RODRIGO ALBERTO CORREIA DA SILVA
A iniciativa privada em saúde e a Constituição de 1988
Mestrado em Direito
PUC/SP
SÃO PAULO
2006
1
RODRIGO ALBERTO CORREIA DA SILVA
A iniciativa privada em saúde e a Constituição de 1988
Dissertação
apresentada
à
Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito das relações sociais,
área de concentração em Direito Civil, sob
orientação do Professor Doutor Silvio Luís
Ferreira da Rocha.
PUC/SP
SÃO PAULO
2006
2
Banca Examinadora
__________________________________
__________________________________
__________________________________
3
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
São Paulo, 29 de setembro de 2006
4
RESUMO
O acesso aos produtos e serviços de saúde é garantido pela Constituição Federal de
1988, que dispõe que estes serão fornecidos tanto pelo Estado quanto pela iniciativa privada.
Todavia, a despeito da determinação constitucional, temos uma crise social, pois nem
todas as pessoas têm acesso aos medicamentos e planos de saúde que viabilizem tratamentos
de saúde, cujo fornecimento pelo Estado é muito menos abrangente do que o necessário às
hordas de miseráveis que vivem no Brasil.
O trabalho analisa o controle de preços de medicamentos e de planos de saúde
realizados no Brasil, respectivamente pela Câmara de Medicamentos e pela Agência Nacional
de Saúde Suplementar, em face da sistemática da ordem econômica brasileira, colocada pela
Constituição Federal de 1988, bem como, pelos objetivos de ampliação de acesso a produtos e
serviços de saúde também impostos pela Constituição Federal de 1988.
A análise de constitucionalidade dos mencionados controles de preços é realizada por
meio do estudo do sistema jurídico nacional, da avaliação econômica dos mercados em
questão e da inter-relação entre esses dois aspectos do objeto estudado.
Ao longo do trabalho se discorre sobre os serviços públicos e os poderes do Estado em
relação aos prestadores privados destes serviços sejam concessionários ou permissionários
dos serviços públicos e os diferencia dos agentes privados que prestam serviços não privativos
do estado.
Por fim são analisados aspectos microeconômicos dos mercados de medicamentos e
planos de saúde para entender o impacto e os limites da regulação estatal destes e dos
mecanismos de controle de preços ali empregados.
A conclusão considera o controle de preços inconstitucional, por ferir os princípios da
livre concorrência e da livre-iniciativa, entre outros, e por sua ineficácia comprovada para
atingir a finalidade constitucional da regulamentação estatal que é a ampliação de acesso da
população a esses produtos e serviços.
5
ABSTRACT
The access to health products and services is guaranteed by the Federal Constitution of
1988, that allows its supplying for both State and private initiative.
Contrary to the constitutional determination we face a social crises once it is note
everyone that have access to medicines and health plans that make accessible health
treatments. The supply of those utilities by the State is much inferior of the need of the many
miserable people that lives in Brazil.
The work analyses the medicines and health plans price control that takes place in
Brazil by the Medicines Chamber and by the National Supplementary Health Agency
respecting the Brazilian economic order system created by the Federal Constitution of 1988
with the targets of population access increasing also mandatory according to the Federal
Constitution of 1988.
The Constitutionality analyses of those price controls is done through the study of the
national legal system the economic analyzes of those markets and the relation between those
two aspects of the study object.
The work development includes the debate about public services and the State powers
over the private renders of those services by permission or concession and the difference
between them and the private agents that renders services non privative to the State.
At the end the micro-economic aspects of the medicines and health plans are analyzed
to understand the impacts and limits of the State Regulation on those and the of the price
control mechanisms used today.
The conclusion of the work is for the unconstitutionality of the prices control by
offending the free competition and free initiative principles, among others, and by being
useless to fulfill the constitutional task for the State Regulation that is the increasing of the
population acess to those products and services.
6
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÃO 2 – LEITOS DE INTERNAÇÃO BRASIL – 1976 A 2000...................................................38
ILUSTRAÇÃO 6 DISTRIBUIÇÃO DA DESPESA MENSAL FAMILIAR EM R$ - BRASIL 2002-2003
(CONTINUAÇÃO)..........................................................................................................................................97
ILUSTRAÇÃO 8 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 02 ...........................105
ILUSTRAÇÃO 9 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 12 ...........................105
ILUSTRAÇÃO 10 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 01.........................106
ILUSTRAÇÃO 11 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 16.........................106
ILUSTRAÇÃO 12 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 10.........................112
ILUSTRAÇÃO 13 DISTRIBUIÇÃO DO CONSUMO DE MEDICAMENTOS POR CLASSE SOCIAL
2001 ..................................................................................................................................................................123
ILUSTRAÇÃO 14 MERCADO FARMACÊUTICO 1997 – 2003 (BARRAS)............................................130
ILUSTRAÇÃO 15 MERCADO FARMACÊUTICO 1997 – 2003 (LINHAS) .............................................130
ILUSTRAÇÃO 16 CONTROLE DE PREÇOS DE MEDICAMENTOS - REFERÊNCIAS
INTERNACIONAIS......................................................................................................................................132
ILUSTRAÇÃO 17 POLÍTICAS DE CONTENÇÃO DE GASTOS EM MEDICAMENTOS REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS.......................................................................................................133
ILUSTRAÇÃO 18 - INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO BRASIL VENDAS SEM IMPOSTOS EM
US$ 2000-2003...............................................................................................................................................149
ILUSTRAÇÃO 19 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA - ARRECADAÇÃO 2000 - 2003 ...........................149
ILUSTRAÇÃO 20 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA - POSTOS DE TRABALHO 2000 - 2003............150
ILUSTRAÇÃO 21 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA – INVESTIMENTOS E EXPECTATIVA DE
INVESTIMENTOS 2000 - 2003.................................................................................................................150
ILUSTRAÇÃO 22 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA - EXPORTAÇÕES E EXPECTATIVA DE
EXPORTAÇÕES 2000 - 2003 .....................................................................................................................151
ILUSTRAÇÃO 23 PESQUISA AMCHAM (ANVISA) 2005 PERGUNTA 08 ..........................................158
ILUSTRAÇÃO 24 PLANOS DE SAÚDE POR MODALI DADE DE OPERADORA BRASIL
DEZEMBRO 2005 .........................................................................................................................................163
ILUSTRAÇÃO 25 - CONCENTRAÇÃOS DOS PLANOS DE SAÚDE NO BRASIL 2003 - 2005.......165
ILUSTRAÇÃO 26 CURVA ABC DA DISTRIBUIÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS DE PLANOS DE
SAÚDE ENTRE AS OPERADORAS........................................................................................................166
ILUSTRAÇÃO 27 PLANOS DE SAÚDE POR NÚMERO DE BENEFICIÁRIOS BRASIL 2005 .......167
ILUSTRAÇÃO 28 BENEFICIÁRIOS DE PLANOS DE SAÚDE, POR TIPO DE CONTRATAÇÃO DO
PLANO.............................................................................................................................................................178
ILUSTRAÇÃO 29 BENEFICÍARIOS DE PLANOS DE SAÚDE POR TIPO DE CONTRATAÇÃO
2001 - 2005 ......................................................................................................................................................179
7
SUMÁRIO
1 – EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA E O DIREITO À SAÚDE ..... 12
2 – EVOLUÇÃO DA REGULAÇÃO DA ECONOMIA PELO ESTADO ................... 18
2.1. Regulação da economia na Constituição do Brasil de 1988 ................................ 24
3 – A SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ......................................... 34
3.1. O poder de polícia em relação aos produtos de interesse da saúde ..................... 39
4 – REGULAMENTAÇÃO DA ECONOMIA E REGULAMENTAÇÃO DA
ATIVIDADE PRIVADA EM SAÚDE .......................................................................... 43
4.1. Análise da validade do poder regulamentar econômico perante a Constituição
Federal de 1988........................................................................................................... 46
4.1.1. Serviços públicos .......................................................................................... 51
4.1.2. Produtos e serviços de saúde fornecidos pelos particulares fazem parte do
serviço público? ...................................................................................................... 53
5 – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS NA REGULAMENTAÇÃO
ECONÔMICA DAS AÇÕES DE SAÚDE .................................................................... 57
5.1.1. Concentração em mercado relevante ............................................................ 84
5.1.2. Barreiras à entrada de novos concorrentes ................................................... 89
5.1.3. Assimetria das informações ....................................................................... 90
5.1.4. Baixa elasticidade da procura .................................................................... 92
5.2. O mercado de medicamentos ............................................................................... 99
5.2.1. Barreiras sanitárias...................................................................................... 103
5.2.2. Patentes de medicamentos ....................................................................... 107
5.2.3. A assimetria das informações quanto aos medicamentos ..................... 115
5.2.4. Problemas de agência ............................................................................... 120
6. CONTROLE DE PREÇOS DE MEDICAMENTOS .......................................... 125
6.1. Legislação brasileira recente de controle de preços de medicamentos.............. 135
6.2. A atual regulamentação de preços de medicamentos pela Lei 10.742/2003 141
7 – PLANOS DE SAÚDE ........................................................................................... 160
7.1. O mercado brasileiro de planos de saúde .......................................................... 163
7.2. A regulamentação dos planos de saúde no Brasil......................................... 169
7.3. Análise de constitucionalidade da regulamentação dos preços dos de planos
de saúde no Brasil ................................................................................................... 175
CONCLUSÃO ............................................................................................................. 182
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 185
8
INTRODUÇÃO
Atualmente vivemos em um Estado Democrático de Direito, que permite
a liberdade da iniciativa privada, reservando ao Estado a titularidade da prestação
daqueles serviços considerados fundamentais para a sociedade, inobstante possam ser
executados pela iniciativa privada sob concessão ou permissão de prestação de serviço
público.
Nas situações em que o Estado, por falta de recursos financeiros,
humanos, tecnológicos, gerenciais ou quaisquer outros, houver por bem contratar com a
iniciativa privada a sua prestação como maneira de melhor atender ao interesse público
e se desincumbir de sua obrigação de prestação do serviço, caber- lhe-á determinar a
forma dessa prestação e de sua fiscalização.
Para a exploração dessas atividades, a iniciativa privada deverá se curvar
aos termos da concessão ou da permissão, aceitando a ingerência estatal em suas
atividades nos limites dessa relação jurídica, ou então optar por não explorar a atividade
e investir seus recursos alhures.
Referido poder-dever advindo dessa relação jurídica se justifica pela
própria terceirização desses serviços, que originalmente são de responsabilidade do
Estado, pois se é o Estado que responde politicamente perante a sociedade pelo seu
fornecimento, deverá ter maneiras de garantir que seja prestado a contento e com preços
que permitam alcançar os objetivos dessa mesma sociedade.
As demais atividades econômicas, por não terem tamanha relevâ ncia
social, seriam livres para a iniciativa privada, desde que respeitada a legislação em
vigor, o poder de polícia estatal, o direito do consumidor e desde que se abstendo da
prática de atos anticoncorrenciais.
Contudo, temos em nossa ordem constituciona l atividades que, embora
não estejam reservadas ao monopólio do Estado, não são exclusivas da iniciativa
privada e em cuja exploração a iniciativa privada pode sofrer intervenção estatal.
Tais atividades configuram um meio-termo entre os serviços públicos
próprios e o vasto terreno franqueado à liberdade da iniciativa privada, pois têm grande
relevância social. Mas, por razões financeiras e históricas, tais serviços são prestados
concomitantemente pelo Estado e pela iniciativa privada: são as atividades de educação
e saúde.
9
O foco de nosso trabalho são as atividades de saúde e especialmente a
intervenção estatal no aspecto que talvez seja o mais sensível para a iniciativa privada,
que é o preço.
Quando tratamos de tema que interfere no acesso das pessoas à saúde, é
impossível evitar a carga emocional e política envolvida tendo em conta a
essencialidade desse bem social, o que só é agravado por um quadro de indutores de
tensão social cujos pontos são: o anseio de todos a todos os tratamentos de saúde
existentes, o anseio de que estes tratamentos sejam o melhor que a tecnologia pode
oferecer, a geração de novos custos em saúde a cada novo acesso oferecido 1 , e
finalmente a inexorável limitação dos recursos disponíveis.
Entretanto, procuramos uma análise jurídica do tema conforme a
Constituição Federal de 1988, utilizando dispositivos que se relacionam fortemente com
a ciência da Economia, sem a qual não podem ser analisados.
Os dispositivos sob análise trazem determinação de ampliação do acesso
da população aos serviços de saúde. Objetivo que por determinação constitucional deve
ser buscado pelo Estado Brasileiro inclusive pelo Poder Legislativo ao criar as normas
infraconstitucionais.
Analisar a questão sob este ângulo exige que o operador do direito e
especialmente nossos tribunais avaliem a validade das normas infraconstitucionais sob a
perspectiva dos efeitos que causarão no futuro, seja em relação a sua eficácia ou
ineficácia ou até sua contrariedade ao alcance do objetivo trazido pela Constituição
Federal em atenção aos anseios da população brasileira.
Esta necessidade de análise prospectiva, ao nosso ver, faz com que o uso
da ciência econômica seja adequado para a análise da validade das normas
infraconstitucionais voltadas ao acesso da população a serviços de saúde, passando a ser
portanto, um instrumental adicional de grande importância aos operadores do direito e
tribunais para que se evite tanto quanto possível que sejam avaliações subjetivas os
instrumentais
de
validação
ou
não
dos
efeitos
destas
normas
jurídicas
infraconstitucionais perante a Constituição Brasileira.
1
Esta situação é muito fácil de se notar ao verificarmos, por exemplo, que a cada avanço da medicina
aumenta a expectativa de vida da população, que, por viver mais e com mais idade, necessita de mais
atenção à saúde, ou que a cada avanço no diagnóstico se descobrem novas doenças a serem tratadas
etc.
10
Sem esta análise criteriosa e afastada do calor das emoções e das
posições políticas ou históricas cairíamos na insegurança jurídica e na submissão dos
institutos jurídicos aos ventos das decisões subjetivas.
Acreditamos que quando a Constituição Federal traz em seus dispositivos
conceitos indeterminados pretende dar aos tribunais a flexibilidade necessária para
analisar a validade das normas infraconstitucionais à luz da realidade temporal e
espacial da sociedade vigente á época em que a análise será feita, como por exemplo,
sob a ótica da livre iniciativa, função social da propriedade, buscando dar eficácia
somente as normas infraconstitucionais que estejam em consonância com esta realidade
e com os anseios buscados inicialmente pelo Poder Constituinte.
Desta forma, os tribunais, dentre os quais notadamente o Supremo
Tribunal Federal se torna m guardiões dos valores sociais cristalizados no texto
constitucional, adaptando-os através do tempo, dando assim longevidade aos textos
constitucionais.
Da mesma forma, quando a Constituição Federal de 1988 trouxe em seus
dispositivos o acesso universal da população aos serviços de saúde, impôs uma
verdadeira missão que deve ser perseguida pelo Estado Brasileiro, em especial por
nossos tribunais.
Notadamente o Supremo Tribunal Federal, a nosso ver, passa a ser o
guardião desta missão devendo fulminar todas as normas infraconstitucionais, pós
promulgação da Constituição que pela situação política se desviem da missão real
proposta inicialmente pelo Poder Constituinte.
Contudo, cabe o questionamento de como os tribunais poderão julgar
inválidas as normas infraconstitucionais contrárias ou inócuas a missão constitucional
de dar a população amplo acesso aos serviços de saúde? E como evitar o quanto
possível o subjetivismo das decisões face à situação política e econômica vivida pelo
País no momento de sua prolação?
Parece-nos que a resposta para tais perguntas será encontrada com o uso
pelo operador do direito e notadamente pelos tribunais da ciência econômica como
ferramental auxiliador na busca por normas infraconstitucionais que propiciem os
efeitos práticos necessários para o alcance do amplo acesso da população aos serviços
de saúde.
É por esta razão que este trabalho está recheado de indagações
econômicas acerca dos efeitos futuros de normas infraconstitucionais na busca da
interpretação harmônica e sistemática de normas infraconstitucionais e mais do que isso
na busca real do amplo acesso da população aos serviços de saúde.
11
1 – EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA E O DIREITO À SAÚDE
Observando as Constituições brasileiras, desde a Constituição Imperial
de 1824 até a atual Constituição Cidadã de 1988, é possível notar uma mudança de foco
condizente com as mudanças ocorridas na sociedade brasileira desde então.
O conteúdo da Constituição Federal de 1824 é quase que exclusivamente
voltado para a estrutura do Estado, seus poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e
Moderador ou Imperial, para o processo normativo e para a forma de ocupação dos
cargos nesses poderes.
Temos a garantia de alguns direitos básicos do cidadão com um enfoque
de limitação ao poder público e, no que tange à saúde, a menção de garantia dos
“socorros públicos” (art. 179, inciso XXXI), para todos os cidadãos brasileiros.
A Constituição do Império de 1824 garantia o direito de propriedade, o
privilégio de invenção, abolia as corporações de ofício e garantia a liberdade de
trabalho, cultura, indústria e comércio, desde que não se opusessem aos costumes, à
segurança e à saúde dos cidadãos.
Na Constituição de 1891 temos a mesma configuração, com uma
ampliação sensível desses direitos individuais de proteção contra o poder público, não
tanto em quantidade mas em relação a seu conteúdo. Há clara opção em favor do
indivíduo : é uma Constituição Liberal.
Havia a previsão da liberdade de associação e do livre exercício de
profissão, embora a doutrina vislumbrasse a possibilidade de intervenção do Estado em
prol do bem comum, o que efetivamente ocorreu com as crises do café. Importante
emenda ao texto original foi realizada em 1926 para permitir a legislação sobre
comércio interior e exterior.
Entretanto, não temos mais a garantia individual aos socorros públicos;
temos apenas a singela menção da garantia a “liberdade, à segurança individual e a
propriedade” no caput do artigo 72, que trata das garantias dos indivíduos residentes no
Brasil.
Em 1934, temos uma nova Constituição Federal, que em comparação
com a anterior denota o aumento da complexidade e abrangência das questões
relacionadas à aplicação das normas jurídicas, o surgimento do foco em gastos públicos,
no funciona lismo público e seu controle.
12
Ocorre a ampliação dos direitos individuais 2 e políticos, e surge o
capítulo voltado para a Ordem Econômica e Social, entre outros, sendo criadas para o
Estado brasileiro uma série de obrigações sociais.
O que diferencia esses novos direitos que o cidadão adquire com a
Constituição de 1934 é que não se trata mais apenas de limitações às agressões que o
Estado poderia lhe impingir, mas sim de obrigações ativas para o Estado de prover o
Bem-estar Social.
São normas programáticas decorrentes do desejo de solução de
problemas sociais pelo Poder Constituinte Originário, que, desde então, estarão
presentes em no ssas Constituições, determinando a prática de políticas públicas pelo
Poder Executivo e definindo o conteúdo das leis, vinculando, conseqüentemente, as
decisões judiciais ao sentido social ali colocado.
Sem dúvida a intenção foi das mais louváveis e, certamente, fruto da
situação social da época; porém, desde então, se passou a acreditar que a solução desses
graves problemas será alcançada de maneira normativa. O Estado brasileiro passa,
então, a penar com a falta de recursos para atingir esses objetivos, gerando as tensões
sociais e distorções orçamentárias nas quais vivemos até os dias atuais.
No que tange à saúde, a Constituição de 1934 determina em seu artigo
10, inciso II, que compete, concorrentemente, à União e aos Estados “cuidar da saúde e
assistênc ias públicas”, especificando no Capítulo relativo à Ordem Econômica e Social,
no artigo 121, § 1.º, inciso h, que é garantida a assistência médica e sanitária ao
trabalhador e à gestante.
Atendendo aos profissionais que trabalham mas não são funcionários, o
artigo 123 da Constituição de 1934 equipara o profissional liberal ao trabalhador para a
obtenção das garantias e benefícios da legislação social, incluindo, portanto, a
assistência à saúde.
A atenção aos desvalidos, o amparo às crianças e às gestantes, a atenção
às doenças mentais e as medidas de higiene contra a propagação de doenças
transmissíveis são atribuídas a União, aos Estados e aos Municípios (art. 138), sendo
que, para o amparo à maternidade e à infância, estes deverão destinar pelo menos 1%
(um por cento) de suas receitas tributárias (art. 141).
2
Diminui a abrangência do Habeas Corpus para a que temos hoje, e institui o Mandado de Segurança
contra abuso de autoridade e ato ilegal (art igo 113, item 33), veda a prisão perpétua, o banimento, o
confisco (artigo 113, item 29), a prisão por dívidas, multas, ou custas (artigo 113, item 30), entre outras
ampliações dos direitos individuais.
13
A organização de um Serviço Nacional de combate às endemias fica sob
a responsabilidade da União, que também deverá custeá- lo caso os Estados não
consigam fazê- lo (art. 140).
É permitida, ainda, mediante justa indenização, a monopolização pelo
Estado de atividades econômicas por motivos de interesse público, conforme
autorização por Lei especial (art. 116).
A Constituição de 1937 começa, em seu artigo 1.º, enunciando que o
poder é exercido em nome do povo e que deve ser exercido no interesse de sua honra,
independência e bem-estar, o que certamente não seria possível sem saúde e outros
tantos direitos sociais, embora se veja a clara diminuição da proteção dos direitos
individuais contra o poder estatal em contrapartida a uma forte preocupação com o
espírito e a segurança nacional ou com o status quo vigente à sua decretação. É uma
Constituição centralizadora, reflexo dos fatos sociais em ebulição a seu tempo.
A questão social da saúde está presente nessa Constituição, competindo,
privativamente, à União Federal legislar sobre as normas fundamentais de defesa e
proteção da saúde, especialmente a saúde da criança (art. 16, inciso XXVII), com
possibilidade de delegação para os Estados em caso de forte interesse local, mediante
aprovação da União de leis que forem criadas pelas Assembléias estaduais (art. 17).
O artigo 137 da Constituição de 1937 determina, no mesmo sentido da
anterior, que a Legislação do Trabalho deve, entre outros benefícios, garantir a
assistência médica ao trabalhador e à gestante (item l do artigo 137).
Além disso, o artigo 135 da referida Constituição garante ao Estado o
poder geral de intervenção a bem do “interesse da nação”, conceito altamente subjetivo
que podia ser exercido, também, em relação às empresas do setor de saúde, já que podia
ser exercido em face de quaisquer empresas e pelo forte impacto social de todas as
questões relacionadas à saúde.
O retorno da normalidade e dos direitos individuais de proteção contra o
Estado se dá, novamente, com a Constituição de 1946, embora não com a amplitude que
temos, atualmente, na Constituição Federal de 1988.
Pela primeira vez, no caput do seu artigo 141, a Constituição de 1946
garante ao indivíduo o direito à vida, direito óbvio e elementar para o qual é criado o
Estado: para a proteção da vida de seu povo.
Por incrível que pareça, os direitos da população brasileira ainda não
tinham o posicionamento privilegiado que lhes damos nos dias de hoje, pois vinham ao
14
final da Carta Constitucional como se o Estado fosse um fim em si mesmo e não tivesse
por finalidade o atendimento à população, sendo esta apenas uma de suas atribuições
não a fundamental.
Pois bem, permanece a competência da União para legislar sobre
proteção da saúde (art. 5.º, inciso XV, alínea b), com a competência estadual para
criação de legislação supletiva ou complementar (art. 6.º).
É criada imunidade tributária para, entre outros, os artigos que a lei
classificar como indispensáveis ao tratamento médico das pessoas de restrita capacidade
econômica (art. 15, § 1.º), medida que deveríamos ter mantido e ampliado em nossa
atual Constituição, dada a essencialidade desses produtos, e que se procura atualmente
reintroduzir na Constituição de 1988 por meio da PEC 516/2002, para os medicamentos
incluídos em programas governamentais de assistência farmacêutica.
Todavia, a assistência sanitária e médico-hospitalar preventiva é
constitucionalmente garantida pela legislação trabalhista e previdenciária apenas ao
trabalhador e à gestante (art. 157, inciso XIV).
A intervenção geral do Estado na iniciativa privada vem da possibilidade,
mediante Lei Especial, de intervenção no domínio econômico e da monopolização da
indústria ou atividade (art. 146). Contudo, para tanto, o Estado haveria de ter recursos
para a prestação do serviço ou produção, o que, em saúde, no Brasil, não é crível, tendo
em conta o montante de investimentos necessários e a descapitalização de nosso Estado.
