmente poderá prevalecer, pelo menos não na sua versão mais extremada.
Caso assim fosse, alguns dos direitos essenciais de participação política (artigo 14), a
liberdade sindical (artigo 8º) e o direito de greve (artigo 9º), apenas para citar alguns
exemplos, encontrar-se-iam em condição inferior a dos demais direitos fundamentais, não
compartilhando o mesmo regime jurídico reforçado, ao menos não na sua plenitude.
Paradoxalmente, em se levando ao extremo este raciocínio, poder-se-ia até mesmo sustentar
que apenas o mandado de segurança individual, mas não o coletivo, integra as “cláusulas
pétreas”! Neste contexto, foi inclusive sustentado que o termo “direitos e garantias
individuais”, utilizado no artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF, não foi reproduzido em nenhum
outro dispositivo da Constituição, razão pela qual mesmo com base numa interpretação literal
não se poderia confundir estes direitos individuais com os direitos individuais e coletivos do
art. 5º de nossa Lei Fundamental.26
Para os que advogam uma interpretação restritiva, abre-se, todavia, alternativa
argumentativa. Com efeito, poder-se-á sustentar, ainda, que a expressão “direitos e garantias
individuais” deve ser interpretada de tal forma, que apenas os direitos fundamentais
25
26
Sobre o tópico remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 90 e ss.
Cf. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Poder Constituinte Reformador: limites e possibilidades da revisão
constitucional brasileira, São Paulo: RT, 1993, p. 182.
equiparáveis aos direitos individuais do artigo 5º podem ser considerados “cláusula pétrea”,
ou mesmo, aos assim designados direitos civis e políticos, de titularidade individual, embora
neste caso a tutela contra a supressão por meio de emendas constitucionais alcançaria também
direitos não previstos no artigo 5°, mas excluiria os direitos sociais. A viabilidade desta
concepção esbarra na difícil tarefa de traçar as distinções entre os direitos individuais e os
não-individuais. Mesmo se considerássemos como individuais apenas os direitos
fundamentais que se caracterizam por sua função defensiva (especialmente os direitos de
liberdade), concepção que corresponde à tradição no direito constitucional pátrio, teríamos de
levar em conta a existência, nos outros capítulos do Título II da nossa Carta, de direitos e
garantias passíveis de serem equiparados aos direitos de defesa, de tal sorte que as liberdades
sociais (direitos sociais como direitos negativos), como é o caso, entre outros, do direito de
greve da liberdade de associação sindical, também se encontrariam ao abrigo das “cláusulas
pétreas”. Também por esta razão, ainda mais à míngua de um regime jurídico diferenciado
expressamente previsto na Constituição, não nos parece possível excluir os direitos sociais do
rol das assim chamadas “cláusulas pétreas”.
No direito constitucional brasileiro, a despeito dos argumentos já colacionados, há
ainda quem sustente que os direitos sociais não podem, em hipótese alguma, integrar as
“cláusulas pétreas” da Constituição pelo fato de não poderem (ao menos na condição de
direitos a prestações) ser equiparados aos direitos de liberdade do artigo 5º. Além disso,
argumenta-se que, se o Constituinte efetivamente tivesse tido a intenção de gravar os direitos
sociais com a vedação da sua abolição, ele o teria feito, ou mencionando expressamente esta
categoria de direitos no artigo 60, § 4º, inc. IV, ou referindo-se de forma genérica a todos os
direitos e garantias fundamentais, mas não apenas aos direitos e garantias individuais.27 Tal
concepção e todas aquelas que lhe podem ser equiparadas esbarram, contudo, nos seguintes
argumentos: a) a Constituição brasileira, diferentemente de outras ordens constitucionais,
como é o caso da já referida Constituição da República Portuguesa, não traça uma genérica e
expressa diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais, inclusive no que
diz com eventual primazia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de uma exegese
conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais podem
ser conceituados como direitos a prestações materiais estatais, quando, em verdade, já se
demonstrou que boa parte dos direitos sociais são equiparáveis, no que diz com sua função
27
Cf., por exemplo, Otávio Bueno Magano, “Revisão Constitucional”, in: Cadernos de Direito Constitucional
e Ciência Política nº 7 (1994), p. 110-1, chegando até mesmo a sustentar não apenas a possibilidade, mas
inclusive a necessidade de se excluírem os direitos sociais da Constituição.
precípua e estrutura jurídica, aos direitos de defesa; c) para além disso, relembramos que uma
interpretação que limita o alcance das “cláusulas pétreas” aos direitos fundamentais previstos
no artigo 5º da CF acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos
políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no artigo 60, § 4º, inc. IV, de
nossa lei Fundamental.28
Todas estas considerações revelam que apenas por meio de uma interpretação
sistemática se poderá encontrar uma resposta satisfatória no que concerne ao problema da
abrangência do artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF. Que uma exegese cingida à expressão literal do
referido dispositivo constitucional não pode prevalecer parece ser evidente. Todavia, a
despeito das considerações precedentes, há que admitir que a inclusão dos direitos sociais (e
demais direitos fundamentais) no rol das “cláusulas pétreas”, em especial no que diz com a
sua justificação à luz do direito constitucional positivo, é questão que merece análise um
pouco mais detida. Já no preâmbulo de nossa Constituição encontramos referência expressa
no sentido de que a garantia dos direitos individuais e sociais, da igualdade e da justiça
constitui objetivo permanente de nosso Estado. Além disso, não há como negligenciar o fato
de que nossa Constituição consagra a idéia de que constituímos um Estado democrático e
social de Direito, o que transparece claramente em boa parte dos princípios fundamentais,
especialmente no art. 1º, incisos I a III, assim como no artigo 3º, incisos I, III e IV. Com base
nestas breves considerações, verifica-se, desde já, a íntima vinculação dos direitos
fundamentais sociais com a concepção de Estado consagrada pela nossa Constituição, sem
olvidar que tanto o princípio do Estado Social quanto os direitos fundamentais sociais,
integram os elementos essenciais, isto é, a identidade de nossa Constituição, razão pela qual já
se sustentou que os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) poderiam ser
considerados – mesmo não estando expressamente previstos no rol das “cláusulas pétreas” –
autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional.29 Poder-se-á argumentar,
ainda, que a expressa previsão de um extenso rol de direitos sociais no título dos direitos
fundamentais seria, na verdade, destituída de sentido, caso o Constituinte, ao mesmo tempo,
lhes tivesse assegurado proteção jurídica diminuída.
28
Não esqueçamos, como oportunamente averbou Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos, São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 146 e ss., que o direito à nacionalidade e o direito à cidadania – este,
por sua vez, umbilicalmente ligado ao primeiro, como verdadeiro direito a ter direitos –, fundamentam o
vínculo entre o indivíduo e determinado Estado, colocando o primeiro sob a proteção do segundo e de seu
ordenamento jurídico, razão pela qual não nos parece aceitável que posição jurídica fundamental de tal
relevância venha a ser excluída do âmbito de proteção das “cláusulas pétreas.”
29
Esta a pertinente lição de Raul Machado Horta, “Natureza, Limitações e Tendências da Revisão
Constitucional”, in: Revista Brasileira de Estudos Políticos nº 78-79 (1994), p. 14-5.
Para além do exposto, verifica-se que todos os direitos fundamentais consagrados em
nossa Constituição (mesmo os que não integram o Título II) são, na verdade e em última
análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva. É o
indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim como é o indivíduo que tem direito à
saúde, assistência social, aposentadoria, etc. Até mesmo o direito a um meio ambiente
saudável e equilibrado (art. 225 da CF), em que pese seu habitual enquadramento entre os
direitos da terceira dimensão, pode ser reconduzido a uma dimensão individual, pois mesmo
um dano ambiental que venha a atingir um grupo dificilmente delimitável de pessoas
(indivíduos) gera um direito à reparação para cada prejudicado. Ainda que não se queira
compartilhar este entendimento, não há como negar que nos encontramos diante de uma
situação de cunho notoriamente excepcional, que em hipótese alguma afasta a regra geral da
titularidade individual da absoluta maioria dos direitos fundamentais. Os direitos e garantias
individuais referidos no artigo 60, § 4º, inc. IV, da nossa Lei Fundamental incluem, portanto,
os direitos sociais e os direitos da nacionalidade e cidadania (direitos políticos)30.
Contestando esta linha argumentativa, Gustavo Costa e Silva, sustenta que a
“dualidade entre direitos “individuais” e “sociais” nada tem a ver com a titularidade,
remetendo, em verdade, à vinculação de uns e outros a diferentes estágios da formação do
ethos do Estado constitucional,” no caso – tal como segue argumentando o autor – na
circunstância de que os direitos individuais estão vinculados ao paradigma do Estado liberal e
individualista, e não ao estado social, de cunho solidário.31 Todavia, ainda que se reconheça a
inteligência da crítica (o autor, de qualquer sorte, acaba reconhecendo que os direitos sociais
integram os limites materiais implícitos), parece-nos que a resposta já foi fornecida,
designadamente quando apontamos para o fato de que não é possível extrair da nossa Carta
Magna um regime diferenciado – no sentido de um regime jurídico próprio – entre os direitos
de liberdade (direitos individuais) e os direitos sociais, mesmo que entre ambos os grupos de
direitos, especialmente entre a sua dimensão negativa e positiva, existam diferenças no que
diz com o seu objeto e função desempenhada na ordem jurídico-constitucional. Além do mais,
em momento algum nos limitamos a colacionar o argumento da titularidade individual de
todos os direitos como fundamento exclusivo de nossa posição, já que esta constitui apenas
uma razão entre outras.
