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ANAIS
3º CONGRESSO BRASILEIRO DE
PSICOTERAPIA JUNGUIANA
TEMA CENTRAL:
Fenômeno da Violência e Saúde Mental
São Paulo, 5 a 8 de novembro de 2008
Brasil
PROJETO E DIVULGAÇÃO:
EPPA - Escola Paulista Psicologia Avançada
2008
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ANAIS
3º CONGRESSO BRASILEIRO DE
PSICOTERAPIA JUNGUIANA
ANTÔNIO PIRES SOBRINHO
(ORGANIZADOR)
Os textos apresentados são os resumos dos trabalhos encaminhados
pelos autores. Foram respeitados os textos originais, tendo sido,
no entanto, realizadas algumas alterações com fins de padronização.
AGRADECIMENTOS
EPPA – Escola Paulista de Psicologia Avançada
Universidade Cruzeiro do Sul
Presidente do Congresso Profa. Maria Claudina Mendes
A todas aquelas pessoas que de alguma forma se
envolveram com os trabalhos para a realização do
3° Congresso Brasileiro de Psicoterapia Junguiana
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ANAIS
3º CONGRESSO BRASILEIRO DE
PSICOTERAPIA JUNGUIANA
Presidente
Profa. Ms. Maria Claudina Mendes
Comissão Organizadora
Antônio Pires - diretor da EPPA
Profa. Ms. Maria Claudina Mendes
Profa. Dra. Maria Zelia Alvarenga - SBPA
Profa. Dra. Rosa Maria Lopes Affonso - EPPA
Profa. Dra. Terezinha Calil Padis Campos - EPPA
Profa. Dra. Yolanda Cintrão Forghieri - EPPA
Comissão de Tema Livre
Profa. Ms. Maria Claudina Mendes
Profa. Dra. Maria Zelia Alvarenga - SBPA
Profa. Dra. Rosa Maria Lopes Affonso - EPPA
Profa. Dra. Terezinha Calil Padis Campos - EPPA
Profa. Dra. Yolanda Cintrão Forghieri - EPPA
Prof. Ms. Guilherme Scandiucci
Comissão Científica
Prof. Dr. Paulo Afranio Sant’Anna
Antônio Pires - diretor da EPPA
Profa. Ms. Maria Claudina Mendes
Profa. Dra. Maria Zelia Alvarenga - SBPA
Profa. Dra. Yolanda Cintrão Forghieri - EPPA
Prof. Ms. Guilherme Scandiucci
Comissão de Divulgação
Antônio Pires - EPPA
Luciana de Oliveira - EPPA
Neusa Saito - EPPA
Ricardo Pires – EPPA
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ANAIS
3º CONGRESSO BRASILEIRO DE
PSICOTERAPIA JUNGUIANA
Palavra da Presidente
A relevância do tema central de nosso Congresso está em conformidade com a
Organização Mundial de Saúde (OMS), que no ano de 2002 destacou que “A Violência
se constitui em fenômeno de saúde pública que afeta tanto a saúde individual, quanto a
coletiva”.
Diante da atualidade e da ocorrência - cada vez mais frequente - de manifestações de
violência em todos os extratos sociais e em todos os setores de nossa sociedade,
visamos, neste Congresso, lançar novos olhares sobre o Fenômeno da Violência em
sua articulação com as questões referentes à Saúde Mental.
Procuraremos restabelecer conexões entre as questões sociais, nossas indagações e a
busca de soluções para a violência que permeia nosso cotidiano e parece caracterizar
a era em que vivemos, a fim de melhor nos instrumentalizarmos para dar conta, em
nossas práticas clínicas, políticas, jurídicas e sociais, dessa demanda que vem se
agravando dia a dia.
Tendo como referencial teórico a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung (1875 1961), segundo o qual “Nós, terapeutas, não podemos evitar o confronto com a História
Contemporânea”, nosso Congresso objetiva viabilizar a troca de informações e de
conhecimento acerca do Fenômeno da Violência em sua articulação com as questões
ligadas à Saúde Mental, propondo discutir as diversas manifestações de violência no
âmbito social com profissionais e estudiosos das áreas da Saúde, da Educação e das
Defesas dos Direitos Civis e Constitucionais através de Palestras, Conferências,
Mesas-Redondas e Apresentações de Temas Livres.
Convidamos todos a participar, opinar, sugerir e questionar nossos expositores.
Bem vindos ao 3º Congresso Brasileiro de Psicoterapia Junguiana!
Maria Claudina Mendes
Presidenta
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ANAIS
3º CONGRESSO BRASILEIRO DE
PSICOTERAPIA JUNGUIANA
INDICE
A Agressividade Normal e Patológica: Um estudo da Psicologia Simbólica Junguiana........11
Carlos Amadeu Botelho Byington
Sob o Domínio da Mãe Terrível: Violência Física e Psicológica Contra a Infância e
Adolescência............................................................................................................................16
Maria Claudina Mendes
Um Aconselhamento Solidário : o Yolandismo........................................................................21
Yolanda Cintrão Forghieri
“Ética e Rituais Necessários ao Mundo Atual”.........................................................................30
Laura Villares de Freitas
A Violência como Experiência de Violação do Self e as Práticas Meditativas Orientais como
Possibilidade de Reconstituição do Contato com o Self........................... .............................33
Elisabete Freire Magalhães
Exploração da Sombra por Meio de Dramatização num Espaço Público..............................37
Marcia Alves Iorio Quilici
O Jogo de Areia como Recurso para Escuta, Atenção e Cuidado a Crianças Violentadas,
em Intervenções Psicológicas Breves no Hospital.................................................................40
Simone Corrêa Silva
Quando a Violência Dilacera o Corpo......................................................................................44
Sandra Regina Rodrigues
A Maldição de Eva....................................................................................................................47
Noely Montes Moraes
Violação de Direitos Humanos de Pessoas com Sofrimento Psíquico: Relato de Experiência
da Comissão Municipal de Direitos Humanos de São Paulo..................................................50
Marieta Judith Geocze
Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (VDCA): Que Tema é Este?..............56
Maria Amélia Azevedo
A Madona Negra de Aparecida e a Sustentabilidade da Paz Social......................................64
Lucy Penna , Ph.D.
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Violência Contemporânea como Meio de Salvação ou Destruição da Humanidade.............69
Waldemar Magaldi Filho
Transformações do Conflito Agressivo: Perspectivas Pessoal e Política – Possibilidades
e Limites...............................................................................................................................73
Andrew Samuels
Cultura Hip Hop: A Violência Simbólica e Orgulho Negro...................................................82
Guilherme Scandiucci
Sombras da Cidade: A Abordagem da Psicologia Orientada ao Processo em
Psiquiatria.............................................................................................................................89
Ana Rezende & Nick Turner
Ágora e Violência: Um Estudo Junguiano...........................................................................94
Paola Vieitas Vergueiro
A Sobrenaturalização da Violência: Significações e Rituais...............................................96
Maria Ângela Vilhena
Resiliência e Encontro Transformador em Morador de Rua na Cidade
de São Paulo........................................................................................................................99
Aparecida Magali de Souza Alvarez
Diferentes Olhares para a Agressividade e a Violência...................................................103
Laura Marisa Carnielo Calejon
Violencia Y La Agresividad, Su Devenir. Un Lectura Desde Lo Histórico Cultural............105
Guillermo Arias Beatón
Violência e Alteridade......................................................................................................... 111
Paulo Afrânio Sant’Anna
A Morte e o Horror da Vida a Serviço da Completude do Ser............................................117
Maria Ruth Gonçalves Pereira
O Herói e a Sutil Violência...................................................................................................122
Fernando Cavalheiro
Violência Sexual Doméstica Contra Crianças e Adolescentes: A Dor do Corpo e o
Silêncio da Alma ..................................................................................................................124
Luis Fernando Rocha
Crime Passional: Quando o Amor vira Ódio.......................................................................128
Maria de Fatima Franco dos Santos
Os Transtornos da Ansiedade na Atualidade: A importância do Trabalho Corporal
no Campo Terapêutico........................................................................................................130
Suzana Delmanto
Estresse Pós-Traumático e Abordagem Corporal: Um Enfoque Junguiano....................133
Paulo Toledo Machado Filho
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A Violência Urbana no Brasil e o Conceito Jungiam no de Sombra..................................137
Antonio Maspoli de Araújo Gomes
A Violência na Luta pelo Poder na Família dos Átridas: A Instituição do Código de Honra....144
Maria Zelia de Alvarenga
Justição Penal Humana e Solidária....................................................................................147
Roberto Delmanto Junior
A política também entra no consultório?
A idéia da Clínica Política no mundo contemporâneo........................................................149
Andrew Samuels
Roda Anti-violência por Meio de Danças Circulares, Artesanato e Contos.......................151
Lydiane Regina Pereira Fabretti
Tânia Pessoa de Lima
Uma Construção Simbólica para um novo Brasil...............................................................154
Adriano Augusto C. F. dos Santos & Kátia B. Belmonte
Imagens de Poder no Meio Acadêmico e suas Conseqüências na Personalidade do
Aluno Perante o Saber.........................................................................................................155
Ana Claudia Yamashiro Arantes
De Athena a Cinderela: Um estudo de caso sobre estratégias e violência.......................156
Anna Cristina Pires de Mello
A Violência na Constituição da Identidade Homossexual..................................................158
Paulo Afrânio Sant’anna & Giselle de Aguiar Lins
A Psicologia Arquetípica como Estratégia de Recuperação do Transtorno Mental,
em grupos de Ajuda e Suporte Mútuo para Usuários e Familiares...................................161
Gloria Lotfi
Games e subjetivação: Novos Possíveis, Contribuições da Psicologia Analítica.............162
Adriano Augusto dos Santos & Kátia Bautista Belmonte
Isolamento e Abandono na Infância e suas Conseqüências na Fase Adulta:
Compreendendo a Personagem Amélie Poulain................................................................163
Márcia Rodrigues Sapata
Arteterapia e Empoderamento; De Lagarta A Borboleta, Uma Escolha Possível.............166
Maria Teresa Provenzano da Luz
O Herói como Arquétipo de Crise e Resiliência..................................................................171
Milena Valelongo Manente; Regina Paganini Furigo
Mandala: Os Efeitos de sua Aplicação do Comportamento da Atenção Concentrada
dos Adolescentes................................................................................................................174
Monalisa Dibo
Spawn, O soldado do Inferno - Mito e Religiosidade nos Quadrinhos...............................178
Cristina Levine Martins Xavier
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A Agressividade Normal e Patológica: Um estudo da Psicologia Simbólica Junguiana¹
Carlos Amadeu Botelho Byington²
Pelo fato de ter um papel central na violência, no crime e na guerra, a agressividade é uma
função psíquica que tem sido tradicionalmente estigmatizada como destrutiva.
Junto com a sexualidade, representada pela lascívia, a agressividade sob a forma da ira também
foi incluída entre os sete pecados capitais. A pregação cristã de amar ao próximo como a si
mesmo tornou-se também um importante obstáculo moral na cultura ocidental para se estudar e
compreender a agressividade dentro da teoria das polaridades, na perspectiva arquetípica. A
ligação feita pela psicanálise entre ela e o instinto de morte e a tendência parricida presente no
Complexo de Édipo contribuiu ainda mais para que fosse vista como exclusivamente negativa.
Para evitar a estigmatização pela unilateralidade e pela patologização dos fenômenos psíquicos,
a teoria das polaridades desenvolvida por Jung concebe a psique sempre bipolar, o que lhe
permitiu descrever a expressão positiva e também negativa de todos os arquétipos. O Arquétipo
da Mãe, por exemplo, dependendo do contexto, pode se expressar como a fada madrinha ou
como a bruxa maligna devoradora. O Arquétipo do Pai pode ser vivenciado como guia e protetor
ou como repressor e castrador. O Arquétipo do Herói pode atuar quando um bombeiro está em
missão de salvamento ou quando um terrorista se mata assassinando pessoas. O Arquétipo do
Amor pode tornar uma pessoa feliz ou destruí-la pelo suicídio ou pelo homicídio, e assim por
diante. Essa bipolaridade psíquica ensejou a descrição do conceito de Sombra complementar à
Consciência. Nesse sentido, podemos dizer que todos os arquétipos podem contribuir para formar
ou a Consciência ou a Sombra, dependendo de sua atuação no desenvolvimento.
Para estender a bipolaridade para todas as funções psíquicas, a Psicologia Simbólica Junguiana,
por mim criada, concebe todas as entidades psíquicas como símbolos estruturantes e todas as
funções psíquicas como funções estruturantes da Consciência. Segundo Jung, os arquétipos
são virtuais e se expressam por imagens arquetípicas e complexos. Quando percebemos todas
as imagens e complexos como símbolos e funções estruturantes, todos arquetípicos e bipolares,
podendo se expressar como normais ou patológicos, compreendemos que sua interação constitui
o processo de elaboração simbólica, que é o cerne da atividade psíquica para formar a Consciência.
Dentre as inúmeras funções estruturantes, distinguimos a sexualidade infantil e adulta descritas
por Freud; o poder, enfatizado por Adler; e muitas outras, como a busca de totalidade, estudada
por Jung; a vergonha, por Mario Jacobi; a arrogância, por Luigi Zoja; a inveja, por Melanie Klein e
por mim; o perdão, por Sílvia Avian; o sacrifício, por Vera Sá e a agressividade, por Konrad
Lorenz.
Aplicando à função estruturante os conceitos de fixação e de defesa descobertos por Freud,
podemos dividir os símbolos e as funções estruturantes em normais e defensivos ou patológicos.
Normais são os que são elaborados de maneira plena e defensivos ou patológicos são aqueles
que sofrem fixações e passam a ser expressos de maneira deformada e, por vezes, destrutiva,
na Sombra. Esta conceituação reúne a psicanálise e a psicologia analítica com algumas
modificações, porque todas as defesas são aqui consideradas sempre patológicas, enquanto
que na psicanálise também fazem parte do desenvolvimento normal, como ocorre com a repressão.
Já a Sombra é aqui sempre considerada patológica, enquanto que na psicologia analítica é muitas
vezes considerada normal e até mesmo capaz de incluir todo o inconsciente coletivo. Dentro
desta perspectiva teórica, temos um referencial capaz de conceber a raiz arquetípica de todos os
fenômenos psíquicos e de nele incluir um espectro de transição do normal ao patológico, ou seja,
uma escala que vai de sua atuação normal e construtiva até seus vários graus de destrutividade,
percebidos em função da maior ou menor gravidade de sua patologia. Uma vez resgatada do
1
¹Palestra proferida no 3º Congresso Brasileiro de Psicoterapia Junguiana, EPPA. Universidade Cruzeiro do Sul.
São Paulo, 07 de novembro de 2008.
2
Médico psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
Educador e Historiador. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. E-mail: [email protected]
Site: www.carlosbyington.com.br
11
estigma unilateral da destrutividade, podemos agora estudar a agressividade em toda sua variação
arquetípica, que incluiu, na patologia, sua forma neurótica, psicopática, borderline e psicótica.
Na Psicologia Simbólica Junguiana, o centro da Consciência é ocupado pela polaridade Ego–
Outro. O Ego é formado pelo conjunto das representações do sujeito e o Outro, pelas
representações do objeto.
Isto posto, vemos que a agressividade é aqui considerada uma função estruturante que pode ser
normal ou defensiva, isto é, patológica. A agressividade é o contrapólo da afetividade, pois ela é
a maneira de o Ego expressar o não, o sinal vermelho para o Outro, enquanto que a afetividade
expressa o sim, o sinal verde no relacionamento com o Outro.
Além disso, vemos que ela possui duas grandes vertentes. Uma, reativa, e a outra, transgressora.
A primeira é desencadeada pela frustração, para dizer não às situações de desprazer, de dor, de
ameaça e de sofrimento de um modo geral. Nesse sentido, a agressividade é companheira da
ética, pois ao dizer não quando é ativada pela frustração, ela a invoca para determinar se essa
frustração é necessária para o processo de individuação, e nesse caso a agressividade deve ser
contida, assim como o não, ou se deve confirmar o não e se opor à situação em andamento.
Se o dentista anestesia um dente para tratá-lo, a pessoa sente dor quando a agulha penetra na
gengiva. O primeiro impulso é dizer não e suspender o tratamento. No entanto, a função ética,
ativada paralelamente à agressividade, diz que a pessoa deve conter o não para seu próprio
bem. A seguir, a pessoa contém a agressividade e o não, e permite que o dentista prossiga.
Já a agressividade transgressora expressa o poder de o Ego penetrar no Outro ou de ser por ele
penetrado para conhecê-lo e modificá-lo.
Um homem está em pé no jardim admirando um lindo pôr-do-sol, quando sente uma ferroada na
perna. Sua agressividade expressa um não veemente através de um grito de dor. Ele levanta a
calça e vê uma formiga saúva no lugar da dor. A função ética ativada confirma o não e autoriza o
ataque ao inimigo que, a seguir, é esmagado com um tapa furioso, acompanhado de imprecações
imorais contra a genitora da moribunda.
A agressividade reativa é normal e útil desde a infância, quando o bebê chora ou berra de raiva e
protesta por sentir mal-estar, dor, sono ou fome. A frustração está sempre na essência desse
não, que expressa o repúdio a qualquer vivência desagradável. Muito precocemente, porém, ela
pode ser fixada e passar a operar como função estruturante defensiva, caso em que a criança se
torna birrenta e passa a dizer não compulsivamente.
A frustração e a agressividade reativa normal da criança passam naturalmente, quando seu
protesto é atendido e sua frustração aliviada. A criança acolhida e cuidada (caring and holding, de
Winnicott) aprende aos poucos a agüentar e a elaborar suas frustrações. Quanto menos a criança
é acolhida e cuidada, mais ela se torna propensa a fixar e a tornar defensiva sua agressividade
reativa e a não conseguir elaborar saudavelmente suas frustrações.
A criança é um ser inteligente. Desconsiderar esse dom e tratá-la como incapaz deforma sua
capacidade de compreensão. Tudo que a criança quer é ser um adulto. É necesário compreender
essa vocação e ajudar a criança a realizá-la. Quando se trata uma criança com castigos, como
se ela não quisesse ser adulta, induzimos essa noção na sua personalidade e entravamos o seu
desenvolvimento.
Podemos dizer que quanto mais saudável e desenvolvido é o Ego, mais ele consegue agüentar
as frustrações na vida e melhor ele pode elaborar criativamente o sofrimento. Uma das formas de
avaliarmos a capacidade do Ego de alguém é saber como a pessoa reagiu durante as crises que
teve na vida.
Isto não quer dizer, porém, que devamos impedir que as crianças tenham frustrações e
agressividade reativa, pois ambas desempenham um papel importante no desenvolvimento e no
fortalecimento do Ego. Do mesmo modo que a criança criada numa redoma, e que não é exposta
aos microorganismos patogênicos do seu meio, não desenvolve anticorpos para proteger-se das
infecções, também aquela que é impedida de se frustrar cresce mimada e com o seu Ego mal
preparado para enfrentar as frustrações da vida. Por outro lado, se deixarmos uma criança exposta
em demasia às doenças, por exemplo, sem vaciná-la, ela poderá vir a adoecer e até morrer. Da
mesma forma, se a deixarmos sem cuidado e sujeita a frustrações em excesso, ela poderá vir a
sofrer fixações e desenvolver agressividade patológica. Como sempre, no meio termo está a
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virtude, mas para praticá-la é preciso sensibilidade, afetividade, inteligência e cultura psicológica.
Agressividade e Caráter
O caráter é a estrutura moral da personalidade, que respalda o Ego para elaborar as frustrações
e empregar a agressividade reativa criativamente para mudar inteligentemente o entorno através
da agressividade transgressora. O caráter pode ser malformado, tanto pelo abandono da criança,
quanto pelo mimo e superproteção, pois ambos não preparam o Ego para lidar criativamente
com a frustração e a agressividade.
A criança mal cuidada, mal tratada, abusada e abandonada está propensa à má formação do
caráter. Nesse sentido, podemos dizer que uma sociedade que não cuida de suas crianças e as
abandona nas ruas está preparando os criminosos de amanhã. Essa irresponsabilidade social
se torna perversa quando a ênfase principal é colocada no reforço da polícia e dos presídios para
combater a criminalidade, sem investir em proporções iguais no atendimento das crianças de rua
e das famílias que vivem na miséria, onde o crime domina, sobretudo aquele coordenado pelo
narcotráfico, pois ele coopta sistematicamente os jovens. Essa política social é contraditória,
pois, ao mesmo tempo em que investe na repressão, ao abandonar suas crianças na rua propicia
a criminalidade. Essa orientação social torna-se ainda mais questionável quando a principal
ideologia repressora é o encarceramento e não a educação dos presos e o seu preparo profissional
para a retomada da vida em liberdade, porque, nesse caso, os presídios, ao invés de reformarem
cidadãos, transformam-se em verdadeiras escolas do crime.
A superproteção e o mimo também enfraquecem o caráter. O mimo o faz ao impedir que a criança
sofra as frustrações normais da vida. Minha orientação pedagógica é para que os pais não impeçam
as crianças de sofrerem as frustrações normais da vida, como, por exemplo, carregar a criança
para ela não cair quando está aprendendo a andar. Excesso de amor também pode fazer mal à
criança. Pode parecer surpreendente, mas não é raro que a galinha que deita sobre seus pintinhos
freqüentemente os fira e até os mate com seus próprios pés. Tive uma cadela que matou seus
filhotes de tanto lambê-los. Nesse sentido, o cuidado obsessivo e possessivo com as crianças
pode enfraquecer seu Ego e deformar o seu caráter. Tudo que é em excesso pode gerar fixações
e defesas, inclusive o amor. A vida é repleta de frustrações e, por isso, devemos educar as
crianças para enfrentá-las e não para que não as tenham.
A superproteção freqüentemente encobre o abandono da criança, como é o caso de pais
emocionalmente ausentes que cumulam seus filhos de presentes. A criança precisa de
acompanhamento amoroso e não há presente que o substitua. Freqüentemente nos
surpreendemos com jovens de famílias de classe média ou alta, que praticam crimes hediondos
como os delinqüentes que foram criados na rua. É que sua agressividade se tornou igualmente
fixada e defensiva, ou seja, patológica, por terem sido mimados e superprotegidos e não terem
sido educados para operacionalizar saudavelmente suas frustrações.
A Educação da Agressividade Normal
Educar é propiciar o desenvolvimento da personalidade. A função estruturante da agressividade
deve ser educada e desenvolvida como qualquer outra. O acolhimento e a tentativa de
compreensão do não permitem ensinar à criança a transformar a agressividade reativa em
transgressora. Este é um ensinamento precioso para fortalecer o Ego e formar o caráter. Em
muitas circunstâncias, a vida é uma luta e é preciso formar pessoas para o bom combate.
Reprimir a agressividade reativa e transgressora das crianças com sermões e castigos é uma
forma de domesticar a personalidade e não de propiciar o seu amadurecimento. Transformar
nosso lado lobo em cordeiro é uma forma de criar o lobo na Sombra para que um dia ataque de
modo disfarçado e traiçoeiro. Bater numa criança para castigá-la, além de ser um exemplo de
covardia, é uma demonstração de ignorância sobre o funcionamento da mente infantil.
O acolhimento e a modificação da relação com a criança em função da sua agressividade reativa
e do seu não é o melhor caminho para ensiná-la a empregar posteriormente sua agressividade
transgressora para mudar saudavelmente o seu entorno.
As regras e os limites devem ser colocados para as crianças como os regulamentos o são para
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os adultos. Há que se transmitir que as regras não são impostas pelos adultos contra as crianças,
mas que vivemos com elas para respeitarmos a nós e aos outros, incluindo nesse Outro nosso
corpo, que precisa ser compreendido e cuidado.
Muitas atividades propiciam a educação da agressividade normal dentro de regras e limites. Os
jogos são especialmente indicados para se educá-la junto com o prazer. O futebol, por exemplo,
é uma forma extraordinária de desenvolver a agressividade de maneira exuberante, junto com a
ética, lutando e competindo com valentia e destemor, dentro de regras e limites que incluem até
mesmo a frustração da derrota, que é o principal não a ser enfrentado no jogo.
A Agressividade Defensiva ou Patológica
As fixações transformam as funções estruturantes normais em defensivas ou patológicas, cujo
grau de gravidade forma defesas neuróticas, psicopáticas, borderline ou psicóticas. Como todas
as demais funções estruturantes, a agressividade adquire características próprias em cada uma
delas, principalmente porque a fixação da agressividade reativa contamina também
defensivamente a agressividade transgressora de forma variada.
A Agressividade Neurótica
A partir da fixação e da formação de uma defesa neurótica, a agressividade apresenta-se de
maneira destrutiva numa personalidade que, de um modo geral, é bem intencionada e mantém
sua inserção social com uma produtividade relativamente satisfatória. São pessoas que têm família,
trabalham e se esforçam para praticar o bem, mas que apresentam manifestações agressivas
destrutivas que repetem compulsivamente. Freqüentemente brigam desastrada e
improdutivamente com os cônjuges, os filhos, os colegas de trabalho ou até com desconhecidos
na rua. A agressividade neurótica mistura defensivamente a agressividade reativa com a
agressividade transgressora.
Percebemos que a agressividade é patológica quando ela não tem uma finalidade empreendedora
e, pelo contrário, só traz sofrimento para as pessoas próximas e para si mesmo, com mal-estar e
culpa. Essa agressividade neurótica freqüentemente torna a pessoa cronicamente frustrada e
infeliz. Ela é neurótica porque é parcialmente inconsciente, ou seja, a pessoa não se dá conta do
que faz e freqüentemente apresenta uma defesa projetiva que culpa os outros por atacá-la e
uma defesa coadjuvante racionalizadora que justifica inteligentemente essa destrutividade. Apesar
dessa projeção defensiva, no entanto, a agressividade neurótica apresenta muita culpa, a qual
eventualmente pode fazer com que a pessoa busque terapia, seja por conselhos de outros, seja
pela própria agressividade e destrutividade que causa, acompanhada de depressão ou ansiedade
por ela geradas.
A vida conjugal ou profissional de pessoas neuróticas freqüentemente gera relacionamentos
sadomasoquistas neuróticos, nos quais um desempenha a vítima e o outro o agressor, culpandose mutuamente pela infelicidade em que vivem.
A Agressividade Psicopática
A defesa psicopática caracteriza-se por fixar e tornar defensiva também a função volitiva e a
função estruturante da ética. São pessoas cuja vontade se torna possuída pela Sombra e que,
por isso, praticam o Mal conscientemente, sentindo prazer porque acham e sentem que estão
fazendo algo certo. Essas pessoas podem ser sociopatas e criminosos sádicos, capazes de
maldades inconcebíveis para a imaginação normal, como é o caso dos torturadores.
Devemos diferenciar a agressividade dentro da defesa psicopática daquela da personalidade
psicopática, pois, na primeira, a atuação psicopática envolve apenas parte da personalidade,
enquanto que, na segunda, ela é generalizada. Um empresário, casado, com dois filhos e muito
bem relacionado socialmente, era muito afetivo e querido em casa e por seus amigos. Pelo fato
de gostarem muito dele e de já estarem “vacinados” e prevenidos, todos toleravam seu grande
defeito. Ele tinha a compulsão do “empréstimo a fundo perdido”. Depois de se tornar amigo de
uma pessoa, ele lhe pedia um empréstimo para lhe pagar “na semana seguinte”. No dia do
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pagamento, dava uma pequena quantia e adiava a quitação, postergando o pagamento vezes
sem conta. A análise dessa compulsão mostrou tratar-se de uma agressividade psicopática
setorizada, na qual extorquia paciência e consideração dos amigos através dessa verdadeira
tortura financeira.
No caso do relacionamento sadomasoquista psicopático, o algoz e a vítima fazem um pacto de
agressão consciente ao qual se dedicam com prazer. Às vezes, porém, um deles pratica a
agressividade no nível psicopático e não revela suas intenções para o outro, que participa da
relação destrutiva dentro de uma defesa neurótica, na qual não se dá conta do grau de
destrutividade que partilha.
Agressividade Borderline e Psicótica
Como seu nome indica, a defesa borderline é limítrofe com a defesa psicótica e, por isso, sua
estratégia defensiva é dirigida principalmente para evitar a defesa psicótica através de defesas
variadas e exóticas, muitas das quais, bizarras.
A defesa psicótica é aquela na qual o Ego da Sombra domina inteiramente o Ego da Consciência
e a pessoa se comporta de maneira alienada da realidade social.
A destrutividade da agressividade psicótica é catastrófica e geralmente trágica para si e para os
outros. Ela varia desde o crime passional homicida-suicida até o homicídio paranóide do
esquizofrênico.
Referências Bibliográficas
Byington, Carlos Amadeu Botelho (1982). A Riqueza Simbólica do Futebol. Revista De Psicologia
Atual. São Paulo: Ed. Spagat, Ano 5, No. 25, Abril, 1982.
___________ (2002). Inveja Criativa – O Resgate de uma Força Transformadora da Civilização.
São Paulo: W11 Editores, 2002
___________ (2004) A Construção Amorosa do Saber – Fundamento e Finalidade da Pedagogia
Simbólica Junguiana. São Paulo: W11 Editores, 2004.
___________ (2006). “Psicopatologia Simbólica Junguiana”, in SAIZ LAUREIRO, M. (org.)
Psicopatologia Psicodinamica Simbólico-Arquetípica. Montevideo: Prensa Médica, 2006, pp. 1546.
___________ (2008) A Psicologia Simbólica Junguiana – A viagem de humanização do cosmos
em busca da iluminação. São Paulo: Linear B Editora, 2008.
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Sob o Domínio da Mãe Terrível: Violência Física e Psicológica Contra a Infância e
Adolescência
Maria Claudina Mendes
O tema sobre o qual discorreremos refere-se à ocorrência de inúmeros atentados à dignidade
das crianças e adolescentes vitimizados física, moral e/ou psicologicamente pela ausência – e,
em muitos casos, também pela negligência – de se ter uma figura materna (ou substituta constante
da figura materna) que significasse, para a o ser em formação, a necessária acolhida, o desejado
aconchego, a nutrição garantida, símbolos, todos, de uma boa maternagem.
Nas Varas da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – numa das
quais atuo, como Psicóloga Judiciária, é enorme a casuística de crianças e adolescentes
vítimizados pela violência física e/ou psicológica advindas de suas próprias mães, quando não
provenientes de figuras substitutas como madrastas e/ou padrastos, em quem os genitores muitas
vezes preferem acreditar, condenando as crianças a todo tipo de abuso e perversidade.
Nosso objetivo será abordar o Arquétipo da Mãe Terrível, partindo de casos atendidos tanto no
Tribunal de Justiça quanto na clínica particular. Em todos eles, observamos como o arquétipo
materno, em sua polaridade negativa, foi capaz de gerar transtornos – muitas vezes graves – aos
que foram submetidos àquele domínio.
O Arquétipo Materno – a imagem de uma Grande Mãe Primordial que serviu de regaço e acolhida
à vida e às possibilidades de transformação que representa em si mesma – é uma das figuras
psicológicas importantes em nossa sociedade ocidental pós-contemporânea.
O materno costuma ser associado a idéias e valores positivos, representativos de aconchego,
apoio, continência: é simbolizado pela mulher primordial, vaso – corpo de tempos imemoriais,
grande útero e grandes seios sempre disponíveis para nutrir seus filhos.
Em seu estudo sobre o feminino, Newmann (1999) observou que: “Além de vaso, o feminino,
como “princípio criativo”, abrange o mundo todo, do ponto de vista elementar e de transformação.
É a totalidade da natureza de onde surge toda a vida, a desenvolver-se e assumir sua mais
elevada transformação: a forma de espírito”.
Nesse trabalho sobre a constituição feminina do inconsciente, o autor observa que “No mundo
matriarcal, o mundo espiritual da lua, que corresponde ao simbolismo do Grande Feminino, aparece
na qualidade de um nascimento e, na verdade, de um renascimento. Onde quer que encontremos
o símbolo do renascimento, estaremos diante de um mistério de transformação matriarcal e isso
é verdade mesmo quando seu simbolismo ou interpretação aparecer camuflado pelo patriarcal”
(Newmann, 1999).
A Psicologia Analítica de Jung postula que o simbolismo da transformação – preconizado
essencialmente pelo simbolismo do Grande Feminino, do arquétipo da Grande Mãe – sempre
assume uma dimensão “sagrada“ quando o processo de transformação ocorre através de
intervenção humana, de tal modo que não apenas o inconsciente e a natureza atuem, mas também
a própria personalidade humana, envolvida no processo de seu vir a ser de modo consciente e
participante.
Ao contrário do que se possa pensar a partir das crenças e valores que parecem reger as
sociedades ocidentais que se acreditam patriarcais, é o “vaso” (o Grande Feminino), aquele que
contém o caráter misterioso de Transformação, “que dá origem em si, e de si, ao Masculino”.
Em antigos mitos egípcios e judaicos – cristãos, já se encontram referências de que a palavra (o
princípio masculino, Logos por excelência), “nasce” como essência da Totalidade Corporal Divina,
do Grande Círculo, como podemos ver numa citação do “Livro Tibetanos dos Mortos” (1949):
“Meu coração, minha mãe; meu coração, minha mãe! Meu coração de Transformações”.
Daí a importância, a nosso ver, de abordarmos o simbolismo do Arquétipo Materno, determinante
na formação de toda personalidade, focalizando, nesses tempos de violência, o aspecto sombrio
do Grande Feminino: o mito da Mãe Terrível.
Newmann (1999) postulou que podemos, didaticamente, conceber o Grande Feminino como um
diagrama estrutural determinado por dois eixos e quatro círculos, sendo que os eixos correspondem
aos dois tipos de caráter do Feminino. O círculo central, ponto de intersecção entre os eixos,
representaria o caráter elementar do feminino, com predominância do caráter maternal, cujo
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centro desempenharia a função de conter.
Desse centro primordial em direção ao positivo materno teríamos, como funções, gerar e libertar
como bases do crescimento e do desenvolvimento; já na direção oposta, em direção ao pólo
negativo do arquétipo, teríamos as funções de reter e fixar (aprisionar), funções que representam
o lado perigoso do “Grande Maternal”.
O aspecto ambivalente do Arquétipo da Grande Mãe apresenta-se pleno de possibilidades: gerar
e libertar são funções tipicamente associadas ao desenvolvimento vegetal: “a planta em
crescimento irrompe do escuro útero da terra e vislumbra a luz do mundo”. Assim, a libertação do
escuro para o claro caracteriza o caminho da vida, assim como o caminho da consciência. Ambos
conduzem sempre e basicamente, da sombra para a luz.
Este é um dos motivos que explica a conexão arquetípica entre o simbolismo do crescimento e a
aquisição da consciência, enquanto a terra, a noite, a escuridão e o inconsciente constituem um
conjunto em oposição à luz e à consciência.
Na medida em que o Feminino liberta para a vida e para a luz o que nele está contido, torna-se a
Grande Mãe e a Mãe Bondosa de toda a vida.
Por outro lado, a Grande Mãe torna-se perigosa em sua função de reter, fixar e aprisionar, pois
não permite a libertação de um ser que aspira à independência e liberdade. Uma representação
dessa função repressiva aparece simbolizada, nos contos de fadas, pelo cativeiro, onde o Grande
Feminino é vivenciado como hostil e constrangedor.
A função do aprisionamento pertence, portanto, ao aspecto “bruxa” da mãe negativa. Seus
símbolos são, no mundo material, o laço e a rede; no mundo animal, a aranha e a lula, com suas
presas e tentáculos captores.
Perpendicularmente ao eixo representativo do materno primordial, teríamos, segundo Newmann
(1999), o eixo Anímico, em cujo pólo positivo encontramos a função de dar subdividida em proteger,
aquecer e nutrir.
No pólo Anímico negativo, encontramos as funções de rejeitar e privar.
Chegamos, assim, ao Grande Feminino Negativo: pólo materno elementar negativo e pólo anímico
negativo : reter e fixar e, ao mesmo tempo, rejeitar e privar.
O que, num primeiro momento, poderia parecer apenas teoria, aparece repetidamente nas histórias
e vivências de crianças e adolescentes cujas problemáticas de vida acompanhamos em nosso
trabalho na Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: crianças
e adolescentes vitimizados, física ou psicologicamente por seus pais e/ ou outros adultos; crianças
e adolescentes abandonados; crianças e adolescentes explorados, aviltados em sua condição
humana.
Destinos quase sempre interrompidos ou impedidos de seu natural vir a ser pela negligência,
pela falta de consciência e pelo desamor de quem os colocou no mundo.
Crianças e adolescentes vitimizados, em última instância, pelo Arquétipo da Mãe Terrível – ou,
melhor dizendo, pelos conteúdos profundamente dinâmicos – em sua estrutura perversa – dessa
forma agrupados.
Jung nos diz que é impossível se contatar diretamente o arquétipo; o que podemos fazer são
aproximações.
No entanto, casos como o de B (melhor seria se disséssemos: como o da mãe de B.), atualmente
em vias de completar dezoito anos, ilustram à perfeição o que desejamos descrever:
“B, hoje com dezessete anos de idade, passou a maior parte de sua infância e adolescência em
abrigos do Estado e da Prefeitura, desde que seus pais se separaram.
O pai, até então estudioso e trabalhador, passou a beber, desgostoso com a traição de que fora
vítima, pois sua mulher, mãe de seus três filhos: duas meninas (B. era uma delas) e um menino,
o traíra “em sua própria cama”.
Separada do marido, a genitora não contou – como talvez esperasse – com a pensão alimentícia
para os três filhos.
A partir de então, conforme nos contou B., ao longo de um ano de acompanhamento, a genitora
passou a “criar casos com os filhos”, “armar escândalos”, “inventar que estava sendo ameaçada
de morte pelos maus atos dos filhos”, até conseguir abriga-los.
B., por exemplo, viveu oito anos seguidos em abrigos da Capital.
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Quando a conhecemos, estava com quatorze anos.
Era adolescente revoltada e violenta, que brigava com os Educadores e que agrediu, por algumas
vezes, a diretora do último abrigo que a acolheu.
Ao chamarmos a genitora para iniciar os procedimentos de reaproximação da jovem à sua família
de origem, percebemos a Mãe Terrível a se manifestar: ao invés de se interessar pelo bem estar
da filha, sua mãe só se queixava dela, vitimizando-se todo o tempo; como se não compreendesse
a razão de haver sido chamada, passou a se queixar, também, do filho de doze anos, dizendo-se
prestes a “enfartar”, “não merecer aquilo”, “precisar, também, cuidar dela mesma”, exatamente –
conforme depois nos foi confirmado por B. – da mesma maneira como se comportara para
conseguir seu próprio abrigamento.
Profundamente voltada para sim mesma, a terrível genitora foi descrita pelos cunhados – irmão e
mulher do pai de B. – como “uma interferência negativa na vida do ex-marido e dos filhos”: negativa
e destrutiva, sempre procurou desqualificar os filhos, fazendo-se de vítima ...e recebendo recursos
de transferência de renda (Renda Mínima) por cada um dos filhos, sendo que há anos não estava
com nenhum deles sob seus cuidados – também a filha mais velha – agora casada e mãe de um
filho – e o filho mais novo viveram abrigados, após a separação dos pais.
A mãe de B. vestia-se sempre com roupas vermelhas e diáfanas e estava sempre colérica: parecia,
de fato, uma das Fúrias mitológicas, personificação da Mãe Terrível a semear a penúria, a fome
e o desamparo.
A respeito do arquétipo da Mãe Terrível, disse Newmann (1999):
“Essa mulher que gera a vida e todas as criaturas vivas que há sobre a terra também é, ao
mesmo tempo, aquela que devora e traga suas vítimas, que persegue a aprisiona com laço e
rede. A doença, a fome e a necessidade e, sobretudo, a guerra são seus ajudantes; as deusas
da guerra e da caça, entre todos os povos, expressam a vivência da vida para a humanidade: um
Feminino ávido de sangue.
Esse Feminino Terrível é a terra voraz que devora os seus próprios filhos, cevando-se com seus
cadáveres; é o tigre e o abutre, o abutre e o caixão, o sarcófago carnívoro, cuja boca terrena e de
dentes à mostra lambe vorazmente o sangue semente dos homens e dos animais, tornando-se
com isso a terra fecundada e saciada que se compraz em lançar incessantemente novos rebentos,
arremessando-os continuamente e sempre para a morte”.
O Feminino Terrível é uma representação simbólica de um psiquismo primitivo, o qual não atinge
– por estar desintegrado da totalidade da psique – o aspecto superior da representação do materno
como Grande Vaso protetor e regenerador.
Por tal razão, verificamos terem sido totalmente frustradas as diversas tentativas feitas para
encaminhar a genitora de B. para terapia, bem como para grupos de orientação de mães, tanto
pelos abrigos quanto por nós, da V.I.J., sem, no entanto, jamais conseguirmos qualquer resultado
positivo: a genitora em questão fazia-se de vítima, para esconder seu aspecto de algoz dos
próprios filhos – a quem permitiu que crescessem sozinhos, abandonados de tudo, miseráveis
em suas almas violentadas.
Lamentavelmente, verificamos que, apesar de havermos intervindo no caso, assim como o abrigo
e a empresa na qual a jovem B. fazia estágio à época de sua reinserção à família de origem
(quando o genitor, chamado às suas responsabilidades, requereu e obteve a guarda dos filhos
para si, reorganizando-se para acolhe-los), fomos informadas, cerca de seis meses depois, de
que a jovem B. (agora, às vésperas de completar dezoito anos) havia abandonado o estágio e
saía, à noite, para beber com o pai.
Tal informação – dada por uma tia paterna da jovem – levou-nos a pensar no estrago causado à
personalidade da adolescente, carente, a vida toda, da necessária proteção e da sempre
insuficiente acolhida materna: beber com o pai poderia ser interpretado, neste caso, como um
“mamar” estratificado, evidenciando-se, aqui, o aspecto desgostoso e auto-destrutivo da jovem:
não sendo cuidada em terreno fértil, tornou-se mais difícil, agora, reparar o que foi danificado: a
ternura, a esperança, a crença em si mesma e em seu porvir.
Outro caso ilustrativo da atuação do Arquétipo da Mãe Terrível é a história de J., à época com
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quinze anos de idade e que havia sido obrigada pela mãe (esta, por sua vez, apenas dezesseis
anos mais velha que a filha) a conviver maritalmente com o irmão de seu companheiro, pois
julgava que a filha gostava de seu marido e desejava afastá-la de sua casa.
Num desabafo, a adolescente queixou-se amargamente de que a mãe costumava se apropriar
de seus pertences, assim como a obrigava a lhe dar 2/3 de todo o dinheiro que ganhasse, desde
quando começou a trabalhar como babá, aos treze anos de idade.
J. afirmou sempre haver se sentido desprezada pela mãe, além de perceber a competição explícita
que parecia haver entre elas, diferente do modo como genitora tratava seus outros sete filhos.
Além da falta de acolhida, outro aspecto do materno terrível aparecia na mãe dessa jovem quando
ela, ao invés de proteger a filha e desejar ver seu crescimento e saudável desenvolvimento
pareceu, ao contrário, buscar neutraliza-la, forçando a filha de apenas quinze anos de idade a
viver maritalmente com o irmão de seu companheiro, a fim de “tirar a filha de cena”, não se
importando se aquele era o destino desejado pela menina...e não era, conforme nos disse J. já
em nosso primeiro encontro.
J. queixou-se de que a mãe só a procurava “quando precisava de dinheiro”, denunciando mais
um aspecto da mãe negativa: a que imobiliza através da apropriação dos filhos, um tipo de
antropofagia: sem recursos, a adolescente não teria como evoluir e seria mantida sob o controle
materno.
A fim de proteger a adolescente dos desmandos irresponsáveis de sua mãe, procedeu-se ao
abrigamento da adolescente.
Durante cerca de seis meses, a genitora manteve-se distante da filha, embora tenha tentado, no
início do abrigamento, influenciar negativamente o staff da instituição, acusando a filha de várias
características e atitudes negativas, visando, aparentemente, se auto-valorizar.
Quando, um ano depois, a jovem foi transferida para outro abrigo e, através dessa outra instituição,
conseguiu ser inserida em estágio remunerado e que, além da remuneração oferecia uma série
de regalias (tais como: cestas básicas, psicoterapia, curso de línguas, curso de informática, natação,
academia), a genitora reapareceu, dizendo-se mais madura e bastante mudada (alegou ter feito
psicoterapia), desejando que a filha voltasse para casa.
Após período de reavaliação e diante da insistência da jovem em voltar para a casa materna, J.
saiu do abrigo e voltou a morar com sua mãe.
Também neste caso, o final não nos pareceu feliz: a mãe de J., nem bem a filha havia sido
desabrigada, ligou para o Fórum, solicitando que fosse liberada a poupança feita pela filha durante
o tempo em que passou no abrigo e que correspondia a 1/3 do que recebia mensalmente no
estágio de que estava participado.
J. também tentou insistir, afirmando que “precisava de todo o dinheiro, agora que voltara a morar
na casa materna”, denotando que a dinâmica entre ela e sua mãe – protótipo da madrasta de
Branca de Neve (vaidosa, competitiva, voraz) – continuava a mesma: a terrível genitora continuou
a tentar viver às custas de quem colocou no mundo, em movimento de “dar e tirar”: não nos
pareceu que a mãe de J. desejasse, de fato, a filha de volta, a não ser por interesse financeiro
(dentro de sua miserabilidade material e, mais do que tudo, anímica): mais uma dinâmica em que
os componentes estruturais parecem ser: em um eixo, reter e fixar e, no outro, rejeitar e privar.
E como ficou a adolescente em questão?
Como toda vítima da Mãe Terrível, J. também manifesta certa dificuldade para levar seus projetos
de vida até o fim, denotando ter sido prejudicada pela irresponsável e egocêntrica maneira de
sua mãe faze-la viver sua vida: pensando em si própria, mãe, e não avaliando as conseqüências
de tais atitudes para a filha.
Apesar de todas as decepções pelas quais passou, no entanto, verificamos a poderosa armadilha
que o arquétipo da Mãe Terrível pode significar na vida de uma criança ou adolescente, pois
apesar de todo o sofrimento vivido pela jovem, sua mãe parecia ser dotada de atração magnética,
atraindo o filho(a) para perto de si a despeito de suas (próprias) más atitudes, pois o filho(a)
deseja ver em sua mãe o vaso acolhedor, a bondosa nutriente, jamais a bruxa egoísta e malévola,
já que sua própria identidade se constitui a partir dos aspectos com que se identifica e que introjeta
de suas figuras parentais.
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Referências Bibliográficas:
Jung, C.G. “A Dinâmica do Inconsciente”. Obras Completas. Vol. VIII. Ed. Vozes. Petrópolis. 1984.
Newmann., E. “A Grande Mãe: Um estudo fenomenológico da constituição feminina do
inconsciente”. Editora Cultrix. São Paulo. 1999.
Stein, M. “Consciência Solar, Consciência Lunar: ensaio sobre os fundamentos psicológicos da
moralidade, da legalidade e da noção de justiça”. Paulus. São Paulo, 1998.
Instituição: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Síntese Curricular
Psicóloga Clínica – Psicoterapeuta; Mestrado em Psicologia Clínica pela PUC – SP; Psicóloga
Judiciária da Vara da Infância e Juventude do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP; Docente da EPPA
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Um Aconselhamento Solidário : o Yolandismo
Yolanda Cintrão Forghieri
Universidade de São Paulo
Introdução: Hoje, após mais de meio século de estudos, pesquisas, docência e atendimentos
como aconselhadora terapêutica, resolvi, corajosamente, expor minhas próprias idéias, libertandome do que Rubem Alves denomina “a mortalha acadêmica“. Em termos mais explícitos, sem
precisar estar sob o peso de numerosas referências bibliográficas, de autores renomados,
considerados indispensáveis nos trabalhos científicos. Preciso ter coragem para tanto, pois é
como se eu estivesse adentrando numa densa floresta, sem o apoio e a orientação de guias que
já a exploraram por diversos caminhos. Corro o risco de vacilar ou até de me perder entre as
frondosas árvores que lá já se encontram há muitos e muitos anos.
Este empreendimento é como se eu estivesse, de certo modo fazendo uma “redução
fenomenológica“ dos numerosos conhecimentos que até agora adquiri, para então, chegar ao
desvelamento de minhas próprias vivências no decorrer de mais de 80 anos de existência.
Conhecimentos que já não são numerosos, pois como diz o filósofo Pascal, o saber de uma
pessoa, é o que resta daquilo que ela esqueceu de tudo o que aprendeu. E quantos conhecimentos
esquecemos! O que resta corresponde, de certo modo, ao que eu denomino de saber básico: é
o modo de pensar e de agir de cada pessoa, que surge desde a infância. Podemos notá-lo
quando, por exemplo, mandamos uma criança comer algum alimento, ou vestir um agasalho, ou
ir a algum lugar e ela responde: não gosto, não quero. Em qualquer situação na qual ela manifeste
suas preferências e suas aversões e o que pensa a respeito de determinadas pessoas e situações.
O saber básico desenvolve-se, amplia-se ou modifica-se no decorrer da existência, através
de nossas vivências e dos conhecimentos que vamos adquirindo, assim como do prazer ou da
contrariedade que sentimos nessas ocasiões.
Tenho observado que esse “resto” de saber costuma constituir-se da articulação que
conseguimos fazer entre nossas vivências e os conhecimentos que adquirimos, ou entre estes e
as vivências.
Aliás, o filósofo Husserl, iniciador da Fenomenologia moderna considera ser o “mundo da
vida”, ou a vivência imediata, o ponto inicial do conhecimento .
Com estas referências a renomados filósofos percebo que não consigo fazer uma completa
“redução fenomenológica”. Isto acontece, provavelmente porque, de certo modo, tenho conseguido
articular algumas de suas idéias às minhas vivências.
O Yolandismo: Origens
Denomino de Yolandismo o meu próprio modo de pensar e de agir como aconselhadora
terapêutica. Ele originou-se da convivência com minha mãe, nas ocasiões em que entrava em
crises de intensa ansiedade, dizendo que estava com pavor de enlouquecer e de morrer.
Entretanto, quando se recuperava, espontaneamente, dessas crises ela era uma pessoa
alegre e prestativa. Tinha muitas amigas e parentes que nos visitavam todos os domingos. Então,
lhes oferecia um suculento lanche que ela mesma preparava; sua deliciosa de rosca de pão doce
e sua atitude acolhedora ainda hoje são lembradas. Era inteligente e criativa, esmerava-se nos
arranjos de plantas e flores que fazia para ornamentar nossa casa. Lia os jornais e acompanhava
os acontecimentos sociais e políticos. Durante a revolução constitucionalista de 1932, convenceu
a todos de casa a doar ouro para o bem de São Paulo, e deu muito apoio a um irmão que
participou da mesma, como combatente.
Nas ocasiões festivas em que mamãe reunia amigos e parentes nunca entrava em crise.
Estas surgiam, sem o menor motivo aparente durante a rotina cotidiana. Meu pai era calmo,
seguro e lhe dedicava muito carinho, principalmente quando adoecia – sempre demonstrou amála e ter grande admiração por ela. Até o dia em que tentou reagir a um ladrão que assaltara nossa
casa, e foi por ele barbaramente assassinado à queima roupa. Mamãe que assistiu a tudo ficou
alguns dias calada e profundamente triste; depois entrou em intensa crise de ansiedade, com
desesperado medo de enlouquecer e de morrer. Estava com cerca de sessenta anos de idade e
nunca mais se recuperou, até os 92, quando veio a falecer. Seu coração que ela imaginara,
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desde moça, não resistir aos seus sofrimentos, agüentou-os durante mais de meio século. E a
loucura que tanto temia no decorrer dos anos, para ela não chegou a se concretizar... ficou
apenas no medo de que acontecesse. Vários tratamentos foram providenciados sem o menor
resultado. Os remédios administrados provocavam relaxamento de seus músculos, mas não
aliviavam sua ansiedade – e ela levava numerosos tombos, na sua ânsia de querer se movimentar,
andando de um lado para outro. As psicoterapias estavam ainda, se iniciando e as tentativas
feitas com dois psicoterapeutas não trouxeram melhoras.
Minha tão querida e tão sofrida mãe! Com ela aprendi a amar e a reconhecer a importância
do amor para aliviar os sofrimentos. Desde a infância eu conseguia aliviar por alguns instantes a
sua ansiedade e isto me deu a esperança de que a partir do amor deveriam existir meios de
ajudar as pessoas a se libertarem de seus sofrimentos. Nós duas vivenciamos momentos
tranqüilos, inesquecíveis de um profundo querer-bem. Mas quando ela entrava em crise era
quase impossível acalmá-la. Com o decorrer do tempo as suas crises foram se tornando cada
vez mais prolongadas e freqüentes. E como eu me sentia muita ligada a ela, acabei ficando cada
vez mais ansiosa; comecei a sentir uma forte dor no peito; isto me dava a impressão de estar
sofrendo do coração. Mas, esforçava-me para me sentir melhor para poder cuidar dela. Imaginava
que enquanto eu estivesse perto ela não enlouqueceria e não morreria; por isso eu não me
afastava dela. Fui uma criança ansiosa, triste, doentia, com freqüentes gripes, não tinha apetite
e sofria de insônia porque precisava estar de vigília, para verificar se ela ainda estava viva
enquanto adormecia .
Até que um dia, ao observar várias crianças brincando alegremente na rua, comecei a
refletir sobre minha própria vida. Por que eu me sentia tão triste, ansiosa e infeliz? Acabei concluindo
que era por amar e muito, apenas à minha mãe, e por me sentir completamente sozinha e
abandonada ao imaginar que ela estava para morrer a qualquer momento. Eu precisava
urgentemente aprender a amar a outra mulher que fosse gorda, corada, saudável e que por isso,
deveria ter uma vida longa – mamãe era magérrima e abatida. A pessoa que escolhi foi tia Laura,
que tinha aquelas características saudáveis. Morava em Santos, mas passava temporadas em
minha casa; era mãe de um garoto de minha idade e queria muito ter uma filha, mas não poderia.
Assim que veio nos visitar aproximei-me dela e iniciei-me na prática de amá-la. Contemplá-la,
gorda, com suas bochechas rosadas despertou-me uma sensação imensamente agradável.
Procurei estar ao seu lado conversando sobre os santos de sua preferência – ela era muito
religiosa. Em poucos dias consegui amá-la, me sentir segura junto dela e não hesitei em
acompanhá-la quando me convidou a passar uns dias em Santos. Ao partir com ela invadiu-me
um sentimento de liberdade e de alegria que eu jamais sentira. E intensificou-se quando vi pela
primeira vez o mar e nele me banhei junto com meu primo. Corri pela praia, com a satisfação de
uma criança que corre pela primeira vez. Como era bom correr, como era bom viver! Nem me
preocupei por estar longe de mamãe, pois afinal eu já me sentia acompanhada por tia Laura –
meu amor por ela salvara-me do sentimento de solidão e abandono. Recuperei o apetite e
passei a dormir durante toda a noite. Tia Laura por certo viveria por muitos e muitos anos, eu não
precisava me preocupar.
Voltei para São Paulo fortalecida pelo amor que sentia por tia Laura. Entretanto por não
estar junto dela, voltei a me sentir triste a abandonada. Nessa ocasião comecei a freqüentar o
Jardim da Infância numa escola de freiras vicentinas que ficava próxima de casa. Irmã Joselina,
minha primeira professora notou minha aparência triste e abatida – eu não saía para o recreio
com as outras crianças porque imaginava que sofria do coração e não podia correr. Minha mãe
havia me prevenido a esse respeito e avisara a diretora da escola. A bondosa freira aproximou-se
de mim e com muito carinho perguntou por que eu estava triste. Eu lhe disse que minha mãe
estava para morrer a qualquer instante e ia me deixar abandonada. A religiosa abraçou-me com
ternura e perguntou se eu estava gostando da escola. Como respondi afirmativamente, convidoume a ir morar com ela quando mamãe morresse. Perguntei-lhe se não costumava viajar e
respondeu-me que nunca o fazia, nem nas férias nem nos fins de semana. Só então reparei em
suas bochechas gordas e coradas, meio encobertas pela sua roupa de freira. Como era linda e
super-saudável! E como eu a amava ... Imaginei que seria eterna. E de fato eternizou-se em
minha vida, pois além de me ensinar as primeiras letras, ensinou-me a amar a Deus e acreditar
que está sempre junto de nós quando o chamamos .
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Esse foi um dia memorável em minha vida. Cheguei em casa muito feliz, joguei minha
sacola no sofá e disse efusivamente para minha mãe: “a senhora já pode morrer sossegada,
pois eu não ficarei abandonada; irei morar na escola junto da irmã Joselina”.
Minha mãe ficou chocada e me repreendeu por falar de sua doença para minha professora.
A oferta de Irmã Joselina, o amor que passei a sentir por ela e a crença em Deus
consolidaram o início da recuperação de minha saúde física, psicológica e espiritual. Comecei a
viver como todas as crianças de minha rua: brincava e corria com elas alegremente, sem sentir
dor no peito.
Como eu me dera bem com os “exercícios de amar às pessoas”, resolvi aumentar a sua
quantidade. E logo fui bem sucedida com uma porção das que me pareciam simpáticas, eram
gordas e saudáveis. Assim, continuei ampliando o número delas, passando a incluir também
algumas pessoas magras, pois já eram tantas, que podiam até morrer que já não me fariam falta.
Então, surgiu-me uma dúvida. E se eu fosse parar em algum lugar onde só existissem
pessoas que me fossem antipáticas? Eu precisava também, aprender a amá-las para não me
sentir sozinha.
Decidi então, amar ao senhor João, um amigo de meu pai , que vinha visitá-lo todas as
semanas. Ele era bem moreno, fumava uns charutos mal cheirosos e dizia não gostar de crianças;
por isso não tinha filhos. Passei então, a entrar no escritório de papai quando ambos lá estavam
conversando. Quietinha eu ficava olhando para o senhor João, procurando me abrir e descobrir
como poderia amá-lo. Verifiquei que ela era gordo – isto me agradava. A cada semana fui chegando
mais perto dele e percebi que tinha olhos negros muito bonitos; neles destacava-se a parte branca
que contrastava com sua pele bem morena. E comecei gradativamente, a amá-lo fitando-o com
ternura e cada vez me aproximando mais. Um dia, quando eu estava bem perto dele, pegou-me
e colocou-me no seu colo, dizendo “não sei o que tem esta criança, que gosto dela”. Aconchegueime em seu colo macio e quente e nem senti o cheiro de seu charuto.
Esse dia representou para mim uma conquista fantástica, que consolidou minha segurança,
pois tive a certeza de que jamais me sentiria sozinha e abandonada na vida; em qualquer lugar
onde eu estivesse sempre conseguiria amar uma pessoa, mesmo que me parecesse antipática
inicialmente. Fiquei convencida de que a plena vivência de amar é o melhor antídoto da solidão e
o principal propiciador do bem-estar e da alegria. Com o decorrer do tempo percebi também que
quase sempre, quando manifestamos o nosso amor somos correspondidos. As numerosas
pessoas a quem tenho revelado meu amor, têm me correspondido amando-me também. É verdade
que o amor quando não é correspondido, ou quando por alguma circunstância a pessoa amada
nos decepciona, sofremos. Mas isto é devido a nossa frustração, nossa contrariedade que surge
encobrindo o prazer de amar. Não fora o meu amor por mamãe, mas o medo de perdê-la que
haviam despertado meu intenso sofrimento na infância.
E foi com essas idéias que cheguei à juventude com o desejo de me tornar uma profissional
que se dedicasse a amar as pessoas que estivessem muito tristes, ansiosas, sofrendo de solidão,
a se sentirem acompanhadas por perceberem que eram amadas por mim, e passassem a me
amar também. Conclui que os sofrimentos, as grandes contrariedades, as profundas frustrações
são sempre acompanhadas de um sentimento de solidão que pode ser aliviado pelo amor.
Em decorrência dessas idéias adquiridas em vivências a partir da infância tomei a decisão
de me preparar para me tornar uma psicóloga.
Como naquela ocasião – início de 1940 – ainda não havia cursos de Psicologia, cursei o
de Pedagogia, na memorável Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras “Sedes Sapientiae“,
(Sedes) no qual havia muitas disciplinas da área psicológica, tais como Psicologia Geral, do
Desenvolvimento, da Criança e da Personalidade. Adqurir conhecimentos nessa área foi muito
prazeroso, pois veio ao encontro de meu desejo de procurar entender quem é o ser humano.
Porém, no início o ambiente me pareceu muito ameaçador, por vários motivos: a erudição de
renomados catedráticos, tais como Alexandre Corrêa e Van Acker, as duas disciplinas ministradas
em inglês; as colegas que eram moças de elevada classe social, muito cultas e ligadas entre si.
Eu me sentia inferiorizada por me julgar pouco inteligente e pobre: vestia-me modestamente e
meu pai pagava minhas mensalidades com sacrifício. Meu sentimento de inferioridade tivera
início quando, junto com Iza, minha irmã mais velha comecei a freqüentar o curso ginasial. Ela
era saudável, linda e muito inteligente; bastava-lhe freqüentar as aulas para obter aprovação nas
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matérias. Em casa, quando me via debruçada sobre os livros, zombava de mim dizendo: “Burrinha
! Precisa estudar para passar de ano!“ Eu que já me sentia feia diante da sua beleza, passei a me
sentir também pouco inteligente. Tais sentimentos se intensificaram quando ingressei no “Sedes”.
Estive a ponto de desistir, mas minha professora, Madre Cristina veio ao meu encontro
convencendo-me que eu tinha capacidade para fazer o curso e recomendando-me falar com
Madre Santo Ambrósio, reitora do “Sedes”. Ela me encaminhou para a diretora do Colégio Assunção
que me contratou como professora de Geografia no curso primário. Além disso, Madre Cristina
passou a me indicar para aulas de recuperação à alunos com dificuldades de aprendizagem.
Resolvido o problema financeiro e diminuindo meu sentimento de inferioridade adquiri confiança
para prosseguir no curso. Não demorei a perceber que dava conta dos estudos e comecei a
conseguir a amizade das colegas às quais passei a emprestar minhas anotações das aulas, que
eram o único material que tínhamos para estudar. Naquela ocasião, (1940), apenas os professores
tinham acesso aos livros e eu, com um tipo de taquigrafia que inventara, conseguia anotar tudo o
que eles falavam nas aulas.
Restou apenas resolver o problema das aulas ministradas em Inglês, idioma que eu não
dominava. Entretanto consegui que Mister George, professor de meu tio, passasse a me dar
aulas, de Inglês, por um preço que me era acessível.
Que maravilhoso professor foi Mister George! Pois além de seu idioma ensinou-me a
viver com menos preocupações e mais alegrias. No início de cada aula solicitava que eu lhe
contasse em Inglês os acontecimentos mais emocionantes e agradáveis que eu vivenciara durante
a semana. Eu a passava numa correria, das aulas que ministrava para as que assistia no “Sedes”,
mais as anotações que eu precisava passar a limpo e não encontrava tempo para reparar nos
acontecimentos que ele recomendara . Porém, como teria que contar algo real a Mister George,
passei durante o percurso de ônibus, ou nos intervalos de uma atividade e outra, a descobrir
instantes agradáveis tais como: reparar numa árvore, um por de sol, uma criança dormindo, ou
qualquer percepção que eu procurasse ter sem preocupação. Foi muito agradável conseguir ter
o que contar ao sábio professor de Inglês. Coincidentemente, nessa ocasião visitou o “Sedes” o
frei Irala, religioso que era missionário na China, com o qual aprendi algo semelhante que ele
denominava “percepções conscientes”: estas consistiam em perceber algo a minha volta sem
preocupação, com o intuito de adquirir novas percepções diretas, simples, puras e agradáveis;
concentrado-me apenas no que estava contemplando .
Mister George e o frei Irala diziam e eu acabei verificando que tais percepções costumam
nos acalmar; constituem pequenos intervalos de descanso e nos fortalecem psíquica e
espiritualmente.
Na ocasião em que ingressei, como aluna no “Sedes”, vivenciei um importante
acontecimento: conheci Cyro e me apaixonei por ele. Eu nem precisaria esclarecer que ele era
gordinho e corado. Tivemos um casto namoro durante seis anos, porque junto éramos muito
religiosos; antes de nos conhecermos ambos havíamos planejado seguir uma carreira religiosa.
Precisamos prolongar nosso namoro porque éramos muito jovens, eu com 16 e ele 17 anos de
idade, e ainda tivemos que completar nossos estudos e começar a ganhar o suficiente para nos
casarmos. Quando pudemos fazê-lo, eu já havia começado a lecionar no “Sedes”, mas precisei
desistir dessa atividade, que muito me agradava, por exigência do Cyro.
Os seis primeiros anos de casados foram muito difíceis para nós devido a uma porção de
motivos: nosso orçamento era apertado, eu não tinha experiência como dona de casa e nesse
período nasceram nossos três primeiros filhos: Ricardo, prematuro com apenas 6 meses e meio
de gestação, Célia que aos nove meses de idade teve paralisia infantil e Cláudio que, felizmente,
nasceu normal. Eu e Cyro estivemos nesse período, tão preocupados e atarefados que quase
não tivemos tempo para nós. Entretanto as coisas foram melhorando gradativamente: Ricardo
tornou-se um bebê normal, Célia embora ainda com alguma dificuldade, recomeçou a andar e
Cláudio nos distraia com suas travessuras. Além disso, consegui contratar uma excelente
empregada: Maria portuguesa, que dava conta dos afazeres domésticos e ainda me ajudava a
cuidar das crianças.
Eu tinha tudo para ser feliz, mas não o conseguia. Sentia-me triste e de algum modo
quase sem envolvimento com Cyro, meus filhos e tudo ao meu redor. Provavelmente por isso
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sentia-me culpada e depreciada em minhas características femininas de ser esposa e mãe. Foi
então que algo imensamente agradável aconteceu, por incrível coincidência, ou por graça de
Deus. Ao tentar fazer um telefonema, não me recordo a quem, atendeu-me Madre Maria da Paz,
então reitora do “Sedes”; reconheci sua voz e logo fui me identificando e me desculpando pelo
engano. Ela que nunca atendia o toque do telefone, pois tinha várias secretárias para fazê-lo,
respondeu-me com satisfação: “Yolanda! Eu estava à sua procura para lhe oferecer uma vaga de
professora de Psicologia aqui no “Sedes”. Você gostaria de aceitar? “. Lembro-me comovida da
intensa alegria que arrebatou-me completamente; cheguei a pular de satisfação e a gritar: aceito!
Era como se eu estivesse recuperando uma parte de mim mesma que havia perdido. Ouvindome as crianças vieram ao meu encontro muito alegres e curiosas. Contei-lhes o que acontecera,
feliz e com um enorme querer – bem, que me parecia surgir pela primeira vez. Como eram lindas!
Como eu as amava! Lembrei-me do Cyro meu querido companheiro, o homem de minha vida!
Como eu também o amava!
Esta significativa vivência ensinou-me a importância de não abrirmos mão de algo que é básico,
necessário em nossa vida. Se ainda não o sabemos é preciso que procuremos encontrá-lo. Tive
alguma dificuldade para obter a concordância de Cyro, mas pela primeira vez impus a minha
vontade. Ele ficou aborrecido comigo, mas acabou concordando.
Voltando-me à época em que freqüentava a Faculdade de Pedagogia no “Sedes”, nela me formei,
tornando-me Bacharel e Licenciada nessa área. Então deixei o cargo de professora primária do
Colégio Assunção, para me tornar professora de Psicologia da Educação, na então Escola Normal
de Taubaté – SP, cargo do qual me afastei para com muito contentamento, me tornar professora
de nível superior no “Sedes”. Foi deste cargo que precisei pedir demissão bastante contrariada
quando me casei. Mas para o qual acabei voltando, com grande alegria, conforme relatei acima.
Estando novamente no “Sedes”, como docente, fui convidada por Madre Cristina para
freqüentar o curso de Especialista em Psicologia Clínica em nível de Pós Graduação, criado com
a finalidade de formar como psicólogas, as pessoas que como eu eram bacharéis em Pedagogia.
Matriculei-me no referido curso que teve a duração de três anos, dois de estudos teóricos sobre
psicanálise e um de prática, como psicanalista. Obtive ótimas notas nas disciplinas teóricas, no
entanto fracassei como psicanalista, pois não conseguia manter um distanciamento dos pacientes,
para fazer as necessárias interpretações. Envolvia-me em seus sofrimentos, sofrendo junto com
eles e manifestava-lhes meu carinho, dedicação e compromisso de ajudá-los de modo semelhante
ao que eu procurara ajudar minha mãe. Meu fracasso tornou-se evidente quando atendi Arthur,
um jovem que por duas vezes tentara suicidar-se. Ele se encontrava muito angustiado,
desesperado sem saber o que pensar e o que fazer – só queria morrer para se livrar de seu
intenso sofrimento. Na primeira vez que o atendi e ele começou a me contar como se sentia, eu
fui partilhando de seu sofrimento até o ponto de chorar junto com ele. Como eu já sentira algo
semelhante quando era criança consegui estar junto dele e lhe dedicar meu carinho, meu amor e
meu compromisso de ajudá-lo. Ao terminar a sessão, meu supervisor que me observava na sala
de espelho repreendeu-me severamente; chegou a me dizer que eu não tinha condições para
ser psicoterapeuta, por ser muito emotiva e neurótica, e que Arthur provavelmente não voltaria.
Mas ele voltou e voltou significativamente melhor, dizendo-me que, pela primeira vez encontrara
alguém que partilhara, verdadeiramente, de seu sofrimento, e que isto lhe dera alguma esperança
para continuar vivendo. Passou a me relatar uma porção de fatos que haviam contribuído para o
seu adoecimento. Passei a examinar os acontecimentos que relatava, procurando com ele,
descobrir e analisar as várias perspectivas dos mesmos, assim como seus próprios recursos e
possibilidades para lidar com eles. Posteriormente ajudei-o a elaborar planos de ação no sentido
de enfrentar seus próprios sofrimentos, ele acabou chegando às suas próprias conclusões, e
seus planos de ação e começou a executá-los acompanhado por mim até o dia em que decidimos
que conseguiria prosseguir sem a minha ajuda.
A melhora e progresso de Arthur e a minha insistência levaram meu supervisor a me
encaminhar novos clientes, que eu atendi de modo semelhante ao de Arthur com bons resultados.
Ao chegar no final do curso meu supervisor convidou-me para trabalhar em sua Clínica Psicológica
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dizendo-me: “você faz tudo errado, mas dá certo“. Não aceitei seu convite porque nessa ocasião
eu já era professora no “Sedes”, onde prestava atendimento terapêutico a vários alunos e alguns
professores da Faculdade, sem ônus para eles, em horas de minha permanência na Instituição.
Porém eu ainda conservava um leve sentimento de inferioridade a respeito de minha
competência. Como amava muito às freiras e às alunas do “Sedes”, e sentia que me amavam
também, eu ficava a pensar que meu progresso como profissional, era devido principalmente ao
afeto e a confiança que dedicavam. Por isso decidi partir para a Universidade de São Paulo“USP”, onde eu não tinha laços afetivos com ninguém. Fui apresentada por Nilce Mejias, que era
professora do “Sedes”, mas havia se formado na USP, e logo consegui a anuência de um
orientador: Oswaldo de Barros Santos. Além disso, fui convidada para dar aulas como docente
voluntária. No ano seguinte fui contratada como professora por solicitação de meus alunos. Foi
muito agradável adquirir a confiança e o apoio dos alunos e do diretor do Instituto de Psicologia,
que me nomeou. Entretanto, a convivência com os professores e professoras de meu
Departamento foi bastante difícil. Descobri que nem sempre sou correspondida quando abro-me
para amar alguém; há pessoas que têm o firme propósito de se manter contra nós. Mesmo assim
consegui lá me manter vinte e cinco anos, durante os quais galguei todos os degraus da carreira
acadêmica: Doutora, Livre Docente e Professora Titular, mesmo sem a benevolência e o amor
das queridas freiras e colegas do “Sedes”. Finalmente acabei me convencendo de que mesmo
não sendo super-inteligente, sou uma profissional esforçada e competente .
Voltando ao período em que eu era professora no “Sedes”, dois acontecimentos
contrastantes e muito importantes ocorreram, quase ao mesmo tempo: o nascimento de milha
filha Marisa e o assassinato de meu pai , ao qual já me referi anteriormente. Eu já estava próxima
dos 40 anos de idade quando suspeitei que entrara numa menopausa precoce, porém acabei
verificando que estava grávida mais uma vez. Inicialmente Cyro e eu ficamos preocupados, pois
nossos filhos já estavam crescidos e teríamos que começar tudo novamente. Porém, pouco
tempo depois, ficamos muito contentes com a espera de Marisa; embora ainda não existissem
recursos para saber o sexo do bebê já o batizara, garantindo que seria uma menina . Aos cinco
meses de gestação tive um ameaço de perdê-la, mas com muito repouso evitei que isso
acontecesse. A partir daí Cyro e eu passamos a desejar ardentemente que nada de mal
acontecesse à Marisa. Os quatro meses de repouso foram muito importantes para mim e para
pequena família. Ricardo, Célia e Cláudio chegavam rapidamente das aulas para me fazerem
companhia – curtiam muito a minha constante presença em casa. Cyro sempre que podia, vinha
mais cedo do trabalho para estar junto de mim. Foi um período de muito amor e muita curtição do
fato de podermos estar todos juntos, em harmonia. Cheguei a imaginar que nossa vida poderia
sempre assim se eu não precisasse ter que sair para trabalhar. Cheguei a me culpar por minhas
ausências nas horas de atividades profissionais. Porém logo me recuperei ao pensar como elas
também eram necessárias para mim. E também ao me lembrar de uma colega que deixara de
trabalhar para ficar em casa cuidando de seu filhinho de 2 anos. Ele agarrava-se a ela chorando
quando pegava sua bolsa para sair. Mas ela passara a ficar irritada, de mau humor, até o dia em
que ele pegou sua bolsa e lhe pediu “Vai mamãe, agora vai!”. Cheguei à conclusão de que o
importante não é a quantidade, mas a qualidade das horas que passamos em casa no convívio
com os filhos.
E, finalmente, nasceu Marisa! Linda e saudável, trazendo uma renovação de tudo o que
havia de bom em nossa família: o amor de todos nós por ela e também de todos nós uns com os
outros .