Porém, na Constituição Federal de 1946 já há a previsão de combate ao
abuso de poder econômico da iniciativa privada visando ao aumento arbitrário dos
lucros, que será feito nos termos da legislação infraconstitucional (art. 148).
Por sua vez, a Constituição de 1967, expressamente, garante o direito à
vida aos residentes no País, o que em uma interpretação ampliativa, cabível aos textos
constitucionais, não deixa de ser uma garantia à saúde, pelo menos à saúde de
emergência, posto que, sem garantir o direito à saúde, o direito à vida ficaria restrito,
apenas, ao direito de não ser assassinado, ou seja, apenas a um direito contra agressão, e
não, verdadeiramente, a um direito à manutenção da vida.
É mantida a competência legislativa da União em relação à saúde (artigo
8.º, inciso XVII, alínea c), com competência apenas supletiva para os Estados (artigo
8.º, § 2.º).
15
No tocante à atividade executiva, a Constituição de 1967 determina que
cabe à União “estabelecer planos nacionais de educação e saúde” (artigo 8.º, inciso
XIV), para os quais pode celebrar convênios com os Estados (artigo 8.º, § 1.º).
Não é mantida a imunidade tributária para os produtos de tratamento
médico dos necessitados, porém é garantia a assistência sanitária, hospitalar e médicopreventiva não só aos trabalhadores mas também às suas famílias, não mais pela
Legislação Trabalhista mas, diretamente, pela Constituição Federal (artigo 158, inciso
XV), portanto de maneira auto-aplicável e ampla.
Todavia, não há na Constituição de 1967 menção de garantia
constitucional de proteção à gestante não trabalhadora ou sem trabalhador em sua
família, sendo certo que a definição dos limites do que é a família é dada pela legislação
infraconstitucional, por falta de definição no próprio texto constitucional, embora este
deixe claro que legitima apenas a família constituída pelo casamento (artigo 167).
A Constituição de 1967 coloca, ainda, como um dos princípios da ordem
econômica a liberdade de iniciativa do inciso I do artigo 157, mas, no mesmo artigo,
impõe a função social da propriedade (inciso III) e a repressão ao aumento arbitrário dos
lucros e às práticas anticoncorrenciais (inciso VI).
Além dis so, é garantida ao Estado a intervenção no domínio econômico e
a monopolização de atividade econômica, por determinação legal, tanto por motivos de
segurança nacional, quanto para orga nizar setor que não possa se desenvolver com
eficiência no regime de competição e de livre- iniciativa (artigo 157, § 8.º).
Em 1969, a Constituição foi emendada para acrescentar que a finalidade
da intervenção do Estado na economia visaria sempre à busca da expansão das
oportunidades de emprego produtivo.
Importante notar que tanto a redação original da Constituição de 1967
quanto a emendada em 1969 admitiam a intervenção e o monopólio do Estado para
atendimento do interesse público, caracterizado pela segurança nacional ou,
simplesmente, para organizar setores que não pudessem se desenvolver no regime de
competição e de liberdade de iniciativa.
Apesar de Oscar Dias Corrêa, conforme citado por André Ramos
Tavares3 , considerar essa Constituição condizente com o liberalismo, ou neoliberalismo
econômico, nos parece que a quantidade de conceitos indeterminados que
3
Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2002. p. 126.
16
possibilitavam a intervenção do Estado na economia dava ampla margem ao
intervencionismo estatal.
Existiam diversos fundamentos para sustentar que uma atividade não
poderia se desenvolver em regime de livre- iniciativa, o que encerrou um alto grau de
discricionariedade na decisão de intervenção estatal na economia, o que inclusive pode
ser verificado na atuação estatal da época.
Dessa forma, até o final da vigência da Constituição de 1967, e Emenda
de 1969, tínhamos agentes privados explorando a atividade econômica de saúde, posto
que até então não havia qualquer impedimento a que o fizessem, e tínhamos a
obrigatoriedade de assistência à saúde, do trabalhador e de sua família, pelo Estado,
como resultado da evolução desse direito ao longo das Constituições federais pelas
quais o País passou.
Surge, então, a Constituição Cidadã de 1988, em que os direitos
individuais, coletivos e sociais são alçados a principal motivação do Estado, que passa a
existir para garantir o seu atendimento.
São fartos os dispositivos constitucionais que criam obrigações sociais
para o Estado, de modo que não basta o respeito das normas infraconstitucionais ao
conteúdo da Constituição Federal para que se considere atendida a Carta Magna; o
Estado, notadamente o Poder Executivo, deve empreender políticas públicas tendentes
ao alcance dos objetivos sociais gravados na Constituição Federal, quando de sua
criação, em atendimento aos anseios da sociedade. Esclareceremos em detalhes no
capítulo 3 deste trabalho o que se deve buscar no que tange ao acesso da população a
saúde .
Paralelamente a esse aumento das missões sociais do Estado brasileiro,
vemos, em comparação com a Constituição Federal de 1967 e Emenda de 1969, uma
maior estruturação da intervenção do Estado na economia, prestando serviços públicos e
garantindo a livre concorrência material na atividade privada, nos termos dos artigos
170 a 181 da Constituição Federal de 1988.
17
2 – EVOLUÇÃO DA REGULAÇÃO DA ECONOMIA PELO ESTADO
A evolução constitucional da regulação da economia pelo Estado é
reflexo da evolução do próprio papel do Estado em relação ao ambiente econômico e de
como este administra as tensões entre a busca do lucro pela iniciativa privada e a busca
de melhores condições de vida pela sociedade. Portanto, se faz necessária uma pequena
regressão para contextualizarmos a evolução constitucional brasileira relatada acima.
A regulação da economia pelo Estado já era percebida em 1700 a.C. no
Código de Hamurabi4 , tendo ocorrido em maior ou menor grau em diversos lugares e
momentos históricos, ainda que de maneira casuística e desorganizada, sem uma
reflexão teórica mais profunda sobre o poder econômico e seu controle.
No Império Ro mano, por exemplo, o preço dos produtos era livremente
acordado entre as partes, em respeito à liberdade de contratar, porém no final do
Império surge por influência da Igreja a noção de preço justo e a idéia do
enriquecimento “injusto”, atribuindo, portanto, juízo de valor sobre a atividade
econômica. Salientamos, ainda, o estabelecimento de preços para diversos produtos no
Império Romano por Diocleciano.
Por sua vez, no período medieval verificamos forte interferência na
atividade privada por força dos grêmios medievais, ao determinarem que seus membros
deveriam cobrar preços razoáveis por seus serviços, sem o abuso do monopólio da
atividade de que gozavam.
Durante o mercantilismo, as cartas reais são uma clara demonstração da
interferência do Estado na economia, na medida em que passavam aos particulares o
direito de explorar atividades tidas como estatais, sob regras e contrapartidas
determinadas pelo Estado 5 .
Em uma tentativa de sistematizar essa evolução, Fábio Nusdeo 6 aponta
que historicamente a Economia passou por três sistemas ideais – o da tradição, o da
4
5
6
“... o Código de Hamurabi, em 1.700 a.C., congelou dois preços básicos na Assíria, o do óleo e o do sal,
e estabeleceu que os infratores seriam queimados, justamente, em óleo fervente. Porém houve um
impasse na execução da norma: com o congelamento, o produto sumiu do mercado e acabou faltando
óleo para exterminar os sabotadores do plano econômico da Babilônia” (SILVA, Américo L. M. da. A
ordem constitucional econômica. Rio de Janeiro : Lu men Juris, 1996. p. 116).
SOUZA, Washington P. A. de. Primeiras linhas de direito econômico. 5. ed. São Paulo: LTr, 2003. p.
332-335.
Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.
97.
18
autoridade e o da autonomia –, advertindo que nenhum desses modelos foi puro, pois
cada qual teve predominância maior ou menor em determinada época e local.
Até a Idade Média a economia seguiu o modelo da tradição, ou seja, não
havia grandes questionamentos ou teorizações a respeito da propriedade dos meios de
produção ou sobre o exercício dessa propriedade – as pessoas simplesmente faziam as
coisas como sempre haviam sido feitas, sendo que o controle da economia era
casuístico, fortemente moral e aleatório.
Após esse período, tornou-se dominante o sistema de autoridade segundo
o qual toda a condução da economia é determinada pelo fator político, ou seja, aquele
que detinha o poder sobre a coletividade tinha também o poder de dirigir a economia,
tanto do ponto de vista da alocação de recursos quanto da distribuição de riquezas.
Nesse momento, as ciências sociais e políticas passaram a tratar de temas
que mais tarde conformariam a ciência econômica. Este foco de estudos decorreu em
grande parte das necessidades do planejamento econômico, que era implementado pelo
detentor de poder político.
Finalmente, chega-se ao sistema de autonomia, baseado nos economistas
clássicos dos séculos XVIII e XIX, que identificaram uma operação da economia
baseada no hedonismo, na busca da satisfação dos próprios interesses, em que todos os
homens procuram satisfazer suas necessidades, reais ou psicológicas, buscando
maximizar os efeitos de suas próprias atividades.
Em 1776, Adam Smith sistematiza e consagra tais pensamentos em sua
teoria da chamada “mão invisível do mercado”, que automática e imperceptivelmente o
auto-regularia.
Segundo essa teoria, por meio do sistema de determinação de preços, os
compradores e os vendedores emitiriam mensagens sobre a oferta e a procura dos bens e
serviços e realizariam trocas com proporções baseadas nesses dados, que
automaticamente equilibrariam o consumo desses bens e serviços e harmonizariam os
interesses dos envolvidos7 .
7
“Para o pensamento liberal, o interesse próprio seria, portanto, a base principal dos mercados autoregulados. Se os consumidores são livres para aplicar as suas rendas como o desejarem e se os homens
de negócios são livres para competir sem restrições e conquistar a preferência dos consumidores, então
as atividades econômicas escoarão naturalmente” (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional
econômico, p. 37).
19
A busca da satisfação desses resultados em uma sociedade que admite a
propriedade privada dá-se em um ambiente que viabiliza a realização de trocas, que são
as comunicações entre os indivíduos que interagem num ambiente chamado mercado.
O mercado nada mais é do que uma abstração, que é sustentada no
mundo concreto por todas as instituições que protegem a propriedade privada e a troca
de mercadorias e serviços.
O Direito, como não poderia deixar de ser, passou então a se ocupar
fortemente da garantia das instituições do mercado para permitir a operação da “mão
invisível” e garantir a não interferência de fatores externos no mercado, que poderiam
criar barreiras para tal equilíbrio automático.
É interessante notar que o Direito é posto em marcha contrária à até então
adotada pelas economias autoritárias, nas quais a política e o Direito (ainda que muitas
vezes não individualizados) garantiam justamente o poder de intervenção.
Conforme aponta Fábio Konder Comparato, após um período de crença
cega nos benefícios da autonomia privada, a Primeira Guerra Mundial obrigou os
Estados a interferirem na economia para que os agentes econômicos se alinhassem de
forma eficiente no esforço de guerra.
Para nós, naquele momento histórico, o esforço de guerra era o bem
comum, pois a todos os cidadãos das nações em conflito interessava a ampliação ou
manutenção da soberania nacional.
Em 1929 os Estados Unidos da América sofreram com a grande
depressão, tornando perceptível que a economia não se regula automaticamente para a
obtenção do bem comum, por uma série de falhas que desnaturam a efetiva
concorrência entre os participantes do mercado, pressuposto essencial da eficácia da
“mão invisível” imaginada por Adam Smith.
Nesse momento, fez-se necessária a intervenção do Estado na economia,
já que, como demonstrou Jonh Maynard Keynes, o mercado não só não se auto-regula
como pode incidir em um equilíbrio de subemprego, necessitando da interferência de
um fator externo para dar movimento a essa situação inercial em direção a um equilíbrio
de pleno emp rego.
Efetivamente, o único que tem condições econômicas para realizar essa
intervenção é o Estado, além do que apenas ele é suficientemente interessado no bem
comum para despender recursos nesse sentido.
20
Dessa forma, o Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt
implantou à época, nos Estados Unidos da América, uma forte política de intervenção e
fomento da economia pelo Estado, batizada de New Deal, mesmo sofrendo grandes
resistências de um sistema econômico e de um pensamento jurídico moldado por 150
anos de suporte ao liberalismo econômico e também de interesses econômicos que
estavam obtendo vantagens oportunistas sobre a situação daquele País e do mundo.
Ainda temos que considerar que toda uma massa de excluídos gerados
pela Revolução Industrial passa a se revoltar quanto à sua situação subumana,
especialmente inspirada nas idéias de Karl Marx, conquistando gradativamente seus
direitos, nascendo a experiência dos Estados Socialistas, no nosso entender com retorno
à economia de autoridade.
A população passa a exigir que o Estado se torne responsável por uma
série de atividades, o que este faz em um primeiro momento, assumindo para si cada
vez mais a obrigação de prestação de utilidades sociais 8 , evolução notada em nossas
Constituições Federais, conforme já apontamos.
Contudo, após esse período de absorção de obrigações, o Estado passou a
sofrer com o inchaço da máquina administrativa e com a falta de orçamento para
investir em tais serviços, como está claro hoje em relação ao Estado brasileiro.
O Estado Providência gerou benefícios e vantagens que redundaram
na multiplicação da população, o que não foi acompanhado da
modificação dos mecanismos de seu financiamento. [...]
A multiplicação da população e a redução da eficiência das atividades
desempenhadas diretamente pelo Estado contribuíram decisivamente
para o fenômeno denominado “crise fiscal”. A expressão passou a ser
utilizada para indicar a situação de insolvência governamental,
inviabilizadora do cumprimento das obrigações assumidas e do
desenvolvimento de projetos ambiciosos 9 .
8
“A diferença básica entre a concepção clássica do liberalismo e do Estado de Bem-Estar é que, enquanto
naquela se trata tão-somente de colocar barreiras ao Estado, esquecendo-se de fixar-lhe também as
obrigações positivas, aqui sem deixar de manter barreiras, se lhe agregam finalidade e tarefas às quais
antes não se sentia obrigado (GORDILLO, , p. 74).
A idéia de Estado de Bem-Estar ou Estado Social implica alcançar determinados objetivos de bem
comum, de garantia de Direitos sociais, que seriam as manifestações concretas de seus postulados,
como o amparo à saúde e a previdência social; por outro lado, o Estado liberal mantém premissas de
garantia dos Direitos individuais, como propriedade e liberdade, e de atuação negativa do aparelho
estatal em respeito a esses Direitos.
Assim, num momento de intensa discussão acerca do papel do Estado diante da tão falada globalização
econômica, a efetivação e a universalização dos Direitos sociais dependem da atuação decisiva do
Poder Público” (ROCHA, Julio César de Sá. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos
interesses difusos e coletivos. São Paulo: LTr, 1999, p. 33 e 34.
9
JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética,
2002. p. 19.
21
Apesar de pressionado pela falta de verbas, o Estado, agora social, não se
desvencilhou dos anseios sociais que lhe impõem a responsabilidade pela prestação
dessas utilidades, de modo que optou por devolvê- los à iniciativa privada, mantendo o
ônus de zelar pela sua continuidade e universalização, pois “o atual estágio evolutivo,
por muitos considerado “neoliberal”, não implica – a despeito da retomada dos aspectos
fundamentais do liberalismo econômico – na rejeição a grande parte dos avanços
sociais, introduzidos especialmente pelo pensamento socialista”10 .
Portanto, embora prestadas pelos particulares, essas utilidades devem
permanecer sob o controle e a fiscalização do Estado, que as faz por meio da
regulamentação da prestação de serviços públicos pelos particulares em regime de
concessão.
Tivemos o exaurimento do sistema socialista com a queda da União
Soviética, mas por outro lado temos também uma forte tendência de os Estados tidos
como liberais buscarem o bem-estar social, tanto pela assunção de mais
responsabilidades, como obrigações positivas perante os cidadãos11 , quanto pela sua
interferência na performance da economia nacional.
Nesse aspecto, é importante o papel exercido pelo Direito Antitruste no
combate ao abus o de poder de mercado, como garantia estrutural do próprio mercado,
assegurando a livre concorrência real entre os agentes econômicos.
O Direito Antitruste tem por objeto o controle de concentrações e de
práticas anticoncorrenciais em geral, como um mecanismo de proteção do mercado do
ponto de vista dos mercados relevantes atingidos por tais ocorrências. É aplicável a
todos os mercados indistintamente, vale dizer, todos os agentes econômicos estão
sujeitos à aplicação dessas normas, independentemente do mercado em que atuem. O
10
11
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 45.
“Ao longo do século XX, a ideologia do Estado de Bem-Estar significou a assunção pelo Estado de
funções de modelação da vida social. O Estado transformou-se em prestador de serviços e em
empresário. Invadiu searas antes reputadas próprias da iniciativa privada, desbravou novos setores
comerciais e industriais, remodelou o mercado e comandou a renovação das estruturas sociais e
econômicas. [...]
O resultado foi extraordinariamente positivo; espantoso, poderia até dizer-se. As condições de vida
elevaram-se a níveis nunca anteriormente experimentados. A expectativa de vida média da população
elevou-se radicalmente. Nunca anteriormente os seres humanos experimentaram tamanho conforto e tão
grande quantidade de benefícios. Mais do que isso, nunca na História se ofertaram benefícios em
termos tão democráticos: saneamento, educação, assistência, previdência foram assegurados para todos
os cidadãos, em condições de igualdade (ao menos, formal).” (JUSTEN Filho, Marçal. O direito das
agências reguladoras independentes, p. 17 e 18).
22
“objeto da política antitruste é o bem-estar econômico, que é reduzido pelo abuso do
poder de mercado”12 .
Nos últimos anos, vem sendo renovada a importância conferida à política
antitruste. Na Europa, por força da Unificação Européia e a conseqüente necessidade de
garantir um ambiente despido de entraves ao comércio, a política antitruste é vista como
importante instrumento de reorganização do mercado em composição com a extinção de
barreiras tarifárias e não-tarifárias.
Por outro lado, revela-se naquele ambiente a preocupação de monitorar
as alianças estratégicas promovidas entre empresas de países diferentes no interior da
comunidade – motivadas pela pressão competitiva exercida pelos produtos japoneses –
e a onda de fusões impulsionada pelo aumento da escala do mercado, agora com 344
milhões de consumidores.
Nos EUA, após um período coincidente com as administrações
republicanas, em que a política antitruste era tida como um dos principais responsáveis
pela frágil performance competitiva dos produtos norte-americanos, observa-se uma
preocupação mais intensa com comportamentos de mercado de grandes empresas e com
o abuso de poder econômico.
Mesmo durante o período em que a política antitruste esteve sujeita a
pesadas críticas – de ordem empírica e teórica – houve aperfeiçoamentos importantes
em sua aplicação, em virtude da rica interação com a academia. Considerações sobre
custos de transação e concorrência potencial passaram a compor as análises da Federal
Trade Commission e do Departamento de Justiça desde o final dos anos 1980.
Japão e Coréia do Sul, respeitando as especificidades da organização de
suas economias, têm reforçado o uso de suas legislações para intensificar a pressão
competitiva sobre suas empresas e desestimular acordos defensivos entre elas.
Desse modo, podemos afirmar que atualmente os regimes democráticos
no mundo se encontram em um sistema misto, em que a liberdade dos agentes
econômicos está condicionada à geração de bem-estar para a sociedade em que atuam13 ,
12
SANTACRUZ, Ruy. Preço abusivo e cabeça de bacalhau. Revista Doutrina e Jurisprudência do
IBRAC, local, v. 7;
13
“Em tese de concurso intitulada ‘Aspectos da racionalização econômica’, afirmava Oscar Dias Corrêa,
já em 1949: “Não haveria exagero se falasse em socialização do capitalismo. Como estamos longe do
predomínio férreo do capital!”
“Da mesma maneira que o liberalismo político é, hoje em dia, doutrina intervencionista, em maior ou
menor escala, o capitalismo é socialista, em maior ou menor escala.” Eis aqui o verdadeiro interesse na
manutenção do estudo desses dois sistemas desenhados anteriormente. Na tese com que obteve a
cátedra de Economia da Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil, em
23
e o Estado, diretamente ou por meio da iniciativa privada, deve prover bens sociais para
a sua população. Isso vem ocorrendo também no Brasil, especialmente após a
promulgação da Constituição Federal de 1988, senão vejamos:
2.1. Regulação da economia na Constituição do Brasil de 1988
Atualmente, o artigo 5.º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988
garante o direito de propriedade, fundamental para a existência do próprio mercado, mas
afirma que esta deve se ater a sua função social no inciso seguinte (art. 5.º, inciso
XXIII), demonstrando o equilíbrio que deve ser mantido entre os interesses individuais
e os coletivos, conforme pode ser observado na redação do inciso XXXII do referido
artigo, ao estabelecer que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do
consumidor”.
Com efeito, a própria Constituição Federal trata da Ordem Econômica e
Financeira em seu título VII, que é aplicável a toda atividade econômica,
indistintamente.
Dentro desse título, o artigo 170 da Constituição Federal contém os
primados da atividade econômica em geral, que são: (i) valorização do trabalho e da
livre- iniciativa, (ii) justiça social, (iii) soberania nacional, (iv) propriedade privada, (v)
função social da propriedade, (vi) livre concorrência, (vii) defesa do consumidor, (viii)
defesa do meio ambiente, (ix) redução das desigualdades regionais e sociais, (x) busca
do pleno emprego, (ix) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, (xii)
livre exercício de atividade econômica, dependente de autorização apenas nos casos
previstos em lei.
Podemos perceber que o texto constitucional não confere uma liberdade
total à iniciativa privada, vez que coloca também como pilares da atividade econômica
itens sociais como : valorização do trabalho, justiça social, função social da propriedade,
defesa do consumidor e do meio ambiente, redução de desigualdades e busca do pleno
emprego.
1957, Oscar Dias Corrêa voltava a insistir na mesma idéia de que “o liberalismo se socializa enquanto o
socialismo se capitaliza, ou se liberaliza”. É que o tentava exprimir, em parte, Heilbroner ao anotar:
“Na verdade, se formos comparar a Iugoslávia ‘socialista’ com a Itália ‘capitalista’, descobrimos
provavelmente muito mais semelhanças de estilo social, vida cultural e atmosfera geral do que se
compararmos Iugoslávia ‘socialista’ com a China socialista” (TAVARES, André Ramos. Direito
constitucional econômico, p. 45).
24
Dessa forma, parece- nos claro que a mistura de liberalismo e direitos
sociais aponta para uma forma de exploração da atividade econômica que deve sempre
resultar no benefício da coletividade, ainda que os agentes econômicos também colham
os frutos de seu trabalho e da alocação de capital.
A liberdade de iniciativa empresarial, portanto, porque inserida no
contexto constitucional, há de ser exercitada não somente com vistas
ao lucro, mas também como instrumento de realização da justiça
social – da melhor distribuição de renda – com a devida valorização
do trabalho humano, como forma de assegurar a todos uma existência
digna. Assim, o lucro não se legitima por ser mera decorrência da
propriedade dos meios de produção, mas como prêmio ou incentivo ao
regular desenvolvimento da atividade empresária, segundo as
finalidades sociais estabelecidas em lei14 .
Note-se, portanto, que estamos diante de uma Constituição em que os
direitos à livre-iniciativa, à propriedade privada, à livre concorrência e ao livre exercício
de atividade econômica são liberais e visam à criação dos alicerces do mercado, e os
direitos à justiça social, à função social da propriedade, à defesa do consumidor, á
defesa do meio ambiente, à redução das desigualdades regionais, sociais e à busca do
pleno emprego são direitos sociais 15 .
Pela conformação de Estado presente em nossa Constituição Federal,
podemos concluir que a livre- iniciativa não é um direito absoluto, devendo ser inserida
no direito de livre concorrência, que é o método escolhido pela sociedade brasileira para
a obtenção dos resultados de justiça social estampados em nossa Constituição 16 .
14
BRUNA, Sérgio V. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo:
Revista dos Tribunais , 1997. p. 141.
15
“Quando a Constituição prevê expressamente o Direito a todos do livre exercício de qualquer atividade
econômica, em alguns casos mediante autorização dos órgãos públicos, tal assertiva deve ser
interpretada conjuntamente aos princípios que regem toda a atividade econômica, com ênfase à busca
do bem-estar social. Assim, não basta o desenvolvimento de uma atividade econômica pela iniciativa
privada que caminhe contrariamente aos objetivos constitucionais, tornando ilegítima a postura
adotada.