30
31
Esta a posição que temos sustentado já desde a primeira edição (1998) do nosso A eficácia dos Direitos
Fundamentais, p. 424 e ss.
Cf. Gustavo Just da Costa e Silva. Os Limites da Reforma Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.
124 e ss. (citação extraída da p. 129).
Outro argumento utilizado pelos que advogam uma interpretação restritiva das
“cláusulas pétreas” diz com a existência de diversas posições jurídicas constantes no Título II
de nossa Constituição que não são, na verdade, merecedoras do status peculiar aos
“verdadeiros” direitos fundamentais, razão pela qual há quem admita até mesmo a sua
supressão por meio de uma emenda constitucional32, linha argumentativa que guarda ligação
direta com a discussão sobre a própria fundamentalidade dos direitos sociais. Muito embora
não de modo exatamente igual, Oscar Vieira Vilhena, em iluminado ensaio sobre o tema,
prefere trilhar caminho similar, ao sustentar, em síntese, que apenas as cláusulas que designa
de superconstitucionais (isto é, os princípios – incluindo os direitos fundamentais essenciais –
que constituem a reserva de justiça constitucional de um sistema) encontram-se imunes à
supressão pela reforma da Constituição, não advogando, de tal sorte, a exclusão prévia de
qualquer direito ou princípio do elenco dos limites materiais.33 No nosso sentir, em que pese o
cunho sedutor de tal linha argumentativa34, tal tese apenas poderia prevalecer caso
partíssemos da premissa de que existem direitos apenas formalmente fundamentais, e que
estes, justamente por serem fundamentais em sentido meramente formal, poderiam ser
suprimidos da Constituição, o que, consoante já assinalado, não corresponde à concepção
majoritária (que, é preciso reconhecer, nem sempre é, por ser majoritária, a correta!) no
âmbito da doutrina, de acordo com a qual tal distinção (em si já questionável) não afasta a
fundamentalidade do direito e tampouco, pelo menos em termos gerais, infirma as
conseqüências daí decorrentes. De qualquer modo, é de questionar-se a possibilidade de
qualquer um dos poderes constituídos, no mais das vezes o Poder Judiciário, dada sua
prerrogativa de controlar a opção dos demais órgãos estatais, decidir qual direito é, ou não,
formal e materialmente fundamental, decisão esta que, em última análise, importaria numa
afronta à vontade do Poder Constituinte, que, salvo melhor juízo, detém o privilégio de
deliberar sobre o que é, ou não, fundamental. Além disso, correr-se-ia o sério risco de
32
Este o entendimento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Significação e Alcance das Cláusulas Pétreas”,
in: Revista de Direito Administrativo nº 202 (1995), p. 16, que, no entanto, reconhece que o art. 60, § 4º, inc.
IV, da nossa Constituição abrange todos os direitos fundamentais, e não apenas os direitos individuais e
coletivos do art. 5º.
33
Cf. Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua Reserva de Justiça, São Paulo: Malheiros, 1999, p. 222 e ss.,
onde desenvolve seu pensamento, que aqui vai reproduzido em apertadíssima síntese. Registre-se, contudo,
que o ilustre jurista não exclui os direitos sociais da proteção contra eventuais reformas, notadamente quando
estiverem em causa os direitos sociais básicos, tais como os direitos à alimentação, moradia e educação, já
que “essenciais à realização da igualdade e da dignidade entre os cidadãos.” (op. cit., p. 321).
34
Também neste sentido, questionando a tese de que todos os direitos fundamentais do Título II sejam
“cláusulas pétreas”, embora privilegiando uma justificativa democrático-deliberativa, o indispensável aporte de
Rodrigo Brandão, Direitos Fundamentais, Democracia e Cláusulas Pétreas, Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
eliminar direitos “autenticamente” fundamentais e mesmo direitos previstos no próprio artigo
5° da CF, circunstância que deveria ser suficiente para rechaçar este tipo de argumento.
Por derradeiro, cumpre relembrar que a função precípua das assim denominadas
“cláusulas pétreas” é a de impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição,
encontrando-se, neste sentido, a serviço da preservação da identidade constitucional, formada
justamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte. Isto se manifesta com
particular agudeza no caso dos direitos fundamentais, já que sua supressão, ainda que
tendencial, implicaria, em boa parte dos casos, simultaneamente uma agressão (em maior ou
menor grau) ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF). Assim, uma
interpretação restritiva da abrangência do artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF não nos parece ser a
melhor solução, ainda mais quando os direitos fundamentais inequivocamente integram o
cerne da nossa ordem constitucional.
Feita a sustentação pelo menos sumária da tese de que os direitos sociais são também
protegidos contra uma supressão (e esvaziamento) por parte do poder de reforma
constitucional, não há como negar que uma interpretação restritiva das “cláusulas pétreas”
tem por objetivo impedir uma petrificação ampla do texto constitucional, impedindo reformas
necessárias. Tal risco (o de uma indesejável galvanização da Constituição) acabou sendo, pelo
menos em termos gerais, afastado pelo próprio Constituinte, ao explicitar (no § 4° do artigo
60), que apenas uma efetiva ou tendencial abolição das decisões fundamentais tomadas pelo
Constituinte se encontra vedada, de tal sorte que, em princípio e sempre preservado o núcleo
essencial do princípio ou direito fundamental em causa, não se vislumbra qualquer obstáculo
à necessária adaptação às exigências de um mundo em constante transformação, temática que
todavia aqui não iremos abordar35. Além disso, a evolução constitucional desde 1988 tem
revelado que, a despeito do grande número de reformas, a amplitude do catálogo dos direitos
fundamentais, mesmo na esfera dos direitos sociais, não tem sido, pelo menos por ora,
submetida a ataques exitosos, visto que, embora se possa falar, aqui e ali, de alguma restrição
merecedora de atenção e crítica, o processo de constante reforma constitucional tem mantido
íntegro o projeto original do Constituinte de 1988, pelo menos no que diz com os direitos
fundamentais sociais.
35
Aqui remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 430 e ss. Sobre o tema, adotando, neste
ponto, posição similar, v. também Rodrigo Brandão, Direitos Fundamentais, Democracia e Cláusulas
Pétreas, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 283 e ss., ainda que, notadamente quanto ao fato de nem todos os
direitos fundamentais serem “cláusulas pétreas” (segundo o autor ora citado), já termos enfatizado nossa
posição divergente.
De outra parte, o reconhecimento de um regime jurídico substancialmente uniforme
(especialmente no concernente à abertura material, aplicabilidade direta e proteção) para a
totalidade dos direitos fundamentais, revela que, entre nós, não há que falar – pelo menos
assim segue sendo o nosso entendimento - numa espécie de “esquizofrenia constitucional”36,
decorrente de um tratamento diferenciado – dicotômico e mesmo conflitante - dos direitos
sociais, no sentido de estarem sujeitos, de forma generalizada, a um regime jurídico distinto e
menos robusto em relação aos demais direitos fundamentais, em particular os assim
designados direitos civis e políticos.
4 – Os direitos sociais como direitos exigíveis: revisitando alguns aspectos ligados à
efetividade dos direitos sociais, em especial, pela via jurisdicional
Embora tenhamos sustentado que também as normas definidoras de direitos sociais
sejam dotadas de aplicabilidade imediata, isto não responde uma série de outras indagações,
especialmente a respeito de quais os limites da vinculação dos órgãos estatais e mesmo dos
particulares aos direitos fundamentais, assim como, em relação ao problema de quais as
posições jurídicas subjetivas exigíveis que podem ser diretamente extraídas da previsão
constitucional de determinado direito social. É precisamente nesta esfera que se situam uma
série de outras importantes e sempre atuais objeções aos direitos sociais, especialmente no
que diz com a sua efetivação37. Certamente é a assim designada “reserva do possível”, que,
por sua vez, diz respeito a uma série de outras “resistências” aos direitos sociais como direitos
subjetivos, que tem sido o pivô da maioria das discussões, que vão desde a delimitação do
conteúdo em si da reserva do possível, até os limites da atuação jurisdicional nesta matéria,
designadamente quando esta esbarra em escassez de recursos, limitações orçamentárias e
obstáculos de outra natureza.