Marisa tinha apenas três meses quando papai foi barbaramente assassinado. Ele era
muito valente e quis enfrentar o ladrão para defender o seu lar. Agiu como se fosse um soldado
que morre numa guerra, para defender a sua pátria. Ficamos todos muito tristes, mas aos poucos
conseguimos nos conformar; voltei a trabalhar pois tinha uma empregada que tomava conta de
quase tudo em casa.
Passaram-se os anos, os filhos e as filhas cresceram sempre proporcionando muitas
alegrias, a mim e ao Cyro. E nós dois fomos amadurecendo num ambiente de amor e carinho; às
vezes discutíamos por sermos muito diferentes: eu sentimental e sonhadora e ele realista, “pés
no chão”; mas nos completávamos reciprocamente. Convivemos durante sessenta anos, seis de
namoro e cinqüenta e quatro de casados, até o dia que ele faleceu repentinamente, deixando-me
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muito triste como se tivesse uma parte de mim mesma. Entretanto recebi muito carinho dos
filhos, da mana Iza, de parentes, amigos e colegas. Estes começaram a me chamar, estimulandome a voltar ao trabalho. Colocavam-me em Bancas Examinadoras, convidavam-me para fazer
palestras ou para participar em algum Congresso. Provocavam-me dizendo que eu estava sendo
egoísta recusando-me a passar para outras pessoas meus conhecimentos e minha grande
experiência.
Eu fui gradativamente, me recuperando e voltando para aquelas atividades apoiada por
meus filhos e colegas. Afinal, acabei verificando que mantivera no decorrer da vida duas paixões:
Cyro, meu querido companheiro e meu trabalho. Com a ausência de Cyro, restava-me ainda
minhas atividades profissionais, as quais fui voltando a me dedicar. Cheguei a publicar mais um
livro sobre minha especialidade - Aconselhamento Terapêutico, 2007 - e me tornei acadêmica da
Academia Paulista de Psicologia.
A recordação de tantos acontecimentos de minha vida está me proporcionando por um
lado o prazer de ter alcançado tantas realizações; por outro lado, invade-me uma profunda saudade
de muitas pessoas queridas que contribuíram significativamente para que eu me tornasse a
pessoa que hoje sou e que já se foram dessa vida.
Uma Tentativa de Teorização
Nós, seres humanos, vamos nos tornando quem somos a partir de vivências simples,
diretas, imediatas que costumamos transformar em vivências racionais. Estas se formam do
significado que as imediatas têm para cada um de nós.
Além do significado, as vivências sempre contêm algum nível de humor que se manifesta
em sentimentos de agrado e bem-estar, ou de desagrado e contrariedade. Tais sentimentos
revelam-se desde níveis tão tênues que quase não percebemos, até níveis tão intensos que
podem nos dominar completamente.
O Humor exerce grande influência no significado das vivências, facilitando-o, ou dificultandoo, ou distorcendo-o ou até o impedindo. As vivências agradáveis de bem-estar tendem a facilitar
o significado e as de desagrado, contrariedade tendem a dificultá-lo.
As vivências racionais vão sendo relacionadas entre si constituindo nosso modo de pensar
e de agir. Ao conjunto de vivências racionais denomino de saber básico; ele surge e vai se formando
a partir da infância e durante toda nossa vida vai se desenvolvendo ampliando-se assim como se
modificando de acordo com o significado das novas vivências que vão surgindo.
Quanto mais livres conseguimos ser às nossas vivências e aos seus significados, mais
adequado à realidade será o nosso saber básico. Conseqüentemente mais eficientes serão os
resultados de nossas ações, pois elas são baseadas nele.
O nosso existir decorre num fluxo vital, constante, que em nossas vivências imediatas
consiste num presente perene; este integra o passado e nossas expectativas do futuro. O fluxo
vital é profundamente influenciado pelo humor, sendo intenso e pleno de perspectivas futuras
quando estamos contentes, ou lento e restrito quando estamos contrariados, chegando em alguns
momentos até a não ter nenhuma perspectiva. Estas características do fluxo vital tornam-se mais
intensas quanto mais intenso for o humor.
Assim como o decorrer do tempo, nossa vivência do espaço de nossa existência, pode
também ser ampla ou restrita, respectivamente de acordo com nosso bem-estar ou contrariedade.
Ela pode também ser familiar ou estranha conforme nos sentimos à vontade ou com desconforto.
Além da vivência do tempo e do espaço, vivenciamos a nossa liberdade. Esta encontra-se
intimamente relacionada ao quanto conseguimos ter abertura aos significados de nossas vivências
, para deles ir chegando a um saber básico à realidade , que nos possibilitará ações com resultados
eficientes .
A partir dessas idéias, cheguei a conclusão de que as vivências de bem –estar favorecem
a saúde existencial, enquanto as de contrariedade a dificultam . Em oito pesquisas fenomenológicas
que realizei para investigar as características de vivências intensas de bem-estar e de
contrariedade, e de suas relações com a saúde existencial, obtive confirmação da conclusão
acima referida. Entretanto, verifiquei também que as vivências de contrariedade intensa, quando
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são aceitas e enfrentadas pela pessoa, levam a vivências de bem-estar mais intensas e
duradouras. O “aceitar” não significa transformar racionalmente a contrariedade em bem-esta, e
sim aceitá-la como realidade da própria vida, para, em lugar de distorcer ou negar o seu significado,
tiver condições de enfrentá-la, resolvendo a situação, ou para transcendê-la, partindo então para
outra escolha de acordo com outras possibilidades. Nisto consiste um dos aspectos de nossa
liberdade: aquele no qual reconhecemos nossos limites, além de nossas possibilidades. Estas
tornam-se tanto mais amplas quanto maior a abertura do saber - básico ao significado das vivências
. Só podemos escolher entre coisas que sabemos que existem, ou que podem existir. E mesmo
assim, não podemos escolher e concretizar todas as escolhas, pois cada uma implica em várias
renúncias. Não conseguimos estar simultaneamente em dois lugares, fazendo coisas diferentes.
Assim, por exemplo, eu e cada uma das pessoas aqui presentes, precisamos deixar de estar em
outro lugar, fazendo outra coisa – talvez em casa descansando, assistindo televisão ou
conversando como uma pessoa amiga... Há coisas que renunciamos em uma ocasião, mas
poderemos escolher em outro momento. Mas cada um de nós, ao se voltar para o passado há de
se lembrar de coisas que não fez e não poderá fazer jamais; ou se voltar para o futuro pode
imaginar coisas que gostaria de fazer, mas não consegue porque não tem tempo ... está muito
ocupado com outras.
Além dessas considerações, as pesquisas que realizei em minhas próprias vivências, e
com uma porção de clientes, revelaram-me que a contrariedade e o sofrimento intensos são
freqüentemente acompanhados de solidão. Nessas ocasiões ainda que a pessoa esteja entre
muitas outras, não consegue se sentir junto delas. Mesmo que se queixe de seu sofrimento a
alguém, continua se sentindo só, a não ser que perceba que esse alguém a esteja compreendendo,
partilhando de seu sofrimento, querendo ajudá-la afetivamente, demonstrando seu amor por ela.
Percebi isso ao tentar consolar minha mãe quando eu ainda era criança e através dos anos
tenho tido inúmeras oportunidades de confirmar.
A convivência com uma grande quantidade de pessoas tem me revelado, também, que
ninguém é completa e permanentemente saudável. Nossa saúde existencial altera-se quando
vivenciamos intensa contrariedade, a ponto de atingir nossos limites para suportá-la de imediato.
Então, ficamos por alguns momentos confusos, sem saber o que pensar e o que fazer, perdemos
a ligação com nosso saber básico, é como se o mundo desabasse sobre nós . A morte de uma
pessoa muito querida, ou o seu findar lentamente diante de nossa impotência, uma doença muito
grave, o rompimento de uma intensa relação amorosa... Mesmo as pessoas consideradas normais
têm seus momentos de fraqueza, de oscilação de sua saúde existencial.
Por esse motivo não deve existir uma relação de poder do terapeuta em relação ao cliente,
ele também tem suas próprias dificuldades, seus limites, sua fraqueza que lhe possibilitam
compreender o sofrimento do cliente como um companheiro; alguém que já tem enfrentado
momentos difíceis. A principal diferença entre ambos é que o cliente solicita e o terapeuta se
compromete a ajudá-lo porque assim o quer e por ter se preparado para assumir essa tarefa.
Levando em conta as idéias aqui apresentadas, surgidas a partir de minhas próprias vivências, e
de estudos que tenho desenvolvido sobre a abordagem fenomenológica cheguei as seguintes
conceituações a respeito do Yolandismo:
1 - O aconselhamento é solidário porque o terapeuta, ou aconselhador e o cliente são dois
companheiros que existem no mundo, cada um deles procurando viver bem, ser feliz.
2 - Desenvolve-se em dois momentos fundamentais: o envolvimento existencial e o distanciamento
reflexivo. No envolvimento o terapeuta participa do sofrimento do cliente, releva seu querer bem,
seu companheirismo e seu compromisso de querer ajudá-lo. Isto para abrandar, ou até mesmo
desfazer o sentimento de solidão do cliente, propiciando-lhe uma vivência de bem – estar,
contentamento. Esta tende a remover as cinzas dos sofrimentos que estão encobrindo ou
dificultando a expansão do fluxo do seu existir. Sentindo-se junto do terapeuta o cliente começa a
adquirir coragem para aceitar e enfrentar seus sofrimentos.
No distanciamento reflexivo, terapeuta e cliente, analisam os sofrimentos e dificuldades deste, e
seus recursos e possibilidades para, gradativamente, aceitá-los e enfrentá-los. Caso verifiquem
não ser isso possível partem para o levantamento de possibilidades de novas escolhas do cliente
e de planos de ação para concretizá-los.
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Envolvimento existencial e distanciamento reflexivo constituem momentos complementares e
reversíveis, de modo que ora haja a predominância de um, ora de outro, sem que se anulem
reciprocamente. Cada um deles torna-se predominante conforme o terapeuta percebe que o
cliente está necessitando de sua presença e de seu amor, ou apresenta condições de raciocinar
a respeito de seu sofrimento e de suas dificuldades. Até que ambos concordem que o cliente tem
condições de prosseguir sem a ajuda do terapeuta.
Durante o processo terapêutico não tenho a intenção de analisar e interpretar a psicopatologia do
cliente, e sim buscar com ele, seus recursos e possibilidades, seus aspectos saudáveis para que
ele tenha condições de viver melhor, com mais liberdade e vivências de bem - estar e
contentamento. Além disso, costumo recomendar ao cliente que procure se exercitar em
percepções simples, diretas, imediatas, sem preocupações ao contemplar uma paisagem, ouvir
uma música, saborear um alimento ou outras de sua preferência, que lhe propiciem vivências de
bem – estar. Estas também podem contribuir para ativar o fluxo do existir do cliente.
Finalizo acrescentando que o Aconselhamento Solidário, que denomino de Yolandismo,
encontra-se enraizado no seguinte modo de ser e de pensar: somos todos seres humanos,
semelhantes em nossa luta no decorrer da existência, com o ideal de sermos felizes; e para nos
aproximarmos da concretização desse ideal é necessário que nos solidarizemos em nossos
sofrimentos para amenizá-los e em nossas alegrias para intensificá-las.
Referências Bibliográficas:
Podem ser encontradas nos livros da autora :
- Aconselhamento Terapêutico - São Paulo-SP ; Thomson Learning , 2007
- Psicologia Fenomenológica - São Paulo-SP; Pioneira – Thomson Learning , 2004
Instituição: Universidade de São Paulo
Síntese Curricular
Possui graduação em Pedagogia com Licenciatura pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras
'Sedes Sapientiae' (1945); Livre Docência, IPUSP-1991; Doutora em Psicologia pelo Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (1972); Residencia-medica pela Faculdade de Filosofia
Ciências e Letras Sedes Sapientiae (1956) e aperfeicoamento em Aconselhamento Psicológico
pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (1971); Docente convidada da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, da EPPA, do Centro de Psicoterapia Existencial de São
Paulo. Te, experiência na área de Psicologia , com ênfase em Psicologia Clínica Fenomenológica.
Atuando principalmente nos seguintes temas: Psicologia clínica, Psicopatologia, Psicoterapia
fenomenológica
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“Ética e Rituais Necessários ao Mundo Atual”
Laura Villares de Freitas¹
A natureza humana abre possibilidades tanto de criatividade quanto de destrutividade. Cabe à
consciência desenvolver a função ética para pautar sua vida no mundo. Cabe à cultura oferecer
códigos de conduta, significados a serem compartilhados pela comunidade, assim como rituais
protetores, transformadores e canalizadores da energia psíquica. Os rituais delimitam papéis,
situações e passagens para aquisição de novos status. Discriminam o que é para ser vivido
como sagrado e o que é para ser vivido como profano. Alimentam a vida psíquica da comunidade
e de seus indivíduos, num movimento de mão-dupla. A arte e a religião desempenham papel
fundamental, na medida em que são capazes de apresentar temas de violência num enquadre
que simultaneamente impede a violação da dimensão do sagrado. Esta apresentação trará
reflexões sobre a pobreza de rituais criativos na atualidade, assim como a sugestão de alguns
rituais que têm a finalidade de promover um efeito anti-violência.
A idéia desta mesa pretende configurar e criar um clima de “tavola redonda”, muito mais do que
polemizar o tema central. Isso porque já somos, de certa maneira, um grupo de trabalho
anteriormente constituído no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, que articula
pesquisadores, psicóloga e professora ligados à pós-graduação. Já temos noção de pontos de
consenso e das diferenças de enfoque e abordagem. Com alguma inspiração advinda das imagens
dos cavaleiros do rei Artur, buscamos constituir um corpo que pensa a pesquisa e a intervenção
pautada na psicologia analítica de Jung com nossa mínima coerência e uniformidade, o que
permite usufruir das imagens que retratam a experiência compartilhada ao redor da távola redonda.
Por outro lado, trilhamos caminhos bastante individuais, seja na definição dos temas ou das
formas de abordagem a eles. Há uma busca comum, mas os caminhos são individuais, como
também ocorria na busca do Graal pelos cavaleiros da corte de Artur. De nosso grupo esperamos
frutos como aulas e cursos, dissertações de mestrado e tese de doutorado, pesquisas e propostas
vivenciais de intervenção.
Realizamos encontros mensais, em que o grupo compartilha os passos, conquistas, dúvidas,
sucessos e dificuldades e há troca de opiniões e impressões sobre os trabalhos individuais. O
grupo tem sido renovado anualmente, com a entrada de novos mestrandos ou doutorandos.
Atualmente, somos um grupo de mulheres, o que acaba por trazer uma tônica que nos parece
relevante ao tema da violência, tomado como foco deste Congresso.
O ambiente que nos acolhe nos encontros é o Laboratório de Estudos da Personalidade, ou
simplesmente LEP, que funciona no Instituto de Psicologia da USP. Procuramos conceber e
vivenciar o espaço-tempo-atmosfera do LEP como um labor-oratório, inspiradas nos alquimistas,
que ao se debruçarem sobre a matéria em busca de sua essência e cerne fundamental, acabavam
por vivenciar e descrever profundos processos de transformação, que se davam tanto na matéria
quanto em si próprios, como pessoas. Tal profundidade, de que temos uma noção nos enigmáticos
registros alquímicos por imagens e textos cifrados, era possível graças sobretudo à relação que
o alquimista tinha com a matéria sobre a qual se debruçava, com o local e a natureza do trabalho
que realizava, e muitas vezes também com sua companheira ali. Tratava-se de muita dedicação
e esforço por identificar e reconhecer processos, assim como de uma atitude de respeito e
reverência para com a matéria bruta e o contexto todo. Daí a idéia de labor e oratório, trabalho e
meditação, suor e reverência, o labor-oratório. Não se trata de um retrocesso a uma mentalidade
medieval, mas do progresso que implica em não deixá-la de lado, pois ela permite uma atitude
que nos parece fundamental à psicologia.
Numa época como a atual, tão marcada por experiências de fragmentação, por uma razão que
se pretende soberana e decisiva para a tomada de decisões e por maneiras quase exclusivamente
masculinas de estar e agir no mundo, temos visto que falta a consideração pela dimensão do
self. Este considera sempre o contexto inteiro em que cada situação se dá, e o toma como um
¹Doutora e mestre em Psicologia Clínica pelo IPUSP; professora doutora na pós-graduação e graduação do IPUSP; membroanalista da International Association for Analytical Psychology e da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
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campo interacional, em que a emoção e a intuição têm valor análogo ao do pensamento e da
sensação, em que o eu e o outro podem estabelecer uma relação simétrica, embora as diferenças
sejam inevitáveis, e inclusive desejáveis. O ego é fundamental como centro da consciência,
parteiro de imagens, responsável por conferir um senso de identidade e estabelecer canais de
comunicação com a sombra e outras instâncias psíquicas. Ele também pode elaborar aspectos
da persona e é, sobretudo, o guardião da dimensão ética, responsável pelos princípios reguladores
de nossa ação neste mundo.
Mas o ego não tem sentido se não se comunicar com o self, mantendo-se aberto às imagens e
símbolos que emergem ao longo do cotidiano. O self confere um senso de identidade profunda e
afere um significado para a vida, tomada como um todo, um processo de individuação, ou tomada
nas contingências do dia-a-dia.
O tema deste congresso é a violência, aqui considerada uma distorção do impulso agressivo. A
sexualidade, a agressividade e a dependência são forças básicas, isto é, arquetípicas, do ser
humano. Cada uma delas pode ser canalizada na direção da criatividade ou da destrutividade,
pois em si não são nem boas nem más e o ser humano tem potencial para se desenvolver em
ambos os caminhos. Na origem, há a busca do outro, a atração e medo pela/da fusão e a
necessidade de diferenciação individual. Cada uma das forças básicas pode levar ao encontro, à
fusão e à diferenciação.
Infelizmente hoje em dia, vivemos condições sociais, econômicas e políticas bastante eliciadoras
de violência. Há muita injustiça e desigualdade, muito abuso de poder. Mas esse nível de explicação
e intervenção para o fenômeno da violência não basta. A psicologia junguiana considera que ela
está enraizada na própria natureza humana, enquanto possibilidade de formas de existência. O
desenvolvimento da consciência e da vida psíquica, contínuo e incessante, muitas vezes se dá
através do conflito entre polaridades opostas. Se devidamente consideradas, primeiramente
toleradas e depois tomadas para contemplação e estabelecimento de uma relação, as polaridades
podem trazer importantes discriminações e gerar novas maneiras de reagir e estar no mundo,
podem configurar sínteses novas e criativas.
A violência seria a distorção do impulso agressivo, uma maneira destrutiva de canalização de sua
energia psíquica. A violência implica numa violação da dimensão do self, o qual enraíza a identidade
profunda e permite a consideração do contexto, do campo interacional, do passado e do porvir,
da razão e das emoções. Ao ser violado o self, perde-se a dimensão de auto-regulação da psique
e a dimensão pessoal, configura-se a distorção, patologia, sofrimento, estagnação. Advém a
massificação, o vazio, a perda de sentido da vida.
No momento atual, a crescente violência aponta para a necessidade de uma mudança de postura.
Não basta tentar reprimir sentimentos e idéias. Mais do que nunca, eles devem ser tomados em
consideração, por mais degradantes que possam parecer. É preciso manter a inibição da ação
agressiva aleatória, compulsiva ou projetiva. Mas é igualmente preciso garantir a expressão e
trabalho psicológico com as imagens e emoções agressivas. A religião e a arte não têm dado
conta da elaboração criativa do potencial agressivo do ser humano.
Para tal, urge considerar a construção e manutenção de espaços de convívio, expressão e
compartilhamento de tais símbolos. Tal como a lareira acesa por Hestia, que garantia a possibilidade
de estar ao seu redor, usufruindo de sua luz e calor, na companhia de outros diferentes e numa
coexistência pacífica, necessitamos de ambientes e rituais de acolhimento e elaboração de nossas
emoções, por mais destrutivas que pareçam. Quem sabe, o auto-conhecimento e contato com a
sombra assim promovidos pode enriquecer o conteúdo pessoal e seu comportamento no mundo,
levando a mais tolerância, busca de formas de diálogo e interação, e à construção de novas
maneiras de ser e estar no mundo, mais conectadas às histórias de vida e mais assumidas
pessoalmente.
O papel da imaginação é fundamental, pois ela alimenta a construção de um campo delimitado,
que é articulado ao da ação, mas não coincide com ele. Necessitamos dos princípios éticos
vigentes de respeito ao outro, mas necessitamos também, e talvez ainda mais, do reconhecimento
do que ocorre em nossa imaginação, do que repudiamos e odiamos, invejamos, cobiçamos
desmesuradamente. Nos rituais é necessária a diferenciação de papéis, o lidar com a dimensão
dos valores e mitos embasadores, a consideração dos ciclos de tempo.
Aqui falamos na criação de rituais anti-violência, pois temos explorado diferentes maneiras de
31
contenção e transformação dos mais diversos impulsos humanos, desde grupos vivenciais
valendo-se de recursos expressivos, passando por grupos de danças circulares e meditação,
rodas de artesanato, grupos terapêuticos, até o atendimento psicológico individual. Nossa intenção
é criar espaços de exploração lúdica, expressão da sombra, experimentação de soluções,
compartilhamento. A delimitação de espaços e tempos para a expressão, o contato com o que
tiver emergido, o pesquisar formas, soluções e interações, o compartilhar os ensaios – todos
esses momentos nos parecem fundamentais para o apoio a uma nova postura, mais feminina,
na atualidade. Por “feminino” aqui aludimos a uma consciência menos polarizada e mais cheia de
nuances, mais aberta a variações individuais, mais atenta ao contexto em que está inserida, mais
promotora da consideração e construção de subjetividades, mais ligada ao aqui e agora na
concretude em que estiver se apresentando, e menos ligada quase que exclusivamente a
abstrações e generalizações. Nossa época parece necessitar muito dessas qualidades femininas
e da ética que as acompanha e sustenta. É nesse sentido que aqui nos propomos a expor e
compartilhar reflexões a respeito de certos rituais que consideramos fundamentais para a vida
atual, pois mantêm a conexão com o significado da vida, o que é imprescindível para o ser
humano, tomado psiquicamente.
Referências Bibliográficas
Frankel, R. The adolescent psyche. New York : Brunner-Routledge, 2003
Jung, C.G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963
Jung, C.G. Fatores Determinantes do Comportamento Humano. O.C. volume 8, Editora Vozes.
Lima Filho, A.P. Brincadeiras Selvagens: Problema Nosso. São Paulo: Oficina de Textos, 1997.
Lima,T.P. e Freitas,L.V. Laboratório de Estudos da Personalidade: É possível um “labor-oratório”
numa universidade em pleno século 21? Boletim de Psicologia, 2007, vol. LVII, n.127: 183-203.
Tacey, D. Remaking Men: Jung, Spirituality and Social Change. London: Routledge, 1997
Whitmont, E.C. O Retorno da Deusa. São Paulo: Summus, 1991
Instituicao
Instituto de Psicologia da USP
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
Sintese Curricular
Doutora e Mestre em Psicologia Clínica pelo IPUSP;
Professora doutora na pós-graduação e graduação do IPUSP;
Membro-analista da International Association for Analytical Psychology e da Sociedade Brasileira
de Psicologia Analítica.
32
A Violência como Experiência de Violação do Self e as Práticas Meditativas Orientais como
Possibilidade de Reconstituição do Contato com o Self
Elisabete Freire Magalhães – IPUSP
Introdução
O fenômeno da violência tem assumido na contemporaneidade uma faceta assustadora, na qual
a percebemos disseminada em todas as esferas sociais e políticas, sem a possibilidade de
emergência de uma solução a curto ou médio prazo para este problema. Abordamos esta questão
articulando-a ao conceito de self em dois autores da psicologia: Jung e Winnicott. Postulamos
que uma das formas pelas quais a violência contemporânea se manifesta diz respeito à vivência
de nulidade e falta de sentido de que muitos indivíduos padecem na atualidade. Observamos na
clínica, em interlocução com Jung, que tais experiências articulam-se à falta de contato com o
self, fonte de vitalidade e experiências transformadoras. O ego, nesses casos, acaba por ocupar
lugar preponderante na vida da pessoa, dificultando o processo de individuação. Com Winnicott,
temos a definição do conceito de falso self, que, em linhas muito gerais, representa uma prótese
do self verdadeiro. Com esse conceito, Winnicott explica o sentimento de vazio experienciado
por alguns de seus pacientes e que caracteriza, não o quadro depressivo, mas um quadro mais
primitivo no qual o suicídio é um risco real para a pessoa. No sentido de promover uma interlocução
entre esses autores e as questões engendradas na contemporaneidade, elegemos os autores
da Escola de Frankfurt, que contribuem com uma análise profunda e acurada dos problemas que
atravessamos. Por fim, propomos que as técnicas meditativas podem ajudar o ser humano
contemporâneo a resgatar o contato com o Self, que, na terminologia junguiana, implica o fato de
o ego deixar de ser o centro gravitacional da vida do indivíduo, que experiencia uma ampliação
de consciência a partir do contato com fonte de vitalidade que é o Self. Trabalhamos com a
hipótese de que as propostas meditativas orientais podem auxiliar o ser humano a estabelecer e
manter um contato nutritivo com o self, ao exercer a função de ritual que abre espaço para um
contato simbólico com os conteúdos psíquicos. Definimos meditação como possibilidade de
aquietar a mente a partir da observação dos fluxos de pensamentos, imagens e símbolos, quando
nos colocamos em uma postura contemplativa. Meditação, segundo Lama Michel Rinpoche, diz
respeito à possibilidade de nos familiarizarmos com o modo como nossa mente funciona, como
recebemos e processamos os mais variados estímulos, como nos relacionamos com as pessoas
e com o mundo. Para ele, meditação está articulada à possibilidade de auto-conhecimento que
se dá a partir da observação e contemplação de nós mesmos, sem medo e sem julgamento, o
que, segundo ele, implica ampliação de consciência.
Objetivos
Traçar um paralelo entre alguns diferentes enfoques acerca do sofrimento humano, articulandoos aos conceitos de self, falso self, individuação, propondo as práticas meditativas como um
recurso para a liberação do sofrimento causado pela falta de contato com o Self.
Métodos
Pesquisa bibliográfica, articulando o pensamento de diferentes autores.
Desenvolvimento
Os teóricos da Escola de Frankfurt, um grupo de intelectuais formado em meados do século
passado, após a experiência de horror da segunda grande guerra, debruçaram-se sobre o
fenômeno da violência, articulando-o a uma sociedade que, em suas bases, fomenta, alimenta e
legitima a violência, através de seus indivíduos conformados, sem capacidade crítica tampouco
qualquer possibilidade de ação para alterar tal estado de coisas. Tais indivíduos, porém, podem
ser capazes de comportamentos preconceituosos e até mesmo fascistas, ao eleger vítimas sobre
as quais descarregam suas inúmeras frustrações. Um dos pressupostos discutidos pelos
frankfurteanos acerca da inospitalidade do mundo contemporâneo diz respeito à tentativa
engendrada pela ciência de desmitologizar o mundo, ao buscar objetivar todos os fenômenos,
reduzindo-os às suas explicações imediatas e, muitas vezes, rasteiras, descartando o fato de
que todos os fenômenos, por mais objetivos que nos pareçam, são interpretados por uma
33
subjetividade. Segundo os frankfurteanos, a tentativa de desmitologizar o mundo, ou seja,
desencantá-lo, tem tido o efeito, não de nos diferenciarmos da natureza, mas de nos tornarmos
subjugados a ela, na medida em que nos tornamos cada vez mais indiferenciados enquanto
sujeitos, na medida em que nos conformamos com a única possibilidade que nos é oferecida: a
possibilidade predatória, consumista. Jung, ao conceituar acerca do sofrimento do homem
contemporâneo, aponta que psiquicamente somos tão primitivos quanto o homem primitivo e
que, diferentemente deste último, não encontramos, em nossa civilização avançada do ponto de
vista tecnológico, recursos tão eficazes para lidar com os conteúdos de nossa psique, que abarca
tanto os conteúdos conscientes quanto inconscientes (pessoal e coletivo) quanto o homem primitivo
ensejava.
(Ver Jung, C. G., 2000, p. 30). Os teóricos da Escola de Frankfurt, assim como Jung, dentre
outros autores, observam que à medida que caminhamos para um avanço tecnológico que busca
subjugar a natureza e objetivar todos os fenômenos, explicando-os à exaustão na tentativa frenética
de reduzi-los ao domínio quantificável, tornamo-nos indiferenciados da natureza e regredimos à
esfera do mito, na medida em que elegemos o “mito da ciência” como um projeto de dominação
do mundo, tornando-nos escravos de nosso próprio inconsciente que, como medida
compensatória, produz os mais variados sintomas, dentre eles o fenômeno da violência
disseminada nas várias instâncias da vida pública e privada. Jung abordou o fenômeno da
violência, enfatizando o ponto de vista psíquico, salientando que as guerras que nos ameaçam,
são epidemias psíquicas.
(...) A maior parte (do psiquismo) é constituída por um fato inconsciente que ali se encontra
como um granito, rígido, pesado, impenetrável e irremovível e que, por possuir leis
desconhecidas, pode avassalar-nos a todo momento. As gigantescas catástrofes que nos
ameaçam não são, de modo algum, acontecimentos elementares de natureza física ou biológica,
mas acontecimentos psíquicos. As guerras e revoluções que nos ameaçam com tanta violência
nada mais são do que epidemias psíquicas. (...) Em lugar dos animais ferozes, dos terremotos
e grandes inundações, o homem hoje se vê exposto às suas forças psíquicas elementares. O
psíquico é um poder imensamente maior do que todas as demais forças terrestres. O iluminismo,
ao expulsar os deuses da natureza e das instituições humanas, não atentou àquele deus do
terror que habita em toda alma humana. Ante o imenso poder do psíquico, é sempre oportuno
o temor de deus. (Jung, C., G., 1990, p. 57)
Em nossa civilização cindida, apartada da força transformadora e, ao mesmo tempo, terrível, do
inconsciente, observamos os mais variados sintomas como fundamentalismos, terrorismos,
assassinatos em série, além de todas as formas de preconceito, tanto explícitas quanto
subliminares, a determinar as relações assemelhadas a transações comerciais, sob o pretexto
de que é a pura racionalidade que nos move. Jung considerou o inconsciente em uma perspectiva
transpessoal, remetendo o ser humano a uma abertura que o coloca a meio caminho entre os
animais e os deuses, lugar de símbolos, mitos, ritos e histórias que pedem singularização; um ser
humano portador de sentidos, com a missão de abarcar tanto conteúdos pessoais como os mais
arcaicos conteúdos presentes em nossos ancestrais. Ser humano, para Jung, implica ocupar um
lugar pouco confortável, no qual o confronto com o inconsciente se faz necessário, roubando-nos
qualquer ilusão de onipotência egóica.
Winnicott postulou o desafio da constituição humana a partir de pressupostos que, do meu ponto
de vista, complementam aqueles propostos por Jung. Propôs uma clínica que contemplasse os
estágios iniciais do processo maturacional, onde todo um cuidado específico e delicado requer
do analista uma consideração acerca das necessidades do outro, não seu desejo, tal como
acontece ao sujeito edípico, de Freud, em franca extinção na atualidade; enfatizou, em sua clínica,
os aspectos constitutivos de um ser humano e refletiu acerca da necessidade de adaptação do
analista às necessidades do outro, não o contrário. Seu olhar pôde identificar uma modalidade de
sofrimento, muitas vezes, reconhecida no ato extremo do suicídio, quando nos deparamos,
perplexos, com a brutalidade de um ato cometido por um sujeito tão anônimo quanto “normal”.
Winnicott descreveu o processo maturacional em seus primórdios, respondendo à demanda de
seus pacientes, cuja problemática principal, muitas vezes, tinha seu núcleo etiológico em momentos
iniciais, anteriores ao estágio edípico. Observou que, para a constituição de qualquer ser humano,
a consideração acerca do ambiente no qual um processo maturacional é facilitado, dificultado ou
impedido, mostra-se fundamental. Uma importante formulação de Winnicott diz respeito ao conceito
34
de falso self, que implica, a um só tempo, funcionalidade, mimetismo e senso de nulidade. Em
termos muito gerais, há várias gradações de falso self, sendo esta defesa, em alguma medida,
necessária à nossa sobrevivência social, pois está articulada à máscara inerente à esfera social,
com seus papéis e funções. A questão do falso self se apresenta como um problema clínico
quando uma determinada pessoa perde (ou nunca pôde ter) o contato com a fonte de sentido e
vitalidade, que é própria do self verdadeiro e que justifica estarmos vivos e, de algum modo,
termos esperança na vida, mesmo diante da barbárie que testemunhamos. O falso self torna-se
um problema clínico que afetará a vida do indivíduo quando se instala como prótese do verdadeiro
self para protegê-lo de angústias impensáveis; nesses casos o indivíduo passa reagir e estabelece
com o meio uma relação de submissão; estamos então diante de uma organização defensiva
onde o indivíduo opera no mundo a partir de uma reação ao ambiente, comportando-se, muitas
vezes, de maneira adequada em relação àquilo que ele infere ser esperado dele, mas sem, no
entanto, poder, de fato, experienciar a vida; a realidade passa a não fazer sentido, já que aquilo
que poderia ser uma vida humana não se deu, esse indivíduo vive como se, de fato, vivesse, e o
que seria um sentimento de experimentar a vida é substituído por uma imitação do que seria
essa possibilidade. Essa organização defensiva acontece para proteger o verdadeiro self de
invasões que, de seu ponto de vista, seriam intoleráveis. Winnicott chamou-nos a atenção para o
fato da problemática do falso self não ser incompatível com a sobrevivência física; o indivíduo
pode sobreviver mas não saberá o que é viver. A vida, nesses casos, pode ser experimentada
como fútil, nula, em branco. (Ver Winnicott, 1983, texto de 1960, pp. 132-134)
Sugerimos que a etiologia do falso self se funda na violência; não se trata da truculência explícita
da tortura, do crime, das guerras, da produção de miséria material, mas da violência ancorada na
incapacidade de empatizar com o outro. Uma mãe inábil no cuidado com seu filho não encontra,
muitas vezes, em si mesma, na terminologia winnicottiana, a possibilidade de acessar o self
verdadeiro, fonte de sua própria espontaneidade e sensibilidade. E isso se dá em função de não
ter ela mesma recebido cuidados que lhe permitissem cuidar. Considerando a terminologia
junguiana, diríamos que uma mãe inábil não é capaz de acessar a riqueza do Self, com seus
conteúdos inconscientes e um manancial de sabedoria; estando possivelmente enrijecida por
algum complexo que remete à impossibilidade de contato com a própria feminilidade, acaba por
não encontrar recursos para confrontar-se com o inconsciente, lançando luz aos conteúdos
sombrios. De maneira inconsciente, age com seu filho da mesma maneira mecânica como
provavelmente foi tratada.
Jung propôs formulações sobre o fenômeno do Self enquanto possibilidade de abertura ao
inconsciente coletivo, requerendo a integração de aspectos que transcendem um funcionamento
meramente pessoal. Apontou, no entanto, que o contato com o Self enquanto instância alargada
que abriga toda a riqueza do arcabouço vital e mítico de nossos ancestrais, requer um indivíduo
engajado consigo mesmo, com recursos pessoais que possam dar conta de atravessar os labirintos
abrigados em si mesmo, simbolizando seus processos, caminhando no sentido, não de dissecar
o mistério, mas abarcá-los em si. Winnicott contribuiu com postulações acerca dos processos
iniciais na vida de uma pessoa, ressaltando que a possibilidade de alguma independência e
autonomia implica sempre a condição de ter sido cuidado. Desse modo, observo que, enquanto
Jung enfatizou a necessária coragem implicada no processo de individuação que, em última
instância, implica o contato com uma solidão básica e essencial, Winnicott postulou acerca dos
fundamentos da possibilidade de contato consigo mesmo, ressaltando que, embora não possamos
escapar da angústia inerente ao existir (na qual está implicada uma solidão básica e essencial), é
a partir da existência dos outros que nos constituímos, pois, desde o absoluto início, dependemos
do cuidado generoso de alguém.
Para esta apresentação, não nos aprofundaremos nos pressupostos éticos e filosóficos da cultura
oriental. Ressaltamos, porém, que um estudo acerca dos processos meditativos poderá contribuir
para compreendermos a cultura oriental como fonte de sabedoria acerca do funcionamento
psíquico e aprofundarmos os estudos iniciados por Jung, em interlocução com a cultura indiana.
Até mesmo um conhecimento superficial é suficiente para mostrar que existe uma diferença
fundamental entre o Oriente e o Ocidente. O Oriente se baseia na realidade psíquica, isto
é, na psique, enquanto condição única e fundamental da existência. A impressão que se
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tem é a de que este conhecimento é mais uma manifestação psicológica do que o resultado
de um pensamento filosófico. Trata-se de um ponto de vista tipicamente introvertido, ao
contrário do ponto de vista ocidental que é tipicamente extrovertido.(...) (Jung, C. G., 1991,
pp. 6, 7, 8)
(...)No oriente o homem interior sempre exerceu sobre o homem exterior um poder de tal
natureza que o mundo nunca teve oportunidade de separá-lo de suas raízes profundas. No
ocidente, pelo contrário, o homem exterior sempre esteve de tal modo no primeiro plano,
que se alienou de sua essência mais íntima. (...) (Jung, C. G., 1986, p.18)
Por fim, pensamos que um estudo acerca dos processos meditativos poderá contribuir para
compreendermos o ser humano contemporâneo, com seus recursos e impedimentos, buscando
alternativas que nos possibilitem considerar o processo de individuação, em tempos de
massificação e violação do Self.
Conclusão
Jung e Winnicott surgem como importantes interlocutores a esmiuçar os processos subjetivos
que nos caracterizam. Pensamos que é do indivíduo constituído enquanto entidade distinta das
massas e, ao mesmo tempo, aberto ao contato com o Self, que poderá emergir alguma saída
que dê conta de responder à demanda de uma sociedade massificante, que não tolera diferenças
individuais . Nesse contexto, as práticas meditativas podem se inserir como tentativa de responder
às necessidades do ser humano contemporâneo, convidando-o à possibilidade de introspecção,
para, a partir da contemplação de si mesmo, encontrar recursos que possam eventualmente vir
a contribuir ao seu processo de individuação.
Referências Bibliográficas
Adorno, T. W., e Horkheimer, M., Dialética do esclarecimento. Trad. G. de Almeida. 2ª edição, Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
Freitas, L. V., O ser humano: entre a vida e a morte. Visão da Psicologia Analítica. In Kovács, M.
J., Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
Jung, C. G., e Von Franz, M-L., O Homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,,
1995.
Jung, C., G., Memórias, Sonhos, Reflexões. Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1975
Jung, C., G., Psicologia e Religião Oriental. Trad. Pe. Dom Mateus Machado Rocha. Revisão
técnica: Dora Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 1986.
Jung, C. G., Civilização em transição. Trad: Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2000
Jung, C., G., Aspectos do Drama Contemporâneo. Trad. Márcia C. de Sá Cavalcante. Petrópolis:
Vozes, 1990
Matos, O., C., F., A Escola de Frankfurt: Luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna,
1993 (Coleção Logos).
Winnicott, D., W., Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Trad. Davy Bogomoletz. Rio de
Janeiro: Imago, 2000.
Winnicott, D. W., O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do
desenvolvimento emocional. Trad. Irineo Constantino S. Ortiz. Porto Alegre, RS, Artes Médicas,
1983.
(MP3) RINPOCHE, LAMA MICHEL, Curso de Filosofia Budista (Siddhanta Drub-tha), editado
pelo Centro de Dharma da paz, 2007, em formato MP3, em português.
Instituição: IPUSP - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Síntese Curricular:
Doutoranda no programa de Pós Graduação do Instituto de Psicologia da USP, sob a orientação
da Profª Drª Laura Villares de Freitas. Pesquisadora na área de saúde e desenvolvimento humano;
Psicóloga clínica.
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Exploração da Sombra por Meio de Dramatização num Espaço Público
Marcia Alves Iorio Quilici
Introdução
Minha experiência clínica como terapeuta tanto de indivíduos como de grupos, quanto minha
experiência com grupos vivenciais, tem me permitido observar e levantar hipóteses sobre as
possibilidades de investigação dos conteúdos inconscientes da sombra com a utilização de
recursos dramáticos espontâneos, tanto no setting terapêutico como em grupos vivenciais.
Sabemos que para o desenvolvimento psíquico é imprescindível que ocorra uma aproximação
do ego aos conteúdos da sombra. Se este não se abrir ao contato com a sombra, sua energia
permanece inconsciente e sua influência é percebida negativamente, compulsivamente e com a
utilização de projeções. As implicações da projeção da sombra são danosas ao indivíduo e também
ao coletivo. Podemos tomar como exemplo todo tipo de discriminação social, racial que resultam
em uma agressividade não criativa e em manifestações de violência na sociedade. Desta forma
vemos que o trabalho com aspectos da sombra é de extrema importância para o indivíduo e para
o grupo social.
Objetivo
Baseada na abordagem juguiana procurei investigar se a ação dramática pode favorecer a
expressão de conteúdos sombrios e seu reconhecimento pela consciência e se este recurso
expressivo pode ser um instrumento facilitador para a emergência, o desenvolvimento e a
estruturação de uma consciência de alteridade. Para tanto me voltei para as atividades de psicosociodrama que acontecem no Centro Cultural São Paulo.
Método
Esta investigação consistiu na observação e no registro por escrito de um ato psico-sociodramático
no Centro Cultural São Paulo, realizados por mim e por quatro pesquisadores assistentes.
Imediatamente após o ato, realizamos entrevistas semi estruturadas gravadas com participantes
e com a diretora. O intuito era investigar as expressões da sombra e a atitude da consciência
diante destes conteúdos.
Desenvolvimento
Ao propor a dramatização espontânea como um instrumento que possibilite a exploração, o diálogo
e o reconhecimento da sombra num contexto grupal me aproximo das idéias Whitmont (1991),
que propõe rituais criativos para a exploração do inconsciente. Segundo o autor, estes rituais
facilitam o desenvolvimento de um ego que se deixa guiar mais pelo Self, mantendo uma relação
com o grupo no qual está inserido. Quando damos forma e continência para afetos e impulsos,
com o uso da ritualização, diminuímos o receio de sermos inundados por estes afetos, reduzindo
o perigo de uma explosão. Com o ritual, “O novo impulso dirige-se à individualidade como um
todo integrado. Sua meta é a reintegração daquilo que antes estava reprimido”. (WHITMONT,
1991, p.259).
Assim como o autor, penso que a dramatização espontânea, o psicodrama, como um ritual é uma
atividade que dá forma e contenção aos conteúdos da sombra, permitindo que símbolos possam
se expressar de uma maneira criativa, o que possibilita a ampliação do campo consciente, a
diminuição de mecanismos projetivos e a conseqüente diminuição de manifestações que possam
resultar em violência.
Ao investigar a sombra em um contexto de grupo é preciso esclarecer que ela é a expressão
coletiva de um todo onde há uma interdependência entre os aspectos individuais e os coletivos,
entre parte e todo e a sombra torna-se produto desta dinâmica interacional. (JUNG et al, 1998).
Freitas (2005) também sugere que a interação criada entre os membros do grupo cria um campo
tão coeso que é possível a aplicação dos termos consciência, sombra e símbolos grupais.
Apresenta ainda o conceito de Self grupal, entendido como a totalidade que um determinado
grupo constela a partir do campo simbólico criado.
Para Jung (2000) o trabalho com a sombra implicava em um processo de confrontação entre
37
aspectos inconscientes e a consciência, onde esta última poderia então adquirir um
funcionamento em alteridade. Assim, o termo confronto, no sentido de um enfrentamento
doloroso entre consciente e inconsciente, tem um lugar importante no modo de pensar
junguiano. Porém, a atitude da consciência em relação à sombra em vivências de um ato
consiste num olhar, num abrir-se para o desconhecido por meio de uma atitude de acolhimento
e aceitação para com estes aspectos, funcionando mais matriarcalmente, como sugerem
Humbert (1985) e Neumann (1979), o que seria um passo anterior à confrontação dolorosa.
A aproximação entre consciência e sombra é facilitada pelo recurso dramático, pois no momento
em que o participante dramatiza, a corporeidade e a gestualidade adquirem força de expressão,
possibilitando a criação de imagens. “Todo nosso corpo, cada um de nossos gestos, cada
uma de nossas atitudes, o menor de nossos movimentos vão contribuir para a criação de uma
imagem” (SHELEEN, 1983, p.29). E ainda segundo Whitmont (1975) ao dramatizarmos há
um esforço por parte da consciência para encontrar uma expressão simbólica para os aspectos
inconscientes.
Dramatizar espontaneamente também possibilita o exercício de personas diversas das
experimentadas no cotidiano a partir dos personagens criados. O exercício de personas permite
que o participante se desiniba, pois está protegido pelo personagem que encarna. Este é um
disfarce, uma proteção que pode possibilitar o surgimento de aspectos da personalidade até
então não revelados. Esta experimentação simbólica de novas personas é o que pode permitir
a abertura da consciência para elementos da sombra, que tiveram a possibilidade de se
aproximar da consciência. (SHELEEN, 1988).
O fato de o trabalho ser realizado em grupo também pode ser considerado uma condição
importante para a exploração de conteúdos inconscientes, pois segundo Whitmont (1974) a
interação grupal facilita a revelação de projeções e desenvolve uma postura de ajuda recíproca
na descoberta de conteúdos inconscientes, o que aumenta os sentimentos de aceitação,
pertencimento ao grupo.
Conclusão
Com os dados obtidos na investigação do ato psico-sociodramático observei que a vivência
dramática pode ser um instrumento facilitador para a expressão e o reconhecimento da sombra
pela consciência. O exercício de personas apoiadas em aspectos da sombra auxiliou no
reconhecimento dos conteúdos sombrios, demonstrando como são dinâmicas as relações
entre persona e sombra no contexto dramático.
Por se tratar de apenas um encontro, a consciência adotou predominantemente uma postura
de abertura e acolhimento em relação aos símbolos compartilhados, procurando com eles
dialogar e deles se diferenciar, sem atitudes de enfrentamento e confrontação com a sombra.
O Self grupal foi facilitador para uma aproximação com a sombra o que promoveu um aumento
da força egóica para olhar o que estava oculto. Por se tratar de um espaço público, há a
presença de diferentes etnias, gêneros e classes sociais, que podem coexistir. As referências
culturais e identidades vinculadas a um determinado grupo, que os participantes trazem aos
atos, são postas em interação e as possíveis projeções decorrentes têm a chance de serem
elaboradas em conjunto por intermédio da ação espontânea. Neste contexto os participantes
podem reconhecer as diferenças e singularidades dos membros do grupo. A aceitação do
diverso, do estranho em si e nos outros ganha espaço para ser vivida, experimentada, ao
invés de ser exclusivamente eliminada. Há a possibilidade de convivência com estes conteúdos
sombrios presentes em si e nos outros, pois o caminho para a subjetividade, imaginação e
para a realização do Self está aberto, dando à consciência mais subsídios para lidar com
aquilo que até então desprezou.
Referências Bibliográficas
FREITAS, L. V. Grupos vivenciais sob uma perspectiva junguiana. Psicologia USP, São Paulo.
v.16 n. 3, p. 45-69, 2005.
HUMBERT, E.G. Jung. São Paulo. Summus, 1985.
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis. Vozes, 2000. (Obras completas
v. IX/1).
38
JUNG et al. The Dialogical Principle. In: Zinkin, L. Dialogue in the Analytic Setting. Jessica Kingsley
publishers. London and Philadelphia, 1988.
NEUMANN, E. A lua e a consciência matriarcal. In: Vitale et al. Pais e mães: seis estudos sobre o
fundamento arquetípico da psicologia da família. São Paulo. Símbolo, 1979.
SHELEEN, L. Théâtre pour devenir... autre. Paris. EPI,1983.
SHELEEN, L. Le Masque: Entre la persona et l’ombre: interview avec Laura Sheleen. Cahiers
Junguiens de Psychanalyse. Paris, n.58, p. 50-63, 1988.
WHITMONT, E. Analysis in a group setting. Quadrant, New York, v. 16, p.5-25, 1974.
WHITMONT, E. Metodi di gruppo e drammatizzazione corporea nella psicologia analítica. Rivista
di psicologia analítica. Roma, v.6, n.1, 1975. Disponível em: <www.rivistapsicologianalitica.it>.
Acesso em 18 out 2008.
WHITMONT, E. O retorno da deusa. São Paulo. Summus,1991.
Instituição
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP
Síntese Curricular
Psicóloga. Mestranda em psicologia pela Universidade de São Paulo. É psicodramatista pelo
Instituto Sedes Sapientiae e pela Federação Brasileira de Psicodrama. Professora universitária
com formação em psicologia analítica e psicodrama. Co-autora do livro: Psicodrama e
Psicologia Analítica: construindo pontes - Ramalho, C (org). Possui experiência clínica em
consultório particular e em atividades com grupos vivenciais na área educacional e
organizacional.
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O Jogo de Areia como Recurso para Escuta, Atenção e Cuidado a Crianças Violentadas,
em Intervenções Psicológicas Breves no Hospital
Simone Corrêa Silva¹
A criança vítima de violência doméstica percorre, no hospital, um caminho atravessado por exames,
perguntas e olhares, os quais podem lhe afligir uma nova experiência de violência, se não houver
um cuidado em relação à maneira com a qual os procedimentos multidisciplinares são realizados
– incluindo-se, aqui, os do psicólogo. No caso destas crianças, a situação de ter sido violentada é
somada a uma experiência de hospitalização, contextualizada por uma quebra de rotina e
mobilização de sentimentos e fantasias diversas.
Proponho-me neste trabalho promover uma reflexão sobre a atitude e os objetivos do psicólogo
no atendimento aos casos de violência doméstica, em contexto hospitalar. Essa proposta está
pautada em reflexões que teço a partir de minha própria experiência como psicóloga numa unidade
pediátrica – u.t.i., enfermaria e pronto socorro – em um hospital geral do município de São Paulo.
Para iniciar a discussão, lanço a seguinte pergunta: qual será a demanda de uma criança que
vivencia uma situação de suspeita de violência acrescentada pela experiência da internação
hospitalar?
Para esboçar uma resposta a isso, penso ser necessário trazer uma definição etimológica das
palavras demanda e clínica. A palavra demanda, do latim demandare, que em sua origem significa
confiança e entrega, nos remete à idéia de procurar, buscar, caminhar para. Clínica, por sua vez,
origina-se de klinein, do grego, traduzindo-se em “inclinar-se ou reclinar-se próprio da prática
daquele que cuidava de quem estava ao leito (klin) dando voz a um sofrer” (Morato, 2008).
Resgatando essas duas definições, lanço outra questão: qual deve ser a atitude do psicólogo no
seu encontro com um outro violentado?
Durante sua estadia no hospital, todo caso de violência é sempre uma suspeita, até que os exames
de corpo de delito provem sua veracidade, a qual nem sempre é sabida antes da alta hospitalar.
No entanto, sendo ou não confirmada, a experiência de ser uma vítima de violência já estaria
estabelecida, uma vez que uma suspeita foi levantada? E será essa comprovação e a investigação
dessa suspeita o que mais importa à vítima? O que tem essa criança a dizer e manifestar, quando
ela pode, de fato, ser ouvida?
Penso que qualquer ato psicológico nesta situação deva estar pautado, a priori, numa atitude de
escuta e atenção para a necessidade que o outro lhe apresenta e lhe solicita, isto é, para sua
demanda. Uma vez que a atitude traduz-se em ações, alicerçado nessa atitude clínica, o psicólogo
terá condições para oferecer um espaço de acolhida ao sofrimento (Morato, 2008), possibilitandolhe cuidado, resgate e criação de sentido(s).
Entendo essa atitude, inclusive, fortemente relacionada ao arquétipo do curador-ferido (Groesbeck,
1983) à medida que o psicólogo deve cuidar ele mesmo daquilo que a ferida do outro lhe suscita
e, (só) assim, poderá lançar-se à disponibilidade de caminhar com esse outro no percurso dessa
vivência de violência, podendo inclinar-se, portanto, para aquilo que houver de mais genuíno no
conteúdo que o paciente carrega nesse percurso no hospital, tal como as palavras de Alberto
Caieiro traduzem (Fernando Pessoa, 2001, p. 84):
(...) / Deste modo ou daquele modo. / Conforme calha ou não calha. / Podendo às
vezes dizer o que penso, / E outras vezes dizendo-o mal e com misturas, / Vou
escrevendo os meus versos sem querer, / (...) / Procuro dizer o que sinto / Sem
pensar em que o sinto. / Procuro encostar as palavras à idéia / E não precisar
dum corredor / Do pensamento para as palavras / Nem sempre consigo sentir o
que sei que devo sentir. / O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a
nado / Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar. / Procuro despir-me
do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
/ E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas
emoções verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um
40
animal humano que a Natureza produziu. / E assim escrevo, querendo sentir a
Natureza, nem sequer como um homem, / Mas como quem sente a Natureza, e
mais nada. / (...).
O objetivo dessa atitude clínica será o de acompanhar o paciente, de forma cuidadosa,
continente e disponível, no clareamento de sua necessidade naquele momento e
circunstância. Isso é válido tanto para a criança quanto para o adulto que o acompanha na
internação hospitalar, geralmente um familiar. E, à medida que essa tentativa de que a
demanda seja esclarecida para e a partir do próprio paciente, pode ser refletido e
ressignificado junto com ele um caminho para o enfrentamento e encaminhamento da
mesma.
O psicólogo pode dispor (ou não) de diversos recursos nessa jornada clínica em setting
hospitalar. Em especial com a criança, penso ser essencial que não se deixe de recorrer
ao lúdico. O brincar, como é sabido, conecta a criança com seu mundo interno, a aproxima
de seu quotidiano por meio de uma linguagem que lhe é própria e, assim, a auxilia no
desenvolvimento de aspectos criativos de sua psique rumo ao seu crescimento pessoal.
Encontro no Jogo de Areia um instrumento em consonância com essa postura de escuta,
cuidado e atenção, em paralelo com o lúdico. Trata-se de um instrumento psicológico nãoverbal e projetivo, com características lúdicas, fundamentado na psicologia analítica e
criado por Dora Kalf, em 1980. Importante ressaltar que, assim como qualquer outro
instrumento que o psicólogo lança mão, o Jogo de Areia está inserido na relação que se
estabelece entre o terapeuta e paciente (Franco, 2004). E, sendo assim, a postura do
terapeuta deve estar pautada em atitudes de respeito, continência e escuta frente ao que
é evocado espontaneamente – consciente e inconscientemente - pelo paciente no Jogo
de areia.
O Jogo de Areia é um instrumento constituído, tradicionalmente, por duas caixas com
fundo azul, cobertas uma com areia seca e outra com areia molhada até sua metade,
dispondo-se de miniaturas diversas do mundo real e fantástico em prateleiras (Franco,
2003). Com intuito de adaptar o instrumento à realidade hospitalar, utilizo uma caixa com
uma medida menor que a padronizada, coberta até a metade apenas por areia seca – a fim de
garantir maior assepsia –, disponho-me de um número restrito, porém diversificado, de miniaturas.
Tais modificações foram realizadas pensando-se em sua utilização no contexto de enfermaria,
onde mostrou-se necessária uma caixa que permitisse mobilidade e facilidade de manuseio (Silva,
2004). O paciente, adulto ou criança, pode utilizar os limites da caixa para criar imagens utilizandose das miniaturas e fazendo movimentos na areia, ou apenas entrando em contato com esta.
Uma história e título podem ser solicitados, abrindo-se espaço para a possibilidade de uma
conversa a respeito (Franco, 2003).
Para o entendimento da maneira que utilizo o Jogo de Areia no hospital, parece-me necessário
mencionar o fato de que, devido especialmente a questões de tempo, não reconheço como
sendo possível um trabalho de psicoterapia no hospital, mesmo que uma psicoterapia breve, tal
como conceituada teoricamente – conceito, este, que não caberá descrever neste trabalho.
Parece-me mais pertinente falar de intervenção psicológica breve (Hegenberg, 2008)².
Na jornada que o paciente vítima de violência percorre no hospital, essa brevidade se mantém;
no hospital onde atuo, a internação para a maioria desses casos pode levar, aproximadamente,
de um a três dias. Sendo assim, utilizo o Jogo de Areia inserindo-o em meu trabalho de intervenções
breves, em sessões que podem ser, muitas vezes, únicas.
Para a utilização do Jogo de Areia em intervenções breves, considero pertinente levantar três
critérios iniciais: 1) levantamento de dados gerais sobre o estado médico e mental do paciente –
²Palestra proferida na I Jornada de Psicologia do Hospital Mun. Carmino Caricchio, 05 set. 2008.
41
o que pode ser feito previamente através de levantamento de dados em prontuário, discussão do
caso com a equipe, entrevista com o acompanhante da criança ou até mesmo atendimento
anterior com a criança sem o Jogo de Areia; 2) não inserção do instrumento em casos de
desorganização mental relevante; 3) utilização com pacientes a partir de 4 anos de idade.
Em muitos casos, a participação do adulto que acompanha a criança durante a hospitalização,
juntamente com esta, se mostra importante na sessão com o Jogo de Areia. Em minha experiência,
essa presença, que geralmente é da mãe, se traduz em compartilhamento, apoio, apontamento
de possibilidades de reorganização da experiência de vitimização e/ou hospitalização, para citar
alguns exemplos.
Devido às características plásticas e clínicas do instrumento, o trabalho com o Jogo de Areia
pode ser uma via de expressão para que o paciente possa manifestar, inclusive, aspectos da
vivência de violência em condições onde se sinta acolhido por um alguém que, sob o nome de
psicólogo, lhe debruce um olhar destituído de julgamentos e pré-conceitos. Um alguém capaz de
suportar acompanhá-lo numa imersão e/ou emersão de conteúdos sobre os quais se possa
buscar esclarecimento, entendimento, organização, re-conhecimento e apropriação. E acredito
ser pertinente apontar, ainda, que essa postura pode se perpetuar na figura de outros profissionais;
sendo assim, o psicólogo pode oferecer aos outros membros da equipe a possibilidade de
compartilhar esse olhar respeitoso, cuidadoso e lúdico para com as crianças atendidas, a fim de
garantir-lhes a sobrevivência da infância.
Penso que o processo durante o qual, dentro de uma relação terapêutica, a criança toca ou
não na areia, escolhe as miniaturas, constrói a cena, cria e conta
uma história e lhe concede um título – tal como sugiro – , pode ser entendido como um ritual que
permite um trabalho de construção e organização de sua própria experiência de vítima de violência.
Essa construção pode ser entendida como uma projeção de aspectos conscientes e inconscientes
numa dimensão concreta que lhe permite visualizar, contextualizar e dar um sentido à dimensão
interna dessa sua vivência, de uma forma lúdica e espontânea. Ressalto que esse mesmo enfoque
pode ser pensado no trabalho também com o adulto que acompanha a criança nessa vivência de
hospitalização enquanto vítima de violência, o qual possui sua própria dimensão sobre tal e também
sua própria demanda.
Seja um trabalho paralelo ou em conjunto com a criança e seu acompanhante, enfatizo,
sobretudo, a importância de que seja dada voz própria à criança para que ela fale a partir de si
mesma, de seu mundo e entendimento pessoal sobre essa sua experiência, sem que seja
novamente violentada, mas, sim, ouvida, respeitada e considerada em sua necessidade própria.
Penso que tal tarefa, no hospital, não necessariamente cabe somente ao psicólogo, porém, reflito
sobre o quanto cabe a nós, psicólogos, inscrevermos clareza e consistência nos princípios e
objetivos que conduzem nossa prática no contexto hospitalar.
Referências Bibliográficas
FRANCO, A. O Jogo de Areia: uma intervenção clínica. 2003. 252 f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2003.
GROESBECK, C. J. A imagem arquetípica do médico ferido. In: Junguiana – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicologia Analítica. n. 01, p. 72-96, 1983.
KALF, D. Sandplay: A psychotherapeutic approach to the psyche. Santa Monica, CA: Sigo Press,
1980.
MORATO, H. T. P. Práticas psicológicas em instituições: ações políticas. In: Simpósio Nacional de
Práticas Psicológicas em Instituição – Atenção psicológica: experiência, intervenção e pesquisa,
7, 2008, São Paulo, Anais. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. CD-Rom.
PESSOA, F. Poesia – Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SILVA, Simone C. et al. A inserção do Jogo de Areia em contexto psicoterapêutico hospitalar em
enfermaria cirúrgica: um estudo exploratório. Psicologia hospitalar, São Paulo, vol.2, n.2, dez.
2004. ISSN 1677-7409. Disponível em: <www.pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php>. Acesso em 19
out. 2008.
42
Instituição
Universidade de São Paulo
Síntese Curricular
Especialista em Psicologia Hospitalar pelo Instituto Central - HC-FMUSP; psicóloga numa unidade
de pediatria de um hospital geral do municipal de São Paulo; mestranda em Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da USP. Contato: [email protected]
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Quando a Violência Dilacera o Corpo
Sandra Regina Rodrigues
Palavras - chave: deficiência física, individuação, psicoterapia
Em minha prática clínica em instituições que atendem pessoas com deficiência física
motora, deparo-me com quadros de seqüelas conseqüentes de comportamentos sociais violentos.
Dentre eles, casos de lesão medular, amputações, traumas crânio-encefálicos e outros adquiridos
por ferimento por arma de fogo ou arma branca, atropelamentos e espancamento. Após receberem
alta do hospital onde foram atendidas, as vítimas desses atos são encaminhadas aos centros de
reabilitação para a realização de tratamentos que possam trazer melhora de sua condição física
e emocional. Nesses centros, os pacientes realizam acompanhamento médico e tratamentos
nas áreas de fisioterapia, psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, além de outros
dependendo do caso.
O tratamento psicoterápico segue uma abordagem de acompanhamento breve, com foco
na queixa trazida pelo paciente e na sua reabilitação física e emocional. Nos casos em que houve
uma seqüela física devido a comportamentos sociais violentos, é necessário que haja um resgate
dos sentimentos mobilizados pelo agressor, para que possa ocorrer uma reflexão mais ampla
sobre o ato vivenciado e uma possível compreensão daquela situação. O olhar racional sobre o
ato violento que ocasionou a deficiência pode não promover uma simbolização pertinente para a
melhora emocional, porém a oportunidade de acionar mecanismos psíquicos que lidem com o
fato de forma mais sentimental e afetiva pode suscitar mudanças na percepção daquele ato.
Através do processo de intervenção psicoterápica de pessoas com deficiência física adquirida,
busco identificar elementos que possam levar à compreensão de como ocorre a assimilação
dessa nova e brutal experiência ao processo criativo de individuação. Nesse contexto, essa
pessoa que chega dilacerada pelo ato que causou a lesão, inicia seu acompanhamento
psicoterápico a fim de assimilar psiquicamente o que ocorreu no seu corpo. No meu trabalho,
seguindo a linha junguiana, procuro auxiliar a pessoa que adquiriu a deficiência a refletir sobre
essa nova vivência, podendo incorporá-la em sua jornada de individuação. Assim, pensar o corpo
deficiente como expressão simbólica pressupõe que os aspectos negativos da limitação física
possam ser elaborados de maneira saudável à existência da pessoa que a possui.
Nos estudos sobre o simbolismo do corpo doente, ocorre uma referência sobre um possível
desvio entre ego e self, o que pode ser verificado em Ramos (1994) “o símbolo aponta uma
disfunção, um desvio que precisa ser corrigido quando a relação entre o ego e o Self se altera”
(p.68). Na deficiência física, esta correção não é possível, considerando a cronificação do quadro
físico permanente, embora possa haver melhora e evolução da condição motora dependendo do
nível de comprometimento e do diagnóstico considerado, não há possibilidade de cura efetiva.
Considerando este fator, é importante que a deficiência possa ser incorporada psiquicamente
como uma forma de estar e ser no mundo, sendo assimilada à jornada previamente iniciada.
A fim de investigar a forma como essa assimilação corre, venho através do meu trabalho, avaliando
alguns eixos que fui percebendo ao longo da minha trajetória de psicoterapeuta junguiana e que
norteiam esse caminho. Os eixos encontrados e pesquisados são:
a)
Verificação das personas e sombras mobilizadas a partir da aquisição da deficiência e
possibilidade de integração destas.
b)
Compreensão da relação simbólica entre corpo deficiente e o mundo (nesse caso, com o
ato de violência que ocasionou a seqüela).
c)
Análise da forma como a deficiência pode ser catalisadora do processo de individuação.
d)
Resgate dos projetos anteriormente traçados, em consonância com a demanda real e
possível do self.
Para exemplificar este trabalho, pretendo na apresentação deste congresso, discutir um estudo
44
de caso de uma pessoa vítima de arma de fogo, que teve como conseqüência uma lesão na
medula cervical, evoluindo para uma tetraplegia. Este paciente foi atendido por mim e por uma
equipe multidisciplinar, com o intuito de melhorar física e emocionalmente do acometimento
sofrido.
Na época do acompanhamento, o paciente tinha 32 anos, era casado, com dois filhos e
trabalhava na área administrativa da policia militar. Numa tentativa de assalto ao seu carro, o
paciente que estava fora de serviço naquele momento reagiu ao assalto, sendo atingido por
um tiro no pescoço. Este lesionou sua medula cervical na altura da quinta vértebra, o que
evoluiu para uma tetraplegia completa.
O acompanhamento psicoterápico a esse paciente teve duração de aproximadamente um ano
e objetivou a assimilação do quadro bastante limitante ao seu contexto de vida. Os elementos
acima mencionados foram trabalhados, para que o paciente pudesse enfrentar a situação de
forma criativa e saudável, porém sem negar suas reais limitações. Entretanto, um dos maiores
desejos que era de voltar à corporação para continuar seu trabalho, não pôde ser realizado, já
que não havia na policia militar projetos que pudessem viabilizar o seu retorno. Nesse aspecto,
seria interessante refletir sobre o verdadeiro significado da palavra - ora tão difundido em
nosso meio - inclusão. Esta se refere à possibilidade de se viver de maneira normal, apesar
das limitações que prejudicam a inserção seja no mercado profissional, seja no meio familiar e/
ou social. A inclusão, hoje deveria ser assumida como um novo paradigma social e
educacional, com o objetivo de resgatar o sentido original do termo integração, defendendo
uma sociedade mais justa e mais democrática, livre das práticas discriminatórias e
segregacionistas que marcaram negativamente a história da humanidade, sendo construída
num outro contexto cultural, político e ideológico, que é o atual (MARQUES e OLIVEIRA, 2003;
p. 5).
Ao mesmo tempo em que avaliamos como um ato violento por parte de um agressor que do
ponto de vista social, é considerado um bandido causa comoção e sentimento de justiça, uma
inversão da situação também é factível de ocorrer. E para ilustrar essa situação, pontuo o
caso de um jovem assaltante, que num tiroteio com a polícia, sofre amputação de uma perna.
Esse fato vem mostrar como a condição de deficiente, e, portanto, de alguém que carrega uma
seqüela no corpo pode igualar o ser humano que chega para o tratamento, independente de
sua persona. A limitação física confina o corpo a padrões rígidos e formas inflexíveis,
assumindo o Self corporal uma predominância sobre o ego, que não pode mais exercer seu
“livre” arbítrio.
O tratamento psicoterápico busca reforçar o ego pra o enfrentamento daquela situação e para
que a deficiência possa ser introjetada criativamente ao seu cotidiano com a integração dos
aspectos sombrios que foram acentuados culturalmente pelo estigma da desigualdade e
assimetria. No que se refere à violência, esses aspectos são ainda mais lancinantes, visto que
o próprio corpo se torna a marca explícita do ocorrido que causou a deficiência e nesse
sentido, as polaridades representadas pelos arquétipos de polícia e bandido, agressor e
agredido devem ser trabalhadas com o objetivo de serem percebidas como faces da mesma
moeda.
Nesse contexto, penso que a prática da psicoterapia funciona como ritual anti-violência, já que
propicia a melhora da saúde mental e conseqüentemente o enfrentamento saudável que a
violência pode suscitar, especialmente no caso da aquisição de uma deficiência.
Quanto à intervenção psicológica propriamente dita, é preciso enfatizar que o seu
objetivo principal é a busca da qualidade de vida e do bem-estar do paciente. Visa, por isso, a
facilitar à compreensão, a elaboração das perdas, dos lutos, a favorecer as modificações na
imagem corporal, e ao fortalecimento da auto-estima, possibilitando a significação de tudo o
que ocorreu (KOVÁCS, 1997; p. 114).
Assim, poder olhar para o paciente que traz angústias, dores, seqüelas, conflitos,
símbolos proporciona um espaço onde personas e sombras possam se expressar, facilitando a
introjeção psíquica dos fenômenos advindos da violência que dilacerou aquele corpo, mas com
o intuito de se preservar a alma.
Referências Bibliográficas
KOVÁCS, M. J. Deficiência física adquirida e qualidade de vida – possibilidades de intervenção
45
psicológica in: Deficiência: alternativas de intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997
(p.95 – 128).
MARQUES, L. P. U. e OLIVEIRA, F. D. A Diversidade através da História:
a Inserção no Trabalho de Pessoas com Deficiência. Inclusão: os sentidos nas/das
dissertações e teses. Educação Especial Pp. 1-59. V.14 - n.41 - Abril/Junho – 2007.
RAMOS, D. G. A Psique do Corpo: A dimensão simbólica da doença. São Paulo: Summus,
1994.
Instituição
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP.
Síntese Curricular
Psicóloga, mestranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano no IPUSP
46
A Maldição de Eva
Noely Montes Moraes
A cultura patriarcal favorece a violência contra os valores femininos e contra sua portadora
privilegiada: a mulher; há vários níveis de violência: agressão física, abusos, violência sexual,
violência psicológica; o agente dessas agressões é o homem, com mais freqüência e outras
pessoas do ambiente, no caso da violência psicológica; em todos os casos, a agressão vem de
fora e a mulher é a vítima;
Vamos tratar nesta apresentação, de outro tipo de violência, a intrapsiquica, aquela violência que
vem do mundo interno da própria mulher; neste tipo a mulher é agente e vítima ao mesmo tempo;
Este tipo de violência é muito mais difícil de ser identificado e desmascarado, pois a mulher não
identifica que o inimigo está em seu interior; ela, na verdade, não distingue esse aspecto terrível
como não sendo ela mesma;
A fonte de violência interna feminina é um padrão presente em todas as mulheres; as filhas de
Eva receberam essa herança da Mãe primordial que, ao ser expulsa do Paraíso, ouviu a sentença
por sua desobediência: “parirás em dor; ansiarás pelo teu homem e ele te dominará”;
Vamos observar esse fator, aproximando nosso foco a partir de 3 perspectivas: o medo arquetípico
do Feminino; a consciência solar e o predador natural da psique, apresentando seu fundamento
arquetípico, a maneira como se manifesta na vida das mulheres a as conseqüências que acarreta;
1-Fundamento Arquetípico
Identificado como padrão inconsciente associado à inércia a à passividade, o Feminino é temido
como se fosse um monstro devorador ( o dragão a ser vencido pelo herói) que impediria a expansão
da consciência e o desenvolvimento do ego e da cultura.
O ego e a consciência sempre foram considerados como tipicamente masculinos, ao menos na
cultura patriarcal. Portanto, seu desenvolvimento se faz através da invasão dos valores masculinos,
em detrimento dos femininos.
Este padrão de desenvolvimento tem paralelo simbólico na constelação do herói; para a mulher,
representa uma primeira violência psíquica, que a aliena do Self, forçando-a a desenvolver o lado
masculino, sem o que não seria possível a realização cultural.
O super desenvolvimento do aspecto masculino, no seu antagonismo radical ao Feminino,
apresenta-se como um predador natural da psique feminina: “antagonista debochado e assassino
que nasce dentro de nós e, mesmo com a criação parental mais cuidadosa” (Estés,1995) tenta
destruir qualquer ato criativo/afirmativo da mulher.
Para assegurar seu pleno domínio sobre a psique feminina, esta consciência de qualidade solar
se alia ao ideal de ego e se apresenta de maneira tão atraente e sedutora (como um deus) que
desperta na mulher uma paixão que a torna passiva e cega, vítima fácil de um abusador agressivo
e violento. Iludida com promessas de dedicação e fidelidade (Barba Azul), o Animus negativo
aprisiona a mulher na ignorância, aprisionando também seus sonhos, planos e desejos.
2-Manifestações
É esclarecedor notar que o aspecto masculino destrutivo é frequentemente representado por
figuras sobre-humanas; este aspecto realmente “enfeitiça” a mulher, fazendo com que ela se
aproprie dos pensamentos destrutivos que esse núcleo produz como se fossem dela. Em sonhos,
costuma aparecer como ladrão e abusador.
Tais pensamentos se constituem de generalizações, verdades absolutas, lógica distorcida, excesso
de exigências, expectativas de perfeição. Quando esta destrutividade se volta para o exterior, a
mulher se torna uma pessoa excessivamente crítica e agressiva com os outros; se voltada para
dentro de si, ela se sente constantemente desqualificada.
Uma manifestação bastante peculiar da consciência solar, em sua face destrutiva, é a exigência
de perfeição, tomando como parâmetro de comparação, os ideais femininos ditados pelos valores
vigentes e apresentados pela mídia. Tais exigências coletivas encontram acolhida na psique
feminina exatamente por conta desta estrutura psíquica pronta a usar essas mesmas expectativas
para atacar com violência as realizações do ego feminino, confrontando-o com falhas, erros e
fracassos.
47
3-Conseqüências
Vítima do ataque do masculino interno, a mulher se vê como incapaz, sem valor, indigna de amor
e felicidade, convencida de que as outras pessoas são muito melhores do que ela e que sempre
se saem melhor em todas as áreas da vida. Nem é preciso dizer quantos sentimentos negativos
são provocados por esta dinâmica que permeia as relações femininas: inveja, ciúmes,
competição,etc.
Outra conseqüência para a mulher é perder a confiança em si e na vida, o que pode levar a
quadros patológicos de depressão, síndrome do pânico, controle excessivo sobre a própria vida
e a dos outros, etc.