Na verdade, pode-se dizer que se trata de um Direito fundamental, enquanto exercido no interesse da
realização da justiça social, da valorização do trabalho e do desenvolvimento nacional, como princípios
primordiais consagrados constitucionalmente”. SANCHEZ, C. G., Aspectos da relação entre Estado e
iniciativa privado: enfoque constitucional. 1999. 120f. Dissertação (Mestrado em Direito
Constitucional) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, p. 26.
16
“não só a concorrência é um valor institucional. Institucional é, como visto, todo aquele elemento
conformador, necessário para o funcionamento do sistema. Ora, fundamental para qualquer ordem
econômica e para o seu equilíbrio que todos tenham acesso ao serviço.
A ques tão da difusão dos serviços (normalmente denominada universalização) é um exemplo típico.
Freqüentemente tratada como um objetivo de política econômica, ela é, na verdade, uma garantia
sistêmica ou institucional. Inegável é, como visto no primeiro capítulo, que se trata de objetivos que
não podem ser convenientemente protegidos por uma simples regulação concorrencial. Constitui-se,
portanto, em uma garantia institucional autônoma.
A garantia de difusão dos serviços deve ser aqui compreendida em sentido material, e não apenas
formal. Isso significa que ela tem dois componentes fundamentais. Em primeiro lugar a garantia de
25
A livre concorrência tem aspectos de direito individual e também de
direito difuso, pois é direito do agente econômico que lhe sejam propiciadas
oportunidades de uma verdadeira competição com os demais agentes, e é direito de toda
a sociedade que seja mantida operacionalidade da competição entre os agentes
econômicos para a obtenção dos benefícios sociais dela advindos.
Porém esta não é uma novidade de nossa atual Constituição Federal. No
Brasil, a legislação antitruste teve início com a Lei 1.521/1951, que definiu crimes
contra a economia popular. Contudo, referida legislação teve pouca aplicação em razão
da demora na ultimação dos processos, bem como devido a seu rigor excessivo.
Posteriormente, tivemos a Lei 4.137/1962, que criou o Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (CADE), mas sem prover os meios necessários para a efetividade de
sua atuação.
Desde o início da vigência dessas normas, foi objetivo das autoridades
alcançar celeridade na conclusão dos processos administrativos, preocupação típica da
perspectiva do economic policy maker que foi sendo reforçada pela experiência da
primeira fase do CADE, em que ocorreu muitas vezes de a conclusão do processo
administrativo se dar quando o fato econômico que lhe dera ensejo já havia se tornado
irrelevante, até mesmo pelo desaparecimento da parte lesada.
Com base nessa experiência, foi proposta a Medida Provisória 204, em 2
de agosto de 1990.
Nas palavras de Sampaio Ferraz
Convencido da inoperância dos procedimentos administrativos da Lei
n. 4.137/62 (que criou o CADE e os procedimentos de repressão ao
abuso do poder econômico), cujos processos tinham uma duração
média de 24 meses para conflitos que exigiam, pela celeridade das
relações econômicas, decisões rápidas e até cautelares, o Executivo
visou fundamentalmente à criação de um dispositivo mais leve, de
eficácia maior, que, comandado por um órgão do Ministério da
Justiça, a Secretaria Nacional de Direito Econômico, permitisse da
acesso aos consumidores. Essa deriva diretamente das garantias constitucionais da concorrência e da
defesa do consumidor (art. 170, IV e V), que coerentemente interpretadas, significam a não-exclusão de
qualquer consumidor.
Entretanto o simples provimento formal dos serviços a todos sem que muitos tenham condições
materiais não é também suficiente. Isso não significa dizer que a regulamentação possa ou deva
substituir as políticas sociais. Significa que a regulação, como também o Direito antitruste, não pode e
não deve ser instrumento de criação de desigualdades sociais e especialmente de exclusão. Novamente
aqui essa é a maneira de compatibilizar materialmente os ditames constitucionais de livre concorrência
e da justiça social. Particularmente, o controle das estruturas, cujo impacto sobre nível de emprego é
inegável, tem que ter em conta esse imperativo (o art. 58, 1.º, da lei concorrencial dele dá conta
expressamente). SALOMÃO. Filho, Calixto. Regulação da atividade econômica: princípios e
fundamentos jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 126 e 127.
26
parte do Poder Público uma interferência prévia e preventiva diante da
ocorrência de anomalias de comportamento econômico, capazes de
ferir os princípios constitucionais da ordem econômica17 .
A Medida Provisória foi seguida de outras, com pequenas modificações
de conteúdo – em função de serem as Medidas Provisórias válidas por um período
predefinido de 30 dias e não passíveis de reedição – até a definitiva promulgação da lei,
em janeiro de 1991.
Os problemas decorrentes da demora do CADE em proferir decisão
podem ser resumidos no voto do Conselheiro Leônidas R. Xausa 18 :
2) No mérito, igualmente continuo fiel ao entendimento do Plenário
no Processo 128/92 contra Laboratório Hosbon S.A, também por mim
relatado, e no Processo 164/91 da ilustre Conselheira Lúcia Helena,
onde sustentamos a tese de que a distância excessiva entre a data dos
fatos indigitados e o julgamento (aqui de quase seis anos) frustra o
objeto da decisão. O rigor metodológico necessário ao exame dos
eventuais aumentos excessivos de preços se esfuma após tanto tempo,
especialmente se considerada a política governamental errática de
controle, à época, e em conjuntura de metástase inflacionária. 3) De
conseqüência, se estabelece um desequilíbrio jurídico entre a utilidade
social da punição e o dano eventualmente causado pela conduta. 4)
Pelo que, na tradição deste Colegiado, aplico subsidiariamente o art.
267, IV, do CPC, conhecendo do recurso para negá-lo, sem
julgamento do mérito, mantendo o arquivamento.
A Lei 8.158, de 8 de janeiro de 1991, que aparelhou a Secretaria
Nacional de Direito Econômico (SDE), originou-se da necessidade de prover a
administração pública e a sociedade de um instrumental adequado de regulação de
comportamentos de mercado que evitasse – ou ao menos reduzisse – as fricções
causadas pela mudança institucional de um ambiente estritamente regulado e controlado
para um ambiente de liberalização das atividades econômicas.
Por fim, foi com a promulgação da Lei 8.884/1994 que se deu efetividade
aos ditames dos artigo s 170 e 173, § 4.º, da Constituição Federal de 1988, por meio da
criação do CADE, autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça, ou seja, com
personalidade jurídica e autonomia necessárias para o exercício da função e,
especialmente, com mandato fixo para seus conselheiros.
Assim, o CADE é responsável pelo controle da concentração de poder
econômico que resulte da integração de duas ou mais empresas, antes independentes,
17
SAMPAIO FERRAZ JR., Tercio. Lei de defesa da concorrência: origem histórica e base constitucional.
Revista dos Mestrandos em Direito Econômico da UFBA, n. 2, p. 71, 1992.
18
Proferido no Recurso de Ofício em Representação 275/92 (aumento abusivo de preço), que teve no
pólo ativo o Conselho Regional de Farmácia do Rio de Janeiro e no passivo a Hoechst do Brasil
Química e Farmacêutica S.A.
27
visando à compra de participação de mercado, e pela repressão ao abuso do poder
econômico.
A agência brasileira de política da concorrência aprecia os atos de
concentração, definidos como fusão, incorporação ou qualquer forma
de agrupamento societário. Para o conhecimento pelo CADE é
necessário que cada uma das empresas ou grupo de empresas
participantes possua no mínimo 20% de participação de mercado ou
faturamento igual ou superior a 400 milhões de reais.
Na apreciação do ato de concentração, o CADE procura responder,
inicialmente, se a operação é potencialmente anticompetitiva, i.e., se
limita ou de qualquer forma prejudica a livre concorrência. Na
hipótese de dano potencial, procuram-se estabelecer eventuais
eficiências oferecidas pela operação. Um balanço das eficiências e do
dano potencial indica se a operação merece aprovação, com ou sem
condições, ou se deve ser desfeita total ou parcialmente 19 .
O CADE também faz um controle de condutas dos agentes econômicos
em conjunto com a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e a Secretaria de
Acompanhamento Econômico (SEAE), que exercem funções auxiliares na defesa da
concorrência.
A primeira - SDE é responsável por instaurar e conduzir processos
administrativos que serão encaminhados para decisão pelo CADE, bem como por emitir
pareceres nos casos de concentração de poder econômico; já a segunda - SEAE, além de
emitir parecer nos casos de concentração de poder econômico e nos processos que
investiguem infração à ordem econômica podem, também, exercer atividades
investigativas tais como as exercidas pela SDE. Contudo, em todos os casos os
pareceres não são vinculantes da decisão e devem seguir critérios técnicos.
A Secretaria de Direito Econômico (SDE), ligada diretamente ao
Ministério da Justiça, promoverá, para posterior encaminhamento ao CADE,
averiguações preliminares, de ofício ou por requerimento escrito e fundamentado de
qualquer interessado, função que no caso de produtos de interesse da saúde também é
exercida pela Agê ncia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), como veremos
adiante.
Após a conclusão das averiguações preliminares, no prazo de 60 dias, o
secretário da SDE determinará a instauração do processo administrativo ou seu
arquivamento, quando os indícios de infração à ordem econômica não forem suficientes
para a instauração de processo administrativo, tendo que recorrer de ofício ao CADE.
19
Concorrência e propriedade intelectual. In: FONSECA, Antonio, Curso de defesa da concorrência
organizado sob a direção FGV/CADE e realizado no ano de 1997 nas cidades de Brasília, Rio de
Janeiro e São Paulo, p. 12.
28
No caso de requisição para a instauração do processo administrativo, este
deverá ser feito em prazo não superior a 8 dias, contados do encerramento das
averiguações preliminares, ou, ainda, do conhecimento do fato ou da representação.
No capítulo que trata das penas, o artigo 23 da Lei 8.884/1994 dispõe
que:
Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os
responsáveis às seguintes penas:
I – no caso de empresa, multa de 1% a 30% do valor do faturamento
bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca
será inferior à vantagem auferida, quando quantificável;
II – no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável
pela infração cometida por empresa, multa de 10% a 50% do valor
daquela aplicável à empresa, de responsabilidade pessoal e exclusiva
ao administrador; [...].
Nestes dois incisos conseguimos visualizar que, além de penalizar a
empresa responsável pela infração à ordem econômica, seu responsável direta ou
indiretamente também responde pela infração, independentemente de culpa.
A lei, no entanto, não é extremista, podendo-se a qualquer momento do
processo administrativo considerar legítimos os atos de concentração do mercado, desde
que sejam necessários por motivo preponderante da economia nacional e do bem
comum, e desde que não impliquem prejuízo ao consumidor ou usuário final.
Em atenção aos artigos 170 e 173, § 4.º, da Constituição Federal de 1988,
a Lei de Defesa da Concorrência considera objetivamente como infração os atos que
prejudiquem a livre concorrência, dominem artificialmente o mercado relevante e
aumentem arbitrariamente os lucros ou o exercício de posição dominante de forma
abusiva.
A norma contém rol exemplificativo de condutas que configuram as
hipóteses acima 20 , o aumento abusivo de preços 21 , consoante análise de circunstâncias
econômicas e mercadológicas relevantes, especialmente (i) custo dos insumos, (ii)
alterações do produto, (iii) preço de produtos e serviços similares ou sua evolução em
mercados relevantes comparáveis ou (iv) existência de ajuste ou acordo que resulte na
majoração desses preços.
Importante notar que se o agente econômico conseguir demonstrar a
relação de implicação entre o aumento de preços e qualquer dos fatores mencionados
nos itens “i” a “iii” estará livre da aplicação de quaisquer penalidades, e no caso do item
20
21
Lei 8.884/ 1994, artigo 20.
E no mesmo sentido é a Lei de Proteção e Defesa do Consumidor – Lei 8.078/1990, artigo 39, inciso X.
29
“iv” estará automaticamente sujeito a penalidade se participou de ajuste ou acordo para
o aumento injustificado de preços.
Também deve ser observado que, conforme a jurisprudência do CADE e
da SDE nos períodos de controle de preços – que como se verá adiante no caso de
medicamentos foram muitos –, não se pode condenar uma empresa por prática de preço
excessivo ou lucros arbitrários, uma vez que os preços são determinados pelo próprio
Estado, não decorrendo da conduta livre do agente econômico.
Vale como exemplo trecho do voto do relator do Acórdão do Processo
Administrativo 75/92, Conselheiro Renault de Freitas Castro, in verbis:
Tendo em vista todas as manifestações dos órgãos competentes a
discutir a matéria aqui debatida, e todas as provas colhidas durante a
instrução processual, especificamente os esclarecimentos prestados
pela empresa acionada, entendo não caracterizada a conduta imposta à
Representada, eis que, à época, os preços em questão estavam sob o
controle do Governo Federal.
Com isso, por considerar não configurada infração à Lei n. 8.884/94,
em consonância com o parecer da Douta Procuradoria do CADE,
conheço do recurso de ofício da SDE para negar-lhe provimento e
manter a decisão de arquivamento do feito.
Dessa forma, temos que, atualmente, os laboratórios farmacêuticos não
estão sujeitos à incidência das hipóteses acima citadas, pois estão submetidos a controle
de preços de seus produtos.
A atuação concertada entre concorrentes, caracterizada como “os
acordos celebrados entre empresas concorrentes (que atuam, pois, no mesmo mercado
relevante geográfico e material) e que visam a neutralizar a concorrência existente
entre”22 , também está sujeita a penalização pelo CADE.
Na obra citada, Paula Forgioni aponta que acordos horizontais são
aqueles celebrados entre agentes econômicos que atuam em um mesmo mercado
relevante (geográfico e material) e que estão, portanto, em direta relação de
concorrência. Já os acordos verticais disciplinam relações entre agentes econômicos que
desenvolvem suas atividades em mercados relevantes diversos, muitas vezes
complementares.
Quando se fala de acordos verticais, em teoria da organização industrial e
na legislação antitruste, lida-se com uma imaginária linha vertical que nos conduz, por
meio da extração da matéria-prima, das várias fases da produção e comercialização até o
22
FORGIONI, Paula . Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 321-326.
30
consumidor final do produto. Assim, à guisa de exemplo, um acordo celebrado entre
uma empresa fabricante do produto e outra distribuidora é um típico acordo vertical.
Também temos como condutas condenadas pela legislação antitruste: (i)
a realização de venda casada, ou seja, condicionar a compra de um produto ou serviço à
compra de outro, (ii) a imposição de restrições ou condutas a participantes da cadeia de
venda de produtos ou serviços, bem como discriminação destes, (iii) a manipulação da
oferta ou da procura de bens e serviços, ou recusa injustificada de fornecimento e a
imposição de barreiras artificiais à entrada de concorrentes em um mercado relevante.
Vale apontar que, embora muito se discuta sobre a exclusividade do
CADE em fiscalizar o mercado, é razoável afirma r que esta competência é
compartilhada com algumas agências reguladoras quando referente a um setor
específico do mercado, nos termos da respectiva legislação, como é o caso das
Telecomunicações, em que a fiscalização e repressão a atividades anticoncorrênciais é
realizado em conjunto com a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), ou
no caso da Saúde auxiliadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA),
já que esta pode instruir os processos que serão decidicos pelo CADE.
Ainda vale apontar como garantia do Estado Democrático de Direito o
artigo 15 da Lei 8.884/1994, que dispõe: “Esta lei aplica-se às pessoas físicas ou
jurídicas de Direito público ou privado...”, ou seja, tanto os entes públicos como os
particulares estão submetidos aos mandamentos da lei.
Além da polícia antitruste, acima mencionada, é possível a interferência
estatal para garantir que os mercados atendam a uma finalidade social, já que, embora a
propriedade e a livre- iniciativa sejam protegidas como fazendo parte do rol de direitos
dos cidadãos, estes hoje se encontram relativizados em prol dos direitos sociais.
Conforme ensina Eros Grau23 , o Estado poderá interferir na economia
diretamente: por absorção, quando reservar para si o monopólio de determinada
atividade econômica; e por participação, quando partilhar atividade econômica com a
iniciativa privada. Ou poderá interferir indiretamente: por indução, quando adotar
medidas que imponham desvantagens econômicas em determinadas condutas ou
vantagens em outras, de modo que leve o agente econômico a espontaneamente seguir
determinada conduta; ou, finalmente, por direção, quando determinar condutas para a
iniciativa privada.
23
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 27.
31
O Estado também tem importante papel simplesmente atuando como
agente econômico 24 , utilizando seu peso como comprador ou vendedor de produtos e
serviços, como se verifica, exemplificadamente, quando o Banco Central passa a atuar
como comprador ou vendedor de moeda estrangeira, interferindo nos mercados de
câmbio.
Para o mercado, de maneira geral,
a livre iniciativa pressupõe o Direito de propriedade consagrado no
Capítulo dos Direitos Fundamentais, afastando determinações no
sentido de um planejamento vinculante. As regras do livre mercado
apenas encontram limites no instante em que há conluios e outras
formas para prejudicar o consumidor, sendo certo que, nesse âmbito, o
Estado deve criar mecanismos para conter tais abusos25 .
Já para o Estado, a Constituição Federal de 1988 limita no caput do
artigo 173 a exploração direta da atividade econômica, exceto nos casos de segurança
nacional e relevante interesse coletivo, conforme definido por lei. Determina, ainda,
que, mesmo nesses casos, o Estado estará sujeito ao mesmo regime da iniciativa
privada, evitando a concorrência desleal com os particulares e obrigando à realização de
licitação e sujeição à fiscalização para garantir a correta aplicação do dinheiro público.
O artigo 174 da Carta Constitucional, por sua vez, em seu caput,
determina que o Estado atuará como agente normativo e regulador da atividade
econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este
indicativo para a iniciativa privada e determinante para o setor público 26 .
24
“A possibilidade de atuação estatal sobre o ambiente econômico, no texto constitucional, não se esgota
na ação normativa, ao seu lado está o atuar regulador da atividade econômica” (SCOTT, Paulo H. R.,
Direito constitucional econômico: estado e normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Ed., 2000. p. 113).
25
SANCHEZ, Cristiane G. Aspectos da relação entre Estado e iniciativa privada: enfoque constitucional.
1999. 120f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, p. 463 e 464.
26
“O art. 174 da Carta de 1988 considera o Estado como normatizador e regulador da atividade
econômica, atribuindo-lhe as funções de ‘fiscalização’, ‘incentivo’ e ‘planejamento’. Quanto a este
último, diferencia-o em ‘determinante’ para o setor público e ‘indicativo’ para o setor privado. Conferelhe competência normativa regulamentar de suas funções tradicionais, juntamente com as de caráter
político-econômico de dinamizar a própria iniciativa privada, criando-lhe condições de sedução no
sentido das realizações que pretende empreender, mesmo em atenção às de caráter ‘indicativo’ que lhe
tocam no planejamento. Este, por sua vez, quando determinante ao Estado, refere-se, no entendimento
de alguns teóricos, não à economia em geral, porém restritivamente ao ‘planejamento do
desenvolvimento nacional equilibrado’, pela compatibilização dos planos nacionais e regionais de
desenvolvimento segundo o próprio texto constitucional.
Foram mantidas, dessa forma, as funções do Estado que progressivamente se constitucionalizaram, nas
cartas anteriores, como poder-dever do mesmo, porém com a inovação técnica de incluir o setor
privado, atraindo-o por incitações criadas pelo próprio Estado que, assim, procura quebrar-lhes as
razões liberais do seu afastamento, pela omissão ou desinteresse (Adam Smith)” (SOUZA, Washington
P. A. Teoria da Constituição econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 463 e 464).
32
Dessa forma,
não obstante as dificuldades que se antepõem ao discernimento da
linha que traça os limites entre os dois campos, ele se impõe:
intervenção é atuação na área da atividade econômica em sentido
estrito e prestação de serviço público é atuação econômica em sentido
amplo e estão sujeitas a distintos regimes jurídicos (arts. 173 e 175 da
Constituição de 1988) 27 .
Com relação ao setor privado, de maneira geral o Estado poderá atuar
apenas por participação, por indução ou, conforme apontamos, para coibir a prática do
abuso de poder econômico, nos termos do § 4.º do artigo 173 da Constituição Federal,
ou seja, para proteger o Direito de livre concorrência, não sendo permitida por nossa
Constituição Federal a substituição pelo Estado do papel do mercado na formação de
preço nas atividades reservadas para a iniciativa privada, exceto nos casos de uso de
poder econômico para a obtenção de lucros abusivos 28 .
Partindo dessas premissas, é preciso verificar o que ocorre no caso
específico da saúde, em que, efetivamente, temos a participação direta do Estado
exercendo poder de polícia e a determinação estatal de preços em uma atividade
econômica franqueada ao particular com a participação do Estado.
27
GRAU, Roberto E. A ordem econômica na Constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p.
99.
28
“Para o Direito Constitucional Brasileiro – observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho – não há, na
Constituição vigente, qualquer norma expressa sobre a formação de preços.” E nem poderia haver se
quisesse manter o modelo econômico de mercado, com a livre-iniciativa e a livre concorrência. Trata-se
de uma decorrência deste último princípio.
Contudo, estabelece a Constituição no § 4.º do art igo 173 que ao Estado incumbe também reprimir o
aumento arbitrário dos lucros (por meio de lei).
Ao coibir o aumento arbitrário dos lucros, a Constituição acabou por admitir, às avessas, o Direito aos
lucros da empresa privada como um Dire ito absolutamente legítimo. O que se combate – e não vai
nenhuma novidade aí – é o abuso desse Direito.” (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional
econômico, p. 269).
33
3 – A SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O drama da falta de acesso à saúde diz respeito a um tripé no qual se
equilibram a sociedade, os governos e a iniciativa privada. Tal tripé é formado pelo
anseio da sociedade em ter acesso a todos os recursos de saúde disponíveis, e aos
melhores e mais modernos recursos de saúde disponíveis e pela escassez de recursos
para viabilizar o alcance dessas verdadeiras exigências sociais.
Para o Estado ainda resta o problema gerado pelo próprio êxito das
políticas públicas de saúde, uma vez que, quanto melhor o seu desempenho, maior será
a demanda por utilidades de saúde, uma vez que a maior oferta de tais utilidades leva ao
aumento global de sua demanda como conseqüência do crescimento e do
envelhecimento da população, cuja longevidade depende de tais utilidades, bem como a
uma maior detecção de problemas individuais de saúde, o que acabará por realimentar o
sistema com uma demanda cada vez maior por tais utilidades.
A atividade de saúde é um setor produtivo responsável pela geração e
pela circulação de valores tão expressivos quanto limitadamente conhecidos. A
produção de informações detalhadas sobre a estrutura, a distribuição e a evolução desses
valores é fundamental para a tomada de decisões, bem como para a formulação e o
acompanhamento de políticas públicas no setor.
Diferentemente da regulação da prestação de serviços públicos
transferidos para o particular pelo sistema de concessão, no caso da saúde temos a
regulação de uma atividade privada, cujo acesso aos particulares é franqueado pela
Constituição Federal de 1988 29 .
Entretanto, apesar de tratar-se de atividade privada, tal atividade está
relacionada a bens coletivos (categoria de bens essenciais, capazes de gerar
externalidades para toda a sociedade), de modo que em decorrência do modelo de
Estado de bem-estar social adotado pelo Brasil, e a conseqüente regulação ativa da
economia, o Estado deve (i) prover o fomento dos mercados de oferta de bens e serviços
de saúde para o aumento da oferta de utilidades públicas (no caso desses bens coletivos)
e (ii) controlar as externalidades negativas da atividade, especialmente as decorrentes de
sua falta ou da especulação no fornecimento desses produtos e serviços.
29
Artigo 197.
34
Dessa forma, entre os deveres sociais do Estado brasileiro está
fortemente marcado o deve r de garantir a saúde de sua população como conseqüência
ao direito à vida já estampado no caput do artigo 5.º da Constituição Federal, pois faz
parte da vida a saúde, que deve ser igualmente protegida pelo Estado brasileiro,
consoante expressa o artigo 6.º da Carta Constitucional.
A competência legislativa em saúde é privativa da União, na medida em
que nos termos do inciso XXIII do artigo 22 da Constituição Federal de 1988 é dela a
competência privativa para legislar sobre seguridade social. Além disso, nos termos do
caput do artigo 194 da Carta Constitucional, a saúde se encontra no feixe de direitos que
compõem a seguridade social.