Justamente pelo fato de os direitos sociais na sua condição (como vimos, não
exclusiva!) de direitos a prestações terem por objeto prestações estatais vinculadas
diretamente à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens
materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante. Já os
direitos de defesa, por serem, na sua condição de direitos subjetivos, em primeira linha
36
Aqui estamos nos valendo da expressão utilizada por Vasco Pereira da Silva, professor da Universidade de
Lisboa, por ocasião de conferência proferida em seminário internacional sobre direitos sociais realizado sob os
auspícios da Procuradoria do Município do Rio de Janeiro, em novembro de 2007.
37
Embora não se trate de uma relação exaustiva, vale conferir as bem lembradas objeções colacionadas por José
Adércio Sampaio, Direitos Fundamentais. Retórica e Historicidade, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 264 e ss.
dirigidos a uma conduta omissiva (atuando como proibições de intervenção), são geralmente
considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o bem jurídico que
protegem (vida, intimidade, liberdade, etc.) pode ser assegurado, na dimensão negativa ora em
destaque – como direito subjetivo exigível em Juízo – independentemente das circunstâncias
econômicas, ou, pelo menos, sem a alocação direta, por força de decisão judicial, de recursos
econômicos para este efeito. De qualquer modo, é preciso que se deixe consignado, que a
referida “irrelevância econômica” dos direitos de defesa (negativos) não dispensa alguns
comentários e esclarecimentos mais detidos. Com efeito, já se fez menção que todos os
direitos fundamentais (inclusive os assim chamados direitos de defesa), na esteira da obra de
Holmes e Sunstein e de acordo com a posição entre nós sustentada por autores como Gustavo
Amaral38 e Flávio Galdino39, são, de certo modo, sempre direitos positivos, no sentido de que
também os direitos de liberdade e os direitos de defesa em geral exigem, para sua tutela e
promoção, um conjunto de medidas positivas por parte do poder público e que sempre
abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos para sua proteção e
efetivação de uma maneira geral. Assim, não há como negar que todos os direitos
fundamentais podem implicar “um custo”, de tal sorte que esta circunstância não se limita
nem aos direitos sociais na sua dimensão prestacional. Apesar disso, seguimos convictos de
que, para o efeito de se admitir a imediata aplicação pelos órgãos do Poder Judiciário, o “fator
custo” de todos os direitos fundamentais, nunca constituiu um elemento, por si só e de modo
eficiente, impeditivo da efetivação pela via jurisdicional. É exatamente neste sentido que deve
ser tomada a referida “neutralidade” econômico-financeira dos direitos de defesa, visto que a
sua eficácia jurídica (ou seja, a eficácia dos direitos fundamentais na condição de direitos
negativos) e a efetividade, naquilo que depende da possibilidade de efetivação pela via
jurisdicional, não tem sido colocada na dependência da sua possível relevância econômica. Já
no que diz com os direitos sociais a prestações, seu “custo” assume especial relevância no
âmbito de sua eficácia e efetivação40, significando, pelo menos para grande parte da doutrina,
que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se aloque algum
recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a
possibilidade de os órgãos jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação das
prestações reclamadas.
38
Cf. Gustavo Amaral. Direito, Escassez & Escolha, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 69 e ss.
Cf. Flávio Galdino, Introdução à Teoria do Custo dos Direitos: direitos não nascem em árvores, Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 147 e ss.
40
Neste sentido também, entre outros e por último, Virgílio Afonso da Silva, in: Direitos Sociais, op. cit., p.
591 e ss.
39
Por outro lado, se a regra da relevância econômica dos direitos sociais na condição de
direitos a prestações pode ser aceita sem maiores reservas, há que questionar, todavia, se
efetivamente todos os direitos desta natureza apresentam dimensão econômica relevante,
havendo, neste contexto, quem sustente a existência de exceções, apontado para direitos
sociais a prestações economicamente neutros (não implicam a alocação de recursos para sua
implementação), no sentido de que há prestações materiais condicionadas ao pagamento de
taxas e tarifas públicas41, além de outras que se restringem ao acesso aos recursos já
disponíveis. É preciso observar, contudo, que, mesmo nas situações apontadas, ressalta uma
repercussão econômica ao menos indireta, uma vez que até o já disponível resultou da
alocação e aplicação de recursos, sejam materiais, humanos ou financeiros em geral, oriundos,
em regra, da receita tributária e outras formas de arrecadação do Estado.
Diretamente vinculada a esta característica dos direitos fundamentais sociais a
prestações está a problemática da efetiva disponibilidade do seu objeto, isto é, se o
destinatário da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada (isto é, de
prestar o que a norma lhe impõe seja prestado), encontrando-se, portanto, na dependência da
real existência dos meios para cumprir com sua obrigação42. Já há tempo se averbou que o
Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações
reconhecidas pelas normas definidoras de direitos fundamentais sociais43, de tal sorte que a
limitação dos recursos, segundo alguns, opera como autêntico limite fático à efetivação desses
41
42
43
Cf. Dietrich Murswiek, “Grundrechte als Teilhaberechte, soziale Grundrechte” in: J. Isensee-P. Kirchhof
(Org.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vol. V, p. 254.
Assim, entre nós, sem pretensão de esgotar as referências, José Reinaldo de Lima Lopes, “Direito Subjetivo e
Direitos Sociais: O Dilema do Judiciário no Estado Social de Direito” in: José Eduardo Faria (Org.) Direitos
Humanos, Direitos Sociais e Justiça, São Paulo: Malheiros, 1994, p. 131. No mesmo sentido, v. Gilmar
Ferreira Mendes, “A Doutrina Constitucional e o Controle de Constitucionalidade como Garantia da
Cidadania – Necessidade de Desenvolvimento de Novas Técnicas de Decisão: Possibilidade da Declaração
de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia de Nulidade no Direito Brasileiro” in: Caderno de Direito
Tributário e Finanças Públicas nº 3 (1993), p. 28, ressaltando que a efetividade dos direitos sociais se
encontra na dependência da atual disponibilidade de recursos por parte do destinatário da pretensão. Também
Andreas Krell, “Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos Direitos Fundamentais Sociais”
in: Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). A Constituição Concretizada – Construindo Pontes para o Público e o
Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 40 e ss., aceita esta dependência dos direitos sociais
prestacionais da existência de recursos para sua efetivação, sem, contudo, negar-lhes eficácia e efetividade.
Sobre o tema, v., ainda e dentre tantos (como é o caso das obras de Gustavo Amaral e Flávio Galdino, já
referidas, além das contribuições de Ana Paula Barcellos e Ricardo Lobo Torres sobre o tema, igualmente
citadas neste artigo), a recente coletânea de Ingo Wolfgang Sarlet e Luciano Benetti Timm (Org), Direitos
Fundamentais, Orçamento e “Reserva do Possível”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, contendo
um representativo conjunto de ensaios a respeito do tema. Por último, confira-se a indispensável e já referida
coletânea sobre os direitos sociais (Editora Lumen Juris, 2008) coordenada por Cláudio Pereira Souza Neto e
Daniel Sarmento.
Cf. Georg Brunner, “Die Problematik der sozialen Grundrechte” in: Recht und Staat Nr. 404-405, J. C. B.
Mohr (Paul Siebeck), Tübingen, 1971, p. 14 e ss.
direitos44. Distinta (embora conexa) da disponibilidade efetiva dos recursos, ou seja, da
possibilidade material de disposição, situa-se a problemática ligada à possibilidade jurídica de
disposição, já que o Estado (assim como o destinatário em geral) também deve ter a
capacidade jurídica, em outras palavras, o poder de dispor, sem o qual de nada lhe adiantam
os recursos existentes45. Encontramo-nos, portanto, diante de duas facetas diversas, porém
intimamente entrelaçadas, que caracterizam os direitos fundamentais sociais prestacionais. É
justamente em virtude destes aspectos que se passou a sustentar a colocação dos direitos
sociais a prestações sob o que se convencionou designar de uma “reserva do possível”, que,
compreendida em sentido amplo, abrange mais do que a ausência de recursos materiais
propriamente ditos indispensáveis à realização dos direitos na sua dimensão positiva46.
A utilização da expressão “reserva do possível” tem, ao que se sabe, origem na
Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 197047. De acordo com a noção de
reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a
reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais
dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a “reserva do
possível” (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a doutrina majoritária,
quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a idéia de que os direitos sociais a
prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do
Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões
governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público48. Tais noções foram
acolhidas e desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha,
que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao
ensino superior, firmou entendimento no sentido de que a prestação reclamada deve
corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Com efeito,
44
45
46
47
48
Esta, dentre outros, a lição de Christian Starck, “Staatliche Organisation und Staatliche Finanzierung als
Hilfen zu Grundrechtsverwirklichungen?” in: Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz aus Anla des 25
jährigen Bestehens des Bundesverfassungsgerichts, vol. II, Tübingen: J. C. Mohr (Paul Siebeck), 1976, p.
518.