O alto preço a pagar pela adesão exclusiva da mulher ao modelo masculino é a perda do vínculo
com os aspectos básicos femininos, representados pelo arquétipo da Grande Mãe. Tais aspectos
permitem um relacionamento saudável com o próprio corpo, com a maternidade e com a
capacidade de entrega sexual. A alienação da mulher de seus fundamentos femininos, exigida
pelo seu tirano interno, traz desequilíbrios hormonais, distúrbios alimentares, compulsões, frigidez
e esterilidade, dentre outros quadros psicossomáticos.
Como a voz interna acusadora, ameaçadora e exigente, mas também sedutora e apaixonante, é
percebida como masculina, é dos homens externos, preferencialmente, que a mulher espera
confirmação de seu valor ( como bem sabem e exploram as revistas “femininas”).
A maldição de Eva é uma forma simbólica de amplificação dessa dinâmica: a filha de Eva ansiará
pela aprovação insinuada no olhar de desejo masculino, porque nele enxerga seu tirano interno (
verdadeiro objeto de sua paixão) e o homem, representante da ordem patriarcal, a dominará, pois
ela não ousará desafiar seu opressor por medo de uma ilusória punição: sua desqualificação
radical como pessoa.
Assim enfeitiçadas, não é de admirar que muitas mulheres escolham inconscientemente parceiros
externos com quem reproduzem as cenas internas de violência. A julgar pela resistência que
demonstram a abandonar esses parceiros violentos e abusadores (como atesta a casuística
clinica), podemos calcular que o parceiro interno seja ainda mais violento, sempre a lhe dizer:
“você não merece coisa melhor”, “vai ficar sozinha para sempre”, “uma mulher nada vale sem um
homem a seu lado”, “as outras mulheres vão dizer que você não tem competência para manter
um homem”, e o corolário: “ruim com ele, pior sem ele”.
Conclusão
A predominância do Masculino e o terrificante medo do Feminino geraram uma perseguição às
bruxas e uma polarização tão extrema que a própria vida no planeta foi colocada em perigo.
Como tão bem resumiram Woolger e Woolger (2002):
“As culturas da civilização ocidental são como os filhos de uma família abalada por um terrível
divórcio: vivem apenas com o pai e não podem nem mencionar o nome da mãe” (p. 16).
Felizmente, o aspecto masculino interno da mulher também contém um lado positivo, representado
pelo poder de discriminação, pela capacidade de auto-afirmação, pela habilidade de perceber e
julgar com distanciamento e imparcialidade, pelo raciocínio objetivo, claro e lógico. O ego encontra
um aliado e, juntos, são capazes de enfrentar e deter os aspectos destrutivos e violentos.
Para isto, a mulher deve identificar a origem dos pensamentos negativos que parecem seus e
isolá-la de seu ego. Também deve recolher as projeções colocadas nos homens com quem se
relaciona, anulando os super poderes neles ilusoriamente percebidos.
Por fim, ancorada firmemente em seu centro feminino, a mulher pode interagir com o Masculino,
agora aprimorado pela assimilação dos aspectos positivos, promovendo a integração do Animus
à sua consciência feminina.
Este movimento de integração, meta da individuação feminina, é simbolicamente retratado como
Hierosgamos= o casamento sagrado, a união alquímica da matéria com o espírito, essencial para
a integridade física e psicológica da mulher e para a promoção dos valores necessários à
preservação da vida no nosso planeta.
Referências Bibliográficas:
Estes, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1995.
48
Jung,C.G.(org). O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro:Ed. Nova Fronteira, 1964
Monteiro, C. F. S., Souza, I. E. O. Vivência da violência conjugal: fatos do cotidiano. Texto Contexto
Enferm, Florianópolis, 2007 Jan-Mar; 16(1): 26-31.
Neumann, Erich, O medo do feminino e outros ensaios sobre a psicologia feminina, São Paulo:
Paulus, 2000.
Ramão,S.R.et al. Nos Caminhos de Iansã – Cartografando a subjetividade de mulheres em
situação de violência de gênero. Revista Psicologia e Sociedade 17(2), p.79-87, mai/ago 2005.
Safiotti,H. Gênero e Patriarcado. PUC/SP, 1999, texto não publicado
Sandford, John A. Os parceiros invisíveis. São Paulo: Ed. Paulus, 1986.
Schraiber L.B. et al. Prevalência da violência contra a mulher por parceiro intimo em regiões do
Brasil. Rev. Saúde Pública 41(5):797-807, 2007.
Silva, L.L. et. al. Violência silenciosa: violência psicológica como condição da violência física
doméstica. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.11, n.21, p.93-103, jan/abr 2007.
Stein,M. Consciência Solar e Consciência Lunar. São Paulo: Ed. Paulus,1998.
Von Franz,M.L. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Ed. Cultrix,1992.
Von Franz,M.L. O Feminino nos Contos de Fadas. Petrópolis: Ed. Vozes,1995.
Woolger,J.e Woolger,R. A Deusa Interior. São Paulo: Ed. Cultrix, 2002
Instituição
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP
Sintese Curricular
Psicóloga; Mestre em Psicologia (Psicologia Clínica), pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo; Doutora em Psicologia Clínica - (Conceito CAPES 4), pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Titular em Relações de Gênero da faculdade de Psicologia da PUC/SP;
Docente, supervisora e orientadora de pesquisa; coordenadora do aprimoramento Abordagem
Junguiana das Questões Amorosas da clinica psicológica da PUC-SP; Autora do livro Fica comigo
para o café da manhã e organizadora e co-autora do livro É possivel amar duas pessoas ao
mesmo tempo.
49
Violação de Direitos Humanos de Pessoas com Sofrimento Psíquico: Relato de Experiência
da Comissão Municipal de Direitos Humanos de São Paulo
Marieta Judith Geocze
Introdução
A Comissão Municipal de Direitos Humanos (CMDH) de São Paulo é um órgão da Secretaria de
Governo Municipal, criada em 2002 pela lei municipal nº. 13.292, objetiva proteger, defender e
promover os direitos humanos no município. Uma das frentes de atuação da CMDH é seu Balcão
de Atendimento, composto pelos Núcleos Psicossocial e Jurídico, realiza atendimento ao público
em horário comercial: pessoalmente, por telefone, e-mail ou carta.
Atende em média 630 casos por ano, dos quais a metade é avaliada como atendimentos pontuais
de pedidos de informações, de acesso a direitos e de orientação jurídica.
A maior porcentagem de casos avaliados como de violação de direitos são ligados a arbitrariedades
e violência de servidores da área da segurança pública contra moradores de rua, de albergues,
ambulantes, moradores de ocupações, além da população prisional.
Quanto à violação de direitos econômicos e sociais, recebe queixas de falta de acesso à saúde,
falta de vagas em escolas e creches, falta de vagas e critérios pouco claros de seleção para
albergues, bem como, arbitrariedades e violências em desocupações (moradia). Recebe ainda
queixas de discriminação e de dificuldade de acesso a serviços de populações vulneráveis, na
qual se incluem pessoas diagnosticadas como portadoras de transtornos mentais.Observou-se
que essas questões de preconceito a pessoas em sofrimento psiquico são atravessadas por
outras discriminações: de etnia, gênero, geracional ,diversidade sexual,deficiências ,levando até
a situações de ocorrência de “bullying” na comunidade,escola e em outros locais ( “pixações” na
porta em condomínios ,trotes por telefone,ameaças,até apedrejamento)
A CMDH atende em média de 15 a 20 pessoas em sofrimento mental por ano, cujas demandas
implicam no acesso aos direitos - e à cidadania - em diferentes esferas do poder publico.
Objetivo
Nossa proposta é de problematizar as respostas comuns do poder publico frente às demandas
individuais de três pessoas em sofrimento mental, com histórico pregresso de internação e/ou
tratamento psiquiátrico prolongado, atendidas por esta Comissão.
Métodos
Trata-se de um relato de experiências de atendimento.
Observamos múltiplas demandas e múltiplas queixas de violações a pessoas em sofrimento
mental, que se apresentam muitas vezes como uma queixa pontual, no primeiro atendimento,
mas que se desdobram em várias situações de violações, tais como:
- tortura: definida (lei 9.455/97) como constrangimento com emprego de violência ou grave ameaça,
causando sofrimento físico ou mental, com agravante se o autor for agente público mandante ou
poderia evitá-lo;
- discriminação: restrição ou impedimentos ao exercício de liberdades fundamentais, bem como
a cargos públicos ou privados, situações de exclusão; - no caso de mulheres: a violência doméstica,
em presídios e no tráfico;
- no caso de crianças e adolescentes: dificuldade de acesso à educação, à saúde, à vida
comunitária, torturas em unidades de recuperação de adolescentes em conflito com a lei, ameaças
à vida por envolvimento com o tráfico
O primeiro atendimento, geralmente realizado pelo núcleo Psicossocial e depois em conjunto
com o núcleo Jurídico, é o da explicitação da queixa e avaliação dos possíveis impactos dessa
situação na vida do munícipe; com vistas à busca de um possível foco da demanda.
O núcleo jurídico, em conjunto com o munícipe, propicia o resgate e a organização da história no
tempo e no espaço. A partir de então se explicita juridicamente a queixa, com orientação ao
munícipe sobre direitos, acesso ao Poder Judiciário, alternativas e possíveis obstáculos. Neste
sentido, por exemplo, esclarece-se ao cidadão que no Sistema Judiciário, a simples denúncia de
um fato não é prova de crime, estabelece-se então a diferença entre prova e denúncia. São
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dadas orientações verbalmente e/ou por escrito, se assim for mais claro para a pessoa que está
sendo atendida, de como apresentar sua(s) demanda(s) ao órgão competente. Exemplificando:
como registrar um BO(boletim de ocorrência), qual a atribuição da polícia, quais são questões de
natureza civil e penal. É salientado também que para se fazer uma denúncia deve-se ter o máximo
de dados sobre os fatos, como: dia, horário, local do ocorrido, quem praticou, possíveis
testemunhas e outras provas.
Essa prática foi construída pensando-se em utilizar o espaço do atendimento para além de
conscientizar o munícipe sobre seus direitos, atenuar o sofrimento de repetidas frustrações e
“revitimizações” que decorre da falta de entendimento sobre a “lógica” de inclusão/exclusão nos
serviços acionados. Outra função importante do atendimento é instrumentalizar o munícipe, em
caso de repetição do evento violador, para que se atenha aos detalhes que permitem apresentar
queixa mais consistente.
O trabalho com o foco da queixa e as expectativas do denunciante, buscando-se os possíveis
encaminhamentos da demanda, muitas vezes dispensa a interferência direta da equipe na
formulação da denúncia, incentivando a pro atividade do cidadão. No entanto, o acompanhamento
do caso geralmente se faz necessário, especialmente quando são consideradas algumas situações
de risco ao denunciante, por conta de possíveis desdobramentos do caso.
Resultados
Em geral, os resultados não são a solução imediata e inicialmente pretendidos pelo munícipe. O
que se tem após a organização de demandas, encaminhamento de denúncias aos órgãos
competentes é a reflexão sobre as conseqüências deste direcionamento de ações, trabalhando
com o munícipe suas expectativas e as diversas conclusões às quais os órgãos acionados podem
chegar.
Assim, quando um cidadão queixa-se de ter sido agredido,por exemplo, por uma Guarda Civil
Metropolitano e a sua expectativa é que a “Lei de Talião” se cumprisse e o Guarda fosse igualmente
agredido, o papel do atendimento na CMDH é explicar que o registro de um Boletim de Ocorrência
pode gerar um Inquérito Policial ou ser arquivado por falta de indícios suficientes de crime, a
denúncia apresentada à Corregedoria da Guarda Civil Metropolitana depois de apurada pode
gerar advertência, suspensão ou exoneração ao Guarda ou ser arquivado por falta de provas.
Uma pessoa com sofrimento psíquico que denuncia uma violação de direitos suscita para a
equipe uma série de questões: quanto à própria congruência da fala, como os riscos de morte ou
agravos ao denunciante, a credibilidade de sua denúncia, os impactos que o ato de denunciar
provocaria em sua vida. Tais pontos devem ser discutidos com o denunciante, que possivelmente
não conseguiu apresentar sua queixa e por esse motivo procurou uma Comissão de Direitos
Humanos. Ou se o fez em alguma outra instituição, provavelmente, não foi atendido em sua
necessidade, buscando a Comissão. Cabe ressaltar o esforço feito pelo munícipe para dar sentido
à sua busca por um espaço onde possa exercer sua cidadania.
Observamos que ocorrem algumas respostas similares do poder público frente às demandas
de pessoas em sofrimento mental, exemplificadas em três casos.
Caso 1
Mulher de meia idade, não quis fornecer dados pessoais. Relata um estupro, em data e local
indeterminados. Não fica claro se registrou Boletim de Ocorrência, mas se queixa que a polícia
nada fez. Dias antes do ocorrido foi assaltada ao sair de uma loja e os ladrões (não identificados)
levaram um valor alto em dinheiro.
Por ocasião de uma hospitalização, uma emissora de TV apropriou-se de seus escritos sobre
sua vivência e expôs sua história em uma novela, provocando danos morais e emocionais. Ao
procurar o órgão competente para processar a emissora, foi “acusada de insana” e não foi atendida.
Também não foi levada a sério por outros órgãos.
Solicitada a escrever um breve relato de sua queixa, que repetia a cada atendimento, não
conseguiu formulá-la por escrito.
Sua expectativa era de que a CMDH processasse a emissora de TV ou que a Defensoria o
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fizesse, por intermediação da CMDH.
A equipe ouviu diversas vezes sua história e nossas ponderações sobre direitos, denúncia e
provas foram entendidas como interferências indevidas. Quanto a sua possível “insanidade”, a
qualificação foi entendida como desvio do foco de sua denúncia, da justiça para a saúde, uma
tentativa de “psiquiatrização” de seu caso. No entanto, o processo de relatar minuciosamente o
caso se repetiu em diversas ocasiões, geralmente com a sensação de que faltava um lugar de
compartilhamento de idéias e sentimentos entre ela e a equipe que possibilitasse algum consenso
ou ação conjunta.
Ao final, todos frustrados, comunicamos que não conseguíamos ajudá-la, situação que ensejou
tentativas de sensibilização, despedidas e novos retornos, dessa vez com queixas sobre
perseguições de emissoras de TV em seu local de trabalho e possíveis riscos de morte aos seus
filhos.
Conclusão: Baseados em um texto de Hillman (1987), em que se refere à necessidade de se
desconstruir a idéia de que a análise seria o sinônimo de crescimento e de se incorporar à noção
da falência intrínseca de nossa própria vida e de nossa cultura, avaliamos que a equipe, ao reagir
com negação a essa dinâmica de morte (“falência intrínseca” da vida), não pôde acolher
devidamente o conteúdo da queixa de estupro: a violência, a decadência e um histórico de perdas
e espoliações.
Caso 2
Rapaz de aproximadamente 30 anos, abandonado pela família desde a maioridade, foi internado
diversas vezes desde os 12 anos em hospitais psiquiátricos com diagnóstico de transtorno de
personalidade. Atendido em 2006, alegou que sofreu agressão de vigias de um hospital público,
devido a desentendimentos durante uma consulta médica. Já tinha lavrado Boletim de Ocorrência,
acionado o Ministério Público, procurado a Secretaria Estadual de Justiça e Defesa da Cidadania
e a Comissão de Direitos Humanos da OAB. Nessa ocasião nossa atuação foi a de acolher suas
queixas, ouvi-lo. Retornou uma vez no ano seguinte muito agitado, gritando, porque foi convidado
a se retirar de um órgão público. Nessa ocasião, dada sua entrada intempestiva (que possivelmente
em outro órgão ensejaria sua retirada do local), foi ouvido na própria sala de espera, acalmou-se
e foi embora.
Em 2008, o munícipe compareceu com uma série de demandas, apresentadas de forma bem
mais articulada.
Na área da saúde sua queixa era de demora na marcação de exames e consultas com especialistas
já agendadas para as próximas semanas. Avaliamos que não era caso de violação, já que as
consultas estavam agendadas e não se configurava uma situação de emergência. O munícipe
estava sendo atendido em vários hospitais e postos de saúde, tinha acesso aos medicamentos
de que necessitava e se houvesse outros, não disponíveis na rede pública, poderíamos fornecêlos em caráter de emergência, o que não foi o caso.
Trouxe ainda vários processos em andamento que foram avaliados e constatou-se que não houve
violação. Queixou-se então de desentendimentos com os estagiários do órgão, razão pela qual
só seria atendido com acompanhante e ainda havia uma solicitação de realizar uma avaliação
psicológica, que já estava agendada. Já tinha efetuado queixa na Ouvidoria do órgão, e queria
nossa intermediação para fazer o teste Rorschach, com outro profissional,que não o agendado,
por motivos que não conseguimos entender, pois suas alegações mudavam.
Sua expectativa era de que validássemos suas queixas, garantindo o atendimento nos órgãos
solicitados. Como isso não foi possível - um órgão determinar sobre o cabimento de um processo
a ser defendido por outro órgão - e nossas tentativas de intermediação não obtiveram o resultado
esperado, não aceitou a devolutiva e declarou-se decepcionado com a CMDH.
Sem propormos a anuência a condutas agressivas, os comportamentos, mesmo os inadequados,
de busca por direitos, podem expressar o desejo por inclusão na sociedade e não necessariamente
oposição ou tentativa de manipulação de uma instância de poder por outra.
Comparando-se as primeiras aparições dessa pessoa em sofrimento mental na CMDH com as
últimas, observamos melhoras no autocontrole, na articulação da queixa, na tentativa de
demonstrar que entendeu nossas colocações, mesmo sem concordar com elas, denotando com
isso um possível movimento no sentido de vincular-se, porém com muita dificuldade para perceber-
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se na relação.
Maria Cristina Vicentim (2008), referindo-se a adolescentes autores de atos infracionais, coloca
que a postulação do sujeito como portador de “transtorno de personalidade”,”quase incurável”,
dificulta que ele se reconheça com suas determinações psíquicas e sócio-históricas e impede
que faça laço social que supere as circunstâncias em que está colocado.
Caso 3
Homem na faixa dos 40 anos, várias vezes internado em hospitais psiquiátricos desde os 15
anos por abuso de drogas e diagnóstico de transtorno bipolar, demanda processar os pais adotivos
por maus tratos, pois sua adoção teria por finalidade a tortura, por ser de etnia diferente. Como
não explicitou que torturas seriam essas e mostrava muita angústia, referindo-se ainda ao fato de
se encontrar sem medicação psiquiátrica, pois não confiava no posto de saúde em que se tratava,
dada a interferência de seus pais, foi encaminhado ao psiquiatra de uma entidade parceira (ACAT),
que atua com questões de tortura, para avaliação. Lá foi acolhido, medicado e acompanhado.
Retornou diversas vezes à CMDH queixando-se de desentendimentos com os pais, que o
ameaçavam de internação, pois vendia os pertences da família para usar drogas, justificando o
fato por prejuízos que teria sofrido dos pais, que também teriam vendido seus pertences no
passado. Foi internado no final de 2007 e no inicio de 2008, dessa vez com uma fratura, resultado
de uma briga com o pai.
Desinternado há pouco tempo, resta decidir se processa civelmente o pai pela agressão e como
isso se encaixa na sua situação de dependência emocional e material dos pais. O caso foi
encaminhado para a Defensoria, para futura avaliação da possibilidade de se trabalhar com foco
na Justiça Restaurativa. Nessa última internação observamos um princípio de movimento de
reparação na família. O munícipe diz temer que sua abertura para amar os pais e a atual situação
de apaziguamento na família seja um engodo, seguido de novas internações e violações.
Comentário: Há uma situação de desconfiança que permeia tanto o atendimento como a história
deste munícipe. Provocada por detalhes de sua história, de maus tratos e abandono ,busca
compensatóriamente alguma “superioridade” étnica, já que se sente absolutamente desprovido.
Isto também se confirmaria no conflito: abertura para amar os pais x engodo x processar civelmente
o pai.
Discussão
Podemos observar algumas características comuns nos três casos:
1)Repetidos retornos à CMDH para orientações e acompanhamentos.
Questionamos se a CMDH supre ou não uma demanda emocional de escuta e acolhida sem
horários predeterminados. Nossa expectativa é que seja um lugar de ações em prol da garantia
de direitos. Por outro lado, sabemos que o mecanismo da repetição é comum nesses casos e
aqui assume um duplo sentido. Se se trata de pensar que “a liberdade é terapêutica”, cada ato
em liberdade pode ser terapêutico. Se se trata de desinstituir a doença como experiência que
não é separável da existência, trata-se de valorizar, mais que o sintoma (sobre o qual se constrói
a instituição), o conjunto de recursos positivos do serviço e da demanda (Rotelli, F. et al, 1986).
2) Essas três pessoas em sofrimento mental relatam múltiplas e recorrentes situações de violação
de direitos, como internações forçadas, interações frustrantes com servidores públicos por falta
de acolhida de suas queixas, criminalização de singularidades, resultando em conflitos com agentes
públicos de segurança, e, na busca pela justiça, esbarram com a falta de crédito de suas falas e
não entendimento de suas queixas e, reciprocamente, não conhecem ou não compreendem a
lógica de inclusão/exclusão dos serviços, inclusive públicos.
3) Constatam-se lacunas existenciais na vida dessas pessoas: lacunas financeiras, de educação,
de saúde, de dignidade, de integração comunitária, falta de construção de laços sociais, falta de
proteção de direitos individuais e coletivos.
4) Repetição de circularidade no atendimento às suas demandas nos diferentes órgãos, quando
buscam proteção de seus diretos (círculos viciosos, portas giratórias, encaminhamentos de um
órgão para outro), ações que os conduzem ao ponto de partida: a porta de entrada ou a Saúde.
Seus problemas sociais, financeiros, de segurança são “psicologizados”, atribuídos a fatores
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internos. As redes de atendimento se especializaram segundo a lógica de “um serviço para cada
problema” (Castel et al, 1979). Isto é, cada problema vem selecionado e assumido com base no
critério da coerência e pertinência aos códigos de prestação do serviço seja ele: atendimento
médico, auxílio social, escuta terapêutica. Os serviços funcionam segundo uma lógica de empresa:
selecionam os problemas com base na própria competência e quanto ao restante podem dizer
“não é um problema nosso” (Rotelli, F. 1986).
Avaliando institucionalmente, percebemos que não conseguimos dar visibilidade às demandas
de pessoas com sofrimento psíquico, nem formatar uma política pública que as organize. Nossas
tentativas em prol da facilitação do exercício da cidadania das pessoas com sofrimento psíquico
ainda encontra-se em construção.
Bernardo Sorj (2004) considera a cidadania como um mecanismo de inclusão/exclusão, uma
forma de delimitação de quem é parte integrante de uma comunidade nacional. Portanto, a
cidadania é a expressão de uma construção coletiva que organiza as relações entre os sujeitos
sociais, que se formam no próprio processo de definição de quem é e quem não é, membro
pleno de uma determinada sociedade politicamente organizada. Ao lado da família, a cidadania é
o ponto de filiação inicial do homem/mulher moderno, define as coordenadas básicas de sua
identidade, sua “origem” e seu
lugar no mundo. A cidadania é, portanto, um conceito escorregadio, pois é o ponto de encontro
do individuo e da comunidade, o mecanismo que permite ao indivíduo ao mesmo tempo reivindicar
sua condição singular, sua liberdade pessoal,e afirmar seu pertencimento a um grupo. Nas
sociedades democráticas, a esfera publica é o espaço político em que se dá a passagem da
vontade individual á vontade coletiva, o lugar onde os indivíduos negociam seus interesses
pessoais e suas representações do bem comum.
Constata-se que a participação social de pessoas com sofrimento psíquico é obstaculizada e
nossas ações ora são entendidas como assistencialistas, ora de intermediação (ou
atravessamento) entre o cidadão e o poder público, ora como desencorajamento de movimentos
pro ativos em prol da garantia de direitos, ora de encorajamento de demandas descabidas.
Por outro lado, a CMDH, no acompanhamento de pessoas em sofrimento mental, na perspectiva
da cidadania, obteve valiosas contribuições para o seu enriquecimento enquanto equipe, que se
viu mobilizada de diversas maneiras, dada a complexidade das demandas e questões abordadas.
Algumas situações de protagonismo dos envolvidos obtiveram relativo sucesso e nos apontam
possibilidades.
Houve ainda ocasiões para observar o outro lado: como pessoas, consideradas normais, que
tiveram seus direitos violados, adoeceram física e psiquicamente pelo impacto dessas violações
em suas vidas, resultando em perdas pessoais, materiais, sociais e outras, pela desarticulação
de uma existência que foi construída.
E ainda um outro vislumbre,a ser melhor percebido:como violações praticadas por servidores
públicos ,especialmente violências,refletem o ambiente interno do serviço em que se encontram
(assédios,desrespeito,arbitrariedades, desconexão entre a ação e discurso) e sobre sua saúde
mental.
Considerações finais
Ao se buscar um foco para as queixas de uma pessoa em sofrimento mental (ou não), podemos
esbarrar na questão da formulação e de como será entendida, para que se enquadre nas
especificidades do serviço ou órgão competente e atenda aos interesses do denunciante.
Essa formulação, que visa potencializar as chances de atendimento da demanda do municipe,
pode tanto se configurar como uma ferramenta para o sujeito se fazer ouvir, como se configurar
em normatização de ações da queixa ou do queixoso, de modo a evitar que o sofrimento psíquico
apareça.
Segundo Erwing Goffman (1988), o estigma seria uma situação do indivíduo inabilitado para a
aceitação social plena e a sociedade propicia uma “aceitação fantasma” ao indivíduo estigmatizado,
ao encorajar comportamentos de não apresentação da dor do estigma, e assim, os normais não
terão que admitir quão limitada é sua tolerância. Desta forma, os normais podem continuar não
contaminados pelo contato íntimo com o estigmatizado, não ameaçados em suas crenças,
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referentes à identidade. O indivíduo estigmatizado acrescenta (ao seu problema) ser empurrado
em diferentes direções, por profissionais que lhe dizem o que deveria fazer e pensar sobre o que
ele é e não é, e, tudo isso, pretensamente, em seu próprio beneficio.
A preocupação em não revitimizar usuários da CMDH com mensagens ambivalentes, de um lado
um discurso promotor de acesso à cidadania, do outro lado, possíveis ações em prol da
normatização da fala de pessoas em sofrimento mental, com a finalidade de facilitar o acesso aos
serviços demandados, é uma preocupação que coloca a equipe numa equação de difícil resolução
e em um lugar de incertezas e angústias, nem sempre compreendida por todos os integrantes.
Referências Bibliográficas
Goffman, Erwing. Estigma - notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de
Janeiro:Livros Técnicos e Científicos,1988. p.132-6.
Hillman, James. O direito de permanecer em silencia. In: Discurso inaugural no Simpósio sobre
Artes Criativas e Direitos Humanos em Aconselhamento. Nova Orleans: AACD, 1987. p. 1-10.
Disponível em: http://www.rubedo.psc.br/artigosb/dirsilen.htm (Acesso em: 05/04/2008).
Sorj, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social.
Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.22-24.
Vicentim, Maria Cristina Gonçalves. Rotular e Excluir. Jornal de Psicologia 2008; 155: 11. março/
abril.
Rotelli, Franco et al. Desinstitucionalização, uma outra via. EDUSP, 1986.
Instituição:
Síntese Curricular
Marieta Judith Geocz - Psicóloga clínica; Terapeuta Ocupacional; Trabalha há 4 anos como
psicóloga da Comissão Municipal dos Direitos Humanos.
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Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (VDCA): QUE TEMA É ESTE?[1}
Dra. Maria Amélia Azevedo [2}
SUMÁRIO
Parte A – Pré pesquisa
Parte B – A VDCA como tema de pesquisa
Parte C – Que tema é este na cultura científica?
Parte D – Que tema é este na cultura de massa?
Parte E – Em suma que tema é este?
Parte F – Uma pergunta para Junguianos e Joycianos: um tema de pesquisa?
Parte A – Pré pesquisa
Instruções
A fim de saber um pouco mais sobre a VDCA como tema de pesquisa solicito-lhe responder às
questões a seguir. Sua participação é totalmente voluntária e deve ser anônima.
Obrigada por colaborar.
Questão 1 - Leia atentamente as três notícias reproduzidas em seguida e para cada uma assinale
a alternativa que melhor responder à pergunta respectiva
Notícia a) Castelos do terror - A cidade que nunca dorme pode ter motivos para não dormir
mesmo: está repleta de casas e prédios que, garantem seus vizinhos, são habitados por seres
do além-túmulo
Por Bruna Fioreti
Herança do medo no Martinelli
Dos mistérios que rondam São Paulo, poucos são tão conhecidos como os do primeiro arranhacéu paulistano. Aparentemente, o tradicional Edifício Martinelli, tão grande que tem três endereços
no centro, é apenas uma construção histórica restaurada. Mas o ditado já diz que as aparências
enganam.
Construído nos anos 20 pelo imigrante italiano Giuseppe Martinelli, o prédio abrigaria em seus
andares manifestações bastante estranhas. Ainda hoje, eventos sinistros são relatados por gente
que trabalha por ali, ou simplesmente passa pelo condomínio.
Verdade seja dita: ninguém gosta de falar no assunto.
As pessoas se esquivam, não querem alimentar a ‘lenda’.
Como todo lugar conhecido por ser visitado por entidades mortas, o passado o condena. Apesar
de ter vivido momentos áureos durante décadas após sua inauguração, em 1929, o lugar foi
cenário de assassinatos, abortos e histórias que mancharam sua imagem nas décadas de 60 e
70.
Naquele período, o Martinelli virou um cortiço, onde crianças conviviam com ladrões e prostitutas.
O lixo não era recolhido, tampouco havia elevador em funcionamento. Ganhou repercussão o
crime - até hoje sem solução - em que um menino foi violentado, estrangulado e jogado no poço
do elevador. Em 1979, o prédio foi re-inaugurado, já com a restauração concluída. Na prática, os
moradores do cortiço se foram. Mas a fama ficou.
Fonte: www.jt.com.br/editorias/2008/09/25/var-1.94.12.20080925.6.1.xml
[1] Temática desenvolvido durante 3º Congresso Brasileiro de Psicoterapia Junguiana –
Fenômeno da Violência e Saúde Mental. São Paulo, 05 a 08/11/2008.
[2] Professora Livre Docente e Titular pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP);
Coordenadora do Laboratório de Estudos da Criança (LACRI/IPUSP);
Diretora da RECRIA/Projetos Educacionais, Culturais e Sociais de Pesquisa e Avaliação
Contatos: [email protected] e [email protected]
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Pergunta: a) O crime do menino pode ter sido um caso de VDCA?
Sim ( )
Não ( )
Em dúvida ( )
Notícia b)
Favela ‘expulsa’ mãe agressora
Por Fábio Mazzitelli
Suspeita de espancar e queimar a filha de 7 anos, a dona de casa Iraneide Alves da Silva, de
28 anos, foi “expulsa” ontem da favela da Avenida Maria Luiza Americano, na Cidade Líder, zona
leste de São Paulo. Ela também pode perder a guarda da criança.
Acompanhada do pai, o pintor Lourival Ramos dos Santos, de 28 anos, e da líder comunitária
Antonia Carmem de Souza, de 57, a menina V.A.S. passou na manhã de ontem pelo ProntoSocorro do Hospital Planalto, em Itaquera. Os sinais mais flagrantes da agressão são queimaduras
no pé esquerdo e hematomas nos olhos, costas, pernas e braços.
Antonia disse que fez a denúncia à polícia porque não conseguiu falar no Conselho Tutelar. “No
sábado, vizinhos me chamaram dizendo que ouviram gemidos da menina. A mãe ameaçava
bater mais se ela gritasse”, contou. “Ela não vai voltar para lá (favela). Se aparecer, não me
responsabilizo.” O presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares de São Paulo, Marcelo
Nascimento, disse que o caso compete ao recém-criado Conselho de José Bonifácio, que não
tem telefones de plantão.
Aos policiais do 53º Distrito Policial (Parque do Carmo), onde foi indiciada por maus-tratos, Iraneide
teria admitido ontem que aplicava “corretivos”, mas negado os excessos. Ela foi liberada no fim
da tarde.
Separado de Iraneide há quatro meses, Santos diz que já desconfiava das agressões, mas que
a filha nunca havia admitido. A menina é a mais velha dos quatro filhos do casal. A acusada de
agressão está grávida do quinto filho com Lourival. “Saí de casa por causa do ciúmes dela
(Iraneide), mas nunca deixei faltar nada.”
Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080922/not_imp245796,0.php
Pergunta: b) O caso da garota de 7 anos configura VDCA?
Sim ( )
Não ( )
Em dúvida ( )
Notícia c) 24/09/2008 - 09h38min
Câmera flagra maus-tratos de babá contra garota de dois anos em PE
FÁBIO GUIBU da Agência Folha, em Recife
Uma câmera escondida flagrou uma babá maltratando uma menina de dois anos e cinco meses,
em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana de Recife (PE). As cenas, gravadas no
apartamento onde mora a criança, mostram a mulher puxando os cabelos e sacudindo a cabeça
da menina ao penteá-la. A gravação mostra ainda a babá sentada em um sofá espetando
levemente a perna direita do bebê, duas vezes seguidas, com um palito de dentes.
Nascimento, disse que o caso compete ao recém-criado Conselho de José Bonifácio, que não
tem telefones de plantão.
Gravadas na quinta-feira da semana passada, as imagens só foram levadas anteontem pela
família da menina à Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente.
Segundo o delegado Jorge Ferreira, que apura o caso, a babá, Francisca Barbosa de Souza, 46,
trabalhava no local havia dois anos.
Ela foi despedida no dia seguinte à gravação e localizada ontem pela polícia.
Envergonhada
Interrogada por policiais, a babá confirmou, segundo a polícia, ter puxado os cabelos da criança
com o pente, mas negou maus-tratos no caso do palito de dentes.
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Ela disse à polícia que estava brincando com o bebê, que também a espetava no braço com um
outro palito.
A babá, ainda de acordo com o delegado, declarou ter ficado envergonhada ao ver as imagens,
exibidas pela mãe da criança no dia seguinte.
“Ela afirmou que sempre gostou da menina e que não sabe o que a levou a fazer aquilo”, disse o
policial.
A princípio, declarou o delegado, as provas indicam que houve apenas maus-tratos, crime que
pode ser punido com até um ano de detenção. Se for comprovada tortura, a pena pode subir
para até oito anos de reclusão.
A mãe do bebê será convidada a depor ainda nesta semana. A menina, segundo o delegado,
será submetida a exame traumatológico no IML (Instituto Médico Legal) de Pernambuco. Também
passará por exame de avaliação psicológica.
Francisca de Souza, que não foi autuada em flagrante, vai responder ao processo em liberdade.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u448280.shtml
Pergunta: c) O caso da babá configura VDCA?
Sim ( )
Não ( )
Em dúvida (
)
Questão 2 – O que é VDCA para você?
ATENÇÃO
Não se identifique: apenas preencha os dados a seguir e devolva
Dados informativos
a) idade completada no último aniversário ____anos
b) sexo ( ) M
( ) F
c) ocupação principal ____________________
Parte B – A VDCA como tema de pesquisa
Um tema de pesquisa costuma ser um assunto-problema seja porque pouco se sabe a respeito,
seja porque o que se sabe a respeito não é confiável. As razões para isso são as mais variadas
envolvendo desde a negação do problema até a proibição de abordá-lo.
Razões pessoais do pesquisador, razões de Estado podem estar por trás da escolha de um tema
de pesquisa. No caso da VDCA isto ocorreu e ainda ocorre. Ocorreu com a pesquisa ligada
sobretudo à intervenção nos casos dessa natureza. Ainda ocorre quando se procura explicar o
fenômeno para poder preveni-lo. Por isso mesmo, a VDCA tem um perfil muito peculiar, enquanto
tema seja da cultura científica, seja da cultura de massa.
Um casaco de várias cores, como se verá a seguir.
Parte C – Que tema é este na cultura científica?
A Bibliografia Seletiva Anotada sobre Prevenção da VDCA (2000 – 2007) resultante
de ampla pesquisa bibliográfica conduzida por mim evidenciou tratar-se de um TEMA bastante
MALTRATADO seja na literatura científica Ocidental, seja na Oriental como se percebe pelos
excertos a seguir:
Literatura Científica Ocidental
Em termos quantitativos, a Bibliografia Seletiva identificada no período e mais as fontes
consultadas, foi muito reduzida: apenas 35 textos de um total de 374 trabalhos, correspondendo
a 9,6% do universo levantado com base nas palavras-chave adotadas. Confirmam-se assim, os
dados de duas outras pesquisas bibliográficas realizadas anteriormente, nas quais os textos
58
sobre PREVENÇÃO de VDCA foram da ordem de 8,6%, no período 1990-2002 [1] e 10% no
período 1973-2005 [2]. Se confrontarmos esses percentuais com o perfil da produção acadêmica
paulista sobre Infância e Violência Doméstica (1936-1992) constataremos que, se a produção
sobre VDCA já se revelava marginal na época (apenas 0,15% da produção global do período
[3]), passados mais de dez anos, dentro dela, a bibliografia relativa à prevenção mostrou ser
também marginal.
Portanto, um tema marginal dentro de uma produção marginal permitindo afirmar que, ainda
hoje, a Prevenção da VDCA é uma temática super esquecida na tradição ocidental de pesquisa.
Em termos qualitativos, a Bibliografia Anotada revela o seguinte perfil de Pesquisa:
EMPÍRICA quanto à NATUREZA, não privilegiando investigações mais reflexivas tipo
trabalho teórico;
designando o OBJETO da PREVENÇÃO por TERMINOLOGIA
diversificada e nem sempre única e consistente: VIOLÊNCIA, ABUSO;
quase sempre não adotando explicitamente MODELO EXPLICATIVO da VDCA ou
adotando Modelo de menor poder explicativo (por exemplo 2ª geração);
priorizando a PREVENÇÃO da VDCA em termos de um ou mais níveis, especialmente o
SECUNDÁRIO e/ou TERCIÁRIO;
compreendendo a PREVENÇÃO da VDCA como QUESTÃO de SAÚDE, em suas diversas
nuances (pública, individual);
produzidas tanto por AUTOR ÚNICO, quanto PLURAL, geralmente com filiação acadêmica
e escrevendo sobretudo na ÁREA da SAÚDE FÍSICA e MENTAL.
Esse perfil – com pequenas variações esteve presente tanto na Bibliografia nacional como
na internacional, independentemente das modalidades de VDCA (Física/Sexual).
Se bem analisado, é um PERFIL preocupante, característico de um cenário de menorização
acadêmica: pesquisas de curto prazo não embasadas em modelos teóricos robustos, utilizando
terminologia não amplamente validada, com “designs” menos exigentes, focando a PREVENÇÃO
a partir de níveis e concepções mais restritas.
Esse cenário pode ser resultado de mentalidade social sutilmente
desvalorizadora de uma problemática que - embora grave - afeta crianças e adolescentes
- seres menorizados por excelência - em sociedades adultocêntricas infelizmente ainda majoritárias
no planeta Terra.
Literatura Científica Oriental
Até onde foi possível investigar não parece existir, na Rússia e na China, uma sólida tradição de
pesquisa sobre VDCA e, dentro dela, sobre sua prevenção. A listagem bibliográfica que se segue
contempla apenas alguns artigos mais recentes que foi possível localizar a partir do Ocidente.
Originalmente pensei em realizar, nas vertentes russa e chinesa, pesquisa homóloga à que realizei
no Ocidente. Dificuldades insuperáveis ligadas,sobretudo, ao domínio das línguas e ao acesso
às fontes originais inviabilizaram
essa idéia obrigando a equipe a apelar para um projeto alternativo. Assim em vez de fontes
russas e chinesas, consultei o periódico que na pesquisa bibliográfica
ocidental concentrou o maior número de referências sobre a temática em estudo, ou seja, Child
Abuse and Neglect the International Journal.
O acesso a outros periódicos, via Internet, complementou a pesquisa com trabalhos
destinados à divulgação mais ampla. A listagem de textos levantados é bem diminuta no período
2000-2007, cabendo indagar quais as possíveis explicações para isso:
[1] Azevedo, M.A., Guerra, V.N.A. & Longo, C.S. (2002). Bibliografia seletiva (nacional e internacional) sobre punição
corporal doméstica de crianças e adolescentes (1990-2002), São Paulo: LACRI.
http://www.ieditora.com.br
[2] Longo, C.S., Azevedo, M.A. & Guerra, V. N. de A. (2005). Bibliografia seletiva e novas tecnologias
de comunicação sobre violência doméstica contra crianças e adolescentes (VDCA) no Brasil (19732005), São Paulo, LACRI/IPUSP.
[3] Azevedo, M.A (1995). Violência doméstica contra crianças e adolescentes: compreensão do fenômeno noBrasil.
In: Azevedo, M.A. & Guerra, V.N. de A. Infância e Violência Fatal em Família. São Paulo: Iglu, p. 64-65.
59
negação da VDCA (em termos de ocorrência, de responsabilidade, de importância, de
impacto ...);
indiferença e/ou resistência à prevenção da VDCA;
dificuldade para publicação no Exterior (em função de eventual censura política, de barreira
idiomática, etc.).
Qualquer que seja a explicação, isso não diminuiu o interesse pelos textos identificados.
Foram considerados “trabalhos alpinistas”, passíveis de serem“escavados” em busca de idéiasônibus que permitissem traçar um quadro impressionista da pesquisa sobre PREVENÇÃO da
VDCA em países de dimensões continentais como Brasil, mas dele tão diversos em
História,Sociedade e Cultura. Uma primeira leitura, portanto, ainda muito longe de ser mais
definitiva, mas que já permite afirmar: a PREVENÇÃO da VDCA ainda é um tema silenciado na
Literatura Científica Oriental.
Parte D – Que tema é este na cultura de massa?
A notícia a seguir dá uma idéia de como a VDCA tem sido tratada na mídia impressa.
FOLHA DE SÃO PAULO – 10/01/2004 - COTIDIANO
MARIO HUGO MONKEN
da Folha de S.Paulo, no Rio
Estudo inédito do Lacri (Laboratório de Estudos da Criança e do Adolescente) da USP indica que,
desde 2000, ao menos 456 crianças ou adolescentes morreram em consequência de atos de
violência sofridos dentro de casa.
Os casos notificados foram recolhidos pelo Lacri em instituições públicas e privadas especializadas
no atendimento a vítimas de violência doméstica.
A pesquisa revela que, em especial nos últimos dois anos, cresceram as notificações de ocorrências
de violência doméstica contra crianças e adolescentes no Brasil.
Segundo o estudo, ocorreram no primeiro trimestre do ano passado, em 128 municípios
pesquisados (20 Estados), 20.757 notificações —30% a mais do que no mesmo período de
2002, quando houve 15.974 notificações.
A pesquisa foi iniciada em 1996. O número de municípios abrangidos tem variado a cada ano
(em 2002 e 2003, foram mantidas as mesmas 128 cidades). As notificações recolhidas são
referentes apenas aos primeiros trimestres.
Viviane de Azevedo Guerra —uma das coordenadoras da pesquisa— considera os dados a
“ponta de um iceberg”. “Nosso trabalho não corresponde às informações do país todo. A pesquisa
só mostra a ponta de um fenômeno que pode ser mais amplo na sociedade brasileira”, disse.
Em oito anos, instituições como o SOS Criança, centros de referência e conselhos tutelares
informaram ao Lacri 90.698 casos de violência doméstica.
Para Guerra, o crescimento das notificações está diretamente ligado à implantação do Estatuto
da Criança e do Adolescente, em 1990, e à abertura de conselhos tutelares em vários municípios
“Com o estatuto, quem trabalha na área de infância fica obrigado a notificar os casos de violência
doméstica que identifique”, disse.
As situações de negligência —quando a criança deixa de receber, por exemplo, alimentação ou
atendimento médico— lideram o ranking da violência doméstica. No primeiro trimestre de 2003,
o Lacri apurou 8.687 casos.
Para Guerra, as notificações são mais frequentes nas comunidades carentes onde a percepção
da violência é maior e os casos acabam denunciados por vizinhos, diferentemente do que ocorre
entre os de maior poder aquisitivo.
Para a coordenadora do Centro de Referência em Violência Doméstica do Instituto Sedes
Sapientiae (SP), Dalka Ferrari, a questão econômica pode explicar o fato de os casos de negligência
serem os mais comuns.
“O Brasil tem uma população muito carente. Com isso, muitas crianças ficam sem escola,
60
alimentação e moradia. Quando os pais deixam de cuidar das crianças, muitas vezes é por causa
da sua situação financeira.”
Ferrari disse acreditar que as notificações tendem a aumentar se as escolas despertarem para o
problema. “A escola fica mais tempo com as crianças.”
O Lacri enviou em dezembro à Câmara dos Deputados proposta de projeto de lei para proibir que
os pais apliquem castigos corporais leves nos filhos, como tapinhas no bumbum e na mão.
A idéia é alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, que só proíbe “castigos imoderados”,
como espancamentos. Deseja-se que os pais que aplicam castigos corporais leves sejam punidos
como os que espancam, com perda da guarda e encaminhamento do agressor para tratamento
psiquiátrico ou psicológico.
FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u88421.shtml
Em 2008, com relação ao caso de Isabella realizei uma pesquisa documental cujos principais
comentários vão sintetizados a seguir. Eles ilustram bem o que considero uma ótica desfocada,
no tratamento da VDCA pela mídia impressa.
Caso Isabella *
POST SCRIPTUM
O caso Isabella: ainda há o que colocar nesse debate?
Dra. Maria Amélia Azevedo [1]
“Agora que vocês viram no que deu, lembrem-se de como tudo começou” Brecht
Desde o dia de sua trágica morte (29/03/2008) Isabella – que não chegou a
completar seis anos de vida – ocupou páginas de jornais e revistas de maior ou menor circulação
entre nós. Consultando em média 4 jornais diários em São Paulo foi possível identificar 82 matérias
enfocando o crime sob os mais variados ângulos: editoriais, artigos, entrevistas, reportagens
totalizando mais de 46 páginas. O tratamento dado à matéria tem variado da informação à crítica,
da parcimônia ao radicalismo, das visões impressionistas às colocações gratuitas e por vezes
infundadas.
Nesse sentido pode-se pensar que o trabalho da imprensa, embora volumoso em termos
quantitativos, ainda está carecendo de refinamento qualitativo.
Todos nós sabemos que este só se consegue quando as matérias se pautam não pelo
imediatismo do jornalismo espetacular e sim pela profundidade do jornalismo investigativo.
Com raríssimas exceções, este jornalismo tem deixado de marcar presença no debate
sobre o caso Isabella que por via de conseqüência tem sido tratado mais ao nível da consciência
ingênua e não – como deveria ser – ao nível da consciência instrumentalizada pela pesquisa.
A pobreza científica dos debates jornalísticos explica a preocupação exaustiva com
pormenores do dia a dia das investigações policiais em detrimento da preocupação maior e
absolutamente indispensável com questões do tipo:
Como EXPLICAR (e não apenas descrever) a morte de Isabella?
A morte de Isabella pode ser incluída pura e simplesmente nas estatísticas de mortalidade
infanto-juvenil em nosso País?
Teria sido possível EVITAR o crime?
O caso Isabella - por mais hediondo que seja – não é nem pode ser visto como um caso
isolado. Ele só pode ser realmente compreendido se considerado como mais um caso de
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FATAL contra CRIANÇAS e ADOLESCENTES, cujo perfil foi
exaustivamente estudado por mim e pela Dra.Viviane Guerra em 7 anos de cuidadosa pesquisa
[1] Professora Titular e Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP), Coordenadora do Laboratório de Estudos da
Criança – LACRI/IPUSP, Advogada, Pedagoga. E-mail: [email protected] * No ar desde agosto/2008 no site: www.ip.usp.br/
laboratorios/lacri - link Conversando com o Público.
61
realizada no Município de São Paulo, na década de 90. Todos os casos de crianças mortas em
família (objeto da mencionada pesquisa), possibilitaram a construção de um vídeo cujo título
sinaliza a característica mais marcante dessas mortes: CRÔNICAS de MORTE ANUNCIADA
(www.ip.usp.br/laboratorios/lacri - link Produções LACRI) ou seja – parafraseando a obra
de Garcia Marquez – todos, com exceção da própria vítima, sabiam de sua morte.
Parte E – Em suma, que tema é este?
Um casaco de muitas cores sombrias
Um tema maltratado
Um tema desfocado
cultura científica
cultura de massa
Parte F – Uma pergunta para Junguianos e Joycianos: um tema de pesquisa?
Todo dia 16 de junho, joycianos do mundo todo comemoram em Dublin ou fora dela o Bloomsday:
dia em que o protagonista dofamoso ULISSES de James Joyce – Leopold Bloom – fez
suacaminhada de 18 horas, na Irlanda. Esse foi também o dia em que Joyce conheceu NORA
BARNACLE então com 20 anos, que viria a ser sua esposa e mãe de seus dois
Filhos:Giorgio (com sérios problemas de alcoolismo) e Lúcia (considerada esquizofrênica por
alguns e genial por outros). A história de Lúcia é extremamente polêmica, a ponto de seu
sobrinho (ainda vivo) ter interditado publicação de sua correspondência, especialmente com o
pai James Joyce.
O relato a seguir mostra aspectos da polêmica que cerca até hoje a verdadeira natureza da
relação entre Lúcia e seu pai Joyce.
A História de Lúcia
A 05 de abril de 1992 foi, aberta em Dublin, com toda pompa, parte da correspondência escrita
por James Joyce e guardada por seu fiel Secretário e amigo Paul Leon durante cerca de dez
anos “Os envelopes continham as misérias, os pormenores, as notas de rodapé, a letra miúda
dos últimos anos do maior escritor deste século. Faltavam porém algumas cartas. Eram as que
mais diretamente se referiam a Lúcia, a filha caçula de James Joyce, cuja esquizofrenia se aguçou
na época em que Paul Leon começou a trabalhar para o escritor. Stephen James Joyce, neto e
herdeiro do autor de ULISSES não autorizou sua publicação até 31 de dezembro
de 2050. As cartas abertas e as ainda fechadas contam a terna, terrível história de amor entre pai
62
e filha e o triângulo temporariamente formado por ambos e outro gênio irlandês,
Samuel Beckett que foi amigo dele e noivo dela.
Lúcia Joyce faleceu a 12 de dezembro de 1982, em um manicômio britânico onde permaneceu
por cerca de 40 anos, apesar dos esforços que Joyce fez para salvá-la da “noite escura” em que
viveu mergulhada desde muito jovem. “Cópia torturada e bloqueada de um gênio”, nas palavras
do biógrafo Richard Ellmann, Lúcia visitou, com seu pai, os maiores psiquiatras da época sem
haver encontrado, porém, qualquer esperança de cura por parte deles. Um dos médicos
consultados foi Jung que deixou o seguinte registro, em carta escrita a Patrícia Hutchins”: “Se
você conhece minha teoria da ANIMA verá que Joyce e sua filha são exemplos clássicos da
mesma. Ela era sua femme inspiratrice, o que explica a obstinação em negar-se a admitir o
verdadeiro estado de sua filha. A ANIMA de Joyce, isto é, sua psique inconsciente, estava tão
estreitamente identificada com ela, que admitir a enfermidade de sua filha seria como reconhecer
que também ele tinha uma psicose latente. Seu estilo literário PSICOLÓGICO é esquizofrênico,
sem dúvida alguma, mas ao contrário de um paciente convencional, Joyce pode pensar e falar
desse modo voluntariamente”.
Fonte: El baul de Joyce, BABELIA, España, 13 de junio, 1992.
Tendo sido paciente de Jung, a pergunta que fica no ar para Junguianos e Joycianos é: terá sido
LÚCIA, um caso de VDCA de natureza sexual, incestuosa portanto?
Mais um caso de INCESTO PAI – FILHA, tal como outros tristemente famosos, entre os quais os
de:
Sapho – Jane, filha de Lawrence Durrell, autor do famoso “O Quarteto de Alexandria” que
se suicidou em 1985, aos 33 anos, após haver acusado o pai de manter relações sexuais com
ela;
Cheienne Brando, filha do ator Marlon Brando internada numa Clínica em Paris e
posteriormente nos EUA com diagnóstico de esquizofrenia e várias tentativas de suicídio, a última
fatal.
Um verdadeiro tema de pesquisa à procura de pesquisadores com visão transdisciplinar ...
Créditos
Autoria: Maria Amélia Azevedo
Montagem e Formatação: Geni Souza
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A Madona Negra de Aparecida e a Sustentabilidade da Paz Social
Lucy Penna, Ph.D.
PALAVRAS CHAVE
Nossa Senhora Aparecida; Psicologia e saúde social; Sustentabilidade; Paz social; Madona Negra;
Feminino
O mito de Aparecida apresenta um saber fundamental para que a sociedade brasileira aprenda a
transformar a violência em todas as suas formas. Proponho olhar para os conflitos pessoais,
urbanos e ambientais pelo prisma dos símbolos constelados no mito de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida, retirando-se lições para alcançar a sustentabilidade da paz social. Aparecida
é uma expressão do arquétipo do Feminino que possui um amplo contexto simbólico de interesse
especial para toda a sociedade, independente do credo religioso, da descendência étnica ou do
nível socioeconômico. A reduzida compreensão atual
dos símbolos arquetípicos constelados no mito de Aparecida revela a dificuldade em aceitar o
lado obscuro de certos costumes, alguns dos quais ainda perduram, três séculos depois do seu
início.
O primeiro passo para interpretação desse mito é aceitar que Aparecida é uma Madona Negra,
um arquétipo que pertence ao inconsciente coletivo há milênios. Seus atributos positivos são a
criatividade, a energia telúrica, a força emocional e a inclusividade. Estimulada por esse arquétipo,
desenvolve-se uma sabedoria que transforma os aspectos da sombra coletiva em luz do
conhecimento. Os aspectos negativos desse arquétipo são vistos quando a expressão do Self
está reprimida, ou se privilegia o intelecto em detrimento da imaginação e da intuição. Então, a
energia da Madona Negra aparece de forma ameaçadora à consciência, e a sexualidade, por
exemplo, poderá gerar dissabores, em lugar de alegrias. Os relacionamentos tingem-se com o
vermelho da irritação, e o humor se descontrola entre a depressão e a agitação ansiosa. Quando
a violência irrompe sob qualquer pretexto, a sexualidade também tende a adulterar-se em
obscenidades, porque os instintos estão pervertidos. O desequilíbrio entre os lados negativo e
positivo desse arquétipo ofende diretamente o respeito a si próprio e ao outro. Em lugar de criar
vínculos construtivos, os relacionamentos sob o caráter negativo desse arquétipo são devoradores,
intoxicantes e destrutivos. Seja consigo mesmo, com o outro ou com o ambiente, a pessoa fica
presa de uma espécie de auto-magia, onde os preconceitos religiosos e a superstição enevoam
o seu entendimento.
Os aspectos transformadores das madonas negras foram compreendidos em diferentes
culturas criando vários centros de peregrinação onde imagens cristãs são cultuadas há séculos,
como na Suíça, Polônia, México, Espanha e França. Iniciada muito antes do advento do
cristianismo, a antiga devoção a Isis se espalhou do Egito para outras cidades mediterrâneas
durante quase cinco milênios, que também conheceram os rituais de Deméter, Cybele e outras
manifestações duradouras do mesmo arquétipo (Begg, 1985).
“Os arquétipos não são imagens herdadas, mas a possibilidade herdada de imagens” esclarece
Jacobi ( 1986, p.59). Segue-se que quando falamos dos arquétipos estamos sempre comparando
conteúdos que vestem “máscaras” culturais. Apesar da continuidade de culto das madonas negras,
há diferenças na aparência das imagens e no seu simbolismo. As virgens católicas ainda são
retratadas através do modelo europeu medieval onde a mulher pura era assexuada, sem corpo,
com uma aura de maternidade romântica e infantilizada. As virgens negras da antiguidade, porém,
mostravam um corpo com seios fartos, símbolo da força da vida representada na abundância da
natureza (Deméter). Ou uma negra cabeleira de matéria vulcânica ( Pele, do Havai) símbolo da
intensidade emocional, e a integração de poderes do reino animal, significando o domínio
xamânico, como em Isis (Egito). Havia em Éfeso ( Turquia) duas Dianas: uma clara a outra
escura. O corpo de ambas mostrava pencas de formas ovaladas interpretadas como seios, ou
ainda como testículos taurinos, porque o touro foi um animal consagrado às deusas da abundância,
na antiguidade.
“O ser humano só cultua o que julga válido e nenhuma crença sobrevive sem ter base na realidade”,
Levy (2002, p. 82), ou seja, experiência cultural do povo cria suas imagens. Para esta psicóloga
e xamã, a identidade da Madona Negra revela-se no poder de conciliar os opostos. “A atividade
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criativa é a Face da Madona Negra por excelência, que está ancorada no centro da Terra como
um Sol Negro”, (op. cit. p. 82) O sol negro é um símbolo da sombra coletiva, do lado escuro da
humanidade que deve ser transformado e ter sua energia integrada na consciência, mediante o
sacrifício de toda intenção egocêntrica, com a adesão a um estilo de vida altruísta. Esses conteúdos
são parte da sabedoria do mito de Aparecida, que considero a seguir em termos da cor preta, da
sua mutilação original e da emersão das águas do rio Paraíba.
A cor preta está associada com a noite, com o mistério, o desconhecido, a matéria prima do
mundo ainda não tocada pela luz do sol, a lava vulcânica, o fundo dos oceanos. A matéria nigris
é o primeiro estágio do opus alquímico ( Jung, 1968) e simboliza a sombra que deve ser
transformada durante o processo da individuação. Significa ainda a energia telúrica que foi honrada,
no Neolítico, em rituais dentro de cavernas, consideradas como o útero da Mãe-Terra. O fundo
escuro dos oceanos, e dos rios e lagos são locais de origem dos seres humanos e não humanos
em inúmeros mitos cosmogônicos da Amazônia (Penna, 2009). Assim o preto alude a experiências
de nascimento e morte, passagens de nível de consciência e portais para os mundos sutis.
A grandiosa energia simbólica da cor preta de Aparecida está reduzida pela explicação de que
ela ficou escurinha por conta do limo do fundo do rio. As autoridades eclesiásticas nunca poderiam
permitir que os escravos a vissem como “uma igual” e tentaram branqueá-la. O não
reconhecimento do símbolo da cor preta em Aparecida indica ignorância, e também o medo do
poder do útero feminino universal, que ela evoca. O pavor da escuridão do próprio inconsciente
é comum ainda hoje, quando os olhos estão ininterruptamente ofuscados pela luz artificial dos
computadores, dos outdoors, dos faróis dos carros, nas nossas cidades que nunca dormem.
A mensagem do mito se empobreceu ao rejeitar-se a verdade da psique humana que contém
em si mesma o claro e o escuro, assim como a natureza se regenera através do dia e da noite.
Apesar de tão simples, essa verdade não pôde ser aceita na visão unilateral androgênica, que
predominava em 1717 e ainda se mantém parcialmente, na psique coletiva brasileira.
Uma preta santinha emergiu quebrada das águas do rio Paraíba, trazendo consigo o milagre da
abundância, em 1717. Os cansados pescadores viram sair de sua rede um corpo, depois a
diminuta cabeça em outro arremesso, espantados com um achado tão improvável naquelas
águas rápidas. O nome Paraíba significa rio imprestável para navegar por causa de corredeiras,
mas também era fácil de pesca, cheio de surubins. ( Prezia, 1999) João Alves, o mais jovem dos
três, experimenta a cabeça e anuncia que é uma santa! Reconhecida, a sem nome foi
simplesmente honrada, talvez rezassem pedindo a sua proteção. Logo em seguida, o desgaste
da noite infrutífera foi superado pela alegria de ver as redes cheias de peixes, no primeiro milagre
atribuído à imagem de mulher preta saída do rio, que ficou conhecida como Aparecida. Assim o
mito começa com uma surpreendente atenção ao que está frágil e mutilado, e continua com um
gesto de cura realizado pelas mãos de um homem simples que junta os pedaços da imagem
feminina.
As águas do rio podem simbolizar a origem, o líquido amniótico, o rio da vida; o fluxo contínuo
das energias afetivas, além do próprio inconsciente humano - símbolos que aludem também ao
efeito da lua sobre as emoções, a gravidez e o parto. Água e feminino estão associados na
psique coletiva, o que reforça a constelação do feminino neste mito (Penna, 1996). Quando
Aparecida chegou, a sociedade do século 18 não permitia a parceria entre homens e mulheres,
restringindo-a quase só à procriação. Não havia trabalho para uma “mulher bem nascida”, exceto
algumas professoras. As escravas e as indígenas eram vistas como corrompidas e selvagens,
recebendo a projeção do lado feminino reprimido e negativo da alma masculina. As próprias
mulheres depreciavam a si mesmas. O símbolo do modelo feminino mais elevado no século 18
era Nossa Senhora retratada nas Igrejas segundo o modelo europeu medieval, coberta de panos
e de pele clara, símbolo do recato, pureza e maternal presença. Mas quando João Alves retira
Aparecida do ventre do rio ela chega preta e quebrada. Parece sua alma cabocla atingida pela
extrema humilhação que os escravos, índios e descendentes sofriam sem ninguém a quem
recorrer. E aquela santinha quebrada, possivelmente jogada no rio como lixo, transformou-se em
matriz da força, fonte de esperança, luz no desespero, uma estrela anunciando dias melhores.
Um dos milagres que lhe atribuíram foi a assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, devota de
Aparecida, 171 anos depois do achado.
A separação entre cabeça e corpo expressa ferimento mortal, e no nível simbólico: incompletude,
65
fragilidade, sofrimento, inadequação, rompimento, bem como ruptura do ideal humano. A cabeça
está associada com a razão, indicando controle, inteligência e poder mental. No desequilíbrio
extremo, é um símbolo para a falta de sensibilidade, ausência de misericórdia, excesso de crítica,
para o julgamento unilateral onde há razão, sem coração.
O significado do corpo é mais ligado com os desejos, com as necessidades instintivas como
comer, vestir, com a sexualidade e as emoções. Dizemos mens sana in corpore sano como se
fosse a relação saudável entre esse par de contrários. Mas será que a frase envolve tudo? Vimos
que o alcance do arquétipo da Madona Negra é curar as dualidades. Aplicando esse dom, João
Alves começou com a cura de si mesmo: ele se rendeu ao mistério, aceitou o indizível e, com
simplicidade, uniu a cabeça e o corpo de Aparecida. Um gesto que sua mãe, Silvana repetiria
usando cera de abelha e resina, horas depois. Há séculos a sociedade tende a confrontar o
corpo e a cabeça, o sentimento e a razão, a mulher e o homem, o instinto e a religião, a matéria
e o espírito, em uma disputa sem vitória possível. Ser humano significa viver a totalidade do ser
vivo. Atingir um alto grau de consciência significa estar presente no aqui e agora, implica em atuar
diretamente nas questões do nosso tempo e no local onde estamos. É o ponto onde o mito de
Aparecida mostra seu valor.
Os catecismos cristãos que foram incutidos na mentalidade brasileira desde o século 16 ensinam
que o corpo deve ser submetido à cabeça, assim como a mulher ao homem. Em conseqüência,
os instintos – que são a voz do diabo – são reprimidos, negados e extirpados, sempre que possível.
Construiu-se uma visão racionalizada, ascéptica e cética que produz resultados desajustadores
dos relacionamentos sociais ainda hoje. Entretanto a violência ainda presente sob inúmeras formas,
após tantos esforços da colonização cristã, sugere que essa orientação separatista é unilateral e
tem graves falhas. A chegada de Aparecida decapitada durante a vigência da escravatura inspira
a ver que a transformação da consciência é urgente! E que ainda não fizemos completamente a
lição de casa.
Naquela época, sempre que uma pessoa do povo, escravo foragido, ou pobre artesão ousava
levantar a cabeça diante de uma ordem das autoridades, era preso imediatamente, e podia ser
enforcado ou decapitado ( Gomes, 2007; Brustoloni,1994). A coragem para o gesto de pensar
por conta própria, reagindo às ordens violentas da autoridade constituída no século 18, pagava o
preço da decapitação. Ora, Aparecida já vêm decapitada. E preta. E mulher. O vínculo de sua
imagem com as necessidades da população a tornaram a grande padroeira do Brasil. Os símbolos
que o mito constela indicam as grandes linhas da transformação da sociedade na direção de
uma cultura sustentável regida por valores que respeitam as condições humanas universais. O
olhar de Aparecida para o futuro afirma a possibilidade de superarmos a incompetência
administrativa, os conflitos violentos causados pela miséria, a grave desorientação da nossa
juventude, a perda no significado da vida, a atração por tentativas de controle dos conflitos que
são destrutivas, a restauração do vínculo com o sabor da vida que impedirá o vício das drogas, a
corrupção e as perversidades ideológicas que são como um vírus na alma brasileira.
Em síntese, a sabedoria de Aparecida exige mais do que construir santuários. Implica em interiorizar
os símbolos na própria vida e atuar conscientemente. Ela indica que é possível reconciliar razão
e sensualidade, virtude e prazer, integrando essas dualidades nos gestos cotidianos. Aparecida
veio para todos, não para os adeptos de uma religião. Ela supera as dualidades, ela cria meios de
diálogo, ela une e não pode ser usada como arma de ataque e de supremacia religiosa. Ela
nasceu como um grito da alma brasileira.
Aparecida sugere que o conhecimento científico seja utilizado para disciplinar os costumes que
degradam a alimentação, a sexualidade, e para equilibrar os relacionamentos que desgastam os
recursos do corpo humano e do corpo planetário. Ela afirma que é desejável não disputar, mas
criar acordos entre as pessoas de etnias, religiões e nacionalidades diversas. Honrar a
biodiversidade em todos os níveis, responsabilizar-se pelos mananciais de água do território
brasileiro como parte do patrimônio da humanidade são lições dessa figura feminina. O significado
de Aparecida mostra que a tendência brasileira para ficar no gostoso e no agradável, sem pensar
nas conseqüências coletivas, precisa ser mudado para uma atitude responsável e madura. Unir
cabeça e corpo dá trabalho e precisa de persistência e coragem para enfrentar a preguiça, o
medo e a ignorância.
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Uma outra leitura desse símbolos identifica o governo com a cabeça e o povo com o
corpo. Desse modo, a decapitação de Aparecida identifica uma doença coletiva: a separação
entre o que pensam as lideranças públicas e as condições do corpo da nação. Apartados das
necessidades verdadeiras da nação, os governantes estariam protegendo seus interesses,
aumentando o seu poder, enquanto o povo se desespera e se mata para sobreviver. A decapitação
indica que os governantes do século 18 manipulavam os indígenas e os escravos, explorando a
sua miséria em troca de migalhas. Essa decapitação já foi curada?
Precisamos usar o dom da criatividade que é próprio da Madona Negra e divulgar o conhecimento
da psicologia ao povo. A educação através da mídia pode ser um campo de atuação onde os
psicólogos discorram sobre as lições dos mitos, estimulando o interesse das pessoas pelos
símbolos, despertando o auto-conhecimento, em nível coletivo. O valor transformador dos mitos
precisa também ser veiculado nas diversas formas de arte, beneficiando a parte da população
que ainda é imatura, porque está desassistida, abandonada pela educação pública. Os métodos
de ensino atuais usam modelos extremamente racionalizados, sem desenvolver a solidariedade,
sem mostrar a importância da convivência pacífica no trabalho, na família, na rua, na escola. É
preciso incorporar os mitos, que bem narrados, servem para esclarecer por meio das imagens
que vão direto ao coração, e valem mais do que mil palavras sem alma.
Todas as adversidades e terríveis formas de violência que experimentamos no planeta são como
a casca amarga do fruto da paz. Talvez o ser humano esteja aprendendo como atingir a polpa
doce desse fruto tão desejado. Na imagem de Sai Baba, o grande avatar da Índia que é um
educador das multidões, a Paz é o fruto da árvore da vida, sem o qual a própria árvore ( da nossa
vida) é um tronco estéril, sem valor nem serventia. Um pessoa insensível ao que acontece ao
seu redor, é como um fruto com a casca grossa. Nunca mostra a sua doçura interior. Para Sai
Baba, segundo Martinelli (1996) existem seis características que impedem o ser humano de
alcançar a paz: cobiça, raiva, avareza, apego, orgulho e ódio. Este filósofo contemporâneo identifica
a Paz como um dos seis grandes valores universais com os quais devemos nos identificar, e
pelos quais precisamos nos unificar como uma sociedade planetária, acima de todas as
diferenciações. Os valores humanos universais são: Amor, Paz, Verdade, Ação Correta e Não
violência. A Paz deve ser o exercício consciente da harmonia na diversidade. Ela começa na
conquista da paz interior, aceitando a diversidade complexa do nosso próprio eu. Depois, espraiase como uma onda, iluminando os relacionamentos com alegria e felicidade.
A paz social deverá chegar como Aparecida, sem alarde, sem ebulição nem clarins tocando alto,
sem propaganda panfletária. Ela já está emergindo das águas do inconsciente com a realidade
nova, como a certeza esperada, como um sonho alcançado. E traz a abundância de meios para
viver com honra, dignidade e alegria. No mito de Aparecida, a união da cabeça com o corpo
trouxe a abundância dos peixes. Logo, a fartura sonhada por esse território, tão rico em
biodiversidade e em mananciais aqüíferos, a fartura só chegará a todos os lares quando
acabarmos de juntar cabeça e corpo, em nível pessoal e coletivo. Então, surgirá uma presença
espiritual do Feminino como símbolo da inclusividade, veículo da fartura dos dons criativos em
todos os sentidos, que será recebida com grande alegria. “O Feminino é a dimensão da
interioridade, do cuidado, do respeito à vida e ao mistério do mundo, que todos devemos
desenvolver.” (Brito, 1996, p. 27) É esta presença que Aparecida prenuncia em sua forma sofrida
e tosca. Será um estado de espírito que vai incluir a todos, sem diferenças de origens, profissões,
moradias, etnias, gênero ou religião. A abastança será uma realidade na paz da concórdia, se e
quando cada pessoa deste território juntar, em si mesmo, cabeça e corpo, dando nascimento ao
ser individualizado, isto é, sem divisões.
As datas da celebração da festa de Aparecida foram alteradas por motivos políticos e religiosos
algumas vezes. A decisão dos bispos que consagrou o dia 12 de outubro à Aparecida, em 1954,
também pode ser vista simbolicamente. Apesar de estar no dia do descobrimento da América e
ser dia das crianças, o feriado nacional deve-se à devoção cristã. No sudeste, celebra-se Nossa
Senhora da Conceição Aparecida e no norte, a festa de Nossa Senhora de Nazaré acontece no
segundo domingo de outubro e, eventualmente, coincide com a de Aparecida. Esse fato constela
uma sincronicidade na psique coletiva, com as qualidades do Feminino. Outro ponto é o nome
Conceição, que foi anexado posteriormente ao nome escolhido pelo povo, porque não existia
registro de uma devoção anterior à Maria, mãe de Jesus, sob o nome Aparecida. Conceição, é
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originalmente Concepção, significa aquela que concebe, isto é, gera e dá nascimento. Nazaré,
também encontrada nas águas de um igarapé, em 1700, foi logo identificada como uma das
grandes devoções portuguesas. Tornou-se a Padroeira da Amazônia, centro de uma das maiores
manifestações religiosas do mundo. Bem, mas o que indicaria o fato das duas maiores figuras da
devoção mariana neste país serem festejadas sob o signo de Libra, no mês de outubro?
No mês de Libra, ensina Huber (1991), transitamos pelos problemas de relacionamento e somos
estimulados a resolver as dificuldades entre o eu e o tu. Ensina a astróloga e psicóloga que Libra
e seu signo contrário, Áries, formam o eixo do encontro. Portanto, é uma ocasião para encontrar
o caminho do meio em todos os conflitos de comunicação com o outro, seja pessoa, animal, ou
meio ambiente. A celebração das festas em honra às duas grandes figuras de Senhoras das
Águas, realizada em escala nacional, é um fator de encontro que poderá influenciar, cada vez
mais, a consciência coletiva para aproximar-se da justiça, do equilíbrio, da harmonia e da paz.
São valores que estão associados ao princípio Feminino, também vinculado à colaboração,
compaixão e inclusão. Valores que, em breve tempo, devem substituir o excesso de competição,
punição e exclusão que ainda vemos na sociedade brasileira e planetária. As mulheres podem
aprender a elevar a consciência na freqüência do Feminino, para que seus filhos e filhas já sejam
corporificados nessa vibração. E a tônica do princípio Feminino compensará o Masculino
exacerbado da atual sociedade. Ao mesmo tempo, os homens aprendem a sintonizar com o seu
feminino interior com mais liberdade, curando o medo e as feridas da alma masculina, que tanto
mal podem causar a si mesmo e às mulheres. É preciso seguir o caminho do meio, alem das
dualidades, como ensina o mito de Aparecida.
Aparecida constela as energias do Self nacional. A compreensão dos seus símbolos cura as
fraturas que dilaceram o corpo e a alma da nossa gente. E incentiva as pessoas a acreditar que
temos condições de construir o mundo que teremos ter. O processo de individuação coletivo que
atravessamos é semelhante ao individual: é preciso disciplina firme e constante para retirar a
casca do medo, limpar o travo da raiva, curar a cegueira do egoísmo.
Referências Bibliográficas:
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PENNA, L.(2009) A Senhora das Águas. Símbolos amazônicos para a consciência ambiental
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PREZIA, B. ( 1999) A água na toponímia tupi(2) Brasília: Porantim/CIMI, No. 218, p. 11.