A competência legislativa federal quanto à saúde poderá ser
complementada pelos municípios no que tange aos interesses locais (artigo 30, item I) e
suplementada no que couber (artigo 30, item II), como é feito pelos Códigos Sanitários
Municipais, onde existirem.
Aos Estados caberá legislar sobre os estabelecimentos de saúde como
sobre quaisquer outros estabelecimentos, já que inexistente vedação a respeito na
Constituição Federal (artigo 25, § 1.º), como, inclusive o fazem por meio dos Códigos
Sanitários Estaduais. Todavia, não podem dispor sobre questões da saúde propriamente
dita, sob pena de inconstitucionalidade, já que se trata de competência exclusiva da
União, como já apontado.
Expressando um dever de proteção ativa da saúde da população no
Brasil, o artigo 23, inciso II, da Constituição Federal determina que é competência
executiva comum da União, Estados e Municípios “cuidar da saúde e assistência
pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”, devendo ser
garantido a qualquer pessoa e não mais apenas aos trabalhadores e suas famílias o
“acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde”, conforme o artigo 196 da
Constituição Federal.
É importante notar, novamente, que o acesso às ações e serviços de saúde
foram garantidos a todos e não mais apenas aos trabalhadores e suas famílias, como na
Constituição precedente, e sem qualquer barreira todos os que estejam no Brasil deverão
receber tratamento amplo e eficaz de saúde.
O dispositivo constitucional certamente decorreu do atend imento bem
intencionado dos anseios sociais tão presentes durante a Assembléia Constituinte. Mas,
35
ao determinar tão ampla obrigação, deixou de considerar o fato de que os custos de
tratamento de saúde são sempre crescentes, pois (i) a população que recebe esses
tratamentos tende a ter uma expectativa de vida cada vez maior e, sabidamente, os
idosos são os que demandam mais recursos em tratamentos de saúde, (ii) a inflação com
tratamentos de saúde é crescente, tendo em conta o pagamento dos rápidos avanços
científicos e tecnológicos na área e (iii) quanto mais tratamentos de saúde são
oferecidos, mais eles são consumidos, na medida em que se diagnosticam novas
moléstias nos indivíduos, sobre as quais antes sequer se tinha ciência.
Buscando atender tão arrojado objetivo é que foi estruturado o Sistema
Único de Saúde (SUS), no qual foram repartidas as obrigações a ele relativas e
determinado o seu financiamento pela União, Estados e Municípios (artigo 198 da
Constituição Federal), inclusive com a participação complementar da iniciativa privada
(art. 199, § 1.º), com exceção de empresas e capitais estrangeiros, salvo nos casos
previstos em lei (artigo 199, § 3.º).
Tanto o artigo 196 quanto o caput do artigo 199 da Constituição Federal
de 1988 deixam clara a participação privada na prestação dos serviços de assistência à
saúde no Brasil, adotando, portanto, o sistema se saúde misto com a participação do
Estado e da iniciativa privada, com opção livre para o usuário quando de sua utilização
e com a possibilidade da participação da iniciativa privada no sistema público.
A opção pelo sistema misto nessa conformação é opção política de cada
país, no caso do Brasil motivada por continuísmo histórico e pela própria incapacidade
financeira do Estado de absorver para si a prestação de todos os serviços de saúde com a
sofisticação do sistema privado, seja no tocante a produtos e serviços seja no referente a
seguro-saúde.
Pode-se ver a convivência e interdependência dos sistemas de saúde
público e privado de saúde no Brasil nos quadros a seguir, os quais trazem os números
de leitos de cada sistema de saúde face em evolução histórica:
36
Número de Estabelecimentos de saúde - BRASIL - 1976 a 2002
(Pesquisa da Assistência Médica Sanitária -IBGE)
60000
Número de estabelecimentos
50000
40000
30000
20000
10000
0
1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1999 2002
(1)
(1)
(1) Ano
(1) sem SADT
Total
Público
Privado
Ilustração 1 – Estabelecimentos de Saúde – Brasil – 1976 a 2000
37
Série histórica do número de leitos para internação segundo entidade mantenedora BRASIL - 1976 a 2002
600000
500000
400000
Número
de leitos
300000
200000
100000
0
1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1999 2002
Público
Privado
Total
Ano
Ilustração 2 – Leitos de Internação Brasil – 1976 a 2000
Ao redor do mundo cada país tenta vencer, à sua maneira, o desafio da
atenção à saúde, havendo alguns outros com sistemas mistos como o do Brasil, como,
por exemplo:
a)
O Canadá, onde o sistema público oferece à população atenção
básica gratuita e a iniciativa privada é proibida de prestar esses serviços;
b)
A Alemanha, em que as pessoas podem optar por serem atendidas
pelo sistema público ou privado, ambos pagos, e uma vez feita a opção pelo sistema
privado, não é permitido o retorno ao sistema público;
c)
O Chile, em que a adesão ao sistema público é opcional e paga
mediante contribuição ao Fundo Nacional de Saúde de acordo com a renda familiar.
Temos ainda países em que o sistema de saúde é integral ou quase
integralmente público e financiado pelos tributos, como o brasileiro, como por exemplo:
a)
O Reino Unido, que se utiliza de uma avaliação dos centros
médicos e profissionais por performance financeira no tratamento da população sob
seus cuidados; e
b)
A França, onde a rede privada existe apenas para casos
especializados.
No outro extremo temo s os Estados Unidos da América, em que o
serviço público atende gratuitamente apenas aos muito pobres e aos veteranos de guerra,
deixando o restante para a iniciativa privada.
38
Todos esses sistemas são vitoriosos em alguns frontes e falhos em outros,
avaliação que inclusive muda ao longo do tempo, levando a contínuos debates e
reformas para a sua melhoria em face das mudanças do mercado de saúde, do avanço
científico, dos anseios da população e do perfil de seu envelhecimento.
Contudo, nosso foco de estudo não é o sistema público de saúde no
Brasil, mas sim o tratamento constitucional da iniciativa privada em saúde e suas
conseqüências infralegais.
3.1. O poder de polícia em relação aos produtos de interesse da saúde
Para termos uma visão absolutamente pura do tema deste trabalho, temos
que considerar dois aspectos diferentes ao tratarmos da atividade coercitiva do Estado
em relação a produtos e serviços de saúde: um é a sua atuação como agente fiscalizador
da atividade fim das empresas que exploram esse setor para a proteção da população, ou
seja, o exercício de poder de polícia; e o outro é o aspecto da regulamentação
econômica propriamente dita.
Quanto ao poder de polícia relativo aos produtos e serviços de saúde
temos o artigo 200, inciso I, da Carta Constitucional que determina que caberá ao
Sistema Único de Saúde “controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias
de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos,
imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos”.
O controle, que se pode chamar de sanitário desses produtos e serviços é
realizado com base no que se pode chamar de microssistema de direito sanitário
brasileiro, que se insere dentro do direito administrativo mas destaca-se por possuir um
princípio que lhe é próprio e que permeia toda a legislação infraconstitucinal, inclusive
com respaldo na parte do artigo 196 da Constituição Federal que trata da redução do
risco da doença que pode advir desses produtos e serviços caso sejam ofertados no
mercado estando inadequados do ponto de vista sanitário.
O princípio em questão, que é próprio do direito sanitário, é o princípio
da prevenção do risco sanitário, e tal qual o princípio da prevenção do direito ambiental,
visa evitar a ocorrência de dano tendo em vista a sua irreversibilidade e a importância
dos bens sociais protegido, no caso a saúde e a vida.
39
Por força deste princípio, o Estado brasileiro exerce não só a fiscalização
repressiva das condutas causadoras de danos à saúde mas também forte prevenção pela
análise prévia dos produtos e serviços que forem ofertados à população e das empresas
que irão oferecê- los. Tal fiscalização continua com a renovação periódica de suas
permissões mediante fiscalização e novas análises.
O sistema em questão, portanto, tem regras federais, estaduais e
municipais, e em nível federal é formado:
a)
pela Lei 5.991/1973, no quanto não revogada, que trata da
atividade do comércio farmacêutico e de insumos farmacêuticos;
b)
pela Lei 6.360/1976 e alterações, que trata das atividades das
empresas fornecedoras de produtos e serviços para a saúde e dos
requisitos dos produtos para a saúde;
c)
pela Lei 6.437/1077, que estabelece as infrações a essas normas e
suas penas; e
d)
pela Lei 9.782/1999 e posteriores alterações, que criou autarquia de
regime especial, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, para
substituir a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da
Saúde, e que cumulou suas competências e acervo com novas
competências
que
lhe
foram
atribuídas,
exercendo
a
regulamentação técnica de produtos e serviços para evitar a
exposição da população a riscos, incluindo no conceito de risco a
ineficácia do produto.
Atualmente a ANVISA tem as seguintes atribuições:
(i)
conceder autorização de funcionamento para empresas que
explorem produtos de interesse da saúde;
(ii)
realizar o registro ou emitir certificado de dispensa de registro para
os produtos de interesse da saúde;
(iii) emitir normas técnicas relacionadas aos produtos e serviços de
interesse da saúde, exceto as fontes de financiamento que estão
regulamentadas pela Agência Nacional de Saúde (ANS), e as
relativas às empresas produtoras ou prestadoras de serviços de
saúde;
40
(iv) intervir temporariamente na administração de entidades produtoras
financiadas com recursos públicos, assim como nos prestadores de
serviço ou fabricantes de produtos exclusivos ou estratégicos;
(v)
coordenação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS),
do Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados e do Programa
Nacional de Prevenção e Controle de Infecções Hospitalares;
(vi) monitorar preços de medicamentos e de produtos para a saúde;
(vii) atribuições relativas à regulamentação, controle e fiscalização da
produção de fumígenos;
(viii) suporte técnico na concessão de patentes pelo Instituto Nacional de
Propriedade Industrial (INPI);
(ix) controle da propaganda de produtos sujeitos ao regime de
vigilância sanitária;
(x)
controle de portos, aeroportos e fronteiras, e a interlocução junto ao
Ministério das Relações Exteriores e instituições estrangeiras para
tratar de assuntos internacionais na área de vigilância sanitária;
(xi) promover a proteção da saúde da população por intermédio do
controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e
serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes,
processos, insumos e tecnologias a eles relacionados;
(xii) requisitar informações, para posterior encaminhamento para o
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em caso
de suspeita de infração à ordem econômica.
No controle sanitário que é exercido pela ANVISA estão incluídas as
competências para a emissão de regras sobre o exercício da atividade de extração,
produção,
fabricação,
transformação,
sintetização,
purificação,
fracionamento,
embalagem, reembalagem, importação, exportação, armazenagem de medicamentos,
drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, produtos de higiene, cosméticos, perfumes,
saneantes domissanitários e produtos destinados à correção estética, bem como sobre a
prestação de serviços de saúde, como clínicas, hospitais, unidades de tratamento e
laboratórios de análise e registro de alimentos.
Além da competência para a emissão de regras para as atividades acima
relacionadas, a ANVISA partilha com as Secretarias de Vigilância Sanitária estaduais e
municipais competência para a fiscalização desses estabelecimentos da seguinte forma:
41
as Secretarias têm a competência específica de fiscalização corriqueira das empresas
que realizam essas atividades; e a ANVISA exercerá a fiscalização quando da concessão
de suas autorizações e certificados, podendo, ainda, agir em cooperação com as
Secretarias em regime de competência concorrente.
Em termos gerais, as empresas que pretendam exercer as atividades de
interesse da saúde são reguladas por normas técnicas infralegais específicas, e deverão
possuir três documentos essenciais, que devem estar válidos constantemente para o
exercício regular da atividade e exigidos para a participação em concorrências públicas:
(i)
Autorização de Funcionamento para o exercício da atividade
específica, relativa à pessoa jurídica que a exerce, emitida pela
ANVISA uma única vez;
(ii)
Licença de Funcionamento, concedida pela Secretaria de Vigilância
Estadual
ou
Municipal,
conforme
o
caso,
relativa
ao
estabelecimento onde a atividade é exercida, que deve ser renovada
anualmente;
(iii) Certificado de Boas Práticas da atividade (alguns ainda estão sendo
regulamentados, mas é consistente a tendência de regulamentação
específica dos requisitos de emissão do certificado por atividade),
relativo ao estabelecimento, o qual é emitido pela ANVISA e
renovado anualmente.
Os produtos de interesse da saúde, conforme o caso, devem ser
registrados perante a ANVISA, ou podem ser dispensados de registro, sendo necessária
a dispensa desse registro pela ANVISA, ou ainda em caso de produtos de menor
periculosidade, podem ser comercializados mediante simples comunicação a esse órgão,
exceção óbvia apenas para os alimentos in natura, que não precisam seguir nenhuma
dessas formalidades.
As penalidades que podem ser aplicadas tanto pela ANVISA quanto
pelas Secretarias de Vigilância Sanitária podem ser de advertência, multa, suspensão de
exercício da atividade ou revogação das autorizações e licenças.
A nosso ver, a validade do microssistema de direito sanitário e da ação da
ANVISA não cons titui regulamentação econômica de mercado, mas sim exercício de
poder de polícia, e está lastreada diretamente nos artigos 197 e 200, inciso I, da
Constituição Federal.
42
4 – REGULAMENTAÇÃO DA ECONOMIA E REGULAMENTAÇÃO DA
ATIVIDADE PRIVADA EM SAÚDE
Até o momento não tratamos da regulação da atividade econômica das
empresas privadas em saúde, posto que tratamos de diferenciar o sistema público e o
sistema privado de saúde, e de diferenciar a regulamentação como decorrência do poder
de polícia da regulamentação econômica , o que se fez necessário para delimitarmos o
nosso tema de trabalho.
Mas não é só. Ainda é necessário, antes de adentrarmos no tema da
regulamentação da atividade econômica em saúde, precisar os termos que usaremos
neste trabalho, com a finalidade de evitar debates infrutíferos e especialmente
desnecessários decorrentes de ruídos de comunicação.
Conforme apontam Marçal Justen Filho 30 e Washington Peloso Albino
de Souza 31 , o termo regulation é tomado da literatura inglesa no sentido que para nós
seria tanto de regulação quanto de regulamentação, e algumas confusões também são
causadas pelo termo interferência, que na literatura de língua hispânica também teria
esses mesmos dois significados.
Neste trabalho tomaremos “regulação” como toda e qualquer atividade
do Estado voltada para a interferência no mercado, seja na forma direta seja na indireta.
Será, portanto, o conjunto que contém todas as atividades do Estado voltadas a obter um
resultado por meio da atividade econômica da iniciativa privada 32 .
30
O direito das agências reguladoras independentes. p. 15
Ob. cit. p. 330.
32
“A intervenção estatal no domínio econômico pode ocorrer de maneira direta ou indireta, adotadas as
expressões nos termos a seguir expostos.
A intervenção estatal indireta refere-se à cobrança de tributos, concessão de subsídios, subvenções,
benefícios fiscais e creditícios e, de maneira geral, à regulamentação normativa de atividades
econômicas, a serem naturalmente desenvolvidas pelos particulares.
Na intervenção direta o Estado participa ativamente, de maneira concreta, na economia, na condição de
produtor de bens ou serviços, ao lado dos particulares ou como se particular fosse. Trata-se, nesta
última hipótese, do Estado enquanto agente econômico.
Na lição abalizada de Eros Grau, a intervenção pode ocorrer de quatro formas: por absorção, por
participação, por direção e por indução.
A intervenção do Estado no domínio econômico ocorre por absorção quando ele assume por completo o
exercício da atividade em determinado setor da economia, atuando em regime de monopólio.
Ocorrerá o regime de participação quando o Estado exercer atividade econômica paralelamente aos
particulares. O Estado, nessa situação, compete com empresas privadas, do mesmo setor. Não se pode
ignorar, aqui, contudo, a posição privilegiada que o Estado passa a ocupar como agente econômico”
(TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. p. 57-59).
31
43
Porém, o objeto de estudo neste trabalho é a regulamentação, ou seja,
o poder das agências regulatórias de emitir comandos normativos infralegais que
vinculem os particulares.
Importante também notar a diferença entre a regulamentação expedida
pelas chamadas Agências Regulatórias, especificamente neste trabalho a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), autarquias especiais, e o poder regulamentar do Chefe do Poder
Executivo, que só pode ser exercido para a fiel execução de lei.
Vanessa Vieira de Mello 33 , em sua obra Regime jurídico da
competência regulamentar, traz diversas posições relativas a esse poder regulamentar,
que para alguns autores deriva diretamente da Constituição Federal, para outros, da lei
que está sendo regulamentada e, para outros ainda, do poder normativo ainda existente
para o Poder Executivo em situações de urgência – a nosso ver sem fundamento na atual
Constituição Federal.
Acompanhamos a autora ao entender que o poder regulamentar nada
mais é do que um poder derivado da norma constitucional para emitir ordens aos
servidores públicos e membros da administração pública, para que organizem,
operacionalmente, a máquina estatal objetivando a efetivação dos ditames legais, não
podendo jamais transbordar dos limites da lei regulamentada ou desvirtuar suas
determinações 34 .
33
MELLO, Vanessa Vieira de, Regime jurídico da competência regulamentar. São Paulo: Dialética,
2001. p. 54.
34
“Damos, ao final, nosso conceito: É a competência normativa secundária, haurida do texto
constitucional, dirigida ao Administrador Público, determinando a expedição de regulamentos, na busca
da efetivação da lei, sujeita aos controles parlamentar e jurisdicional.
Cuida-se de competência normativa secundária. Os regulamentos, conforme se apresentam no Texto
Constitucional, não têm o condão de inovar originariamente na ordem jurídica. Há uma subsunção, uma
preocupação em ater-se aos limites da lei, seu centro de atenção.
Observamos que a situação de limitação ao disposto na lei não retira do regulamento seu caráter de fonte
de Direito. O regulamento veicula aspectos técnicos, inerentes à evolução e ao progresso da sociedade,
melhorando e possibilitando a aplicabilidade das leis.
[...] A doutrina não chegou a um conceito unânime de regulamento. Iniciaremos apresentando o conceito
de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, para quem:
Os regulamentos são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes
à organização e à ação do Estado, enquanto poder público. Eles são emanados pelo Poder Executivo,
mediante decreto.
No escólio de Celso Antônio Bandeira de Mello, o regulamento é:
[...] ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com
a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da
lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública.
Pimenta Bueno assim o definiu:
Os regulamentos são atos do Poder Executivo, disposições gerais revestidas de certas formas mandadas
observar por decreto imperial, que determinam os detalhes, os meios, as providências necessárias para
44
As Agências Regulatórias brasileiras emitem comandos normativos
conforme poderes conferidos pelas leis que as criaram, de modo que importa ainda
diferenciar a regulamentação econômica por meio da emissão de comandos normativos
pelas agências regulatórias da criação de leis pelo Presidente da República por
delegação do Congresso Nacional, que por um aspecto formal inarredável se
diferenciam, pois “não pode haver delegação do Poder Legislativo a entes autônomos
do Poder Executivo para que sejam emitidos regulamentos”35 .
Quanto ao aspecto específico da delegação legislativa, vale notar que
os atos legislativos devem seguir formas específicas de expedição e formalidades
também próprias para sua votação (por exemplo, Leis Ordinárias e Leis
Complementares são leis formalmente distintas quanto à sua denominação e têm
quóruns distintos de votação).
É justamente isso que ocorre com as delegações legislativas que
devem ser feitas por Resolução do Congresso Nacional, após solicitação do Presidente
da República.
Efetivamente, a única previsão de Delegação Legislativa existente em
nosso ordenamento jurídico é a do artigo 64 da Constituição Federal, que (i) só pode ser
feita ao Presidente da República e (ii) deve seguir a forma do artigo 68 da nossa Carta
Magna 36 .
Assim, essa forma de delegação legislativa não poderia ser feita por
lei para as Agências Regulatórias, na medida em que, independentemente de seu
conteúdo, a forma da delegação estaria incorreta tanto quanto o seu destinatário pelo
que não é este o fundamento para que as normas infralegais de regulamentação
econômica emitidas por agências reguladoras ou outros órgãos do Estado brasileiro
que as leis tenham fácil execução em toda a extensão do Estado. São instruções metódicas e não
arbitrárias, que não podem contrariar o texto, nem as deduções lógicas da lei, que devem proceder de
acordo com os seus preceitos e conseqüências, que não têm por fim empregar os expedientes acidentais
e variáveis precisos para remover as dificuldades e facilitar a observância das normas legais. São
medidas que regulam a própria ação do Poder Executivo, de seus agentes, dos executores, no
desempenho de sua missão; são atos, não da legislação, sim de pura execução, e dominados pela lei”
(MELLO, Vanessa Vieira de. Regime jurídico da competência regulamentar. p. 55).
35
Idem, ibidem, p. 94-95.
36
“Art. 68. As Leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a
delegação ao Congresso Nacional. § 1.º Não serão objeto de delegação os atos de competência
exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado
Federal, a matéria reservada à Lei Complementar, nem a legislação sobre: (...) § 2.º A delegação ao
Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu
conteúdo e os termos de seu exercício.”
45
vinculem os particulares, razão pela qual temos que aprofundar nossos estudos como
passamos a fazer.
Tratamos
neste
trabalho
especificamente
da
regulamentação
econômica da atividade da iniciativa privada em saúde. Assim, teremos a
regulamentação exercida sobre os preços de medicamentos feita pela Câmara de
Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e a regulamentação sobre os preços
de planos individuais de saúde realizada pela ANS. Está excluída a atividade da
ANVISA, pois como visto decorre do exercício de poder de polícia a ela atribuído pelo
artigo 200, inciso I, de nossa Constituição Federal.
Estamos tratando, portanto, de fenômeno que enseja a emissão de
normas infralegais que geram obrigações para a iniciativa privada de maneira original.
Podemos chamar de regulamentação da economia ou de poder normativo regulador,
como consta do artigo 174 da Constituição Federal, que, aliás, é fundamento de
validade das leis que criaram as demais agências regulatórias brasileiras e lhes dá
referida atribuição, a despeito dos óbices acima citados presentes em nossa Constituição
Federal acerca da criação de direitos e obrigações por normas infralegais, que passamos
a estudar mais detidamente.
4.1. Análise da validade do poder regulamentar econômico perante a Constituição
Federal de 1988
O primeiro óbice colocado para o poder regulamentar econômico é o
princípio da legalidade37 , uma vez que o ato regulamentar, apesar de sua carga
37
“O princípio da legalidade, resumido na proposição suporta e lei que fizeste significa estar a
Administração Pública, em toda a sua atividade, presa aos mandamentos da lei, deles não se podendo
afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor” (GASPARINI, Diógenes.
Direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 6).
“O princípio da legalidade eleva, portanto, a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado.
Nesse sentido, como visto, ela é uma garantia, o que não exclui, contudo, a necessidade de que ela
mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a
desencaminhem do seu norte autêntico. Nessa acepção a própria isonomia de todos perante a lei é uma
contenção de possíveis abusos que ela possa encerrar. A sua submissão à Constituição não deixa,
também, de ser uma delimitação da sua vontade soberana” (BASTOS, Celso Ribeiro . Curso de direito
constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 186).
46
normativa, é ato administrativo 38 , e a atividade administrativa deve estar estreitamente
determinada pela lei, não podendo ser inovadora no sistema jurídico e realizada fora
desses rígidos limites, consoante disposto nos artigos 5.º, inciso II, 37, caput, e 84,
inciso IV, de nossa Constituição Federal, na lição de Celso Antônio Bandeira de
Mello 39 .
Instaura-se o princípio de que todo poder emana do povo, de tal sorte
que os cidadãos é que são proclamados como os detentores do poder.
Os governantes nada mais são, pois, que representantes da sociedade.
O art. 1.º, parágrafo único, da Constituição dispõe que ‘todo poder
emana do povo, que o exerce através de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”. Além disto, é a
representação popular, o Legislativo, que deve, impessoalmente,
definir na lei e na conformidade da Constituição os interesses públicos
e os meios e modos de persegui-los, cabendo ao Executivo, cumprindo
ditas leis, dar-lhes a concreção necessária. Por isto se diz, na
conformidade da máxima oriunda do Direito Inglês, que no Estado de
Direito quer-se o governo das leis, e não o dos homens; impera a rule
of law, not of men.
Assim o princípio da legalidade é o da completa submissão da
Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las,
pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde
o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o
mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes,
obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder
Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito
Brasileiro.
Dessa forma, temos a necessidade de lei que determine a intervenção
estatal na economia, servindo como fundamento de validade do ato administrativo
interventivo, do contrário este simplesmente não será exigível, posto que ilegal40 .