A este respeito, v. também Georg Brunner, op. cit., p. 16. Entre nós, tal dimensão cresce em relevo se
levarmos em conta o problema da repartição de competência no âmbito do Estado Federal e, acima de tudo,
na repartição das receitas tributárias e sua afetação e aplicação, temática que aqui não há como desenvolver e
da qual se tem ocupado consistente doutrina, com destaque para as recentes coletâneas sobre os Direitos
Fundamentais, Orçamento e Reserva do Possível, organizada por Ingo Sarlet e Luciano Timm, e sobre os
Direitos Sociais,coordenada por Cláudio Souza Neto e Daniel Sarmento, ambas já referidas.
Nesse sentido, acompanhando o nosso pensamento, mas com especial atenção ao direito à saúde, v. recente
contribuição de Mariana Filchtiner Figueiredo, Direito Fundamental à Saúde, Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 131 e ss. Por último, igualmente seguindo esta linha, v. Daniel Sarmento, “A Proteção
Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Éticos e Jurídicos”, in: Direitos Sociais, p. 569 e ss.
Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina,
1999, p. 108.
Andreas Krell, op. cit., p. 52.
mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar
em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável49. Assim,
poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social
a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos
suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de
acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do
legislador50.
A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possível,
especialmente se compreendida em sentido mais amplo, apresenta pelo menos uma dimensão
tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos
direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que
guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias,
orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama
equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional
federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações
sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em
especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. Todos
os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais
(por exemplo, os da igualdade e subsidiariedade), exigindo, além disso, um equacionamento
sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima
eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam servir não como barreira
instransponível, mas inclusive como ferramental para a garantia também dos direitos sociais
de cunho prestacional.
Por outro lado, não nos parece correta a afirmação de que a reserva do possível seja
elemento integrante dos direitos fundamentais51, como se fosse parte do seu núcleo essencial
ou mesmo como se estivesse enquadrada no âmbito do que se convencionou denominar de
49
50
51
Cf. BVerfGE 33, 303 (333).
Esta a ponderação de Dietrich Wiegand, “Sozialstaatsklausel und soziale Teilhaberechte” in: DVBL 1974, p.
657.
Neste sentido, pelo menos, a recente afirmação de Jairo Schäfer, Classificação dos Direitos Fundamentais:
do Sistema Geracional ao Sistema Unitário – uma Proposta de Compreensão, Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 67. Nas palavras do autor, a reserva do possível “é um elemento que se integra a todos os
direitos fundamentais”. Em verdade, o próprio autor – na esteira da doutrina precedente – reconhece na
reserva do possível uma condicionante jurídica ou concreta à efetivação dos direitos, de tal sorte que, a
despeito da contradição, resulta claro que o autor vislumbra na reserva do possível um limite fático e jurídico
que incide, em princípio, em relação a todos os direitos fundamentais.
limites imanentes dos direitos fundamentais52. A reserva do possível constitui, em verdade
(considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos
fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos
direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflito de direitos, quando se cuidar da
invocação – desde que observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo
existencial em relação a todos os direitos fundamentais – da indisponibilidade de recursos
com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental53.
Neste contexto, há quem sustente que, por estar em causa uma verdadeira opção
quanto à afetação material dos recursos, também há de ser tomada uma decisão sobre a
aplicação destes, que, por sua vez, depende da conjuntura socioeconômica global, partindo-se,
neste sentido, da premissa de que a Constituição não oferece, ela mesma, os critérios para esta
decisão, deixando-a a cargo dos órgãos políticos (de modo especial ao legislador)
competentes para a definição das linhas gerais das políticas na esfera socioeconômica54. É
justamente por esta razão que a realização dos direitos sociais na sua condição de direitos
subjetivos a prestações – de acordo com oportuna lição de Gomes Canotilho – costuma ser
encarada como sendo sempre também um autêntico problema em termos de competências
constitucionais, pois, segundo averba o autor referido, “ao legislador compete, dentro das
reservas orçamentais, dos planos económicos e financeiros, das condições sociais e
económicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, económicos e
culturais”55.
Como dá conta a problemática posta pelos que apontam para um “custo dos direitos”
(por sua vez, indissociável da assim designada “reserva do possível”), a crise de efetividade
vivenciada com cada vez maior agudeza pelos direitos fundamentais de todas as dimensões
está diretamente conectada com a maior ou menor carência de recursos disponíveis para o
atendimento das demandas em termos de políticas sociais. Com efeito, quanto mais diminuta
a disponibilidade de recursos, mais se impõe uma deliberação responsável a respeito de sua
destinação, o que nos remete diretamente à necessidade de buscarmos o aprimoramento dos
52
Sobre os assim chamados limites imanentes dos direitos fundamentais v., entre nós, especialmente Jane Reis
Gonçalves Pereira, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 131
e ss., assim como, por último, Virgílio Afonso da Silva, “O Conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a
eficácia das normas constitucionais”, Revista de Direito do Estado, Ano 1, n. 4, out/dez 2006, p. 23-52, síntese
da sua impactante tese de titularidade apresentada na USP, em vias de ser publicada.
53
Cf. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, especialmente p. 364 e ss.
54
Neste sentido, posiciona-se José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 200 e ss.
55
Cf. Joaquim José Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra: Coimbra
Editora, 1982, p. 369.
mecanismos de gestão democrática do orçamento público56, assim como do próprio processo
de administração das políticas públicas em geral, seja no plano da atuação do legislador, seja
na esfera administrativa, como bem destaca Rogério Gesta Leal57, o que também diz respeito
à ampliação do acesso à justiça como direito a ter direitos capazes de serem efetivados e, além
disso, envolve a discussão em torno da necessidade de evitar interpretações excessivamente
restritivas no que diz com a legitimação do Ministério Público e das organizações sociais para
atuar na esfera da efetivação também dos direitos sociais58. Neste contexto, é de saudar a
doutrina que, desde que ressalvada a possibilidade de uma tutela individual, tem advogado
um maior investimento e até mesmo uma preferência da tutela coletiva, com o intuito de
reduzir os diversos efeitos colaterais (os excessos e inconsistências dos quais nos fala Luís
Roberto Barroso59), resultantes especialmente da litigância individual descontrolada em
matéria de prestações sociais, assegurando, por esta via (da ação coletiva) um tratamento mais
isonômico e racional, além de evitar ao máximo o casuísmo, a insegurança, que implicam
impacto sobre o sistema de políticas públicas, nem sempre compatível com o objetivo de
assegurar a máxima efetividade dos direitos fundamentais para a maior parte das pessoas60.
Além disso, assume caráter emergencial uma crescente conscientização por parte dos
órgãos do Poder Judiciário, de que não apenas podem como devem zelar pela efetivação dos
direitos fundamentais sociais, mas que, ao fazê-lo, haverão de obrar com máxima cautela e
responsabilidade, seja ao concederem (seja quando negarem) um direito subjetivo a
determinada prestação social, ou mesmo quando declararem a inconstitucionalidade de
56
Sobre a participação democrática, e de modo geral, o controle social do orçamento público e da atuação do
poder público na consecução das metas constitucionalmente fixadas, v., entre nós e dentro outros, o
instigante ensaio de Fernando Facury Scaff, “Controle Público e Social da Atividade Econômica”, in: Anais
da XVII Conferência Nacional da OAB, vol. I, Rio de Janeiro, 1999, p. 925-941, bem como, mais
recentemente, a monografia de Adriana da Costa Ricardo Schier, A Participação Popular na Administração
Pública: o Direito de Reclamação, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
57
Cf. Rogério Gesta Leal, Estado, Administração Pública e Sociedade: Novos Paradigmas, Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, especialmente p. 57 e ss., cuidando do tema à luz da teoria discursiva e da
concepção de uma democracia deliberativo-procedimental de matriz Habermasiana.
58
Sobre o tópico, designadamente a respeito da atuação do Ministério Público nesta seara, v., entre outros, o
recente estudo de Pedro Rui da Fontoura Porto, Direitos Fundamentais Sociais. Considerações acerca da
legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela, Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
59
Cf. Luís Roberto Barroso, “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento
gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”, in: Direitos Sociais, p. 876.
60
No mesmo sentido, além da contribuição de Luís Roberto Barroso, já citada, os aportes de Ana Paula
Barcellos, “O direito a prestações de saúde: complexidades, mínimo existencial e o valor das abordagens coletiva
e abstrata”, in: Direitos Sociais, p. 815 e ss.; Daniel Sarmento, “A proteção judicial dos direitos sociais: alguns
parâmetros ético-jurídicos”, in: Direitos Sociais, p. 883 e ss.; Cláudio Pereira Souza Neto, “ A justiciabilidade
dos direitos sociais: críticas e parâmetros”, in: Direitos Sociais, p. 543-44; Virgílio Afonso da Silva, “O
Judiciário e as Políticas Públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais”, in:
Direitos Sociais, p. 597 e ss., embora este último adote posicionamento ainda mais restritivo em relação às
demandas individuais.
alguma medida estatal com base na alegação de uma violação de direitos sociais, sem que tal
postura, como já esperamos ter logrado fundamentar, venha a implicar necessariamente uma
violação do princípio democrático e do princípio da separação dos Poderes. Neste sentido (e
desde que assegurada atuação dos órgãos jurisdicionais, quando e na medida do necessário)
efetivamente há que dar razão a Holmes e Sunstein quando afirmam que levar direitos a sério
(especialmente pelo prisma da eficácia e efetividade) é sempre também levar a sério o
problema da escassez61. Parece-nos oportuno apontar aqui (mesmo sem condições de
desenvolver o ponto) que os princípios da moralidade e eficiência62, mas também os
correlatos princípios (e deveres) de publicidade e transparência63, que direcionam a atuação da
administração pública em geral, assumem um papel de destaque nesta discussão, notadamente
quando se cuida de administrar a escassez de recursos e potencializar a efetividade dos
direitos sociais.