Instituição
Universidade Salgado de Oliveira
Síntese Curricular
Lucy Coelho Penna - Psicóloga pela PUCSP; Doutora em psicologia clínica pela USP; Pós doutorado pela Universidade
de Toronto, Canadá. Radicada em Goiânia, docente da Universidade Salgado de Oliveira e coordenadora de pósgraduação. Fundou o Núcleo Junguiano do Cerrado. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de
Estudos Junguianos, da PUCSP. www.lucypenna.com. [email protected]
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Violência Contemporânea como Meio de Salvação ou Destruição da Humanidade
Waldemar Magaldi Filho
O homem contemporâneo, em função da monetarização da vida, da dádiva e da dessacralização
existencial, acabou ficando totalmente viciado no consumo, no comportamento polifóbico e numa
vasta coleção de dependências, abusos e compulsões que acabou desembocando na atual
epidemia de violência, em todas as esferas e modalidades da nossa existência. Porém, esse
sintoma pode ser um caminho equivocado para despertar as pessoas para o sagrado e,
conseqüentemente, para o processo de individuação. Porque, ao longo da história da humanidade,
o sagrado sempre aparece de forma violenta e arrebatadora. Deixando claro que para sairmos
do automatismo e da inconsciência da alma, é necessário algum tipo de metanóia, ou seja, uma
conversão que desperte a consciência do Self, obviamente, passando pelos conteúdos sombrios,
pessoais e coletivos.
Isso porque, infelizmente, a grande massa humana está em estado de anestesia, inconsciente
de si mesma e presa nas engrenagens alienantes do sistema capitalista de consumo utilitarista.
Essas são as razões te tanta apatia e solidão ou violência fortuita. Não é fácil sair da “matrix”, pois
o autoconhecimento não é um caminho livre, leve e fácil. Ele exige dedicação, esforço, consciência,
consistência e diligência. Ou seja, o autoconhecimento já é uma transgressão violenta que viola
e revela o Self para o ego. Por isso, para a maioria silenciosa das pessoas acaba sendo mais fácil
ficar na inconsciência apática de si mesmas, contentando-se ocasionalmente com alguns
momentos de alegria ou de ilusão, que possibilitam a sensação de estarem vivas, ou se defendendo
da violência presente nas crises.
Lembrando que toda crise, de algum modo, é violenta e é manifestada na forma de sintomas,
físicos ou psíquicos, exclusão ou delinqüência social, conflitos familiares, competição perversa
no âmbito organizacional, desequilíbrio ambiental, abusos de todas as formas e âmbitos, incluindo
até dos sistemas religiosos. Porém, para mim, crise sempre é sinônimo de crescimento que viola
de maneira violenta a rotina. Sendo que, o analista junguiana lida o tempo todo com ela. Por isso,
diante dela, devemos encontrar o significado simbólico que está subjacente à crise. Não é mero
acaso que o prefixo “cri” está em Cristo, criança, crime, criação, criatividade, cripta, cristal, cristalizar,
criptografar, crisálida, crisma, crisol e crítica. Palavras que nos remetem a transformações!
Atualmente, a maioria das pessoas está sem clareza de propósitos, agindo quase que
exclusivamente para se proteger dos medos e conquistar segurança material, sem direção ou
sentido existencial e evolutivo coerentes! Então, quando se perde a clareza do seu trajeto ou da
conexão astral, o risco do trágico ou do desastre assombrar é muito grande – (tragédia é relativo
à falta de uma trajetória clara; desastre à perda com a conexão astral - desastro). Paralelamente,
devido à falta de significado existencial, perdemos o encantamento e o entusiasmo – in Théos.
Por isso nossa cultura tem tanta necessidade de atividades produtoras de adrenalina, presentes
nas situações de dependências, abusos e compulsões. Situação facilmente observada no
consumo patológico, nos transtornos alimentares, nas farmacodependências, drogadicções e
alcoolismo, nas atividades perigosas e aventureiras, como saltar de bungge-jump, nos jogos de
azar e em todos os excessos que vão desde o trabalho até o sexo. Essas são as razões de tanto
uso de antidepressivos e outras medicações psiquiátricas para ajudar as pessoas a se
concentrarem, dormirem, serem menos impulsivas e mais confiantes e continuarem se violentando
e comprando o que não precisam, com dinheiro que não possuem para impressionar quem não
conhecem e se iludirem de serem o que não são.
Isso porque o ser humano é criativo, complexo, único e deseja sentir-se pertencente e ser percebido
diferente dos demais seres, inclusive dos próprios seres humanos. Aliás, a única coisa igual no
ser humano é o seu desejo de ser diferente. E, para se manter diferente, acaba buscando
conhecimentos e coisas únicas, customizando sua vida e abusando de moda, cosmética e até
de interferências corporais, como plásticas, cicatrizes, tatuagens, piercings, entre outros adornos
ou atitudes. Infelizmente, o desejo de ser diferente acabou fomentando a desigualdade, pela
confusão de uma coisa com o a outra, alimentando simultaneamente o processo de exclusão
social, a competição e a ciranda do consumo. Onde, atualmente, o ser humano acabou perdendo
a capacidade de lazer e prazer independente do consumo. Tudo isso acabou desembocando no
atual excesso de competição e violência.
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Para mim, é impossível conhecer o mundo contemporâneo sem compreendermos como ele
funciona economicamente. Para Adam Smith (1723-1790), filósofo e economista do “iluminismo
escocês”, pai do conhecimento econômico moderno e teórico do liberalismo econômico, o homem
é um agente moral, que possuí um observador interno, como uma testemunha que lhe garante a
ética implícita, igual a um imperativo categórico. Porém, com o neoliberalismo esse agente
“regulador”, que agia como um censor, ou o superego freudiano, ficou inoperante e acabou
precipitando na imoralidade do funcionamento do sistema contemporâneo, onde as diferenças
se tornam desigualdades e a corrupção e competições desleais e predatórias seguem valorizadas.
Parece que a humanidade se esqueceu que o sistema financeiro e, conseqüentemente, o mercado
nasceram para servir a economia real, que deveria ser a resultante da energia psíquica e vital da
humanidade.
Com isso, o sistema financeiro acabou se apropriando da economia real, onde a única regra
moral é o maior lucro possível, no menor tempo possível, para que os funcionários possam obter
o maior bônus possível que, por sua vez, será imediatamente aplicado em papéis do Tesouro
americano. Assim, a eficiência ocupou o lugar da criatividade e da ética, a testemunha interior
ficou anulada pelo automatismo das leis do mercado e a eficácia foi deixada de lado pelas atitudes
reativas e imediatas – sem a proatividade cooperativa e mediativa que geram evolução sólida.
Como o dinheiro é apenas uma energia que pode ser direcionada para qualquer foco, facilmente
poderá ser usado para reverter essa situação crítica e alarmante que está se afigurando para o
nosso futuro. Porém, para que isso aconteça, é necessário que uma quantidade significativa de
pessoas passe por uma mudança de paradigmas, libertando-se das duas rodas viciosas e
assimétricas que mantêm a engrenagem do atual capitalismo utilitarista em movimento. A roda
maior é representada pela maioria das pessoas, mantendo-se vivas num contínuo circular entre
consumo, dívidas e trabalho, ficando enredadas e, conseqüentemente, alienadas nesta teia. A
roda menor, por sua vez, é representada por um pequeno número de pessoas, que vem diminuindo
gradativamente, igualmente aprisionadas no continuum circular entre poder, lucro e acúmulo.
Sendo que, no eixo desta engrenagem está a tentativa iludida da negação do medo e da angústia,
temáticas inerentes e imanentes em todos os seres humanos.
Por causa da angústia somos invadidos pelos temores da solidão, do receio da morte, do medo
da liberdade e da falta de sentido existencial. Para quem ainda não conquistou o autoconhecimento,
esses medos produzem reações defensivas caracterizadas pela contínua obrigação de se sentir
pertencente, necessário, importante, produtivo, rico, saudável, acumulando posses e muitos
deleites. Essas “obrigações”, por sua vez, são responsáveis por uma infinita quantidade de
dependências, abusos e compulsões. Entre elas os desejos de poder, de acúmulo, de consumo,
associados à busca de prazer imediato, que acabam dando um alívio transitório à angústia,
apesar de alienar e manter as pessoas mais aprisionadas às rodas viciosas que fomentam o
consumo e a violência. Porque, estar consumindo é quase sinônimo de estar pertencente ao
contexto social. Além disso, estar devendo é um bom mecanismo de alienação, ou seja, de fazer
com que as pessoas entrem numa roda produtiva e de consumo do desnecessário sem pensarem
no sentido e no significado da vida. Com isso, temporariamente elas ficam livres da presença
consciente da angústia existencial, infelizmente ou felizmente, até que um sintoma físico e ou
psíquico apareça.
Todo indivíduo que conseguir sair das rodas, além de transgredir o sistema, poderá repensar o
sentido e o significado da sua existência, enfrentando o medo, aliviando sua angústia existencial,
diminuindo seu consumo, reaproveitando e reciclando tudo o que for possível. Atividades
absolutamente necessárias para que o futuro da humanidade seja viável, apesar de deixar todas
as atuais estruturas capitalistas absolutamente assustadas, pois todo planejamento delas está
calcado no crescimento continuado. De qualquer modo, com ou sem sofrimento, acredito que a
civilização irá encontrar um novo modelo que redistribuirá a riqueza de forma igual e includente,
restaurando tanto a cura quanto sacralização e o encantamento do mundo. Ressaltando que
cura é sinônimo de integridade e de consistência, ou seja, entusiasmo, sentido e significado
existencial.
O ego, que se forma a partir da ativação do complexo de diferenciação da consciência, é um
arquétipo muito identificado com o corpo e com a persona - que é o conjunto de personagens
usadas nas várias relações da vida. Por isso, Jung afirma que o ego é uma espécie de gestor da
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consciência que, apesar de não representar a sua totalidade, ele está no centro e na periferia
dela. No seu contraponto, o inconsciente, também existe um arquétipo gestor que é a sombra e
como ela transita livremente no inconsciente, é por meio dela que podemos adquirir consciência
da existência da nossa alma – psique; dos nossos contrapontos sexuais - anima ou animus,
dependendo da estrutura corporal de gênero; do self – que é o complexo central e que pode nos
remeterão si - mesmo, ou Self; além de todo conteúdo reprimido acumulado desde a nossa
concepção que é o nosso inconsciente pessoal, e de toda história evolutiva da vida senciente,
incluindo a da humanidade, presente em no inconsciente coletivo.
Por isso, quem não está rendido conscientemente ao processo de individuação, geralmente
por estar tomado por algum complexo afetivo, necessita começar a perceber sua sombra, para
poder diligentemente se entregar para seu caminho de integração/individuação, adquirindo
sentido e significado existencial. Porém, como nosso ego consciência, identificado com o corpo
e com a persona, geralmente fica paralisado tanto nas queixas e temáticas repetitivas quanto
nas demandas mais arcaicas e instintivas do sobreviver, crescer e perpetuar – fome, segurança
e sexo; não conseguimos perceber e nos orientarmos pelo processo de individuação que,
geralmente, se manifesta nos sonhos, nos eventos de sincronicidade e até nos sintomas – que
são feridas por onde atravessam os deuses e toda potencialidade existencial.
Para as pessoas que ainda não foram acometidas por algum tipo de sintoma: físico, emocional,
psíquico, familiar, profissional, social ou espiritual, e não tem consciência do seu estado de
dormência apática e de aprisionamento em uma das duas rodas, resta-nos apenas aguardar.
Pois o chamado, mais cedo ou mais tarde, acaba surgindo e, a meu ver, a maior missão de
quem já conseguiu um pouco do autoconhecimento é o de promover e divulgar esse caminho
para as demais pessoas. Enquanto isso, elas continuarão consumindo, inclusive os livros de
auto-ajuda.
Creio que, para revertermos essa situação, a primeira coisa a se fazer é o caminho da
interioridade, acompanhado das reflexões existenciais em busca de sentido e de significado
para a vida. Esse caminho não é tão fácil assim, ele requer perseverança, diligencia, silêncio e
quietude. As pessoas, por estarem acostumadas com a tagarelice dos negócios cotidianos,
ficam muito incomodadas com esse caminho do autoconhecimento, pejorativamente chamandoo de ócio. E, por isso mesmo, negam-no veementemente transformando a própria vida em um
contínuo negócio – negação do ócio. A conseqüência disso é o aumento do medo, da insegurança
e da “roda” viciosa do acúmulo, da dívida ou do ganho. Mesmo tendo o conhecimento de que a
criatividade está no ócio, muitas pessoas acabam fugindo da descoberta desse potencial
imanente fanatizando-se em religiões ou rituais, caminho tão alienante quanto o dos cientistas
que ficam obtusos e iludidos no poder das especializações.
Por isso, muitas pessoas não conseguem reverter a “roda”, apesar de comprarem bacias de
livros de auto-ajuda que, na maioria das vezes, ajudam apenas a seus editores e autores,
porque o caminho do autoconhecimento, apesar de solitário, geralmente requer a ajuda de um
mestre. Então, quem busca o autoconhecimento precisa da ajuda de pessoas sábias, que já
conquistaram esse autoconhecimento. E quem é esse sábio mestre? Geralmente é aquela
pessoa que, apesar das dificuldades inerentes à vida, demonstra felicidade, entusiasmo e prazer
em servir ao próximo com seus talentos. Pode ser um guia espiritual, um analista, ou alguma
pessoa em que podemos estabelecer uma relação empática, sincera e de confiança, para
questionarmos o sentido e o significado da nossa existência, na busca de servir nossos talentos
aos próximos e ao mundo, saindo da “roda” viciosa para a virtuosa.
É importante deixar claro que a realização do mais alto fim existencial não é tão fácil de ser
reconhecida e, mesmo quando a pessoa encontra seu sentido vocacional de servidão, na maioria
das vezes o meio não é muito favorável. Ou seja, equivale a um caminho iniciático que sempre
vai exigir do adepto o equivalente à jornada do herói. Lembrando que o herói é aquele que, na
maioria das vezes, sacrifica-se para atender a demanda da maioria, imbuído da assepsia literal
do sacro-ofício. Também é expressivo deixarmos claro que ninguém transforma ninguém, mas
que ninguém se transforma sozinho e é nesse sentido que se faz necessário um encontro
amoroso de transformação. Porque o amor verdadeiro, por não querer transformar os outros
transforma, por dar liberdade e alegria, condições criativas para que as demandas evolutivas
de cada indivíduo possam acontecer.
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Nesse sentido, a meu ver, a violência tanto pode ser uma maneira enantiodromica, de despertar
as pessoas dessa inércia de automatismo e consumo quanto um mecanismo de manutenção
desse mecanismo, em função da cultura do medo e da necessidade de segurança e proteção da
bio-sobrevivência. Por isso, entendo que os sintomas são denúncias simbólicas que evidenciam
os excessos da presença ou da ausência de saúde, de dinheiro, ou de sagrado e podem despertar
as pessoas para a salvação ou para a destruição.
Referencias Bibliográficas:
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ILLICH, Ivan. Expropriação da saúde: nemesis da medicina, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1975.
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LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio, Lisboa, Relógio D’Agua, 1989.
MAGALDI FILHO, Waldemar. Dinheiro, saúde e sagrado, São Paulo, Edicta, 2006.
OTTO, Rudolf. O sagrado, São Paulo, Metodista, 1985.
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SANFORD, John A. Mal, o lado sombrio da realidade, São Paulo, Paulus, 1988.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo, 14a Ed. São Paulo, Biblioteca Pioneira
de Ciências Sociais, 1999.
WILBER, Ken. Uma teoria sobre tudo: uma visão integral para os negócios, a política, a ciência e
a espiritualidade, São Paulo, Cultrix, 2003.
ZIMMER, Heinrich. A conquista psicológica do mal, São Paulo, Palas Athena, 1988.
ZOJA, Luigi. A história da arrogância, psicologia e limites do desenvolvimento humano, São Paulo,
Axis Mundi, 2000.
ZWEIG, Connie, e ABRAMS, Jeremiah (org.), Ao encontro da sombra, São Paulo, Cultrix, 1994.
Instituicao
FACIS - Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo
Sintese Curricular
WALDEMAR MAGALDI FILHO, Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática
e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”.
Por ter atuado tanto no meio corporativo de empresas multinacionais quanto no comércio varejista,
tem uma vasta experiência nas demandas do mercado econômico. Atualmente, atende clientes
em seu consultório, apresenta palestras em empresas, coordena e ministra aulas nos cursos de
especialização em Psicologia Junguiana; Psicossomática; e Dependências, Abusos e Compulsões
da FACIS - Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo (www.facis.edu.br).
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Transformações do conflito agressivo: perspectivas pessoal e política – possibilidades e
limites
University of Essex - Reino Unido
Andrew Samuels
Andrew Samuels apresentará algumas idéias imaginativas que pretendem ajudar nas lutas políticas
e psicológicas para a paz, harmonia e justiça. Precisamos urgentemente de novas visões de
conflito. Samuels introduz alguns pensamentos provocativos sobre endereçar nossa hostilidade
à diferença. Do Islã, talvez surpreendentemente, podemos aprender muito sobre os aspectos
mais profundos do conflito. Da psicoterapia, novas idéias sobre o papel do pai em relação à
agressão são igualmente úteis. Mas sabemos que muitos conflitos políticos derivam da
desigualdade econômica. Apesar de muitas pessoas estarem desconfortáveis com as massivas
injustiças econômicas e sociais que nós criamos, parece que estamos sem poder para fazer
algo. Isso não sugere que a desigualdade econômica é um problema psicológico, um complexo
cultural? Ainda há muito mais que a desigualdade no conflito global. Temos de considerar as
dificuldades extremas que as nações no “Ocidente” têm de sair de sua circunscrição cultural. Se
fizéssemos isso, então tais nações poderosas seriam capazes de serem empáticas e de se
relacionarem mais efetivamente com as perspectivas de outras pessoas e nações. Todos os
lados devem ganhar algo. Em suma, a apresentação em questão fala sobre conflito, desigualdade
e a visão ocidental limitada
TRANSFORMATIONS OF AGGRESSIVE CONFLICT: PERSONAL AND POLITICAL
PERSPECTIVES – POSSIBILITIES AND LIMITATIONS
I MY PERSONAL STORY
ANDREW SAMUELS
II POLITICS AND PSYCHOTHERAPY AND THE JUNGIAN CONTRIBUTION
III THE LIMITS OF MY CONTRIBUTION COMING FROM BRITAIN
British situation compared to Brazilian situation – the rise of knife crime, ‘hoodies’ etc.
IV TRANSFORMATIONS OF AGGRESSION
—aggression cannot be eliminated only managed or transformed
—personal and political are intertwined
aggression defined
—how to decide what is mindless destructiveness and what is justifiable self-assertion
—can it be managed and to what degree?
—is it primary in humans or secondary, a result of frustration?
—aggression and gender
—aggression and ethnicity
—psychoanalytic ideas about aggression as a means of making contact
—aggression as inherent to consciousness itself
FOR GS
AGGRESSION
How can we evaluate aggression objectively, deciding what is mindless destructiveness and what
is justifiable self-assertion? Who says when a war is just and when it is not. Can aggression ever
be managed and to what degree? Is aggression biologically primary in humans or secondary,
something social and psychological, a result of frustration and alienation?
We know how relative a matter aggression is. You see this in terms of gender all the time. But are
73
women really less aggressive than men?
We also see immense ethnic diversity in connection with aggression – reviewing the history of
Zionism and of the State of Israel, one can see how globally problematic is the question of aggressive
Jews.
V MASCULINITY AND THE FATHER
Men under scrutiny as never before.
Can men change?
—aspirations are changing
Are men powerful?
—vulnerable groups
Do men hate women?
—fear of the mother and the feminine
—hate or ambivalence?
New approaches to the father including lone parents
—the problematic of discipline – do we have to think that way?
—need approach hat stresses his positive body I didn’t understand it. —in erotic areas
—in aggressive areas
—the theory of aggressive playback and how it works
—why lone parent families need not be a disaster
FOR GS
MASCULINITY AND THE FATHER
Are men powerful? In a way, they are. They own things, they control women and children, they
earn more for the same work, they can fight and protect others. But is this the whole picture?
Psychoanalysis is fond of pointing out male fear of the mother, of the feminine, the abject swamp
which they must never slip into. Male power is seen as a reaction to and a denial of this fear. This
is not wrong but there’s more to say.
There are several vulnerable groups of men: men of colour, gay men, ill men, prisoners, soldiers,
physically challenged, poor men, unemployed men. We need to hold this in a balance with obvious
male power.
It’s worth asking what would happen if men used their power to help others with less power? What
if more men as a group spoke out against the bonus culture, in favour of a fairer distribution of
wealth, against the use of military action?
How could such a scene-shifting speak-out happen? What can we do? What do we need?
Well, first we need a positive account of the father that does not stupidly build him up to an unrealistic
degree. An account that makes it much more difficult for our old-style political leaders to masquerade
as the only kind of fathers that there could be. An account that does not dwell on the malevolent
power of the father’s body but on its nurturing and affirming warmth. Not on his holding the mother
who holds the children but on his holding of the children himself. The stay at home weekend father.
The sensitive and affirming father, the playful father, the wounded and unhappy father, not the
punitive, stern self-contained father. Not the commander-in-chief father. We need a story of the
father in which emotional security is as important as physical security. That would be a useful
beginning to an equally new and analogous story about political leadership.
Not all paternal aggression is harmful, though, and that there is a role for fathers in transforming
the aggression of their children from mindless violence into healthy roaring self-assertion.
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If there is no father present and when lone parents who are women, there may be very unexpected
outcomes. Lone mothers can understand what fathers do that is good and useful, and we know
that they work out ways of doing that themselves. Maybe not in the same way but they can do it.
Even when it comes to questions of discipline and authority, lone mothers can do it – there is a
secret hardness to the female body.
VI ECONOMIC INEQUALITY
—the move from economic sadism to relational economics
—main cause of aggression within and between nations
—economic theory and human nature: altruism versus self-interest
—experiential exercise:
—what are your memories of money issues in your childhood? Abundance or scarcity?
—how did your family handle money? Equably or vindictively?
—did it make a difference what sex a person was when it came to money questions in your family?
—was money talked about much at home? Or was it a taboo topic?
—when did you become aware of what we call economic inequality? How have your feelings
about economic inequality changed, if at all?
—have you done better than your parents?
—how do you feel about your answer to that last question?
—how would you say you handle money in your current relationship? On a scale of 1-10 where 1
is awful and hellish and 10 is well and in a satisfying manner.
—have you ever had fantasies about having a lot of money? What are they?
—the whole theme of ECONOMIC SADISM (see below)
—sacrifice theme (see below)
FOR GS
My proposition is that the main cause of the extreme levels of aggressive conflict in the world
today is economic injustice. We seem happy enough with this proposition when it is applied to
violent gangs of teenagers in inner cities. Today’s Western polities function just like gangs.
Like everyone, I have my own passionate views about all aspects of economics ranging from
doubts about the viability and fairness of the principle of wealth inheritance to the perception that
market economics works a bit like victor’s justice – if you’re making it, you’re liking it. If you’re in
rural Africa, you probably aren’t liking it very much.
We need to be personal about economics – it’s the psychology stupid!
Differing economic systems reflect different ideas about human nature. Altruism versus self-interest,
co-operation versus the survival of the fittest. But responses to the financial crisis made me realise
that we do not have much of a handle on how people really experience economic life deep within
themselves.
So I won’t be talking about economics for the next few minutes like an intelligent journalist or a
social scientist – more like a therapist or psychoanalyst and setting the scene by asking you to
work in silence with me as I guide you through some explorations into your economic psyche.
EXPERIENTIAL EXERCISE
—what are your memories of money issues in your childhood? Abundance or scarcity?
—how did your family handle money? Equably or vindictively?
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—did it make a difference what sex a person was when it came to money questions in your family?
—was money talked about much at home?Or was it a taboo topic?
—when did you become aware of what we call economic inequality? How have your feelings
about economic inequality changed, if at all?
—have you done better than your parents?
—how do you feel about your answer to that last question?
—how would you say you handle money in your current relationship? On a scale of 1-10 where 1
is awful and hellish and 10 is well and in a satisfying manner.
—have you ever had fantasies about having a lot of money? What are they?
We have to confront and confess our economic sadism. At workshops on ‘the economic psyche’,
I ask participants to fantasize about the most shameful, sadistic, controlling, horrible thing you
would do if you had a very large sum of money at your disposal – trillions of dollars. A professor of
philosophy at one workshop in Pittsburgh said, ‘Well, if I had unlimited funds, I’d buy thousands of
acres of skiing land at Aspen and fence it off so no-one could use it.’ I did not think this was very
sadistic, to say the least. Then he blurted out: ‘And I’d hire the US Marine Corps to machine-gun
anyone who came near’. He burst into tears and told us about his tycoon father and the relationship
they had, and other personal information.
Shameful economic fantasy tells us how even people of progressive views are deeply invested in
a system of economic injustice. If we want to change this system, we need to recognize what we
are up against. It’s about owning our own bit of the system, a piece of shadow from which we can
all too glibly detach ourselves. The lesson from this is that, as with heroic leadership, economic
sadism is not something you can escape just because you want to leap out of the pit.
I would like to be optimistic about the prospects for economic justice but, without a change in
awareness and the backing of many groups – including the therapists – for a new approach to
economics, it will be hard to achieve change. What therapists can contribute is the idea that
economic injustice and economic inequality is bad for your mental health, bad for the soul, bad for
the spirit.
The sooner we admit our economic crimes to others, to other peoples, creeds, genders, species,
the better and lighter the human future will be. The more even the vaunted middle classes deny
our economic sadism, the greater will be ‘the horrors and the vengeances of time that wait silently
in the wings of the bloody dramas of our future’ (in Ben Okri’s words). As the Baal Shem Tov put it,
‘ Sinners are mirrors. When we see faults in them, we must realise they only reflect evil in us’.
Excessive disparities of wealth correlate internationally with levels of illness and mortality. It is
better from the point of view of quality of life to live in a less economically polarised country than in
a much richer one that is very polarised.
I think the valuing of equality, what I call democratic spirituality, is not dead in polities like America
or Britain. And I am asking if the same might be true in Brazil?
But the time is running out. It is now time for us to call for an economic sacrifice on the part of the
part of the middle classes in countries where there are millions below the poverty line. Hitting the
rich is hard to do, as we know. But I am talking about ordinary middle-class folk. And if this idea of
economic sacrifice fits with what other people are saying about sustainability and global warming,
so much the better.
I’ll conclude this section with a few ideas about sacrifice, with economics in mind. Sacrifice is a
widespread psychological and historical theme. Sacrifice lies at the heart of the Abrahamic religions
(the aborted sacrifice of Isaac) but is much, much older as a propitiation of the Gods. Asceticism
has a long, long cultural history as does martyrdom, including that of suicide bombers.
76
In Jungian psychology, we think of the sacrifice of the ego for the flowering of the wider personality
in individuation. In art and religion, we contemplate the sacrifice of autonomy and control to
something experienced as ‘other’, whether inside or outside the self.
VI AN ISLAMIC APPROACH TO AGGRESSION
—Ta’Aruf
—Islamic principle (Qur’an 49:13): ‘Oh mankind, we have created of you male and female and
have made you peoples and tribes that you might come to know one another.
—this gives a purpose and deeper understanding to aggression
—aggression as a means of making contact and knowing the other and hence knowing the self
—connect back to psychoanalysis and aggression as contact
FOR GS
TA’ARUF
I have been involved in much interfaith dialogue work recently because I believe there is a faith
background to much of the aggressive conflict we see in the Middle East. In these dialogue groups,
I encountered the Qur’anic idea of Ta’Aruf: ‘Oh Humanity, we have created of you male and female,
and have made you peoples and tribes, that you might come to know one another’ (49:13).
I find this a brilliantly inspiring take on difference and the aggressive conflict that an encounter with
difference brings. In this reading of things, a point or purpose (telos) is given to difference. If we
want to know another, that other has to be different from ourselves. But that brings in the question
of aggressive conflict.
But there’s more to this than knowing the other. Full engagement and dialogue with an ‘other’
benefits the self. As this Qur’anic principle of Ta’Aruf has it, all kinds of difference – gender, national,
religious – have the hidden potential to enable people to get to know themselves better and more
deeply.
Here we find a fascinating congruence between Islamic social thought and psychoanalytic ideas
about the interconnectedness of hate and love and how an aggressive act may also reflect a great
desire for contact and touch.
Islam and psychoanalysis both understand that conflict and aggression will arise, whether we like
it or not. But conflict and aggression are also part of relationality and recognition, that’s what I’m
saying. So it matters what our attitude to aggressive conflict is. Far from being abstract and of little
political relevance, this is the key political issue of our times.
The note on which I want to conclude this section of the paper is a few lines from Wilfred Owen’s
great war poem ‘The Parable of the Old Man and the Young’ which offers a completely different
ending to the story of Abraham and Isaac that we could take as a profound warning of a terrible
future. We pick up the narrative at the point the Angel of the Lord appears:
…
Veja! Um anjo o chamou lá do céu;
Dizendo, não pouse tua mão sobre o rapaz,
Nem faça nada a ele, teu filho,
Repare! Pego numa moita pelos seus chifres,
Um carneiro. Ofereça ao invés o carneiro do orgulho.
Mas o homem velho não o faria, mas assassinou seu filho,
E metade das sementes da Europa, uma por uma.
77
Lo! an Angel called him out of heaven,
Saying, Lay not they hand upon the lad,
Neither do anything to him, thy son.
Behold! Caught in a thicket by its horns,
A Ram. Offer the Ram of Pride instead.
But the old man would not so, but slew his son,
And half the seed of Europe, one by one.
VII PROSPECTS FOR POLITICAL TRANSFORMATION AND THE PRACTICE OF
RESPONSIBILITY
I will improvise this section but see below
FOR GS
I hope we can imagine a move out of the social and political conditions in which we find ourselves.
For if we cannot, then there will be no personal, growth, change, transformation. It means that
every single client has to have a little bit of an utopic vision.
The time has come to break some boundaries – to learn how to transit better the divides we have
been told exist between spirituality and politics, between the inner world and the outer world,
between being and doing, and even between what people still call ‘feminine’ approaches to life
and ‘masculine’ approaches to life. Working these forbidden zones, and doing it in the company of
a growing number of people world-wide, shows that it is legitimate and necessary to reframe the
relationship of the public and the private, the political and the personal, extraversion and introversion,
politics and psychology - seeking a new connection between the fantasies of the political world
and the politics of the fantasy world. As far as I can remember, part of this ideas are in your article
“If not now, when?”, am I right? I’ll read it again. YES BUT REMEMEBR THESE ARE EXTRACTS
FOR YOU TO READ AHAD OF TIME TO UNDERSTAND BETTER AND HELP WITH
TRANSLATION
If we are going to transform politics, we will have to take full responsibility for the act. We may need
less mature reflection and more impulsive and passionate action, more doing and less being.
Don’t just sit there.... And if not now, when?
What does it mean, to take responsibility, to take political responsibility? What does the word
‘responsibility’ mean? The roots lie in spondere, to promise or pledge, so responsibility is both a
relational matter and an ethical matter but also part of some kind of foundational bargain humans
make with each other. Responsibility undos Western ego-ism.
If one tries to practice responsibility from too perfect a self-state, it won’t work, will it? Because the
only possible way to approach and engage with a broken and fractured world - that one is a part
of – is as a broken and fractured person. That’s why liberation theologians such as Leonardo Boff
challenged Marx’s condemnation of the lumpenproletariat or the peasants as politically unpromising
or useless. ‘The stone that the builders rejected has become the cornerstone of the temple’.
Actually, there are buried sources of political wisdom in everyone. Here I am thinking mainly of
poets, mystics, introverts, impractical and poorly informed people, of those who say they hate
politics.
People like us here today have too much information and no clear direction; too many facts and
not enough faith; too much confusion and crave clear visions; too many fears and not enough
light’.
Getting back to responsibility. What does a politically responsible attitude or ethos look like? There’s
a potential problem of elitism and disengagement if we live in this conference space as if we were
78
not part of the mess etc etc. The analysts here know that to regard oneself as outside the mess
would be incompetent in the clinical context and it is worse than that in the political context.
In 1984, George Orwell’s hero Winston Smith writes in his diary that ‘if there is hope it lies in the
proles’. Similarly, alchemy paid much attention to the base materials, the prima materia of
uninteresting, everyday salts and elements that went into the vessel or vas – the work or opus
might transform them into something wonderful, gold or the lapis – but you didn’t need posh or
expensive stuff to start with.
If we are going to try to resacralize politics, to give new meaning to the political, to recuperate all
that is benevolent in the political drive of humanity, we cannot, must not do it from on high. We
have to commit ourselves to clearing the dead wood and stale thinking and try to think anew,
preparing ourselves for a new atmosphere and a fuller future.
What about hope? There can be none if idealism is rejected out of hand. I condemn so-called
‘realistic’ people; I cannot stand them. Maybe I shouldn’t condemn, merely note that their realism
is just a special version of idealism, their well-trained lack of sentiment a secret romanticism, their
nihilism just as personally stabilizing as any political ideology.
The viewpoints advocated by me at this conference may never, ever be applied to political cultures,
nor make one iota of apparent difference to the condition of the world. But, before we pack up in
despair and go home, please let’s recall one more time that the official politicians and the
governments of the world, with all possible resources at their disposal, have not done such a
terrific job.
All of this brings us back to the whole question of ‘good-enoughnness’ - but now in the form of the
good-enough citizen – a political subject who can accept his or her own failures. This is so important
because anticipated shame at failure is what destroys the impulse and the capacity for action.
A lot has been written about apathy and a loss of hope and belief in politics. But there is a sense in
which the problem is too much passion, too many aspirations, a belief in perfect solutions - leading,
inevitably, to disappointment and withdrawal. What looks like apathy is actually a pervasive sense
of powerlessness, often coupled with intense self-criticism. Feeling that we cannot achieve
everything we know needs to be done, we give up on politics, retreat into our private lives (leaving
our political aspirations and values to slumber) and do nothing. We have been brainwashed by the
powerful into feeling that we have neither the potential nor the skills to solve the daunting problems
of poverty, injustice, despoliation of the environment.
But if we can accept that political perfection is unattainable, if we ask of ourselves only that we be
good-enough citizens (just as we can only hope for good-enough leaders), we may be freed from
the sense of despair that paralyses us at present, so that our political hopes and impulses can
reawaken.
We need to imagine a better politics because it is almost impossible to imagine a worse. On that
journey, we will have to own our infatuation with heroic leaders, and try to end the abusive relationship
we have with them by making it possible for good-enough leaders to come on stream. These new
figures will have quite different attitudes to what their role as national fathers or parents might be.
The move from economic sadism to relational economics can directly affect the level of aggressive
political conflict in our societies and in the world. Then the Islamic idea of Ta’Aruf may teach us
fresh ways to manage such conflict. Diversity has been visited upon us for benevolent reasons:
sure, diversity often leads to conflict - but conflict often masks the deepest desire to get in touch
and communicate.
I asked how far one can get out of one’s national box and suggested that international empathy
79
offered a way to address the disabling global cultural inequalities with which we are faced.
Finally, I said that no transformation or resacralization of politics will happen outside of the field of
personal responsibility. But we have to exercise such responsibility from inside the cesspit not
from outside it. We need to be forgiving towards ourselves as we will fail to honour commitments
and fail to deliver on promises. Above all, we cannot and should not seek to me more than goodenough citizens. But anyone and everyone can re-imagine the world. We are each one of us cocreators and saviours of the world we live in. We should begin our work now, here, among one
another, and also in solitude.
I will conclude with a poem, a holocaust poem actually, untitled, written in Polish by Jerzy Ficowsky
and translated by Keith Bosley.
Eu não consegui salvar
Uma única vida
Eu não sabia como parar
Uma única bala
E vagueio por entre cemitérios
Que não estão lá.
Procuro por palavras
Que não estão lá.
Corro
Para ajudar onde ninguém chamou
Para resgatar após o ocorrido
Quero estar em tempo
Mesmo se estou atrasado demais
I did not manage to save
a single life
I did not know how to stop
a single bullet
And I wander round cemeteries
which are not there
I look for words
which are not there
I run
to help where no one called
to rescue after the event
I want to be on time
even if I am too late
80
Instituicao
University of Essex
SinteseCurricular
ANDREW SAMUELS é internacionalmente conhecido como uma das maiores autoridades em
problemas políticos, sociais e culturais do ponto de vista psicológico e psicoterápico. Em
complementação ao seu trabalho clínico e acadêmico, ele também atua internacionalmente
como consultor político. É professor de Psicologia Analítica e Estudos Junguianos e PósJunguianos na University of Essex, Reino Unido. É também professor visitante de psicanálise
em Universidades de Nova York, Londres e Roehampton. Fundador do grupo Psicoterapeutas
e Conselheiros pela Responsabilidade Social, co-fundador do grupo Judeus pela Justiça para
os Palestinos, ativo no cenário inter-religioso na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Freqüentemente visita o Brasil, preferindo palestras e realizando consultorias. É autor dos
livros: Jung e Os Pós-Jungiuianos (1985); O Pai (1985); Dicionário Crítico de Analise Junguiana
(1986); A Psique Plural (1989); Psicopatologia: Perspectivas Junguianas Contemporâneas
(1991); A Psique Política (1993); e A Política no Divã (2001).
81
Cultura Hip Hop: A Violência Simbólica e Orgulho Negro
Guilherme Scandiucci
Objetivos: refletir com o grupo sobre: 1) o tema da violência racial no Brasil; 2) as “respostas” e a
expressão da cultura hip hop frente a este quadro; 3) a “violência” sofrida pelos psicólogos em
nossa sociedade atual. Desta forma, esta oficina pretende criar um espaço de reflexão sobre
algo muito presente na sociedade brasileira (racismo, violência policial, violência simbólica oferecida
pelo hip hop). Além disso, a mesma pretende também sensibilizar os psicólogos presentes para
uma espécie de violência que nós também sofremos enquanto categoria (desvalorização de
nosso trabalho, preconceitos que sofremos de outros profissionais). O grupo será finalmente
convidado a expressar os sentimentos e pensamentos que atravessam seus membros, através
de uma letra de rap, a partir de suas experiências na vida profissional.
Estrutura da oficina
•
Primeiro momento (10-15 min): “aquecimento”. Escutar duas músicas rap acompanhando
as letras, com conteúdos diferentes, porém ligados ao tema da violência policial e do racismo.
•
Segundo momento (20 min): discussão/sensibilização (grupo todo). Debate em torno das
músicas, o que chama a atenção, o que têm a ver com violência.
•
Terceiro momento (45-50 min): exposição teórica e debate (grupo todo). Algumas idéias
relacionadas ao movimento hip hop, negritude e racismo no Brasil, a partir das pesquisadas
realizadas pelo coordenador da oficina. O grupo poderá interagir ao longo da exposição,
perguntando ou fazendo comentários. Não se trata de uma exposição formal.
Resumo do que será abordado:
- racismo e identidade negra: temas caros a uma sociedade multi-étnica como a nossa. Psicologia
analítica tem dado pouca importância ao tema.
- os negros foram negligenciados por muito tempo na história do Brasil, e ainda são de certa
forma. Escravidão – navios negreiros horripilantes – muitos morriam no caminho (calcula-se em
10%).
- o fim oficial da escravidão não trouxe uma situação muito mais confortável ao povo negro. Não
houve políticas de reinserção social ou de emprego. Ainda hoje as estatísticas mostram que eles
têm os piores salários e estudam menos em média que os brancos. São vítimas preferenciais da
violência policial e do preconceito racial.
- essa situação criou uma ferida arquetípica em nosso país. Uma espécie de complexo, em
termos junguianos, ligado a este tipo de discriminação racial, pode ser encontrado em nossa
psique coletiva.
- hip hop: começou nos EUA nos anos 1970, e hoje está em todo o planeta. Em São Paulo
aparece com muita força entre os jovens da periferia. Trata frequentemente de temas ligados ao
racismo.
- quatro elementos. Alguns falam em 5. criação a partir de brigas de gangues em NY. Chegou no
Brasil em meados dos anos 80.
- Os elementos centrais do rap, foram interpretados por alguns acadêmicos como reelaborações
de práticas culturais de origens africanas, ligadas à tradição oral e à música. Questões relativas
à etnicidade estavam bastante presentes nas letras de rap feitas por jovens paulistanos a partir
do início dos anos 90. Buscava-se compreender a história da população negra no país, resgatar
símbolos internacionalizados de origem africana e afro-americanos, que passam a ser interpretados
como parte de uma história comum às pessoas da diáspora negra.
- o hip hop se apresenta, politicamente, como sistema orientador através do qual os jovens
adquirem “autoconhecimento” em relação ao processo social e promovem intervenções práticas
no plano mais imediato. O rap surge como o principal registro do apartheid social. Ao se inspirar
numa produção cultural norte-americana, os rappers de São Paulo promoveram redefinições à
luz do contexto local. Começam a se pensar como parte de uma história comum marcada por
exclusões e conflitos que aproximam os negro-descendentes de diferentes contextos geográficos
da diáspora. Puderam então elaborar a crítica à democracia racial, nos seus próprios termos.
82
- JUNG SOBRE OS NEGROS, ÁFRICA E O POVO “PRIMITIVO”
- Jung escreveu sobre o povo negro e sobre a África (viagem nos anos 1920). Diversas vezes ele
fala dos povos primitivos, incluindo os africanos aí.
- MSR: Jung fala do medo que sentiu na África, de “tornar-se negro sob a pele”. A consciência
européia ameaçada de ser tomada por um violento assalto da psique inconsciente.
- Jung se impressiona com os estados de possessão que observou.
- povos primitivos não têm uma mente consciente desenvolvida como a dos europeus. Suas
mentes estão mais próximas do inconsciente (coletivo). Idéias de Levy-Brühl (participation
mystique).
- separação que o homem moderno sofreu da natureza e de certa forma da alma.
- Michael Hill (Spring 61): Jung inventou um “outro” que é mais simples e puro. (...) Em 1925 Jung
alucinou todo um continente de “outros” instintuais e o chamou de “África”.
- David Tacey: há 3 estágios para as idéias junguianas sobre “fenômenos não-racionais”. 1)
literalismo pré-moderno e supernaturalismo. 2) descrença e ceticismo modernos. 3) reapropriação
pós-racional das forças ‘ctônicas’ (do solo, ou dos espíritos do subterrâneo).
- o rap inspira certas possessões de “espíritos”. A energia criada no ambiente. Sister Souljah: “a
música rap me inspirou porque eu sei que quando Chuck D te diz para “trazer o barulho”, ele está
te dizendo que é duro. E quando você ouve a batida tribal e os tambores, eles são os mesmos do
passado africano que guiava a comunidade para a guerra. As batidas do tambor são só mais
rápidas. E quando seus pés estão pulando, dançando... é o espírito tentando escapar do enredo.
E quando você sente que as crianças ficaram loucas, se você não sente isso, e quando você
olha as danças você não o vê, e quando você ouve a música e você não ouve um chamado,
entoa você perdeu o jam (vivacidade)”.
- comunicação entre DJ e MC.
- idéias parecem místicas, mas estão no plano de intuições. Tacey: “As tribos primitivas” são
personificações de pensamentos intuitivos de Jung, e ele fica frustrado por seu primitivismo, já
que isso o priva de se comunicar com a audiência crítica e científica. Para muitos dos seguidores
de Jung, é o poder de suas intuições que se mantém útil e sugestivo, mesmo que ele não consiga
expressá-las de forma convincente”.
- para Tacey, Jung frequentemente desejava se distanciar do jeito primitivo que ele tentava
compreender. Adams: “ele decidiu manter-se branco ao invés de tornar-se negro” (manter a
autoridade). Os pós-junguianos têm mais liberdade para tornarem-se negros nesse sentido.
- outro problema da visão de Jung: apesar do inconsicente coletivo ser o mesmo, compartilhado
por todos os homens, a consciência é fruto de uma evolução histórica. Algo obsoleto e em conflito
com o pensamento pós-estruturalista (antropologia de Geertz, por exemplo. Narração de uma
história).
- Adams: Lévi-Strauss chama este tipo de idéia de falso evolucionismo, na qual as sociedade
humanas são tratadas como fases ou estágios numa linha única de desenvolvimento, começando
do mesmo ponto e terminando no mesmo fim. Na visão de Lévi-Strauss, a diferença entre
sociedades industriais e as outras é a capacidade de acumular conhecimento sistematicamente,
o que resulta em progresso tecnológico. O mais importante: isso ocorre por oportunidade histórica
ou acaso.
- Adams lembra que a argumentação de Jung nega uma diferença natural ou racial entre as
pessoas, porque as profundezas da psique (arquétipos) são as mesmas. De todo jeito, a
consciência continua sendo a diferença, entre “raças” inclusive.
- hoje não podemos mais falar em raças.
- crítica de Dalal: capacidade de pensar do africano é inferior. Criança inglesa x criança aborígine
(Jung).
VISÕES PÓS-JUNGUIANAS SOBRE MULTICULTURALISMO
- Samuels: [...] deveríamos reconhecer que, ao lado de suas [referindo-se a Jung] infelizes
excursões à tipologia racial, podemos discernir também as sementes de uma atitude
surpreendentemente moderna e construtiva em relação a raça e etnicidade. Por exemplo, em
1935, Jung argumentou contra a imposição do ‘espírito’ de uma raça sobre outra, referindo-se à
abordagem valorativa eurocêntrica a outras culturas. Aqui e ali nos escritos de Jung, há também
83
respeito e interesse pela evolução de culturas diferentes. Mas está claro que algo está muito
errado com os pensamentos de Jung quando ele vai além das fronteiras da psicologia no que
tem sido nomeado de tipologia racial. Quando o africano de Jung permanece um africano imaginal,
o africano dos sonhos, ou quando Jung estuda mitos africanos, ele tem um pensamento criativo,
contribuição politicamente limitada para o pensamento social. [...] Mas quando Jung generaliza
sobre o caráter africano, e o faz de um ponto de vista unicamente psicológico, ignorando os fatos
econômicos, sociais, políticos e históricos, ele estraga seu próprio trabalho, atraindo as severas
críticas que recebeu.”
- supervalorização da psicologia.
- Adams: psicologia profunda multicultural tem a chance de investigar a “racialidade” do inconsciente
(como sexualidade na psicanálise). Sexo para sexualidade, raça para racialidade. Conseqüências
simbólicas de se ver como parte de um grupo étnico.
- Adams: a cor negra por si só. Ingleses chegam à África no séc. XVI com prévios valores estéticos
e morais negativos para a palavra “negro”. Ser negro era ser sujo, feio, mal, mortal, diabólico.
- Hillman: o senso celeste do branco se estende para além das convenções norte-ocidentais
greco-judaico-cristãs. Na áfrica negra (etnias Bambara, Haussa e Baranga) a cor branca se refere
ao mundo além. Preferência arquetípica pelo branco. Estamos todos na supremacia branca.
- supremacia do branco depende do imaginar oposicionista. Povos negros e brancos não são
hereditariamente opostos. Força arquetípica que faz branquitude imaginar em oposições. Apogeu
disso: séc. XIX. Antes, os europeus (incluindo gregos e romanos) não se consideravam brancos.
- necessidade da oposição foi surgindo. Talvez pela necessidade de se separar claramente as
elites dos colonizados. “o branqueamento do ocidente ocorreu simultaneamente com a
enegrecimento do resto. Este enegrecimento foi armazenado dentro do termo negro muito antes
de qualquer pessoa que falasse inglês tivesse tocado as areias da África ocidental”.
- para Hillman: ir além ou superar a oposição, já que não é necessariamente a natureza do
inconsciente. “não há ponto de vista que não seja inconsciente. Não há luz toda branca, não há
percepção imaculada. Somos todos mulatos da mente”. Ao desistir dos opostos, se vai além da
supremacia branca.
- abertura para uma visão plural, não essencialista. A diferença não necessariamente acarreta
em oposição.
- bell hooks: identidades negras múltiplas, experiências negras variadas. Desafia paradigmas do
imperialismo colonialista que representa a negritude unidimensionalmente, de modo a reforçar e
sustentar a supremacia branca. Não há experiências “autênticas” ou naturais dos negros.
Abandonar noções essencialistas seria um desafio sério ao racismo.
- Hillman sobre a representação de povos negros em sonhos: negros não precisam mais carregar
a sombra sociológica do primitivismo, vitalidade ou inferioridade. (ao estilo von Franz). Nos
afastaríamos de uma pseudo psicologia negra para uma genuína psicologia da sombra, uma
tentativa de restaurar às figuras negras a idéia de uma essência sutil. Figuras negras podem
representar a morte metaforicamente por exemplo, o que a s dignifica para Hillman, pois o reprimido
agora é a morte, e não a sexualidade, a criminalidade, a brutalidade. “penso que seria
arquetipicamente mais correto, e portanto mais psicológico, considerar pessoas negras em sonhos
em termos de suas semelhanças com este contexto subterrâneo”.
- são associações com o negro certamente menos superficiais. Talvez em nosso contexto do
Brasil haja algo ainda a ser trabalhado paralelamente a isso: a imaginação das pessoas brancas
e a representação esperada que as figuras negras tem entre os brancos.
- Gambini coloca que o negro foi a segunda negação no Brasil (após o índio ter sido negado),
tendo como diferença o reconhecimento da força de trabalho, a escravidão, que moveu a economia
do país por um largo período de tempo. Na consciência coletiva, vemos, de acordo com os
autores, o negro como aquele que constituiu junto, mas nunca como aquele que está
profundamente arraigado à nossa identidade. Quando se pensa na constituição do povo brasileiro,
tem-se consciência da presença do negro e da miscigenação, das contribuições dos povos
africanos na música, na culinária, na religião etc., mas trata-se de uma presença em certa medida
superficial de tais elementos culturais. Pois, ao se ressaltar as realizações do brasileiro, a parte
cultivada de nossa alma, não é para os negros que se volta o olhar.
- Afinal, como aponta H. Santos: “Apesar de a cultura negra ser a energia que dá ritmo à vida
84
nacional, considerando ainda a dívida imensa do Brasil para com a África, não se observa uma
equivalência desses pesos na vida e na política. Não é um exagero considerar um escândalo a
ignorância em relação à África. Nesse sentido, a terra-brasilis é um filho demasiadamente ingrato.
A grande maioria dos brasileiros considera o continente africano como um bloco homogêneo:
tudo igual e todos negros”.
- Assim, a dor e o sofrimento causados pela escravidão têm uma função na constituição de nosso
povo e de nossa alma, que ainda não foram completamente expressados. Se o indivíduo em
psicoterapia sofre dores em seu processo constitutivo, ele deve ter consciência dessas dores e
encontrar palavras para expressá-las, para que o processo continue a caminhar. “Só quando
consegue voltar, expressar e entender o que aquela dor lhe causou, é que pode finalmente passar
para outra fase” (GAMBINI). Isso não teria ocorrido no Brasil. O contingente negro não pôde se
expressar completamente; na sociedade escravizadora branca, por seu lado, também há um
elemento não expresso, o reconhecimento da ação praticada. “No Brasil, há um débito psíquico
que, se não for formulado e trabalhado, não permitirá que surja um novo processo de
conscientização de identidade”.
COMPLEXOS CULTURAIS NEGROS
- Singer e Kimbles: complexo cultural. Ambos os inconscientes pessoal e coletivo são afetados
profundamente por uma “perda de conexão da alma” (sentido junguiano da modernidade etc.).
- nossas feridas da escravidão formaram um complexo que nos tem.
- como mostrarei, de certa forma o hip hop e o candomblé ajudam na reconexão da alma, a algo
que o grupo vê como pertencente a ele e encontra expressão nessas práticas culturais.
- mas a conexão, a meu ver, não é tão linear como pensava Jung. Não é reencontrar uma África
pura, primitiva, do passado. Mas sim refazer o passado a partir do material do presente. Como as
memórias de alguém que conta sua história a partir da visão do presente. Os fatos são recriados,
não importam se são “reais”. Freud escreveu numa carta a Fliess: “a imagem espelho do presente
é vista num passado fantasiado, que então profeticamente se torna o presente”.
- a cultura é mutante. A África muda, e as culturas da diáspora africana no novo mundo vão se
misturando e se modificando.
- o hip hop colabora efetivamente com o processo de tomada de consciência de nosso complexo
que, por definição, ganhou autonomia após longos séculos de racismo.
- cantam Thaide e DJ Hum: “observando a evolução radical de meus irmãos/ percebi o direito que
temos como cidadão/ de dar importância a situação/ protestando para que achamos uma solução/
por isso Black Power continua vivo/ só que de um jeito bem mais ofensivo/ seja dançando break,
ou um DJ no scratch/ mesmo fazendo grafite ou cantando rap/ [...] No Centro da cidade as grandes
galerias/ seus cabeleireiros e lojas de disco/ mantêm a nossa tradição sempre viva/ mudaram as
músicas, mudaram as roupas/ mas a juventude afro continua muito louca/ falei do passado e é
como se não fosse o que eu vejo a mesma determinação no hip hop/ Black Power de hoje.”
- e os Racionais: “Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição! Na quieta ou na ascensão,
minha atitude vai além! E tem disposição pro mal e pro bem! Talvez eu seja um sádico ou um
anjo. Um mágico ou juiz, ou réu. Um bandido do céu! Malandro ou otário, quase sanguinário!
Franco atirador se for necessário! Revolucionário ou insano. Ou marginal! Antigo e moderno,
imortal! Fronteira do céu com o inferno! Astral imprevisível, como um ataque cardíaco do verso!
Violentamente pacífico! Verídico! Vim pra sabotar seu raciocínio!”
- hip hop fala das raízes negras e suas culturas. Confronta a supremacia branca, traz o debate do
racismo à tona. Ele pode evocar a “energia política” (Samuels). No candomblé os deuses também
são evocados, uma espécie de espiritualidade pode surgir no hip hopper. Samuels: “a
espiritualidade em nosso mundo, nossa espiritualidade feita e manufaturada, nossa espiritualidade
de destreza, está escorrendo dos poros profanos da vida contemporânea. Basta-nos reconhecer
e nomeá-la”.
- referências à África vão alem de informações históricas ou situação social. Há referências a um
tipo de sentimento de falta, arquetipicamente ligado à experiência da escravidão de nossa
sociedade. Racionais de novo: ‘Às vezes eu acho que todo preto como eu/ Só quer um terreno
no mato, só seu/ Sem luxo, descalço, nadar num riacho/ Sem fome, pegando as fruta no cacho/
Aí truta, é o que eu acho/ Quero também/ Mas em Sao Paulo, Deus é uma nota de 100’.
85
- é claramente um sonho, uma visão romântica do negro livre numa tribo ou num quilombo,
cercado pela natureza, dura e repentinamente cortado pela realidade da metrópole. Espécie de
fantasiar a África.
RECRIANDO A PARTIR DO TRAUMA
- Papadopoulos nos lembra de nossa capacidade de processar internamente e dentro de nossas
comunidades eventos e experiências dolorosas, e transformá-los em possibilidades potencialmente
enriquecedoras.
- o hip hop e pode ser vistos como resposta para uma situação coletiva traumática.
- dinamismo e abertura para elementos estrangeiros de todas as ordens. Escravos desde que
puseram os pés no Novo Mundo foram obrigados a ser maleáveis e recriar suas vidas simbólicas.
- Hip hop: mistura de sons, improviso do scratching. Ninguém é dono do som se é retirado e
retornado às pessoas de forma levemente diferente.
- o constante REFAZER.
- A visão essencialista da cultura dá passagem a uma outra, na qual a cultura está sendo sempre
recriada ou recomposta em torno de novos significados. A primeira visão está presente nos
trabalhos de Jung e deve ser revista. Alguns junguianos ainda carregam algo desta busca por
uma alma real, uma essência a ser cultivada.
- FANTASIAR A ÁFRICA, para o hip hop é refazê-la em novas terras e contextos, sem perdê-la de
vez. É uma resposta a estes elementos reprimidos no Brasil. Não mais importa como eram as
culturas de certas etnias africanas de séculos atrás. Os novos elementos existem como fantasias,
que são tão reais quanto a realidade histórica.
•
Quarto momento (20-30 min): criação de letras de rap (dividir em subgrupos de cerca de
4-5 pessoas). Os grupos receberão um início de letra de rap (dois ou três versos com rima),
tratando genericamente da situação atual do psicólogo, no que diz respeito ao preconceito que
este sofre, à desvalorização do profissional, da sociedade que não quer se “analisar” ou passar
por uma terapia longa e que mexa em certas feridas. Os grupos então serão convidados a
terminarem a letra, elaborando mais alguns versos que expressem suas opiniões e sentimentos.
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Instituicao
Himma - Estudos em Psicologia Imaginal
Síntese Curricular
Psicólogo clínico; Mestre em Psicologia; Professor de Psicologia Social e supervisor de estágio
na Uniararas – Fundação Hermínio Ometto. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da
USP. Mestre em Jungian and Post-Jungian Studies pela University of Essex, Reino Unido. Membro
do grupo Himma - Estudos em Psicologia Imaginal.
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Sombras da Cidade: A Abordagem da Psicologia Orientada ao Processo em Psiquiatria
Autor: Arnold Mindell, PhD.
Ana Rezende & Nick Turner
Texto Ana Rezende
Resumo:
Sombras da Cidade: O livro apresenta a experiencia do Dr. Mindel aplicando o modelo
fenomenologico e imaginal conhecido como Process Oriented Psychology no trabalho com pessoas em estados psicóticos, ou simplesmente como ele coloca, ?estados extremos? de consciência. Dr. Mindel formou-se no Jungian Institute em Zurich nos anos 60 e vem desde então
desenvolvendo a Psicologia Orientada ao Processo que tem suas raizes numa ampliação do
trabalho com sonhos de C. G. Jung. Dr. Mindell reconheceu cedo em sua carreira que os sonhos
noturnos são uma dimensão de consciência, são sobretudo processos que não cessam em
momento algum, mas tem sua continuidade no corpo. Essa visao foi expressa em seu primeiro
livro, 1981, DREAMBODY, The Body’s Role In Revealing The Self, conectando experiências
somáticas com sonhos, mitos, contos de fadas. Desde então Dr. Mindell publicou 17 livros e
fundou dois institutos, um em Zurich and um em Portland. O livro aqui apresentado, Sombras da
Cidade, tenta oferecer ao leitor uma visão de métodos aplicáveis a uma variedade de estados de
consciência alterados e psicóticos.
Artigo
Quando Platão nos diz que preferia a “loucura divina do que a sanidade humana” (Phaedrus
230e) nos convidava a considerar quatro estados alterados de consciência. Phaedrus, um dos
seus diálogos mais ontológicos, nao deixa de ter espaço para reflexões acerca da legitimidade
existencial de estados de consciência outros que o racional egóico ( como diríamos hoje).
Quem entre nós já amou de tal forma que exergava naquela pessoa algo que aos demais era
invisível? Quem já vivenciou um momento de tamanha intimidade com Deus que fez transbordar
o coração e com ele o impulso de compartilhar essa graça com outros? Quem apreendendo algo
de extremamente belo ou significativo acerca do mundo escreveu um pequeno poema, ou tentou
pintar ou cantar aquela vivência? Quem é que já teve um sonho premunitivo, uma forte intuição
acerca do futuro? Assim Platão nos ensina sobre alguns dos estados de consicência alterados
indicando-os como sendo presentes dos deuses: de Apollo o dom da profecia, de Dionísio os
ritos que nos liberam das dificuldades do presente, das Musas o dom da poesia e de Afrodite o
dom do amor. Podemos continuar a lista de Platão por exemplo: de Hades recebemos o impulso
do sequestrador, de Hermes a fluidez dos trobadinhas, de Ares a energia da agressão, etc.
Entretanto, minha vivência particular com familiares em estados de consciência alterados, não
tinha nada de inspirador, apenas sofrimento e conflito. Para mim estabeleceu-se uma polaridade,
isto é, a “loucura” como algo, por um lado terrível, e por outro importante e significativa.
O maior sofrimento acerca dos distúrbios da saúde mental não são os comportamentos difíceis,
mas sim o isolamento e a separação entre as pessoas. De um lado estamos nós profissionais e
familiares fixos em nossa realidade consensual*1 (RC), nosso estado de consciência egóico, de
outro lado estao os outros, que chamamos “doentes mentais”, aprisionados em seus estados
alterados, “psicóticos”. Como reestabelecer contato com uma pessoa num tal estado? Como fluir
entre estados de consciência sem me perder de mim mesma? Para trabalhar com essas questoes
segui um caminho que abarcou tanto estudos psicologicos quanto estudos da imaginacao. As
reflexões á seguir são um breve relato dessa busca.
É na obra do grande estudioso francês do Irã, Henri Corbin, que James Hillman vai buscar uma
de suas contribuições mais enriquecedoras à Psicologia Profunda (Depth Psychology), a noção
do Mundus Imaginalis, ou Alam-al-Mythal. Para evitar confundir com o termo “imaginário”
geralmente empregado para significar a fantasia ou aquilo que não é real, Corbin traduz o termo
como Mundo Imaginal, pois essa é uma dimensão real intermediária entre os mundos do pensar
89
e o sensível. O Mundo Imaginal, requer para sua apreensão, a educação da sensibilidade imaginal
ou imaginatio vera. (Corbin 1969-1997)
Tal educação imaginal tem sido ao que me dedico nos últimos quinze anos, e é ela o nosso ponto
de partida para buscar o caráter teleológico dos estados alterados de consciência, que indicava
Platão.
Mas antes de partirmos para a teleologia dos distúrbios da saúde mental, é preciso reconhecer a
importância da patologia destes estados.
A compreensão da “doença” como algo originário na bioquímica e na genética do indivíduo serviu
para iluminar a ignorância e preconceitos reinantes, ajudando a livrar-nos um pouco da culpa e
vergonha ao redor das “doenças”.
O estudo da Teoria de Sistemas, da psicoterapia familiar vem desde os anos 50 (Jackson 1959,
Bowen 1965, Bateson 1972, etc) contribuindo para a compreensão de que as pessoas sofrendo
com estados extremos e alterados de consciência fazem parte de uma dinâmica com seu contexto.
Contudo, a patologização é simplesmente ampliada, não é apenas o indivíduo que está doente,
mas a família, que é então vista como um sistema com padrões de comunicação e limites
disfuncionais ( muito rígidos ou muito frouxos) entre os sub-sistemas alí existentes.
A Psicologia Transpessoal de Stanislav e Christina Grof (1989) também contribuiu ao introduzirem
a visão da “emergência espiritual”, ou seja, de que pessoas num caminho de desenvolvimento
psicológico ás vezes encontram pontos críticos (break-downs), que são significativos. Contudo,
Grof faz uma distinção entre pessoas atravessando uma “espirititualidade emergente” e outras
simplesmente “doentes mentais”. Essa distinção cria uma hierarquia que aliena e marginaliza
ainda mais, aqueles na categoria do “doente mental.”
O psícologo americano Arnold Mindell inicia sua carreira como analista Jungiano em Zurique e
vem nos últimos 40 anos desenvolvendo uma perspectiva profundamente dedicada a teleologia
dos processos psicológicos.
O paradigma médico trouxe grande alívio ao sofrimento humano. Entretanto, a base médica
alopática continua fazendo com que as pessoas sintam-se “doentes”, e talvez contribua para um
isolamento ainda maior, uns dos outros. Um dos presentes de Jung para o mundo foi, por exemplo,
sua visão dos significados dos sonhos. Chamou-os portanto de teleológicos, e não patológicos
ou apenas problemáticos.
Necessitamos também de uma visão mais teleológica dos estados mentais incomuns. È por
esse motivo que os chamo estados de consciência estatísticamente incomuns, “estados extremos”,
ao invés de “doença mental”. (Mindell 2008, Prefácio a nova edição de City Shadows)
Quando olhamos sistêmicamente verificamos que muitas vezes a pessoa num estado extremo
de consciência é portadora de uma mensagem importante para sua comunidade, chamando a
esta a refletir sobre si mesma e a transformar-se. Enquanto a comunidade não se interessa, não
participa e não reflete, o individuo permanece o único portador, marginalizado daquele processo.
Quando é o próprio indivíduo que não se interessa pelo seu estado alterado ou não se dá conta
da situação em que se encontra, há a alternativa de que se a comunidade interessar-se pelo
processo perturbador ocorrendo naquele indivíduo, poderá trabalhar esse processo e propiciar
uma transformação no individuo através de si mesma, da própria comunidade. Um exemplo:
Um rapaz de 22 anos diagnosticado com esquizofrenia paranóica, pede repeditamente ao irmão
de 30 anos (João) que lhe forneça torpedos, pois necessita bombardear sua cidade. Está cheio
de ansiedade e raiva pois sente-se altamente ameaçado pela cidade ao seu redor. João em
terapia diz-se perturbado pelos constantes pedidos dessas armas pois o irmão parece estar
falando sério e sente a intenção violenta em sua voz. Teme que o irmão acabe atacando alguém
nas ruas ou nos ônibus. Já que o irmão não vem para terapia, sugeri que nós trabalhássemos
com o impulso de torpedear a cidade. Ao trabalhar-mos, João entra em contato com sua
vulnerabilidade, reconecta com momentos aonde sentíu-se tão amendrontado que de fato se
pudesse teria destruído tudo ao seu redor como a única maneira de resgatar algúm contrôle
sobre aquela situação. João acessou seu próprio estado de extremo mêdo e violência e mudou
sua posição inicial (recriminando os impulsos violentos do irmão) dando-se conta que de fato a
cidade não está segura o suficiente para os membros mais vulneráveis da nossa comunidade
como ele o foi quando mais jovem, como os idosos, as crianças ou os enfermos. Refletiu que a
90
maioria de nós consegue bloquear as percepções das ameaças ou o mêdo que sentimos. João
dá-se conta que seu irmão não estava louco ao sentir-se tão ameaçado. Sentiu-se aliviado e que
deixaria de exigir do irmão que deixasse com aquelas “bobagens” mas que iria oferecer ao irmão
um pouco mais de proteção. Após essa sessão o irmão nunca mais mencionou torpedos ou
querer qualquer arma para destruir a cidade. No momento em que João acessou seu mêdo,
deixou de patologizar o irmão e compreendeu sua mensagem para a cidade. É nesse exato
momento que o irmão mais jovem deixa de ser uma sombra da cidade e torna-se um membro
participativo de sua comunidade. Seu estado paranóico não torna-se apenas tolerável, mas é
importante para que tornemo-nos mais conscientes sobre o mundo que criamos.
Recentemente, a International Association of Junguian Studies discutia se Jung se identificava
mais como um cientista ou como um filósofo ou até mesmo como um teólogo. Nesses últimos 30
anos eu vi esse mesmo dilema expresso no olhar dos melhores psiquiatras, como se fosse o
complexo herdado de uma profissão “em busca da alma” (Jung, 1933). Embora a psiquiatria
como medicina se alinhe com a ciência, seu objeto científico não se encaixa unicamente na
perspectiva física/mecanicista. O “objeto” psiquiátrico escapa a psiquiatria, lhe confunde, lhe sabota,
lhe dá rasteiras, pois a psiquiatria não tem como outras disciplinas científicas, um objeto. A
psiquiatria tem um sujeito, e este sujeito é um amálgama de Soma e Psiqué. A força “AnimaDora”, de uma individualidade participante em um cosmos multidimensional, um Anima Mundi.
Esse caráter multidimensional da nossa experiência humana é possivelmente o maior desafio da
nossa “espécie”, exigindo de todos nós, de nossa cultura, que se renovem os padrões a partir do
qual possamos não só compreender mas também participar em seu mistério. Note que pela
palavra mistério não indico aquilo que não pode ser conhecido, mas sim aquilo que não pode ser
“ex-plicado”.
Jung nos ensina que a Psiqué é imagem, “uma série de imagens no sentido mais verdadeiro”(1926).
Assim quando estudamos a psico-logia, tratamos de conhecer o mistério das imagens, para qual
necessitamos a vero imaginatio.
Uma psicologia que tem interesse nas imagens do inconsciente, mas não conseguede fato operar
com um olhar imagístico no contexto das psicoses e dos estados alterados, reproduz em si
mesma a fragmentação que almeja tratar no paciente.
Para mim um dos aspectos mais importantes da Psicologia Orientada ao Processo, é o fato de
que ela se oferece como um caminho para a educação do olhar imagístico. Pois como nos ensina
James Hillman “ O refinamento de nossa sensibilidade imaginal precisa começar aonde começa
a própria sensibilidade” (1980), isto é, na dor e no isolamento dos estados extremos e alterados.
Para Jung, a objetivação das imagens substitui o sonho. O processo da Imaginação Ativa envolve
a extração das imagens do sonho que para Jung tem uma linguagem ainda precária.
“Como na imaginação ativa todo o material é produzido num estado consciente, o material é
muito mais completo do que nos sonhos com sua linguagem precária....Ao objetivar suas imagens
impessoais e ao compreender as idéias inerentes a estas,(...) o paciente pode de fato ver, e seu
inconsciente torna-se compreensível para ele”. (Jung,1935)
A ênfase do processo terapêutico para Jung está expressa em termos do conteúdo dos sonhos
e na compreensão desse conteúdo por parte do cliente.
Mindell segue a importância dada aos sonhos, mas faz uma contribuição importante ao propor
darmos mais atenção ao processo do sonho e não apenas ao seu conteúdo. A Psicologia Orientada
ao Processo faz exatamente o que anuncia, ou seja, tenta seguir, rastrear e apoiar o processo
que esta se manifestando, sutilmente nas imagens oníricas, sejam elas manifestam em sonhos
ou sintomas, ou relacionamentos, etc. Um outro exemplo:
Uma mulher em seus 21 anos, Mary, já havia sido detida pela polícia várias vezes por vandalismo
e estava frequentando um serviço do tipo CAPs por ordem jurídica. Numa sessão em grupo ela
revela que está alí porque tem o hábito de jogar pedra nas janelas das casas na sua vizinhança.
Meu colega mostra-se surpreso por isso mas também interessado. “Uau! Você quebra as janelas
dos outros! Nunca conheci ninguém que fizesse isso! Me conta mais como é esse negócio.”
Essa atitude de uma “mente de principiante”*2 já é em sua simplicidade uma intervenção
importante, pois Mary nunca tinha encontrado alguém que de fato se interessasse por seu
comportamento violento. Após conversarem por algúns minutos, meu colega diz que está
91
começando a ententer um pouco sobre “esse negócio de quebrar uma janela” mas que seria útil
para ele se ela topasse jogar uma “pedra” (indicando com a mão uma almofada) com ele agora.
Há uma onda de risadinhas nervosas na sala, mas Mary topa. Assim pega a almofada e joga
várias vezes contra a parede. Numa dessas vezes, a almofada bate acidentalmente no meu
colega que movia-se na sala. Ambos param um pouco chocados...sem saber o que fazer agora.
Até que meu colega nota no olhar de Mary um sorriso emergente. Ele espelha e sorri ligeiramente,
Mary sorri. Meu colega deu-se conta que alí havia-se quebrado de fato uma “janela”. Meu colega
rí também quando gradativamente a risada de Mary torna-se choro. Mary explica que chora por
que está feliz de brincar com meu colega, sente-se próxima dele e dos demais na sala. Mary
conta-lhes de seu profundo isolamento e de como odeia não ter amigos, odeia que ninguém lhe
olha no rosto ou lhe comprimenta quando anda pela rua. São nesses momentos de raiva que
ataca pedras na vizinhança. O trabalho do grupo segue com o tema onde outros manifestam
suas experiências de isolamento. O programa terapêutico de Mary passa a incluir o
desenvolvimento de novas habilidades interpessoais que vão lhe ajudar a desenvolver novos
padrões de contato social. Mary deixa assim de ser uma sombra da cidade.
Esse método radicalmente fenomenologico e um aspecto importante dessa abordagem. À medida
que o seguir, o rastrear um processo substitui a interpretação, deixamos para trás o léxico cultural
que orienta a hermenêutica do projeto analítico. A fenomenologia radical de Mindell nos libera de
um paradigma eurocêntrico. POP é assim um paradigma fenomenológico imaginal de
conscientização cujas intervenções se aplicam transculturalmente.
Por esse motivo, acho a abordagem particularmente interessante para uma cultura tao distinta da
Europeia como a nossa Brasileira.
Finalmente, a Psicologia Orientada ao Processo propõe aqui que consideremos que:
As vivências sob o rótulo “doença mental” pertencem a todos nós e nao apenas a alguns de nós.
Tais estados de consicência alterados e extremos sao importantes, nós precisamos deles para
trazer maior consciência e transformação às nossas comunidades.
O princípio teleológico requer uma ampliação radical do impulso de sanar através da remoção
dos estados alterados ou psicóticos. Podemos buscar “sanar” através da valorização e da facilitação
do processo de realização e significado dos estados alterados e extremos.
A violênica nas cidades requer o desenvolvimento urgente de maior conscientização dos pontos
acima, bem como o desenvolvimento da sensibilidade imagística e sobretudo o desenvolvimento
de habilidades psicológicas e interpessoais práticas por parte da comunidade mais abrangente, e
sobretudo da polícia.
“...Uma pessoa com vivências mentais incomuns, alguém num estado extremo, não está apenas
doente, mas é também uma “sombra da cidade”, uma parte do nosso coletivo, uma voz que é
geralmente marginalisada... Que o futuro tome às mãos essa direção inicial [da Psicologia Orientada
ao Processo, expressa no livro Sombras da Cidade] e leve adiante a apreciação da enorme
diversidade em nossa natureza humana.” (Mindell, 2008:Prefácio)
Como Platão verificou há quase 2400 anos atrás, a loucura do Amante, do Poeta, do Profeta e do
Pregador são estados que rompem o véu da anestesia cotidiana da qual nos falou o caso de
João acima. Por que não entreter-mos a possibilidade de que as pessoas em estados extremos
de consciência são os agentes herméticos da porosidade necessária da nossa existência? O
paradoxo das sombras da cidade é que quando em nossos estados e transes estranhos, somos
nós que chamamos uns aos outros para despertar do estupor que nos impede de conhecer a
enorme diversidade em nossa natureza humana . Talvez ao acordarmos, poderemos liberar os
outros do sofrimento de realisar ás custas de grande isolamento, suas funcões poiético-políticas.
Notas: 1. “Consensus Reality” ou “Realidade Consensual” é um termo utilizado por Mindell para
caracterizar o estado em que a maioria de nós vive no dia a dia. A tentativa aqui é determo-nos ao
nível da descrição fenomenológica, evitando o julgamento de que um estado de consciência é
mais real do que outro. 2. “beginner’s mind” é um termo do Zen Budhismo.
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Richard Feynman and Lao Tse. Lao Tse Pr.Or.
Plato, Phaedrus 230eSíntese curricular
Ana Rezende,MA, MBACP, é mestre (com distinção) pela Universidade de Chichester na Inglaterra
nas Artes & Práticas Transpessoais. (MA Transpersonal Arts & Practice (Distinction) University of
Chichester). Sua formação anterior inclui Diploma de Pós Graduação pela Universidade de Brighton
em Aconselhamento Psicológico Humanístico Integrativo, Diploma em Supervisão Psicoterapêutica
na Psicosístese Integrativa pelo instituto Re.Vision em Londres. Além de seu trabalho acadêmico
Ana dedica-se a consultório particular.