À idéia de submissão do Estado à ordem jurídica, aplicável ao Direito
público, opõe-se o princípio, que está na base do Direito privado, da
liberdade dos indivíduos. Para o particular praticar validamente um
ato, não necessita de autorização expressa da norma jurídica; basta
que o ato não seja proibido pelo Direito. Por isso se afirma que o
38
“É possível conceituar ato administrativo como: declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes –
como, por exemplo, um concessionário de serviço público) no exercício de prerrogativas públicas,
manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e
sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio.
Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 215).
39
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros,
2002. p. 83-85.
40
“A liberdade de contratar envolve: 1) a faculdade de ser parte em um contrato; 2) a faculdade de se
escolher com quem realizar o contrato; 3) a faculdade de escolher o tipo de negócio a realizar; 4) a
faculdade de fixar o conteúdo do contrato segundo as convicções e conveniências das partes; e, por fim
5) o poder de acionar o Judiciário para fazer valer as disposições contratuais (garantia estatal da
efetividade do contrato por meio da coação).
Considerando do ponto de vista estatal, o princípio em análise é a garantia de legalidade. Nesse sentido,
exige lei para que se admita legítima a intervenção do Estado, e dentro dos limites constitucionais ”
(TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 249).
47
particular pode fazer tudo o que a Constituição e as leis não proíbem,
enquanto o Estado só pode fazer aquilo que tais normas autorizam
expressamente. Em outras palavras: a validade dos atos privados
depende apenas de sua não-contrariedade com o Direito, enquanto a
dos atos de Direito público depende não só disso, mas também de seu
anteparo em norma (constitucional ou legal) autorizadora específica41 .
Com a ressalva, extremamente pertinente, de que o administrador não
deve apenas aplicar a lei, mas integrar o sistema jurídico, Lúcia Valle Figueiredo segue
a mesma linha 42 .
Certo é que, em caso de descumprimento da lei, é possível a anulação
“com eficácia ex tunc, de um ato administrativo ou da relação jurídica por ele gerada
ou de ambos, por haverem sido produzidos em dissonância com a ordem jurídica”43 .
Vale, contudo, observar que, no caso das Agências Reguladoras, os atos
normativos por elas emitidos decorrem de poderes conferidos pela própria lei, ou seja,
são as leis que criam essas Agências e que lhes conferem poderes para criar estes atos
normativos discricionariamente.
Dessa forma, não estamos diante de uma afronta direta ao princípio da
legalidade, pois este é respeitado. É a própria lei que dá tais poderes normativos
discricionários.
Valendo apenas notar que apesar de estarmos diante de Agências
Regulatórias independentes, sua independência e, portanto, sua discricionariedade não é
totalmente livre de controles, há controles do poder central sobre elas:
a regulação desse controle está disciplinada no contrato de gestão
existente entre a diretoria da agência e o Ministério correspondente.
Assim, estabelecem-se indicadores básicos que permitem ao
Ministério avaliar o desempenho do órgão, mediante a aplicação de
parâmetros pré-elaborados, tanto para a sua administração interna
quanto para as metas a serem estabelecidas nos planos anuais de
trabalho 44 .
O problema não recai sobre análise de afronta ao princípio da legalidade,
mas sim sobre reserva legal. Impõe-se verificar se a Constituição Federal reservou
apenas para a própria lei a possibilidade de edição de normas regulamentares, ou se o
41
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3. ed. São Paulo : Malheiros, 1997. p. 151.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 42.
43
ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 1996.
44
SANCHEZ, Cristiane G. Aspectos da relação entre Estado e iniciativa privada: enfoque constitucional,
p. 48.
42
48
princípio da legalidade também está voltado para o legislador, que não pode criar leis
que transfiram esta prerrogativa.
Leila Cuéllar 45 , conclui que, como nossa atual Constituição Federal não
contém a reserva legal geral e apenas em alguns pontos faz menção às necessidades de
lei para tratar de matérias específicas, estaria aberto o campo para a transferência de
competência para que instâncias administrativas editassem as regulamentações
econômicas, posição com a qual não concordamos em absoluto, conforme esclarecemos
mais a frente.
Destacada posição defensora da intervenção estatal na economia,
segundo uma análise funcional do direito, é a do Professor Eros Grau46 , crítico
fervoroso do positivismo jurídico, que entende vazio.
Para o autor, o positivismo deve ser substituído por uma doutrina real do
direito, que aproxima o direito, ou, como prefere, a análise dos direitos, da política e da
sociologia, e verifica sua validade não conforme critérios de verdade ou falsidade, mas
sim de aceitabilidade (justificação).
Pessoalmente, nos parece que a posição seria um retrocesso ao negar a
existência de uma ciência do direito que busca na lógica uma forma de garantir a
segurança jurídica.
É importante ter em mente que a publicação da Teoria Pura do Direito
por Hans Kelsen se deu em um momento histórico de procura de independência do
direito da sociologia, e especialmente da política, para garantir segurança jurídica por
meio da reprodutibilidade das decisões judiciais.
Kelsen não ignorou que o direito sempre é fruto e reflexo de uma
situação política, mas, simplesmente, separou criatura e criador, isolou o direito posto
da influência política por meio de um estratagema teórico que foi a sustentação das
Constituições por uma abstração que chamou de Norma Hipotética Fundamental.
Fazendo isso, Kelsen alçou a Constituição ao fundamento de validade de
todo o sistema jurídico, de sua aplicação, de sua estática e dinâmica, forçando que todas
as análises partissem do contraste das normas com a Constituição e que todas as
decisões considerassem esse contraste.
Obviamente que isso privilegia o Poder Constituinte Originário, no nosso
caso a Assembléia que criou a Constituição Federal de 1988, e encolhe os poderes
45
46
CUÉLLAR, Leila. As agências reguladoras e seu poder normativo. São Paulo: Dialética, 2001.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto.
49
Executivo, Judiciário e não menos o Poder Legislativo delegado pelo poder constituinte
originário.
A utilização da Teoria Pura do Direito, limitando o operador do direito à
verificação do fundamento de validade das normas contra os preceitos constitucionais,
com a verificação da subsunção dos fatos do mundo concreto às hipóteses contidas nas
normas jurídicas, sem a possibilidade de quaisquer enxertos de suas vontades políticas
nesse processo, é a única forma de garantir segurança jurídica aos cidadãos.
De outra forma, ficaríamos sujeitos à instabilidade normativa, à
imprevisibilidade das decisões, à ditadura dos que detêm o poder político, ao casuísmo
das decisões, aos caprichos dos julgadores e dos mandantes do Brasil.
Note-se que, mesmo com o reforço teórico a uma estrutura rígida de
aplicação do direito, vivemos em um ambiente legal altamente volátil, o que tem trazido
insegurança jurídica e prejuízos enormes ao nosso povo, de modo que a última coisa de
que se precisa é de um arcabouço teórico que traga ainda mais incertezas para o sistema
jurídico.
Ademais, ao cientista, ao estudioso, não é dado mascarar o seu objeto de
estudo para obter as conclusões a que inicialmente já queria chegar. O estudo científico
deve ser honesto, calcado na observação e nas informações advindas do objeto
estudado, e isto não é diferente para o cientista do direito: o estudioso do direito deve
analisar o sistema jurídico posto e daí tirar suas conclusões.
A Constituição brasileira vigente não contém em nenhum artigo qualquer
autorização para a inobservância do princípio da legalidade e da reserva legal geral, para
todo e qualquer tema, de modo que as conclusões em contrário, por mais bemintencionadas, são comprovadamente falsas, posto que, em desacordo com o objeto
estudado.
Em nossa opinião, seguindo a linha de Celso Antônio Bandeira de Mello,
nos parece que o artigo 5.º da Constituição Federal, ao mencionar em seu inciso II que
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei”, já reserva exclusivamente para a lei a possibilidade de inovação no ordenamento
jurídico, de modo que qualquer lei que pretenda possibilitar a criação de normas
infralegais que imponham a alguém uma obrigação positiva ou negativa será
substancialmente inconstitucional por confrontar com esse dispositivo.
Esse entendimento é corroborado pelo artigo 25, inciso I, dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, já que
50
revogou no prazo de 180 dias da promulgação da Constituição “todos os dispositivos
legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada
pela Constituição ao Congresso Nacional...”.
Tampouco nos parece convincente o entendimento de que no poder de
fiscalização constante do caput do referido artigo 174 da Constituição Federal está
implícito o poder normatizador, pela simples razão de que não há qualquer confusão
entre fiscalizar e normatizar, pois é perfeitamente possível e até usual que seja
fiscalizado o cumprimento de normas criadas por outrem, como é o caso mais
corriqueiro da Polícia Civil e Militar ou dos fiscais de rendas.
Porém, simplesmente afirmar que não é possível a edição de normas
inovadoras do sistema jurídico pelas Agências Regulatórias é ir contra as lições de
Carlos Maximiliano em sua brilhante obra Hermenêutica
e
aplicação do
direito47 :“Prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés
da que os reduza à inutilidade”.
Uma vez que a parte final do artigo 174 da Constituição Federal expressa
que o planejamento feito pelo Estado é “determinante para o setor público”, seria
totalmente inútil o dispositivo se entendêssemos que apenas a Lei pode impor
obrigações para o setor público, já que obviamente a lei lhe é determinante, sendo
desnecessária a menção; acreditamos que a edição de regulamentação normatizante
infralegal pode ser criada por lei para a vinculação do setor público.
Cumpre então analisar o que compõe o setor público, além das atividades
internas da própria administração pública.
4.1.1. Serviços públicos
Além das atividades internas da administração pública, o setor
público também é composto pelos serviços públicos, conforme determina o artigo 175
da Constituição Federal.
Os doutrinadores praticamente são concordes em afirmar que a
definição clássica de serviço público reunia três elementos, embora se
47
17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 249.
51
desse maior ou menor ênfase ora a um, ora a outro, dentre eles, quais
sejam:
1) o subjetivo, que considera a pessoa jurídica prestadora da atividade
– o serviço público seria aquele prestado pelo Estado;
2) o material, que considera a atividade exercida – o serviço público
seria a atividade que tem por objeto a satisfação de necessidades
coletivas;
3) o formal, que considera o regime jurídico – o serviço público seria
aquele exercido sob regime de Direito Público derrogatório e
exorbitante do Direito comum 48 .
Insuperável o ensinamento de Duguit de que serviço público
es toda actividad cuyo cumplimento debe ser regulado, asegurado y
fiscalizado por los gobernantes, por ser indispensable a la realización
y al desenvolvimiento de la interdependencia social, y de tal
naturaleza que no puede asegurado completamente más que por de la
intervención de la fuerza gobernante49
Para verificação de quais são as atividades assim consideradas em um
dado tempo e espaço histórico, temos de nos ater ao critério formal conforme aponta
Celso Antônio Bandeira de Mello 50 .
Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou
comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral,
mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume
como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe
faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto,
consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –
instituídas em favor dos interesses definidos como públicos no sistema
normativo.
Depreende-se então que serão serviços públicos por absorção todos
aqueles assim definidos por nossa Constituição Federal como tal.
No nosso entender, no caso dos serviços públicos, ou outros monopólios
estatais que fazem parte do setor público nos termos de nossa Constituição Federal, as
normas que garantem o poder normativo das Agências Regulatórias são voltadas para os
próprios servidores públicos, que devem observá- las na confecção dos editais de
concessão de serviço público, que devem conter a observação de que a prestação do
serviço seguirá a normatização da respectiva agência, ou nas regulamentações de
concessão de licenças, autorizações ou permissões para o exercício das atividades
relativas a esses serviços.
48
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria dos serviços públicos e sua transformação. In: Direito
administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 42.
49
DUGUIT, Léon. Las transformaciones del derecho público. 2. ed. Madrid, 1913, p. 105.
50
Curso de direito administrativo, p. 600.
52
Os agentes econômicos privados não estão, a priori, sujeitos a essas
normas, o que apenas ocorrerá voluntariamente, na medida em que aderirem aos
contratos administrativos para atuarem nas atividades reservadas ao Estado: adentraram
em um negócio jurídico, de caráter público, devendo, portanto, se ater às suas regras,
que decorrem de vínculo contratual.
O próprio dispositivo constitucional indica o caráter contratual do
instituto jurídico em questão, correspondente a uma adesão voluntária
do ente concessionário, sujeitando-se a certas cláusulas
regulamentares, assegurado o equilíbrio econômico financeiro, sem o
qual deixaria de haver interesse para a prestação do serviço51 .
No entanto, tais observações não solucionam o problema ora analisado,
pois os serviços e produtos para a saúde não dizem respeito à atividade titularizada pelo
Estado, que para exploração pelos particulares depende de adesão aos termos de sua
regulamentação; estamos diante de serviços públicos sim, pois podem e devem ser
prestados pelo Estado em condições normais, mas de serviços públicos não privativos,
já que também podem ser livremente prestados pelos particulares.
4.1.2. Produtos e serviços de saúde fornecidos pelos particulares fazem parte do
serviço público?
Os produtos e serviços de saúde podem afetar grandemente a própria
economia e a sociedade como um todo, não apenas seus fornecedores e consumidores.
Este impacto para aqueles que não fazem parte da relação direta de
compra e venda de determinado produto ou serviço decorre das chamadas
externalidades que se configuram como efeitos colaterais da atividade econômica,
prejudicando ou beneficiando sujeitos que não fazem parte das relações de compra e
venda e que, portanto, não podem ser cobrados ou premiados, pois estes terceiros são
estranhos a tal relação originadora dos efeitos.
Assim, a sociedade que sofre os efeitos dessa atividade passa a pressionar
o poder político para devolver esses efeitos aos agentes econômicos que participam da
relação de compra e venda, promovendo, então, a internalização das externalidades, o
que pode se dar com uma intermediação financeira do Estado, ao recolher impostos
51
SANCHEZ, Cristiane G. Aspectos da relação entre Estado e iniciativa privado: enfoque constitucional.
p. 36.
53
mais altos e devolver benefícios para a sociedade, ou diretamente pelos agentes
econômicos que são levados a assumir obrigações para mitigar ou compensar os
prejuízos causados 52 .
É bastante evidente tal característica nos produtos e serviços da saúde,
pois sua utilização gera benefícios para o Estado e para a economia – diminuindo o
absentismo, a queda de produtividade e o abandono de emprego – e também para a
própria sociedade, pois a diminuição dos agravos à saúde é um objetivo do Estado
Social moderno.
Portanto, os produtos e serviços de saúde fazem parte de um rol de
bens ou serviços que, muito embora exclusivos, geram um tal
montante de externalidades positivas a ponto de serem cada vez mais
vistos, eles próprios, como bens coletivos. É o caso da vacina:
aparentemente trata -se de um bem exclusivo, pois protege a quem foi
com ela inoculado. Mas, à medida que uma parcela razoável da
população a receba, aumentam as probabilidades de todo o conjunto
de habitantes ver-se livre de uma possível epidemia. As altas
externalidades fazem a vacina ser encarada muito mais como um bem
coletivo do que exclusivo. [...]
Daí o desenvolvimento e a diversificação das modalidades pelas quais
o Estado supre estes bens, quer diretamente, quer mediante a
concessão de serviços públicos, quer pela contratação com terceiros,
quer, ainda, via incentivos à produção, pelo setor privado, de bens
dotados de alto coeficiente de externalidades positivas 53 .
Por esta razão o artigo 197 da Constituição Federal considerou como de
“relevância pública” esses serviços, cabendo ao “Poder Público dispor, nos termos da
lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”, e aqui não há qualquer
implicação meramente teleológica entre fiscalização e controle, pois o dispositivo
constitucional é expresso ao tratar de controle 54 .
52
“Se, em virtude dos efeitos externos, custos ou benefícios circulam livremente pela sociedade,
atingindo-a diretamente, isto é, sem passar pelos canais do mercado, parece intuitivo deva o seu
antídoto basear-se em mecanismos aptos a promoverem a internalização de tais efeitos, ou seja,
destinados a levar os custos e benefícios a incidirem sobre as próprias unidades responsáveis pela sua
geração. Como visto, também, este segundo aspecto – a internalização de benefícios – é
incomparavelmente mais fácil de ser conseguido, pois vai ao encontro da tendência natural do próprio
mercado, por definição um maximizador de receitas. As dificuldades são extremamente sérias quando
se trata de internalizar ou privatizar efeitos negativos representados pelos custos sociais. Por isso, em
grande parte, as normas jurídicas neste campo têm esta finalidade: promover a internalização daqueles
custos pelas suas unidades geradoras; ou então simplesmente, imp edir a própria geração dos mesmos”
(NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 158).
53
Idem, ibidem, p. 162
54
“Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador
constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde, em
ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os
órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe,
arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra
54
Temos, então, uma parcela da atividade econômica na qual o Estado,
além de interferir por participação, tem poderes de regulamentação sobre a atividade
privada, o que se dá em decorrência da alta carga de interesse público nela envolvida.
Só não temos os produtos e serviços de saúde como típicos serviços públicos por uma
opção do poder constituinte, que não os reservou exclusivamente ao Estado, muito
embora tenham grande relevância para a interdependência social.
Não se deve confundir o serviço público com o serviço de utilidade
pública. Estes não incubem ao Estado, que não os titulariza. Apenas
que, em se tratando de serviço de interesse comunitário, são assim
reconhecidos, como ocorre com os serviços educacionais e
assistenciais. Aqui, há um grande interesse por parte do Estado em
aproximar-se mais intensamente da prestação desses serviços, para
acompanhar e fiscalizar a atividade 55 .
É o que Morenilla 56 chama de serviço público impróprio ou virtual, no
qual o particular sofre a imposição de uma série de deveres e controles próximos aos
impostos aos concessionários de serviço público, hipótese evidente no caso da saúde,
conforme aponta Eros Grau, que não usa a mesma nomenclatura de Morenilla, mas
classifica os serviços públicos entre privativos e não-privativos e aplica as mesmas
conclusões quanto à atividade privada nos serviços públicos não-privativos 57 .
inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante” (RE 267.612, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ 23.08.2000).
55
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. p. 291.
56
SAUVIRÓN MORENILLA, José Maria. La actividad de la administración y el servicio público.
Granada: Comares, 1998.
57
“Cumpre distinguir, desde logo, os serviços públicos privativos dos serviços públicos não privativos.
Entre os primeiros, aquele cuja prestação é privativa do Estado (União, Estado-membro ou Município),
ainda que admitida a possibilidade de entidades do setor privado desenvolvê-los, apenas e tão somente,
contudo, em regime de concessão ou permissão (art. 175 da Constituição de 1988). Entre os restantes –
serviços públicos não privativos – aqueles que em edições anteriores deste livro equivocadamente
afirmei terem por substrato atividade econômica que tanto pode ser desenvolvida pelo Estado, enquanto
serviço público, quanto pelo setor privado, caracterizando-se tal desenvolvimento, então, como
modalidade de atividade econômica em sentido estrito. Exemplos típicos de serviços públicos não
privativos manifestar-se-iam nas hipóteses de prestação de serviços de educação e saúde.
Assim o que torna os chamados serviços públicos não privativos distintos dos privativos é a circunstância
de os primeiros poderem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão
ou autorização, ao passo que os últimos apenas poderão ser prestados pelo setor privado sob um destes
regimes.
Há, portanto, serviço público mesmo nas hipóteses de prestação de serviços de educação e saúde pelo
setor privado. Por isso mesmo é que os arts. 209 e 199 declaram expressamente serem livres à iniciativa
privada a assistência à saúde e o ensino – não se tratasse, saúde e ensino, de serviço público razão não
haveria para as afirmações dos preceitos constitucionais.
Não importa quem preste tais serviços – União, Estados-membros, Municípios ou particulares; em
qualquer hipótese haverá serviço público” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição
de 1988. p. 105 e 106).
55
Especificamente no que concerne às ações relativas à saúde, são elas de
relevância pública, devendo o Estado exercer sua regulamentação, fiscalização e
controle 58 .
A Lei maior da república estipulou critérios para que a saúde seja
corretamente determinada em seu texto. Assim vinculou sua
realização às políticas sociais e econômicas e ao acesso às ações e
serviços destinados, não só à sua recuperação, mas também à sua
promoção e proteção. Em outras palavras, adotou-se o conceito que
engloba tanto a ausência da doença, quanto o bem-estar, enquanto
derivado das políticas públicas que têm por objetivo, seja apenas a
política, seja sua implementação, traduzida na garantia de acesso –
universal e igualitário – às ações e serviços com o mesmo obje tivo
(CF, artigo 196) 59 .
Assim, por força do artigo 197 da Constituição Federal, cuja motivação
são as externalidades sociais geradas pelas atividades privadas relacionadas à saúde,
bem como, em última análise, a própria decisão política que foi tomada qua ndo da
Assembléia Constituinte, é possível a regulamentação, fiscalização e controle da
iniciativa privada neste mercado em especial, como hipótese típica de intervenção por
direção:
No caso das normas de intervenção por direção estamos diante de
comandos imperativos, dotados de cogência, impositivos de certos
comportamentos a serem necessariamente cumpridos pelos agentes
que atuam no campo da atividade econômica em sentido estrito –
inclusive pelas próprias empresas estatais que a exploram60 .
58
“A Constituição Federal de 1988 introduziu entre nós o termo “relevância pública”. Com efeito, a
expressão indica que as ações e serviços de saúde devem ser desempenhados pelo Poder Público e pela
iniciativa privada como atividade essencial na defesa da vida, configurando, em síntese, um princípiogarantia em benefício do cidadão” (ROCHA, Julio César de Sá. Direito da saúde: direito sanitário na
perspectiva dos interesses difusos e coletivos. Pág. 199).
59
DALLARI, Sueli G. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec, 1995. p. 30.
60
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 128.
56
5 – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS NA
REGULAMENTAÇÃO ECONÔMICA DAS AÇÕES DE SAÚDE
É importante notar que a atividade legislativa e regulamentadora do
Estado na economia deverá obedecer aos princípios do artigo 170 da Constituição
Federal, de modo que normas infraconstitucionais que não tenham esse sentido serão
maculadas pela inconstitucionalidade, sob pena de perda de unidade e consistência da
Carta Constitucional, pois
embora não possam os princípios gerar Direitos subjetivos, eles
desempenham uma função transcendental dentro da Constituição. Eles
é que lhe dão vida e estrutura, porque são como a carne no corpo
humano, revestindo, portanto, a ossatura do esqueleto. É o que dá
feição de unidade ao texto constitucional, determinando-lhe as
diretrizes fundamenta is61 .
Nos termos da Constituição Federal de 1988, a atividade do Estado em
relação a esses serviços públicos impróprios não poderá ser realizada de maneira
absolutamente livre e discricionária, deverá ser pautada pela busca constante, proativa e
sem retrocessos da ampliação do acesso da população aos tratamentos e ações de saúde,
pois é isto que expressamente determina o artigo 196 da Constituição Federal62 .
61
62
BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.
“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à
generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público,
a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a
garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito
fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do
direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da
organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população,
sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A
interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional
inconseqüente. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por
destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do
Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o
Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira
ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...). O reconhecimento judicial
da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes,
inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da
Constituição da República (arts. 5.º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto
reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e
nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade.
Precedentes do STF” (RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2000). No mesmo
sentido: RE 393.175, Rel. Min. Celso de Mello.
57
As normas infraconstitucionais que estabeleçam a regulação no setor de
saúde (permitida nos pelo artigo 197 da Constituição) somente serão constitucionais se
afinadas com os objetivos contidos no artigo 196 da Constituição Federal, quais sejam
“a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, pois o legislador
constituinte fornece a orientação a ser seguida pelo legislador infraconstitucional.
Este ponto tem fundamental importância para o nosso trabalho e merece
ser observado com maior atenção, pois a despeito de sua simplicidade traz
conseqüências importantes para a análise da validade da legislação infraconstitucional
sob uma ótica incomum para a maioria dos que lidam com o direito atualmente.
Como é sabido, a Constituição Federal, além de conter em si o processo
de criação de novas normas jurídicas, sejam infraconstitucionais ou de fiel execução de
lei, e ainda das próprias emendas constitucionais, fixa o conteúdo das normas
infraconstitucionais, na medida em que limita esse conteúdo negativamente, vale dizer,
uma norma infraconstitucional não pode ser contrária a um ditame constitucional, pois
se o for não será parte do sistema jurídico, já que carente de fundamento de validade.