Neste contexto, dada a íntima conexão desta problemática com a discussão em torno
da assim designada “reserva do possível” na condição de limite fático e jurídico à efetivação
judicial (e até mesmo política) de direitos fundamentais – e não apenas dos direitos sociais,
consoante já frisado – vale destacar que também resta abrangida na obrigação de todos os
órgãos estatais e agentes políticos a tarefa de maximizar os recursos e minimizar o impacto da
reserva do possível. Isso significa, em primeira linha, que se a reserva do possível há de ser
encarada com reservas64, também é certo que as limitações vinculadas à reserva do possível
não são, em si mesmas, necessariamente uma falácia. O que tem sido, de fato, falaciosa, é a
forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como
argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no
campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social. Assim, levar a
61
Cf. Stephen Holmes e Cass Sunstein, The Cost of Rights. Why Liberty Depends on Taxes, New York –
London: W. W. Norton & Company, 1999, p. 94 (“Taking rights seriously means taking scarcity seriously”),
bem como, de modo geral, p. 87 e ss., onde os autores demonstram como a escassez afeta as liberdades e
discutem o papel do Poder Judiciário na imposição de encargos ao poder público notadamente no que diz
com a alocação dos recursos. Entre nós, embora não se esteja aqui a aderir (assim como no caso de Holmes &
Sunstein) às conclusões dos autores, vale conferir, dentre tantas, as obras já referidas de Gustavo Amaral,
Direito, Escassez & Escolha e de Flávio Galdino, Introdução à Teoria do Custo dos Direitos, mas também, a
recente coletânea por nós organizada em parceria com Luciano Benetti Timm (Direitos Fundamentais,
Orçamento e “Reserva do Possível”), igualmente já referida.
62
A respeito da relevância e da operatividade do princípio da eficiência no campo da efetivação de direitos
fundamentais, notadamente dos direitos sociais, v., entre outros, Flávio Galdino, Introdução à Teoria dos
Custos dos Direitos, p. 255 e ss., ainda que se possa discordar do autor no que diz com alguns aspectos de
sua proposta teórica, o que aqui não será objeto de desenvolvimento.
63
Aqui assumem especial relevo os deveres de informação e o correlato direito do cidadão às prestações
(informações) correspondentes, bem apontado especialmente por Ana Paula Barcellos no seu artigo que integra a
presente coletânea.
64
Cf. a oportuna advertência de Juarez Freitas, A Interpretação Sistemática do Direito, 3ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 211.
sério a “reserva do possível” (e ela deve ser levada a sério, embora sempre com as devidas
reservas) significa também, especialmente – mas não exclusivamente! - em face do sentido do
disposto no artigo 5º, § 1º, da CF, que cabe ao poder público o ônus da comprovação da falta
efetiva dos recursos indispensáveis à satisfação dos direitos a prestações, assim como da
eficiente aplicação dos mesmos65. Por outro lado, para além do fato de que o critério do
mínimo existencial – como parâmetro do reconhecimento de direitos subjetivos a prestações –
por si só já contribui para a “produtividade” da reserva do possível66, há que explorar outras
possibilidades disponíveis na nossa ordem jurídica e que, somadas e bem utilizadas,
certamente haverão de reduzir de modo expressivo, se não até mesmo neutralizar, o seu
impacto, inclusive no que diz com prestações que transcendam a garantia do mínimo
existencial.
Neste contexto, também assume relevo o já referido princípio da proporcionalidade,
que deverá presidir a atuação dos órgãos estatais e dos particulares, seja quando exercem
função tipicamente estatal, mesmo que de forma delegada (com destaque para a prestação de
serviços públicos)67 seja aos particulares de um modo geral68. Além disso, nunca é demais
recordar que a proporcionalidade haverá de incidir na sua dupla dimensão como proibição do
65
Neste sentido v. também, igualmente passando a trilhar esta linha de pensamento, Cláudio Pereira de Souza
Neto, “A justiciabilidade dos Direitos Sociais: Críticas e Parâmetros”, in: Direitos Sociais, p. 545, assim como
Daniel Sarmento, in: Direitos Sociais, op. cit., p.
66
Enfatizando que não há como ignorar a contingência da limitação de recursos, mas relativizando a sua
incidência no campo do mínimo existencial, além de apontar para a necessidade de priorização das
destinações orçamentárias, v., mais uma vez, Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios
Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
especialmente p. 236 e ss.
67
Sem que aqui se possa discorrer sobre a natureza, função e mesmo o controle da prestação de serviços
públicos com base nos direitos fundamentais, registra-se ser no mínimo questionável a afirmação de que,
embora os serviços públicos sejam essenciais ao exercício de alguns direitos fundamentais, não há um direito
de acesso aos serviços públicos, como parece afirmar Alexandre Santos de Aragão, “Serviços Públicos e
Direitos Fundamentais”, in: Daniel Sarmento; Flávio Galdino (org.). Direitos Fundamentais: Estudos em
Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 3. Com efeito,
considerando-se que a prestação de serviços públicos, especialmente os enquadráveis como essenciais
(sendo, de qualquer sorte, discutível a existência de serviço não essencial no contexto do Estado social e
democrático de Direito na sua feição atual), diz diretamente com a efetiva fruição dos direitos fundamentais
na sua dupla dimensão negativa e positiva (basta recordar os exemplos da segurança pública, do acesso à
justiça, do saneamento básico, do fornecimento de energia, bem como das prestações em matéria de educação
e de saúde, entre tantos outros) no mínimo haveria de se reconhecer um direito fundamental a todos os
serviços públicos essenciais. De todo o modo, a despeito da divergência apontada, o próprio autor referido,
em seu importante e culto ensaio, não deixa de enfatizar que o “fundamento último da qualificação jurídica
de determinada atividade como serviço público é ser pressuposto da coesão social e geográfica de
determinado país e da dignidade dos seus cidadãos” (op. cit., p. 2).
68
Sobre o tema, especialmente no que diz com os direitos fundamentais sociais, v. especialmente Daniel
Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p.332 e ss., e, por
último, Ingo Wolfgang Sarlet, “Direitos Fundamentais Sociais, Mínimo Existencial e Direito Privado”, in:
Revista de Direito do Consumidor n° 61, janeiro-março de 2007, p. 90 e ss.
excesso e de insuficiência69, além de, nesta dupla acepção, atuar sempre como parâmetro
necessário de controle dos atos do poder público, inclusive dos órgãos jurisdicionais,
igualmente vinculados pelo dever de proteção e efetivação dos direitos fundamentais. Isto
significa, em apertadíssima síntese, que os responsáveis pela efetivação de direitos
fundamentais, inclusive e especialmente no caso dos direitos sociais, onde a insuficiência de
proteção e promoção70 (em virtude da omissão plena ou parcial do legislador e administrador)
causa impacto mais direto e expressivo, deverão observar os critérios parciais da adequação
(aptidão do meio no que diz com a consecução da finalidade almejada), necessidade (menor
sacrifício do direito restringido) e da proporcionalidade em sentido estrito (avaliação da
equação custo-benefício – para alguns, da razoabilidade no que diz com a relação entre os
meios e os fins), respeitando sempre o núcleo essencial do(s) direito(s) restringido(s), mas
também não poderão, a pretexto de promover algum direito, desguarnecer a proteção de
outro(s) no sentido de ficar aquém de um patamar minimamente eficiente de realização e de
garantia do direito. Neste contexto, vale o registro de que a proibição de insuficiência assume
particular ênfase no plano da dimensão positiva (prestacional) dos direitos fundamentais, o
que remete, por sua vez, à questão do mínimo existencial, que volta a assumir um lugar de
destaque também nesta seara, embora não se possa aqui desenvolver mais tais aspectos71.