Nick J. Turner é profissional com 26 anos de experiência na área de recursos humanos e
aconselhamento psicológico em organisações. Há 16 anos dedica-se ao estudo da Psicologia
Orientada ao Processo. Além de seu consultório particular, Nick vem com Ana Rezende oferecendo
nos últimos anos, cursos e seminários de Psicologia Orientada ao Processo na Tobias School of
Art & Therapy, West Sussex, Inglaterra.
Para contato:
[email protected]
[email protected]
93
Ágora e Violência: Um Estudo Junguiano
Paola Vieitas Vergueiro
Introdução
Este trabalho visa favorecer a compreensão da violência vivida hoje, a partir do enfoque junguiano.
Com esta intenção examina dados sobre a violência nos dias atuais. Retoma brevemente as
origens da violência, seus fundamentos biológicos, antropológicos e arquetípicos. Procura
identificar como surge e se manifesta a violência tanto no processo do indivíduo como da sociedade.
Dedica-se a compreender diferentes dinâmicas arquetípicas que tratam o tema, visando esclarecer
princípios subjascentes à violência no ser humano e relacionar este conhecimento com sua
expressão no mundo atual.
Objetivos
O objetivo desta pesquisa é esclarecer aspectos fundamentais do fenômeno da violência tais
como origem, fundamentos biológicos, antropológicos e arquetípicos. Ao identificar como surge e
se manifesta a violência tanto no indivíduo como na sociedade, visa evidenciar alternativas às
condutas atuais, que reforçam a violência em seus piores aspectos.
Método
Este trabalho é realizado mediante pesquisa bibliográfica sobre diferentes faces da violência –
biológica, antropológica – e de concepções da violência a partir de diversos autores da psicologia
analítica. A partir da aproximação de concepções advindas de diferentes áreas do conhecimento
e entre autores da psicologia analítica, evidenciam-se aspectos arquetípicos da violência,
associados ao desenvolvimento do homem tanto no âmbito individual como coletivo. Este
panorama coloca o leitor em contato com o que foi desenvolvido sobre o tema, oferecendo meios
para definir e resolver problemas atuais, mas também permite a exploração de certas possibilidades
tanto no âmbito individual como coletivo para se utilizar recursos de maneira construtiva.
Desenvolvimento
Diferentes concepções de violência apontam-na como produto da agressividade, sendo capaz
de propiciar uma força adaptativa necessária ao convívio humano, consigo e com os iguais.
Quando não reconhecida, ocorre uma cisão no arquétipo da sombra, o que dificulta uma boa
utilização da agressividade. Há, portanto, que relacionar as partes desconectadas, a consciência
e o inconsciente, para propiciar o desenvolvimento do potencial sombrio que contém recursos
para o desenvolvimento.
Soma-se a isto a constatação de que a polaridade do arquétipo que não é manifesta na realidade
fica carregada energeticamente. Isto é, diante de manifestações unilaterais, existe a tendência
de pressão da polaridade que está no inconsciente, para se manifestar. A parcela da população
que se manifesta com mais intensidade a violência hoje, demonstra no âmbito social este aspecto
reprimido e não reconhecido pela maior parte das pessoas. Revela, inclusive, um poder inegável.
E este poder tem que ser reconhecido para que possa haver transformação. Para isso é necessário
que ela seja evidenciada, e não negada, projetada ou mesmo dissociada.
Proposições para esta problemática podem ser retiradas do contato com os estudos junguianos
sobre o tema. Neumann (1991) e Spielrein (1994), bem como diversos outros autores afirmam a
importância da integração da sombra para que o desenvolvimento ocorra. Hillman (1995),
Schwartz-Saland (1996), Edinger (2003) e Fordham (2006) apontam a necessidade de
aproximação do mundo das mães para que a relação primal possa ser revivida de maneira positiva.
Oliveira (2005) aponta a necessidade de constelação do arquétipo do Herói de forma criativa.
Spielrein (1994) afirma que a auto-preservação em sua forma dinâmica necessita que a
necessidade de destruição se dedique aos aspectos que promovem desenvolvimento, e a
criatividade sobreponha o que é estático e inútil. A de-diferenciação, a capacidade de assimilar e
dissolver o conteúdo pessoal aplicando-o coletivamente, é um dos recursos sugeridos pela autora
como necessário para o enfrentamento do problema da violência no âmbito social. Desta maneira
evidenciam-se diferentes ações que possuem coerência entre si, e apontam a partir da teoria
junguiana direções para o enfrentamento da violência na atualidade.
94
Conclusão
O mundo atual revela a dimensão da potência humana mediante manifestações crescentes da
violência em seu pior aspecto. Estudos da psicologia analítica apontam a agressividade e a
violência como pertencentes à natureza, e ao homem. A natureza da psique humana requer e
permite, contudo, uma melhor utilização deste recurso. Diferentemente dos outros animais, o
homem pode transformar o instinto em pulsão. O estudo de tendências arquetípicas aponta
direções para o emprego criativo da agressividade humana. Neste sentido a violência
contemporânea traz a constatação da dimensão da agressividade humana mal utilizada, que
pode levar ao desenvolvimento se for associada à consciência e a Eros.
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WHITMONT, E. C. Retorno da Deusa. 1a ed. Trad. Mourão, M.S. São Paulo: Summus, 1991.
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São PauloPUC-SP
Síntese Curricular
Psicóloga formada pela PUCSP, mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pelo Mackenzie,
especialista na abordagem junguiana pelo COGEAE e doutoranda na mesma abordagem pela
PUC-SP. Atualmente desenvolve pesquisa que relaciona a plasticidade neuronal à terapia
expressiva. Leciona em pós-graduações, atende em consultório, e publica trabalhos partir do
enfoque junguiano.
95
A Sobrenaturalização da Violência: Significações e Rituais
Maria Ângela Vilhena
A reflexão que propomos localiza-se no âmbito das múltiplas e complexas relações entre religião
e violência em seu enraizamento histórico-cultural. Implicam processos socialmente construídos
onde estão presentes práticas sociais e imaginários, alimentados e expressos em sistemas
simbólicos.
O escopo desta apresentação é bem modesto, tem recorte muito preciso, pois que deve ser
enunciado no tempo e no espaço a ela concedido. Constitui-se como campo original para análises
mais detalhadas, das quais possam advir contribuições fecundas para a compreensão das
intrincadas relações entre as realidades sobre as quais esta mesa se ocupa.
Considerações iniciais
É necessário considerar o amplo e diversificado espectro do campo religioso. Nele, entre
tensões, adaptações, hibridações, rejeições estão diferentes matrizes e construtos religiosos.
Convém ressaltar que, por sua vez, as religiões não se configuram como blocos monolíticos,
dado que no interior de cada uma delas, em torno de um núcleo comum de doutrinas, crenças e
práticas, coexistem prevalências, inflexões que se espraiam em teovisões, cosmovisões e
ritualidades.
A estas questões somam-se aquelas relativas ao entendimento da violência. Para além
da compreensão que toda a violência é uma ação praticada e sofrida em situações dadas, há
todo um vasto campo no qual processos de denotação e conotação se apresentam emaranhados.
Muitas vezes a denotação da violência é mesclada e confundida pela conotação que interpreta e
atribui a ela predicados valorativos positivos ou negativos, conteúdos éticos, morais e estéticos,
a depender da situação e dos sujeitos envolvidos.
A ação violenta inclui e extrapola ao revolver e à faca, à ofensa direta ou insidiosa, às traições e
aos conchavos, às pressões e exclusões, intimidações, rejeições. Esta ação pode atingir
dimensões externas ou internas aos violentados, seu corpo e sua subjetividade, seu patrimônio,
resultando em danos físicos, morais, econômicos, morte. Modalidades violentas podem ter como
vítima o próprio sujeito que a pratica, ou seja, a auto-violência. A apresentação plural e mutifacetada
da ação violenta contribui para uma evidência nem sempre fácil, posto que pode acontecer em
espaços públicos ou privados como o lugar onde se habita, o ambiente de trabalho, as escolas,
as ruas. Pode ser encoberta ou não identificada e assumida por aqueles a praticam ou sofrem. A
ação violenta pode ser impetrada pelo sujeito individual ou coletivo, por instituições, pelo Estado,
grupos econômicos, religiosos, quadrilhas criminosas.
A violência vivida, pressentida, assistida, exposta cotidianamente nas mídias, presente em todos
os lugares, simultaneamente inesperada e esperada, difusa, informe, invasiva, imponderável é
está constantemente a gerar medo e insegurança a pervadir todo o tecido social, atingindo as
consciências e o imaginário. Frente a ela, as pessoas elaboram inúmeras perguntas que exigem
respostas. Porque alguns indivíduos são mais violentos que outros? Porque pessoas normalmente
calmas e mesmo afetuosas podem repentina e inadvertidamente, em situações de descontrole,
praticar atos violentos contra aqueles a quem querem bem, contra desafetos, ou mesmo
desconhecidos? De onde vem sua força, seu poder que nem mesmo as instituições dão conta
de controlar? A violência se faz acompanhar por crises de insegurança nos vínculos humanos e
nas instituições. Em quem confiar? Quem nos protege e salva?
Entre outros fatores, a insegurança e o medo frente à violência e seus efeitos danosos estão
relacionados à incapacidade de identificar com precisão suas causas, bem como ao momento e
às situações em que pode acontecer. A violência é um imponderável. Nem sempre conseguimos
nomear suas fontes, seus centros, suas linhas de força que habitam o interior dos sujeitos e
estão dispersas pela sociedade. Por escapar ao entendimento, ao alcance e ao controle das
pessoas a violência é interpretada como resultante de algo maior, vago e desconhecido que as
habita, envolve e transcende. É transcendente, misteriosa. Qual é o lócus onde se situa e deve
ser examinada? Para muitos religiosos, sua origem e força devem ser buscadas em outras
dimensões da existência.
A sobrenaturalização da violência
96
A violência põe a nú a fragilidade da vontade, dos corpos, dos afetos, das relações sociais. A
fragilidade e impotência que a acompanham impelem as pessoas à busca de potência. Onde
reside este poder? Como acessá-lo? Associada à desordem faz clamar pela ordem. Quem pode
re-ordenar o homem e o mundo? Associada ao mal que a todos aflige, está a exigir a apresentação
e o concurso de um bem maior que a debele. Na transitividade entre excesso do mal ao excesso
do bem, o ser humano se encontra com o algo ou alguém por ele considerado sobre-humano,
por ser dotado de qualidades extraordinárias em força e poder, localizado para além dos limites
da imanência. Todavia, é necessário que o bem e o mal sejam nomeados, identificados,
hipostasiados em representações que falem à sensibilidade e às emoções, que sejam apreensíveis
pelos sentidos e pela inteligência. É preciso que se contem histórias sobre suas origens, sobre as
lutas entre as forças do Bem e do Mal – agora em maiúsculas porque processualmente referidas
a entidades metafísicas. Estas histórias são narrativas sagradas, mitos que versam sobre as
gestas dos seres sobrenaturais das quais decorre tudo o que agora existe.
É próprio das religiões, a partir de referenciais em cujo eixo está o sagrado que transcende, tratar
questões imanentes como vida e morte, poder e fragilidade, violência e solidariedade, justiça e
injustiça. As religiões são chaves de leitura sobre origens e finalidades do universo, da terra, da
humanidade, dos acontecimentos. Socialmente construídas, elas criam mundos de significados
e ações, elaboram sistemas simbólicos explicativos da violência entendida como tendo seu lócus
originário no sobrenatural. Propõem rituais sagrados cuja eficácia simbólica permite administrá-la
por recursos que impliquem sua matriz: a do sobrenatural. Para muitos religiosos é através de
forças que transcendem ao humano que violência “selvagem” pode ser domesticada, administrada,
racionalizada. Aqui, se alocam talismãs, amuletos e ritos sagrados.
Não é de agora que a tradição judaico-cristã oferece às consciências conteúdos mitológicos que
associam a violência a concepções que têm como fundamento axiológico o pecado adâmico
ancestral cometido in illo tempore por Eva e Adão, seduzidos que foram pela astúcia da serpentedemônio. Como a eles todas as vontades e ações humanas estão vinculadas, a natureza humana
carrega uma herança genético-pecaminosa. Na grande teodicéia que esta tradição apresenta, o
mundo é tido como arena de enfrentamento de forças sobrenaturais personalizadas em Deus e
seus anjos contra Satã e seus sequazes em disputa pelo corpo, pela vontade, pela alma humana.
A todo o tempo, o homem fragilizado pelo pecado-culpa está sujeito às tentações do Demônio.
Quando sucumbe a elas prevalece o egoísmo, o ódio, a cobiça, os vícios, a morte, a violência.
Só a graça de Deus pode salva-lo.
O entendimento da violência como resultado da ação de seres malignos é também herdeiro de
hibridismos com conteúdos e práticas de outras tradições religiosas como espiritualismos,
candomblés, umbandas. Nestes âmbitos, o policentrismo da violência pode advir do “mal-feito”
pelos homens, através de “trabalhos pesados” que conclamam forças sobrenaturais capazes de
arruinar e destruir; pode resultar de possessões por demônios, da ação de maus espíritos, ou
espíritos persecutórios e obsessores que regem a vontade, têm o domínio das consciências e
incitam o sujeito a roubar, matar, trair, violentar, se entregar aos vícios, drogas e comportamentos
transgressores.
Vamos ao encontro de antigos sítios do imaginário, cujos conteúdos ainda hoje estão guardados
e atuantes na memória coletiva, a exprimirem relativa continuidade nas descontinuidades das
temporalidades religiosas. Entranham-se nas rugas dos tempos mais remotos, crenças que
determinados objetos naturais, ou artefatos quando devidamente consagrados por feiticeiros,
magos ou sacerdotes, passam a ser dotados de poderosas forças protetoras, ou pelo contrário,
podem desencadear malefícios decorrentes tanto das intencionalidades de quem os perpetrou,
como por uso desavisado das normas prescritas pelos rituais. Estes objetos eram e são tidos,
ainda hoje, como se fossem capa invisível que fecham o corpo, protegem contra assaltos,
violências, doenças, desastres, invejas. Podem ser fitas, cordões, contas enfiadas como colar ou
pulseira, pedaços de madeira esculpida ou metal gravado, bentinhos, patuás. Podem ser trazidos
junto ao corpo na forma de anéis, colares, escapulários. Em nossos dias podem ser pendurados
no espelho retrovisor dos carros e motos, colocados sobre a soleira das portas. São amuletos,
objetos figurativos condensadores de eficácia simbólica. São documentos/testemunhos de
sistemas de crenças que dão suporte a um imaginário que socializa temores compartilhados por
todas as camadas sociais em suas buscas pelo poder sobrenatural contra ações violentas.
97
Nas atividades taumatúrgicas as forças sobrenaturais são mediadas por especialistas religiosos
que atuam ao abrigo de instituições ou informalmente. Esta prática se faz em contextos regidos
por rituais complexos que conclamam e colocam em ação o sobrenatural em sessões chamadas
de “cura”, “libertação” ou “descarrego”. Implicam a participação de especialistas em ritos
apotropáicos como os exorcismos, afastamentos e amarramentos dos maus espíritos. Nestes
ritos os especialistas estão sempre prontos a interpretar os males daqueles que buscam seus
serviços, como sendo “obra do demônio”, “trabalhos feitos”, ou resultado de contato/contágios
com concorrentes religiosos. Desta sorte, exorcistas afirmam-se capazes de ordenar de maneira
incisiva que as forças do Bem e do Mal se apresentem, e as primeiras prevaleçam sobre as
segundas. Nestas situações, os especialistas mobilizam, em descontrole/controlado, emoções
extremamente fortes, expressas em ritos catárticos que implicam imposição de mãos, palavras
de ordem, imprecações, estados alterados de consciência, tremores, contorções, arrepios, calores,
gritos, a significar a identificação de entidades causadoras do mal, a luta travada e expulsão de
demônios e espíritos persecutórios. Contra a ingerência do Mal que causa a violência estão os
ritos purificatórios que objetivam limpar a alma, o coração, o corpo, os ambientes, e os ritos
propiciatórios para o fortalecimento das vontades frente à invasão do Mal. Finalizando a seqüência
ritual há testemunhos sobre sensações de bem-estar e de paz, aliada à confiança que os bons
propósitos, as novas disposições irão pela força sobrenatural se concretizar. Eis assim, a realização
da eficácia simbólica do sobrenatural associado ao Bem em peleja vitoriosa contra o Mal que
acontece em ritos religiosos, sinais visíveis, canais por onde transita o poder invisível.
Estruturada pela contradição entre as forças do Bem e do Mal, permeada por emoções e magias,
a religião ao atribuir ao sobrenatural as fontes de violência é alternativa simbólica para sua
superação na medida em que nomeia, explica e oferece, a modo próprio, maneiras de superá-la.
Instituicao: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Sintese Curricular
Mestre em Ciências da Religião. PUC-SP; Doutora em Ciências Sociais: concentração antropologia.
PUC-SP; Professora Associada do Departamento de Teologia e Ciências da Religião. PUC-SP
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Resiliência e Encontro Transformador em Morador de Rua na Cidade de São Paulo
Aparecida Magali de Souza Alvarez
INTRODUÇÃO
Em um projeto de pesquisa desenvolvido na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de
São Paulo – um estudo longitudinal, de 1998 a 2003 – acompanhei as trajetórias de vida de seis
moradores de rua e duas professoras aposentadas, não moradoras de rua, que não só os
amparavam em várias circunstâncias de suas vidas como, também, ministravam aulas
(alfabetização e ensino de 1º grau) a esse segmento populacional de excluídos.
Trabalhei com o pressuposto – que norteou a linha de investigação – de que haveria uma interação
específica entre os seres humanos que possibilitaria a “transformação” dos envolvidos. Essa
interação, nomeada como “encontro transformador”, seria transformadora no sentido de possibilitar
o despertar das potencialidades dos sujeitos de observação – moradores de rua e não moradores
de rua – que os auxiliavam. Possibilitaria, também, a retomada do rumo de suas existências, ou
seja, do sentido da vida, promovendo-lhes a resiliência, aquela capacidade humana de, ao enfrentar
as adversidades da vida, poder superá-las e sair delas fortalecidos ou inclusive transformados.
Ao final das perquirições teóricas cheguei à construção de um conceito metafórico de resiliência
– extremamente heurístico – concebida então por mim como “uma dança bem sucedida na música
da vida. Não uma dança com bailarinos solitários: ela requer parcerias, empatias, encontros. Ela
fala de amor”. Vide em ALVAREZ (1999; 2003; 2004; 2008) a aplicação desse conceito fertilizador
em diversas reflexões teórico-metodológicas.
E que amor seria esse – transformador – que observava acontecendo naquele modo de morar
na rua, naquelas situações limites de existência dos moradores de rua?
À medida que empreendia a leitura das histórias de vida dos seres humanos estudados, que
analisava as fotos e cenas do seu cotidiano, que recolhia o significado de suas produções escolares
junto às professoras – entre desenhos, colagens, artesanatos – pude acompanhar as
manifestações das características desse processo de “encontro transformador”, onde se destacava
a presença daquele amor que procurava conhecer melhor: o amor Ágape. Ao conceito de resiliência
foi associada, portanto, a noção de Ágape, definido como “amor às outras pessoas humanas,
amor ao próximo” (BOLTANSKI, 1990). Na interpretação dos dados da pesquisa trabalhei, portanto,
com conceitos pertinentes a determinadas teorias da Psicologia e outras disciplinas, como a
abordagem da Complexidade de Edgar MORIN (1997) na busca do diálogo inter e transdisciplinar
(ALVARENGA, A.T.; SOMMERMAN, A.; ALVAREZ, A.M.S., 2005).
Para este texto destaquei a apresentação de um dos moradores de rua observados e seu processo
de produção artística realizada junto à professora Sílvia que o alfabetizava. Através de seus
desenhos coloridos, que produzia profundamente envolvido no ato de recordar-sonhar-imaginar
desenhando, refletiremos sobre o seu processo de encontro transformador com a professora
que o amparou.
Entre 11 de agosto de 1998 e 12 de abril de 2000 o morador de rua da cidade de São Paulo, que
se auto-intitulou em nosso estudo como “Soviético” – recém saído da prisão do Carandiru –
produziu uma série de desenhos durante as aulas de alfabetização para moradores de rua,
ministradas pela professora Sílvia na obra social de uma Igreja da cidade. A produção mais
intensa concentrou-se no ano de 1998 – quando ele iniciou esse ‘modo de conversar’,
extravasando seus conteúdos psicoemocionais – sempre em presença de Sílvia que escrevia o
que ele lhe ‘ditava’ a respeito do significado dos desenhos. Seu processo de desenhar era rápido,
o que não impedia a sua conversa com as imagens, não havendo imposição de censuras ao
traço ou à qualidade do que surgia no papel. Com o passar do tempo, cada vez mais o traço se
soltava, as formas cresciam, aumentavam os tamanhos, havendo necessidade do fornecimento
de folhas maiores para ele trabalhar. Depois, vieram as cores. Soviético era analfabeto e, no
entanto, fazia questão que a professora escrevesse, em uma folha à parte, o título que ele lhe
ditava para que depois, ele mesmo, o copiasse no desenho. Foi um total de 38 obras feitas onde
ele representou, em quase todas, figuras do sol junto a outros símbolos e fatos de sua vida.
A riqueza, a força de expressão do morador de rua através dos desenhos permitiu-me recolher
99
características de sua psique acontecendo no mundo: desde o começo – com a série em que
expressa os desejos, lamentos, decepções, sonhos não vividos, a trajetória de crimes – até o
final, com sua transformação gradativa que vai acontecendo em contato com a professora e os
colegas. Nesta projeção plástica de seu imaginário, Soviético expressa mais do que uma forma
artística, ele canta seu mito pessoal, sua trajetória de herói.
Na obra “Psicogênese das doenças mentais” JUNG (1990) refere-se à importância das “medidas
terapêuticas comuns” – entre as quais cita o ‘desenho’ – como meio de levar o paciente que
atravessa complicações emocionais a poder representar sua situação psíquica. Evoquei também
outra autora, Nise da Silveira, para denominar o processo de Soviético expressando-se em contato
com folhas de papel e lápis coloridos: “emoção de lidar”. Segundo essa autora, tal expressão –
“emoções de lidar”, no sentido do “fazer”, da experiência – sugere a emoção provocada pela
manipulação dos materiais de trabalho, uma das condições essenciais para a eficácia da terapia.
(SILVEIRA, 1992:22) E nesse processo transformador Soviético não estava só. Sílvia, a professora
amiga, atenta, ponto de apoio (uma das características definidoras do conceito de resiliência) ao
seu lado, era um dos elementos essenciais para o sucesso desse processo de livre expressão
criadora.
Enquanto as tragédias pessoais e coletivas eram pintadas, descritas, vividas e revividas por
Soviético, os insistentes ‘sóis’ de cores cambiantes me instigavam nas ‘Improvisações’ do moradorde-rua.
O estudo que está contido no capítulo 10: “O tema mítico do Deus Sol”, da obra “Imagens do
Inconsciente, de Nise da SILVEIRA (1982) onde ela discorre sobre Carlos – paciente esquizofrênico
– que expressara continuamente o sol em suas pinturas, veio também auxiliar-me na compreensão
de Soviético. Segundo essa autora, o sol simboliza, na psicologia junguiana, o ego e seu campo
de consciência, mas também se imporia como símbolo do self, ou seja, a personificação do ego
sob a forma do ‘corpo refulgente do sol’ decorre de ser o ego o ponto de referência central da
consciência e de sua função criadora do mundo como objeto. É assim que o sol, direta ou
indiretamente, está presente em múltiplas versões do mito do herói, quando este, depois de
vencer os monstros das trevas, saindo de uma condição de semi-inconsciência, consegue trazer
a realidade para a luz da consciência, recriando o mundo. No entanto, devido à magnitude de
seus atributos específicos, o sol também impõe-se como símbolo do self, ou seja, do centro
ordenador da psique, bem como da totalidade psíquica. O self, imagem de Deus (Imago-Dei),
sol, estariam em estreita correlação. (p.315)
Compreendia os “sóis” de Soviético não somente como significação de símbolo do consciente,
indicando a “procura de luz do consciente” (o que apontava para o “estar em jogo”, também,
“conteúdos do inconsciente pessoal” (SILVEIRA, 1982) de Soviético). Percebia em seus trabalhos
conteúdos provenientes de regiões do inconsciente coletivo que poderia comparar com formações
semelhantes na arqueologia e história das religiões comparadas. Assim como Nise da Silveira
impressionou-se ao encontrar “reflexos da face do deus Sol dos astecas” na pintura do seu paciente
Carlos – com “a imagem do sol lançando cruzes no espaço” – fiquei também impressionada ao
encontrar nos desenhos de Soviético – e mais fortemente em um deles – o mesmo motivo, com
a imagem do sol lançando cruzes no espaço.
Para melhor compreender a jornada expressiva de Soviético retomei os relatos de Nise da Silveira
a respeito do mito do deus-sol Ra dos egípcios, e também sobre o mito do deus-sol dos astecas,
que segundo suas dimensões mitológicas seriam exemplos da conexão entre self e ego, expressos
através do simbolismo do sol. Segundo essa autora, na qualidade de “Imago Dei”, Ra representa
o self; na qualidade de batalhador pela preservação da luz da consciência, simboliza o ego ideal.
Ra viaja cada dia através dos céus no seu barco diurno, irradiando vida, luz e calor; durante a
noite, noutro barco, atravessa o mundo ctônico. É então que a viagem se torna perigosa mesmo
para o mais poderoso dos deuses e criador de todas as coisas. No período noturno Ra sofre
ataques de monstros que procuram impedir a passagem de seu barco, para evitar que o sol
nascente de novo se erga no horizonte. O mais temível entre os monstros é a serpente Apep,
personificação da espessa escuridão que envolve o abismo das águas originais de onde o sol
surgiu pela primeira vez e inexoravelmente, cada noite, tem ainda de percorrer numa difícil viagem.
Ra vence Apep, mas não definitivamente. O dia é sempre precedido de uma noite de combates.
Entre os astecas, onde o deus-sol era também divindade máxima, ocorria fenômeno
100
semelhante. O deus-sol fazia um percurso equivalente ao de Ra, com tremendas lutas. Mas sua
vitória era incerta, temendo-se sempre que ele sucumbisse e sua luz se apagasse. O sol esgotavase nas batalhas cotidianas contra os poderes das trevas. Urgia restaurar as forças do deus por
meio de sacrifícios sangrentos e oferecendo-lhe corações recém-arrancados do peito de vítimas
humanas, pois o povo asteca estava convicto da existência de uma relação afim entre a força
solar e o sangue dos homens. (SILVEIRA, 1982:316)
Soviético, portanto, “por afinidades estreitas de natureza inconsciente” em aproximação do mito
do deus sol dos astecas – cujos combates são violentos – também travava luta formidável “para
manter o pensamento claro, para defender o campo iluminado do consciente contra o assalto de
forças obscuras do inconsciente, não menos aterradoras do que os monstros que tentam destruir
o sol nas narrativas míticas.” (SILVEIRA, 1982:319)
Em reedição do mito nos tempos atuais, Soviético lutava não somente para não sucumbir ao
assalto de forças obscuras do inconsciente mas, também, contra os monstros que atuam em
uma sociedade de exclusão, como a brasileira. Alguns desses monstros – representados pelo
estado de abandono, injustiças e discriminação, estão denunciados nas reflexões ditadas por ele
– misto de dor, loucura e esperança – e escritas pela professora junto ao seu desenho do “sol
lançador de cruzes”: “Natal na escuridão e revolta na mente”:
Este texto e desenho foram executados por Soviético quase cinco meses após o primeiro desenho
realizado no processo de “encontro” com a pessoa em quem confiava, a professora Sílvia.
Podemos notar que ele está em pleno processo de “auto-permissão de olhar-se”: é quando pode
ver-se como usuário de droga, roubando “o coitado que tá curtindo a vida na maior harmonia”
(segundo suas palavras) e ainda perguntar-se: “Vale a pena fazer isso?”
Através da representação psíquica que se traduzia nos traços, cores, palavras e gestos, Soviético
podia objetivar e visualizar o seu “caos” interior. Desse caos – que é desintegração organizadora
(MORIN, 1997) – lentamente foi-se anunciando nova gestalt, foram sendo emitidos sinais de
nova configuração psíquica, nova ordem, organização, transformação em Soviético. Em pleno
processo de percepção de si mesmo dentro do agir, ele se questiona e questiona a sociedade,
tudo acompanhado de perto pela professora em Ágape, que lhe fornecia a “base segura”, o
amparo, criando um ambiente seguro para que suas imersões e emersões pudessem ocorrer.
No texto e desenho, bastante densos, pode-se observar a psique de Soviético em estado revolto,
em movimentos que permitem que essas características se mostrem à sua consciência. Próximo
do mito do deus-sol dos astecas, no seu cotidiano de morador de rua, fazia seu percurso envolto
em batalhas formidáveis. Lutando para manter-se vivo, expressava em seu discurso e em seus
desenhos-sóis o temor da derrota: nas lembranças ou vivências de desespero, violência e crimes,
seus sóis cambiantes vestiam-se de roxo escuro, ou de negro, em prenúncio de colapso iminente.
Soviético-sol esgotava-se nas noites “de loucuras” vividas nas ruas com os companheiros de
rua, regadas a drogas e agressões mútuas. No entanto, em todos os seus desenhos, seus sóis,
imagens arquetípicas circulares – defesas ativadas ante tanta perturbação – anunciavam e
exprimiam tentativas de transformação da psique atormentada. Outros moradores de rua, sóiscompanheiros seus nas jornadas nas ruas de São Paulo já se apagaram, tragados e mortos
pelos sorvedouros da barbárie e da exclusão a que estavam entregues. Soviético, no entanto,
teimoso e “revoltado” – como ele mesmo se anunciava, justificando seu apelido – resiste, como
que tomado pelo princípio de Hórus, que o faz emergir a cada dia do abismo urbano e o impulsiona
ao sobreviver e à sua transformação.
Referências Bibliográficas
1.
ALVARENGA, A. T.; SOMMERMAN, A.; ALVAREZ, A. M. S. Congressos Internacionais
sobre Transdisciplinaridade: reflexões sobre emergências e convergências de idéias e ideais na
direção de uma nova ciência moderna. Saúde e Sociedade, v. 14, n. 3, p. 9-29, set. - dez. 2005.
2.
ALVAREZ, Aparecida Magali de Souza Alvarez; ALVARENGA, Augusta Thereza de; RINA,
Silvia Cristiane de S. A. Della. Histórias de vida de moradores de rua, situações de exclusão e
encontros transformadores. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 1, 2008 [no prelo].
3.
ALVAREZ Aparecida Magali de Souza. A resiliência e o morar na rua: estudo com moradores
de rua – criança e adultos – na cidade de São Paulo. São Paulo. São Paulo; 1999. [Dissertação
de Mestrado – Faculdade de Saúde Pública da USP].
101
4.
ALVAREZ Aparecida Magali de Souza. Resiliência e Encontro Transformador em moradores
de rua na cidade de São Paulo. São Paulo; 2003. [Tese de Doutorado – Faculdade de Saúde
Pública da USP]
5.
ALVAREZ, Aparecida Magali de Souza, ALVARENGA, Augusta Thereza de and FIEDLERFERRARA, Nelson O encontro transformador em moradores de rua na cidade de São Paulo.
Psicol. Soc., Dez 2004, vol.16, no.3, p.47-56. ISSN 0102-7182.
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BOLTANSKI, Luc. L’amour et la justice comme compétences – Trois essais de sociologie
de l’action. Paris: Éditions Métailié;1990.
7.
FIGUEIREDO Luis Cláudio. Textos do curso de Pós Graduação em Psicologia
[Apresentado no curso de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica; 2001; São Paulo].
8.
JUNG Carl Gustav. Psicogênese das doenças mentais. Vol.III. Petrópolis: Vozes; 1990ª.
9.
MORIN Edgar. O Método – 1. A natureza da Natureza. Portugal: Publicações EuropaAmérica; 1997.
10.
SILVEIRA Nise da. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra; 1982.
11.
SILVEIRA Nise da. O mundo das imagens. São Paulo: Editora Ática; 1992.
Instituição
Membro do Grupo de Pesquisa CNPq – “Sociedade Contemporânea, Ciências Sociais e Saúde
Pública” da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e do Laboratório
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Sociais em Saúde Pública da FSP/USP.
Síntese Curricular
Psicóloga; Mestre, Doutora e Pós-Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo; Pós-Doutora em Ciências da Educação pela Universidade François
Rabelais, Tours, França. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq – “Sociedade Contemporânea,
Ciências Sociais e Saúde Pública” da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo e do Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Sociais em Saúde Pública da
FSP/USP. Tem experiência na área de Saúde Coletiva/ Saúde Pública – com ênfase em Educação,
Saúde Mental, Inter e Transdisciplinaridade. Tem focado suas pesquisas principalmente nos
seguintes temas: moradores de rua; resiliência; transdisciplinaridade; complexidade; ‘psico-sócioformação’; ‘fertilização cruzada de saberes’; ‘encontros transformadores’; educação com ênfase
em processos de auto-formação; e exclusão social.
102
Diferentes Olhares para a Agressividade e a Violência
Laura Marisa Carnielo Calejon
Se considerarmos a agressividade como a energia necessária para que o ser humano possa
movimentar-se na vida, enfrentar desafios e conseguir realizações, então essa energia parece
desejável. Entretanto a palavra agressividade apresenta em geral uma conotação negativa. Alguns
teóricos propõem a expressão competitividade para ressaltar uma dimensão positiva desta energia.
A mudança de designação não resolve o problema dos preconceitos.
O grande desafio da Psicologia, de Educação e de outras ciências, no século XXI é o de conseguir
a convivência entre as pessoas, promover qualidade de vida, maior solidariedade e respeito a
diversidade, incluindo a sobrevivência não só do homem, mas do próprio planeta.
Estes desafios se acentuam na medida em que constatemos a violência nas cidades, a violência
contra crianças, idosos, no transito, nas famílias e as agressões do homem ao próprio ambiente.
A Psicologia enquanto área de conhecimento produziu uma variedade de teorias que procuram
explicar o desenvolvimento e a personalidade do homem, com diferentes graus de abrangência
dos condicionantes e da complexidade deste processo.
Davidoff (2001) apresenta raiva e agressão como emoções, definindo a agressão como um
comportamento que geralmente acompanha a raiva. Esta por sua vez é definida como uma
emoção caracterizada por fortes sentimentos de contrariedade, os quais são acionados por ofensas
reais ou imaginárias. A agressão é definida como um ato praticado com um fim de ferir ou prejudicar
uma vítima involuntária. Os conceitos estabelecem uma distinção entre comportamento e emoção
e uma intencionalidade ao comportamento do agressor.
Averill, apud Davidoff ( 2001) organizou pesquisas na década de 1982/1983 sobre como as
pessoas percebem e lidam com a raiva no seu dia a dia, solicitando informações sobre incidentes
e condições que despertassem raiva em adultos e estudantes universitários. Os participantes
relatavam sentir raiva branda e moderada várias vezes ao dia e na semana, sendo que os objetos
da raiva eram predominantemente outras pessoas, em especial mais próximas e entes queridos.
Uma alta porcentagem dos participantes, destes estudos, relatava que sentia vontade de agredir
direta ou indiretamente, ainda que raramente ficasse fisicamente agressivo, segundo seus relatos.
Estes estudos indicam também os sentimentos ou reações mais comuns experimentados pelas
pessoas depois de expressar a raiva, designados como “ irritado”, “hostil”, “ exasperado” , “
deprimido” , “ infeliz”. “envergonhado”, “embaraçado”, “ com sentimento de culpa” . Os sentimentos
agradáveis, como resultado da expressão da raiva, eram raramente relatados.
Os dados sobre violência contra criança apontam que os agressores mais freqüentes são membros
da própria família, o que se mostra coerente com os dados da pesquisa apresentada.
Por outro, lado chama atenção, uma certa confusão teórica entre os conceitos de emoção,
sentimento e comportamento. A confusão resulta da diversidade de explicações construídas
pela Psicologia a partir de diferentes concepções da natureza humana. Se entendemos a natureza
humana como biológica, então a emoção, a pulsão, os vínculos ( amor, ódio e conhecimento)
são definidos a partir de indicadores dados pela biologia. Bion acrescentou aos vínculos de amor
e ódio definidos por Freud, o de conhecimento que não está relacionado com o saber intelectual,
mas a pulsão epistemofílica de buscar a verdade.
Todas estas explicações sobre o funcionamento psíquico do sujeito e de suas relações com o
mundo e os demais, centram-se nas condições do próprio sujeito. Entretanto, os sentimentos
contraditórios gerados pelas ofensas reais ou imaginárias que caracterizam a raiva e geram
comportamentos agressivos ocorrem em um espaço ou um universo interpessoal, constituído
pelo sujeito e por outros sujeitos do seu mundo ou pelo sujeito e outros que ocupam seu universo
psíquico de forma dissociada, como ocorre com as ofensas imaginadas.
Chama atenção que os sentimentos expressados pelas pessoas depois de expressar a raiva
sejam predominantemente negativos e raramente de natureza positiva.
Se a questão fosse apenas de natureza biológica e energética, não seria esperado que a
expressão da raiva produzisse sentimentos mais positivos, pelo alívio da tensão?
Desta forma os componentes biológicos parecem necessários, mas não suficientes para ajudar
a compreender a agressividade e a violência.
103
Gergen ( 1999) ao procurar um vocabulário para um diálogo transformador assinala que a
sensação de alteridade, de distância ou separação de determinados outros é praticamente um
resultado inevitável da vida social e condição fundamental para constituição da nossa identidade
e como sujeitos. Com o apoio de nossos interlocutores, seja de modo explícito ou implícito,
construímos uma idéia de quem somos, do que é correto ou incorreto, do que é real ou irreal, do
que é possível ou do que é apenas desejável ou um sonho em determinado momento da nossa
vida.
O problema das diferenças ou do manejo da diversidade que constitui o contexto da alteridade,
segundo o autor mencionado, é intensificado por várias tendências. Existe, em primeiro lugar,
uma tendência a evitar aqueles que nos parecem antagônicos, em segundo lugar, tendemos a
simplificar as explicações sobre os outros e, em terceiro lugar, tendemos as explicar as relações
com os outros de forma negativa. Estas tendências resultam de um universo de sentidos e
significados construídos não só nas relações sociais, mas principalmente em um tecido cultural
constituído por conteúdos que diferem de um grupo humano para outro.
Do mesmo modo que as condições biológicas são necessárias, mas não suficientes para
compreender a constituição do psiquismo humano, o social e o interrelacional é condição
necessária, mas não suficiente, para compreender esse universo de sentidos e significados,
constituídos na cultura.
Desta forma a violência, como ruptura da condição de alteridade e desrespeito às condições,
limitações, necessidades e possibilidades do outro ganha diferentes formas de expressão, a
partir dos conteúdos da cultura e resulta das possibilidades de constituição do próprio sujeito ,
que também são dadas pela cultura.
O rompimento e a negação do dialogo que nos constitui como sujeitos, ganha dimensões
assustadoras para todos os participantes.
Assim, Gergen( 1999) ao propor uma direção para um vocabulário assumido por um diálogo
capaz de ser transformador, sugere substituir as relações de culpabilização por uma
responsabilidade relacional e compartilhada, assim como a busca da auto-expressão e da autoreflexão. A auto-expressão refere-se a “ falar de forma pessoal ao invés de usar argumentos
abstratos para contar as histórias de seu próprio desenvolvimento”. Esta forma de expressão
afirma o autor so adquire importância quando suplementada pelo outro.
Compreender e atuar como educadores em todos os contextos da vida social, requer, se queremos
construir um mundo menos violento e agressivo, revisar nossas concepções sobre a natureza do
ser humano e sobre nosso papel enquanto “outros” para os demias e para nós mesmos.
Referências Bibliográficas
Davidoff L. Introdução a Psicologia.São Paulo: Makron Books Ltda. 2001
Gergen K.J. Rumo a um Vocabulário do Diálogo Transformador. In Schnitman D.F. e Littejohn S.
Novos Paradigmas de Mediação.Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
Instituição:
Universidade Cruzeiro do Sul
CEDEPP - Centro de Desenvolvimento Pessoal e Profissional
Síntese Curricular
Psicóloga; Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pelo IP/USP.
Pesquisadora do programa de Mestrado Profissionalizante no Ensino de Ciências e Matemática.
Coordenadora do Centro de Desenvolvimento Pessoal e profissional (CEDEPP).
104
VIOLENCIA Y LA AGRESIVIDAD, SU DEVENIR.
UN LECTURA DESDE LO HISTÓRICO CULTURAL.
Guillermo Arias Beatón
El problema de la violencia y la agresividad, se constituye en un hecho crítico de los tiempos
actuales, su adecuada explicación desde las ciencias, pudiera quizás, contribuir a mejor las
acciones encaminadas a lograr su disminución e incluso su eliminación de forma que podamos
soñar con un mundo sin violencia y agresividad.
Para lograr su explicación habría que desentrañar mitos y callejones sin salidas en los que pienso
estamos metidos, incluso, los científicos, profesionales y especialistas que trabajamos con estos
problemas. Son varias preguntas las que nos pudiéramos hacer: ¿La agresividad y la violencia
son condiciones inherentes a la condición humana? ¿Son un producto de nuestra naturaleza
animal? ¿Se producen por condiciones biológicas concretas y específicas? ¿Provienen de los
contenidos, modelos o arquetipos sociales y culturales? ¿Son un producto de la mediación
compleja de todas las condiciones biológicas, sociales, culturales e incluso de las psicológicas
propiamente dichas, en formación? Si es así, entonces ¿Cuál es la dinámica histórica del proceso
de formación y desarrollo de estas características que nos ocupan?
Hoy en día para las ciencias psicológicas se presenta un reto esencial, explicar cómo se producen,
se forman y desarrollan los contenidos psicológicos humanos. Ya no resulta suficiente decir si son
de naturaleza biológica (Preyer, 1908) (Crick, 2000), o una continuidad del desarrollo de las
estructuras biológicas (Piaget, 1996), o de naturaleza social o cultural, o de origen externo o
interno. Lo que se impone hoy en día es intentar producir una explicación de cuál es la génesis y
la dinámica histórica de la formación y desarrollo de los contenidos psicológicos o de la subjetividad
humana a partir de la mediación e interdeterminación de todas las condiciones que participan.
La teoría de la actividad y la comunicación son sin duda alguna, una continuidad de lo que se
elaboró, en el proceso de construcción o producción de lo Histórico Cultural en la década de los
20s y 30s del siglo XX.
La continuidad se puede considerar como una ampliación, profundización y precisión de lo que
se definió como la ley fundamental que genera, produce y define la fuente y origen del proceso de
formación y desarrollo de la psicología humana, sus contenidos o sistemas psicológicos cada vez
más complejos (Vygotski, 1991). Incluso lo que genera tanto el desarrollo adecuado como lo
inadecuado, pues desde Vygotski y Freud, se postula que las mismas leyes que explican la
formación de lo adecuado, explica también lo inadecuado. El problema esencial entre estos dos
autores es que para lo Histórico Cultural, ningún contenido psicológico superior es inherente a la
persona, o se produce solo espontáneamente o es un producto lineal o de la continuidad de las
pulsiones, instintos, o estructuras biológicas, (Freud, 1968) ni incluso, directamente o como
continuidad de las funciones psíquicas naturales o elementales (Vygotski, 1987, 1994).
Para lo Histórico Cultural, lo interpersonal, la actividad y la comunicación, media lo biológico, lo
pulsional, lo instintivo, los reflejos incondicionados, pues desde el mismo momento del nacimiento
del niño o la niña y por medio de un proceso muy complejo se troca, se transforma, la naturaleza,
estructura y función, de esos contenidos psicológicos iniciales que pueden existir en todos los
seres vivos de un desarrollo superior, producto de una determinada y compleja evolución
eminentemente biológica (Vygotski, 1987, 1995).
Por esta razón lo interpersonal, que se expresa en la actividad y la comunicación, incluye lo social
y lo cultural, las relaciones sociales de las que se habla en el materialismo dialéctico e histórico y
que conforman la esencia de la personalidad del ser humano (Marx y Engels s/f). Esto implica el
papel de otro tipo de evolución que Vygotski le llamó, historia de la sociedad humana y de la
cultura, para diferenciarla de la biológica, dado que es de contenido diferente y de maneras de
ser y de funcionar distinta (Vygotski, 1987, 1995).
Sin embargo esta polémica no es solo de los fundadores del marxismo y sus continuadores, sino
que se puede ver en otras posiciones filosóficas como la de Confucio, o de Aristóteles en su
pensamiento frente al de Platón y en Baruch Spinoza cuando dice:
El orden y la conexión de las ideas son las mismas que el orden y la conexión de las cosas
(Spinoza, 2005, Pág. 135).
Mucho antes, Confucio, sus discípulos y opositores dijeron lo siguiente:
105
(…) los conocimientos y las cualidades psíquicas se muestran por la herencia. El hombre por
naturaleza es bueno, lo estropean sus situaciones externas (Confucio (551-479 y Men.Tse (372
-289) su mas brillante continuador citado por Yaroshevki, s/f ) .
Los que se oponen a esta idea, entonces dicen:
Niega lo innato de las cualidades morales positivas, como la honestidad, la sencillez y creía que
el hombre por naturaleza era maligno, mientras que la bondad era un producto de la educación.
Si esto fuera de otra manera no sería necesario educar a las personas. El carácter del hombre es
como un recipiente que el alfarero saca de la arcilla modelándola. (Kung Tse (298-238 citado por
Yaroshevki s/f).
Como puede verse la polémica es muy antigua y tiene varias aristas y direcciones que la hacen
muy compleja, pero es necesario estudiarla, conocerla y explicarla mejor, para lograr una
intervención educativa, social y cultural más adecuada.
El otro problema conceptual es que, aunque lo psicológico, en lo Histórico Cultural esté referido,
en última instancia, a la naturaleza social y cultural; estas categorías, conceptos o significantes,
aunque se han ido constituyendo desde esos lejanos tiempos, en la actualidad e incluso ya desde
Spinoza, Marx, Vygotski o en Leontiev, no se conciben separadas de los procesos subjetivos,
psicológicos o ideales de lo humano. Eso ya se puede comprender en la dialéctica que se observa
en los trabajos del joven Marx sobre la alienación y el concepto de apropiación, en los trabajos de
Engels sobre Feurbach y During o en la definición contundente de Vygotski de que la psicología
humana tiene un carácter mediado y complejo (Marx, Manuscritos 1848; Marx y Engels s/f y
Vygotski 1987).
Por todo esto la actividad y la comunicación, son las formas en las que se expresa lo interpersonal
o las relaciones sociales del ser humano. Ellas comprenden y trascienden las ideas más
importantes expresadas por otros autores. Esos conceptos integran lo objetivo y lo subjetivo, lo
material y lo ideal, y es el origen y la fuente de lo psicológico que se constituye en cada ser
humano, de manera interna y de acuerdo con lo intrapersonal, regido por leyes específicas que
producen, definitivamente, el contenido de lo psicológico.
Para lo Histórico Cultural lo psicológico, lo ideal, la subjetividad humana nunca es un producto
directo de lo social y lo cultural, de lo interpersonal, todo esto es mediado, transformado,
determinado, por la manera en que el sujeto vive o vivencia, lo que influye sobre él del contexto
social y cultural en el que se desenvuelve. No es posible explicar ningún contenido psicológico
solo por lo orgánico y funcional biológico o por la influencia social o cultural, sino por la
interdeterminación de estas dos condiciones y además, de los contenidos psicológicos ya
constituidos, que permiten producir en el sujetos las vivencias necesarias que van conformando
y rigiendo la dinámica del desarrollo y formación de contenidos psicológicos cada vez más
complejos como, por ejemplo: significados, motivos, nuevas necesidades, estados emocionales,
comportamientos, sentidos personales, la conciencia, la autoconciencia, la autovaloración, el
dominio de la propia conducta o la voluntad y toda la personalidad.
En el proceso y formación del ser humano, se pueden apreciar dos grandes momentos y que
parecen replicar los dos tipos de historia, la evolución biológica y la historia de la cultura humana.
Estos dos momentos, de lo que se puede llamar la historia individual del sujeto son: un primer
momento, la etapa embrionaria, donde rigen esencialmente las leyes biológicas; aunque no dejan
de funcionar las influencias sociales y culturales, dada por la formación y desarrollo de estructura
y su funciones biológicos, se producen según el cronograma dado por la información genética,
más ajena de la voluntad y la acción social y cultural de la sociedad y de las personas.
Un segundo momento, que se produce a partir del nacimiento del niño o la niña donde cambia
radicalmente el tipo de relación con la madre. A partir de este momento las necesidades del
nuevo ser se satisfacen de manera interpersonal o sea, a través de una actividad y una
comunicación entre madre, padre u otros familiares y el niño o la niña. Esto es lo que hace que
Vygotski y también Huxley, conceptualicen, que en el desarrollo y formación del ser humano rigen
también las leyes psicosociales (Vygotski, 1987 (1930), Huxley, 1939).
De esta manera en el desarrollo histórico individual, en la ontogenia, se entrecruzan las dos
historias, la biológica y la social cultural, que se mediatizan una a la otra sistemática y
106
constantemente; y la actividad y la comunicación se constituyen no solo en la fuente y origen de
la formación y desarrollo de los contenidos psicológicos, sino también en la posible forma de
compensar y corregir las consecuencias de alteraciones o problemas en las estructuras y el
funcionamiento biológico (Vygotski, 1989).
Por estas razones al hablar de la agresividad y la violencia, no es posible, desde una concepción
Histórico Cultural, afirmar que estas características sean intrínsecas, inherentes o innatas en el
ser humano. Hay quienes dicen que la agresividad es innata y la violencia es adquirida, lo que no
se llega a saber es el por qué de esa división cuando ambas cualidades son de contenidos
psicológicos y forman parte de la subjetividad humana.
La violencia, de esta manera y desde lo Histórico Cultural, es un contenido psicológico que tuvo
su fuente y origen en las condiciones del contexto social y cultural y se constituyó, definitivamente
como tal, a lo interno del sujeto como cualquier otro contenido psicológico humano, a partir de
cómo el sujeto vivió los contenidos de lo social y lo cultural que contiene lo interpersonal en la
actividad y la comunicación o sea, de las vivencias que se produjeron en el sujeto producto de la
interdeterminación de los hechos sociales y culturales mediados por las características psicológicas
ya constituidas (Vygotski, 1994) (Arias, 2005).
Un niño hiperactivo, por ejemplo, que su intranquilidad, su exceso de energía se constituyen en
un contenido psicológico inicial y lo es desde el nacimiento por debido a su funcionamiento biológico
innato, no necesariamente se constituye en un niño agresivo, violento o con trastornos en su
comportamiento (Thomas y Chess,1969), si las relaciones que se establecen con y por los adultos;
madres, padres y otros familiares, se orientan por una compresión de lo que es la hiperactividad,
no se presentan en los familiares estigmas o prejuicios en relación con esta característica del
sujeto y se le brinda la atención, estimulación y educación que requiere este tipo de niño o niña,
desde la más temprana edad, o sea, que se promuevan actividades y comunicaciones, que
permitan canalizar esa hiperactividad en vez, de reprimir u obligar a adoptar conductas muy
difíciles para esos niños y niñas, o sea, se evite violentar o agredir al ser en formación y desarrollo
.
Cuándo se les dice estate quieto, no te muevas tanto, siéntate, o se le castiga para evitar su
agitado proceder, la violencia y agresividad parte de los adultos y por la imposibilidad de responder
positivamente a este reclamo por parte del niño, las vivencias que se producen en él tendrán un
contenido negativo, al igual que la constitución o formación emocional, cognoscitiva y volitiva del
niño con el medio y en especial con las personas y ello, al repetirse sistemáticamente y de manera
prolongada estos hechos, se va conformando, entonces, una inadecuada situación social del
desarrollo a lo interno del sujeto y se produce, entonces, un comportamiento agresivo e incluso
violento de este, hacia el contexto en el que vive.
Thomas y Chess, encontraron en niños hiperactivos estudiados, en los que se respetaba sus
características y se procedía por medio de una atención y educación ajustada a estas, o sea se
canalizaba su hiperactividad, que pasado un tiempo; a los siete, ocho o nueve años, se producía,
incluso, una autorregulación aceptable, sin que dejaran de ser personas hiperactivas (Thomas,
Chess y Birch 1969).
Thomas y Chess, sin declararse históricos culturales, nos brindan magníficos datos empíricos,
fenoménicos y descriptivos acerca de lo que interpretamos que puede ocurrir entre lo interpersonal,
la actividad y la comunicación y lo intrapersonal, lo vivencial, o dinámico del desarrollo y la formación
de los sistemas psicológicos más complejos de carácter internos. Nos permiten ejemplificar las
leyes, de lo interpersonal, la dinámica del desarrollo y de la mediación de las condiciones biológicas,
sociales, culturales y propiamente psicológicas que se van conformando en el sujeto desde el
mismo momento de su nacimiento, hasta la constitución de una conciencia, autoconciencia, un
comportamiento y una personalidad estable y definida.
Los estudios realizados por nosotros con los escolares con trastornos en el comportamiento,
principalmente los agresivos y violentos, tienen una dinámica histórica de su desarrollo con
relaciones interpersonales, con contenidos de la actividad y acciones y formas de comunicación
que por lo general producen en ellos vivencias negativas de maltrato, abandono y que se pueden
107
interpretar, de no consideración y respeto al sujeto en desarrollo, esto ocurre en niños que presenten
o no, indicios de algún problema biológico orgánico o funcional, innato o adquirido (Arias y
colaboradores,1994-2005) (Acosta 1998) (Betancourt, 1999, 2002) (Cordero, 2001) (Cuesta y
Hernández, 2000) (Pardo Pérez, 1995). .
Otra cualidad psicológica compleja, a nuestro juicio mal interpretada o explicada, es lo llamado
internacionalmente dificultades de aprendizaje, que se define como una incapacidad de los niños
y niñas para aprender los contenidos de la escuela, la lectura, la escritura, el cálculo y otros
contenidos básicos y se precisa en su definición, como el no desarrollo de procesos psicológicos
cognoscitivos básicos necesarios para aprender, como consecuencia de lesiones residuales en
el sistema nervioso, secuelas de enfermedades genéticas y adquiridas o accidentes graves que
le ocurrieron y produjeron daños cerebrales.
Señalo este ejemplo, porque este problema que ya es muy complejo, en sí mismo; puede ser
causa de la violencia y agresividad del escolar, cuando vivencia las consecuencias de no poder
aprender como el resto de sus condiscípulos y se producen problemas con su autoestima y se
daña sus contenidos psicológicos como escolar, llamado en lo Histórico Cultural posición interna
del escolar (Bozhovich, 1976).
Un problema psicológico complejo: la inhabilidad para aprender, es causada por un déficit en el
desarrollo de los procesos cognoscitivos; producto de una causa de primer orden que consideran
de naturaleza biológica: orgánica y funcional. De nuevo nada de lo interpersonal; lo social y lo
cultural, que mediado con lo biológico y lo psicológico; incluso pudieran evitar, cuando se realiza
bien la atención y educación, las famosas dificultades en el aprendizaje y las insuficiencias en el
desarrollo de los procesos psicológicos superiores, tanto los afectivos como los cognitivos.
Existen estudios donde se afirma que en las personas violentas, agresivas o con trastornos en el
comportamiento, por ejemplo, poseen amígdala (glándula crebral), menores que la media de las
poblaciones normales, sugiriendo una cierta causalidad de esta estructura biológica en la fuente
de la agresividad y la violencia. No se trata de descartar la participación de las estructuras y el
funcionamiento biológico, para lo histórico cultural, eso es imposible en la vida y en el ser humano;
pero se exige desde esta posición teórica mucha más explicación y consideración de los efectos
mediado del funcionamiento biológico, con lo social, lo cultural y lo propiamente psicológico en
una dinámica histórica compleja, a todo lo largo de la vida del sujeto.
Sería bueno contestarse las siguientes preguntas incluso a la luz de los estudios más recientes
de las neurociencias (Chang y Greenough 1985) (Greenough, 1975). ¿La amígdala es la única
causa? ¿El tamaño de esta estructura no será consecuencia también de los efectos de una
prolongada situación de agresividad y violencia; de estrés e irrespeto a la condición humana en el
desarrollo y formación infantil? ¿No será también por ello, producto de un proceso educativo,
afectivo y emocional; vivenciado por el sujeto inadecuadamente o de forma negativa? ¿Se conoce
si en la población normal, producto de que el patrón de referencia es una media aritmética, existen
personas con amígdalas, también pequeñas que no presenten agresividad y violencia y por qué?
Ésta y muchas otras preguntas, habría que hacerse y contestarse, antes de concluir científicamente,
acerca del papel de la amígdala en la dinámica causal que produce la agresividad y la violencia
en el ser humano, que parece ser de una dinámica muy compleja.
Estos dos ejemplos nos muestran las descripciones mecánica, simplista y de naturaleza biologicísta
e internalista, que pueden encontrarse en las explicaciones de la formación y desarrollo de los
contenidos psicológicos y de la llamada hoy en día subjetividad humana. Lo Histórico Cultural
nos propone un camino de naturaleza dialéctica, compleja, mediada, de interdeterminación y de
explicación dinámica de cómo se trabaja y considera la atención y la educación, atendiendo a las
leyes que rigen y explican el proceso de formación y desarrollo de los contenidos psicológicos, a
partir de las condiciones biológicas, orgánicas y funcionales y las consecuentes y oportunas formas
de actividad y comunicación, que promuevan el desarrollo e incluso, cuando sea necesario, lo
corrijan o lo compensen. Este es un enfoque y una orientación más compleja, pero a su vez, más
optimista; que no deja de ubicar la responsabilidad que pueda corresponderle a lo social y lo
cultural que se relacione, con lo político y con el desarrollo adecuado o no, de la organización de
la sociedad y las políticas públicas que la determinan.
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Yarochesvski M.G. (s/f) Historia de la Psicología. Tomo I Facultad de Psicología Universidad de
La Habana, Ciudad de la Habana, Cuba.
Instituicão
Universidade de Havana - Cuba
Síntese Curricular
Psicólogo; Doutor em Ciências Pedagógicas pelo Instituto Central de Ciencias pedagógicas/Cuba.
Presidente da Cátedra Vygotsky. pesquisador e professor em programas de Pós-graduação em
Psicologia Clínica e Educacional
110
Violência e Alteridade
Paulo Afrânio Sant’Anna
Não por acaso escolhemos discutir a violência enfocando a questão da alteridade. Além do tema
dessa mesa ela é também o nosso objetivo, pois pretendemos construir uma relação de alteridade
entre a psicologia analítica e o enfoque histórico-cultural. Encontrar com o outro, ao mesmo tempo
em que favorece o reconhecimento das diferenças, possibilita também o reconhecimento dos
próprios limites. Trata-se, portanto, de um processo construtivo e não de absorção de uma forma
de pensar pela outra.
Antes de iniciar, é importante informar qual é a minha relação com a psicologia analítica. Uma vez
mais esbarro na questão da alteridade, pois tomo Jung e os autores da psicologia analítica como
meus principais interlocutores e não como meus mentores. Com eles, dialogo, brigo, me aproximo
e me distancio, enfim, como qualquer relação viva, minha relação com a psicologia analítica está
sempre em transformação. Ao longo dos quase 20 anos de carreira, a minha experiência
acadêmica tem acrescentado à minha vivência clínica um olhar mais crítico, inquieto e tem me
conduzido a autores de outras teorias que hoje estão presentes na leitura que faço da psicologia
analítica. Portanto, algumas idéias que vou apresentar, são resultado desse processo de
construção, ou melhor, constituem contribuições pessoais para este campo do conhecimento.
A questão que permeia esse debate á a violência como decorrência de situações que impedem
ou interrompem a construção da alteridade. Partimos da hipótese que estas situações interrompem
o processo de desenvolvimento psíquico do indivíduo, paralisam o processo de subjetivação e
geram dissociação e sofrimento psíquico.
Para a psicologia analítica o desenvolvimento da personalidade ocorre a partir de uma matriz
psíquica — inconsciente coletivo, que corresponde ao conjunto de potenciais ou prontidões —
arquétipos, que uma vez ativadas na relação do indivíduo com o meio e com a cultura,
desencadeiam novos estágios de desenvolvimento e adaptação. Nesse sentido, os arquétipos
podem ser entendidos como gatilhos de desenvolvimento, de natureza instintiva ou arcaica,
vazios de conteúdo, portanto anterior ao sujeito. São perceptíveis por meio de padrões de
comportamentos e de imagens, relacionados às experiências universais como, nascimento,
crescimento, sexualidade, casamento, morte, paternidade, maternidade, espiritualidade etc.
Portanto, o processo maturacional da psique se inicia a partir dos potenciais de reação do indivíduo
ao meio. Estes à medida que conectam o indivíduo ao mundo, geram também um campo
intersubjetivo. E é a partir desse campo intersubjetivo que a reação, originalmente de natureza
instintiva, é preenchida pela experiência e adquire uma qualidade representacional, por meio da
formação de imagens psíquicas. Por exemplo, no contato da criança com a mãe, há inicialmente
uma série de reações instintivas que ao serem desencadeadas permitem o surgimento de uma
relação intersubjetiva com a mesma. É a qualidade dessa relação que irá determinar a configuração
do complexo materno e suas representações na psique da criança.
Na psicologia analítica, o processo de desenvolvimento da psique tem sido descrito em duas
grandes etapas. A primeira corresponde à formação e estruturação do ego e é marcada pela
predominância da exteriorização da libido nas tarefas adaptativas. Nesse processo, a matriz
psíquica inicial é continuamente ativada e atualizada na experiência da criança com o mundo. O
mundo, entendido com um outro que se apresenta como mãe e pai, como sociedade, cultura ou
corpo, faz suas demandas que irão propulsar o desenvolvimento psíquico e promover a adaptação
da criança a meio sócio-cultural.
Na segunda grande etapa do desenvolvimento, tendo o indivíduo cumprido as suas tarefas
adaptativas (educar-se, construir carreira, constituir relacionamentos e família) e tendo iniciado
um período de declínio corporal, passa a ter menos demandas externas, o que disponibiliza uma
parte considerável de libido. A libido excedente sofre um processo de introversão e passa a ativar
aspectos reprimidos, negligenciados ou mal desenvolvidos da personalidade. Nesse momento,
o que ativa o desenvolvimento psíquico não é mais a demanda adaptativa, mas sim o que Jung
descreve como movimento auto-regulador da psique. Fenômeno que visa a diferenciação da
personalidade, ampliando a capacidade da consciência, que pode ganhar maior capacidade de
descriminação e profundidade.
Portanto, essas duas grandes etapas são caracterizadas por dois movimentos, adaptação e
111
individuação.
A psicologia analítica clássica desenvolveu exaustivamente a discussão sobre o processo de
individuação na segunda metade da vida, a ponto de se confundir com ele. Samuels, em seu livro
Jung e os Pós-Junguianos, refere esse fenômeno como resultado, primeiro da necessidade de
Jung de se distanciar da psicanálise de Freud, que se ocupou das fases iniciais do
desenvolvimento; e segundo, da experiência clínica de Jung que foi predominantemente com
pessoas que estavam nessa fase da vida.
A lacuna deixada pelos autores iniciais da psicologia analítica, tem sido preenchida principalmente
pelos autores da chamada escola desenvolvimentista, porém, há muitos aspectos do
desenvolvimento inicial da personalidade que ainda não foram objeto de reflexão dos mesmos.
Nesse sentido, não pretendo abordar o tema da alteridade no processo de individuação, ou seja,
na relação EGO-SELF e sim no período de formação do ego, na relação Eu-Tu.
Na fase inicial do desenvolvimento, a criança se encontra num estado que Jung denomina de
pré-diferenciação ou identidade primitiva, no qual não há uma relação de sujeito e objeto. Ela
está totalmente identificada e indiferenciada do mundo que a cerca. Este estado vai se alterando
a partir de sucessivas experiências de separação/projeção e integração/introjeção que são
resultados de movimento oscilatórios da libido — extroversão e introversão. Esse processo foi
descrito por diferentes autores da psicanálise e da psicologia analítica, por meio de diversas
terminologias. No caso da psicologia analítica, cabe destacar os conceitos de Fordham, de
deintegração e integração.
O primeiro processo de separação e diferenciação é vivido na relação com o corpo da mãe, o
primeiro outro da criança; depois, nas contínuas experiências nas quais ela vivencia a separação
e a integração e por meio desse processo se diferencia e ganha contornos. À medida que
reconhece o Tu constitui também o Eu. Portanto, a questão da alteridade se apresenta arraigada
ao processo de desenvolvimento da personalidade individual, ou seja, da constituição do sujeito.
Merleau Ponty destaca que:
“Na presença de outrem ‘somos plenamente visíveis para nós mesmos, graças a outros olhos’.
É, discentrando-me em relação a mim mesmo e a meu pequeno mundo, que os outros me
abrem para novas dimensões do SER” (apud FRAYSE-PEREIRA, 1994, P.15)
A incapacidade da criança em diferenciar-se do meio que a cerca, está relacionada a um estado
mental marcado pela identificação primitiva, ou seja, vê o mundo a partir de uma ótica narcísica,
como extensão de si mesma. Portanto, a construção da consciência passa pela capacidade do
indivíduo de superar a condição narcísica e estabelecer uma relação de alteridade com o mundo.
Quando, por diferentes razões, a relação de alteridade não pode ser estabelecida, o processo de
desenvolvimento psíquico, marcado pela constituição do sujeito, é paralisado, mantendo o indivíduo
num estado de indiferenciação inconsciente. Portanto, do ponto de vista do desenvolvimento da
personalidade, a interrupção ou interdição da alteridade constitui violência psíquica, pois interdita
o indivíduo, paralisando seu processo de subjetivação.
Existem muitas formas de interrupção ou inviabilização da alteridade, portanto muitas formas de
violência psíquica. Abordá-las, em toda sua complexidade, no espaço de uma conferência não
seria possível. Assim gostaria de lançar algumas idéias a respeito de cinco situações — a ameaça,
a indiferença, a impessoalidade, a falta de continência e a desqualificação,— que ao meu ver,
estão muito presentes nas relações contemporâneas e ilustrá-las com histórias da minha
experiência clínica e acadêmica.
Nas relações nas quais impera a ameaça e o medo, e encontro com o outro é inviabilizado, à
medida que, tanto para aquele que ameaça quanto para o ameaçado, o outro é ameaçador. O
primeiro se defende atacando, se impondo, subjugando, o segundo, cedendo, se deixando
subjugar, se vitimizando. Nessas condições, não é possível a relação de alteridade e sim de
mutualidade entre o algoz e a vítima. Para resolver dialeticamente esta situação, ambas partes
precisam se reconhecer no outro, o algoz enxerga-se na vítima e vice versa.
A ameaça pode assumir infinitas formas, desde as mais explicitas às mais sutis. Entretanto os
seus efeitos são sempre nefastos, gerando medo, paralisia e ansiedade. Não permite ao outro
se colocar na relação como interlocutor, como alguém que merece ser reconhecido na sua
dimensão existencial e com o qual é possível estabelecer uma relação de troca e de mútuo
crescimento.
112
Atendi um rapaz que no início da terapia estava com 33 anos. Profissional bem sucedido, se
encontrava em um estado de intenso isolamento interno. Dizia que não percebia mais o tempo
passar, que vivia como se estivesse em um tempo paralelo. Permanecia até 12 horas seguidas
em frente ao computador mergulhado em cálculos matemáticos, chegando a esquecer de comer
ou de ir ao banheiro. No início das sessões relata que no trabalho tem a impressão que as
pessoas passam por sua sala e que não o vêem, acreditando que isto se deve ao fato de
permanecer tanto tempo sentado que é confundido com a cadeira.
No processo terapêutico, ao explorar sua história de vida e ele me dizia que tinha muito poucas
memórias e que na realidade sentia nunca ter estado presente em nada que fizera. Pedi que me
trouxesse algumas fotos de sua infância e a partir das poucas que ele encontrou, começa a
relatar fragmentos do seu passado. Sua mãe sofria de depressão crônica. Era órfã de mãe e pai
desde os 2 anos de idade e fora criada por uma família de amigos. As primeiras e únicas lembranças
que tem dela é que todos os dias ela lhe dizia: “Não se apegue a mim porque vou morrer”. Ou
seja, ela o ameaçava diariamente abandoná-lo, morrendo. Filho único e sem amigos, viveu até
os 12 anos (quando nasce a sua irmã) no isolamento afetivo imposto pela sua mãe. Acordava
todas as manhãs assustado, com medo de que naquele dia a mãe tivesse morrido. Cresceu
brincando sozinho, com medo das pessoas e acreditando que era invisível. Lembra-se que numa
rara festa de família, o marido de uma tia comenta o quanto ele havia crescido e o chama pelo
nome. É nesse momento que pela primeira vez se sente visto e tem a experiência de ser alguém.
No período que antecedera a consulta inicial, ele tinha tido 3 ataques de pânico, todos com o
mesmo padrão. Encontrava-se situações nas quais não podia sair. Começa a ficar ansioso e liga
para a namorada ou para a mãe para conversar e perde a conexão, seja pela falta de carga na
bateria ou problemas no sinal. É invadido pelo medo de estar só e abandonado e o ataque é
desencadeado.
Durante o processo terapêutico, começa a perceber que seu estado de isolamento estava
relacionado com o medo de se vincular e de ser abandonado. Medo que continuava sendo
alimentado pela mãe com a qual ainda vivia. Após dois anos de terapia, em uma discussão com
a mãe, ela insinua que está morrendo e pela primeira vez ele reage dizendo a ela que morresse,
mas que o deixasse viver. A partir desse evento rompe com a identificação primária com a mãe e
inicia um longo processo de reconexão com o mundo e construção da sua identidade.
A segunda situação que quero abordar é a relação marcada pela indiferença, ou seja, quando o
outro é anulado pela falta de interesse ou afeto do seu interlocutor. Nesse caso, a falta de
espelhamento não oferece oportunidade de reconhecimento e gera uma experiência de
esvaziamento e isolamento. Não há um outro a encontrar e com o qual contrastar e ganhar
contornos.
No mito de Narciso, Eco clama pelo encontro, mas Narciso não consegue enxergá-la. Ouve seu
chamado, mas foge assustado, deixando-a solitária transformar-se em rocha. Nessa imagem
encontramos uma bela descrição da experiência psíquica do não-encontro. Eco fica paralisada,
endurece, esvazia-se, pois Narciso não é um interlocutor capaz de reconhecê-la e devolver a ela
a capacidade de se expressar. Narciso, por sua vez, se afoga na própria imagem, perde-se na
inconsciência de si mesmo. Ambos são vítimas da impossibilidade do encontro e da alteridade,
portanto, da impossibilidade de se tornarem sujeitos.
Uma paciente da clínica-escola relata indignada um telefonema recebido. Era uma amiga que
não via há muito tempo. Esta pergunta apressadamente se ela esta bem, o que esta fazendo e
quando começa a responder a amiga a interrompe com uma história sobre o seu trabalho. A
paciente ouve atentamente o relato e quando ameaça a intervir com uma pergunta, é totalmente
ignorada, e a amiga continua falando como se não a tivesse ouvindo. A paciente escuta por mais
um momento e quando arrisca outro comentário a amiga interrompe a ligação bruscamente,
alegando que tinha outra ligação para atender e promete ligar em breve. Ao desligar o telefone a
paciente se sente violentada, como se não existisse diante da amiga que telefonara. Fica por um
tempo paralisada, como se fosse uma lata de lixo ou uma pedra a ecoar o falatório da amiga.
A terceira situação que gostaria de apresentar é a relação marcada pela impessoalidade. Esta
consiste em tratar o outro negando a sua particularidade, ou seja, imprimindo-lhe um rótulo ou
explicação impessoal e generalizante. A relação de alteridade não pode ser construída a partir de
concepções pré-concebidas do outro, pois o risco é não encontrar o outro e sim aquilo que já se
113
pensava previamente. Nesse caso, o indivíduo se vê reduzido a uma perspectiva estrangeira,
muitas vezes simplificada e equivocada. A imposição violentadora de uma verdade alheia ao
sujeito, impede o reconhecimento da diferença e o espelhamento que revela a sua singularidade.
Certa vez, em uma primeira entrevista de terapia, um rapaz visivelmente assustado e desconfiado,
inicia um inquérito minucioso sobre a minha formação e experiência profissional. Percebo que
busca elementos que o tranqüilizasse diante de uma situação que parecia ser muito ameaçadora.
Explica que já estivera em análise com outro profissional e que tinha muitas dúvidas quanto a
retomar seu processo analítico. Relata que a experiência anterior tinha sido muito dura, pois
frequentemente se sentia violentado durante as sessões, uma vez que todas as colocações que
fazia eram desconsideradas ou reinterpretadas pelo terapeuta. Este permanecia em silêncio,
deixando-o falar longamente, até que o interrompia e proferia uma sentença que decretava
univocamente uma verdade sobre a sua vida. No início se sentia paralisado diante das intervenções
do terapeuta e se questionava de quem era a razão, dele ou do terapeuta. Aos poucos a dúvida
se transformou em raiva e indignação, pois se sentia atacado pela forma como era interpretado.
Arrisca algumas reações, mas uma vez mais é interpelado pelo terapeuta, que assinala a sua
resistência diante da análise. Perde a confiança na sua capacidade de julgamento, e passa a
duvidar daquilo que pensa e experiencia como verdade. Sente-se desautorizado a ser o que é e
a construir uma perspectiva sobre a sua vida.
No contexto clínico, a interpretação pressupõe uma construção conjunta, um processo no qual a
realidade do terapeuta reage à realidade do paciente e ocorrem pontos de reconhecimento e
estranhamento. Do encontro de duas personalidades que se confrontam e se contrastam, é
possível emergir uma nova perspectiva para ambas as partes. Entretanto, isto só pode ocorrer
numa relação de alteridade entre o terapeuta e o paciente.