Na maior parte da nossa Constituição temos essa fixação de conteúdo por
meio de dispositivos constitucionais que simplesmente criam direitos ou obrigações
para sujeitos que se enquadrem nas condições hipotéticas definidas por esses
dispositivos.
É bem verdade que tais direitos e obrigações são atribuídos de maneira
muito genérica, de modo que permitem a sua especialização e procedimentalização pela
legislação infraconstitucional, algumas vezes até com conceitos vagos, que são
preenchidos conforme sua interpretação pela sociedade em um determinado tempo e
que, portanto, podem variar com sua evolução.
Mas, de qualquer forma, nesses casos, a leitura do texto da Constituição,
preenchendo tais conceitos abertos, e a leitura do texto das normas infraconstitucionais
são o suficiente para se perquirir a validade dessa norma.
Contudo, no capítulo da saúde o constituinte originário utilizou outro
instrumental, e conferiu um objetivo a ser alcançado pelo Estado – Estado como junção
dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário –, dando- lhe uma verdadeira
missão a ser perseguida, qual seja a ampliação do acesso à saúde à população brasileira.
Esta técnica faz que a análise de validade da norma infraconstitucional
não possa ser feita simplesmente contrastando seu texto com o texto constitucional; é
58
necessário fazer uma análise prospectiva dos possíveis resultados de sua aplicação. Não
se olha para o presente ou para o passado. O aplicador do direito deve olhar para o
futuro e buscar prever os resultados da aplicação daquela norma, para verificar se estes
estão de acordo com o determinado pela Constituição 63 .
Nesse aspecto nos será útil a teoria pura do Direito de Hans Kelsen64 ,
porque nos interessa analisar a validade das normas que conferem o poder regulamentar
relacionado ao mercado de saúde.
Para Kelsen, o Direito é criado pela chamada norma jurídica
fundamental, que não passa de uma pré-suposição teórica, um artifício utilizado para
evitar questionamentos e aprofundamentos fora do próprio Direito. Dessa forma, Kelsen
cria uma teoria pura do Direito, não questionando o poder, apenas estudando o sistema
jurídico formado por normas postas, cujo fundamento de validade será a norma
hipotética fundamental.
Kelsen vê dois princípios em todo o ordenamento jurídico: o estático e o
dinâmico. Conforme a dinâmica jurídica, a norma fundamental é desprovida de
conteúdo, conferindo apenas e tão-somente competência para a criação da Constituição,
que poderá ter qualquer conteúdo, conforme verificamos ao elencar as Constituições
acima.
Importante notar que Kelsen foi muito criticado ao assim se posicionar,
pois para ele tanto uma Constituição democrática quanto uma nazista seriam igualmente
válidas, o que é real se analisado o ponto de vista exclusivo da lógica formal puramente
jurídica.
A Constituição terá normas procedimentais para a criação de leis e suas
respectivas competências, e também normas que fixam, a partir de conceitos gerais, o
conteúdo das normas infraconstitucionais.
A partir dessa limitação de conteúdo válido, tem início a estática do
sistema jurídico, na medida em que as normas infraconstitucionais terão como
fundamento de validade a própria Constituição, e seu conteúdo não poderá contrastar
com o nela fixado.
No caso específico dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, estes
trazem proposições voltadas para um resultado que deve ser buscado no âmbito do
63
“As diretrizes constitucionais, que estabelecem obrigação de resultado, vinculam o aplicador ou
intérprete, condicionando a legalidade da norma à submissão aos fins nelas declarados” (DALLARI,
Sueli G. Os estados brasileiros e o direito à saúde. p. 28).
64
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
59
mundo concreto. São determinações da atuação do Estado como Poder Executivo e
Legislativo, que obviamente devem ser julgadas pelo Poder Judiciário quanto à sua
validade.
Sendo assim, a conduta do Estado enquanto Poder Executivo será a busca
cada vez maior da utilidade pública em saúde, conforme lhe permitirem seus
orçamentos. Para o Estado Legislador, que não entrega diretamente a utilidade pública,
fica a obrigação de produzir normas jurídicas que também possam gerar no mundo
fenomênico tais efeitos concretos de ampliação do acesso da população aos produtos e
serviços de saúde.
Faz-se pertinente aqui um questionamento: se as normas jurídicas são
criadas para produzirem efeitos no futuro, no caso específico para provocarem um
comportamento nos age ntes econômicos – seja indutiva seja coercitivamente – que
deverá resultar na criação futura de utilidade social, como então avaliar a
constitucionalidade dessas normas sem cair no subjetivismo dos julgadores?
Propomos para possibilitar a redução da subjetividade desta análise
buscar critérios objetivos que possam prever os efeitos da ação dos agentes econômicos
para que conforme esta previsão o sistema jurídico acolha ou repila como inválida uma
norma infraconstitucional.
No momento atual entendemos que a única ciência com instrumental
objetivo para tanto é a economia. A ciência econômica busca criar cenários futuros
conforme o conhecimento acumulado e as teorias econômicas.
Entendemos que somente através do uso da ciência econômica será
possível a criação de normas infraconstitucionais e aplicação das já existentes conforme
o atual texto constitucional que busca o amplo acesso da população aos serviços de
saúde.
Isto porque a análise acerca da concretização futura e efetiva deste amplo
acesso, ou seja, da validade das leis face a Constituição Federal, somente é viável
através da projeção de efeitos econômicos ao longo da vigência das normas
infraconstitucionais.
Esta análise somente será possível com o uso de ferramentas existentes
dentro da ciência econômica, de acordo com seus aspectos funcionais e prospectivos, ou
seja, deverá ser feita uma análise da validade das leis segundo um estudo econômico de
seus efeitos possíveis, para verificar se propiciarão ou não os efeitos determinados pela
Constituição Federal.
60
Esta proposição não parte de uma idéia de direito alternativo ou de uma
tentativa de quebra das estruturas positivistas do Direito. Pelo contrário, foi o legislador
constituinte que, ao fixar o conteúdo das normas infraconstitucionais, o fez não da
forma tradicional, delineando uma hipótese de incidência e uma conseqüência, mas sim
fixando objetivos que devem ser alcançados no mundo concreto pelas normas
infralegais.
Porém, nem o aplicador do direito e sequer a própria ciência do direito
são aparelhados para fazer esse tipo de análise prospectiva de construção de cenários
futuros, o que pode criar uma instabilidade jurídica terrível, que desestruturaria o
próprio sistema jurídico se deixada ao sabor das preferências pessoais de cada aplicador
do direito e, especialmente, de cada julgador em um casuísmo absolutamente deletério.
Parece-nos que o receio de se fazer uma análise de validade no presente
com base no futuro incerto é que acaba gerando uma reação de negação na classe
jurídica; entretanto, não adianta negar, os artigos 196 e 197 da Constituição Federal de
1988 estão assim redigidos, não cabendo à classe jurídica rejeitar no todo ou em parte
uma norma constitucional válida, devendo aplicá- la nos seus exatos termos, seja isto
bom ou ruim.
A redação dos referidos dispositivos constitucionais confere, assim, uma
garantia ao cidadão brasileiro, necessária em face do poder conferido ao Estado de
regulamentar a atividade econômica, inclusive substituindo as regras de mercado de
definição de preços, como no caso em tela, posto que o estabelecimento de objetivos
que devem ser alcançados com esse poder é um freio eficaz no direcionamento das
normas legais para os interesses sociais.
Neste sentido os tribunais não podem se furtar e devem atuar como
verdadeiro filtro das normas legais criadas a partir do poder Legislativo ou Executivo
com interesses políticos que não estejam conforme a determinação da Constituição
Federal que lhes dá o fundamento de validade.
Resta, então, o problema de como aplicar referida aná lise prospectiva de
validade de normas jurídicas, evitando o casuísmo. A solução para tanto seria
simplesmente buscar em outras ciências humanas os mecanismos para a construção
desses cenários futuros, de maneira que possa ser validada ou contestada em bases
concretas.
Esta ciência é justamente a Economia, posto que é a ciência que se ocupa
de estudar a alocação de recursos escassos, no caso produtos e serviços para saúde,
61
analisando os comportamentos do mercado, para descobrir quais são as variáveis
determinantes de suas reações e, com base nisso, realizar previsões e criar cenários
futuros factíveis.
Não se trata aqui de submeter todo o sistema jurídico a uma perspectiva
de outra ciência que não a jurídica, mas simplesmente de utilizar o instrumento
adequado, quando determinado pelo próprio sistema jurídico. Aliás, a utilização de
outras ciências que não a jurídica como ferramentais auxiliadores para a análise de
validação das normas infraconstitucionais pelos operadores do direito e tribunais já vem
sendo há tempos utilizado quando, por exemplo, da análise da validação dos atos
administrativos quanto à eficiência através da ciência da administração ou das normas
penais através da medicina quando necessário.
Sendo assim, a validade das normas jurídicas infraconstitucionais que
tenham por fundamento os artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988 está
condicionada à análise econômica dos resultados de sua aplicação, e é por essa razão
que o presente trabalho, a despeito de seu objeto jurídico, tratará em tantas linhas de
questões econômicas relativas aos medicamentos e aos planos de saúde.
Da mesma forma que em relação aos seus objetivos específicos as
normas devem-se ater aos princípios da atividade econômica contidos no artigo 170 da
Carta Constitucional, sob pena de invalidade perante o sistema 65 ; as normas infraconstitucionais relativas à regulação da atividade econômica pública ou privada em
saúde devem ampliar o acesso universal e igualitário aos serviços a ela relacionados por
meio desses mesmos princípios do artigo 170 da Constituição Federal, de modo que as
leis contrárias a tal objetivo serão inconstitucionais.
Portanto, as normas infraconstitucionais deverão prover condições,
segundo o sistema de livre concorrência material, para que a atuação dos agentes
econômicos no mercado gere a buscada ampliação de acesso à saúde para as pessoas, de
modo que as normas que não tiverem tal orientação sejam consideradas
inconstitucionais por contrariarem os princípios da atividade econômica constantes do
mencionado artigo 170 da Constituição Federal.
65
“Assim, a ordem econômica de que cuido, a ser complementada pelo legislador ordinário, no quadro de
seus princípios – e, saliento, não há nenhum mal em que a Constituição a ele atribua esta tarefa, de dar
concreção aos princípios – veiculada a uma ideologia que não se fecha em si própria.
Esse modelo há de ser complementado pelo legislador ordinário, evidentemente tangido, também, pelos
princípios e regras contempladas no bojo da Constituição” (GRAU, Eros R. A ordem econômica na
Constituição de 1988. p. 269).
62
A imprescindível aplicação harmonizada 66 dos artigos 170, 196 e 197 da
Constituição Federal resulta em que o conteúdo das normas infraconstitucionais sobre a
matéria de saúde deva sempre garantir a ampliação do acesso a ações e serviços de
saúde pela população, preservando a livre concorrência material com o combate das
falhas do mercado em questão, ou seja, o método para o alcance dessa meta
constitucional deve ser a ampliação e utilização da livre concorrência e o livre mercado,
que sustente a entrada no mercado de novos concorrentes e conseqüente redução dos
preços que são a grande barreira de acesso a estes produtos e serviços.
Como se verá adiante, cresce no Brasil a opção pelo controle de preços
para a ampliação do acesso da população a produtos e serviços de saúde, transferindo
para a iniciativa privada os custos dessa ampliação de acesso, que na verdade fazem
parte da missão do Estado, que deveria suportar tais custos e direcionar a iniciativa
privada nesse sentido, sem tal transferência.
Tais medidas de controle de mercado afrontam o artigo 170 da
Constituição Federal, especialmente seus incisos II e IV e parágrafo único, na medida
em que não só não propiciam a livre concorrência como eliminam o livre mercado em
troca de um preço determinado por lei e normas infralegais, o que acaba com a
lucratividade das empresas e, portanto, lhes drena paulatinamente a propriedade,
conforme lição de Miguel Reale que trazemos apesar de longa, devido à pertinência ao
tema ora tratado e sapiência do Ilustre Professor 67 :
Volta e meia, torna-se a falar em programa de congelamento de
preços, do tipo Plano Cruzado ou do Plano Bresser, e já agora com a
idéia de instituir-se nova moeda, o real, mais uma tentativa de
contornar ou impedir o jogo dos preços que caracteriza a economia de
mercado, Com tais propostas não se percebe, no entanto, que a
Constituição de 1988 veio por paradeiro a qualquer plano que tenha
por fim estabelecer, direta ou indiretamente, o congelamento dos
preços.
É elevada à dignidade de princípio Constitucional, como se acha
consagrada no artigo 170, inciso 4.º da Carta Magna em vigor, e isto
depois de, no “caput” desse mesmo artigo, declarar-se que a ordem
econômica no Brasil se funda, entre outros, sobre o valor da
“iniciativa privada”. Por sinal que esta é referida logo no artigo 1.º da
Constituição de 5 de outubro de 1988, artigo esse de natureza
preambular que enumera os “princípios fundamentais” de nosso
Estado de Direito. Como se vê, não é um item isolado da Constituição
66
CLÈVE, Clémerson Merlin; FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. Algumas notas sobre colis ão de
direitos fundamentais . In: Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São
Paulo, 2003. p. 237.
67
REALE, Miguel. Inconstitucionalidade de congelamentos, Folha de S. Paulo, 19 out. 1988, coluna
“Tendências e Debates”.
63
que dá novo sentido à nossa ordem econômica, mas sim todo o
contexto de suas disposições.
Ora, livre iniciativa e livre concorrência são conceitos
complementares, mas essencialmente distintos. A primeira não é
senão a projeção da liberdade individua l no plano de produção,
circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre
escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a
autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à
consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o
princípio de livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como
resulta da interpretação conjugada dos citados artigos 1.º e 170.
Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental,
significando o “pr incípio econômico” segundo o qual a fixação dos
preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de
autoridade, mas sim de livre jogo das forças em disputa de clientela na
economia de mercado. Houve, por conseguinte, iniludível opção de
nossos constituintes por dado tipo, o tipo liberal do processo
econômico, o qual só admite a intervenção do Estado para coibir
embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao
abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário dos lucros.
Como se vê, não estou interpretando o novo texto constitucional
somente à luz de único dispositivo, mas levando em conta o art. 170,
que consagra a livre concorrência, contém também um item que se
refere ao princípio da “defesa do consumidor”. Este objetivo é
completado pelo parágrafo 4.º ao art. 171, segundo o qual, sempre
mediante a lei, devem ser reprimidos os abusos do poder econômico e
qualquer tentativa de eliminação da concorrência com aumento
arbitrário de lucros.
Da exegese conjugada desses dispositivos podemos inferir algumas
conseqüências básicas, a saber: a) a livre concorrência deve ser a regra
ou diretriz básica da ordem econômica; b) o Estado só deve intervir na
vida econômica que vise à obtenção de lucros ilícitos.
Se assim é, cumpre-se deixar de aplicar as leis, que disciplinam a
política de preços ou visam a impedir o abuso do poder econômico,
segundo o espírito autoritário das Cartas de 1967 e 1969,
reconhecendo que tais leis somente podem ter validade e eficácia em
consonância com os novos princíp ios da nova Carta Magna.
É inegável que a promulgação de uma nova Constituição não
representa uma fratura absoluta no sistema jurídico vigente, uma vez
que se opera a “recepção das leis antigas”, desde que não conflitem
com as disposições da Carta Constitucional superveniente. Todavia,
mesmo essa recepção das normas no conjunto de novas normas
constitucionais, a cujo espírito e princípios devem se conformar. Isto
quer dizer que elas perdem o seu significado originário para adquirir
aquele que resulta do novo ordenamento político, tal como nos
ensinou o insigne Teixeira de Freitas ao cotejar as Ordenações do
Reino com as normas da Constituição do Império, elaborando uma
“consolidação das leis civis” que foi uma reelaboração à luz do que
lhe parecia ser uma diretriz de uma monarquia representativa.
A primeira conclusão que me parece necessário estabelecer, neste
artigo de caráter introdutório a um grande tema, é a seguinte: cabe
preservar, como regra basilar, o princípio da livre concorrência, e,
somente secundariamente, admitir-se a intervenção do Estado na
ordem econômica.
64
A segunda conclusão que me parece irrecusável, diz respeito à
inviabilidade de qualquer plano que tenha por fim implantar
congelamento dos preços, eliminando a livre concorrência: bem como
insubsistência de leis que subordinem de antemão a fixação dos preços
das mercadorias à previa aprovação de órgãos administrativos, não
raro segundo critérios rudimentares e secretos. Esse controle somente
pode ser “a posteriori”, segundo critérios previamente estabelecidos
em lei.
Entendimento contrário a estas conclusões está no julgamento da Ação
Direta de Inconstitucionalidade 319-4, proposta pela Confederação Nacional dos
Estabelecimentos de Ensino (Conferem) contra a já revogada Lei 8.039/1990, que
estabelecia que o reajuste de mensalidades escolares não poderia ser superior ao reajuste
do salário mínimo.
A referida Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em junho de
1990 foi julgada apenas parcialmente procedente em 1993: a parte improcedente da
ação foi justamente a que pugnava pela inconstitucionalidade do controle de preços das
mensalidades escolares por violação dos incisos II e IV e parágrafo único do artigo 170
da Constituição Federal.
A argumentação contida na decisão vai no sentido de que : (i) a educação
é atividade essencial para a sociedade, de modo que deve ser regulamentada pelo Estado
para a garantida dos direitos do cidadão, por força dos artigos 5.º, 206 e 207 da
Constituição Federal; (ii) as garantias do artigo 170 a Constituição Federal não são
absolutas, devendo ser temperadas com a proteção do consumidor, a função social da
propriedade e os objetivos sociais do Estado brasileiro.
De tais proposições os ilustres Ministros Julgadores da Ação, com
exceção do Ministro Marco Aurélio, entendem que o controle de preços não é possível
apenas para a educação, serviço público impróprio, mas, também, para qualquer
atividade econômica já que o interesse coletivo tutelado pelo Estado deve prevalecer
sobre o interesse individual do agente econô mico.
O julgamento expressa um entendimento segundo o qual a exploração de
atividade econômica em questões que envolvam o interesse social deve se subordinar a
este, com o controle estatal servindo de mediador entre esses interesses, estabelecendo
os ganho s que podem ser auferidos pela iniciativa privada.
Temos até o voto do Ministro Paulo Brossard, segundo o qual sequer o
lucro faz sentido nesse tipo de atividade, devendo o agente privado ser mantido sob
65
cabresto que lhe permitisse apenas receber como retribuição pelo serviço ofertado o
suficiente para a manutenção desse serviço.
É claro que alguém que abre uma escola – seja uma pessoa física ou
seja uma pessoa jurídica, seja uma sociedade civil ou seja uma
corporação religiosa – terá de auferir uma remuneração mínima que
lhe assegure a manutenção e conservação do serviço, a menos que
possa contar, e conte efetivamente, com outras fontes de renda.
Normalmente, esse serviço há de ser remunerado, e como toda
remuneração deve cobrir as despesas e ensejar uma margem que eu
não diria de lucro, porque não se trata de atividade econômica
propriamente dita, mas de uma sobra que permita não só a
conservação como a melhoria do serviço. Mas, repito, não me parece
seja aplicável ao serviço de Ensino regra específica para a atividade
econômica propriamente dita. E no caso até para o abuso do poder
econômico,
“A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação
dos mercados à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de
lucros.”
Acho mesmo que seria preciso forçar o sentido das palavras para
aplicar esta regra constitucional ao setor do Ensino, embora possa
ocorrer exploração mercantil do Ensino. Mas não é regra! Entre nós,
pelo menos até aonde eu conheço, a regra é no sentido contrário. É
que o magistério é muito mais um modo de vida do que um meio de
vida, e o magistério é a parte maior do ensino e da educação.
Realmente, nunca se viu um professor enriquecer, nem mesmo os
professores vinculados ao sistema oficial. Pode ocorrer uma
organização modelada empresarialmente? Pode! Não nego que possa
haver, e não nego até que haja. Mas creio que o preceito constitucional
quando fala em abuso de poder econômico, dominação dos mercados,
eliminação de concorrência, aumento arbitrário dos lucros, não está
pensando em Ensino!
Volto a dizer que não nego possa haver exploração mercantilizada no
Ensino; mas se existe é por tolerância e complacência da
Administração Pública. (Voto do Ministro Paulo Brossard na ADIn
319-4).
Ora, referido posicionamento demonstra uma vertente absolutamente
intervencionista do Estado e reprime a aplicação dos incisos II e IV e parágrafo único
do artigo 170 da Constituição Federal, contra seus próprios termos, forçando o que se
entendeu na época como o raciocínio mais voltado para o bem social.
Referida visão intervencionista e inimiga do lucro não o vê como meio
de captação de novos investimentos para um setor em que o Estado tem o dever de
prestar um serviço público de qualidade, mas não consegue atender à demanda sem a
presença da iniciativa privada, mas o vê apenas como um resultado da espoliação da
população como se todo lucro fosse por definição abusivo.
Tal visão esquece que todo aquele que investe seu capital em uma dada
atividade econômica está optando por colocar seus recursos em algo produtivo em vez
66
de aplicá-lo no muito mais seguro mercado financeiro, e o faz com a expectativa de
receber um retorno desse investimento na forma de lucro, sem o qual não teremos novos
investimentos ou mesmo capacidade de investimento na expansão da atividade
econômica.
Considerando que tanto a atividade educacional quando o acesso a
produtos e serviços de saúde foram, em atenção aos anseios da sociedade brasileira,
considerados por nossa Constituição de relevante interesse público e dada a
incapacidade do Estado de atender adequadamente a esse anseio, o que se deveria é
estimular o lucro não advindo do abuso de poder econômico, pois assim, com mais
investimentos, teríamos mais oferta desses serviços e produtos, com ampliação do
acesso e da concorrência.
Atualmente, temos a consciência de que a estabilidade jurídica é o maior
incentivo para a atividade econômica, de modo que a interpretação das normas jurídicas
não deve ser condicionada ao entendimento dos julgadores do que seria melhor bem
estar social mas sim condicionadas ao que está escrito nas normas interpretadas, pois
esta é a regra que se espera seja aplicada, conforme voto do Ministro Marco Aurélio na
já citada ADIn 319-4:
É induvidoso que a Carta da República de 1988 agasalhou princípios
próprios à chamada economia de mercado. O Título VII – “DA
ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA”, contém capítulo alusivo
aos “PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA”,
cogitando o artigo 170 de uma ordem econômica fundada não só na
“valorização do trabalho humano”, garantia que, neste caso, não está
em questão, como também na “livre iniciativa”. Fê-lo de forma
explícita e, por isso mesmo, pedagógica, pois, no mesmo artigo,
balizou a citada ordem, isto ao apontar os princípios que se lhe
mostram norteadores. Dentre estes, três têm pertinência na hipótese
dos autos de forma direta e estão revelados na busca e preservação da
propriedade privada, de livre concorrência e da defesa do consumidor.
Observa-se, de imediato, a plena harmonia do Título referido com o
intróito da própria Lei Básica. O que nele consta inserido decorre,
justamente, do fato de a República Federativa do Brasil constituir-se,
por definição maior – artigo 1.º – em Estado Democrático de Direito
(caput) e que tem por fundamento, ao lado da soberania, da cidadania,
da dignidade da pessoa humana, do pluralismo político, os valores
sociais do trabalho e, também, da livre iniciativa.
Não obstante, a Constituição é um grande sistema e, assim, no trato
das diversas matérias merecedoras da estatura constitucional, teve-se
presente o alicerce maior, ou seja, a base revelada pela escolha
política e que distingue a República Federativa do Brasil como um
Estado Democrático de Direito, para não fugirmos a letra expressa da
Lei Máxima. [...]
A Lei n. 8.039/90 preserva a livre iniciativa tão cara aos Estados
Democráticos?
67
A resposta é, para mim, desenganadamente negativa. Assim o é
porque no campo econômico prevalece como regra a liberdade de
mercado, fator indispensável à preservação da livre iniciativa, repetida
em vários dispositivos da Constituição, inclusive nos referentes ao
ensino. A exceção corre à conta das hipóteses em que configurado
abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à
eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros – artigo
173, § 4.º, quando, então, a repressão se impõe. Contudo, a Lei n.