Além do mais, convém destacar que aqui se revela possível a aplicação – cautelosa - de
algumas das propostas oriundas da assim chamada análise econômica do Direito (ou Direito e
69
70
Sobre o ponto, v. especialmente, dentro outros no âmbito da doutrina estrangeira, Claus-Wilhelm Canaris,
Direitos Fundamentais e Direito Privado, Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, Coimbra:
Almedina, 2003, especialmente p. 119 e ss., e, entre nós, Ingo Wolfgang Sarlet, “Constituição e
Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e a proibição de
insuficiência”, in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 47, mar.-abr. de 2004, p. 60-122; Lenio Luiz
Streck, “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de
como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”, in: Revista do Instituto de Hermenêutica
Jurídica nº 2, 2004, p. 243-284; e, mais recentemente, Luciano Feldens, A Constituição Penal. A Dupla Face
da Proporcionalidade no Controle de Normas Penais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 107 e
ss., bem como, do mesmo autor, Direitos Fundamentais e Direito Penal, Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
No que diz com a terminologia adotada (que, no nosso caso, é a de proibição de insuficiência), são várias as
opções disponíveis na literatura, como dão conta as contribuições de Joaquim José Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, p. 267 e ss. (proibição por defeito, entre nós adotada por Lenio Luiz
Streck, “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente...”, p. 243 e ss. e
Luciano Feldens, A Constituição Penal..., p. 108 e ss., que fala em proteção deficiente, e Juarez Freitas, O
Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 38 e
ss. (proibição de inoperância), não sendo o nosso intento adentrar aqui a discussão em torno do tópico.
Sobre o tema, v., entre nós, também as referências de Paulo Gilberto Cogo Leivas, Teoria dos Direitos
Fundamentais Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 76, destacando que os órgãos estatais
estão obrigados a alcançar limites mínimos de satisfação dos direitos sociais, bem como, mais recentemente,
Walter Claudius Rothenburg, “Princípio da Proporcionalidade”, in: Olavo de Oliveira Neto e Maria Elizabeth
Castro Lopes (Org.), Princípios Processuais Civis na Constituição, São Paulo: Elsevier, 2009, p. 309 e ss.,
bem consignando que se cuida, neste contexto, não de “uma técnica focada no controle das restrições a
direitos , mas uma técnica focada no controle da promoção de direitos” (p. 310).
Economia), precisamente no controle da observância dos critérios da proporcionalidade na
sua dupla dimensão, onde não se pode mais justificar, até para que se possa responder às
críticas endereçadas ao mau uso do princípio, a ausência de preocupação, registrada em
muitas decisões judiciais, com as conseqüências do provimento jurisdicional, como se tais
efeitos não pudessem, por sua vez, atingir direitos de terceiros e do próprio titular da
demanda72. Com efeito, aferir a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido
estrito não dispensa considerações vinculadas à realidade – análise do impacto sobre o
sistema de políticas públicas, por exemplo - e não se faz apenas no âmbito de uma análise
“estritamente jurídica”, como se fosse possível, ainda mais neste plano, desvincular questões
de fato e de Direito.
Outra possibilidade, já referida, diz com o controle (que abrange o dever de
aperfeiçoamento, resultante dos deveres de proteção) judicial das opções orçamentárias e da
legislação relativa aos gastos públicos em geral73 (inclusive da que dispõe sobre a
responsabilidade fiscal), já que com isso se poderá, também, minimizar os efeitos da reserva
do possível, notadamente no que diz com sua componente jurídica, tendo em conta a
possibilidade (ainda que manuseada com saudável e necessária cautela) de redirecionar
recursos (ou mesmo suplementá-los) no âmbito dos recursos disponíveis e, importa frisar,
disponibilizáveis. Com efeito, o que se verifica, em muitos casos, é uma inversão hierárquica
tanto em termos jurídico-normativos quanto em termos axiológicos, quando se pretende
bloquear qualquer possibilidade de intervenção neste plano, a ponto de se privilegiar a
72
Sobre este tópico, v., entre outros, os contributos de Thamy Pogrebinschi e Margarida Lacombe, que integram
a presente coletânea, mas também os já citados trabalhos monográficos de Gustavo Amaral e Flávio Galdino.
73
Consigna-se que, a despeito de correta a observação de Fernando Facury Scaff, “Reserva do Possível,
Mínimo Existencial e Direitos Humanos”, in: Revista Interesse Público, nº 32, 2005, p. 225, no sentido de
que embora tenhamos, na esteira de Alexy, de há muito sustentado a aplicação de um modelo de ponderação
na solução concreta dos problemas envolvendo a eficácia e efetividade dos direitos sociais (não apenas, mas
com ênfase no mínimo existencial) não tenha, por outro lado, o primeiro autor explorado a questão
financeiro-orçamentário, isto não significa que tal aspecto não esteja presente nas digressões tecidas no que
diz com eficácia dos direitos fundamentais, até mesmo pelo fato de que se cuida de aspectos inerentes à
problemática da reserva do possível (notadamente na sua dimensão jurídica) e nas questões envolvendo o
custo dos direitos de um modo geral. Que decisões tomadas em casos concretos – mediante a adequada
ponderação – fatalmente, pelo menos em diversas ocasiões – resultam diretamente em afetação do orçamento
e das finanças públicas sempre foi evidente, o que não significa – como ora se volta a enfatizar – que não seja
o caso de resgatar, ainda que em parte, uma lacuna em termos de maior desenvolvimento deste tópico, que,
todavia, reclama – em virtude da miríade de aspectos que suscita – um enfrentamento mais privilegiado do
que aqui seria possível, pelo menos neste momento, empreender. Tem razão o autor, todavia, ao sustentar a
absoluta necessidade de se investir no aprofundamento da análise sobre a questão do financiamento dos
direitos, assim como dos aspectos relativos ao controle da destinação e desvinculação constitucionalmente
ilegítima das vinculações orçamentárias (as presentes considerações foram extraídas basicamente de Ingo
Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8ª ed., p. 383).
legislação orçamentária em detrimento de imposições e prioridades constitucionais74 e, o que
é mais grave, prioridades em matéria de efetividade de direitos fundamentais. Tudo está a
demonstrar, portanto e como bem recorda Eros Grau, que a assim designada reserva do
possível “não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, até porque, se fosse assim, um
direito social sob ‘reserva de cofres cheios’ equivaleria, na prática – como diz José Joaquim
Gomes Canotilho – a nenhuma vinculação jurídica”75. Importa, portanto, que se tenha sempre
em mente, que quem “governa” – pelo menos num Estado Democrático (e sempre
constitucional) de Direito – é a Constituição, de tal sorte que aos poderes constituídos impõese o dever de fidelidade às opções do Constituinte, pelo menos no que diz com seus elementos
essenciais, que sempre serão limites (entre excesso e insuficiência!) da liberdade de
conformação do legislador e da discricionariedade (sempre vinculada) do administrador e dos
órgãos jurisdicionais76. Nesta seara, embora já se tenham verificado expressivos avanços, seja
em termos doutrinários, seja no plano jurisprudencial, há que seguir investindo
significativamente.
Além disso, o eventual impacto da reserva do possível certamente poderá ser, se não
completamente neutralizado, pelo menos minimizado, mediante o controle (também
jurisdicional!) das decisões políticas acerca da alocação de recursos, inclusive no que diz com
a transparência das decisões e a viabilização do controle social sobre a aplicação dos recursos
alocados no âmbito do processo político77. Uma vez que a possibilidade de satisfação dos
direitos reconhecidos pela Constituição (e também na esfera da legislação infraconstitucional)
guarda vinculação com escolhas estratégicas sobre qual a melhor forma de aplicar os recursos
74
Rogério Gesta Leal, “O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas no Brasil: possibilidades materiais”, in:
Ingo Wolfgang Sarlet (Org.), Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, Tomo I, Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005, p. 157 e ss., bem lembra a existência de políticas públicas constitucionais vinculantes.
75
Cf. Eros Roberto Grau, “Realismo e Utopia Constitucional”, in: Fernando Luiz Ximenes Rocha e Filomeno
Moraes (Coord.), Direito Constitucional Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor Paulo
Bonavides, Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 125.
76
Sobre os limites da discricionariedade administrativa na base da Constituição e dos Direitos Fundamentais,
para além do já clássico aporte de Celso Antônio Bandeira de Mello, Discricionariedade e Controle
Jurisdicional, 2ª ed., 8ª tir., São Paulo: Malheiros, 2007, v. em especial os recentes desenvolvimentos de
Andreas Krell, Discricionariedade Administrativa e Proteção Ambiental, Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004, Gustavo Binenmbojm, Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e
Constitucionalização, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, especialmente p. 193 e ss., bem como, por último, Juarez
Freitas, Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública, São Paulo:
Malheiros, 2007.