Desse modo, o maior risco para o encontro terapêutico é o reducionismo explicativo do terapeuta.
O terapeuta que busca encaixar o outro no seu modo de explicação, interrompe o processo de
criação da subjetividade do paciente, simplifica, iguala, destrói a possibilidade da diferença, portanto
da individualidade. Nesse sentido, a teoria deve permanecer sempre como referência, não como
forma de explicação do outro.
O quarto ponto que gostaria de abordar é a falta de continência. A construção da relação de
alteridade só é possível se formos continentes à realidade do outro. Se estivermos verdadeiramente
abertos para receber, acolher e sustentar o tempo necessário para que o outro passe a existir
como parte de minha experiência subjetiva e não como algo externo, dissociado dela.
O tempo necessário para a aproximação e construção de uma imagem interna do outro tem sido
cada vez mais subtraído, pela necessidade de inserção num tempo marcado pela produtividade.
Nesse contexto, o tempo é qualificado pela quantidade de coisas que fazemos ou consumimos e
não pela intensidade daquilo que experienciamos. A cultura contemporânea, esse outro com o
qual nos confrontamos cotidianamente no âmbito social, não autoriza as pessoas a gastar tempo
com a sua experiência subjetiva. Somos invadidos por uma avalanche de imagens que nos
dizem o que fazer, o que gostar, o que querer, o como ser etc. e devido ao apelo intenso e
contínuo dessas imagens, a possibilidade de o sujeito voltar-se para si e se constituir como um
outro diante das mesmas é suprimida. Nesse processo o indivíduo, absorvido e identificado com
as expectativas coletivas, não pode estabelecer uma relação de alteridade que lhe permita uma
atitude crítica e diferenciada. O homem contemporâneo é vítima da massificação, é asujeitado
pela cultura e não sujeito da cultura.
Hillman (1989) afirma que um dos grandes desafios da psicoterapia na atualidade é ajudar as
pessoas a transformar fatos em experiências. Vivemos uma realidade repleta de fatos e
informações, mas empobrecida de experiências, isto porque as pessoas não têm mais tempo
para acolher, sustentar e se relacionar com os fatos e transformá-los em experiências subjetivas.
No documentário “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, há um depoimento do
cineasta Win Wenders, no qual ele comenta uma cena de seu filme Paris, Texas. É uma cena
longa, na qual a câmera percorre uma estrada vazia como estivesse na perspectiva do motorista.
Ele discute que ao fazê-la, a sua intenção era dar tempo ao espectador para se projetar na cena
e participar daquele percurso, não com distanciamento, mas como se estivesse mergulhado
naquela experiência. Wenders critica o cinema de ação, que em fração de segundos, despeja
uma enorme quantidade de imagens que invadem e paralisam o processo imaginativo daquele
114
que assiste, impossibilitando uma relação de alteridade com a obra. Ou seja, uma relação na
qual a obra se apresenta como um outro que dialoga com a subjetividade do observador.
No curso de psicologia, ministro uma disciplina que apresenta as técnicas utilizadas em psicoterapia
analítica, entre elas o Jogo de Areia. Na aula introdutória passo um filme, no qual há uma cena de
4 minutos, que mostra um rapaz montando um cenário. Através das miniaturas e do movimento
na areia, conta sem palavras seu sofrimento e angústia. A cada semestre me impressiono com a
reação que esta cena provoca nos alunos. No primeiro minuto há certo grau de interesse e
atenção, que logo vai dando lugar ao incomodo e a dispersão. No final do segundo minuto metade
da sala dorme com a cabeça apoiada sobre os braços. Quando pergunto o que acharam da
cena, verifico que poucos puderam estabelecer contato com ela. Não viram nada além do óbvio,
não sentiram nada, não foram tocados pela narrativa silenciosa do rapaz.
Esta situação me preocupa, pois ela não é um fato isolado no curso de psicologia. Há uma
demanda crescente do aluno por informações rápidas, digeridas, cientificamente comprovadas e
uma dificuldade imensa de se relacionar com o objeto de estudo da psicologia, de ser tocado por
ele, de produzir um conhecimento que inclua também a sua experiência subjetiva. Me questiono,
como esses futuros psicólogos poderão ajudar o outro a se descobrir, se não podem acolhê-lo,
sustentar o seu processo e aguardar que o outro se revele também em sua subjetividade.
Os alunos que iniciam o treinamento clínico em geral são impacientes, querem entender e explicar,
antes de se relacionar. Dão mais valor aos dados estatísticos e classificatórios, do que às suas
próprias imagens e às imagens que o outro apresenta de si. São apressados e não permitem ao
outro o tempo para ser gestado na sua singularidade e especificidade. Assim atropelam o processo
de subjetivação e acabam violentando seus pacientes.
Enfim, a quinta e última situação que gostaria de apresentar e a relação marcada pela
desqualificação do outro. Desqualificar implica em retirar valor, desacreditar, destruir ou minimizar
aquilo que o outro é ou faz. É um movimento destrutivo que desestabiliza, que impede uma
apropriação positiva daquilo que é vivenciado, interrompe e paralisa o processo de
desenvolvimento do indivíduo.
A pessoa que é submetida continuamente a situações de desqualificação passa a não acreditar
em si mesma, se identifica com o discurso desqualificatório e reproduz contra si mesma o ataque
do outro. Nesse contexto, não há relação de alteridade e sim o aniquilamento do outro.
Um dos grandes problemas contemporâneos é o assédio moral no trabalho, situação que envolve
muito sofrimento e que está cada vez mais presente nos consultórios. Pessoas que são vítimas
de um superior sádico, narcisista e inescrupuloso, têm a sua auto-estima destruída, se tornam
ansiosas, medrosas e dependentes, pois são sistematicamente expropriadas de seus valores e
competências. Quando não conseguem reagir ou encontrar apoio externo para romper com esta
situação, acabam presas à perspectiva negativa que o outro lhe impõe.
O assédio moral é definido como qualquer conduta abusiva com gestos, palavras, comportamentos
e atitudes realizadas com repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica
ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho. Pode
acontecer de maneira vertical, entre chefes e subordinados, ou horizontal, entre pares. O tipo
mais freqüente de assédio é o praticado por chefes que humilham seus subordinados.
(HIRIGOYEN, 2002)
Em geral, o agressor possui uma personalidade narcisista. Nutre por si próprio um sentimento de
grandeza, exagerando sua própria importância. Tem excessiva necessidade de ser admirado e
aprovado, é arrogante, egocêntrico, evita qualquer afeto, acha que todas as coisas lhe são devidas.
Ele critica todos que o cercam, mas não admite ser questionado ou censurado. Está sempre
pronto a apontar as falhas. É insensível, não sofre, não tem escrúpulos, explora, e não tem
empatia pelos outros. É invejoso e ávido de poder. Para o agressor o outro é apenas “útil” e não
merece ser reconhecido em sua alteridade.
O impacto do assédio moral na vida das vítimas é devastador, comprometendo vários setores da
sua vida, como a saúde física e mental, os relacionamentos sociais e familiares e a carreira
profissional.
115
Marilena Chauí (1998), define violência como:
(...)um ato de brutalidade, sevicia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações
intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, medo e terror. A violência se opõe
a ética porque esta trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como
se fossem coisas, ou seja, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. (s/p)
A partir dessa colocação podemos concluir que, sendo a ética a possibilidade da relação de
alteridade com o outro, ela é o antídoto contra todo e qualquer ato de violência. Nesse sentido, o
desenvolvimento da consciência ética é fundamental para o indivíduo e para a sociedade.
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Instituição
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Síntese Curricular
Psicólogo; Mestre e Doutor em Psicologia Clínica Pelo IPUSP; Professor e Supervisor do Núcleo
de Psicologia Analítica do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
Psicoterapeuta de Orientação Analítica
116
A Morte e o Horror da Vida a Serviço da Completude do Ser
Maria Ruth Gonçalves Pereira
Ao longo desses últimos tempos dois sentimentos surgem dentro do meu ser: um é a perplexidade
diante dos acontecimentos, das imagens e de tudo que como seres humanos temos construído
no mundo e em relação à vida; e outro a necessidade de elevação do coração, da energia, como
se essa fosse a única maneira de podermos descobrir novas fontes de criação, diante da vida e
do mundo.
A idéia do momento presente é de aproveitarmos de forma livre as idéias replicantes de filósofos
e pensadores, trechos de cartas de Rainer Maria Rilke e os fundamentos da Psicologia Analítica,
para que entrelaçados pela autora venham nos oferecer um material de reflexão que nos permita
efetivamente começarmos a enxergar e a viver a vida em novas bases.
Vemos hoje uma geração de seres humanos que mostra um avanço na crueldade e pouco
avanço na sabedoria, como nos diz Ruskin (1872). Tornamo-nos uma humanidade menos sábia
em proporção à sabedoria e mais cruel em proporção à sensibilidade. Nunca entendemos tanto
a dor , o sofrimento e nunca infligimos tanta dor e sofrimento a nós mesmos e aos outros.
Entendemos os fatos, analisamos, esmiuçamos os acontecimentos e tão pouco agimos em relação
a eles.
Em relação ao desenvolvimento da natureza moral, da dignidade da alma e do caráter avançamos
muito pouco.
Trabalhamos apenas no visível e esquecemos que a base de nosso ser é o invisível. Damos
importância ao imediatamente prático e esquecemo-nos do divino e espiritual, embora falemos e
os estudemos muito.
Todos concordamos quanto à “confusão horrenda” que criamos, como nos diz Lovejouy (1941),
consideramos assustadora a conduta humana em nossa época, mas pouco nos aprofundamos
no resgate de novas bases para a convivência humana.
O paradoxo entre o avanço do homem em relação ao conhecimento e tecnologia e o pouco
caminhar em relação à moralidade fica cada vez mais evidente nos acontecimentos políticos e
sociais que vivemos. Estamos numa era em que criamos instrumentos, meios e não temos
finalidades. “Não há mais ideal mas apenas uma matéria sem alma, que abandonada está
esquálida e definhando”.Há uma profunda defasagem entre as vastas transformações tecnológicas
e os ajustamentos humanos a essas transformações. A crise moral é o traço definidor de nossa
época e é ela que ameaça a sociedade e a nossa sobrevivência como seres humanos, e do
planeta Terra.
A questão dos valores humanos é a causa básica das dificuldades que vivemos. Enquanto
desenvolvemos cada vez mais sofisticados controles sobre a natureza, nos embasamos em
valores “profanos e míopes” como nos diz Sperry (1983).
Precisamos, cada vez mais, ajustar nossos sistemas de valores, tornando-os mais afinados com
os poderes que agora detemos e com os problemas que enfrentamos. Não adianta mais atacarmos
os sintomas: pobreza, poluição, agressão, o que precisamos é constituirmos valores humanos
subjacentes com os quais possamos educar as crianças.
Só quando a ciência, a tecnologia, a capacidade de antevisão, a coragem moral se unirem é que
podemos conduzir-nos na busca de respostas criativas à situação humana em que nos colocamos.
Se a sabedoria não avançar na medida do conhecimento “o avanço do saber corresponderá ao
avanço do pesar” como nos disse Russell em 1952. Enquanto nos mantivermos insanos em
relação aos fins, todo aumento de destreza para alcançá-los nos levará a não-sobrevivência.
Fabricamos ilusões, constituímo-nos atores da vida e isso tudo tem nos levado a um ânimo
depressivo, e esse mal parece se acumular a cada geração.
O progresso do conhecimento e do refinamento circunscreveu nossa imaginação e podou as
asas da poesia em nós, nos diz Hazlitt (1818). Mas é no território da imaginação que encontramos
o visionário, o desconhecido, o indefinido. Os avanços da civilização e do saber lógico e mecânico
afastaram o espírito da poesia. Rompemos o elo entre nossas obras e a fonte original e o resultado
é uma raça forte, poderosa, mas que, deslocada das raízes originais, torna-se destrutiva. Viramos
feras e competimos uns contra os outros.
Mas é só quando nossos lados belos e selvagens voltarem a dialogar é que encontraremos a
117
verdadeira finalidade de Sermos Humanos.
Como nos diz Horton nossa busca hoje é por uma qualidade poética, intensa na vida e no dia-adia, com o privilégio pelo instante que nos foi retirado por uma crença no progresso e nas
motivações instintivas. Nossas crenças nos tranqüilizaram, mas só o Amor poderá nos proteger
da deterioração em que vivemos.
É preciso que despertemos para o corriqueiro, para o quotidiano e nos maravilhemos com eles.
O despertar do espírito humano é o significado que cada fenômeno tem para cada um de nós. O
natural e o simples nos parecem estranhos e difíceis. Precisamos resgatar algumas idéias como
a da simplicidade. O bom pensador deve ser aquele capaz de tornar as coisas mais simples do
que elas são. A natureza tem uma simplicidade que deve ser resgatada. Precisamos descobrir
novas formas de ser e estar no mundo. No universo dos seres vivos vamos explicar o complicado
e o visível por meio do simples e do invisível que, embora misterioso aos olhos do conhecimento
tal como o constituímos, precisa ser devolvido a nós.
O verdadeiro poeta e o verdadeiro filósofo são um só: o belo que é verdadeiro e a verdade que é
bela são as metas deles como nos disse Emerson em 1876.
Estamos precisando resgatar a paz essencial que vem da profundeza do nosso ser, como nos
diz Valéry (1935) e não do consumismo em que vivemos. E o que é ela? “Aquela ausência sem
preço no qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se confrontam, onde o ser
interior é de algum modo liberado do passado e do futuro e de um estado de alerta constante, de
obrigações pendentes, de expectativas à espreita, de ameaças contínuas para uma vacuidade
benéfica que traz a mente de volta a sua verdadeira liberdade, livre de obrigações para com o
saber prático e desonerado de qualquer obrigação para com o futuro”.
A ausência de algo definido no centro da alma nos leva a busca de satisfação momentânea,
damos ênfase ao periférico e esquecemos nossa essência humana. Sem a espiritualidade ligada
a nossa humanidade, terrestre e celestial, vamos nos sentindo escravos das máquinas e “sem
alma e insones procuramos a química que nos devolva o repouso” que, embora dentro de nós,
não mais alcançamos.
É para inaugurar um caminho embasado em nossa origem como humanos, que hoje num
Congresso sobre Violência fui buscar nas palavras de Rainer Maria Rilke e na Psicologia Analítica
alguns elementos que nos despertem para as possibilidades em nós que esperam ser resgatadas.
“Há uma certeza despreocupada na simples convicção de ser parte de uma melodia e de, portanto,
possuir legitimamente um determinado espaço para ter direito e um determinado dever em relação
a uma obra ampla em que o mínimo vale tanto quanto o máximo.”
Nessa base de ser vemos a vastidão de sons e tons que embasa a vida de todos os seres
humanos. A melodia existencial é a base de onde vem às várias singularidades em que nos
constituímos. Sermos pertencentes a essa base e, simultaneamente, sermos únicos, esse é
nosso maior desafio. Afinarmos a singularidade à totalidade que nos embasa e aproxima, é a
finalidade de estarmos presentes nesse mundo.
...“Primeiro a grande melodia em que concorrem coisas e perfumes, sentimentos e tempos
passados, crepúsculos e sonhos, e então as vozes individuais que completam e finalizam esse
coro total.”
Essa é a proposta de Ser Humano no mundo concreto. A experiência egóica que não exceda de
sua base originária, nem se separe da melodia que contém a substância mais essencial de uma
vida totalmente humana.
“... quão inteiriço é tudo que nos sucede, e como tem parentesco uma coisa com outra, gerou a
si mesma e cresce e é criada para se tornar ela mesma; e temos no fundo, apenas que estar aí,
mais simplesmente, mais insistentemente, tal como a Terra está aí, dizendo sim às estações
clara e escura e totalmente no espaço, não desejando repousar na rede de influências e forças
onde as estrelas se sentem seguras.”
Estar no momento presente, no tempo e espaço habituais mas pertencendo a uma dimensão
infinita que engloba Céu e Terra. Ao nos identificarmos apenas com o material, com o espaço e
tempo habituais, perdemos a continuidade que a construção de nossa singularidade poderia ter,
quando embasada na fonte original. Afastamo-nos da melodia básica , perdemo-nos na finitude
material, confundimos o que somos e construímos uma consciência que em vez de arquetípica
fica apenas egóica, e não encontra parâmetros universais de referência. Nossa história se constitui
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apenas da matéria visível e perdemos “as arquiteturas invisíveis que constituem a verdadeira
forma-mundo de nossa existência “como nos diz o poeta.
Uma vez separados em dois : visível e invisível acabam por se afastarem. O ego acaba por
esquecer-se que o lógico, o linear e a causalidade o empobrecem quando afastados do circular,
da abertura celestial que nos garante um voar mais alto. Esquecemo-nos da sincronicidade que
nos alerta para a vivência simultânea entre os dois, que são apenas dois aspetos de uma Unidade
que os ultrapassa.As funções sentimento e intuição quando afastadas, afastam-nos do mais
amplo e de dimensões que ultrapassam o mundo concreto. Há um fio que nos une continuamente
embora nossas experiências sejam várias e diferentes. Tomamos a transitoriedade egóica como
origem e afastamo-nos de nossa origem humana essencial.
O verdadeiro caminho de crescimento – individuação- deve comportar uma alegria de ser que
permanece em cada um de nós, mesmo que nossa identificação egóica seja forte. Percebemos
que a vida é movimento constante, que todas as coisas e seres estão interligados, são
interdependentes, e que a Realidade constitui-se do visível e do invisível, do mundo das formas
concretas e das imagens, da vida vigil e onírica, não como dois isolados, mas como dois que
juntos buscam a completude, a circulação ( a volta circular) que nos oxigena e nos leva a realização
de quem somos. O ser passa a ter privilégio sobre o ter. A vida do quotidiano, o contato com a
natureza, o toque humano, o equilíbrio de forças tem tanto valor quanto as aquisições heróicas
que como ego fazemos.
“Mas ser o que sou, viver o que me foi destinado a viver, querer soar o que ninguém mais pode
soar, brotar as flores ditadas do meu coração: é isso o que quero – e isso decerto não pode ser
arrogância”. ... “Deixar-se cair das palavras imponentes para entrar na melodia única e
compartilhada.”
Abrir-nos para a aventura e desventura de modo que cada coisa possa ir e vir como precisar.
Tomarmos as polaridades não como oposições, mas como dois lados de uma mesma substância,
aprendendo, assim, a viver as duas direções, não mais contrárias, mas como o sim e o não a
que nos arriscamos continuamente.
“Estou certo que o conteúdo das“iniciações” jamais foi outra coisa senão justo a comunicação de
uma “ chave” que permitia ler a palavra “ morte” sem negação; tal como a lua, a vida decerto tem
um lado virado na direção oposta a nós, que não é seu contrário, mas seu suplemento para a
perfeição, a completude para a esfera realmente intacta e total do ser.” .... “A morte tornou-se
algo progressivamente estranho apenas porque a excluímos num surto de reflexão, e, como a
mantivemos na estranheza ela se tornou hostil.”
Que grande lição psicológica está aqui presentificada! O hostil mantém-se hostil porque o excluímos
e o mantemos na estranheza. Tudo que projetamos no outro, negamos ou reprimimos, ao serem
excluídos fortalecem-se e voltam como sombras a nos atormentarem, tomando posse de nosso
ego, ameaçando-nos de dentro para fora, nos sujeitando a eles e destruindo aquilo que com
tanto empenho desejamos construir.
“A vida diz sempre ao mesmo tempo: Sim e Não. Ela a morte (imploro-lhe que acredite!) é a que
realmente diz Sim. Ela diz apenas : Sim. Diante da eternidade.”
Viver é estarmos continuamente divididos entre o sim e o não, e não é isso que nos gera conflitos?
O processo requer de nós a coragem de deixarmo-nos ser guiados pelas duas direções de forma
a podermos configurar a idéia circular de Totalidade que tanto almejamos. É só no momento em
que formos capazes de tomar nosso sofrimento na altura de nosso olhar, é que seremos capazes
de vê-lo como um auxiliar ao nosso crescimento, e não como uma injustiça que devemos evitar.
Sempre que algo nos acontece e corresponde ao que não queríamos que acontecesse deveríamos
experimentar a seguinte atitude: “puxe-a para perto de você, essa coisa terrível; represente,
enquanto não consegue criar isso, uma familiaridade com ela, não a espante espantando-se
com ela. Interaja com ela, ou se isso lhe pedir demais, ao menos cale de modo que ela possa vir
para bem perto, essa essência da morte sempre afugentada, e se aconchegue junto a você. ...
Se (a morte) no momento em que nos ofende e abala, encontrasse um indivíduo amistoso ( e
não tomado de horror), o menor entre nós, com que tipos de confissões ela não se dirigiria –
infinitamente a ele! Um pequeno momento de boa vontade para com o que vem, uma breve
supressão de preconceito, e ela ( a morte) já põe à disposição infinitas confidências, que subjugam
nossa idéia de suportá-la em trêmula expectativa”.
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Deixemos que tudo que nos acontece fale a nós: uma circunstância ruim, uma dor, um sofrimento,
uma perda. Exercitemos uma receptividade ao que nos ocorre de forma que as situações possam
nos “confidenciar” seus segredos e, assim, nossa capacidade de amar – unir lados diferentesvai pouco a pouco se constituindo. Essa é uma “escultura em redondo” e assim definimos o
processo de individuação: saímos da linearidade da constituição egóica e alcançamos o caminho
circular em que nos arredondamos,porque voltamos àquilo que originalmente viemos a ser.
“A própria vida – e não conhecemos nada além dela – não é horrorosa? No entanto, tão logo
admitimos seu horror (não como adversários, pois como poderíamos estar à sua altura?) mas de
algum modo na confiança de que justo esse horror é uma coisa totalmente nossa, apenas uma
coisa que no presente momento é muito grande, muito vasta,muito inacabável para nosso coração
aprendiz ... tão logo dizemos sim ao seu mais terrível horror ... abre-se para nós um pressentimento
do que há de mais bem-aventurado, que a esse preço é nosso ... para viver precisamos acreditar
que todo mal esconde uma bênção pura, que nós cegos, teríamos repelido, se nos tivesse sido
oferecido sem esse disfarce doloroso.”
Só a coragem e a ousadia de podermos acatar em nós – o justo e o injusto, o mal e o bem, é que
podemos alcançar a criação , a paz e a beleza que tanto desejamos. Afastando o horror da vida
não poderemos usufruir às potencialidades infinitas que carregamos.
“A morte é o lado da vida que está voltado para a direção contrária a nós, fora do alcance de
nossa luz: devemos tentar atingir a maior consciência da nossa existência que esteja em ambas
as esferas ilimitadas, que se nutra de ambas inesgotavelmente. A verdadeira forma de vida se
estende até ambos os domínios, o sangue da mais vasta circulação corre através de ambos: não
há nem um Lado Daqui nem um Lado de Lá, mas apenas uma grande unidade onde os seres
que nos excedem “ anjos”, sentem-se em casa.”
Tudo que nos acontece nos aproxima cada vez mais de uma camada mais profunda e interior de
nós mesmos. Nossa linguagem pessoal – verbal e gestual- deveria sempre ir à busca da nossa
mais significante essência, daquilo que nos faz um ser humano autêntico. Tudo que nos é próprio
exige uma linguagem própria , nos diz Rilke. A vida que manifesta nossa essencialidade é infinita
na simplicidade e na alegria.
“Considero arte o esforço de um indivíduo em chegar a um acordo com todas as coisas, as
maiores e as menores, para além do estreito e obscuro,e, nesses constantes diálogos, aproximarse das fontes últimas, silenciosas de toda a vida. No interior desse indivíduo, os segredos das
coisas se fundem com suas mais profundas sensações e se tornam audíveis para ele, como se
fossem seus próprios anseios. A rica linguagem dessas confissões íntimas é a beleza.”
Haveria uma forma mais clara e contundente de falarmos da expectativa de desenvolvimento de
um ser humano a partir de sua alma? Aqui encontramos os ingredientes necessários: um contato
com nossa natureza mais íntima na busca das chaves que nos permitam vivenciar o mundo
concreto sem nos afastarmos de nossas raízes mais profundas. É preciso que exercitemos uma
humildade diante de um inconsciente criativo e impiedoso,que nos entrega elementos novos e
direções, que sempre rebatem velhos hábitos de ação promulgados pelo ego como aqueles que
lhe dão certezas. As contradições que a vida nos oferece é a maneira de podermos nos completar,
atualizando direções que, quando estereotipadas não permitem que o sentido de completude se
configure. Com toda obra de arte vem ao mundo algo novo, uma coisa a mais, nos diz o poeta.
“Ser seguro significa tornar-se cônscio da inocência da injustiça e admitir a realidade fenomênica
do sofrimento. Significa rejeitar nomes para reverenciar por trás deles as criações e as conexões
únicas do destino, como convidadas; significa permanecer imperturbável em relação ao alimento
e à privação, até o fundo da esfera espiritual, tal como em relação ao pão e à pedra; significa não
suspeitar de nada, não expulsar nada, não considerar nada para o outro. Significa viver , para
além de todo conceito de propriedade, em apropriações (não proprietárias , mas alegóricas) . ...
Conceber a insegurança nos maiores termos, numa insegurança infinita, a segurança também
se torna infinita.”
Aceitação do movimento contínuo da vida, sem nos apossarmos, e onde nossos desejos e
carências sejam movimentos espirituais de necessidades da alma e re-encontro com um vazio
pleno que substitua nossos anseios de controle e poder.A consideração infinita por todos os
eventos que nos acontecem, por todos os pólos, de forma a irmos além de cada um,
movimentando-nos nas várias direções que a vida nos propõe é o caminho para abarcamos os
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segredos da alma e conquistarmos a segurança, não mais ilusória, porque plantada nos
fundamentos essenciais do infinito em nós.
“Essa definitiva e livre afirmação ao mundo move o coração para outro plano de vivência. Os
votos que a escolhem não se chamam mais felicidade e infelicidade;seus pólos não são mais
marcados com vida e morte. Sua medida não é à distância entre os opostos .... Ela é a paixão
pelo todo. Seu resultado: equanimidade e equilíbrio de completude.”
Adquirimos a liberdade que só pode acontecer a quem é infinitamente responsável por Si-Mesmo.
A entrega começa com as pequenas coisas e o Amor, como união, vai se impondo gradativamente
à nossa natureza.
Referências Bibliográficas
Rilke,R.M. Cartas do poeta sobre a vida de. Org.Ulrich Bauer.Trad.Milton
Camargo. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2007.
Gianetti,E. O Livro das Citações.Companhia das Letras, São Paulo, 2008.
Pereira,M.R.G. Apostilas do Curso de Especialização na Abordagem
Junguiana.
2000 - 2002
Reflexões Psicológicas sobre as Cartas de Rainer Maria Rilke. 2007.
Instituição:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP
Síntese Curricular
Doutora em Psicologia Clínica pela USP; Professora Assistente Doutora na PUCSP; Professora
e Coordenadora do Curso de Especialização na abordagem junguiana: leitura da realidade e
metodologia de trabalho Psicóloga Clínica: atendimento de clientes e supervisão Supervisora na
Clínica Ana Maria Poppovic
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O Herói e a Sutil Violência
Fernando Cavalheiro
A violência desde sempre expressa a sombra humano. Ela pode ser visível, simulada, trágica e
atraente. Na nossa sociedade pós-moderna ela se transfigura na sutileza silenciosa, através do
ilusionismo. Só os filmes mantêm a plasticidade e o esquartejamento. Quanto mais nos banhamos
no sangue da tela mais exorcizamos o real, nos livramos dele e criamos o hiper-real, onde as
guerras são de videogames e as cenas repetidas, à exaustão, dissensibilizam a dor. Como num
truque ilusionista o herói desaparece e torna-se espectador do mundo que não o alcança.
Terminado o filme, termina a realidade.
Para entrarmos no mundo do herói e de suas patologias, devemos tomar como referência a
Grécia antiga. Desde então o herói se caracteriza pela luta, proteção, manutenção do status,
ruptura, iniciação, quebra do status, retorno e diferença. Assim, o herói na primeira parte da vida
é o protetor da polis, da casa, do útero, da mãe. Permanecendo nesta condição de espaço
estreito, sua força, a libido, fenece e o herói se infantiliza. Mais adiante, o herói caminha para sua
iniciação. Como de hábito no mito, o pai teme pela profecia do oráculo de que será morto pelo
filho. Para proteger-se, encaminha o filho/herói para bem longe e adverte para que esse morra ou
não reapareça. A tarefa do filho herói é a de romper, castrar o pai e sair do estômago de Crono.
Romper a díade parental é apontar a libido para o mundo, para a diferença e suas agruras.
Permanecendo, encontrar-se-á com a esfinge.
Trazendo o mito do herói para nosso tempo de luzes e espetáculo, não nos demos conta do
paradeiro do herói. O desaparecimento ilusionista do herói teve início nos anos sessenta, quando
os jovens começaram a se drogar. Deram-se conta que a última aparição do herói se deu na
segunda guerra mundial. Quando se depararam com o Vietnã realizaram o simulacro da guerra
sem herói, sem sentido. Não se tratava mais de atos heróicos para manter a polis e o nome do
pai, menos ainda, de lançar o herói para a vida, mas, sim, de um genocídio de pequenos interesses
pessoais. O Vietnã inaugurou a alienação e a guerra virtual que se desdobraria no espetáculo da
guerra do golfo. A guerra cirúrgica, escamoteada, dissimulada, que tinha medo de se nomear.
A juventude inventou, com as drogas, a realidade virtual. O que é o real? Nasce uma nova
realidade, feliz, liberta e viajante. Simularam a tríade heróica: ruptura, iniciação e retorno para
droga, sexo e Rock holl. Seu nome é dependência e essa viagem requer mais e mais até a
morte. Como disse Cazuza: “Meus heróis morreram de overdose”.
Outra alienação é a da indústria do entretenimento, do espetáculo, cuja fascinação faz com que
o herói se travista em ídolo como persona do herói. Nos identificamos com o ídolo e nos sentimos
heróis. Mas o ídolo é narciso, vive de aplausos, bajulações e boa remuneração. Já a tecnologia
nos traz facilidades e gozo. Basta um toque no teclado do computador ou do celular e o mundo
vem até nós. Por que romper e passar por tantas agruras, tantos perigos. É mais fácil ver uma
série de sobrevivência na selva, deitado, comendo e bebendo. A inércia paralisa o herói.
Na mesma esteira o herói pós-moderno se fascina e se lambuza com a pletora. O excesso, o
consumo infinito e a facilidade de ter, dão a sensação de saciedade que esconde a falta. Como
uma droga, é preciso consumir para não deprimir. A pletora é como uma gravidez que não dá à
luz, não gera. É Crono que engolindo os filhos, obesos e enfastiados. A conseqüência de tanta
alienação são a paralisação, o medo e o fastio. A libido enfraquecida e sem rumo não consegue,
nem deseja, romper. Nosso herói violentado permanece em casa, adolescente eterno.
Como lidamos com um personagem arquetípico que impulsiona para a separação, iniciação e
amadurecimento, nos deparamos com conflitos que se desdobram em psicopatologia. Passou a
ser comum transtornos mentais como dependência química, na eterna fuga a procura do bem
estar. O retorno ao útero que leva o herói fracassado à depressão que, Impotente, o falo está
com a mãe, vê na morte o fim de seu sofrimento. A ansiedade com medo do mundo, do
enfrentamento, do pai, se expressando em pânico, fobias e ansiedade generalizada. Comportase como alguém que inicia a caminhada mas teme que Pã salte da moita e o ataque. Sua estratégia
é esquivar-se, isolando-se do mundo.
Tanta patologia leva o herói a procurar tratamento. Devidamente codificado, passa a ser medicado.
A indústria farmacêutica está apta a medicar qualquer comportamento entendido como incômodo.
Para cada código um ou mais medicamento. Assim, o herói passa a freqüentar os consultórios,
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ora com alguma melhora ora com dependência. O círculo se fecha. A violência sutil vai inebriando,
alienando e anulando o sujeito, cúmplice de suas escolhas.
Fica uma questão: É possível reinventar o herói?
Instituição
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
Síntese Curricular
Médico psiquiatra, Analista Junguiano pela Sbpa-RJ, Mestre em Filosofia pela PUC-RJ,
Coordenador do serviço de saúde mental do Fioprev-Fiocruz, coordenador do Serviço de urgência
e emergência (Porta de Entrada) da Cassi-RJ
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Violência Sexual Doméstica Contra Crianças e Adolescentes:
A Dor do Corpo e o Silêncio da Alma
Luis Fernando Rocha
1. Reflexões sobre a utilização do termo abuso.
Muitas vezes nos deparamos com a utilização da expressão abuso sexual como sinônimo de
violência sexual contra crianças e adolescentes, tanto na literatura científica (FURNISS, 1993;
LAMOUR, 1997; SOUSA E SILVA, 2002, entre outros) como no senso comum e nos registros
encontrados em processos que foram objetos de pesquisa.
Também o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei no. 8069/90 – em seu art. 130 , utiliza o
termo abuso sexual. Apesar de semelhantes, julga-se necessário uma reflexão sobre a utilização,
a nosso ver indiscriminada, do termo abuso, como sinônimo de violência, quando nos referimos
a práticas sexuais entre adultos e crianças e/ou adolescentes.
Etimologicamente, a expressão abuso sexual é originária do inglês sexual abuse e refere-se a
separação, ao afastamento do us, do considerado normal. Ela decorre do uso equivocado, ou
excessivo. Gabel (1997) compartilha de definição semelhante à do Houaiss (2001).
O agressor sexual pode abusar dos poderes (métodos) de correção ou disciplina, exercidos sobre
a criança ou adolescente, que está sob sua guarda ou responsabilidade, ou sob a égide do poder
familiar, contudo, jamais abusar sexualmente, pois não possui autorização, explícita ou implícita
para usá-la sexualmente.
O termo abuso é compreendido como sinônimo de violência; essa referida noção carrega
implicitamente a noção de domínio pela força e o seu entendimento, como equivalente à violência,
é consagrado pela sociedade e está consolidado por gerações, contudo, tal como os franceses
fizeram, a expressão ataque sexual, além do termo violência, são as mais corretas, em razão da
densidade da palavra, agravando o significado e a dimensão do ato que ela representa e encerra.
A reflexão ganha mais sustentação se recorrermos a teorias psicológicas que demonstram, de
maneira inequívoca, o poder da palavra e dos termos empregados no julgamento e mesmo na
influência para a realização de determinados crimes. Soma-se a isso o fato de o agressor que
pratica esse tipo de violência não ter a compreensão prevista da lei, sobretudo entre os iletrados,
economicamente desprivilegiados. Pode ocorrer que o agressor não tenha estrutura psíquica
para mensurar o seu comportamento por entender, inconscientemente, que ao praticar o ato
sexual com a criança ou com o adolescente, ele simplesmente esteja usando inadequadamente,
ou de forma excessiva, os mesmos, e não praticando um ato de violência ou um ataque sexual.
Assim, propõem-se a utilização dos termos violência e ataque sexual, abandonando-se a
terminologia abuso.
2. A Síndrome do silêncio.
Alimentado por vários fatores, o cenário mais adequado e fértil para a prática e perpetuação do
ataque sexual infanto-juvenil é o núcleo familiar, seja em sentido amplo — família extensa
(envolvendo pai, mãe, irmãos, avós, tios, primos etc), ou em sentido estrito — família de origem
(pai, mãe e irmãos). Tais evidências são corroboradas pelas estatísticas existentes, pois entre os
autores da violência sexual, figuram em primeiro lugar os pais; em segundo, os padrastos; em
terceiro lugar, os tios e primos; e, em quarto e quinto lugares, respectivamente, os namorados e
desconhecidos (VERARDO, 2000).
A dinâmica da família abusiva apresenta várias características diferenciadoras, dentre elas
dificuldade de comunicação entre seus membros; o complô do silêncio; o uso intenso dos
mecanismos de defesa; auto-estima rebaixada; dificuldade com limites e isolamento social
acentuado (SCODELARIO, 2002). As famílias incestogênicas e seus componentes, na maioria
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das vezes, se apresentam como “estruturas fechadas em que seus componentes têm pouco
contato social, principalmente com a vítima” (CRAMI, 2002, p. 19).
Apesar dos demais aspectos da família violentadora, como a disfuncionalidade em relação à
comunicação, o uso intenso de mecanismos de defesa, a rigidez na obediência masculina, o
rebaixamento da auto-estima, etc. (SCODELARIO, 2002; FURNISS, 1993; GABEL, 1997; CRAMI,
2002, entre outros) intui-se que o mais marcante é o silêncio, o segredo que envolve tanto a
família quanto a sociedade e, muitas vezes, até mesmo os profissionais envolvidos.
O silêncio que reveste o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes na família
é um dos diferenciais dessa espécie de violência, em relação a outras, praticadas contra crianças
e adolescentes na família. Como a síndrome do segredo para o vitimizado, a violência sexual é
determinada tanto por fatores externos ? por aspectos específicos de segredo na própria interação
abusiva ?, como por fatores psicológicos internos (FURNISS, 1993).
A violência sexual contra crianças e adolescentes é uma das espécies de maus-tratos que mais
se ocultam, já que o vitimizado tem medo de falar e, quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-lo
(GABEL, 1997).
A dificuldade de enfretamento do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil ocorre em razão
de sua complexidade e se agrava em face da dificuldade da criança e da família em denunciar o
segredo (ARAÚJO, 2002). O silêncio existente no seio familiar, muitas vezes não só da vítima,
mas de todos, ou de alguns dos envolvidos, conduz à perpetuação do fenômeno por várias
gerações, podendo o mesmo tipo de violência ser praticado inicialmente contra um filha/filho e,
em seguida, contra a neta, podendo, ainda, estes vitimizados se transformarem em agressores
de seus próprios filhos/filhas, sobrinhos etc. (SCODELARIO, 2002). O ambiente doméstico cultivado
pela família apresenta-se como local ideal para a prática da violência sexual contra crianças e
adolescentes, uma vez que os limites impostos pela privacidade afastam família e seus membros
dos olhos e dos ouvidos do domínio público, oferecendo aos agressores um local no qual os
ataques sexuais se tornam perfeitos, já que podem ser praticados sem testemunhas ou
acobertados pelo silêncio cúmplice (RIBEIRO et alii , 2004).
Com relação ao segredo da criança ou adolescente vítima, Furniss (1993) apresenta como fatores
externos para a sua ocorrência a falta de evidências médicas ou da prova Forense para amparar
as acusações verbais do vitimizado; ausência de credibilidade na revelação da criança ou do
adolescente vitimizado; medo de represálias, muitas vezes concretizado por ameaças de castigo
ou de violência, não só contra o vitimizado, mas também contra a própria família; ganho secundário
através de suborno e ansiedade em relação às conseqüências da revelação. Como fatores
internos, este autor destaca a negação — que se refere ao conceito psicológico de crença e
assunção da autoria —; a anulação do abuso na própria interação abusiva — “pelo contexto em
que ocorre o abuso, pela transformação da pessoa que abusa na ‘outra pessoa’, por uma camada
interacional adicional de negação através dos rituais de entrada e saída” (FURNISS, 1993, p.3132); a acomodação ao abuso e a criação da pseudonormalidade – “resultado da impossível
tarefa psicológica de integrar a experiência” (ib., id., p. 35).
Para Lamour (1997), citando Summit (1983), o silêncio da criança vitimizada se dá em razão de
o fato ter ocorrido quando ela está sozinha com o adulto e porque jamais deve ser partilhado com
quem quer que seja. O segredo deve ser preservado pela ameaça, pela coação, principalmente
psicológica. Por exemplo: “não diga nada a sua mãe, senão ela vai me odiar; se ela souber, vai
matar você, vai mandá-la para o colégio interno”. Muitas vezes, as ameaças tornam-se, para o
vitimizado, mais perigosas do que o próprio ato.
Em relação à criança ou ao adolescente vítima, também Scodelario (2002) sugere algumas
possibilidades que contribuem para a perpetuação do segredo. Para esta a autora, a vítima pode
sentir-se desprotegida, pois acredita que a mãe sabe, mas não consegue fazer nada para
interromper a agressão; teme pela perda do afeto do agressor ¯ quanto mais próximo mais se
cala; tem receio de que as pessoas não acreditem na revelação, ou ainda, que a julguem culpada
— principalmente se ainda estiver sofrendo violência; além de ter medo de represálias — de ser
retirada do lar ou de sofrer pressões. Assim, a criança nunca diz nada, pois teme a punição, ou a
incapacidade de os adultos em protegê-la da violência de seu agressor (LAMOUR, 1997).
Já em relação ao silêncio dos envolvidos na dinâmica familiar abusiva, Scodelario (2002) também
apresenta algumas possibilidades. Dentre elas, em relação ao parceiro/cônjuge “não agressor”,
125
destaca-se o medo do agente da agressão; o ataque às próprias percepções; vontade de manter
o equilíbrio ou a unidade familiar, mesmo que de forma precária; não querer enfrentar as próprias
perdas, pois tomar uma atitude pode implicar em perda do companheiro ou da filha; e fragilização
do papel de protetora.
Para Scodelario (2002) uma das características apresentadas e que mais contribui para o silêncio
e o segredo da família e da vítima, refere-se aos aspectos relacionados com as dificuldades de
comunicação do meio familiar, quer seja em relação às próprias vivências, quer pelo fato dessa
poder se dar de forma indireta, como o uso de terceiros, formas não verbais, gestos, etc. A
comunicação no grupo familiar é feita com dificuldades de simbolização e elaboração das
experiências emocionais — conflitos intrapsíquicos de forma menos consciente. Ainda, há a
ausência de expressão livre dos sentimentos, limitando-se ao superficial e utilizando outros padrões
de comunicação — mentiras segredos, mensagens de duplo sentido e discurso confuso —
expressas em frases do tipo: “É para o seu próprio bem”; “Ninguém vai acreditar em você”; “No
fundo você gosta”; “Você precisa aprender essas coisas desde cedo”; “Se eu não te ensinar
dessa forma você não vai aprender nunca”. A criança necessita de “carinho e proteção e recebe
sensualidade e humilhação, sendo desrespeitada e violentada” (SCODELARIO, 2002, p. 99).
O discurso do agressor é sempre sedutor — palavras carinhosas e elogios ¯ e exercido de forma
delicada e dissimulada, de tal forma que as pessoas acreditam ser ele incapaz de prejudicar
alguém e, quanto mais, de praticar os atos de violência e abuso.
Segundo Thouvenin (1997), o segredo do incesto comportou uma proibição não só de verbalizar
os fatos, mas também de pensá-los. Muitas vezes a proibição é explícita, mas na maioria dos
casos é tácita e relacionada ao modo de comunicação, não-verbal, predominante nas famílias
que maltratam as crianças. Dessa forma a criança, em busca de ternura, entrega-se ao adulto,
numa “confusão de línguas” (FERENCZI apud THOUVENIN, 1997, p. 94). Nessa relação, a
violência passional é exercida por um simulacro de sexualidade genital.
Para Furniss (1993), a ruptura do silêncio, com a revelação do ataque sexual da criança, conduz
a uma crise imediata nas famílias e nas redes de profissionais, igualmente, salientando que a
abordagem integrada à família deve, conseqüentemente, prestar tanta atenção aos processos
na rede profissional quanto aos acontecimentos na família. O pacto velado do silêncio atinge
todos os envolvidos, seja direta ou indiretamente, na prática abusiva, desde a vítima, agressor,
familiares, ou quaisquer outros que, de uma forma, ou de outra, estejam inseridos no contexto.
Dessa maneira, o segredo, a culpa e a omissão continuam sendo comportamentos usuais no
âmbito da vítima, da família, e da sociedade em geral e traduzem, na prática, uma dificuldade de
materializar a revelação e dar prosseguimento à desmobilização da ação do agressor da violência
e proteção da vítima (LEAL, apud LORENCINI, 2002).
A violência sexual infanto-juvenil no seio familiar, sempre foi, e ainda é um tabu, um assunto
proibido, protegido pelo silêncio, pelo “medo”, pela relação de dependência entre os envolvidos,
apresentando diversas e inúmeras barreiras para os profissionais que atuam ou tentam atuar na
área.
A forma de comunicação existente na família violentadora (re) produz o silêncio da vítima e dos
demais membros da família, contribuindo de forma decisiva para que se mantenha a síndrome
do silêncio. O trauma grave do ataque sexual sofrido pela criança ou adolescente é acompanhado
da impossibilidade de verbalizar e de pensar os fatos. A criança é colocada diante do desejo de
assassinato, assassinato de si mesma enquanto criança. Para o psicanalista americano Shengold
(1977), citado por THOUVENIN (1997, p. 95), tais crianças sofrem um “assassinato da alma”.
Para Cohen (1993) as vítimas o incesto o sentem como o equivalente mental de morte biológica,
isto é, a aniquilação interna de suas estruturas psicológicas, o que as torna impedidas de se
desenvolver e de modificar a sua vida mental. Já Vaiciunas et al. (1993) afirmam que as vítimas
das relações sexuais incestuosas sofrem o equivalente a uma verdadeira “morte psicológica”,
feita de ruptura, em face das conseqüências em curto prazo.
Assim, este tipo de violência sexual, principalmente a praticada por familiares ou conhecidos,
apresenta-se como uma relação de força, imposta através de silêncios, segredos, cumplicidades
e sedução. Os pactos de silêncio mantidos por familiares, amigos, vizinhos, profissionais e pela
sociedade em geral, encobertam situações de ataques sexuais infanto-juvenis domésticos,
desqualificando revelações verbais e não-verbais das vítimas, negando evidências e sinais, em
126
nome de fidelidades, interesses diversos, medos, sigilos profissionais e Justiça. Esses pactos,
silêncios e sigilos contribuem para a re (produção), bem como para a ocultação da freqüência e
extensão do fenômeno, impondo barreiras para o estudo, o conhecimento e o enfrentamento
dessa problemática (FALEIROS et alii, 2003).
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Sintese Curricular
Promotor de Justiça no Estado de São Paulo; Professor de Direito Constitucional, Ciência Política;
Estatuto da Criança e do Adolescente, na UNIP/Assis e na Fundação Educacional do Município
de Assis/FEMA. Mestre e Doutorando em Psicologia e Sociedade - Área de Concentração: Infância
e Realidade Brasileira- UNESP/Assis
127
Crime Passional: Quando o Amor vira Ódio
Maria de Fatima Franco dos Santos
O crime passional é aquele em que um forte sentimento se apodera de uma pessoa. O termo
passional é derivado da paixão, e ela provoca um transtorno temporário que deturpa o pleno
contato com a realidade.
O apaixonado experimenta sintomas da psicose, visto que ele delira e dessa forma, a realidade
se transforma, influenciada por uma idéia fixa. A fixação é em relação à pessoa amada, que é
percebida como alguém fálico, poderoso e transformador.
Vejam-se as distorções vivenciadas por alguém apaixonado: o dia será considerado lindo, mesmo
que esteja cinza; as músicas ouvidas enaltecem o amor e parece que foram feitas para celebrar
aquele momento especial; a pessoa amada, mesmo que seja uma pessoa fisicamente feia, será
considerada bela – o sapo vira príncipe; se essa pessoa apresenta má formação ética e moral,
não será assim considerada, mas como alguém que é maravilhoso, sem defeitos e que os outros
simplesmente implicam com ele. Familiares podem avisar sobre o caráter dessa pessoa, mas,
mesmo assim, todos os comentários negativos são ignorados.
Alguém que não consegue ver a realidade, da forma como foi descrita, não está plenamente
consciente, ao contrário, está delirante, ao perceber de modo equivocado quase tudo que está à
sua volta. Essa deturpação transitória da realidade é uma espécie de “loucura”, portanto. Mas
dificilmente alguém será internado por experimentar esse tipo de loucura, ao contrário, a paixão
amorosa é desejada e valorizada, exatamente por provocar euforia e encantamento.
A paixão faz a vida ficar melhor, principalmente quando é correspondida. Mas ela também pode
provocar problemas sérios, caso a pessoa amada comece a agir de modo a magoar ou provocar
inquietação em demasia. Isso pode acontecer quando o ciúme aparece e aos poucos, substitui
os outros sentimentos. Os motivos que desencadeiam o ciúme podem, também, ser um delírio –
uma equivocada interpretação de um fato. A partir do momento em que o ciúme se torna a tônica
da relação, ela não conseguirá resistir por muito tempo.
A pressão exercida pelo amante enciumado, que terá a idéia fixa da traição, torna-se insuportável
e o rompimento do relacionamento é uma questão de tempo apenas. Nesse momento se pode
observar a intensidade da angústia substituindo o estado de êxtase vivenciado anteriormente. O
amor outrora insistentemente declarado é arrebatado pelo ódio, intenso e persistente. A
ambivalência rompe o equilíbrio do amor, e esse é alternado com a raiva. É nesse período que
um dos amantes procura dar um basta a esse sofrimento e a relação, chega ao fim.
Idéias de vingança vão se juntando à fúria do enciumado, e o luto não encontra espaço para
existir, a não ser o luto real, com a morte do amor que se torna objeto descartável.
Uma pessoa psicologicamente madura assumiria a perda e por ela sofreria profundamente.
Fantasias de vingança inundariam o seu pensamento e pesadelos com enredos de retaliação
dominariam o seu sono. Esse estado passional, que prejudica o trabalho, as relações sociais e
familiares duraria algum tempo, em geral, não mais do que três meses.
Mas quando esse ex-amante não é uma pessoa psicologicamente madura por apresentar
organização de personalidade borderline – em que o narcisismo impede a elaboração da perda –
especialmente porque não consegue tolerar uma situação de abandono e ainda apresenta
agressividade exacerbada, temos os ingredientes necessários para um crime passional.
Esse tipo de crime ocorre quase sempre durante a separação ou pouco tempo depois (Soares,
2002), portanto, motivado pela perda. Não é a perda verdadeira de um amor, pois quem ama não
destrói a pessoa amada, mas é de fato o sentimento de não ser mais o proprietário. A maioria dos
homicidas passionais é homem (Felthous e Hempel, 1995).
Em minha experiência em avaliar criminosos, dentre eles o homicida passional, pude constatar
grande incidência de características de personalidade anti-social ou psicopata, presente na
organização borderline.
Denotam exagerado egocentrismo/narcisismo visto que consideram os outros apenas a partir da
função que desempenham para saciar os seus desejos.
Se perceberem que não mais terão aquela pessoa a lhes servir, porquanto ela é tão somente sua
propriedade e que ela existe somente como decorrência de sua própria existência, não hesitarão
em matá-la, caso a ele ela não mais pertencer.
128
Animais e objetos também são considerados dessa forma, haja vista, que não vacilam em matar
ou abandonar um animal, caso não precise mais dele e também em destruir ou eliminar um
objeto, caso esteja na iminência de perdê-lo.
Podem abandonar um filho ou não reconhecê-lo apenas para não se responsabilizarem com sua
educação ou sustento, uma vez que isso demandaria privações de diversão ou gastos que não
fosse com ele próprio. Em geral, referem-se aos filhos como pertencentes apenas à sua
companheira ou companheiras e não como seus.
O sadismo acentuado é outra característica notada, ao se ler a história do crime inclusa no Processo
Criminal, em que provocar sofrimento à vítima é banalizado.
A manipulação também é revelada, quando esse assassino nega o crime cometido, mesmo que
tenha sido pego em flagrante, ou quando procura atribuir à vítima a responsabilidade por sua
própria morte. Todo manipulador é uma pessoa que mente, dessa forma, também a mentira pode
ser facilmente encontrada em seu relato, através de incoerências em seu discurso.
Como decorrência do sadismo desses indivíduos, nota-se a insensibilidade ao sofrimento alheio.
Essa insensibilidade aponta para a sua frieza afetiva.
Uma outra característica constatada é a instabilidade emocional, quando muda facilmente das
lágrimas ou olhos lacrimejantes para o leve sorriso, ao usar expressões como “bola pra frente”.
A ambivalência afetiva também pode ser vista no criminoso passional, quando assume o crime
cometido, ao relatar que sofreu muito com a perda de sua companheira. Amava-a demasiadamente
e no momento em que percebeu a traição ou a possibilidade dessa, fantasiosa ou real, seu amor
transformou-se em ódio e não mais conseguiu pensar em outra coisa, a não ser vingança, através
da morte de sua ex-amada.
No crime passional, fica evidente a transformação de afetos, polarizados entre a paixão intensa e
o ódio mortífero.
Um outro fato observado na história desses criminosos é a violência doméstica que sofreram, na
infância e adolescência. Situações de rejeição e abandono, principalmente do pai, são comuns.
Também se pode constatar história familiar de violência, mesmo que eles fossem expectadores
de violência física, em que o pai agredia a sua mãe. Esse tipo de abuso é considerado violência
psicológica, porquanto irá deixar lembranças de uma infância sofrida.
Referências Bibliográficas
Soares, Gláucio Ary Dillon (2002). Matar e, depois, morrer. Opinião Pública, 8(2).
FELTHOUS, Alan R & HEMPEL, Anthony. (1995) Combined homicide-suicides: A review. Journal
of Forensic Sciences. 40(5).
Instituição
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Síntese Curricular
Doutora em Psicologia; Professora da disciplina Psicologia Forense na PUC- Campinas desde
1983; Professora da disciplina Prevenção à Violência Doméstica na PUC-Campinas, Professora
de Criminologia, Penalogia e Vitimologia do Ministério da Justiça desde 2002; Professora de
cursos de Capacitação de Autópsia Psicológica, Perícias Judiciais em Psicologia e Parceria do
Psicólogo no Sistema Judiciário; Psicóloga no Sistema Penal de 1988 a 2005; Perita Judicial
nomeada em processos cíveis e criminais; e Assistente técnica em processos cíveis e criminais.
Supervisora em perícias cíveis, criminais, trabalhistas e eclesiásticas. Especialista em Segurança
Pública.
129
Os Transtornos da Ansiedade na Atualidade
A importância do Trabalho Corporal no Campo Terapêutico
Suzana Delmanto
Trata-se da apresentação de uma técnica de abordagem corporal, que pode ser aplicada para
auxiliar no tratamento dos distúrbios da ansiedade causados por tensões cronificadas ou stress.
O trabalho corporal com os Toques Sutis do Dr. Sándor (x1) visa, entre outros aspectos, a conquista
de um reequilíbrio funcional do organismo e de um apaziguamento das turbulências dos
sentimentos. Acompanha o favorecimento de condições diurnas mais favorecidas por um estado
de revigoração orgânica e de ânimo para um dia-a-dia produtivo. O trabalho corporal a ser
apresentado é uma técnica que integra recondicionamento psicofísico e relaxamento, com efeitos
que repercutem na disposição dos humores e na qualidade dos sentimentos.
A Calatonia (x1), atua no reequilíbrio do tônus muscular, das pulsações cardíacas e da cadência
respiratória, podendo ser usada como um procedimento não só curativo, mas também
psicoprofilático. Considerando a questão específica dos transtornos da ansiedade, bons resultados
foram obtidos com este método em contextos psicoterapêuticos.
Nos tempos atuais as neuroses, os medos e as fobias assim como o pânico, fazem parte da
doença da sociedade dos tempos modernos. Os quadros de indisposições podem variar desde
os mais simples até os de mais alto grau de complexidade. O contexto da vida moderna está
repleto de tensões e as crises de desequilíbrios psicossomáticos que são como gritos de socorro.
Jung apontou no transcorrer dos seus trabalhos, para a observação da linguagem corporal dos
sentimentos e das emoções, como está representada na seguinte passagem: “são poucos os
casos de neurose nos quais as vísceras não estão perturbadas” (Jung, 1976, p. 52). Nesse
mesmo sentido, considerando a expressão das emoções na linguagem corporal, Walther Bühler,
numa postura antroposófica, falando do corpo como instrumento da alma e comentando sobre
as interligações com os sentimentos, a consciência e a vontade, asseverou: “O vai-e-vem dos
sentimentos se manifesta nos processos rítmicos da respiração e do batimento cardíaco; ... o
desabrochar da vontade de nossa alma se expressa no sistema metabólico-motor” (Bühler, 1990,
introd.).
Como a Calatonia trabalha diretamente na escuta das manifestações corporais, promovendo
condições para a livre ocorrência de movimentações orgânicas que visam o reajuste das
respectivas funções, podemos visualizar o seu potencial de alcance não só no trabalho com os
quadros mais graves, como fobias e pânico, mas também com os desequilíbrios físicos e psíquicos
de graduações mais leves, que vão se configurando no dia-a-dia em diferentes composições. A
Calatonia, aplicada sistematicamente no contexto terapêutico como um recurso auxiliar, encontra
condições ideais para que os seus benefícios possam se potencializar.
É importante ressaltar que o método de relaxamento calatônico, alem de promover um estado de
rebaixamento da fiscalização da mente racional, criando um estado crepuscular da consciência,
propicia também condições para que o corpo possa criar seus próprios movimentos de autoregulação, sem os bloqueios causados pela interferência da mente racional. As razões pelas
quais a Calatonia costuma apresentar um alcance que, por vezes, se faz tão profundo e
abrangente, podem ser encontradas na análise das bases do método. A essência dos
conseguimentos fundamenta-se principalmente na riqueza da plasticidade sensorial e do potencial
do tato. Conforme comentários de Pethö Sándor e de Asheley Montagu, “é um campo ainda
pouco explorado o da plasticidade sensorial” (Sándor); e ainda “as bases psicofísicas e
psiconeuroimunológicas do tato continuam sendo campos abertos e promissores para a realização
de pesquisas internas” (Montagu, in Delmanto, 1992, pp. 127 e 181). O potencial da pele de
captação de estímulos e de propagação por todo organismo deve-se à sua interligação com o
sistema nervoso, podendo encontrar uma das suas explicações “na sua origem ectodérmica,
130
que na fase embrionária é a mesma do sistema nervoso” (Sándor, cit., pp. 990 e 100). Montagu
“ressalta a pele como órgão tátil, estando envolvida diretamente no desenvolvimento e no
crescimento do organismo, tanto na sua expressão física como afetiva-sentimental e
comportamental” (Montagu, 1988, pp. 21 a 61). O conceito “a mente da pele” (cit., p. 16) é
introduzido nesta abordagem de origem científica, assim como a visão de que “o sistema nervoso
é a parte escondida da pele ou, ao contrário, a pele pode ser considerada como a porção exposta
do sistema nervoso” (cit., p. 23).
Entre as qualidades amplas da Calatonia, temos que os toques cuidadosos, delicados e não
invasivos podem mobilizar sensações por vezes esquecidas, de um acalento que promove
plenitude. Em todos os tempos e nas mais distintas culturas foi sempre reconhecida a importância
do contato no transcorrer de toda a vida, desde o nascimento até a morte. Faz parte da natureza
humana o diálogo pelo contato corporal para um desenvolvimento saudável, tanto físico quanto
psíquico. São numerosas as pesquisas na atualidade nesse sentido, reconhecendo que o contato
físico é fonte de alimento tanto para o corpo como para o mais elevado nível da alma.
Nos tempos atuais conturbados, com tantas informações alarmantes e na presença das
acelerações em todos os campos, os padrões de conduta dos comportamentos passaram a
entrar num estado de constante abalo, configurando a matriz dos distúrbios das ansiedades em
todas as graduações. Uma reaproximação da natureza é, nos tempos atuais, uma necessidade
de vital importância.
As situações imprevistas se multiplicando no dia-a-dia, abalam os alicerces de uma segurança
básica que é imprescindível para o equilíbrio do corpo e dos sentimentos. A reaprendizagem do
viver com a simplicidade da natureza e a reconquista das relações humanas mais plenas,
caminham juntas para o alcance de uma estabilidade perdida, tanto no que diz respeito a uma
harmonização social como no campo do equilíbrio individual.
O trabalho terapêutico que se integra com a linguagem corporal, caminhando junto com uma
qualidade de vida mais saudável, abrem caminho para a dissolução das ansiedades e das
inseguranças.
Temos nesta direção a presença de um campo de luz para uma vida mais produtiva, mais criativa,
mais plena e mais feliz.
Nota x1: Dr. Sándor (1916-1992), médico e terapeuta de origem húngara, veio para o Brasil em
1949. Desenvolveu mais de uma centena de Toques Sutis, a serem aplicados em diferentes
pontos e zonas do corpo. Podemos destacar: as seqüências de descompressão fracionada, o
trabalho relacionado com os pontos de apoio do corpo, as seqüências de giros e de estiramentos
suaves nas articulações, as seqüências de toques de sopro e os toques com o magnetismo das
mãos e do olhar, entre outros. O registro desses trabalhos já foi organizado seguindo o critério de
regiões corporais (Delmanto, S., 1997).
O trabalho central do Dr. Sándor foi a criação da Calatonia. O procedimento calatônico corresponde
a 9 toques aplicados simultaneamente em pontos precisos dos dois pés, incluindo calcanhar e
tornozelo, com um toque de finalização na base da nuca. Cada toque pontual é feito com extrema
sutileza, tendo duração média de 3 minutos. O silêncio e a monotonia do trabalho favorecem a
entrada num estado crepuscular da mente, ao mesmo tempo em que os estímulos térmicos, de
pressão e energéticos captados pelos receptores da pele atuam criando condições para a
harmonização dos fluxos corporais e da tonicidade muscular. O método pode ser encontrado
descrito na íntegra pelo seu criador (Sándor, 1974).
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Beneficiente Tobias; 1990.
DELMANTO, S. Toques Sutis: uma experiência de vida com o trabalho de Pethö Sándor. São
Paulo: Ed. Summus, 1992, 3ª edição.
JUNG, C.G. The Visions Seminars. Zurique: Spring Publications, 1976. A Natureza da Psique. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 1986.
131
MONTAGU, A. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Ed. Summus, 1988.
SÁNDOR, P. Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Ed. Vetor, 1974.
Intituição
Clínica Particular
Síntese Curricular
Psicóloga Clínica, Especialista em Cinesiologia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Autora do Livro
Toques Sutis: Editora Summus, São Paulo
132
Estresse Pós-Traumático e Abordagem Corporal: Um Enfoque Junguiano
Paulo Toledo Machado Filho
Embora os sintomas que caracterizam o transtorno do estresse pós-traumático
(TEPT) sempre foram observados, existindo inclusive descrições precisas dos mesmos em muitas
narrativas épicas de heróis míticos, esta condição passou a constituir-se em uma categoria
diagnóstica somente em 1980, no DSM-III. Encontramos no seguinte DSM-IV o estabelecimento
de critérios diagnósticos onde é enfatizada a situação de exposição a um evento traumático que
tenha sido vivenciado, testemunhado ou ao qual o indivíduo tenha sido confrontado e que tenha
envolvido um medo intenso ou horror em sua resposta. O transtorno caracteriza-se ainda pela
recordação posterior do trauma, geralmente independente da vontade da pessoa (o que pode
ocorrer até meses ou anos após o acontecimento), através de lembranças e com a evocação de
imagens ou sonhos que produzem uma resposta fisiológica correspondente à da experiência do
trauma em si e despertando novamente a sensação constante de perigo iminente. A ocorrência
inesperada do evento traumático, que colhe subitamente o indivíduo, despreparado para o
acontecimento, é outro aspecto importante da manifestação.
Encontramos referências à prevalência do transtorno em ambientes ou situações
de guerra, principalmente entre refugiados e combatentes, quando a taxa de ocorrência chega a
86%, conforme indicação de Carlsson & Rosser-Hogan (1991) em trabalho com refugiados
cambojanos nos Estados Unidos, enquanto entre a população em geral chega a afetar de 1 a 9%
(Lambert & Kinsley, 2005). Parece-nos que esta variação decorre do meio onde se realiza a
pesquisa, sendo que, embora não tenhamos referências sobre estudos sistemáticos realizados
em nosso país, tudo indica que nas regiões periféricas de nossos grandes centros urbanos e
junto às favelas, principalmente em momentos de disputa entre traficantes ou confrontos entre
estes e a polícia, o índice pode ser até maior. Outras condições próprias da vida moderna, como
o trânsito, a criminalidade urbana, o alcoolismo, as tragédias familiares, etc., elevam os indicativos
de prevalência do TEPT.
Fisiologicamente, o estresse agudo produz no indivíduo uma resposta autonômica,
através do simpático, do tipo lutar ou fugir (descrito por Cannon já em 1920), e através do eixo
HPA (eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal), descrito posteriormente por Selye (conforme referência
de Lambert & Kinsley, 2005). O estímulo estressor produz um efeito emocional (medo, horror,
pânico) que envolverá áreas cerebrais como o locus ceruleos, a amígdala e o hipotálamo,
constituintes do sistema límbico e que concentram fibras nervosas que regulam o comportamento
emocional, levando principalmente o hipotálamo a secretar uma substância (CRH) que ativa a
hipófise e faz esta liberar o hormônio do estresse (ACTH), que, ao atuar sobre a glândula suprarenal (adrenal), estimulará esta, por sua vez, a liberar o cortisol. Este influencia as células imunes,
o nervo vago e o próprio hipotálamo, que através de um ciclo de retroalimentação, será inibido. O
conjunto completo de respostas fisiológicas à condição estressora revela como convergem os
sistemas psicológicos, imune, neural e endocrinológico em defesa da vida e como funciona a
unidade corpo-mente. No transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), a recorrência dos
estímulos reativa os efeitos descritos, parece que tornando o indivíduo mais sensível ao cortisol,
pois os níveis encontrados deste geralmente são abaixo do normal.
Observa-se também que as respostas ao estresse variam de indivíduo para
indivíduo, sendo que, para o mesmo tipo de estímulo, não são todos que desenvolvem a
sintomatologia do TEPT. Quando os estímulos são muitas vezes repetidos, pode ocorrer a
Síndrome Geral de Adaptação, também descrita por Selye, que pode incorrer em resistência
(adaptação total ao estressor) ou exaustão (ocorrendo perda de energia e pode conduzir à morte).
Esta observação certamente fragiliza visões deterministas que consideram as respostas
emocionais exclusivamente um fenômeno neuroquímico, sendo importantes outros aspectos que
envolvem o condicionamento deste, como a história de vida, a condição psíquica do próprio
indivíduo, a relação com o meio ambiente e cultural, entre outros fatores, para compreendermos
a manifestação dos sintomas. Encontramos nos estudos antropológicos a descrição dos ritos de
133
iniciação ou de passagem, presentes nas tradições míticas, que exigiam do neófito domínio ou
controle psico-físico sobre as emoções (medo), os estímulos volitivos (fome, sede, interesse
sexual) ou sensações (dor) e que certamente tratavam-se de sistemas coletivos de
condicionamento que também tinham a função de preparar o iniciado para melhor suportar as
condições de estresse.
Embora o TEPT caracterize-se pela sua ocorrência súbita e imprevisível para o
indivíduo, a possibilidade dos fatores desencadeantes desta experiência acontecerem não
deixaram de ser, portanto, culturalmente considerados. Os mitos que evocam o arquétipo do
herói, por exemplo, também parecem traduzir a fragilidade da condição humana e seu empenho
fantástico de superação e sobrevivência. Quando consideramos os grandes temas épicos, como
a Epopéia de Gilgamesh, a Odisséia ou os trabalhos de Héracles, deparamo-nos com o exercício
heróico do enfrentamento de situações igualmente súbitas e inusitadas, em que o personagem
mítico é constantemente colocado em situações limites que ameaçam a sua vida e são submetidos
a sessões contínuas de estresse. Encontramos exemplificadas algumas descrições dramáticas
acerca de nossa temática quando um herói enfrenta as terríveis conjunções arquetípicas que
amedrontaram e inibiram o desenvolvimento da consciência humana, como os aspectos negativos
da Grande Mãe, conforme referidos por Kluger (1954) e projetado na deusa-mãe babilônica Tiamat,
quando esta preparava-se para enfrentar Marduk:
“Ela construiu a Víbora, o Dragão e a Esfinge,
O Grande Leão, o Cão Furioso e o Homem-Escorpião,
(...)
Com veneno em lugar de sangue ela encheu o seu corpo,
Dragões rugidores ela revestiu de terror,
Coroou-os com auréolas, fazendo-os iguais a deuses,
Para que aquele que os contempla
pereça de forma abjeta.
Mais adiante, a autora faz a citação de outro mito sumeriano, a Epopéia de
Gilgasmesh, onde o herói protagonista da história enfrenta o povo escorpião e sua expressão
aterrorizada, conforme a descrição, evidencia a sintomatologia do estresse:
Quando Gilgamesh os avistou,
Seu semblante se tornou sombrio de terror e ele desmaiou.
Mas retomou a coragem e aproximou-se deles.
O homem escorpião apela para a sua esposa:
“Aquele que veio até nós, o seu corpo é a carne dos deuses!”
A esposa do homem escorpião lhe responde:
“Dois terços dele são deus, um terço dele é homem”.
Posteriormente, na Grécia clássica, as narrativas de Hesíodo e Homero nos revelam
uma constelação de heróis que, através de seqüências às vezes frenética de lutas contra os
perigos mais diversos, como monstros, feiticeiras, fenômenos da natureza, animais selvagens,
titãs, promoveram a elevação da consciência humana através da superação de seus temores
inconscientes e contribuíram para que a humanidade realizasse a passagem do mithos para o
logos.
A condição que permite ao herói enfrentar os perigos e melhorar a condição humana
é sua origem semi-divina. Mas as correspondências arquetípicas evocadas nos grandes temas
épicos dos heróis míticos não desapareceram; aprendemos com Jung que eles são os mesmos,
apenas surgindo com denominações diferentes em outros lugares e em épocas diversas.
Atualmente, vivemos o tempo dos super-heróis ou heróis cinematográficos, como Indiana Jones,
personagens igualmente diferenciados e que preenchem a necessidade psíquica da humanidade
de superar a angústia produzida por suas limitações e seus temores. A constelação psíquica da
imagem do herói, correspondendo à constelação de um arquétipo do inconsciente coletivo,
134
certamente tem relação com todo o sucedâneo de respostas fisiológicas e a eferência instintiva
orientada para a conservação da vida humana que se observam nas condições do estresse. O
fato de existirem respostas fisiológicas de proteção da vida assinala justamente que os riscos
que corremos e que ameaçam nossa integridade são previstos tanto em nível biológico (Jung
chega a falar sobre uma possível base biológica dos arquétipos) como através de configurações
psíquicas, conforme observamos acima, e funcionam sinergicamente coordenados, sugerindo
que a hipótese de Jung sobre a sincronicidade aponta também em direção à unidade funcional
corpo-mente. Considerações sobre as suas idéias acerca da relação entre mente e corpo foram
ampla e sistematicamente arroladas por Farah (2008).
A época atual propõe ao ser humano uma experiência de vida inusitada, em relação
ao que foi vivido em toda a sua história. Através de um processo que possivelmente foi
potencializado pela Revolução Industrial, observa-se uma grande concentração populacional nos
meios urbanos, situação que interfere profundamente nos ritmos biológicos naturais. A iluminação
das cidades, o desenvolvimento tecnológico, os estímulos dos sistemas de comunicação
aumentaram o tempo de vigília; os sistemas de transporte prejudicaram definitivamente a qualidade
de vida das populações urbanas, alterando a qualidade do ar e transformando os espaços públicos
em corredores de circulação extremamente perigosos, principalmente para as faixas etárias
extremas; as desigualdades econômicas e sociais contribuíram para fazer surgir áreas de atrito,
responsável pela crescente violência urbana. Todos estes fatores, além de outros não assinalados,
predispõe o homem ou a mulher de hoje a experienciar diariamente o mito do herói e a condição
do estresse parece que passou a fazer parte da rotina de todos nós.
Considerando a compreensão do fenômeno do estresse como ocorrência que
evidencia a unidade corpo-mente, temos enfatizado em seu tratamento o emprego de técnicas
de abordagem corporal juntamente com os tratamentos psicológico e medicamentoso. A
estimulação do paciente a praticar exercícios psico-físicos, como meditação, yoga, tai-chi-chuan
paralelamente às outras modalidades de tratamento tem se revelado bastante eficiente, existindo,
inclusive, muitos trabalhos publicados à respeito e onde são assinalados a importância das
modalidades referidas no processo de dissipação da memória recorrente do trauma, na diminuição
dos níveis de cortisol e na reorientação prática da vida. Em nossa experiência, a Calatonia, técnica
de toques sutis aplicados nos membros inferiores e desenvolvida por Sandor (1974), tem se
revelado bastante eficaz. Esta técnica foi inclusive intuída e desenvolvida em época e ambiente
relacionado com o trauma e experiências limites de dor e sofrimento, em um Hospital da Cruz
Vermelha, durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Sandor refere ter iniciado suas observações
no período da grande retirada da Rússia, quando uma grande quantidade de feridos e congelados
que tiveram seus membros amputados e queixavam-se de dor, muitas vezes referindo-se ao
membro já não existente (dor do membro fantasma), melhoravam quando eram tocados
(observando-se grande carência de recursos nestes locais, onde geralmente faltava morfina e
outros analgésicos que pudessem ser utilizados). Em nosso caso, a utilização da técnica,
juntamente com a abordagem psicoterapêutica através do enfoque junguiano e às vezes com o
uso de medicamentos, tem sido de grande valia, observando-se, igualmente, a diminuição dos
sintomas neuro-vegetativos, diminuição das respostas adrenérgicas associadas à ansiedade,
diminuição nos níveis de cortisol e favorecendo a dissipação psíquica da memória do trauma.
Geralmente o paciente descreve sentir-se confortável e confortado, permitindo-nos enfatizar a
importância da integração físio-psíquica e da abordagem simbólica junguiana na assistência à
vítima do trauma.
RESUMO
Caracterização do Transtorno do Estresse Pós-Traumático, que é examinado em sua
fenomenologia e à luz da compreensão simbólica junguiana, observando-se a importância do
entendimento da unidade mente-corpo, que explicita-se quando é considerada a sua sintomatologia
e conseqüentemente, a eficácia da utilização de técnicas psico-físicas, em particular a Calatonia,
coadjuvando o seu tratamento.
135
Referências Bibliográficas:
Carlsson, E.B. & Rosser-Hogan, R (1991) Trauma experience, posttraumatic stress, dissociation,
and depression in Cambodian refugees. American Journal of Psychiatry, 1991.
Farah, R. (2008) O Trabalho Corporal e a Psicologia de C. G. Jung. São Paulo, Cia. Ilimitada,
2008.
Jung, C. G. (1921) Tipos Psicológicos. Petrópolis, Vozes, 1991.