8.039/90 não versa sobre tais defeitos. Com abrangência ímpar e
inafastável, introduz critérios de reajuste das mensalidades, jungindoos inteiramente, seja qual for a prática adotada por esta ou aquela
escola, ao percentual mínimo mensal dos salários em geral, fixado no
inciso II do artigo 2.º da Lei n. 8.030, de 13 de abril de 1990. Com
isto, deixa de estimular a educação, conflitando com o artigo 205
aludido. Inibe a iniciativa privada no que introduz desequilíbrio nas
relações jurídicas mantidas entre alunos ou pais de alunos e as escolas,
forçando a fuga destas últimas do campo no qual vêm atuando,
discrepando, assim, da previsão do artigo 209 antes referido. Interfere
na livre concorrência dos estabelecimentos de ensino, distanciando-se,
assim, do mandamento constitucional pertinente – inciso IV do artigo
170. Introduz mecanismo de preços que coloca em plano secundário a
liberdade de mercado, acabando por forçar os prestadores de serviços
a aceitá-lo, ainda que em prejuízo até mesmo da qualidade de ensino e
do empreendimento econômico, ante o evidente achatamento das
mensalidades, como quebra, inclusive, da natureza sinalagmática dos
contratos firmados, compreendida nesta a comutatividade. A não ser
isto, a única alternativa é o abandono das atividades. Pergunta-se:
estará o ensino público em condições de fornecer atendimento
educacional na hipótese?
Senhor Presidente, nos incisos do artigo 209 da Constituição inexiste
previsão que dê respaldo à Lei em julgamento. As normas nesta
contidas não são normas gerais da educação nacional, nem, muito
menos, consubstanciam autorização à iniciativa privada para que atue
no ramo do ensino ou uma forma de avaliar-se a qualidade do que já
vem sendo ministrado. Por outro lado, fica afastada a possibilidade de
cogitar-se de abuso do poder econômico, por sinal de difícil
configuração na espécie, porquanto não coabita o mesmo teto da
existência do sistema gratuito preconizado e imposto pela Carta
quando dispõe ser a educação dever do Estado. Ao contrário, implica
intervenção indevida no mercado, em detrimento de valores
consagrados e que dizem respeito à propriedade. Conflita com
princípios básicos permanentes e que não podem ser postergados em
prol desta ou daquela política reinantes. Aliás, quanto a esta, sugere
nítida dissonância em relação ao preconizado pelo próprio Governo
Federal – a liberdade de mercado, expungidos os abusos.
Por isso, sem mesmo entrar no campo das conseqüências econômicofinanceiras da Lei em comento, peço vênia ao nobre Ministro Relator
para dele dissentir, concluindo, portanto, pela inconstitucionalidade do
artigo 1.º da Lei n. 8.039/90.
Como apontado no voto acima transcrito os citados incisos do artigo 170
da Constituição Federal, por se aplicarem, conjuntamente, com os demais incisos
voltados a questões sociais, inibem o controle de preços, pois o intervencionismo de tão
68
violento acabaria com a livre concorrência, subtraindo lentamente, a propriedade
privada e encarcerando a livre iniciativa com o controle estatal de preços.
Como os diversos incisos do artigo 170 da Constituição Federal são de
mesma hierarquia, devem ser aplicados ao sistema jurídico e as normas
infraconstitucionais conjuntamente e com o mesmo peso de modo que a norma que vise
atender um dos princípios seja freada pela aplicação dos demais. Por exemplo, uma.
norma que vise a proteção do consumidor (inciso V) não pode ferir a livre concorrência
material (inviso IV) e demais princípios do artigo 170.
Idealmente além de não violar os demais princípios do artigo 170 a
norma que vise declaradamente atingir o objetivo de um deles deve buscar fazê- lo
através dos demais princípios. No exemplo citado a proteção do consumidor deve se dar
através da ampliação e não da redução da livre concorrência.
Podemos imaginar ainda como exemplo, o caso dos bancos no Brasil que
cobram juros altos para os padrões mundiais, não repassando as reduções das taxas de
juros oficiais para os seus correntistas. Uma norma que pretenda atender a proteção do
consumidor (art. 170, V) não poderia determinar de maneira obrigatória as taxas de
juros bancários, mas deveria fomentar a criação de novos bancos desafiantes. Assim os
bancos precisariam cobrar juros menores para conseguir novos clientes, conforme a
ampliação da livre concorrência material (art. 170, IV).
Na saúde temos como exemplo de aplicação harmônica entre os incisos
do artigo 170 a norma legal que criou o caso bem sucedido dos medicamentos genéricos
que colocaram produtos sem marca e produtos de marca conhecida em igualdade de
condições perante o consumidor. Dada a importância e correlação com o objetivo
principal deste trabalho debateremos este caso em capítulo específico.
Resta clara, portanto, a incorreção do julgado que é constantemente
citado como contraponto à tese de inviabilidade do controle de preços por vedação
constitucional que estamos sustentando.
Nesse sentido, aliás, são os julgamentos recentes e coerentes com o
moderno entendimento da amplitude do artigo 170 e seu papel no desenvolvimento
econômico nacional de recursos extraordinários que concedem indenização para a
indústria sucroalcooleira, que foi sujeita a controle de preços que de maneira violenta
estabeleceu preços abaixo dos custos de produção, de cujo exemplo é o de n. 422.941 de
dezembro de 2005 do qual extraímos os seguintes trechos de fundamental importância:
69
06/12/2005 SEGUNDA TURMA
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 422.941-2 DISTRITO FEDERAL
RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO
RECORRENTE(S): DESTILARIA ALTO ALEGRE S/A
ADVOGADO(A/S): HAMILTON DIAS DE SOUZA E
OUTRO(A/S)
RECORRIDO(A/S): UNIÃO
ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ECONÔMICO. INTERVENÇÃO
ESTATAL
NA
ECONOMIA:
REGULAMENTAÇÃO
E
REGULAÇÃO DE SETORES ECONÔMICOS: NORMAS DE
INTERVENÇÃO. LIBERDADE DE INICIATIVA. CF, art. 1.º, IV;
art. 170. CF, art. 37, § 6.º.
I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e
regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e
fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre
iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art.
1.º, IV; art. 170. (...)
Voto do relator Sr. Ministro CARLOS VELLOSO .
De fato, o texto constitucional de 1988 é claro ao autorizar a
intervenção estatal na economia, por meio da regula mentação e da
regulação de setores econômicos. Entretanto, o exercício de tal
prerrogativa deve se ajustar aos princípios e fundamentos da Ordem
Econômica, nos termos do art. 170 da Constituição.
Assim, a faculdade atribuída ao Estado de criar normas de intervenção
estatal na economia (Direito Regulamentar Econômico, na lição de
Bernard Chenot e Alberto Venâncio Filho, Droit public économique,
Dictionnaire des Sciences Économiques, 1958, pp. 420-423 e A
intervenção do Estado no domínio econômico. O direito econômico no
Brasil, 1968, respectivamente) não autoriza a violação ao princípio da
livre-iniciativa, fundamento da República (art. 1.º) e da Ordem
Econômica (art. 170, caput).
No caso, a fixação de preços a serem praticados pela Recorrente, por
parte do Estado, em valores abaixo da realidade e em
desconformidade com a legislação aplicável ao setor constitui-se em
sério empecilho ao livre exercício da atividade econômica, em
desrespeito ao princípio da liberdade de iniciativa.
Ademais, o estabelecimento de regras bem definidas de intervenção
estatal na economia e sua observância são fundamentais para o
amadurecimento das instituições e do mercado brasileiros,
proporcionando a necessária estabilidade econômica que conduz ao
desenvolvimento nacional.
No caso, o Estado, entendendo por bem fixar os preços do setor,
elaborou legislação em que estabelecia parâmetros para a definição
daqueles. Celebrou contrato com Instituição privada, para que essa
fizesse levantamentos que funcionariam como embasamento para a
fixação dos preços, nos termos da lei. Mesmo assim, fixava-os em
valores inferiores. Essa conduta, se capaz de gerar danos patrimoniais
ao agente econômico, no caso, a Recorrente, por si só, acarreta
inegável dever de indenizar (art. 37, § 6.º).
O dever de indenizar, por parte do Estado, no caso, decorre do dano
causado e independe do fato de ter havido ou não desobediência à lei
específica. A intervenção estatal na economia encontra limites no
princípio constitucional da liberdade de iniciativa, e o dever de
70
indenizar (responsabilidade objetiva do Estado) é decorrente da
existência do dano atribuível à atuação do Estado.
(...)
No caso, o acórdão recorrido ignorou os prejuízos causados à
recorrida pelo poder público, prejuízos apurados na instância
ordinária, inclusive mediante perícia. Ignorou, olimpicamente, os
prejuízos, ao curioso argumento de que assiste ao Estado o poder
discricionário “na adequação das necessidades públicas ao contexto
econômico estatal”. É dizer, com base nessa discricionariedade
inadmissível num Estado de Direito, é possível ao Estado, ao intervir
no domínio econômico, desrespeitar liberdades públicas e causar
prejuízos aos particulares, impunemente.
Esclareça-se, ao cabo quase em termos de repetição que não se trata,
no caso, de submeter o interesse público ao interesse particular da
Recorrente. A ausência de regras claras quanto à política econômica
estatal, ou, no caso, a desobediência aos próprios termos da política
econômica estatal desenvolvida, gerando danos patrimoniais aos
agentes econômicos envolvidos, são fatores que acarretam
insegurança e instabilidade, desfavoráveis à coletividade e, em última
análise, ao próprio consumidor.
Voto de vista do Senhor. Ministro JOAQUIM BARBOSA
O tabelamento de preços de venda para o setor sucroalcooleiro,
estabelecido pelo governo federal com o objetivo de diminuir as
diferenças regionais e controlar o mercado, não reservava ao particular
nenhuma outra opção senão a de se adequar às normas impostas e
comercializar seus produtos com os preços determinados pelo Estado.
Contudo, o controle de preços é forma de intervenção do Estado na
economia e somente pode ser considerado lícito se praticado em
caráter de excepcionalidade, uma vez que a atuação do Estado está
limitada pelos princípios da liberdade de iniciativa e de concorrência
(art. 170, caput e IV, da Constituição de 1988, e art. 157, I e V, da
Constituição de 1967/1969).
Não pode o governo suprimir integralmente a liberdade de
concorrência e de iniciativa dos particulares sem que haja
razoabilidade nessa medida, vale dizer, sem que ela decorra de uma
situação de anormalidade econômica tal que seja imprescindível impor
restrição tão radical e, por fim, desde que os preços fixados não sejam
inferiores aos custos de produção.
Luis Roberto Barroso, com precisão, evidencia que “impor ao
empresário a venda com prejuízo configura confisco, constitui
privação de propriedade sem devido processo legal (art. 5.º, LIV). E
mais: é da essência do sistema capitalista a obtenção do lucro. O preço
de um bem deve cobrir o seu custo de produção, as necessidades de
reinvestimento e a margem de lucro”. BARROSO, Luis Roberto. A
crise econômica e o direito constitucional. Revista Jurídica da
Procuradoria Geral do Distrito Federal, n. 12, p. 34-74, out./dez.
1993.
Como discorrido, a aplicação dos artigos 196 e 197 da Constituição
Federal não inibe a incidência do artigo 170 da Carta para a iniciativa privada, devendo
haver a aplicação integrada desses artigos na criação de leis relativas à iniciativa privada
71
em ações e serviços de saúde e em sua aplicação, o que não ocorre com os controles de
preços.
Dito e demonstrado, portanto, que qualquer controle de preços é
inconstitucional, por afronta ao artigo 170 da Constituição Federal, poderíamos encerrar
este trabalho afirmando que as normas de substituição ao mercado com a fixação de
preços, notadamente o controle de preços de medicamentos e o controle de preços e
planos individuais de saúde, são inconstitucionais.
Contudo, para além dessa inconstitucionalidade flagrante, temos outros
aspectos a analisar do ponto de vista da própria utilidade das citadas normas no alcance
da meta constitucional, ou seja, qual a resposta para a pergunta: Estas normas tendem à
ampliação do acesso à população às ações e serviços de saúde?
A questão não tem importância puramente econômica, pois, como já
demonstramos os artigos 196 e 197 da Constituição Federal determinam que as leis e
sua aplicação, pelo menos, tendam à ampliação do acesso da população às ações e
serviços de saúde. Sendo assim, como vimos dizendo devemos avaliar, o que faremos
mais adiante, se o controle de preços pode ou não colaborar com este objetivo do ponto
de vista da ciência econômica para avaliar a constitucionalidade das normas jurídicas.
Uma resposta negativa a esta avaliação encerrará mais uma inconstitucionalidade do
citado controle de preços, agora por afronta aos artigos 196 e 197 da Constituição
Federal.
Dessa forma, para alcançar o tema, além do estudo do Direito, teremos
que analisar alguns aspectos econômicos para verificar a forma da regulação imposta
pelo Estado brasileiro no tocante às atividades de saúde e sua conveniência em
comparação com os resultados gerados pela liberdade de mercado, pois “se o sistema de
mercado assegura o uso eficiente dos recursos para a produção de bens de caráter
privado, a regulamentação tem como condição necessária a existência de falhas de
mercado”68 . É claro, esta regulamentação deve ser eficiente no seu combate.
68
PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 230.
72
5.1. O mercado de produtos e serviços para saúde
Qualquer relação de compra e venda envolve os mesmos aspectos
básicos: um vendedor, um produto ou serviço, um comprador e um pagamento, cuja
representação é o preço. Em uma relação simples entre dois indivíduos, estes negociam
até comporem um equilíbrio satisfatório de seus interesses contrapostos, sendo, então,
realizado o negócio.
Normalmente, teremos mais de um vendedor e mais de um comprador e
também mais de um produto ou serviço que podem ser comprados, seja um substituto
do outro ou não, de modo que temos uma grande interação entre todas essas variáveis.
Dentro de um modelo de pura concorrência, supõe-se sempre ser a
quantidade procurada uma função do preço, isto é, os consumidores
irão amoldar o seu desejo de obter determinado bem ou serviço ao
preço por eles encontrado no mercado69 .
O estudo das relações verdadeiras que se estabelecem entre as diversas
combinações de tais variáveis é feito por meio de uma abstração que pretende isolar o
ambiente em que elas ocorrem, o chamado mercado.
O mercado pode ser estudado em suas características globais ou
segmentado nos chamados mercados relevantes, que comporão o ambiente em que
determinados agentes econômicos interagem entre si. Em geral os mercados relevantes
são definidos por produtos passíveis de serem intercambiados 70 .
O mercado relevante é o ambiente em que as empresas efetivamente
competem entre si pela compra, ou seja, pelo dinheiro de seu consumidor em relação a
produtos intercambiáveis.
Esse ambiente pode ser segmentado tanto geograficamente quanto em
relação ao próprio produto. Para definição geográfica do ambiente importa a verificação
da mobilidade dos consumidores para a compra dos produtos em um ou outro território.
69
NUSDEO, Fábio Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 227.
“A delimitação material do mercado é feita a partir da perspectiva do consumidor. O mercado relevante
abrange todos os produtos ou serviços pelos quais o consumidor poderia trocar, razoavelmente, o
produto ou serviço acerca de cuja produção ou distribuição se pesquisa a ocorrência de infração contra
a ordem econômica. Se a me rcadoria ou o serviço pode ser perfeitamente substituído, de acordo com a
avaliação do consumidor médio, por outros de igual qualidade, oferecidos na mesma localidade ou
região, então o mercado relevante compreenderá também todos os outros produtos ou serviços
potencialmente substitutos.
A definição geográfica e material do mercado relevante, portanto, apenas pode ser feita mediante análise
casuística” (COELHO, Fábio Ulhoa. Direito antitruste brasileiro: comentários à Lei n. 8.884/94. São
Paulo, Saraiva, 1995, p. 58).
70
73
Dessa forma, temos que apenas produtos intercambiáveis estarão
incluídos em um mercado relevante por conta da possibilidade de o consumidor
substituir livremente um pelo outro e satisfazer sua necessidade, salientando que
podemos ainda incorrer no que Ana Maria Nusdeo 71 chama de concorrência
monopolística, que ocorre quando não há realmente um monopólio ou oligopólio.
Contudo, na visão do consumidor, há diferenciações entre os produtos que fazem com
que um não concorra com o outro em razão da inocorrência da percepção da
intercambialidade 72 .
Deve ser observado que, embora se estabeleçam critérios para a
definição do mercado relevante, sua aplicação – e mesmo o próprio
estabelecimento dos critérios – pode levar a diferentes resultados. Ora
ampliando excessivamente o mercado em questão, ora restringindo-o.
Em geral, sua delimitação mais ampla tende a descaracterizar a
exigência de poder de mercado, pois mais produtos serão tidos como
sucedâneos. Ao contrário, sua delimitação muito estreita implicará a
identificação de um poder de mercado possivelmente superestimado.
A insistência de critérios únicos de definição do mercado relevante e
sua influência na análise da existência de poder de mercado propicia
uma margem de discussão sobre suas fronteiras pelas partes
envolvidas numa operação sob exame de autoridades antitruste e,
mesmo, a divergência da doutrina com rela ção aos critérios mais
acertados para a definição do mercado relevante. Nesse último caso,
freqüentemente, a discussão tende a um caráter ideológico. Assim,
aqueles adeptos de uma política antitruste mais severa, confiantes na
necessidade de prevenir a concentração de poder de mercado, tenderão
a defender critérios de definição do mercado relevante mais
restritivos. O contrário se passará com os defensores de uma maior
71
NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da
concentração de empresas. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 35.
72
“Podemos distinguir duas fontes de diferenciação de produto: real e informacional. A primeira,
relativamente menos importante para a determinação de barreiras à entrada, consiste na diferença de
atributos físicos ou locacionados entre o produto de uma firma estabelecida e os produtos da firma
entrante. Uma empresa já reconhecida no mercado pode apresentar um produto que atenta com maior
acuidade aos elementos demandados pelos consumidores, de tal modo que estes possam aceitar pagar
um preço superior àquele que seria obtido pelo produto das firmas entrantes. Diferenciação do produto
real é especialmente relevante na concorrência entre marcas conhecidas dos consumidores, não sendo
característica tão importante na concorrência entre uma firma estabelecida e os concorrentes potenciais
entrantes. Não havendo segredos industriais, patentes para a exploração do produto ou propriedade de
ativos exclusivos, as firmas entrantes poderão produzir produtos idênticos aos da firma estabelecida.
Mais relevante para o estabelecimento de barreiras à entrada é a diferenciação de produtos de caráter
informal. Os produtos de uma firma estabelecida podem ser preferidos por dois motivos. De um lado, o
acúmulo de esforços de propaganda e marketing tornam uma marca conhecida, o que informa ao
consumidor sobre as características do produto. Em igualdade de condições, o consumidor irá preferir o
produto do qual ele tem informações (isto é, o produto da firma já estabelecida), o que caracteriza uma
barreira à entrada. De outro lado, o consumo continuado do produto já estabelecido, mesmo sem
esforços de propaganda e marketing, estabelece reputação sobre suas características. Essa reputação
pode garantir a fidelidade do consumidor, o que corresponde, mais uma vez, a uma barreira de entrada”
PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marcos A. S. (Org.). Manual de economia. p. 211.
74
margem de liberdade econômica, que acreditam na possibilidade de
concorrência mesmo em cenários de maior concentração econômica73 .
Nos mercados relevantes, as empresas concorrem entre si pela
preferência do consumidor, pelo produto ou serviço específico oferecido por elas,
buscando uma situação de conforto onde não sofram ataques de outras empresas para
deslocar esse consumidor74 .
Na visão liberal clássica, o mercado teria condições de se auto-regular,
gerando um ótimo aproveitamento dos bens econômicos por meio da competição de
seus participantes.
Na concorrência perfeita, o preço surge natural e objetivamente da
interação recíproca dos inúmeros agentes em presença. Funciona
soberano, sem ressalvas à lei da oferta e da procura, e tanto
consumidores como compradores pautam suas decisões única e
exclusivamente pelas suas utilidades em cotejo com o preço
objetivamente fixado pelo mercado, que é único para todos eles. Dizse que nele o consumidor é rei, já que todo o aparato produtivo se
expandirá ou se contrairá em função do que ele, consumidor, decidir
(princípio da soberania do consumidor). Os produtores tenderão a
oferecer o máximo de quantidade compatível com os seus custos. Irão,
portanto, até o ponto em que o preço iguale o seu custo marginal,
deixando de oferecer os bens quando por excesso de oferta o preço de
mercado cair abaixo do custo marginal75 .
Contudo, a existência de tais mercados não passa de uma abstração, na
medida em que as condições para sua existência não estão presentes, exceto em ocasiões
muito raras e efêmeras 76 , quais sejam:
73
NUSDEO, Ana Maria O. Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da
concentração de empresas. p. 30 e 31.
74
“A concorrência deve ser entendida como a luta entre as firmas pelo estabelecimento de poder de
mercado; é o processo de ‘enfrentamento’ das firmas como representantes dos diversos capitais
individuais, isto é, como unidades de valorização e expansão do capital global. Alimentada pelo
progresso técnico, a concorrência é um processo de criação constante, embora descontínuo, de
assimetrias entre as firmas. O mercado é onde a concorrência acontece, onde esta atua como portadora
de inovações e de mudanças qualitativas responsáveis pela seleção de agentes aptos ao processo. A
firma opera sempre na tentativa de concentrar o mercado a seu favor, como se a situação de monopólio
fosse seu objetivo no processo de concorrência (POSSAS, 1996)” (SENHORAS, Elói Martins, Defesa
da concorrência: políticas e perspectivas . Caderno de Pesquisas em Administração, v. 10, n. 1, jan.mar. 2003).
75
NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 264.
76
“Uma presunção básica para a funcionalidade dos mercados sempre foi a de serem os fatores de
produção dotados de razoável mobilidade, a fim de poderem reagir aos sinais indicativos, representados
pelos preços, os quais promoveriam em curto tempo os deslocamentos necessários a fim de se
reverterem automaticamente certas situações indesejáveis. A essa capacidade de autocorreção do
mercado chamou-se de automatismo. E o nome é bom, porque os empresários-produtores eram vistos
como autômatos, para, guiados pelo seu hedonismo, poderem responder rápido e fielmente às decisões
soberanas do consumidor-rei, via impulsos do sistema de preços. Tal agilidade, entretanto, na prática
não ocorre.
75
(i)
tamanho e número de produtores e consumidores, que estes sejam
incapazes de individualmente afetar a conduta dos demais
concorrentes (inexistência de poder de mercado);
(ii)
homogeneidade dos produtos, ou seja, os consumidores trocam
livremente um produto pelo outro, apenas por influência do preço;
(iii) acesso pleno as informações, tanto por parte de consumidores
quanto de fornecedores, de modo que todos conheçam os produtos,
os níveis de consumo e preços praticados no mercado;
(iv) mobilidade total dos fatores de produção e agentes do mercado
(inexistência de barreiras para entrada e saída), ou seja, qualquer
agente econômico pode assumir qualquer posição neste mercado;
(v)
inexistência de economias de escala de produção, o que, em nossa
opinião, está incluído na mobilidade total, na medida em que a
necessidade de um investimento ou alcance de uma escala de
produção obviamente será uma barreira;
(vi) inexistência de externalidades. Posteriormente o conceito será mais
bem explorado, mas por agora podemos tê- lo como malefícios ou
benefícios não refletidos no preço do produto.
Um instrumento importante para a análise do comportamento dos agentes
econômicos nos mercados relevantes é a Teoria dos Jogos 77 . Os matemáticos sempre
Existe, isto sim, uma rigidez mais ou menos pronunciada em quase todos os fatores, impedindo-lhes esses
deslocamentos céleres automáticos e oportunos. Rigidez de toda ordem: física, operacional,
institucional, psicológica” (NUSDEO, Fabio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p.
139 e 140).
77
“Os jogos, que são objeto de análise econômica, por constituírem método de investigação científica,
têm conotação específica e tratamento formal, que é fornecido pela teoria dos jogos. Esta tem como
objetivo a análise de problemas por meio da interação entre os agentes, na qual as decisões de um
indivíduo, firma ou governo afetam as decisões dos demais agentes ou jogadores ou vice-versa. A
teoria dos jogos, definida como estudo das decisões em situação interativa, não se restringe à
Economia, sendo também bastante utilizada em Ciência Política, Sociologia, estratégia militar, entre
outras.