77
Nesse sentido, conferir Fábio Konder Comparato, “O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos,
culturais e sociais”. In: Sérgio Sérvulo da Cunha e Eros Roberto Grau (Org.). Estudos de direito
constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 256/257. Bem
destacando e desenvolvendo diversas das questões vinculadas ao controle de políticas públicas e o problema
do controle das normas orçamentárias, vale conferir o ensaio de Ana Paula de Barcellos,
“Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e
o controle jurídico no espaço democrático”, in: Revista de Direito do Estado, nº 3, jul.-set./2006, p. 17/54.
públicos, tal como recordam Holmes e Sunstein, há, de fato, boas razões de ordem
democrática a indicarem que as decisões sobre quais direitos efetivar (assim como sobre em
que medida se deve fazê-lo!) devam ser feitas do modo mais aberto possível e com a garantia
dos níveis mais efetivos de informação da população, destinatária por excelência das razões e
justificativas que devem sustentar as decisões tanto dos agentes políticos em geral quanto dos
juízes78. De outra parte, não se deve olvidar que uma série de garantias constitucionais, como
é o caso da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF) viabilizam o
acesso ao Judiciário, sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a direito, sem que se possa
excluir qualquer direito e, em princípio, qualquer tipo de ameaça de lesão ou lesão, ainda que
veiculada por meio de “políticas públicas”, seja decorrente da falta destas.79
De outra banda, conectado com a reserva do possível e com a distribuição das
competências no campo do sistema estatal, de um modo geral no que diz com os deveres
prestacionais vinculados aos direitos fundamentais, importa mencionar o papel do princípio
da subsidiariedade, cuja operatividade transcende a sua já tradicional importância no âmbito
do sistema federativo, ainda mais quando conectado com o princípio (e dever!) de
solidariedade e a própria dignidade da pessoa humana. Sem que se possa também quanto a
este ponto aprofundar o debate, há que recordar – de acordo com a precisa e oportuna lição de
Jörg Neuner – que o princípio da subsidiariedade assume, numa feição positiva, o significado
de uma imposição de auxílio e, numa acepção negativa, a necessária observância, por parte do
Estado, das peculiaridades das unidades sociais inferiores, não podendo atrair para si as
competências originárias daquelas80. Neste sentido, ainda na esteira de Neuner, o princípio da
subsidiariedade assegura simultaneamente um espaço de liberdade pessoal e fundamenta uma
“primazia da auto-responsabilidade”, que implica, para o indivíduo, um dever de zelar pelo
seu próprio sustento e o de sua família81. Já à luz destas sumárias considerações e a despeito
78
Segue texto original em inglês no qual embasamos, com ajustes, o nosso entendimento: “Because rights
result from strategic choices about how best to deploy public resources, there are good democratic reasons
why decisions about which rights to protect, and to what degree, should be made in as open a manner as
possible by a citizenry as informed as possible, to whom political officials, including judges, must address
their reasonings and justifications”. Stephen Holmes e Cass Sunstein, The Cost of Rights: Why Liberty
Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Company, 1999, p. 227.
79
Por evidente que a temática do controle jurisdicional das políticas públicas aqui não será desenvolvido de
forma autônoma, a não ser de modo indireto, já que vinculado a uma série de questões centrais para este ensaio.
Assim, para o devido aprofundamento, remetemos o leitor, entre outros, às monografias de Eduardo Appio,
Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil, Curitiba: Juruá, 2004; Maria Paula Dallari Bucci, Direito
Administrativo e Políticas Públicas, São Paulo: Saraiva, 2006, e, por último, Nagibe de Melo Jorge Neto, O
controle jurisdicional das políticas públicas. Concretizando democracia e os direitos sociais fundamentais,
Salvador: Editora Podivm, 2008.
80
Cf. Jörg Neuner, “Los Derechos Humanos Sociales”, in: Anuario Iberoamericano de Justicia
Constitucional, n. 9 (2005), p. 254-255.
81
Cf. Jörg Neuner, op. cit., p. 255.
de toda a controvérsia em torno do significado do princípio da subsidiariedade, vislumbra-se
aqui a premente necessidade de valorizar a sua operatividade, designadamente no campo da
distribuição de encargos no âmbito da efetivação de padrões mínimos de justiça social entre
os órgãos estatais e a sociedade, o que não significa necessariamente aderir a uma
fundamentação prevalentemente liberal dos direitos fundamentais e muito menos implica uma
cogente redução dos direitos sociais (especialmente na sua dimensão positiva) à
subsidiariedade, questões que aqui não poderão ser enfrentadas. De outra parte, o princípio (e
dever) da subsidiariedade, compreendido (também) no sentido de uma exigência do exercício
efetivo da autonomia e da cobrança de pelo menos uma co-responsabilidade pessoal (que, por
óbvio, deverá observar os critérios da proporcionalidade e atender às circunstâncias pessoais)
acaba por atuar inclusive na compreensão do próprio conteúdo e significado do princípio da
dignidade da pessoa humana, temática que por si só já demandaria uma investigação
específica e que, de resto, guarda conexão com o princípio da solidariedade. Apenas para
ilustrar as possíveis aplicações na esfera dos direitos sociais, há que referir o exemplo da
possibilidade de impor, em determinadas circunstâncias, até mesmo a cobrança de taxas
(proporcionais e que considerem as reais condições do usuário) na esfera do sistema público
de saúde, no âmbito de uma leitura harmonizada do princípio da universalidade e da
subsidiriedade, tal como já havíamos sugerido82. Igualmente a exigência de demonstração da
efetiva necessidade (hiposuficiência) por parte do autor das demandas judiciais, também já
referida em outra oportunidade, há que ser levada a sério no controle judicial dos pleitos,
especialmente quando individuais83.
No que diz com a atuação do Poder Judiciário, não há como desconsiderar o problema
da sua prudente e responsável auto-limitação funcional (do assim designado judicial self
restraint), que evidentemente deve estar sempre em sintonia com a sua necessária e já
afirmada legitimação para atuar, de modo pró-ativo, no controle dos atos do poder público em
prol da efetivação ótima dos direitos (de todos os direitos) fundamentais84. Que a atuação dos
órgãos jurisdicionais – sempre provocada – não apenas não dispensa, como inclusive exige
uma contribuição efetiva dos demais atores políticos e sociais, como é o caso do Ministério
Público, das agências reguladoras, dos Tribunais de Contas, das organizações sociais de um
modo geral, bem como dos cidadãos individualmente considerados, resulta evidente, mas nem
82
Cf. Ingo W. Sarlet e Mariana F. Figueiredo, “Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde:
algumas aproximações”, in: Direitos Fundamentais & Justiça, Ano 1- N° 1 –Out/Dez. 2007, p. 201 e ss.
83
Cf., novamente, Ingo W.Sarlet e Mariana F. Figueiredo, op.cit., p. 201 e ss.
84
Sobre o tema, v. a imprescindível contribuição de Cláudio Ari Mello, Democracia Constitucional e Direitos
Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
sempre corresponde a uma prática institucional efetiva nesta seara. Da mesma forma,
imprescindível, como bem aponta relevante doutrina, maior investimento na análise do perfil
(e da capacidade) institucional do Poder Judiciário na esfera da promoção da justiça social e,
portanto, a importância de se instaurar um autêntico diálogo interinstitucional85, que, por sua
vez, passa pelo respeito ao princípio e correspondente dever de cooperação. Também neste
contexto assumem relevo os princípios da moralidade e probidade da administração pública,
de tal sorte que – mesmo sem desenvolver o ponto – é possível afirmar que a maximização da
eficácia e efetividade de todos os direitos fundamentais, na sua dupla dimensão defensiva e
prestacional, depende, em parte significativa (e a realidade brasileira bem o demonstra!) da
otimização do direito fundamental a uma boa (e portanto sempre proba e moralmente
vinculada) administração.
Por derradeiro, já nos encaminhando para o fechamento desta etapa e cientes de que
diversos aspectos desafiam maior desenvolvimento (além de outros que sequer foram
tangenciados) reafirmamos aqui o nosso entendimento de que embora o conteúdo
judicialmente exigível dos direitos sociais como direitos a prestações não possa ser limitado à
garantia do mínimo existencial, quando este estiver em causa (e pelo menos nesta esfera) há
que reconhecer aquilo que já se designou de direito subjetivo definitivo a prestações (como
tem sido o caso de Robert Alexy e José Joaquim Gomes Canotilho, entre outros) e, portanto,
plenamente exigível também pela via jurisdicional. As objeções atreladas à reserva do
possível não poderão prevalecer nesta hipótese, exigíveis, portanto, providências que
assegurem, no caso concreto, a prevalência da vida e da dignidade da pessoa, inclusive o
cogente direcionamento ou redirecionamento de prioridades em matéria de alocação de
recursos, pois é disso que no fundo se está a tratar86. Até mesmo a tese de que a reserva do
possível poderia servir de argumento eficiente a afastar a responsabilidade do Estado (por
ação ou omissão, vale dizer!) não nos parece possa ser aceita, ainda mais de modo
85
Neste sentido, v., em especial, discorrendo sobre a ótica da promoção da justiça distributiva por meio da
atuação do Poder Judiciário, José Reinaldo Lima Lopes, Direitos Sociais. Teoria e Prática, São Paulo: Método,
2006, especialmente p. 185 e ss., bem como, Gustavo Binenbojm e André Rodrigues Cyrino, “O direito à
moradia e a penhorabilidade do bem único do fiador em contratos de locação. Limites à revisão judicial de
diagnósticos e prognósticos legislativos”, in: Direitos Sociais, p. 997 e ss., chegando a apontar para uma “virada
institucional”. Na mesma linha e contidos na mesma obra coletiva, v., ainda, os já referidos aportes de Luís
Roberto Barroso, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira Souza Neto.