(1971) Psicologia do Inconsciente. Petrópolis, Vozes, 1989.
Kluger, R. S. (1954) O Significado Arquetípico de Gilgamesh: um Moderno Herói Antigo. São
Paulo, Paulus, 1999.
Lambert, K & Kinsley, C. H. Neurociência Clínica: as Bases Neurobiológicas da Saúde Mental.
Porto Alegre, Artmed, 2006.
Reis, M. R. Espiritualidade e Cura: Conexão da Psique e da Matéria. Revista Junguiana nº 22,
2004.
Sandor, P. e outros (1974) Técnicas de Relaxamento. São Paulo, Vetor, 1974.
Sauaia, N. M. L. & Araújo, C. A. Resiliência e Psicologia Analítica, in Revista Jung & Corpo nº 4,
2004.
Instituição
Instituto Sedes Sapientiae
Síntese Curricular
Médico Psiquiatra Psicoterapeuta Junguiano Sociólogo e Mestre em Antropologia Social (USP)
Professor dos cursos Jung e Corpo - Formação em Psicologia Analítica e Abordagem Corporal e
Cinesiologia Psicológica, do Instituto Sedes Sapientiae, de São Paulo
136
A Violência Urbana no Brasil e o Conceito Jungiam no de Sombra
Antonio Maspoli de Araújo Gomes [[email protected]]
“A questão da identidade brasileira, fundamental para uma compreensão correta de nosso papel
no presente visando a construção do futuro, deve ser colocada a partir de sua verdadeira origem,
ou seja, o reconhecimento da existência de uma alma ancestral do Brasil. E o que quer dizer
isso? Quer dizer que tudo aquilo que foi perdido no processo civilizatório que se instalou em
nossa terra a partir do contato com o europeu. (GAMBINI. 2000. P. 19).
A Violência urbana no Brasil será estudada a partir de uma compreensão de alguns conceitos
jungianos como sombra, projeção etc.
O termo libido é um dos construtos teóricos basilares da teoria psicanalítica. Inicialmente concebido
por Freud como uma pulsão, instinto ou energia de natureza iminentemente sexual, uma força
instintiva específica, este conceito foi posteriormente reformulado para incluir em sua definição
duas pulsões vitais: eros e tanatos. Eros seria a energia ou princípio da vida e tanatos pulsão de
morte. No entanto mesmo com esta modificação não há dúvida entre os freudianos e neofreudinaos
de que a libido é uma energia de natureza puramente sexual.
Jung, contudo, rompe com a concepção pansexualista de Freud, com a publicação da obra
Wandlungen und Symbole der Libido (Transformações e Símbolos da Libido), publicado em 1911/
1912. Nesta pesquisa ele expõe o curso do desenvolvimento da libido na evolução da esquizofrenia,
desde a sua etiologia, até a dissociação completa. Neste texto Jung ampliou o conceito de libido
para designar a energia psíquica em geral presente em toda a natureza. A elasticidade deste
conceito compreende não apenas a energia do psiquismo humano, inclusive aquela de natureza
sexual, mas abarca também a própria energia do universo, a alma mande.
“Como conceito aplicado de energia logo se hipostasia nas forças (os institntos, os afetos
e outros processos dinâmicos), o seu caráter concreto pode ser expresso adequadamente, a
meu ver, pelo vocábulo libido’, pois concepções semelhantes se utilizaram de denominações
parecidas, desde tempos remotos, tais como a vontade de Schopenhauer, a arque de Aristóteles,
o Eros de Platão, o amor e o ódio dos elementos de Empédocles ou élan vital de Bérgson. (Jung,
1998, p. 28).
Esta nova concepção de libido rompe com o pansexualismo freudiano e inaugura o
panpsiquismo que dominará a psicologia analítica numa perspectiva pan energética. O novo
conceito de libido formulado por Jung em 1912, calcado no neoplatonismo e no idealismo alemão,
abrange todos os fenômenos de natureza energética existente no universo. Desta energia Jung
deriva os conteúdos da bioenergia ou energia vital. Esta seria a base da energia psíquica que
circula pelo sistema nervoso central e periférico.
“O conceito de energia vital, entretanto, nada tem a ver com uma denominada força vital,
pois, enquanto força esta nada mais seria do que a forma específica de uma energia universal e,
deste modo, estaria eliminada a pretensão a uma bioenergética, em oposição a uma energética
física, sem se reparar no abismo, até agora então preenchido, entre o processo psíquico e o
processo vital. Propus que a energia vital hipoteticamente admitida fosse chamada libido, tendo
em vista o emprego que tencionamos fazer dela em psicologia, diferenciando-a, assim, de um
conceito de energia universal conservando-lhe, por conseqüência, o direito especial de formar
seus conceitos próprios. Fazendo isso, não tenho a menor intenção de adiantar-me dos que
trabalham no campo da bioenergética, mas tão somente dizer-lhes com toda a franqueza que
empreguei o termo libido em vista do uso que dele faremos em nosso estudo. Para seu uso,
esses estudiosos poderão propor, se o quiserem, os termos bioenergia ou energia vital.” (Jung,
1998, p. 16):
Com esta reformulação do conceito de libido estava posto o machado à raiz da árvore psicanalista.
A libido não se aplica somente aos conteúdos de natureza puramente sexual, amplia-se para
137
incluir todos os aspectos da natureza humana: a mente, o corpo, a linguagem, a sexualidade, a
alimentação, o mito, a religião, a arte, os jogos, o trabalho, o amor, ódio, e todas aquelas atividades
humanas ligadas à cultura. O materialismo freudiano não poderia admitir este novo postulado e o
rompimento entre Freud e Jung estava consumado.
“Ao perceber no Id o instinto de individuação que busca a totalidade, a criatividade de
Jung transbordou a moldura materialista pansexual da psicanálise. Em 1912, Jung publicou o
livro Símbolos de Transformações, no qual expandiu o conceito de libido para torná-lo sinônimo
de energia psíquica, expressão de todo e qualquer símbolo e não somente da sexualidade.
Significativamente, o último capítulo desse livro intitula-se o sacrifício, onde Jung demonstra que
a transição de um símbolo para outro é uma vivência que inclui a perda emocional do que passou.
Como grande intuitivo que era Jung certamente previu que sua nova concepção da libido seria
incompatível com a presidência da Sociedade psicanalítica Internacional e, pior ainda, com sua
filitude científica de Freud. O inevitável aconteceu. O filho cresceu mais que o pai, daí em diante
caminhou sozinho para fundar sua própria psicologia analítica, centrada na realização arquetípica
da personalidade.” Byington(2005, p. 8):
Com esta reformulação do conceito de libido estava posto o machado à raiz da árvore psicanalista.
A libido não se aplica somente aos conteúdos de natureza puramente sexual, amplia-se para
incluir todos os aspectos da natureza humana: a mente, o corpo, a linguagem, a sexualidade, a
alimentação, o mito, a religião, a arte, os jogos, o trabalho, o amor, ódio, e todas aquelas atividades
humanas ligadas à cultura. O materialismo freudiano não poderia admitir este novo postulado e o
rompimento entre Freud e Jung estava consumado.
“Ao perceber no Id o instinto de individuação que busca a totalidade, a criatividade de
Jung transbordou a moldura materialista pansexual da psicanálise. Em 1912, Jung publicou o
livro Símbolos de Transformações, no qual expandiu o conceito de libido para torná-lo sinônimo
de energia psíquica, expressão de todo e qualquer símbolo e não somente da sexualidade.
Significativamente, o último capítulo desse livro intitula-se o sacrifício, onde Jung demonstra que
a transição de um símbolo para outro é uma vivência que inclui a perda emocional do que passou.
Como grande intuitivo que era Jung certamente previu que sua nova concepção da libido seria
incompatível com a presidência da Sociedade psicanalítica Internacional e, pior ainda, com sua
filitude científica de Freud. O inevitável aconteceu. O filho cresceu mais que o pai, daí em diante
caminhou sozinho para fundar sua própria psicologia analítica, centrada na realização arque
típica da personalidade.” Byington (2005, p. 8):
Birman, (2005) aponta outros aspectos responsáveis pelo rompimento entre Freud e Jung:
a rivalidade científica entre os dois; a concepção jungiana sobre o delírio na esquizofrenia como
transformação da libido e não somente como expressão da sexualidade proposta por Freud; as
críticas de Jung ao método psicanalítico da livre associação verbal, que segundo este, levaria a
dissociação e não a cura e o conceito de libido. Este pesquisador, contudo, sustenta com Byington,
(2005) que afirma que no epicentro da cisão entre Freud e Jung existe uma questão epistemológica:
Freud era filosoficamente materialista, portanto, ligado à tradição aristotélica e Jung, idealista,
neoplatônico.
Freud construiu sua teoria sobre o pressuposto aristotélica que prefigurava a mente humana
como uma tábula rasa. Este conceito encontra-se na base da conceituação do inconsciente
freudiano, que em linhas gerais não passava de uma espécie de quarto de despejo para o
repositório das repressões sexuais infantis ocorridas antes da dissolução do Complexo de Édipo.
Jung, por seu turno construiu sua teoria sobre o edifício platônico e agostiniano dos arquétipos
que reafirmava em nível psicológico a possibilidade do conhecimento a priori. .
Na concepção de Jung os processos psíquicos são representações da energia universal
que se acham gravadas no espírito humano desde tempos imemoriais através das representações
coletivas as quais ele denominou. arquétipos. Observa-se que muito do que primitivamente
designava-se por espírito, daimon, ou númen não passa de representações pré-animistas desta
energia. Jung admite a existência de uma estrutura de estreita causalidade psíquica, de sorte
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que a energia psíquica aparece, nas suas concepções, como uma quantidade constante,
suscetível, entretanto, de se transformar e de se deslocar no tempo e no espaço, obedecendo ao
princípio físico da entropia. No tempo, a libido tanto pode ter uma ação regressiva, voltada para o
passado quanto teleológica, direcionada para ao futuro. O tempo da libido é o tempo kairós em
oposição ao chronos. Aquele compreende todos os tempos: o presente, o passado e o futuro. No
espaço a libido pode voltar-se para o sujeito na introversão ou para o mundo, na extroversão, ou
para ambos na extraversão.
“O princípio da equivalência é uma proposição da teoria energética de grande valor prático.
A outra proposição necessária e complementar é o princípio da entropia. As transformações da
energia só são possíveis graças às diferenças de intensidade, presentes no interior de um sistema.
Segundo o princípio de Carnot, o calor só pode transformar-se em trabalho, quando passa de um
corpo mais quente para um corpo mais frio. Mas o trabalho mecânico converte-se constantemente
em calor, que não pode voltar a se converter em trabalho, em virtude de sua intensidade mais
baixa. Deste modo, um sistema energético fechado tende pouco a pouco a reduzir suas diferenças
de intensidade a uma temperatura constante, o que exclui qualquer modificação posterior. É o
que se chama morte térmica.” Jung (1998 p 24):
Jung concebeu a psique como um sistema auto-regulador da libido o qual tende sempre
para o equilíbrio dinâmico entre os opostos. Este equilíbrio provém das profundezas ocultas do
inconsciente que luta terapeuticamente para restaurar o equilíbrio energético do sistema. Por
exemplo, quando a vida consciente de um sujeito é dirigida pela inflação da atividade racionalista
e intelectual, o inconsciente pessoal entra em cena, liberando conteúdos intuitivos, sentimentais
e, ou, emocionais por meio dos devaneios, sonhos, pesadelos, fantasias e até paixões
desenfreadas, para reequilibrar o sistema. Jung, (1998, p.24-25):
“O princípio da entropia só nos é conhecido como princípio, na experiência, a partir de
processos parciais que constituem um sistema relativamente fechado. A psique pode ser
considerada também como um destes sistemas relativamente fechados. As transformações de
sua energia também nos levam a um processo de nivelamento entre as diferenças que, no dizer
de Boltzmann, passam de um estado improvável a um estado provável. Isto, entretanto, reduz
cada vez mais a possibilidade de uma modificação posterior. Observamos este processo, por ex;
no desenvolvimento de uma atitude relativamente permanente e relativamente inalterável. Depois
de oscilações inicialmente violentas, os opostos tendem a equilibrar-se e surge pouco a pouco
uma nova atitude cuja estabilidade subsequentemente será tanto maior, quanto mais acentuadas
tiverem sido as diferenças iniciais. E quanto mais forte for a tensão entre os opostos, tanto maior
será a quantidade de energia daí resultante, e quanto maior for esta energia, tanto mais intensa
será à força de atração consteladora. A uma atração mais forte corresponde uma amplidão maior
do material constelado, e quanto mais extenso for essa amplidão, tanto mais reduzida se torna a
possibilidade de distúrbios posteriores que não podem originar-se de diferenças relativas ao
material não constelado precedentemente. Esta é a razão pela qual a atitude resultante de um
nivelamento é particularmente duradoura.”
A via-régia para a exploração do inconsciente na Psicanálise e na Psicologia Analítica é o sonho.
Jung acrescentou ainda os devaneios, os sonhos acordados, as fantasias, a linguagem simbólica,
o trabalho, a arte e a religião. Ele admite a existência de vivências especiais, chamadas revelações,
nas quais subitamente e quase com força alucinatória, aparece ante o indivíduo uma imagem –
ou uma idéia – totalmente desligada da corrente habitual do pensamento. A estes conteúdos
psíquicos Jung denominou arquétipos. Os arquétipos segundo sua classificação pertencem à
psique subjetiva em oposição à psique objetiva do ego. Os arquétipos admitem vários significados
simbólicos e adquire com freqüência nos sonhos um caráter essencialmente profético.
Jung, (1940), relaciona os arquétipos ao eidos de Platão, seria uma possibilidade psicológica
transmitida geneticamente desde os tempos primordiais que pode ou não ser percebida pelo
conhecimento consciente posto que costuma se apresentar de forma inconsciente. Os arquétipos
são representações coletivas que fazem referências às vivências típicas primitivas que serviram
de substrato para a construção dos mitos, dos ritos e das fábulas.
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“Saindo dos exemplos excepcionais, a forma como cada um de nós lida com dificuldades
e desafios do cotidiano revela em boa parte as qualidades de nosso si mesmo. Isso nos remete
ao conceito jungiano de inconsciente como fonte de criatividade e potencialidade, e não apenas
como fonte e depositário de conteúdos reprimidos, imagens, vivências dolorosas cercadas pelos
mecanismos de defesa do ego. Do inconsciente surgem os impulsos que tomam forma na matéria,
de acordo com o espaço e o tempo de uma pessoa.
O conceito de arquétipo – como representação psicológica do instinto – explica o aspecto universal
dos padrões de comportamento humano, tal como o esqueleto que estrutura e da base ao corpo.
Embora todos tenhamos a mesma anatomia e fisiologia, não há um ser idêntico ao outro. A
maneira como cada pessoa atualiza os arquétipos depende das vivências pessoais, educacionais
e socioculturais. Em cada época, os arquétipos mudam a roupagem como se apresentam embora
seu dinamismo básico permaneça o mesmo.” Ramos e Machado,(2005, p. 42):
Inicialmente Jung emprega o termo imagens arcaicas para designar um fenômeno ou símbolo
arquetípico, posteriormente ele utiliza a palavra platônica arquétipo. Jung afirma ter tomado este
conceito emprestado de Santo Agostinho, no livro das Confissões. Realmente o Bispo de Hipona
tomou emprestado este conceito de São João, o Evangelista.
Em João, arquétipo se refere ao princípio, aos tempos e formas imemoriais, primordiais, no qual
o Cristo, o Logos, deu origem a tudo o que se encontra no universo. (João, 1:1-14, I João 1:1-5).
O conceito chave, oriundo da psicologia junguiana, que nos permitirá desvendar o que de fato
ocorreu durante o processo de conversão dos índios brasileiros ao cristianismo é o conceito de
‘projeção. (GAMBINI. 2000. P. 27-30).
No Sermão da Montanha, Cristo diz: ‘Não julgueis para não serdes julgados. Pois com o julgamento
com que julgardes, sereis também julgados; e com a medida com que tiverdes medido, também
vós sereis medidos. Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão, quando não percebes
a trave que está no teu? Como ousas dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’,
quando tu mesmo tens uma trave no teu? Hipócrita, retira primeiro a trave do teu olho, e só então
verás bem para retirar o cisco do olho do teu irmão’.
Jung afirma que ‘a projeção é um dos fenômenos psíquicos mais comuns. (...) Tudo o que é
inconsciente em nós mesmos descobrimos no vizinho’. Na verdade, a projeção é um fato que
ocorre de modo involuntário, sem nenhuma interferência da mente consciente: um conteúdo
inconsciente pertencente a um sujeito (indivíduo ou grupo) aparece como se pertencesse a um
objeto (outro indivíduo ou grupo ou o que quer que seja, desde seres vivos até sistemas de
idéias, a natureza ou a matéria inorgânica).
A projeção não é a patologia de uma personalidade perturbada, mas um fato natural, por meio do
qual tudo o que é desconhecido na psique pode se manifestar; a questão é o grau de abertura e
a habilidade da atitude consciente para ‘pescar’ esses conteúdos inconscientes na ‘área limítrofe’
da qual se aproximaram.
Imaginemos um campo de luz, relativamente recente, e um campo sombrio, muito anterior ao
primeiro. O dinamismo da relação peculiar entre esses dois campos é dado pelo fato de que o
campo sombrio quer ser reconhecido e o faz pela via indireta da projeção. Ocorre que a intensidade
de uma projeção é inversamente proporcional à abertura da atitude consciente. Se a consciência
combater obstinadamente a emergência de um conteúdo inconsciente, este poderá recorrer a
medidas drásticas para ser reconhecido. Como? Segundo Jung, ‘o inconsciente o faz claramente
por meio de projeção, extrapolando seus conteúdos num objeto, que passa então a refletir o que
antes se escondia nele próprio’.
Uma das melhores situações para esse modo de expressão do inconsciente surge quando o
homem confronta o desconhecido, seja em outra pessoa, outra cultura, uma idéia diferente, um
novo ambiente ou tudo o que ainda está por ser explorado e investigado. Segundo Jung, tudo o
que é obscuro – e precisamente por ser obscuro – é um espelho: ‘Tudo o que é desconhecido e
vazio está cheio de projeções psicológicas; é como se o próprio pano de fundo do investigador se
espelhasse na escuridão. O que ele vê no escuro, ou acredita poder ver, é principalmente um
140
dado de seu próprio inconsciente que ali se projeta. Em outras palavras, certas qualidades e
significados potenciais de cuja natureza psíquica ele é totalmente inconsciente’.
O que devemos ter em mente é que as projeções ocorrem involuntariamente. No linguajar comum,
diz-se que alguém está projetando, como se isso implicasse uma ação consciente. Não é o ego
que projeta; é o inconsciente que se projeta. Segundo Jung, ‘a bem dizer, não se faz uma projeção,
ela simplesmente ocorre’. Esse fato natural se dá porque tudo o que é desconhecido no plano
exterior constitui uma espécie de eco do desconhecido interior. Ele prossegue: ‘na obscuridade
de tudo o que é exterior a mim encontro, sem reconhecê-la como tal, uma vida interior ou psíquica
que é minha. Não se trata de narcisismo, mas de uma afirmação sobre a condição humana e a
relação entre psique e mundo.
Quanto aos fatores que desencadeiam a projeção para Jung os complexos dissociados (isto é,
conteúdos psíquicos autônomos) são uma experiência vivida por todos nós e seu efeito
desintegrador sobre a consciência manifesta-se quando os mesmos se tornam um sistema
psíquico separado e fragmentário. A idéia básica é que um complexo autônomo (ou seja, não
diretamente associado ao ego) pode aparecer por meio da projeção como se não pertencesse
ao sujeito. Tais sistemas, que apresentam as características de ‘pessoas’ distintas do sujeito,
aparecem com toda a força na doença mental, em casos de cisão da personalidade e em
fenômenos mediúnicos – assim como na fenomenologia da religião.
Segundo Jung, ‘conteúdos inconscientes ativados sempre aparecem primeiro como projeções
sobre o mundo exterior, mas no decorrer do desenvolvimento mental eles são gradualmente
assimilados pela consciência e reformulados em idéias conscientes desprovidas de seu caráter
original autônomo e pessoal’.
Enfatizo que não se trata de uma condição patológica em si (embora esta possa vir a prevalecer),
pois tais tendências à dissociação são inerentes à psique humana; caso contrário, conteúdos
dissociados não seriam projetados, nem espíritos ou deuses jamais teriam existido. O perigo
psicológico reside exatamente em negar a existência de tais sistemas autônomos, porque eles
continuam a funcionar independentemente, criando distúrbios dos mais variados tipos – e nesse
caso não serão compreendidos nem assimilados, permanecendo como resultado de algo maléfico
operando fora de nós.
Quando ‘os deuses’ não são reconhecidos, caímos na egomania – não há nada senão o ego, o
único senhor da casa – e aí já se está perto da doença. Percebemos assim o dilema e a sutileza
da projeção: ou aceitamos tais conteúdos como psicologicamente reais, ou eles se tornam
concretamente reais enquanto projeções no mundo exterior. Jung é muito claro a respeito,
lembrando-nos que tendências dissociativas configuram-se como verdadeiras personalidades
possuidoras de realidade própria: ‘São ‘reais’ enquanto não reconhecidas como tal e
conseqüentemente projetadas; são relativamente reais quando se estabelece um relacionamento
com a consciência (em termos religiosos, quando há um culto); mas são irreais na medida em
que a consciência se desliga de seus conteúdos’.
Analisemos agora o problema da projeção por um novo ângulo: se a projeção interfere nos meus
atos de cognição e percepção, como conseguirei de fato ver, em sua própria realidade, esse
Outro que se coloca diante de mim? Será que só vejo pedaços de mim refletidos nele no momento
que acredito estar vendo sua verdadeira face? Se o Outro e o Mundo não passam de espelhos
da minha psique, haverá também um sujeito e uma realidade do outro lado do vidro?
Com base em Jung, podemos afirmar que a projeção é um mecanismo intrínseco da psique
humana e que simplesmente a deparamos. Por outro lado a projeção isola e cria um relacionamento
ilusório com o ambiente. Jung serve-se da imagem de um fator inconsciente tecendo ilusões ao
redor de uma pessoa, como um casulo que no fim poderia envolvê-la por completo”. (GAMBINI.
2000. Pp. 27-30).
“É esse valor de interpretar o material psicológico no nível subjetivo. Somente assim a relação
entre imago e objeto pode ser examinada. Mas aí defrontamos um novo problema, ou seja: até
onde deve ser levada a interpretação subjetiva? Algum traço qualitativo talvez pertença de fato
ao objeto. Poderíamos ainda assim falar de projeção? A resposta de Jung a essa questão é que,
mesmo em tal caso, a projeção ainda tem um significado puramente subjetivo na medida em que
exagera o valor daquela qualidade no objeto. De modo que, se uma projeção corresponde a uma
141
qualidade do objeto – o que nem sempre é o caso – esse conteúdo está ao mesmo tempo
presente no sujeito, posto que a imago do objeto é psicologicamente distinta de sua percepção.
“Consideremos agora o problema ético colocado pela projeção, ou seja, a crítica e o julgamento.
Levando em conta tudo o que foi dito até agora, a questão passa a ser: ‘Como posso julgar e
condenar os outros? O que vejo e critico é uma falha real deles ou uma projeção minha? ’”.
(GAMBINI. 2000. P. 30).
O texto latino é mais direto e diz simplesmente: ‘Tu vês o cisco no olho do teu irmão e não vês a
trave no teu próprio olho’. Essa frase contém um dimensão ética e outra psicológica, mas a
doutrina cristã só enfatizou a primeira.
Certo comentador da Bíblia interpreta essa passagem nos seguintes termos: Cristo ensina o
amor e proíbe o julgamento. Um ‘cisco’ representaria um pecado menos, enquanto a ‘trave’ (que
sustenta o telhado de uma casa) seria mil vezes maior que o próprio olho e corresponderia à ‘falta
de amor, o mais monstruoso, na lei de Cristo, de todos os vícios’.
A despeito desse concretismo um tanto forçado, percebe-se que do ponto de vista ético não há
psicologia alguma, resumindo-se tudo a uma questão de amor e ao reconhecimento dos próprios
pecados em primeiro lugar. Não lanço pedras porque minha casa tem telhado de vidro, e assim
por diante. E como as máximas dogmáticas se desgastam com o tempo, esta em particular
acabou se diluindo num mero problema de boa vontade com os ‘pecados’ alheios, algo que, na
verdade, equivale a um cinismo pragmático.
Mas, se encararmos essa passagem a partir de um ângulo psicológico, veremos algo mais
profundo, que acaba nos levando a um problema ético mais complexo. Em termos simples, o
terceiro versículo do Sermão da Montanha poderia ser parafraseado assim: meu olho tem um
defeito que não reconheço, mas com esse olho defeituoso eu vejo um problema ainda maior no
olho de meu irmão. Isto é, minha consciência do ego (olho) não sabe que pode ser afetada por
complexos inconscientes (trave) e julga-se perfeitamente apta para ver a realidade objetiva do
próximo, quando na verdade o que vejo nele é um incômodo reflexo (cisco) do meu próprio ponto
obscuro – e eu, tragicamente equivocado quanto à natureza do meu problema, quero acusá-lo
pelo seu.
O reverso dessa situação se expressa no dito popular: ‘A beleza está nos olhos de quem a vê’.
Goethe, repetindo um velho dito de Plotino, perguntava: ‘Como poderiam os olhos perceber o Sol
se não contivessem um pouco de seu poder?’.
Existe uma clara conexão entre quem vê e o visto, e creio que a verdade mais profunda contida
no terceiro versículo de Mateus é que ter olhos impuros faz parte da condição humana. Somente
Deus pode ver as coisas como elas são; nós só temos o olho travado e, se não podemos eliminar
o problema por completo, devemos ao menos ter consciência dele. Discutindo o poder avassalador
do inconsciente, diz Jung: ‘Como ninguém é capaz de perceber exatamente em que ponto e em
que medida somos possuídos pelo inconsciente, simplesmente projetamos nossa própria condição
no próximo’”. (GAMBINI. 2000. Pp. 31-32).
“O equivalente moderno da imagem bíblica de cisco e trave aparece na obra final de Jung: alguém
vê um certo brilho num objeto e não percebe que ele próprio é a fonte de luz que faz reluzir o olho
de gato da projeção.
Examinemos um aspecto final do mecanismo de projeção: o fato de haver uma semelhança
entre o objeto receptor e o conteúdo inconsciente do projetado.
Esse aspecto já foi mencionado quando falamos de imago, e agora iremos um pouco além.
Projicere, em latim, significa lançar algo adiante; se aquilo que é lançado ou jogado para a frente
permanece onde caiu é porque algo o reteve. Uma imagem concretista seria a de atirar um anel
numa árvore: se o anel não se prender num dos galhos e cair no chão, a projeção não se consolida.
A polaridade entre impulso para a frente e um recipiente passivo é condição indispensável à vida
psicológica, não podendo, portanto, ser encarada apenas como problema patológico.
Essa qualidade do objeto, que possibilita a aderência de uma proteção, chama-se ‘gancho’ no
jargão psicológico. Abordando esse ponto, Jung diz o seguinte: ‘A experiência demonstra que o
portador da projeção não é um objeto qualquer, mas sempre aquele que se revela adequado à
natureza do conteúdo projetado – ou seja, que oferece a este ‘gancho’ onde pendurar-se’.
142
A existência ou não de tal gancho no objeto costuma criar enervantes dificuldades para quem
procura conscientizar-se de suas próprias projeções ou para alguém que se proponha a analisar
relacionamentos – como faremos neste livro. A questão que essa atitude coloca é a seguinte: se
digo que uma parte do inconsciente de A é projetada em B, será que há algo em B que permite tal
fato ou trata-se de um mecanismo arbitrário? Por que o conteúdo em questão seria lançado
sobre B, e não C ou D? Um homem desonesto projeta sua desonestidade no vizinho; mas pode
ser que esse vizinho também seja desonesto e sirva de gancho. Como vimos quem não tiver em
si mesmo uma determinada qualidade não poderá detectá-la em outrem. A dificuldade psicológica
em tal caso pode ser muito grande porque, mesmo que o segundo seja também desonesto,
nada fica provado quanto à retidão do primeiro, como este gostaria de acreditar. Outro aspecto
do problema consiste no fato de que o objeto – no caso, a pessoa – que ofereceu um gancho
pode assumir duas atitudes: aceitar a projeção e identificar-se com ela, ou simplesmente recusála no todo ou em parte. Esse é um problema típico que se configura sempre que a anima ou o
animus são projetados.
A psicologia analítica fornece tanto ao sujeito quanto ao observador externo um instrumento para
abordar o inconsciente e descobrir algo sobre ele pela via indireta da projeção. Não sei se outras
disciplinas ou técnicas de autoconscientização podem levar a esse mesmo resultado, mas o fato
é que formas de meditação que seguem um conjunto de regras ou um modelo preestabelecido
para abordar o inconsciente – como os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, que
veremos neste livro – não atingem o alvo porque as projeções nunca são encaradas como tais.
Muito pelo contrario: o meditante sente que conseguiu ter a experiência preconizada, mas na
verdade apenas contempla a imagem projetada prescrita pelo manual. O máximo que se pode
atingir por essa via é a confirmação de que certas técnicas espirituais funcionam ou de que
determinado indivíduo está pronto para tornar-se membro daquele grupo. O mesmo se aplica às
formas cristãs de prece ou meditação que acompanham as Estações do Calvário, por exemplo.
O fiel contempla uma imagem dogmática – projeção eventualmente significativa –, mas não a
relaciona à sua própria psique e, portanto, não estabelece um contato vivo com o inconsciente,
nem descobre nada de novo”. (GAMBINI. 2000. Pp. 32-33).
A partir da análise da literatura pretendenmos estudar a violência urbana no Brasil contemporâneo
a partir dos seguintes aspectos:
a)
Um problema ético ainda indefinido sobre o valor da vida humana com profundas raízes
históricas na escravidão e no trato dos viventes;
b)
A influencia no maniqueísmo na formação de juízos morais na sociedade brasileiro como
um todo;
c)
A repressão da sombra entre nós identificada com o daimon;
d)
A projeção da violência no outro: o outro é o demônio:
e)
A necessidade de vítimas sacrificais:
f)
A legitimação do carrasco.
Instituicao
Universidade Presbiteriana Mackenzie(Professor Titular) Universidade de São Paulo(Professor
Visitante)
Síntese Curricular
Psicólogo. Mestre em Psicologia (Psicologia Social) pela Universidade Gama Filho (1995) ; doutor
em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (1999); Pós Doutor em
História das Idéias pelo Instituto de Estudos Avançados da USP(2003). Linhas de pesquisas:
Ethos, identidade e representações sociais do protestantismo brasileiro;b)O arquétipo,o sagrado,a
religião e saúde mental em Carl Gustav Jung. Professor titular da Universidasde Presbiteriana
Mackenzie no Programa de Pós Graduação Ciências da Religião. Pesquisador do Laboratório:
Estudos de Psicologia Social da Religião da USP. É escritor, conferencista e psicólogo clínico da
linha de Carl Gustav Jung. Oito livros publicados!
143
A Violência na Luta pelo Poder na Família dos Átridas
A Instituição do Código de Honra
Maria Zelia de Alvarenga
Violência é palavra de origem latina: viõlentia, com o sentido de: violência, constrangimento.
Violar vem do latim: violo, as, avi, atum, are- com o sentido de violar, forçar, ofender, profanar,
transgredir, obrar contra o Direito e as Leis. Violar e Violência têm o sentido muito similar ao de
hamarthia, ou seja, ultrapassar a medida, atuar contra o Direito e as Leis. O ultrapassar a medida
e atuar contra o pré-estabelecido podem ser entendidos como atuar contra as Leis da natureza
ou como contra as leis do Estado.
A luta pela posse de um território ou de um bem, posse esta que confere poder ou prazer a quem
a consegue, é o melhor veículo para dar emergência a gestos violentos.
A violência emerge onde não há justiça ou o seu exercício é falho, onde não há segurança e a
vivência do poder tem o caráter abusivo por parte de alguns. Assim se dando, os direitos individuais
não são respeitados porque o abusa do poder confere a competência da força para ter ascendência
sobre o direito do outro, qualquer que esse outro seja, pois o outro passa a ser considerado tão
somente como um bem de consumo. Esse outro seja um ser humano abusado, vilipendiado,
ultrajado, estuprado, seja a Grande Mãe natureza espoliada, contaminada, ofendida, sejam as
instituições corrompidas e usadas como bem pessoal, traduzirá sempre o exercício abusivo do
poder.
O exercício abusivo do poder desconhece o outro como entidade em si, e dessa forma, o coletivo
será sempre espoliado para a satisfação de um em detrimento de muitos.
A consciência de ser parte de um grande sistema precisa ser cultivado desde a mais tenra idade,
decorrendo dessa situação a necessidade explícita de um processo de educação que atenda as
demandas do coletivo. A consciência de sermos parte integrante do todo e, portanto, responsáveis
pelo destino do Planeta, é imperiosa de ser cultivada, desenvolvida, e, mais que tudo, transformada
em símbolo estruturante da identidade de todos nós.
Quando Tíndaro anunciou o propósito de sua filha Helena se casar, uma multidão de pretendentes
se apresentou: vinham todos das mais diferentes partes do continente helênico e ilhas adjacentes.
Eram homens rudes, grosseiros, violentos, guerreiros, conquistadores, insubmissos. Cada qual
tinha seu reino, suas posses, seus escravos, seus rebanhos, símbolos de suas riquezas. O
ambiente em Esparta, no castelo de Tíndaro e Leda tornou-se progressivamente mais tenso. O
rei, dada a quantidade de pretendentes, temia fazer a escolha de um deles e, como decorrência,
provocando a revolta e lutas marcadas pela violência, desafetos, vinganças e mortes entre os
demais.
O modus operandi era apoderar-se do objeto, da coisa, do território desejado. Os olhos detectavam,
o desejo de ter o que os olhos viam emergia e a fúria cega por conquistar se fazia presente,
atropelando o que quer que fosse pela frente. O desejo que vem dos olhos faz os homens se
empenharem em guerras de conquistas.
Nesse momento o objeto de desejo é “a mais bela mulher do mundo” – adjetivação pela qual
Helena é conhecida. E, para tê-la, os pretendentes se matariam entre si...
Eis que o solerte Ulisses, componente da chusma dos desejosos, porém sabedor de suas precárias
chances de ser escolhido como marido de Helena, o que o define previamente como um herói
reflexivo, com atitude extrovertida e regência de consciência de tipo pensamento, intui uma solução
que lhe custará, no futuro, vinte anos de sua própria vida. O herói das façanhas e das oportunidades
procura Tíndaro (Apolodoro: 1994; 168) e lhe diz ter uma solução para o impasse, mas somente
a revelará em troca de favor especial. Tíndaro, depois de muito refletir, mas também assoberbado
com a iminência de uma guerra entre os pretendentes, e também com os muitos possíveis prejuízos
para seu reino, acede à solicitação de Ulisses.
-Pois bem, meu caro! Qual a solução que propões? E, que queres em troca?
Ulisses, sem muitos rodeios explica ao monarca ter uma solução muito simples: bastaria congregar
todos os participantes em um grande juramento de respeito e rendição à decisão tomada diante
144
do impasse criado. De que forma?
Em primeiro lugar fica claro a todos que a escolha de um dos pretendentes será exclusivamente
da alçada de Helena! (Eurípides- 1979; 445 a 470)
Em segundo lugar fica tácito, por compromisso entre todos os presentes, que a decisão de Helena
deverá ser respeitada integralmente, não cabendo a ninguém o direito de discordar;
Em terceiro lugar fica estabelecido que se no futuro, eventualmente, alguém vier a transgredir o
juramento realizado, todos os demais cerrarão fileiras em torno do escolhido para defendê-lo da
ofensa.
Atentemos para a realidade simbólica: está criado o código de honra da dinâmica patriarcal, ou
seja,
Se um for ofendido, todos irão combater o ofensor;
Não se pode desejar a mulher do outro;
Palavra empenhada vale tanto quanto um fio de barba ou de bigode.
Ulisses configura, nesse momento, a instituição simbólica do código de honra,
alicerce fundamental da dinâmica patriarcal. Mas, mais que isso, ao devolver ao feminino, à
deusa, à mulher, o direito de decidir, está inaugurando os primórdios da dinâmica de Alteridade.
Na mítica arturiana essa demanda do feminino pelo direito de ter sua autonomia de escolha
devolvida será encontrada na lenda de Lady Ragnel, por mim descrita e simbolicamente analisada,
no texto A lenda do Graal (Alvarenga: 2008,66).
Tíndaro se surpreende com a sagacidade de Ulisses, apesar de incomodar-se com a condição
de passar às mãos da filha o direito de escolher o próprio marido. No seu entender, ou referencial,
este é um direito como também um dever da competência do pai!
Talvez esta seja a forma como a mítica da dinâmica patriarcal encontrou para descrever o processo
de passagem das dinâmicas: na matriarcal, a deusa soberana rege, determina, escolhe sobre
tudo e todos. O feminino decide com qual macho irá copular. O reino de Esparta ainda carrega os
resquícios expressivos dessa dinâmica primordial: sua rainha Leda ainda tem a competência das
manifestações hierofânicas, o consorte permanece regendo ao lado da rainha. Tíndaro, na
realidade, é um príncipe consorte, tanto quanto o futuro marido de Helena que permanecerá
regendo em Esparta, apesar de Helena ser irmã de dois grandes guerreiros – Castor e Poluxque poderiam reinar como sucessores de Tíndaro; todavia será Helena e seu futuro consorte que
herdarão a terra.
Apolodoro (2004) tem, entretanto, uma versão para o fato, contando o seguinte: Castor dedicavase à prática da guerra e Polux a do pugilato, recebendo ambos, por suas valentias o nome de
Dióscuros, ou seja, filhos de Zeus. Os irmãos, desejosos de se casarem com as filhas de Leucipo
as raptaram de Messina e as tomaram como esposas. De Polux e Febe nasceu Mnesilau e de
Castor e Hilaíra nasceu Anagon. Os irmãos, sempre tomados de grande amor fraterno,
empreenderam certo dia, na companhia dos filhos de Afareu, Idas e Linceu, levarem da Arcádia
um rebanho e encomendaram a Idas que as repartisse em quatro partes. Idas, entretanto, propõe
um desafio sem o prévio consentimento dos demais: mata uma vaca e a corta em quatro pedaços
e diz que a metade do botim seria daquele que conseguisse devorar em primeiro lugar, sua parte
e quem terminasse em segundo, seria dono da segunda metade. Idas se apressou em devorar
sua própria e parte e, incontinente, devorou a parte de seu irmão. Na companhia do irmão levou
o botim para Messina. Os Dióscuros, revoltados, marcharam contra Messina e recuperam o botim
e outro lote bem maior. Os Dióscuros armaram uma emboscada para Idas e Linceu, mas Castor
foi visto e morto por Idas. Polux perseguiu Linceu e o matou com sua lança. Porém quando
perseguia Idas foi atingido por uma pedra lançada por Idas e caiu desfalecido. Zeus fulminou Idas
e levou Polux para o Olimpo; Polux, todavia, não aceitou a imortalidade enquanto Castor
permanecesse morto. E, Zeus concedeu a ambos a graça de viver um dia entre os deuses e
outro entre os mortais. E, continua Apolodoro, como os Dióscuros permanecessem ligados aos
deuses, Tíndaro chamou Menelau e entregou-lhe o reino (pgs. 167e 168)
Tíndaro aceitou a sugestão de Ulisses e fez a proposição ao grupo de pretendentes, os quais,
passado o espanto diante da revelação insólita, do impacto causado pela emergência dos novos
tempos, tomam consciência do que não pode mais ser contestado. Assim, as decisões deixavam
145
de ser o espaço dos desejos e demandas primordiais, pessoais, para estarem submetidas aos
interesses e decisões do grupo, do coletivo. A submissão torna-se um ato decorrente de uma
decisão por escolha da maioria, tornando cada um responsável pelos seus feitos, sem a antiga
consígnia do domínio de demandas cegas decorrentes de vontades divinas. O compromisso é
firmado entre todos. Dessa forma, os primórdios do processo democrático estão instituídos. O
direito e a manutenção da posse estão assegurados.
Helena rejubilou-se com as falas do pai! Precisava de tempo para avaliar, medir, comparar,
sintonizar, se ocupar de escolher! A escolha irá recair sobre Menelau. Apolodoro (2004; 167)
relata que Tíndaro aceitou prontamente os conselhos de Ulisses e, tão logo conseguiu as juras
de todos os pretendentes, fez ele próprio a escolha de Menelau.
Ulisses faz seu pedido a Tíndaro: quer se casar com Penélope, prima de Helena, sobrinha do rei,
filha de Icário e Peribéia, uma ninfa Náiade. O rei consente e as bodas são realizadas. Ulisses
leva Penélope para sua casa em seu reino na ilha de Ítaca, que herdara de seus pais: Laerte e
Anticléia.
Agamêmnon estava ligado a Menelau por juramento, bem como todos os demais chefes helênicos,
ou aqueus, como os chama Homero. Quando Helena foi raptada por Páris, príncipe troiano,
Agamêmnon foi escolhido como comandante de todos os confederados unidos pelo juramento
(código de honra) de defender Menelau, o escolhido por Helena, da ofensa.
Agamêmnon configura a explicitação da sombra, pois enquanto representa como chefe aqueu o
defensor dos direitos do outro, no plano pessoal parece assumir, por completo, a herança maldita
dos Átridas. Ao mesmo tempo em que Esparta percorre os caminhos da instituição do terceiro
tempo da consciência, da dinâmica póspatriarcal, Micenas, sob a regência de Agamêmnon parece
manter a maldição da dinâmica das maldições hamárticas, sob o signo das deusas da vingança.
Logo após o casamento de Helena e Menelau, Agamêmnon, ainda solteiro, tomou Clitemnestra,
irmã humana de Helena, que já era casada com Tântalo II, filho de Tieste e com quem tinha um
filho recém nascido. O átrida, ensandecido, possuído pelo desejo que ignora as regras do coletivo,
matou Tântalo II e o pequeno filho do casal e levou Clitemnestra para Micenas. Disputa o reino
com Tieste e também o mata, assumindo a regência não só da cidade, mas de toda a região da
Lacedemônia. Egisto fugiu para se proteger, mas jurou vingança.
A instituição do código de honra define claramente o Estado de Direito, com o que as leis serão
instituídas, o direito da maioria prevalece, a regência de um valor somente poderá ser alterado
com o consentimento dos demais.
O fato instituição do Código de Honra não significa absolutamente que a violência seja eliminada,
mas assegura a qualquer um o direito de ter seu domínio defendido e protegido pelo coletivo, ou
por quem o representar.
O fato de estarmos hoje assoberbados pela violência traduz, certamente, a condição de não
contarmos com a proteção do coletivo e que nos é devida por direito instituído.
Referências Bibliográficas
ALVARENGA, MZ , O Graal, Arthur e seus Cavaleiros, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2008.
APOLODORO: Biblioteca Mitológica, tradução, introdução e Notas de Julia Garcia Moreno, Alianza
Editorial, 2004
EURÍPIDES, Helena Fondo de Cultura Económica México, 1979.
Instituicao
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica
Síntese Curricular
Médica, psiquiatra, analista junguiana (SBPA, IAAP) autora dos livros: O Graal, Arthur e seus
Cavaleiros e autora e coordenadora do livro Mitologia Simbólica; vários artigos sobre Psicologia
Analitica publicados na Revista Junguiana (SBPA)
146
Justição Penal Humana e Solidária
Roberto Delmanto Junior
“Aqueles que desejam abrir mão da liberdade a fim de obter segurança, não terão, nem merecem
ter nenhuma delas” (Thomas Jefferson).
A existência humana é repleta de momentos de alegria, de miséria e de superação de obstáculos
que aparentemente se mostram intransponíveis. Esses momentos decorrem em boa parte das
condutas que adotamos.
Quando vencemos o egoísmo e tomamos a iniciativa de agir de forma solidária, ética, humana e
criativa, incrementam-se as chances de reverter situações que tendem ao desastre e à desolação
(Hanna Arendt). Para tanto, necessário é acreditar que podemos, cada um de nós, fazer a diferença,
por menor que seja.
Em meio às virtudes humanas, lembradas por Aristóteles, como ser corajoso (não temendo
desafios), moderado e pacífico (evitando a violência), generoso (agindo com compaixão), franco
(agindo com boa-fé) e justo, é a Justiça certamente a maior delas (Platão).
Afirmavam os romanos: não lesar, viver honestamente, e dar a cada um o que é seu, de acordo
com o seu esforço e trabalho. Quando se dá a alguém algo que ele não fez por merecer, cometese uma injustiça com outro que lutou muito para conseguir aquela mesma coisa.
A exigência de justiça surge da própria essência do ser humano, da consciência de sermos
distintos um do outro e da operação mental de nos colocarmos na posição do próximo para saber
se deixaríamos que fizesse conosco o que queremos fazer com ele. O próximo é visto com igual
dignidade e não como um objeto.
Como se vê, Justiça pressupõe igualdade, proporção, equilíbrio de valores e tolerância ao diferente.
É por isso que, antes de falarmos em luta contra a criminalidade por meio da Justiça Penal, o
Estado tem que priorizar as outras Justiças, como a social (igualdade de oportunidades de
desenvolvimento, independentemente de classe, com acesso à saúde), a econômica (que é
incompatível com a miséria de nossas favelas), a tributária (para que o Estado não confisque o
patrimônio dos cidadãos) e a educacional (igualdade de educação).
Não podemos nos iludir e acreditar que a luta contra o crime deve ser feita exclusivamente com
o Direito Penal. Somente quando assumirmos essa limitação é que, talvez, daremos a devida
atenção às outras Justiças, sem dúvida muito mais eficazes nessa batalha, como lembra Giorgio
Del Vecchio, um dos maiores juristas italianos.
Sem deixar de reconhecer a importância do Direito Penal ao assegurar paz e tranqüilidade,
reafirmando com a punição de criminosos os valores da nossa sociedade e prevenindo que
novos crimes venham a ocorrer, questionamos a justiça penal máxima que vem sendo
implementada no Brasil.
Seriam mesmo necessárias essas investigações que têm sido realizadas pela Polícia Federal
com o apoio do Ministério Público e de Juízes que acabam comandando as investigações, em
um verdadeiro triunvirato acusatório ?
Um “rolo compressor” que passa por cima de tudo e de todos, com investigações secretas, sem
acesso do advogado, com grampos telefônicos intermináveis, e com a decretação indiscriminada
de prisões temporárias para obter confissões, com direito à execração publica ?
Dizem que só há reclamação contra esses abusos agora, já que a elite estaria sendo atingida.
Isso não é verdade. Aqueles que se preocupam com os Direitos Humanos sempre protestaram
contra esses abusos, seja o acusado rico ou pobre.
Embora as intenções sejam boas (como se diz, o Inferno está cheio de boas intenções), a história
do Direito Penal, com suas cruéis penas e infames torturas, já provou que esse caminho pode
levar a uma ditadura do Judiciário, que tem sido refreada pelo Supremo Tribunal Federal ao
defender a Constituição.
Mais uma vez com apoio em Del Vecchio, lembramos que a história do Direito Penal, em razão
dos seus abusos, é tão vergonhosa quanto a história do crime que combate.
Sedutora ilusão é essa justiça penal máxima, que não é justa e nem é Justiça (com “j” maiúsculo)
porque viola o que há de mais elementar ao Estado: o respeito à dignidade e aos direitos
fundamentais de quem deve ser investigado, não como um objeto, mas como um sujeito de
147
direitos.
Temos que lutar contra todos os tipos de violência, não só a de criminosos, mas a do Estado e
àquela outra, por vezes disfarçada, perpetradas por nós mesmos quando não respeitamos o
próximo. Afinal, como se diz, e com razão, violência gera violência...
Roberto Delmanto Junior, 39, é mestre e doutor em Direito pela USP, advogado criminalista e coautor do livro Código Penal Comentado (Renovar), além de outras obras.
148
The political clinic (workshop)
Andrew Samuels
A política também entra no consultório?
A idéia da Clínica Política no mundo contemporâneo
Andrew Samuels
I General explanation
of the workshop which is experiential and if people do not participate it is pointless. There will be
discussion in the group and in small groups of 2-3 or 3-4. This political clinic explores how the inner
and the outer are linked etc. How we all have an ‘internal politician’. How we can become more
politically self-conscious. It’s a psychology-style workshop on a political theme. I will tell the history
of these political clinics as well.
II Sculpt (experiential physical exercise) of Brazilian political pain:
stand up, face your neighbours in your row and the rows in front and behind, make eye contact,
sculpt your political pain with your body (I will demonstrate), look around, add sound (I will
demonstrate), listen to what is happening in the room. When you are done, take a moment to
share your feelings and reactions with your neighbours.
III Political memory
People are asked to recall their earliest political memories and share them with the group. A kind
of conversation begins.
IV Political origins
Where did you get your politics from? Discussion of the influence of: mother, father, peers, teachers,
priests, your sex, your sexual orientation, your socioeconomic journey, your ethnicity, unknown
factors.
V How political are you?
On a scale of 1-10 where 1 is not very interested and 10 is very activist, in general what is your
score? How does that change in various contexts? At home versus at work? In same sex groups
versus mixed groups.
VI The internal politician
GS: I may not do this number VI, it depends on how the time is going. Yet I need you to do the bit
of work outlined below (sorry)
what kind of political style do you use? We will work over the following list: warrior, terrorist,
exhibitionist, leader, activist, parent, follower, child, martyr, victim, trickster, healer, analyst, negotiator,
bridge-builder, diplomat, philosopher, mystic, ostrich.
VII Political anxiety
Thanks pleas ebe sire tp bring enough copies for everyone
Everyone shares their worst political anxieties and nightmares, now and in the future.
VIII Political hopes
Everyone shares their visions and hopes for the future.
Instituição
University of Essex
Síntese Curricular
ANDREW SAMUELS é internacionalmente conhecido como uma das maiores autoridades em
problemas políticos, sociais e culturais do ponto de vista psicológico e psicoterápico. Em
149
complementação ao seu trabalho clínico e acadêmico, ele também atua internacionalmente como
consultor político. É professor de Psicologia Analítica e Estudos Junguianos e Pós-Junguianos
na University of Essex, Reino Unido. É também professor visitante de psicanálise em Universidades
de Nova York, Londres e Roehampton. Fundador do grupo Psicoterapeutas e Conselheiros pela
Responsabilidade Social, co-fundador do grupo Judeus pela Justiça para os Palestinos, ativo no
cenário inter-religioso na Inglaterra e nos Estados Unidos. Freqüentemente visita o Brasil, preferindo
palestras e realizando consultorias. É autor dos livros: Jung e Os Pós-Jungiuianos (1985); O Pai
(1985); Dicionário Crítico de Analise Junguiana (1986); A Psique Plural (1989); Psicopatologia:
Perspectivas Junguianas Contemporâneas (1991); A Psique Política (1993); e A Política no Divã
(2001).
150
Roda Anti-violência por Meio de Danças Circulares, Artesanato e Contos
Lydiane Regina Pereira Fabretti
Tânia Pessoa de Lima
A proposta desta oficina visa proporcionar a vivência e a reflexão sobre alguns princípios que
regem a condução de um grupo destinado a favorecer a experiência de alteridade em diferentes
grupos, culturas e dos indivíduos com eles mesmos. A partir disso, contribuir para que os
participantes elaborem estratégias multiplicadoras das experiências de integração do self, visando
saúde psíquica e a não violência.
O trabalho com grupos na psicologia junguiana pode ser compreendido mais amplamente a
partir do conceito de self grupal (FREITAS, 2005). Essa perspectiva considera a constelação de
um campo psíquico compartilhado, consonante e fluido, permitindo um trabalho de experimentação
e de reconhecimento de si e do outro, movimentos pertinentes ao processo de individuação. A
experiência em grupo é natural ao humano, considerando que o desenvolvimento da personalidade
individual acontece em relação com outros, na medida em que partimos de um estado de nãodiferenciação psíquica na infância e na relação com nossos familiares e outros membros da
sociedade, formamos a estrutura de uma consciência que ao mesmo tempo deve ser capaz de
lidar com nossos impulsos internos e com a realidade externa. (NEUMANN, 2006). A partir da
constituição de uma identidade nos mantemos toda a vida em interação com o grupo a fim de
exercer nossa pessoalidade de modo significativo, ao estabelecer e consolidar relações afetivas
e criativas. Apesar dos primeiros estudos de Jung e de seus colaboradores desaconselharem o
trabalho psicoterapêutico em grupos, sob o argumento de favorecer a massificação e os estados
regressivos contrários à individuação e à ética, é possível pensar que dado o panorama histórico,
social e político da época, tais considerações sofriam a influência da atmosfera lúgubre do nazismo
e das grandes guerras. Algumas décadas à frente, ainda vivemos experiências em grupo que
promovem a despersonalização e a regressão, como as torcidas organizadas de futebol, ou os
incidentes que ocorrem em aglomerados populares. Ainda assim, é possível verificar benefícios
da prática grupal psicoterapêutica, bem como em outras experiências compartilhadas em que se
respeita o espaço individual e subjetivo, observáveis principalmente por meio de práticas dotadas
de sentido, como as cerimônias religiosas e experiências artísticas.
A partir das observações feitas tanto no trabalho desenvolvido no Laboratório de Estudos da
Personalidade do Instituto de Psicologia da USP com danças circulares e com contos de tradição
oral, e também no trabalho psicoarteterapeutico desenvolvido em consultório e em instituições
de saúde, percebe-se que na configuração dos grupos vivenciais se manifesta uma dinâmica
bastante propícia à vivência de alteridade, oferecendo benefícios para os indivíduos e para o
grupo. A partir dos resultados empíricos e das reflexões embasadas em aprofundamento teórico
verificamos que existem alguns fatores propiciadores de tal efeito: 1 – Trata-se de uma prática
que visa oferecer aprofundamento psíquico; 2 – Acontece por meio de manifestações culturais
de sabedoria ancestral; 3 – Os encontros acontecem em círculo, numa forma orgânica primordial;
4 – As técnicas (artesanato, danças e contos), embora culturais e seculares, permitem a expressão
de aspectos pertinentes ao desenvolvimento individual. Estes são alguns aspectos do trabalho
proposto e que julgamos básicos. A seguir, discutimos brevemente tais pontos.
Inicialmente consideramos que, por visarem oferecer experiências de aprofundamento psíquico,
os recursos expressivos realizados em grupos vivenciais podem levar ao reconhecimento de
aspectos da personalidade inconscientes, assim como ao diálogo com o arquétipo central (o
self). Quando a consciência se comunica com o self, pode ser reordenada ou organizada, trazendo
a experiência de ter de novo “bebido na fonte da vida”, retomando um ponto onde tudo ainda
estava certo ou por vir. Essa experiência pode comunicar para a consciência a possibilidade de
re-significar o passado ou de conectar momentaneamente com propósitos da totalidade psíquica,
gerando fortalecimento tanto da consciência de individualidade quanto de pertencer à espécie
humana.
Verificamos também que trabalhos que utilizam diversas manifestações culturais - registros de
sabedoria ancestral como as danças, os contos e o artesanato que brotam espontaneamente do
substrato criativo humano - possibilitam aos participantes acessar imagens que por seu potencial
simbólico são em si mesmas curativas, provedoras de sentido e de sentimento de completude.
151
Tal fenômeno é descrito por Jung a respeito dos símbolos e arquétipos da psique coletiva. O
alicerce ancestral deste tipo de prática se faz notar por pinturas de dançarinos que foram
encontradas em paredes de cavernas na África e no sul da Europa na pré-história. Estas pinturas
podem ter mais de 20 mil anos. As cerimônias religiosas que combinavam a dança, a música e
contos, provavelmente desempenharam um papel importante na vida do homem pré-histórico.
Estas cerimônias devem ter sido realizadas para reverenciar os deuses e pedir-lhes mais sucesso
nas caçadas e lutas. As danças também eram realizadas por outras razões como nascimento,
curar um enfermo ou solenizar uma morte. Os contos orais, por sua vez pertencem àquela categoria
que tem o poder de “sugerir uma educação que contemple tanto a vida em sociedade, quanto a
vida adaptada à singularidade de si mesmo e que estimula o processo de individuação”. (LIMA,
2004:161).
O encontro grupal pode e deve acontecer em roda. A roda nos coloca em relação direta com o
outro, nos torna iguais e nos remete ao movimento circular. O círculo representa as formas
orgânicas mais primordiais, como o óvulo, o útero, o rosto humano, os olhos dos pais, os astros
do céu. O círculo parece ser a representação simbólica de algo básico na vida do ser humano. A
forma circular com o centro marcado evoca o símbolo do Self ou Si Mesmo que (como centro
ordenador localizado no inconsciente e ao mesmo tempo como totalidade psíquica) costuma ser
percebido em caráter numinoso;
“... a ronda solene tem por objetivo fixar a imagem do círculo e do centro na mente, e marcar a
relação de cada ponto da periferia com o meio do círculo. Psicologicamente, essa disposição
significa uma mandala, consequentemente, um símbolo do si-mesmo, para o qual se acham
orientados não somente o eu individual mas, juntamente com ele, muitas outras pessoas que
estão ligadas a ele pelos sentimentos ou pelo destino”. (JUNG, C.W. Vol. XI /3, § 419, p.76).
Uma manifestação simbólica do círculo é observada em diversas culturas e rituais por meio da
atividade da dança circular. A prática de tal atividade facilita a manutenção da consciência
concentrada no corpo e no som, convocando a consciência para o momento presente,
ocasionando a diminuição do devaneio repetitivo em torno de temas recorrentes (os complexos)
e de preocupações exteriores, ao mesmo tempo em que dificulta a fala verbal tão condicionada.
Configura-se como uma meditação ativa, uma circum-ambulação que leva à concentração em
torno do centro.
“O dançarino, por meio das formas geométricas, que se interligam e relacionam, por meio dos
gestos do seu corpo, constrói na dança sagrada uma ordem que corresponde à ordem do cosmos,
sendo que seu corpo é o cosmo minimizado.” (WOSIEN, 2004:12)
Torna-se uma dança ritual que exerce uma ação sobre seus componentes, pois delimita um
espaço protegido que ao mesmo tempo protege a totalidade da personalidade. Por ultrapassar
os limites do ego consciente e conectar com a realidade mais ampla da existência pessoal e
humana, constrói um recipiente transformativo.
“O retorno ao Centro pressupõe a percepção de uma dimensão espiritual transcendente à qual
se deseja retornar. O retorno ao Centro é o reencontro com o próprio eixo, com a real natureza do
Ser. Dessa forma, é corrigida a visão distorcida de si mesmo e da realidade que o envolve. A vida
cotidiana é percebida unida à Totalidade transcendente e as aparentes dualidades da natureza
são entendidas como manifestações da realidade única divina”. (CAVALCANTI, 2008: p.66)
Também se observa que a partir de agrupamentos em rodas podem acontecer as práticas artísticas
e de artesanato. Praticar artesanato é uma atividade especialmente rica e complexa, pois ao
mesmo tempo em que o artesão reproduz técnicas apreendidas da cultura ou tradição, é possível
renovar e imprimir individualidade nesta mesma técnica por meio de seu modo pessoal de executála, e de conceber seus projetos, desde a decisão de qual objeto confeccionar até a escolha dos
materiais, cores e formatos. Na prática é possível verificar que a despeito dos fins lucrativos, o
artesanato como campo ritualístico de expressão emocional oferece oportunidade de evocação
de potenciais humanos básicos e complementares, como pensamento (habilidades cognitivas
como atenção, concentração e memória), sentimento (estética, afetividade), sensação (o contato
e a manipulação da matéria) e intuição (o jogo entre as possibilidades, o encontro de soluções).
Na presente oficina, sugerimos a realização de uma vivência que reúna os aspectos discutidos
152
acima. As danças circulares serão o substrato que nutrirá os participantes na experiência viva e
real de compor um grupo que invoque paz, alteridade, reconhecimento e respeito. A partilha de
um conto de tradição oral nos remeterá a experiências amplificadoras. E a experiência do
artesanato compartilhado oferecerá campo expressivo para as experiências simbólicas, na
rememoração de técnicas, na troca de conhecimentos, na reinvenção individual e particular que
cada participante do grupo irá experimentar ao se relacionar com o material, construindo seus
próprios símbolos de maneira espontânea, natural e imprevisível.
Concluimos que o trabalho em grupo que utiliza linguagem expressiva e simbólica é importante
por viabilizar experiências autênticas de redescoberta de potenciais, religando-nos a sentidos
profundos da existência humana. Tais experiências favorecem a paz na medida em que um
indivíduo que reconhece a si próprio, incluindo sua própria violência interna, é capaz de se relacionar
melhor consigo mesmo e com o mundo. Além disso, por atender a um número grande de pessoas,
é indicado para trabalhos institucionais e comunitários, podendo atingir diversas camadas da
população. Também ao profissional da psicologia, as vivências compartilhadas oferecem
contribuições, tanto para sua criatividade pessoal como para suas reflexões a cerca da importância
das experiências criativas em grupo, na promoção de saúde psíquica e na prevenção da violência
na vida de seus pacientes.
Referências bibliográficas:
CAVALCANTI, Raissa. (2008). Os símbolos do centro: imagens do self. São Paulo: Perspectiva,
2008.
FREITAS, L. V. (2005) O Calor e a Luz de Héstia: sua presença nos grupos vivenciais. In Cadernos
de Educação. Ed. Especial de 2005. Universidade de Cuiabá, Cuiabá, 2005.
JUNG, C. G. (1985). O Símbolo da Transformação na Missa. 2ª ed., O.c.
vol. XI/3, Petrópolis: Vozes, 1985.
LIMA; T.P. (2004). Alquimia dos Contos de Fadas: educação para a completude. Dissertação
(Mestrado). Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 2004.
NEUMANN, E. (2006) História da Origem da Consciência. 4ª Ed., São Paulo: Cultrix, 2006.
WOSIEN, Maria-Gabriele (2004). Dança: símbolos em movimento. São
Paulo: Anhembi Morumbi, 2004.
153
Uma Construção Simbólica para um novo Brasil
Adriano Augusto C. F. dos Santos & Kátia B. Belmonte
Instituição: CRIARIS - Clinica de Psicologia e Centro de Estudo e Treinamento Junguianos
Quando se olha para traz na história brasileira fica-se evidente quão violenta foi a gestação e
nascimento deste país. Aqui faz-se referência àquela violência que possui como alvo a cultura, o
universo simbólico, o desenvolvimento psíquico e a saúde mental de uma pessoa ou grupo,
especificamente o violentar exercido pelo branco sobre o indígena, residente das terras recém
encontradas, e o negro, trazido da África para funcionar como força motriz escrava em prol de um
civilizar. Porém, em contrapartida, atualmente um novo mito vem se consolidando e com ele um
novo universo simbólico vem apresentando-se, este é chamado de “Mito da Democracia Racial”
que enfatiza a igualdade entre as raças, processo este que simbolicamente marca uma tentativa
de integração, reconhecimento e contato, através do diálogo, das diferenças para assim buscar
uma identidade brasileira, e o desenvolvimento do seu povo.
Refletir sobre a polaridade existente entre a idéia de violência e diálogo. Relacionar violência,
diálogo, desenvolvimento e saúde mental. Analisar violência e imposição de um universo simbólico.
Analisar o panorama histórico brasileiro e sua atualidade. Refletir sobre universo simbólico brasileiro,
sua identidade e a individuação de seu povo. Compreender a relação entre disputa simbólica,
poder e violência. Contextualizar e relacionar o panorama histórico baiano e sua atualidade com
o brasileiro.
Inicialmente esta será uma pesquisa essencialmente teórica e qualitativa no sentido de estar
levando em consideração as experiências pessoais dos autores no âmbito baiano-brasileiro. Cabe
ressaltar que será este momento inicial que possibilitará um engajamento mais bem fundamentado
frente a uma busca de dados em campo a partir de critérios quantitativos e qualitativos, dados
estes que podem ser obtidos por meio de entrevista, questionários, visitas a organizações
específicas, entre outros meios de acesso às informações necessárias.
Como se pôde perceber, inicialmente, priorizar-se-á a reflexão sobre os conceitos de violência e
diálogo o que trará à tona a percepção da polaridade residente entre essa relação, com isso
compreende-se que onde carece diálogo impera a violência, e vice-e-versa. Violência que agride,
que força e brutaliza, que discrimina, que separa em vez de integrar, que reprime, destrói e mata,
que até mesmo na indiferença se faz violentar. Diálogo que pressupõe a abertura, o encontro, a
aceitação, o contato, o respeito, é o olhar, o toque, a fala, o gesto de união e crescimento mútuo
que cria o novo, o transformado, que permite nascer e viver. Dessa forma, através de um apanhado
histórico do Brasil, irá se buscar uma analise da violência predominante no sentido de se impor
um universo simbólico que possibilitasse a sujeição, o submetimento, de um grupo em detrimento
do outro, o que tornou-se hegemônico e se fez tradição brasileira essencialmente branca. Neste
momento não se pode afirmar não ter havido ao longo da história um diálogo entre as diferentes
etnias, porém este durante muito tempo habitava na marginalidade. Diz-se habitava, pois o universo
político, incluí-se aqui os três poderes, que atua como um legislador, propagador, executor e
fiscalizador de mitos, atualmente movimenta-se a partir da energia produzida pelo mito da
democracia racial, que traz à luz a idéia da igualdade entre as etnias, ou melhor dizendo, da não
hierarquização das diferenças, assim observa-se o sobressalto da identidade brasileira como
união destas diferenças culturais, compondo a brasilidade. O que é visto mais de perto na Bahia,
como uma baianidade emergente, que uni o tradicional, agora também levando em conta a cultura
negra e indígena, e o moderno que apresenta-se a cada dia a partir da emergência da mídia,
principalmente a televisiva e a internet.
Dessa forma seria através do diálogo como anseio pelo crescimento, pela integração, pelo
desenvolvimento do povo brasileiro, tendo como princípio o seu reconhecimento como unidade
na diversidade, que seria possibilitado a nós mesmos o contato com aquilo que realmente somos,
brasilidade. Isso porque é a partir dessa relação de alteridade, dialogal, que se possibilita o
conhecimento de quem realmente se é, o caminho da individuação. Certamente para o realizar
da individuação de cada cidadão brasileiro se necessita antes de mais nada da percepção dessa
sua brasilidade, ou seja sentir-se, falar, tocar, olhar, comer, viver-se enquanto brasileiro.
154
Imagens de Poder no Meio Acadêmico e suas Conseqüências na Personalidade do Aluno
Perante o Saber
Ana Claudia Yamashiro Arantes
Instituição: Universidade Federal de São Carlos
A segurança empregatícia proporcionada ao professor pela vida acadêmica contribui na sua
produtividade em ensino e pesquisa, que o faz conquistar um prestígio cada vez maior; mas
também pode levá-lo, dependendo de sua dissociação psíquica, a fortalecer uma persona perversa
e tirânica que projeta sua sombra nos alunos, configurando o Assédio Moral no meio acadêmico.
Este trabalho tem por objetivo identificar duas Imagens de Poder presentes na dinâmica de
violência psicológica exercida por um professor universitário do tipo extrovertido-pensamento, e
examinar suas conseqüências nos alunos (saúde, identidade profissional, motivação, criatividade
e confiança no manejo do conhecimento para exercê-lo na vida profissional).
Durante o período de um ano e meio foram realizados: uma análise simbólica do discurso dos
envolvidos nos contextos lúdico e laboral; identificação das imagens de poder que regiam a
violência psicológica do professor; e de suas conseqüências na personalidade dos alunos.
Procurou-se intervir de dois modos: 1. organizacionalmente, num vínculo com os alunos (regimentar
os valores conscientemente considerados como ideais pelo professor e que, na prática, eram
institucionalizados); 2. educativamente, num vínculo com o professor (conscientizá-lo dos impactos
de suas estratégias de ensino na motivação, engajamento e criatividade dos alunos).
Os dois modos de intervir neste caso de Assédio Moral no meio acadêmico não foram efetivos
porque não incorporavam a reflexão profunda sobre as Imagens de Poder que motivavam a
atuação tirânica do professor, o que exigiria uma atenção psicoterapêutica que só poderia encontrar
seu lugar no meio clínico; este fato põe o psicólogo num dilema ético porque implica na questão
de como agir após tomar conhecimento da violência psicológica sofrida pelos alunos: 1. vincular
a psicologia ao terreno jurídico-organizacional, 2. situá-la no âmbito educativo, ou procurar 3.
encontrar meios de intervenção psicoterapêutica. Esta se nos mostra ser a única alternativa
efetiva, tanto ao professor quanto aos alunos. Estes últimos, particularmente, colocam em risco a
formação de sua personalidade, principalmente no que diz respeito à auto-imagem e autoconfiança,
uma vez que está em jogo a noção de finalidade do conhecimento adquirido, que, em última
instância, pode encerrá-los na compulsão instintiva de luta ou fuga em relação à dinâmica afetiva
instituída pelo professor tirano na atuação das Imagens de Poder que o governam.
155
De Athena a Cinderela: Um estudo de caso sobre estratégias e violência.
Anna Cristina Pires de Mello
Instituição: Clinica UNNO - Brasília D.F.
Estudo de caso sobre adolescente de 17 anos com contexto familiar em desajuste. Familiares no
sistema prisional por assalto e drogadição. Contexto de violência doméstica, exclusão e evasão
escolar. Gestação precoce e parto prematuro em hospital da rede pública do DF, dentro do “Projeto
Mãe Canguru”. Ficou hospitalizada quatro meses e meio.
1 - Demonstrar a possibilidade de antideterminismo frente ao contexto em desajuste. * Possibilidade
de não repetir a história materna; * Possibilidade de vida ajustada sócio-culturalmente; *
Possibilidade de desenvolvimento de estratégias de sobrevivência, como forma de ampliar
positivamente a rede sócio-cultural e familiar;
1 - Amostra de trinta sujeitos com idades de 16 a 47 anos com o objetivo de realização de estudo
de caso; 2 - Pesquisa executada em hospital da rede pública do DF; 3 - Observação e coleta de
dados utilizando entrevistas abertas e semi-abertas e com médicos, enfermeiras, parturientes e
familiares das parturientes; 4 - Aplicação do Inventário ISSL (verificação dos níveis de
estresse)especificamente com as parturientes do “Projeto Mãe Canguru”, no período de julho a
setembro no ano de 2003; 5 - Intervenção em ambiente hospitalar; 6 - Organização dos dados de
acordo com modelo científico; 7 - Descrição e interpretação dos dados para constar de monografia
de conclusão de curso.
Ao longo do ano de 2003 foi desenvolvido um projeto de pesquisa numa amostra de trinta
parturientes e mães nutrizes do “Projeto Mãe Canguru” na faixa etária de 16 a 47 anos. Muitas
formas de violência e de interpretação subjetiva da dor foram identificadas como inscritas nos
sujeitos acima citados. Desta amostra foi identificado um caso de estudo como tendo grande
potencial para pesquisa, pela complexidade do contexto, que abrange todas as formas de violência.
O sujeito APG conseguiu mudar sua história por não se sujeitar ao ambiente, desenvolvendo
estratégias e mantendo seus sonhos, possibilitando-nos um estudo sobre o antideterminismo.
APG tem 17 anos nasceu no Distrito Federal, foi criada por seus pais biológicos somente enquanto
era pequena; quando tinha seis (6) anos, seus pais se separaram e constituíram outra família. Ao
todo APG tem oito (8) irmãos. “Minha mãe abandonou a gente, eu e mais três pequenos para ir
embora com outro homem e eu fiquei cuidando deles”. Foi criada pelo pai e pela madrasta com a
qual, segundo seu relato, jamais conseguiu ter um bom relacionamento, pois era submetida a
realizar todo o trabalho doméstico, além de sentir-se muito criticada, motivos pelos quais desde
os nove (9) anos, fugia de casa, passando tempos sumida em casa de amigos, fato que deixava
seu pai muito preocupado. Com o pai diz ter uma boa relação sempre. Relata que ele lhe deu
apoio para que estudasse e para que tivesse um mínimo de condição de vida emocional. Fala
sobre ele com gratidão e lealdade e diz que foi a ele a quem comunicou a notícia sobre sua
gravidez, tendo recebido todo apoio durante a gestação e o parto. Sua mãe biológica cumpre
pena judiciária em outro estado, por assalto a banco. Tem um irmão - menor de idade - foragido,
pois estava com a mãe no dia da ocorrência. Alguns membros de sua família fazem uso de
drogas ilícitas. O pai é alcoólico e trabalha fichado como motorista. Durante os períodos que
passava fora da casa de seu pai, APG sobrevivia com sobras de alimentos e da ajuda que
prestava aos catadores de lixo e de material reciclável. Interrompeu os estudos na 5ª série. Relata,
durante entrevistas sucessivas, que quando já estava adolescente e a madrasta brigava com
ela, ou quando via o pai começar a beber, ou ainda quando via algum membro da família usar
droga ilícita, fugia para a casa de um parente no Lixão. Quando comentou com a madrasta que
estava grávida, ela lhe disse que não devia ser gravidez e sim um cisto ou um mioma e também
não gostou quando o exame laboratorial confirmou a gestação. O pai teve um papel decisivo
para que a gravidez prosseguisse pois impediu a tempo que APG ingerisse um chá abortivo que
sua madrasta lhe daria para beber sem que ela soubesse. “Eu não estava esperando ficar grávida,
minha mãe nem mesmo sabe que eu tenho um bebê agora, ou mesmo que eu engravidei, porque
ela está presa. Durante a gravidez eu também não convivi muito com a minha madrasta porque
fui morar com o pai da minha filha; eu não quis continuar na casa de meu pai para não ficar falada
na rua.” APG teve a filha prematuramente, pois sofreu um acidente que interrompeu a gestação,
conforme seu relato: “Levei uma queda, perdi muito sangue e fui direto para o hospital, foi o
156
bombeiro que me trouxe. Tive muito medo de perder meu bebê, eu não tenho jeito com criança,
mas tive tanto medo.” Durante o período de observação na pesquisa de campo, demonstrava
cuidado com a filha, recebia visitas regulares de seu marido, que vinha vê-la quase todas as
tardes, e de duas de suas irmãs, que também a visitavam com muita freqüência. APG verbaliza
sobre sua mãe biológica sem rancor ou sentimentos de vingança mas com uma mascarada
indiferença que pode ser resultante do abandono. Não foi observado um sentimento de amor em
relação ao pai, mas sim de gratidão e de lealdade. Foi percebida em APG uma necessidade
básica de ter uma estratégia de sobrevivência por si mesma, pois mesmo o pai não lhe podia
auxiliar quando a madrasta lhe surrava - o que ocorria enquanto ele trabalhava - ou quando
estava sob efeito do álcool - ocasiões nas quais “perdia o controle de si”. Quanto ao ambiente
escolar, APG não verbalizou nem uma referência positiva sobre o significado da escola em sua
vida. Em sua concepção, não foi ambiente de crescimento pessoal, somente de cumprimento de
uma função: aprender a ler e a escrever. Tampouco verbalizou sobre qualquer referencial afetivo
construído com suas professoras, mas fez alusão à alegria da convivência com os colegas (com
os iguais, fratria). Quanto às mudanças de vida que o rito de ter se tornado mulher e mãe lhe
trouxe, simbolizam mais preocupação do que prazer. Verbaliza na sua fala “estratégica” a busca
de respostas e de soluções práticas de como agir para criar sua filha, ao mesmo tempo que
demonstra felicidade com o seu marido e com a forma com que se relacionam. APG demonstra
em sua aparência física além de fragilidade por ser anêmica em estado crônico, um aspecto
assexual. Em seus relatos nunca se referiu à equipe hospitalar como “cuidadores” ou “cuidadoras”.