86
Neste sentido, v. o que sustentamos pelo menos desde a publicação da nossa tese de doutoramento na
Alemanha (Ingo Wolfgang Sarlet, Die Problematik der sozialen Grundrechte in der brasilianischen
Verfassung und im deutschen Grundgesetz: eine rechtsvergleichende Untersuchung, Frankfurt am Main:
Peter Lang, 1997) e posteriormente na obra A Eficácia dos Direitos Fundamentais (já referida e com primeira
edição de 1998), por último, a enfática e bem fundamentada manifestação de Carlos Alberto Molinaro e
Mariângela Guerreiro Milhoranza, “Alcance político da jurisdição no âmbito do direito à saúde”, in: Araken
de Assis (coord.), Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde, Porto Alegre:
Notadez, 2007, p. 220 e ss.
generalizado, na esfera das prestações que inequivocamente dizem com o mínimo existencial.
Que a defesa de um direito subjetivo definitivo na esfera das prestações vinculadas ao mínimo
existencial e a superação da reserva do possível especialmente neste âmbito – aqui retomada
sem maior desenvolvimento – não afasta a necessidade de se discutir uma série de problemas
(parte dos quais já anunciados) e não responde todas as indagações, resulta evidente.
Neste sentido, empreenderemos – no próximo segmento - a tentativa de ilustrar alguns
dos aspectos com base no exemplo do direito à saúde. Por outro lado, antes de prosseguirmos,
consideramos oportuna a referência ao pensamento de Jorge Reis Novais87 ao afirmar que a
reserva do possível (antes de atuar como barreira intransponível à efetivação dos direitos
fundamentais, importa acrescentar!) deve viger como um mandado de otimização da eficácia
e efetividade dos direitos fundamentais, impondo ao Estado o dever fundamental de, tanto
quanto possível, promover as condições ótimas de efetivação da prestação estatal em causa,
preservando, além disso, os níveis de realização já atingidos, o que, por sua vez, aponta para a
necessidade do reconhecimento de uma proibição do retrocesso, ainda mais naquilo que se
está a preservar o mínimo existencial88. Neste contexto, embora aqui não se possa
desenvolver o ponto, já se apontou para uma espécie de entrenchment (entrincheiramento) dos
direitos fundamentais, que, todavia, não inviabiliza ajustes e mesmo restrições, mas opera
como blindagem que objetiva a manutenção de um mínimo em concretude normativa,
notadamente, do assim designado núcleo essencial dos direitos fundamentais, especialmente,
no caso dos direitos sociais, abarcando os níveis de concretização deste núcleo essencial por
parte do legislador89.
5 – Considerações finais
Apesar dos inúmeros aspectos a serem inventariados e discutidos e mesmo
considerando o caráter incompleto e sumário da nossa análise, a evolução constitucional
desde outubro de 1988 revela que, tanto na seara doutrinária quando jurisprudencial, apesar de
87
Jorge Reis Novais. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004, p. 295.
88
Sobre a proteção contra um retrocesso v., Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p.
442 e ss., bem como a recente coletânea de Christian Courtis (Comp.), Ni un paso atrás. La prohibición de
regresividad en materia de derechos sociales, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2006. Por último, v. ainda
Felipe Derbli, O Princípio da Proibição de Retrocesso Social na Constituição de 1988, Rio de Janeiro:
Renovar, 2007.
89
Sobre o tema, especialmente referindo a figura do entrincheiramento, v. Walber de Moura Agra, A
reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. Densificação da Jurisdição Constitucional
Brasileira, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 300 e ss.
algumas posições dissonantes, se verifica, em termos gerais, a construção de uma dogmática e
prática jurisdicional comprometida com os direitos sociais fundamentais e a garantia de um
regime jurídico-constitucional compatível.
Tal fenômeno ocorre tanto no que diz respeito ao reconhecimento em si da condição
de verdadeiros direitos fundamentais aos direitos sociais (pelo menos dos assim designados
direitos sociais básicos, ligados ao mínimo existencial, onde parece existir um consenso)
quanto na superação, pelo menos em boa parte, das principais objeções que lhes são
direcionadas, seja no que diz com a sua constitucionalização, seja no concernente a sua
condição de direitos exigíveis. Com efeito, os direitos sociais não apenas têm sido
considerados como dignos de tutela contra intervenções ilegítimas por parte dos poderes
públicos e dos particulares, como têm sido constantemente tratados como direitos subjetivos
e, como tal, judicialmente exigíveis, ainda que se possa controverter a respeito de eventuais
excessos aqui ou acolá, bem como estejam a aumentar em número os que questionam a
legitimidade do Poder Judiciário para impor, em face dos demais órgãos estatais, os direitos
sociais na sua dimensão positiva.
Se, por outro lado, é preciso reconhecer que a previsão de direitos sociais na
Constituição, nem mesmo quando lhes é garantido um regime jurídico qualificado, não é, por
si só, suficiente para assegurar a todos os brasileiros uma vida digna, a fase inaugurada com a
atual Carta Magna tem demonstrado que a tutela constitucional dos direitos sociais como
direitos fundamentais tem sido um fato relevante tanto como pauta permanente de
reivindicações na esfera das políticas públicas, quanto como poderoso instrumento para, na
ausência ou insuficiência daquelas, ou mesmo pela falta de cumprimento das próprias
políticas publicas, propiciar o assim designado empoderamento do cidadão individual e
coletivamente considerado para uma ação concreta, ainda que nem sempre idealmente efetiva
e muitas vezes mais simbólica. Nesta perspectiva, o fato de os direitos sociais serem
considerados autênticos direitos fundamentais e, como tais, levados a sério também na sua
condição de direitos subjetivos, tem também servido para imprimir à noção de cidadania um
novo contorno e conteúdo, potencialmente mais inclusivo e solidário, o que por si só já
justificaria todo o esforço em prol dos direitos sociais e nos serve de alento para seguirmos
aderindo ao bom combate às objeções manifestamente infundadas que lhes seguem sendo
direcionadas.
De outra parte, como já apontado em diversas passagens do texto, embora sem a
pretensão de uma sistematização, percebe-se uma tendência de superação dos extremismos
que marcaram a evolução constitucional brasileira na esfera da eficácia e efetividade dos
direitos sociais. Entre a negação de sua normatividade (considerando-os como sendo previstos
em normas destituídas de aplicabilidade direta) e a tendência de, em nome dos direitos sociais
(e o caso do direito a saúde se revela emblemático) assegurar-se praticamente tudo o que for
reclamado pela via judicial, verifica-se atualmente, embora ainda com maior ênfase na
doutrina, a busca de um equilíbrio possível, apostando em critérios racionais e razoáveis, que
efetivamente possam balizar uma efetividade maior para um maior numero de pessoas. A
constatação de que a consideração dos direitos sociais como direitos exigíveis não transforma
o Poder Judiciário no agente privilegiado do processo, pois não poderá substituir uma ampla e
coerente política dos direitos fundamentais (e não apenas dos direitos sociais), por mais que
seja correta e deva ser endossada, não pode, por seu turno, conduzir ao afastamento dos
direitos sociais do crivo dos Tribunais. O que há de ser discutido e melhor equacionado, é a
forma pela qual há de atuar o Poder Judiciário, visto que este – assim como seus órgãos e
agentes - também se acha vinculado diretamente pelos deveres de proteção dos direitos
fundamentais.
Da mesma forma, como foi objeto de várias contribuições citadas neste
trabalho, há que apostar mais no estudo do papel do Poder Legislativo e do Poder Executivo,
assim como nos mecanismos de aperfeiçoamento do controle social em relação às políticas
públicas.
Assim, há como afirmar que um dos principais desafios com os quais nos deparamos
atualmente e o de resgatar as boas (pois nem todas talvez o sejam!) promessas da
modernidade, dentre as quais assume papel de destaque institucionalização e a permanente
“atualidade dos direitos sociais90”, contribuindo para que também as instituições do Estado
Democrático de Direito consagrado pela nossa Constituição, possam, antes tarde do que
nunca, tornar efetivas tais promessas, especialmente naquilo que estas dizem respeito à
implantação de níveis suficientes de justiça social, em outras palavras, à garantia de uma
existência digna (uma vida com qualidade) para todos. Este e um compromisso de todos,
Estado e Sociedade, e o êxito na sua concretização pressupõe a superação das posturas
maniqueístas e fundamentalistas, assim como o abandono do tão difundido jogo do empurraempurra, que assola o cenário político nacional, mediante a sua substituição por uma lógica da
cooperação e do diálogo. Com efeito, os direitos sociais e a cidadania merecem este
investimento, para que cada vez mais a comemoração do aniversário da nossa CF não fique
restrita ao ambiente acadêmico e se transforme num símbolo de um genuíno patriotismo
constitucional.
90
Sobre o tópico, v. as ponderações de José Luis Bolzan de Morais, Do Direito Social aos Interesses
Transindividuais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 181 e ss.
Download

artigo Ingo DF sociais PETROPOLIS final 01 09 08