Foi observado, contudo, que quando se sentiu mais a vontade e quando elaborou sua própria
compreensão simbólica sobre a função desempenhada pela equipe, relatando que podia e queria
colaborar com o trabalho que estava sendo realizado.
1 - Até o final do ano base de 2004, período durante o qual APG foi acompanhada por 3 vezes
semanais, foi verificado que conseguiu permanecer desenvolvendo seu próprio simbolismo
materno de cuidado, sem repetir o padrão materno; 2 - Ficou demonstrada, portanto, a possibilidade
de antideterminismo frente ao contexto em desajuste. 3 - Ficou demonstrada a possibilidade de
vida ajustada sócio-culturalmente; 4 - Ficou demonstrada a possibilidade de desenvolvimento de
estratégias de manutenção de sonhos, como forma de ampliar positivamente a rede sócio-cultural
e familiar; 5 - Fica demonstrada a importância da intervenção do profissional Psicólogo em todas
as camadas e segmentos sociais, possibilitando aos sujeitos uma vida mais qualitativa e mais
plena.
157
A Violência na Constituição da Identidade Homossexual
Paulo Afrânio Sant’anna & Giselle de Aguiar Lins
Universidade Presbiteriana Mackenzie
[email protected][email protected]
Introdução:
Foucault (1988) em sua obra História da Sexualidade, apresenta um panorama geral sobre a
sexualidade, da Antigüidade ao Cristianismo, analisando os efeitos dos mecanismos de repressão
encontrados em toda a sociedade. Acima de tudo, analisa as práticas que levaram os indivíduos
a prestar atenção neles próprios, se reconhecendo como sujeitos de desejo. A sexualidade é
carregada de representações negativas e marcada por repressão de pensamentos e atitudes;
devido à tradição firmemente mantida pela sociedade como um todo.
Na nossa cultura que apresenta claramente a dicotomia sexual: hetero e homossexualidade, a
identidade homossexual se torna uma conquista através de luta pessoal nos grupos sociais
menores e mais próximos: a família, outros parentes e amigos. (SELL, 1993). Segundo Magalhães
(2006) uma das questões centrais vivida por muitos homossexuais é o conflito e desconforto com
sua orientação sexual ao perceber ser diferente. Para afirmar sua identidade o jovem sofre com
pressões especialmente no ambiente familiar, se culpa por não corresponder aos ideais familiares.
Tais medos podem estar relacionados com a discriminação e violência disseminada pela sociedade
ou pelo receio de perdas pessoais, seja ela, na família, amigos ou trabalho.
Magalhães (2006) aponta que o preconceito negativo dirigido aos homossexuais é
internalizado e gera depressão, baixa auto-estima, solidão e em alguns casos mais acentuados,
até suicídio.
O presente estudo teve como objetivo verificar a violência psíquica existente na constituição
da identidade do homossexual masculino nos contextos familiar, profissional e sócio-afetivo quando
ocorre e quando não ocorre a revelação desta condição.
A amostra foi composta por cinco homossexuais masculinos, residentes na cidade de São Paulo,
da faixa etária de 18 a 30 anos, com identidade sexual definida. Utilizou-se entrevista inicial, que
funcionou como triagem, e como técnica de discussão grupal, o grupo focal, que ofereceu
informações subjetivas do tema estudado. O material foi analisado seguindo o modelo de análise
de conteúdo, a partir de identificação de categorias e indicadores sobre as questões centrais do
encontro.
Resultados:
Para análise e interpretação dos resultados obtidos, inicialmente foi efetuada uma delimitação de
eixos temáticos, com seus indicadores organizados em categorias.
Os eixos temáticos foram subdivididos considerando os três contextos relevantes para a pesquisa:
ambiente profissional, social e familiar. O primeiro eixo teve por finalidade captar a forma como os
participantes se sentem frente às diferentes situações, foi denominado Eixo 1 - Reações emocionais
individuais. Já o segundo teve por finalidade detectar pela percepção dos jovens homossexuais,
quais são os comportamentos apresentados pelos outros, e foi denominado Eixo 2 – Reação dos
outros.
1.1.
Reações emocionais – Trabalho
Nos excertos: “É uma situação constrangedora às vezes, as pessoas, é muito nítido a curiosidade
das pessoas”; “(...) sabe quando você fica besta com aquilo que você está ouvindo?”; “(...)eu já
sofri tanto com isso de deixar e tentar disfarçar alguma coisa ou talvez você acha que disfarça” e
“(...) se me perguntassem isso eu acharia muito estranho como a pessoa vê isso. Acho que é
muito invasivo assim, as pessoas têm falta de limite, não tem limite né.” Percebe-se que o jovem
homossexual sente-se constrangido no ambiente de trabalho com a invasão dos questionamentos.
Já no excerto: “(...) me sinto muito mas a vontade de falar isso no meu trabalho do que em
qualquer outro lugar.”, o jovem sente-se mais a vontade para falar sobre a homossexualidade no
ambiente de trabalho, em que as relações são de menor intimidade.
158
1.2.
Reações emocionais – Amigos
No âmbito social, os jovens homossexuais sentem-se desconfortáveis, conforme excertos: “Tem
balada hetero hoje em dia [...] me sinto mal de ver aquela situação de não poder olhar para
ninguém, que você vai ser comido e tal, são meios que hoje em dia não me faz falta, e para mim
já foi bacana e que eu não quero freqüentar nunca mais na vida, sabe quando você se sente mal”
e “[...] quando entro numa balada hetero todo mundo está olhando para mim, é impressionante,
juro”.
1.3.
Reações emocionais – Família
No excerto: “O drama que eu vivia era esse, é de você perder um relacionamento que você tinha
com sua mãe, igual eu, no caso eu só tinha uma mãe, não tinha pai, eu ia perder mais uma mãe
ainda, a questão é você perder a mãe viva, isso me deixava muito louco, essa questão de angústia
mesmo. Porque ela xingar, bater pé, essas coisas eu não ligava, mas perdê-la, sendo que ela
está viva, se ela morresse, aí seria uma coisa assim, ela morreu não tem o que fazer, mas você
perder uma pessoa que está viva é muito mais angustiante do que se ela morrer”, observa-se
que a homossexualidade é percebida como algo que foge do padrão da família, portanto pode
gerar rejeição e sofrimento.
2.1.
Reação do outro – Trabalho
No excerto: “(...) você é homossexual, mas você é muito mais do que isso, as pessoas não tem
que ficar te perguntando isso, mas te ver como uma pessoa completa, perceber o que você é
né”, observa-se que o jovem tem a percepção que no ambiente de trabalho a homossexualidade
não é vista como parte constituinte da identidade geral, sentindo-se constrangido com a reação
dos outros.
2.2.
Reação do outro – Amigos
No excerto: “[...] raramente o homem hetero se relaciona com o homem homossexual”, observase que devido preconceito existente, o jovem homossexual tem dificuldade de se relacionar com
jovens heterossexuais, pois percebe o preconceito dirigido aos homossexuais.
2.3.
Reação do outro – Família
No excerto: “(...) a sociedade não está preparada para o homossexual e nem dentro de casa a
gente tem liberdade, nem com a família dentro da própria casa”, observa-se que a reserva de
falar sobre a homossexualidade no ambiente familiar gera uma barreira entre o jovem e seus
familiares. Dessa forma, ocorre o silenciamento e sofrimento por não conseguir revelar sua
orientação sexual.
Análise dos Dados:
A análise dos resultados apontou dois tipos de situações, a primeira quando ocorre a revelação
da homossexualidade. Os jovens apresentam uma persona sintônica em relação à identidade
sexual, não negam a identidade, mas se adaptam as diferentes situações. Existe uma melhor
discriminação da persona enquanto recurso adaptativo, pois há o reconhecimento de que a atitude
deve ser adequada às diferentes situações sem que isto implique em uma perda de identidade.
Quando ocorre a revelação da homossexualidade, os indivíduos atuam naturalmente,
independente do contexto no qual está inserido. Assim o comportamento não se altera em função
do ambiente, o que pode indicar uma melhor consolidação da identidade individual. Já aqueles
que não revelaram a sua orientação, agem de acordo com o momento, e se necessário um
posicionamento, o fazem de acordo com o grau de intimidade. Em geral, nos contextos de menor
intimidade, como trabalho e amigos revelam a homossexualidade com mais facilidade, mas na
família apresentam muita dificuldade e insegurança.
Nessa segunda situação apresentam uma persona distônica em relação à identidade sexual,
pois não assumem a sua orientação sexual, e por isso adotam uma postura diferenciada de
acordo com o ambiente, omitindo a homossexualidade. Essa posição gera angústia e sofrimento,
pois existe oposição entre a identidade e persona, e os indivíduos vivem em contradição com sua
personalidade total.
159
Em especial no grupo familiar, quando ocorre a revelação, nem sempre é espontânea, mas
impulsionada pelos próprios pais. Inicialmente gera conflitos que quando superados propiciam
um amadurecimento para revelação com segurança em outros contextos. Na família, temem
sofrer discriminação, por isso surge o silenciamento da condição homossexual, que impossibilita
a afirmação da identidade. Com isso omitem sua orientação sexual e assumem uma postura de
negação, com medo de perder os laços familiares. Nesse caso, fica implícito que a fantasia da
rejeição é mais determinante do que a questão de uma adequação ao ambiente.
A revelação é marcada por estranhamento e distanciamento, algo que gera um impacto na
dinâmica familiar, e superar essa questão indica auto-afirmação da identidade sexual, que pode
ser atingida com a maturidade e de forma natural. Revelar a condição sexual é resultado de um
processo de amadurecimento e de construção de identidade marcados pelo sofrimento.
Percebe-se claramente que quanto maior o grau de comprometimento afetivo, mais difícil à
revelação e maior a ansiedade, insegurança e temor da reação do outro. Portanto, maior dificuldade
de aceitação e afirmação da identidade homossexual, o que dificulta a construção de uma imagem
positivada acerca de si mesmo.
Os homossexuais passam por intenso sofrimento e contradição, pois ainda existe um
grande preconceito e discriminação em relação à homossexualidade, seja por parte da família,
superiores no trabalho, ou a sociedade de modo geral. Lidam com isso com esquiva e omissão,
o que causa angústia e uma adaptação aos contextos que está inserido que não necessariamente,
vão ao encontro de seu real desejo. Muitos desejam ter o seu espaço, para poder assumir sua
orientação sexual.
Nos dados coletados nas entrevistas e no grupo focal, verifica-se que no processo de
desenvolvimento do menino homossexual, a reclusão e a restrição dos contatos sociais parece
ser uma experiência comum, bem como a dificuldade de relacionamento com a figura paterna e/
ou sua ausência. Estes dados corroboram com dados da literatura estudada e sugerem que o
processo de amadurecimento e fortalecimento da identidade desses jovens é marcado pela baixa
auto-estima e por condições não facilitadoras para os relacionamentos interpessoais. Outro aspecto
de destaque é que geralmente os homossexuais sentem-se confusos por não saber se a postura
que adotam é deles ou se são influenciados pelo meio no qual estão inseridos.
Referências Bibliográficas
FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. A vontade de saber. 12º Edição. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1998.
______________. História da sexualidade 2. O uso dos prazeres. 2º Edição Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1984.
MAGALHÃES, F.L. Conseqüências do preconceito social exercido contra gays, lésbicas e
bissexuais – repercussões psicológicas. Texto apresentada na I Jornada Nortenha de Sexualidade
Humana, Porto, 2006.
SELL, T.A A identidade homossexual e a manutenção das normas. São Paulo:
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Orientadora:
Dra. Sylvia Leser de Mello, 1993.
160
A Psicologia Arquetípica como Estratégia de Recuperação do Transtorno Mental, em grupos
de Ajuda e Suporte Mútuo para Usuários e Familiares
Gloria Lotfi
Instituição: Sociedade Brasileira de Psicologia Arquetípica-RJ; SBPA/RJ e Escola de Serviço
Social UFRJ
Esse trabalho apresenta o MANUAL DE AJUDA E SUPORTE MUTUOS EM SAÚDE MENTAL, na
cidade do Rio de Janeiro, sendo uma iniciativa do Projeto Transversões, um projeto de pesquisa
e de divulgação no campo da saúde mental, coordenado pelo Prof.Dr. Eduardo M. Vasconcelos,
da Escola de Serviço Social/UFRJ. É composto por Rosaura Braz, Tatiana Reis e Gloria Lotfi
O Manual tem como objetivo a capacitação de usuários e familiares para serem facilitadores na
condução de grupos de ajuda e suporte mútuos. A mútua-ajuda consiste em ser um espaço de
acolhimento e troca de experiências entre pessoas que convivem com um mesmo tipo de
sofrimento. Pode ter como desdobramento ações de suporte mútuo, i.é., iniciativas mais amplas
de inclusão e apoio social que acontecem fora do local dos encontros, podendo ser desde
atividades simples até projetos mais complexos.
A teoria arquetípica junguiana vai embasar essa experiência através do Arquétipo do Curadorferido. Nos grupos, as duas polaridades desse arquétipo estarão presentes na figura do facilitador,
um curador ferido, conhecedor do sofrimento e escolhido pela capacidade adquirida de poder
trazer para sua vida esperança e satisfação. Sua função será trazer à consciência a capacidade
curadora presente no inconsciente de todos os participantes, com a idéia de que uma mesma
pessoa pode conviver com a ferida e a cura.
Baseado na Lei 10.216/2001 (reforma psiquiátrica), que prioriza a atenção ao usuário portador de
transtorno mental na comunidade com participação ativa em seu próprio tratamento, o Manual se
desenvolve através de encontros em grupos de usuários e/ou familiares coordenados por
facilitadores, com maior tempo de recuperação ou convívio com o transtorno e capacitados para
essa função. Esses encontros são semanais e com duração de duas horas, com hora e local
fixos.
A partir da experiência de 10 anos de grupo com familiares e nossos estudos sobre as práticas
norte-americana e européia, verifica-se um empoderamento dos freqüentadores desses grupos,
que aprendem a conviver melhor com seu próprio sofrimento, como também têm facilitada a
troca com seus familiares, no social e na defesa de seus direitos.
161
Games e subjetivação: Novos Possíveis, Contribuições da Psicologia Analítica
Adriano Augusto dos Santos & Kátia Bautista Belmonte
Instituição
CRIARIS -Clínica de Psicologia e Centro de Estudo e Treinamento Junguianos - BA
Esta pesquisa sobre games envolve fundamentos teóricos oriundos das áreas da ciência da
computação, arte, comunicação, filosofia e psicologia analítica.
Os games e jogos de computadores atraem e despertam o interesse das crianças cada vez mais
cedo. Muita discussão tem sido feita acerca da sua influência no desenvolvimento das mesmas.
Estudos de diversas formas apontam ora para um avanço ora para um retrocesso do que podemos
apreender desse novo “brincar”. Muito do que se produz cientificamente ou não (entrevistas,
comentários), traz em seu bojo a relação desses jogos com a violência. Muitas fontes de
informações ficam a cargo de pesquisas oriundas de outros países principalmente dos Estados
Unidos. As divergências de opiniões não deixam de existir mais ainda prevalecem aquelas que
não vinculam diretamente a exposição de crianças a jogos de computadores e games com o
aumento da agressividade, embora no senso comum essa idéia prevaleça. Uma forma menos
ameaçadora seria a de vislumbrar esses jogos como possuidores de uma arte que se configura
em imagens, sons e que trazem em suas narrativas conteúdos simbólicos. Será que esses jogos
são capazes de desvelar a subjetividade das crianças? Este trabalho pretende um estudo mais
longo, mais a priori traremos uma narrativa construída por uma criança de 7 anos que demonstra
que sua experiência com seu personagem favorito dos jogos de videogames é potencializadora
do seu desenvolvimento psíquico.
Descrever a função do jogo e sua evolução; Analisar a relação dos jogos com a violência; Analisar
a experiência dos jogos como uma vivência simbólica; Compreender a relação do jogo com o
desenvolvimento infantil; Demonstrar através de uma narrativa a construção subjetiva de uma
criança a partir do método de amplificação.
A pesquisa se encontra em andamento. Primeiramente estão sendo feitas leituras para
aprofundamento teórico e será coletado material de 3 crianças para posterior estudo de caso. A
construção narrativa de uma criança já será demonstrada nessa explanação.
Os videogames e jogos de computadores podem ser analisados a partir de outras modalidades
de jogos existentes desde os tempos mais remotos da nossa condição humana. Jogar é parte
constitutiva do humano. Os jogos de computadores e videogames possibilitam uma interação
imediata e carregada de significados simbólicos que propiciam o desenvolvimento da consciência.
A violência muitas vezes presente em determinados jogos pode ser melhor compreendida se
tomarmos como ponto de partida a “relação” que se estabelece a nível pessoal e coletivo com
este símbolo. Os símbolos presentes nos enredos desses jogos são também facilitadores da
integração dos conteúdos inconscientes, sendo assimilados de forma criativa pela consciência. A
atitude simbólica é no fundo construtiva e as relações das crianças com a dinâmica imposta
pelos jogos onde desafios precisam ser enfrentados as colocam frente aos desafios impostos
pela própria dinâmica psíquica. A formação de símbolos – que está ocorrendo continuamente
dentro da psique - se dá a partir da energia instintiva disponível e ao mesmo tempo se redirecionam
e se transformam a partir dessa mesma energia, e isso será demonstrado a partir da narrativa
feita pela criança com seu personagem favorito dos jogos de videogames. Pode-se perceber que
a sua narrativa se configura como função organizadora para a criação da consciência e formação
do ego. Podemos empreender uma leitura da dinâmica psíquica dessa criança se buscarmos a
relação de tal narrativa com a realidade da mesma segundo o método de amplificação proposto
por Carl Gustav Jung.
Se faz necessário um interesse maior por parte daqueles que lidam na sua prática com crianças
por jogos de videogames e computadores. Compreendê-los é poder se aproximar de um universo
simbólico que se torna parte integrante do seu desenvolvimento e possibilita muitas vezes ser o
ponto de partida para possíveis compreensões de dinâmicas psíquicas.
162
Isolamento e Abandono na Infância e suas Conseqüências na Fase Adulta: Compreendendo
a Personagem Amélie Poulain
Márcia Rodrigues Sapata
A criança necessita das figuras parentais ou substitutos cuidadores para construir simbolização
de suas vivências primárias. Tal processo de simbolização será importante para a manutenção
de um repertório de representações e significados internos, os quais irão propiciar, no futuro, a
noção de identidade. Para a psicologia analítica a psique da criança é estruturada através dos
arquétipos parentais. A partir da relação com os pais pessoais/cuidadores a criança organizará
tais experiências em complexos, preenchendo as bases arquetípicas de sentido e valor individual.
Para E.H.Erikson as experiências iniciais da criança são o elemento-chave no desenvolvimento.
Para ele se a confiança predomina, as crianças desenvolvem a virtude da esperança, isto é, a
crença de que podem satisfazer suas necessidades e obter o que desejam. Por outro lado se a
desconfiança predomina, as crianças verão o mundo como não-amigável e imprevisível e terão
problemas em formar relações íntimas (Papalia, D.E. & Olds, S.W, 1998:221). Abandonar indica
o ato de deixar, largar, sair sem a intenção de voltar, partir, afastar-se. Na perspectiva da infância
tal ato pode desencadear inúmeras conseqüências. A psique da criança “deixada à própria sorte”
tenderá a lidar com sua situação por intermédio dos recursos inerentes à sua personalidade
numa tentativa de auto-regulação (conceito junguiano chave baseado no relacionamento
compensatório entre consciência e inconsciente). Uma das possibilidades da criança se confrontar
com a realidade do desamparo é o refúgio defensivo numa “dimensão imaginária e fantasiosa da
psique”. Este espaço interno pode reassegurar a confiança em si, ocupar de sentido a existência,
fomentar a capacidade de imaginação e portanto de soluções de problemas; porém, a criança
que ocupa demasiado tempo e investimento de energia na manutenção deste “universo”, pode
vir a apresentar tendência ao isolamento, desajuste de atitudes, comportamento aversivo ao
contato com o outro, medos e pensamentos delirantes em relação ao desconhecido. Além disso,
a dificuldade na formação de vínculos pode ter efeito danoso no âmbito das relações afetivoemocionais e levar o indivíduo adulto ao recorrente isolamento. Por outro lado, na visão analítica
a criança tem dentro de si os recursos necessários ao seu desenvolvimento. É através do
mecanismo de auto-regulação da psique que o ego (complexo do eu) pode interagir com as
imagens provindas do self (complexo central da personalidade). Os sintomas, assim, ganham
valor positivo, pois apontam a tentativa do self de compensar a atitude unilateral do ego,
promovendo assim, um realinhamento da personalidade.
O objetivo deste trabalho é refletir sobre os temas isolamento e abandono na infância e apresentar
uma das possíveis tentativas da psique de adaptar-se à realidade externa do desamparo, a partir
da perspectiva interna de manter-se numa “fronteira psíquica” (espaço entre o real e o imaginário,
mundo externo e interno). Nossa intenção é compreender o funcionamento de tal mecanismo,
em sua base criativa, mas também em sua característica defensiva e portanto, inibidora do
processo de desenvolvimento do adulto.
Para tanto vamos nos apoiar na análise da personagem central do filme: “O fabuloso destino de
Amélie Poulain” de Jean-Pierre Jeunet (produzido por Claudie Ossard, 2001) como ilustração.
Utilizaremos como método a análise e interpretação da dinâmica psíquica da personagem principal
do filme e sua relação com nossa proposição de estudo: isolamento e abandono na infância e
suas conseqüências na fase adulta.
Sinopse do filme: Amélie Poulain é uma criança privada do convívio com outras crianças. A evidente
dificuldade de relacionamento social dos pais é transferida para a menina. Esta em seu isolamento,
inventa um mundo para si. Sua mãe, uma ex-diretora escolar com eminentes crises nervosas,
falece tragicamente quando Amélie ainda era criança. Seu pai, um médico militar, distante afetivo,
torna-se melancólico e fechado em si após a perda da esposa. Já adulta, a personagem principal
do filme, reside em Paris em seu “mundo particular”. Trabalha como garçonete em um pequeno
café e mora em um apartamento alugado onde vive suas fantasias. Mantém-se isolada da conexão
com os outros, ocupa seu tempo imaginando a vida, forjando ludicamente suas experiências, ao
mesmo tempo, em que foge da possibilidade de concretizá-las. Porém, sua vida sofre uma
transformação radical no dia em que descobre em seu apartamento, uma antiga caixa cheia de
objetos infantis. Empolgada, assume a missão de encontrar seu dono. Nessa jornada é conduzida
163
a um mundo totalmente novo, na verdade, é transportada na direção do Outro. Ao conseguir
concluir seu intento, emociona-se ao se perceber capaz de realizar desejos e sonhos alheios.
Movida por esse ideal, adentra o cotidiano de diferentes pessoas e o desconhecido fora de si a
conduz ao que ignora dentro de si. Descobre-se capaz de alterar a história das pessoas e ao
mesmo tempo fica excitada diante da aventura de mudar sua própria história pregressa, na medida
em que devolve a capacidade de sonhar ao pai. Por outro lado, começa a ter esperança em um
futuro diferente para si. Ao se apaixonar e viver o enfrentamento de suas emoções, percebe,
agora, sua real dificuldade de relacionamento. Inicia-se, então, o conflito entre manter-se ligada
às suas fantasias e idealizações ou adentrar o mundo real e vivenciar o amor. O dilema introduz
a difícil escolha pelo abandono do “mundo da criança”, o qual lhe pareceu por tanto tempo tão
seguro, mas agora, mostra-se insuficiente. Após alguma angústia decide entregar-se à realidade
do encontro com o outro. Análise da personagem: No início, o filme ilustra com exatidão a dinâmica
estrutural que pretendemos investigar. Amélie era uma criança como tantas outras. À sua maneira
procura interagir com a realidade familiar a partir de sua natureza singular. As figuras parentais
não se afiguram adequadas. Com características predominantes nos indivíduos com traços
obssessivos-compulsivos, mãe e pai, apresentam severa dificuldade de relacionamento,
mantendo-se em isolamento social. Sob esta perspectiva, inibem as frustradas tentativas de
relacionamento da menina (por ex.: decidem por devolver para o lago o único peixe - estressado
e suicida devido ao ambiente - com o qual mantinha contato). Amélie é criada em um mundo
asséptico. A situação se agrava com a morte trágica da mãe e a depressão do pai. O abandono
já eminente, mesmo na presença dos adultos, agora se configura real. Com a dificuldade de
projetar-se através da vivência com o outro, a menina acaba por refugiar-se num “mundo paralelo”,
onde se sente segura e protegida da ameaça alheia. Com o tempo, esse refúgio assume
características de uma “cela”, na qual constrói uma realidade fantasiosa acerca do mundo e dos
homens. Mas é com o encontro sincrônico da “caixa de objetos infantis” que a situação começa
a mudar. A retomada da própria infância e a possibilidade de reviver seus precoces conflitos,
aponta para um movimento em direção a natureza criativa da criança. O desejo pelo novo, restaura
na menina a possibilidade de transformar sonho em realidade e a conduz no sentido de sua
busca interior. Precisa se deparar com as questões do passado, o pai, o “velho” e sua melancolia,
e mostrar-se capaz de transformar criativamente a realidade de sua origem. Inúmeras outras
situações são vividas, até que se defronta com o afeto, o desejo de ligação, Eros em sua
potencialidade transformadora. O conflito se estabelece: “abandonar-se” à sorte do amor, ou
proteger-se eternamente dos homens e do sofrimento subjacente. Este é o dilema da personagem.
Para reduzir o sofrimento decorrente do abandono e do isolamento social faz uso de um mecanismo
“sedativo” de afastamento da realidade. Um modo de “asilo psíquico” com objetivo de redução de
danos. Contudo, tal tranqüilizante também lhe impossibilita de “sentir com”. Quando a personagem
descobre essa nova possibilidade, o conflito se mantém até que decide pelo encontro com o
homem no mundo real.
Winnicot (1975) chama de dissociação primária o mecanismo autônomo de devanear. Distingue
a fantasia como tentativa de interagir imaginariamente sobre a realidade no sentido de transformála, do processo inconsciente e fragmentado de despender excessivo tempo e energia na atividade
de devanear. Para ilustrar apóia-se num caso onde a paciente “durante todo o tempo, sem que
ela soubesse, enquanto freqüentava a escola e, posteriormente, no trabalho, havia uma outra
vida acontecendo em termos da parte que fora dissociada (...) sua vida estava dissociada da sua
parte principal, que vivia no que se tornou uma seqüência organizada de fantasiar”. (1975:49).
Assim, a situação psíquica de Amélie requer atenção. Por fixar-se nas teias do devaneio pode vir
a sucumbir a delírios sobre a vida e o mundo, desperdiçando sua vocação criativa. Por outro
lado, Bachelar (in Abrams, 1994:45) nos oferece um olhar generoso sobre o ato de devanear.
Descreve-o como o momento que nos remete à nossa solidão original, à essência singular de
cada um. Para ele o devaneio não é simplesmente uma fantasia de fuga, mas também uma
imaginação de vôo. Para o autor: “a criança sonhadora conhece o devaneio cósmico que nos
vincula ao mundo”. A criança habita solitária o mundo das imagens e estas precedem a relação
com o mundo, as vivências só virão depois. Neste sentido Amélie, ao deslocar enorme energia
para o devaneio, retarda suas vivências para o futuro. Quando adulta, ao deparar-se com a
“caixa de objetos infantis” descobre que precisará reavivar a memória, restituir as imagens que
164
pertencem à sua vida e dar-lhes espaço de germinação no real. Jung (CW9, I, §300) fala-nos da
criança arquetípica no seu duplo aspecto, como tudo aquilo que é abandonado e rejeitado, e ao
mesmo tempo, com seu poder divino de transpor sua realidade através da independência. Hillman
(1981:33) deixa claro, todas as denominações patológicas caracterizadas como pertencentes à
infância (desejos e fantasias destrutivas, onipotência) contêm futuridade, ou seja, a vulnerabilidade
da criança abandonada versus seu potencial futuro de desenvolvimento. Para o autor o que
oferece indicações para o futuro é justamente o que ficou reprimido. É portanto justo pensar que
o abandono é uma condição necessária e não somente um sintoma recorrente. A visão da psique
no seu caráter finalista ou prospectivo marca o inconsciente junguiano. Ater-se somente às causas
do sofrimento de Amélie é destituí-la da possibilidade de repetir o conflito na tentativa de elaborálo e portanto, apoiar-se na qualidade criativa e transformadora da energia psíquica. Mas Jung
(CW9, I, §277) adverte: “quando maior for à distância a nos separar da criança reprimida, mais
fácil para ela será tomar posse de nós”. Por isso, torna-se essencial que Amélie tenha consciência
da realidade imaginária para a qual se transporta nos momentos de sofrimento e solidão. Precisará
assumir os cuidados de si-mesma e transcender os símbolos isolamento e abandono para suas
polaridades antíteses: convergência e independência. É justamente a partir da liberdade frente
ao complexo que poderá caminhar na direção do outro. “A infância é importante, não só porque é
o ponto de partida de possíveis deformações do instinto, mas também porque é a época em que,
aterrorizantes ou encorajadores, esses sonhos e imagens que enxergam tão longe vêm da alma
da criança e preparam seu destino inteiro. (C.G.Jung, in Abrams, 1994:253)
Referências Bibliográficas:
ABRAMS, J. (org). O Reencontro da Criança Interior. São Paulo: Cultrix, 1994. HILLMAN, J. Estudos
de Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981. JUNG, C. G. [1976], 2000. Os Arquétipos
e o Inconsciente Coletivo. Obras Completas, vol. 9/1. Petrópolis, RJ: Vozes.
PAPALIA, D.E. & OLDS, S.W. O Mundo da Criança. São Paulo: Makron Books, 1998.
WINNICOT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
165
Arteterapia e Empoderamento; De Lagarta A Borboleta, Uma Escolha Possível.
ART THERAPY AND EMPOWERMENT; FROM CATERPILLAR TO BUTERFLY, A POSSIBLE
CHOICE.
Maria Teresa Provenzano da Luz – Feevale
Resumo
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa feita na Fundação de Proteção Especial do Rio
Grande do Sul, mais especificamente em dois grandes abrigos mantidos pela já citada Fundação,
com adolescentes abandonados, vitimados pela violência.
A pesquisa é de cunho qualitativo, foi realizada após meses de trabalho. Este estudo, objetiva,
com a Arteterapia, e seus meios de expressão artística e criativa, examinar de que forma estas
atividades podem refletir os problemas, e mostrar o desenvolvimento do adolescente, buscando
melhorar sua auto-estima, favorecendo o reconhecimento de suas características individuais, de
sua resiliência, bem como suas capacidades para, então, empoderar este adolescente,
fortalecendo-o, desenvolvendo suas qualidades positivas e preparando-o para enfrentar o mundo
adulto.
Palavras Chave
Adolescente. Abandono. Violência. Arteterapia. Empoderamento.
Abstract
This work is the result of research done at the Foundation of Special Protection of Rio Grande do
Sul, more specifically in one of the large shelters have been maintained by the Foundation already
mentioned, with adolescents abandoned, that was affected by violence.
This research stamp of quality, after four months of work. This study aims, with the Art Therapy
and their means of artistic expression and creative, examine how these activities may reflect the
problems and show the development of the adolescent looking for improve their self-esteem by
encouraging recognition of their individual characteristics of its resilience as well as their abilities to
then empower the adolescent strengthening the positive characteristics and qualities in order to
prepare it to face the adult world.
Keywords: Adolescents, abandonment, violence, art therapy, empowerment.
Introdução
“Arte é a expressão mais pura que há para a demonstração do inconsciente de cada um. É a
liberdade de expressão, é sensibilidade, criatividade, é vida”. (JUNG, 1920).
Este trabalho analisa a importância da Arteterapia no tratamento terapêutico de adolescentes,
vítimas de abandono e violência doméstica; um problema para governo, entidades nãogovernamentais e assistenciais, na medida em que, existe a necessidade de gerar novos
instrumentos terapêuticos, que possam ajudar a tratar estes adolescentes.
A violência contra o adolescente é uma realidade marcada mais por grandes desigualdades
sócio-econômicas. Norte e nordeste do país é maior a prática do “turismo sexual”, porém, essa
pratica é generalizada em todos os estados. Não bastando, o próprio pai, irmão ou parente próximo,
muitas vezes é quem inicia a criança na promiscuidade. Estupro, violência física e emocional são
velados e fazem parte dos chamados segredos familiares, sendo comum, o passo seguinte: o
abandono do menor. Estas crianças e adolescentes precisam ser emocional e afetivamente
fortalecidas ao serem acolhidas, para que possam superar seus traumas. Devemos garantir os
seus cuidados, o seu bem-estar, a sua auto-estima e, principalmente, a sua reestruturação
psicológica. Neste contexto, a Arteterapia surge como um meio eficaz para detectar os sentimentos
e traumas mais profundos da psiquê e minimizar os problemas decorrentes desta violência,
oferecendo a eles uma nova chance de reescreverem suas histórias, dessa vez de forma digna.
Para alcançar este objetivo é necessário o constante estudo e atualização das técnicas
terapêuticas, auxiliando na busca por melhores e inovadores tratamentos, mais eficazes e mais
comprometidos, com a realidade social brasileira, e esta é uma das propostas trazida pela
Arteterapia.
166
1. Arteterapia
O homem é um animal simbólico, segundo Jung (1999) e necessita deste para processar
as informações e desenvolver a sua individualidade, que conterá fenômenos diversos,
assoberbados ou não de forte carga emocional.
Toda vez que o ser humano se expressa ele exprime, também, consciente ou inconscientemente,
elementos da sua psique, da sua individualidade. Mas é através da Arte, em qualquer das suas
formas que o ser humano se expõe mais, utilizando símbolos como um meio de materialização
dos complexos, traumas, fenômenos e sentimentos. É através da arte, portanto, que o terapeuta
vai decodificando o inconsciente de seu paciente, de uma forma simbólica, ele vai abrindo as
portas da psique. Como um detetive ele analisa e constrói um “mapa psicológico individual” que,
mais tarde, vai orientá-lo para ajudar a que seu paciente se cure.
Através da arte, o terapeuta tem acesso aos sentimentos mais profundos do seu paciente usando
meios suaves e não ofensivos. Tomando como exemplo o desenho, o terapeuta poderá analisar
o traço, os objetos desenhados quanto a sua: disposição no papel, formato e tamanho, o grau de
sua importância, seus tipos, pressão do lápis no papel, cores utilizadas e a interpretação do
próprio paciente sobre o desenho. A Arteterapia usa a Arte, uma linguagem universal, podendo
assim chegar mais rápido ao inconsciente e desta forma dando condições ao arteterapeuta de
diagnosticar e verificar o tratamento mais adequado para cada caso.
O primeiro passo para reestruturar a auto-estima, reconstruir e fortalecer emocional e afetivamente
um adolescente abandonado e vítima de violência doméstica com a Arteterapia é apresentar o
meio – ARTE - de uma forma lúdica e agradável, onde esta servirá de linguagem entre paciente
e arteterapeuta. Assim, através da linguagem simbólica, as situações traumáticas vão aparecendo
sem que ele (paciente) se dê conta disto, sem sofrer revivendo toda a sua dor. Após a análise do
arteterapeuta em conjunto com a paciente, do material produzido, os traumas podem estar ali
revelados sendo trazidos à consciência, oportunizando o que se chama em Psicologia Analítica
de Função Transcendente e, à luz da consciência, o paciente enfrenta o problema para obter a
cura deste complexo. O efeito terapêutico que se pode alcançar com o auxilio da Arteterapia é o
reconhecimento do problema pelo adolescente - porque existe uma negação inconsciente,
geralmente envolta em sentimentos de raiva, mágoa, vergonha, solidão e inferioridade - e utilizálo como ponto de partida para o tratamento. Verificou-se que a utilização da arte como ferramenta
possibilita uma reposta muito mais rápida pois é bem aceita por ser uma forma de expressão
natural e inerente a todo ser humano. Acredita-se ser possível melhorar, fortalecer e empoderar
emocionalmente adolescentes através da Arteterapia, pois é também, um veículo de “duas mãos”,
ou seja, o arteterapeuta se utiliza da arte para formar seu diagnóstico e como ferramenta para
tratar e estabilizar emocionalmente o paciente. Cada caso, é um caso, e as técnicas utilizadas
serão variadas e adaptadas para cada caso.
Ao utilizar a linguagem da arte pode-se atingir o centro do problema e assim pratica-se a Arteterapia
com maior efeito. A arte é, sem dúvida, uma linguagem com um acesso muito mais rápido ao real
problema, ao trauma, onde a dissimulação é muito mais difícil. Nestes casos, sabe-se que é
possível a reconstrução afetiva, desde que o paciente esteja disposto a cooperar.
A cura existe, pois através da superação do problema que está mais perto do Ego e, portanto, o
mais necessário a ser abordado vai-se ajudando a paciente a se curar principalmente quando a
arteterapeuta se deixa determinar pelo processo do paciente: o que é mais urgente, mais iminente,
o que está brotando, o que a arte está destacando. A cura acontece quando o paciente reconhece,
transcende e trata o complexo.
Possibilidades da Arteterapia
“As imagens simbólicas com suas múltiplas faces, exprimem os processos psíquicos de modo
mais preciso e muito mais claramente que o mais claro dos conceitos. O símbolo não só transmite
a visualização dos processos psíquicos, mas também, e isso é importante, a re-experiência destes
processos” (JUNG, OC, Vol. XIII).
Com a utilização da linguagem da arte: desenho, pintura, escultura, drama, nosso diálogo com a
paciente é muito mais amplo. A expressão das artes é utilizada como uma forma de aumentar,
clarear, abrir mais e mais a comunicação. O adolescente é estimulado a criar artisticamente com
prazer, dentro das técnicas oferecidas, e escolhe o material que quer utilizar. O acesso aos traumas
167
emocionais é muito mais rápido, trazendo-os a luz e, conseqüentemente ao conhecimento da
dor emocional que o maltrata. Com os problemas agora visíveis, inicia-se a busca para transpor
as barreiras e então, empoderar-se. Através da Arteterapia, as melhoras clínicas se acentuam,
pois as várias opções de técnicas artísticas, são meios de acesso ao seu mundo interno. Nas
obras criadas podem aparecer imagens instigantes repetidas vezes, através das quais o
inconsciente se comunica de fato, e, quando se reúnem essas obras, fica claro, que esta é uma
linguagem eficiente que facilita a percepção dos traumas dos adolescentes, muitas vezes com
dificuldades de comunicação verbal.
Listamos abaixo algumas das possibilidades do uso da Arteterapia:
Via de expressão do material vivido ou não vivido, consciente ou inconsciente, daquele que vem
ao atelier.
Abrir um importante caminho para o interior da psique, estabelecendo canal de comunicação
entre paciente e terapeuta.
Reestruturar a auto-estima, reconstruir, fortalecer e empoderar emocional e afetivamente
adolescentes abandonados e vítimas da violência doméstica.
Utilizar a linguagem da arte atingindo melhor o centro do problema assim praticando a Arteterapia
com maior efeito.
Melhorar, fortalecer, empoderar, a qualidade de vida/ afetiva.
Reconstrução afetiva.
Cura do problema mais iminente.
2. Empoderamento
“Será maior nobreza da alma sofrer as fundas e as flechas da fortuna ultrajante? Ou pegar em
armas contra este mar de infortúnios opondo-lhes um fim?” Shakespeare
Sob a ótica de empoderamento considera-se o empoderamento em relação ao self e o relaciona
com as noções de assertividade, eficácia, e autoconfiança. Esta visão julga que os sentimentos
do empoderamento são dependentes de cada indivíduo, sendo conquistado em parte pelos anos
de experiências de sucessos e insucessos em alcançar objetivos. Estudos têm demonstrado
que é possível se ensinar obediência, ou relacionada com o texto “não empoderamento”. Alguns
estudos clássicos, onde o conceito de obediência tem sido ilustrado, envolve ensinar os cães
com fome a não perseguir o alimento colocando um fio elétrico entre a comida e o cão. Isto cria
uma situação generalizada e o mesmo não perseguirá mais a comida por ter sido enfraquecido
em sua vontade. Fenômeno similar parece ocorrer com as pessoas. Estes aprendem a não
tentar cumprir com seus objetivos, se repetidamente passam por experiências negativas ao tentar
cumprir os mesmos. Examinando-se os processos atuais, portanto, localizaremos uma série de
“choques elétricos” que são impostos às pessoas, tornando-as obedientes, mas com baixa autoestima causada por estes traumas. Ao receberem tais choques, estas pessoas pensam não
serem capazes de realizar seus objetivos. Relacionado com o empoderamento está a auto-eficácia,
ou seja, a crença que temos habilidades para realizar coisas com sucesso embasada na confiança
que temos em nossas próprias habilidades e destrezas. Se as pessoas constantemente aplicam
suas habilidades e esforços e não conseguem obter sucesso, naturalmente isto as dirigirá para
uma falta de auto-eficácia e, automaticamente, a evitar desafios. Tomando-se a visão psicológica
do empoderamento coloca-se a ênfase na mudança da mentalidade individual. No empoderamento
é particularmente importante entender a si próprio, entender o contexto e como este opera e
conhecer e valorizar nossas destrezas e habilidades. Tomamos como exemplo a campanha que
foi e está sendo feita pelo Ministério de Assuntos da Mulher do Governo do Canadá.
Adolescência é uma época difícil. Anos depois, geralmente, nos consideramos sobreviventes
dessa fase cheia de inseguranças e dúvidas. É assim para meninos e meninas, mas as meninas,
já começam com uma desvantagem. Quando fazem 8 anos de idade, muitas das meninas já se
consideram cidadãs de segunda-classe. Pensando nisso, o Governo de Ontário lançou e mantém
uma campanha, tendo como alvo meninas de 8 a 14 anos, falando sobre situações que elas
enfrentam e levantando questões sobre violência doméstica, no namoro e assédio sexual A
campanha, que começou e já está em andamento, encoraja o relacionamento igualitário entre
meninos e meninas e inclui propagandas de TV e um website interativo. Os vários cenários do
site mostram meninos insultando, controlando e ridicularizando garotas e sugerem como as garotas
168
podem responder a isso. Além da dominação por parte dos meninos, a campanha também aborda
o bulling por parte de outras meninas, que também são bem cruéis.
É inacreditável pensar que meninas de oito anos de idade pensem que são apenas garotas e,
portanto, estão destinadas a ter menos importância num relacionamento. Precisamos mudar
essa imagem que, em última instância, vai definir o tipo de relacionamentos que você vai ter em
toda sua vida.
Minha experiência como Presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher me provou ser
de extrema necessidade trabalhar o empoderamento feminino. Neste trabalho, objetivo o
empoderamento de adolescente vitima de abandono e violência usando a Arteterapia, com a
linguagem de expressão artística, como meio para entrar no interior do processo de individuação
e deste modo tentar o EMPODERAMENTO.
Para ilustrar, coloco abaixo uma lista feita por adolescentes de classe média, família bem
estruturada, do que elas consideram ser empoderamento: Empoderar-se é ter poder dentro de
si. É acreditar no seu taco. É ouvir seu sexto sentido. É lutar pelos seus direitos. É ter iniciativa. É
ter atitude. É buscar informações para fazer escolhas conscientes. É protagonizar. É não delegar
a outra pessoa o que você tem capacidade de fazer. É acreditar em suas capacidades. É acreditar
no seu organismo. É crer na sua fisiologia. Elas têm razão!
Conclusão
Somos muito complexos! Nossa “normalidade” depende de um difícil equilíbrio entre
nossos consciente e inconsciente. Para sobreviver às ameaças do mundo exterior, utilizamos
muitas personas, como atores num palco. Muitas vezes isso é opcional mas, na maioria dos
casos é involuntário, é uma reação natural à ameaça externa. Os adolescentes vistos na Fundação
têm um histórico de abandono e violência em todas as suas facetas, isso contribuiu para destruição
da sua auto-estima e está destruindo suas bases para a vida. No início, os participantes deste
estudo mostravam-se desconfiados, uns apresentavam-se calados, outros eufóricos. Aos poucos
os adolescentes foram se aproximando cada vez mais do Atelier Arteterapêutico. Posso dizer
que eles “cederam” às técnicas da Arteterapia e, voluntariamente vinham fazer parte dos trabalhos
e inclusive divertindo-se com o processo. Passei então, a pedido deles, a atender adolescentes
do sexo masculino, também. Natural e muito rapidamente criou-se um vínculo entre nós, criando
assim, também, empatia com uma relação de confiança e até afeto. Isto me proporcionou um
acesso muito mais efetivo, aos problemas emocionais deles e facilitou-me atingir o meu objetivo
de ajudar, modificando, empoderando estes adolescentes.
Embora tenha comprovado estar no caminho de meus objetivos propostos neste trabalho, é
necessário muito mais tempo (o que sigo com as sessões), dedicação, carinho e amor para
realizar este propósito. Sob condições favoráveis penso que alguns adolescentes ( os mais velhos
– 18 anos ou mais) poderão ingressar no processo de individuação: uma longa série de
transformações psicológicas que culminam na integração de tendências e funções opostas, e na
realização da totalidade.
A experiência de campo mostrou-me que através da linguagem das artes expressivas e da
arteterapia podemos alcançar nossos objetivos. Foi possível constatar que a arteterapia tem
como seu grande trunfo a sutileza. O grande segredo e conseqüente sucesso é o fato de usarmos
como meio, a arte que já é motivo de alegria e satisfação. Quando eu mostrava todos os materiais
que podiam utilizar em seus “trabalhos artísticos” um elo de confiabilidade se formava e neste
momento estabelecíamos um diálogo calmo, franco e aberto. Sem aparentemente sofrer os
adolescentes começam a verbalizar fatos que até então estavam escondidos e que só apareciam
em seus desenhos. Começam aos poucos a comentar comigo suas dores bem como seus
projetos. Foi excitante, emocionante até, verificar o alto grau de aceitação das sessões pelos
adolescentes que participavam do grupo. Verificando todas estas possibilidades e aceitação que
tem a arteterapia, creio ser possível fazer uma análise dos complexos e traumas em tempo mais
curto. Além de ser menos sofrida do que as que são feitas com o que nós chamamos de “métodos
convencionais”.
Fundamentada em tudo que presenciei penso que é possível, sim, fortalecer emocionalmente,
EMPODERAR adolescentes através da arteterapia por esta conter uma linguagem naturalmente
aceita, agradável e lúdica. O exercício da atividade artística torna-a rica de importantes significados
169
e símbolos. A verbalização, então, quando comentado o trabalho feito, se faz mais clara e correta
com o recurso artístico. Todas as formas de arte foram, são e serão um dos instrumentos mais
importantes para o desenvolvimento da consciência, pois são atividades que ajudam, permitem
ao individuo, se reconhecer e fixar as coisas significativas tanto de suas experiências e traumas
internos, como de suas experiências externas. A produção artística é espontânea, simbólica e
constitui uma verdadeira porta para a alquimia da psique.
Referências Bibliográficas
CASSIRER, Ernst; Antropologia Filosófica. São Paulo, xxx: 1977
FREITAS, Miriam. Entrevista por e-mail. Porto Alegre, Março de 2008.
JUNG, C.G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, 317 p.
___________Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 1999 - volumes V – V –VII/1 e 2 – VIII
– X - XVI e XVII
PAIÏN, Sara e JARREAU, Gladis. Teoria e Técnica da Arteterapia: a compreensão do
sujeito. Porto Alegre: ArtMed, 2001.
TOMMASI, Sonia Maria Bufarah. Arte-Terapia e Loucura: uma viagem simbólica com
pacientes psiquiátricos. São Paulo: Vetor, 2005.
170
O Herói como Arquétipo de Crise e Resiliência
Milena Valelongo Manente; Regina Paganini Furigo
Instituição: Instituto de Psicologia Junguiana de Bauru e Região (IPJBR)
Introdução
O impacto da era moderna e pós-moderna sobre a existência do homem distanciou-o
dele mesmo, deixando nas mãos do outro a atribuição do sentido de sua vida. Dessa maneira um
permanente estado de crise nas pessoas está sendo gerado, pois os antigos referenciais estão
se perdendo e sendo substituídos pela supremacia do materialismo e pela exclusiva organização
econômica-política (CAMPBELL, 1997).
Podemos inferir, portanto, que o estado de crise impõe ao indivíduo duas condições básicas: de
sucumbir ou mergulhar no próprio Self com a finalidade de busca de novos significados para a
vida. A essa busca de novos significados a Psicologia denomina como resiliência.
Nos ambulatórios de saúde mental encontramos várias pessoas em crise que, muitas vezes, não
conseguem expressar por meio da racionalidade a origem do seu sofrimento, dando margem
aos sintomas físicos simbolizadores desta condição. Bezerra Júnior (1987) afirma que toda
demanda ambulatorial é social, já que o sujeito solicitador de ajuda vive dentro de um contexto
socialmente determinado; e é pessoal, considerando que cada um vive uma experiência de forma
singular. Este autor ressalta ainda que, dependendo da demanda assistida pela saúde mental os
conceitos de saúde e doença divergem: para a classe abastada a definição de saúde envolve
uma noção de bem-estar, enquanto para os menos abastados, engloba a capacidade de trabalhar.
O grande desafio da área da saúde, incluindo a Psicologia Junguiana, é reconhecer os aspectos
coletivos presentes no paciente que deseja “se curar” também desencadeadores do seu estado
de crise (RODRIGUES, 2006).
Na mitologia podemos encontrar direcionadores importantes no processo de compreensão de
nossas crises emergentes atuais. Campbell (1997, 1990) afirma que os mitos revelam um fluido
de forças que denotam uma ordem cósmica. Trata-se de metáforas sobre o potencial da alma
humana que aborda os poderes presentes na natureza e no interior da pessoa. Através de
narrativas sobre os heróis entraremos em contato com um importante arquétipo da descida à
escuridão da psique e de emergência deste território de maneira transformada.
Objetivo
Construir um paralelo entre o estado psíquico da Crise presente no cotidiano do homem
pós-moderno e o desabrochar do Arquétipo do Herói como possibilidade de Resiliência.
Métodos
Através da investigação dos conceitos de crise, resiliência e mito do herói buscamos
traçar as possíveis associações entre eles.
Desenvolvimento
Crise pode ser compreendida como um estado de alto nível de ansiedade, dificuldade de
pensar, objetivar e discriminar problemas, alteração na auto-estima somada ainda, com carência
de projetos para o futuro (FIORINE, 1995). Podemos ver a crise como uma constelação maciça
de um ou de vários Complexos em sua polaridade negativa. Trata-se de conteúdos inconscientes
altamente emocionais que se agrupam e formam constelações, podendo ocupar o lugar do ego
(BREHONEY, 2007). Quanto mais inconscientes os complexos para o indivíduo, maior seu poder
de autonomia.
São consideradas pessoas resilientes aquelas que passaram por eventos com presença
de sofrimento, mas se adaptaram positivamente frente às situações adversas, encontrando
caminhos para a reconstrução de suas vidas ( KOLLER, 2005).
Nos mitos temos vários exemplos de mortais que sofreram muito nas mãos de deuses
furiosos e mesmo assim conseguiram, geralmente com o auxílio de elementos da natureza, obter
uma transformação de si próprios e do coletivo. Campbell (1997) afirma que os heróis passam
por etapas semelhantes envolvendo inicialmente um chamado, o qual aceitará a façanha (ex.
Teseu) ou não (Odisseu tenta fugir da Guerra de Tróia) iniciando uma “jornada de crise”. Nesta o
171
herói precisa obrigatoriamente se movimentar indo para terras distantes, estranhas, com ilhas
secretas, montanhas, reinos subterrâneos realizando façanhas sobre-humanas. A recusa desta
convocação pode representar o adoecimento pelo tédio, vitimização e depressão. Este autor
esclarece que seu mundo florescente torna-se um deserto cheio de pedras e sua vida dá uma
impressão de falta de sentido.
Mediante aceitação do chamado, o herói contará com auxílios sobrenaturais para enfrentar suas
provas como Teseu dispôs do fio de Ariadne e Psiquê da formiga em sua primeira prova, levandoa a contar com graus de autoconsciência e de autocontrole superiores. O equivalente seria o
paciente em crise que procura ajuda contando com o apoio do terapeuta despertando seu próprio
arquétipo de curador.
A próxima fase seguinte à aceitação do chamado é a passagem pelas provas e estágios de
purificação do eu indutora de crise na qual o herói passa de um estado infantil para a maturidade
(Ex.: As provas de Psique e os doze trabalhos de Héracles), assim como nas Crises do
Desenvolvimento e/ou Psicossocial relatadas por Jung e Erikson. Campbell (1990) nomeia esta
fase de descida dos heróis às trevas ou à escuridão da psique. Nela o herói precisa abandonar o
convívio familiar e partir para a aventura em ambientes sombrios, como Jonas na barriga da
baleia em busca do que faltava a sua consciência. Sendo responsável por si mesmo deve encontrar
um lugar de aquietação para a própria alma. Sua grande saga é simplesmente o estar vivo,
considerando que vicissitudes fazem parte da condição humana.
Os perigos psicológicos enfrentados pelos heróis fazem parte da condição humana. Assim
podemos pressupor que todos nós vivenciaremos períodos de crise (CAMPBELL, 1997).
Góes (2004) vê o sujeito resiliente como aquele que diante das adversidades dá sentida a sua
dor, transformando-a em fortalecimento, equilíbrio, positividade e energia.
Campbell (1997) descreve como última etapa da saga do herói o retorno do herói
envolvendo uma reconciliação do individual com o universal acompanhado de algo de bom que
é trazido para a humanidade pelo herói. Este elemento precioso pode ser representado pelo
fogo por Prometeu.
O herói humano, segundo Campbell (1997) apresenta uma biografia composta por exílio
da infância ou de uma impermissão para viver, e em função disso, necessita ser escondido ou
fugir para sobreviver. Outra característica biográfica é a manifestação de forças prodigiosas pelo
herói desde o seu nascimento destacando-o dos outros mortais. Mesmo apresentando uma
história de abandonos, perdas e provas ao longo de sua vida o herói é capaz de descobrir o
caminho de luz indo além dos limites sombrios encontrando um saber.
Podemos entender a trajetória do Herói como o arquétipo que engloba o passar pela
crise, o amadurecer, o estar pronto para viver e a resiliência. Num enfoque junguiano, podemos
imaginar que a resiliência pode tratar-se de uma busca de novos significados através do contato
entre consciente e inconsciente
Podemos citar como exemplo de busca de auto-regulação psíquica, de superação e porque não
de resiliência, a Saga do Herói. O herói é aquele que apresenta um espírito de liderança, garra e
capacidade de superar limites. Acrescenta-se que estes personagens mobilizam em nós
sentimentos reservados (RAMOS, 2004). Considerando assim, a existência de um caráter
arquetípico do herói pode ser despertado em nós mediante momentos de crise.
Dessa forma podemos entender a trajetória do herói como a constelação de um arquétipo que
engloba a crise, o amadurecer e o estar pronto para viver.
O herói, portanto, passa por situações extremas de tormentos e perigos, vivenciando a solidão,
seja nas grandes cidades contemporâneas ou perdido em mar aberto e ilhas estranhas. Desta
forma, ao aceitar o desafio de enfrentar os perigos verá estas forças negativas desaparecerem
(CAMPBELL, 1997). As situações de risco não correspondem somente aos aspectos negativos
da vida, mas correspondem também aos eventos pessoais contidos no contexto de cada ser.
Conclusão:
O caráter Arquetípico do Herói pode ser despertado em nós nos momentos de Crise,
vivenciados no desemprego, no casamento e nas mudanças. A Resiliência, quando compreendida
como símbolo do potencial flexível e transformador presente no interior do homem, é uma saída
para lidar com a desorganização social e individual marcantes em nossa época.
172
Referências Bibliográficas
BEZERRA JR. B. Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental. In: TUNDIS,
S.A.; COSTA, N.R. (orgs.) Cidadania e Loucura. Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis,
Vozes/Abrasco, 1987. p.134-169.
BREHONEY, K.A. O crescimento e a busca da inteireza. Rubedo, Ano V, nº19, Out, 2003. Disponível
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CAMPBELL, J. O herói de mil faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral. 10 edição. São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 1997.
_____________. O poder do mito. Tradução Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena,
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FIORINE, H.J. Teoria e Técnica de Psicoterapias, Ed. Barleu Edições, 1995
GÓES, M. G. C. Resiliência na Adoção. 2004.
Disponível
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KOLLER, S.H.; PALUDO, S.S. Resiliência na rua: um estudo de caso. Psic.: Teoria e Pesquisa.
Brasília, v.21, n.2. mai/ago. 2005.
RAMOS. D. Heróis eternos. Isto É, v.1798, 24/03/04.p.88-94.
RODRIGUES, S. Crash: a psicologia analítica no limite entre o particular e o coletivo. Trabalho
apresentado na I CONFERÊNCIA DE OUTONO promovida pelo Núcleo Mineiro de Estudos
Junguianos e no I ENCONTRO BRASILEIRO promovido pelos Grupos Junguianos Independentes.
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YUNES A. M. Psicologia Positiva e Resiliência: O Foco no indivíduo e na Família. Maringá, 2003.
Disponível em:
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141373722003000300010&Ing=en&nrm=iso
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Mandala: Os Efeitos de sua Aplicação do Comportamento da Atenção Concentrada dos
Adolescentes
Monalisa Dibo
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Såo Paulo - PUC
Resumo
Esse artigo trata de um estudo interdisciplinar que consiste em verificar se o desenho da mandala
melhora a atenção concentrada em adolescentes em sala de aula no Ensino Médio e se o mesmo
apresenta símbolos de conotação religiosa. É uma pesquisa qualitativa e quantitativa que privilegia
os significados e processos mensurados em termos de qualidade e freqüência. O instrumento
para medir atenção concentrada em quatro turmas do Ensino Médio, que totalizaram 70
adolescentes,foi o teste AC-15.
Palavras-chave
Mandala; Atenção concentrada; Educação; Psicologia Analítica; Religião.
Abstract
The purpose of this study consists in the determination of whether the mandala’s design improves
concentrated attention in teenagers in a classroom, and if it presents symbols of religious
connotation. This is a quantitative as well as a qualitative research project, focusing on the quantity
and frequency of the meanings and processes under scrutiny. The tool used for the mensuration
of concentrated attention in four high scholl groupus totalling 70 teenagers, was Test AC-15.
Key-Words
Mandala, Concentrated Attention, High Schooling, Analytical Psychology, Religion.
Introdução
O ponto de partida da pesquisa “Prabhã - Mandala: os efeitos da aplicação do desenho da mandala
no comportamento em adolescentes” está nas obras básicas de C.G.Jung no tocante à mandala,
notadamente “Psicologia e Religião” (1999), “O segredo da Flor de Ouro” também desenvolveram
o tema e posso citar, entre eles, M.L.C.Franz, “Jung: seu mito em nossa época” (2002), C. B.
Byington, “Pedagogia Simbólica: a construção amorosa do conhecimento do ser” (1996),
J.Boisselier, “A Sabedoria de Buda” (2002).
Das argumentações lidas, as que se revelaram mais importantes foram às contidas na obra
“Psicologia e Religião” (1999), na qual encontrei maior consistência aproximativa com a cultura
religiosa. Neste livro, C.G.Jung afirma que a mandala deve ser estudada pêlos psicólogos porque
representa um dos símbolos antiquíssimos, uma das mais antigas expressões universais da
mente humana (Cf. JUNG: 1999).
A expressão “Mandala” provém de uma palavra de língua sânscrita que significa “círculo”, mais
precisamente de “círculo mágico”, ainda que também (como composto de manda = essência e Ia
= conteúdo) seja entendida como “o que contém a essência” ou “ a esfera da essência ou, ainda,
o círculo da essência (Green.2005, p.7).
No livro “Mitos e Símbolos na Arte e Civilização da índia” (1993) de H. ZIMMER, observei que a
cultura hinduísta também era rica em símbolos e suas representações; assim, utilizei a palavra
Prabhâ - Mandala que significa “Porta do esplendor” - um desenho decorativo colocado sobre a
áurea de Shiva “o senhor” ( a personalização do absoluto) ou “o auspicioso”, de idade dos iogues
e da meditação- para o termo da minha pesquisa na tentativa de desenvolver uma possível
ligação do desenho da mandala com uma porta, uma passagem entre dois estados, entre o
conhecido e o desconhecido. Esta passagem porta - mandala tem um valor dinâmico, psicológico,
pois não indica só uma passagem, mas convida a atravessá-la. A porta é o convite à viagem
rumo a um além. É ela que dá acesso à revelação; sobre ela vêem se refletir as harmonias do
universo. Portanto, o Prabhã-Mandala seria uma tentativa para abrir a consciência de cada
adolescente para uma nova realidade.
A partir da experiência com mandalas realizada com adolescentes do Ensino Médio por vários
174
anos, procurei referências mais detalhadas, através das quais surgiu o interesse em desenvolver
uma pesquisa sobre os possíveis efeitos do desenho da mandala sobre o comportamento de
atenção concentrada em adolescentes do Ensino Médio. E nessas experiências em sala de aula
observei que os símbolos manifestados nos desenhos mandálicos dos alunos e na elaboração
destes sinais seriam como sinais vindos do inconsciente.
Procurei, a seguir, pesquisar obras que fornecessem conhecimentos mais amplos sobre mandala,
diretamente nas culturas hinduísta, budista e budista-tibetana. No âmbito da religião em relação
à Psicologia sobressaía a obra de Rudof Otto, “O sagrado” (1992) na qual o conceito de experiência
religiosa é tratado com mais profundidade. Este autor afirma que todas as experiências religiosas
são consideradas sagradas porque contêm um caráter numinoso. A obra de Edêno Valle,
“Psicologia e Experiência Religiosa” (1998) forneceu elementos básicos para a conceituação de
“experiência religiosa” que se identifica como a noção-chave na discussão do fenômeno religioso.
Contudo, foi nas obras básicas de C.G.Jung que encontrei possibilidades de realizar o estudo
sobre mandala, com a atenção concentrada, através do Teste AC-15, intuindo a possibilidade de
aplicar os conceitos em sala de aula para adolescentes. Para isto, inicialmente, revistei a leitura
disponível sobre o tema e investiguei diversas obras, em sua maioria na Psicologia Analítica.
A mandala se refere a uma figura geométrica em que o circulo esta circunscrito em um quadrado
ou um quadrado em um círculo. Possui ainda subdivisões ,mas ou menos regulares,dividido por
quatro ou múltiplos de quatro. Irradia-se do centro ou se move para dentro dele,dependendo da
perspectiva do individuo ( Samuel, Shorter e Plaut,1988 p.59).
É um símbolo antiquíssimo, cuja origem pode remontar ao período paleolítico da Historia das
Civilizações, provavelmente pré-histórico, as chamadas rodas solares, sempre relacionado com
a idéia de uma divindade criadora do Mundo. Como conseqüência da experiência religiosa surge,
nas culturas dos povos do mundo oriental,o mito cosmogônico que serve como modelo arquétipo
para todas as explicações sobre a criação universal (Eliade,1992,p.76).
Portanto,ao ser utilizado de modo esquemático nestas tradições ,pode ser entendida ainda como
um resumo da manifestação espacial,uma imagem do mundo( Chavalier e Greenbrat,2001,p.585)
C.G.Jung assim se expressa sobre a mandala:
“A palavra sânscrita mandala significa “círculo” no sentido habitual da palavra. No âmbito
dos costumes religiosos e na Psicologia,designa imagens circulares que são desenhadas pintadas,
configuradas plasticamente ou dançadas”( Jung, 2002, p. 585-387).
Portanto, Jung (2002) sinaliza que
a mandala pode ser compreendida como círculo
mágico e na Psicologia Analítica, significa o símbolo do centro, da meta e do Sí-mesmo (Self),
enquanto totalidade psíquica,de centralização da personalidade e,a produção de um centro novo
desta ultima.
No sentido religioso, a mandala é ao mesmo tempo a imagem e o motor da ascenção espiritual,
que precede de uma interiorização cada vez mais elevada da vida. E ainda,através de uma
concentração progressiva do múltiplo no uno: o “eu” integrado no todo, o todo reintegrado no
“eu”. Jung recorre a imagem da mandala para designar uma representação simbólica da psique
humana, cuja essência nos é desconhecida, (Jung,2002).
A pesquisa foi organizada em cinco capítulos. No primeiro, Mandala na Religião, procurei
estabelecer uma introdução a interpretação psicológica da religião no tocante as mandalas, desde
a alta antiguidade e os possíveis encontros do mundo oriental com o inundo ocidental.
Na segundo capitulo, Mandala na Psicologia Analítica, a proposta foi de estabelecer a introdução
geral às obras de C.G.Jung que se referem à mandala, abordando o desenvolvimento da relação
entre a psicologia e Religião, no Mundo ocidental na visão moderna.
O psicólogo C.G.Jung idealizador da Psicologia Analítica também conhecida como Psicologia
Junguiana, nos legou significativa contribuição científica para a compreensão da psique humana.
Sua relação com a mandala nasceu de pesquisa e vivências com seus pacientes. Percebera que
eles se expressavam com imagens circulares, com movimentos em direção a um crescimento
psicológico expressando a idéia de um refúgio seguro, de reconciliação interna e inteireza. Dizia
textualmente que “a mandala exprime o Si-mesmo, a totalidade da
personalidade”(Jung,20C.2,p.175-176.)
175
No terceiro capítulo intitulado alguns projetos de pesquisas educacionais com mandalas,
demonstrei alguns trabalhos realizados no mundo, tem como propostas a promoção da paz,
pela arte e educação,através de consultas via Internet. São projetos educacionais que oferecera
aos educadores habilidades de utilizar conceitos da mandala, incorporando-a nO próprio conteúdo
programático do ensino-aprendizagem. Contudo,não encontramos na pesquisa bibliográfica,
nenhum sobre a interação mandala/educação/atenção concentrada ; o que mostra a revelando
desta nossa dissertação para a educação no Brasil.
No quarto capítulo desenvolvemos a questão da “Atenção Concentrada” aplicando o referido
Teste AC-15 com relevância ao Ensino Médio. Este teste possibilitou a intenção de avaliar a
capacidade de atenção concentrada nos adolescentes durante um período longo de tempo.
Optamos ainda,no tocante a aplicação da mandala, procurar estabelecer os efeitos da utilização
das configurações diagramáticas, como suporte de concentração dos adolescentes.
Optanos por este teste porque a “atençao” é a aplicação cuidadosa da mente humana em
algum fato concreto, como reflexão,cuidado, aplicação e “concentrada” refere-se a um processo
que consiste em enfocar determinadas porções de uma experiência de modo que elas se torne
mais evidentes e destacadas(‘Warren,1956 p . 28)
No quinto capítulo sobre o método,desenvolvemos o método indutivo no qual,a partir das
observações de fatos ou seja mandalas produzidas por adolescentes individualmente e a aplicação
do teste AC-15,pode-se obter conclusões sobre o comportamento das classes como um todo.
Esta amostra foi composta de quatro classes do primeiro ano do Ensino Médio que totalizam 70
alunos(28 do sexo masculino e 42 do sexo feminino, do período matutino do ano letivo de 2006).
Estas classes são formadas por adolescentes dê l4 a l6 anos do Instituto Madre Mazzarello,
localizado em São Paulo(SP) .A maioria reside no próprio bairro de Santana e nas vizinhanças e
pertence a classe média da população urbana. Foram, para isto, utilizado instrumentos para
colher os dados de campo experimental: teste psicológico de atenção concentrada; identificação
da idade e sexo dos adolescentes no Ensino Médio; registro cursivo das atividades e inter-relações
individuais em sala de aula; aplicação gráfica da mandala e questionário a respeito da construção
da mandala.
Este procedimento resultou na pesquisa que se baseou na teoria analítica de C.G.Jung na qual o
método de investigação da psique humana apoiou-se na apreensão e compreensão dos eventos
simbólicos. A função psíquica em que se fundamentou a pesquisa compreendeu símbolos, como
pensamentos simbólicos que operam por associações, comparações e pela busca do sentido e
integração dos opostos em tensão,imagens são símbolos religiosos e psicológicos que podem
estimular e organizar a mente humana, notadamente, em adolescentes, equilibrar suas emoções,
ativar processos físicos e desenvolver maior concentração, no caso nos estudos, integrando o
homem.(Chevalier J.e Gherbranto,.A. 2001)
Finalmente, elaborou-se uma análise qualitativa das mandalas e do efeito de sua aplicação
segundo as respostas dadas nos questionários e foram computados os símbolos religiosos
apresentados no centro da mandala.
Conclusões
Podemos afirmar que a força desta pesquisa está na revelação da possibilidade de se verificar
que a configuração mandálica melhora a atenção concentrada em adolescentes em sala de aula
no Ensino Médio e que, em seus centros, apresenta símbolos de conotação religiosa, entre outros.
Maior força poderá estar na ampliação da faixa etária, incidindo na fase da juventude, de 17/18
até aproximadamente 21/25 anos interessando já aos educandos do Ensino Superior.
O ponto fraco corresponde à dimensão limitada da amostra cuja pesquisa incidiu num universo
de 70 alunos. Seria benéfico levar a amostra para uma população de outra faixa etária, como a
da juventude, ou mesmo para um maior numero de adolescentes, ampliando, ainda, para as
áreas de formação, como Ciências Humanas, Biológicas e Exatas.
Observando e analisando estas mandalas, podemos refletir que hoje em dia a sala de aula não é
só um lugar para transmitir conhecimentos cognitivos, mas um lugar de possibilidades para
realizações de trabalhos que visam o processo de transformação. Um espaço para o aprendizado
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do si mesmo e, conseqüentemente, um local sagrado onde se opera a transformação e
transmutação anímica, sendo o lugar da inclusão das almas e que corresponde aos processos
normais de aprendizado.
As salas de aulas modernas podem começar a ser considerada o local do começo de uma
caminhada para o encontro da alma, onde efetivamente se possa realizar trabalhos para o
nascimento do novo homem por intermédio da utilização da criatividade e das imagens, e é onde
poderá ser construído o caminho para um encontro com o Self.
Referências Bibliográficas
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Spawn, O soldado do Inferno - Mito e religiosidade nos quadrinhos¹
Cristina Levine Martins Xavier²
Instituição:
Palavras chave
psicologia junguiana, mitologia,religiões antropologia, quadrinhos
Resumo:
O livro “Spawn, o soldado do Inferno -mito e religiosidade nos quadrinhos” é resultado de uma
extensa pesquisa acadêmica no campo das Ciências da Religião sobre este polêmico herói em
quadrinhos. Spawn é um herói muito recente, lançado no início da década de 1990, e que já se
configura entre os heróis em quadrinhos mais populares entre os adolescentes. Foi transformado
em filme e em desenho animado. Seu universo apocalíptico e violento é cercado de símbolos
religiosos relacionados à cultura judaico-cristã e a suas origens históricas mais remotas.
A saga mítica de Spawn está estruturada sobre matrizes culturais muito arcaicas, que vão desde
o Homem Neandertal até a mitologia greco-romana. Além disso, sua história também contém os
mesmos estágios arquetípicos da jornada mítica do herói sugeridos por Joseph Campbell, a qual
é uma metáfora do processo de individuação Outra hipótese desenvolvida nesta pesquisa e que
também contribui para explicar o sucesso de Spawn baseia-se no fato de que Spawn, além de ser
herói, possui uma série de características que o caracterizam como bode expiatório: é vitima e
transgressor, herói e criminoso, é rejeitado pela sociedade por ser mal compreendido e tem uma
aparência, está imerso em um universo mítico e religioso e também é muito violento. Dentro da
fenomenologia estudada por René Girard, a vítima escolhida para o rito sacrificial tem uma função
integradora e pacificadora para a comunidade: depois da expiação do mal através do ritual de
sacrifício e do subseqüente restabelecimento da paz, ela assume para a comunidade uma imagem
sagrada e redentora.
Através de uma análise psicológica e antropológica de importantes eventos históricos, mitos e
símbolos religiosos trazidos na saga de Spawn, serão feitas importantes reflexões e revelações
que ajudam a compreender e a refletir não apenas sobre este herói em quadrinhos mas, sobretudo,
sobre os principais conflitos e desafios impostos tanto ao jovem adolescente como ao homem na
era da pós-modernidade.
¹Pesquisa de mestrado realizada no programa de Ciências da Religião da PUC/SP em 2003.
Apresentação sobre os tópicos mais importantes do livro: Spawn, O Soldado do Inferno - Mito e Religiosidade nos Quadrinhos,
Cristina Levine Martins Xavier, Editora Difusão, 2004 (352 pgs.).
²Cristina Levine Martins Xavier, especializada em Psicologia Junguiana pelo Instituto Brasileiro de Estudos Homeopáticos (FACIS/
IBEHE) e mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP.
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