Dentro da Economia, ou da Microeconômica, a teoria dos jogos procura analisar o processo de tomada de
decisão em situação um pouco diferente da preconizada pela concorrência perfeita. Do mesmo modo
que a concorrência perfeita, parte-se do pressuposto que os agentes tomam decisões intencionalmente,
ou seja, procurando atingir um objetivo, e racionalmente – as ações tomadas são consistentes com a
busca do objetivo. Além disso, na teoria dos jogos, assim como na Microeconômica clássica,
pressupõe-se comportamento maximizador, ou seja, o agente toma as decisões procurando ‘maximizar’
seus objetivos, buscando o máximo lucro, a máxima satisfação, entre outros. O que diferencia a teoria
dos jogos é o ambiente no qual essas decisões (intencionais, racionais e maximizadoras) são tomadas.
Na microeconômica tradicional, o agente decide com base em um conjunto de informações, num
ambiente dito paramétrico, ou seja, ambiente em que o resultado depende apenas da sua decisão, não
importando as ações dos demais agentes. Já em teoria dos jogos, trabalha-se com o chamado ambiente
estratégico, no qual o resultado de determinada ação depende não apenas dela, mas também das ações
76
estudaram os jogos do ponto de vista da análise das variáveis possíveis e prováveis, de
modo que com o avanço dos estudos de lógica e probabilidades foi-se desenvolvendo a
Teoria dos Jogos, que teve sua aplicação em economia estudada já na primeira metade
do século XIX, quando Augustin Cournot analisou a questão da interdependência nas
situações de duopólio.
Diversos outros trabalhos influenciaram a Teoria dos Jogos, como por
exemplo quando o matemático alemão Zermelo provou o teorema de que nos jogos nãocooperativos de duas pessoas, com ações seqüenciais e informação completa, é possível
determinar todas as jogadas. O mesmo ocorreu em 1944 no Livro Teoria dos Jogos e
Comportamento Econômico, pelo matemático Jonh von Neuman e o economista Oskar
Morgenstein.
Porém, uma contribuição que pode ser considerada decisiva foi dada nos
anos 1950 por John Nash, ante a descoberta do chamado equilíbrio de Nash (também
chamado equilíbrio de Nash-Cournot), segundo o qual em jogos não-cooperativos é
possível uma solução estável (que não leva ao arrependimento dos jogadores) quando os
jogadores fizerem opções que lhes garantam uma situação favorável por força da opção
dos demais, ou seja, ainda que não seja a opção ótima, que poderia ser impedida pelas
opções dos outros jogadores, vale notar que pelo jogo de variáveis é possível ser
alcançada mais de uma solução estável, de modo que a análise dependerá de
refinamentos relativos às percepções e preferências dos jogadores.
Os jogadores são agentes econômicos que tomam decisões. São
consumidores buscando maximizar sua satisfação, firmas que
procuram maximizar seu lucro ou aumentar sua fatia no mercado,
investidores que devem decidir entre tomar ou não um empréstimo,
bancos que têm de decidir se concedem ou não empréstimos, ou
mesmo o governo que tem de tomar a decisão de implementar
determinada medida econômica. Esses jogadores são, a princ ípio,
considerados racionais e têm preferências em relação aos resultados
do jogo. Na tomada de decisão, eles procuram maximizar suas
preferências78 .
É interessante observar a contribuição dessa análise ao debate relativo à
eficácia das agências regulatórias independentes, que são criadas com o objetivo de
aumentar a eficácia do jogador Governo ao aumentar a sua agilidade na resposta aos
movimentos dos demais jogadores – agentes econômicos, que tomarão decisões em
relação aos movimentos governamentais sejam legislativos, executivos ou judiciários.
dos outros tomadores de decisão (PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org). Manual de
economia. p. 244 e 245).
78
Idem, ibidem, p. 247.
77
Nesse aspecto específico, fazemos uma pequena digressão para cruzar
com tais observações outra teoria que nos parece também de grande utilidade,
especialmente no tocante à necessidade da velocidade de regulação estatal: trata-se da
Teoria dos Sistemas de Nik las Luhmann.
A Teoria dos Sistemas parte da análise da comunicação compartilhada
para o exercício de uma determinada função na sociedade moderna, portanto jogos de
informação aberta.
Os diversos tipos de comunicação são definidos pelos códigos utilizados
nessas mesmas comunicações, que conformam sistemas com funcionamento interno
auto-referencial que os diferencia do ambiente no qual se encontram. Assim, temos
diversos sistemas no ambiente da sociedade moderna: sistema político, sistema jurídico
e sistema econômico, apenas para citar os que nos interessam no momento.
Tais sistemas são operativamente fechados, pois o pressuposto de uma
comunicação
sempre
será
outra
comunicação
(autopoiese).
Contudo,
são
cognitivamente abertos, já que estão sujeitos a “irritação” pelos outros sistemas (para o
qual são meramente o ambiente), ou seja, traduzem e processam comunicações vindas
de outros sistemas.
As informações recebidas de um sistema pelo outro são selecionadas e
processadas de acordo com os rituais e regras do sistema receptor. Tal comunicação dáse por meio dos chamados acoplamentos estruturais.
Assim, para Luhmann o sistema jurídico está acoplado estruturalmente
ao sistema econômico, por meio dos contratos e da propriedade, e ao sistema político
por meio da Constituição, por razões e formas que adiante veremos.
Na sociedade moderna a enorme possibilidade de escolhas gera uma alta
complexidade, pois após uma escolha sempre surgirá seu desdobramento em diversas
escolhas decorrentes e assim por diante.
Surge então o Direito, que tem como uma de suas funções restringir o
número de escolhas possíveis, por meio do código lícito e ilícito. O Direito alcança este
resultado com a aplicação de modais deônticos que banem da possibilidade das
condutas lícitas aquelas que se quer evitar, dando ao sujeito de direitos e obrigações
menos opções de escolhas válidas reconhecidas pelo sistema.
Dessa forma, o Direito alcança uma generalização congruente das
expectativas normativas, já que todos “sabem a regra do jogo”, todos sabem quais são
as comunicações possíveis no sistema, posto que o Direito garante que as comunicações
78
vedadas, os atos ilícitos, serão objeto de uma decisão previamente programada pelo
próprio sistema por meio de um “gatilho” bicondicional79 .
Os acoplamentos estruturais decorrem da prestação que um sistema
entrega para o outro e das interferências que um sistema gera no outro por conta dessa
prestação.
Existe um duplo intercâmbio de prestações entre o sistema jurídico e o
sistema político.
O sistema político, por meio do Congresso, cria as normas jurídicas e
dessa maneira define as expectativas normativas que servirão para o sistema jurídico
aplicar o código lícito e ilícito, de onde se nota que o sistema político se utiliza de um
outro código também binário, qual seja o de governo/oposição, ou o de maioria/minoria.
Por isso é que o acoplamento estrutural entre os sistemas dá-se através da
Constituição, porque lá é que se encontra o ritual por meio do qual o sistema jurídico
recebe comunicações do sistema político, conforme ficou claro no início deste trabalho,
quando apresentamos a evolução do nosso tema nas Constituições Federais brasileiras.
É lá que está o processo legislativo.
Por um lado, o Direito reforça as premissas normativas recebidas do
sistema político pela sua aplicação repetitiva e, por outro, alivia o sistema político do
fardo do uso da violência, interrompendo um ciclo do uso da violência.
O sistema político é aquele que, na criação do Estado, recebe dos
cidadãos o monopólio do uso da força. Os cidadãos abdicam de resolver suas disputas
pelas próprias mãos e subordinam-se a um poder superior, seja autoritário seja
democrático, que resolverá as questões e implementará com o uso da força a solução.
Uma vez que o Direito surge como um sistema que se responsabiliza
pelas decisões quanto à aplicação ou não da força, por meio de processos pré-definidos
com uma série de garantias, com resultados pré-programados, afasta do sistema político
as eventuais cargas da insatisfação geradas por elas.
Por outro lado, o sistema político garante a implementação das decisões
judiciais através do uso da força, conforme definido pelo sistema jurídico.
79
Parece-nos que o Direito trabalha com o bicondicional e não apenas o condicional, já que apenas se a
hipótese ocorrer o conseqüente será legítimo, muito embora muitos bicondicionais diferentes possam
apontar para a mesma conseqüência (p. ex., muitos tipos de infração diferentes podem acarretar a
aplicação de uma multa), mas apenas se um deles efetivamente ocorrer o conseqüente ocorrerá (a multa
só será aplicada se pelo menos uma das infrações for cometida).
79
É importante observar que o sistema político gera decisões voltadas para
o futuro, por meio de uma perspectiva teleológica, e o sistema jurídico, por sua vez,
gera decisões previamente programadas, de uma perspectiva condicional, sempre em
um ciclo de comunicação, por meio do acoplamento estrutural entre os dois sistemas.
Na regulamentação de mercado realizada pelo Poder Executivo com a
faculdade para o órgão regulador de criar normas jurídicas, o perigo é a reunião do
poder político com o poder jurídico, já que os cargos nas agências regulatórias, apesar
de terem a garantia de independência, têm indicação política, de modo que o sistema
jurídico pode perder a função de conter e legitimar o poder político, o que deve ser
verificado em cada caso, de acordo com o processo de decisão e competências de cada
agência reguladora.
Já para o sistema econômico, que funciona segundo o código de tem/não
tem, o sistema jurídico entrega a prestação de garantir o respeito à propriedade, já que
este conceito é meramente jurídico e cultural, pois não existe vinculação de fato entre as
pessoas e as coisas, existindo apenas uma vinculação jurídica, respeitada pelos demais
indivíduos, bem como a prestação de garantir que os contratos serão respeitados, sob
pena de serem objeto de uma decisão judicial, que será aplicada pelo sistema político.
Assim, está muito presente a função do Direito de garantir as
expectativas dos agentes econômicos, gerando a base de segurança sem a qual os
negócios não se desenvolveriam.
No caso da regulação econômica, podemos supor que o sistema jurídico
também tem a incumbência de garantir o saneamento do mercado para que o sistema
econômico possa funcionar adequadamente o mais próximo possível da concorrência
perfeita.
Contudo, os sistemas jurídico e econômico têm grandes diferenças, não
só de código, mas especialmente de tempo. O tempo interno do sistema jurídico é
muitas vezes mais lento do que o sistema econômico, o que gera grandes assincronias,
pois o sistema jurídico é mais hierarquizado, além de ter mais procedimentos formais.
Ao passo que o sistema econômico tem menos hierarquia e seus procedimentos são
dinâmicos e casuísticos – especialmente se verificarmos a situação brasileira, em que
temos um processo legislativo (ritual do sistema jurídico que traduz as comunicações do
sistema político) extremamente lento e incapaz de responder em tempo eficaz aos
anseios sociais e movimentos dos agentes econômicos.
80
Surge aqui o cerne da dificuldade na atividade de regulamentação
econômica, uma vez que o órgão regulador é criado pelo Direito e este dita seus
procedimentos, cria normas jurídicas (ainda que infralegais), que no caso das agências
regulatórias têm por finalidade a implementação de uma política pública e interferem
grandemente no sistema econômico.
O desafio regulatório é criar e atualizar normas jurídicas com a agilidade
necessária para acompanhar as mudanças no sistema econômico, evitando sua
obsolescência, que pode gerar tanto sua ineficácia, quanto o engessamento prejudicial
ao sistema econômico, tudo is so sem afetar a segurança jurídica que é justamente a
prestação do sistema jurídico.
Simultaneamente, é preciso conciliar o sistema político, que impõe as
políticas públicas que se pretende alcançar, com o sistema econômico, que por sua
maior velocidade e flexibilidade se adapta rapidamente às novas normas e diretrizes,
causando muitas vezes distorções que geram o aproveitamento predatório das novas
condições, minando a própria política pública que se pretendeu implementar.
Sob o enfoque da Teoria dos Jogos, temos que o jogador/agente
econômico se adapta rapidamente à jogada do jogador/governo, que demora demais
para responder a essa adaptação.
Na visão de Luhmann, tal nível de interferência entre os sistemas seria
inconciliável. Contudo, a atual proposta para solução de todas essas incongruências é a
criação das agências regulatórias independentes, nas quais (i) existe mandato fixo para
os dirigentes e orçamento próprio para minorar os efeitos danosos da influência política
e (ii) é conferida uma maior autonomia legislativa para os dirigentes dessas agências,
imprimindo-lhes agilidade suficiente para acompanhar o tempo do sistema econômico.
Veremos mais adiante como se pode tentar manter um nível razoável de separação entre
os sistemas mesmo com tais problemas.
A Teoria dos Jogos também trata de comunicação, já que
um jogo também deve definir que tipo de informações está disponível
para os jogadores. Em outras palavras, deve-se ter respostas para
perguntas do tipo “o que o jogador sabe?” ou “ele sabe sobre as
preferências dos outros jogadores, sobre as ações permitidas aos
outros jogadores, sobre os resultados a serem alcançados?”. Chamamse jogos de informação completa aqueles nos quais os jogadores
possuem todas as informações necessárias para a tomada de decisão.
Esses são os mais conhecidos e mais facilmente analisados. Quando
81
parte das informações não está disponível, temos um jogo de
informação incompleto 80 .
Dessa forma, será fundamental descobrir como transita a informação nos
jogos que se realizam no sistema econômico. Podemos ter
jogos de informação perfeita (ou seqüências) e os jogos de informação
imperfeita (ou simultâneos). Nos jogos em que a jogada é simultânea,
como o “par ou ímpar”, a informação é imperfeita, já que um jogador
não sabe o que outro vai fazer. Nos jogos cujas ações ocorrem em
seqüência, como o xadrez, a inf ormação é perfeita, pois o outro
jogador sabe o que o outro fez antes de fazer sua ação81 .
No jogo de mercado é possível observar que estamos diante de um jogo
seqüencial, no qual cada jogador faz um movimento de mercado e os demais agem em
resposta a ele, o que é facilmente perceptível, por exemplo, em pregões de bolsa.
Os agentes econômicos dentro do jogo adotarão condutas buscando
maximizar os seus resultados, podendo tais condutas ser chamadas de estratégias82 ,
classificadas pela Teoria dos Jogos na tentativa de prever os movimentos futuros dos
jogadores.
80
PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 248 e 249.
Idem, ibidem, p. 248 e 249.
82
“Uma estratégia é chamada de dominante em relação a outra quando os resultados obtidos com sua
utilização são melhores em relação aos resultados obtidos com outra estratégia, qualquer que seja a
atuação dos demais jogadores. Essa estratégia é, assim, melhor que as outras e pressupõe-se que é a que
deverá ser escolhida pelo jogador.
Outra forma de escolher a estratégia, quando não existe estratégia dominante, é o chamado maxmin.
Nesse caso, o jogador procura maximizar o mínimo que ele pode assegurar para si, independentemente
das estratégias dos outros jogadores. A estratégia maxmin é a que garante ganho mínimo para o
jogador. A idéia aqui é a seguinte: não sei o que fazer, farei aquilo que me der “o menos pior” dos
piores resultados possíveis.
O conceito de equilíbrio (ou solução) de Nash é também conhecido como o do não arrependimento. A
combinação de estratégias escolhidas leva a um resultado no qual nenhum dos jogadores
individualmente se arrepende, ou seja, esse jogador não poderia melhorar a sua situação unilateralmente
modificando a estratégia escolhida. Numa situação em que se utiliza o conceito de Nash, um jogador
escolhe a melhor estratégia, dada a escolha do outro.
Teoricamente, a maior parte dos jogos que são modelados pela teoria econômica, como os exemplos
citados até aqui, são definidos como jogos não-cooperativos, nos quais cada agente econômico busca
maximizar seu payoff efetivando ações sem se preocupar com o bem-estar do seu oponente ou o
estabelecimento de acordos. Não se pode concluir, no entanto, que o mundo real seja não-cooperativo.
Existem inúmeras situações cooperativas na sociedade. A criação de associações, de sindicatos e
cooperativas são exemplos de cooperação entre os agentes. Tais situações são consideradas, pela teoria
dos jogos, como jogos cooperativos, cuja sofisticação matemática e complexidade dos conceitos
escapam dos objetivos de um livro introdutório. Os jogos não-cooperativos, no entanto, ainda são os
mais utilizados nos livros-textos e cursos, em vista da facilidade com que são aplicados a inúmeras
situações estudadas pela Economia.
Outra questão importante diz respeito ao número de vezes que o jogo é realizado. A repetição de um jogo
pode dar início a um processo de aprendizagem acerca das estratégias dos jogadores, levando a
resultados diferentes caso fosse realizado apenas uma única vez. Imagine sucessivas repetições do jogo
dilema dos prisioneiros. Nesse caso é difícil imaginar que sempre o resultado será os dois confessarem.
Enfim, são inúmeras as possibilidades na teoria dos jogos, o que talvez explique a crescente
popularidade que ela vem alcançando dentro da teoria econômica” (PINHO, Diva B.;
VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 256).
81
82
No sistema econômico partimos da premissa de que os jogadores não
cooperam mas competem entre si. As situações em que há cooperação entre os
jogadores poderão ser classificadas como práticas cartelizadas, sempre que intentarem o
abuso de posição dominante (individual ou obtida pelos cooperativos) e prejudicarem a
livre concorrência.
Com base na Teoria dos Jogos, fica cristalino o conceito de poder de
mercado, que pode se expressar sinteticamente como o potencial de influenciar o
comportamento dos demais agentes econômicos em um dado mercado relevante, ou
seja, um jogador pode ter o poder de dominar o jogo, sem que os demais possam se
contrapor a esse domínio, quaisquer que sejam as suas estratégias.
O sentido de dominação ou poder de mercado expressa, em síntese, a
capacidade de uma empresa ou grupo de empresas de aumentar os
preços dos seus produtos acima do custo marginal, sem perder
clientes, i.e., agindo por razoável período de tempo
independentemente dos concorrentes e dos consumidores. A
dominação de mercado pode também ser expressa, embora com
menos freqüência, mediante prática temporária de preços predatórios,
i.e., abaixo do custo marginal.
O complexo teste jurídico-econômico da dominação exige uma análise
estrutural do mercado adequadamente definido, no qual os
concorrentes atuam. Ponto de partida dessa análise é a identificação
do mercado relevante e da participação de mercado, embora o
percentual de market share não seja um dado bastante em si para
denotar dominação. É necessário, por exemplo, verificar a existência
de substitutos próximos para um produto, processo ou obra objeto da
ou relacionado com o Direito de propriedade 83 .
Partimos então para a análise das falhas de concorrência presentes no
mercado de saúde como um todo para depois tratarmos especificamente dos
medicamentos e dos planos e seguros saúde, posto que cada um tem as peculiaridades
próprias de seus mercados relevantes, embora com semelhanças, pois no que tange à
saúde sempre teremos fatores que geram o poder de mercado, como a concentração de
mercados relevantes, estimulada pela existência de grandes barreiras à entrada de novos
concorrentes, e outros que agravam o problema econômico do acesso da população,
como a (i) assimetria de informações, (ii) os problemas de agência e (iii) a
inelasticidade da procura por se tratarem de bens essenciais – que também traz em si um
problema social, como já tratamos.
83
FONSECA, Antonio, Concorrência e propriedade intelectual, p. 13.
83
5.1.1. Concentração em mercado relevante
Provavelmente o fator mais relevante para a alta de preços de qualquer
produto e, portanto, de maiores prejuízos para os compradores, consumidores finais e,
no caso de saúde para a população, é a alta concentração dos fornecedores que por falta
de competidores exploram o mercado obtendo lucros abusivos.
A concentração em um mercado relevante pode ocorrer como
decorrência: (i) da competição, na qual os agentes econômicos obtêm parcelas maiores
de mercado por seus méritos; (ii) de um monopólio estabelecido pelo sistema jurídico;
(iii) de um monopólio natural, no qual as condições fáticas da exploração de dada
atividade econômica são tais que pode existir apenas um agente explorando a atividade;
(iv) da incorporação de concorrentes ou qualquer outra forma de agrupamento de
empresas; ou (v) da obtenção de controle de um agente sobre outros, de modo que gere
um poder de mercado em favor de um concorrente individual ou coletivamente
considerado.
Em resumo, a concentração econômica representa uma folha de
estrutura a inibir os mecanismos decisórios e controladores do
mercado. Em um mercado concentrado, a alta de preços proveniente
de um aumento da procura não necessariamente levará a um aumento
da oferta, pelo simples fato de ser mais fácil para as poucas unidades
nele atuantes conluiarem-se e elevarem mais os preços. Por outro lado,
estes poderão também subir, por iniciativas dos vendedores
conluiados, sem qualquer relação com uma possível elevação da
procura84 .
A concentração de fornecedores em um mercado relevante pode levar a
duas situações conforme o nível de concentração – o monopólio e o oligopólio, cuja
diferenciação dá-se apenas quanto às relações entre os que detêm o poder de mercado,
sem diferenciação quanto aos efeitos dessa concentração para o mercado, conforme se
infere da Resolução do CADE 20, de 9 de junho de 1999, na qual se definiu cartéis
como “acordos explícitos ou tácitos entre concorrentes do mesmo mercado, envolvendo
parte substancial do mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de
produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros
conjuntamente para níveis mais próximos dos de monopólio”, pelo que as afirmações
feitas neste item sobre o monopólio valem igualmente para o oligopólio.
84
NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 150.
84
A concentração de mercado relevante faz que os detentores do poder de
mercado resultante da concentração possam elevar seus preços com a segurança de não
perderem clientela.
Conforme aponta a ex-conselheira do CADE Neide Terezinha Malard:
1) o cartel orienta suas condutas tanto no sentido horizontal – fixando
preços, dividindo mercados ou promovendo acordos com o objetivo
de controlar a inovação de produto, estabelecer prazos de entrega,
discriminar preços, uniformizar serviços que podem ser prestados ao
consumidor, entre outras práticas; quanto no sentido vertical – fixando
preço de aquisição de matérias-primas ou serviços, impondo a venda
casada, organizando esquemas de distribuição, dentre outras
estratégias;
2) o cartel é um fenômeno coletivo que, embora agindo de forma
organizada, com objetivos claros e bem definidos, não se apresenta
nem formal, nem materialmente estruturado. Trata-se de organização
informal e clandestina, sancionada pelo ordenamento jurídico positivo
como conduta criminosa e danosa ao interesse público, repugnada pela
sociedade, a maior vítima de suas condutas; [...]
3) entre os participantes do cartel, nem sempre o jogo é aberto, pois
iminente a suspeita da não adesão e até de eventual traição. Se o cartel
funciona na forma esperada ou acordada por seus organizadores, duas
situações devem ocorrer: vende-se menos e os lucros obtidos são os
esperados 85 .
Porém, é importante notar que a atuação concertada de concorrentes
pode-se dar dolosamente na forma apontada, o que será caracterizado como cartel e
condenado pela legislação antitruste 86 ou, em mercados com poucos concorrentes de
peso, pela acomodação dos concorrentes alcançada ao longo do tempo, pela verificação
dos lances seqüenciais entre eles na definição de seus preços, o que não caracteriza
ilícito, porém pode trazer os mesmos efeitos indesejáveis, ainda que em menor grau.
A situação de concentração também pode ocorrer do ponto de vista do
comprador – são os chamados monopsônios e o oligopsônios, situação em que o poder
de compra está nas mãos de um ou de poucos agentes econômicos, o que lhes dá o
poder de impor preços e condutas aos vendedores. É o que ocorre, por exemplo, no caso
dos grandes supermercados, que por serem o único ou o mais importante canal de
85
MALARD, Neide Terezinha. Estudos introdutórios de direito econômico. Brasília : Brasília Jurídica,
1997. p. 65-74.
86
“Para a configuração da infração, é necessário que haja efetivo acordo entre os agentes envolvidos. Não
basta apenas o efeito da padronização de preços e condições de negócios. É indispensável que tenha
havido realmente algum tipo de entendimento entre os empresários com vistas ao tratamento
concertado da questão. Se muitos agentes de certo segmento de mercado praticam preços uniformes ou
paritários, mas não estabeleceram acordo de nenhum tipo nesse sentido, inexiste concerto e tampouco
infração” (COELHO, Fábio Ulhoa. Direito antitruste brasileiro: comentários a Lei n. 8.884/94. p. 66).
85
escoamento da produção de alimentos e saneantes, impõe seus preços aos fabricantes,
especialmente os pequenos fabricantes não detentores de poder de mercado.
Finalmente temos a possibilidade de formação de um duopólio, ou seja,
existe apenas um fornecedor e um comprador em um mercado relevante. Em tal
situação, estes vão se conluiar para conjuntamente explorar o próximo mercado, ou seja,
aquele em que o comprador é fornecedor, com melhores resultados para ambos87 .
A concentração de mercado não é necessariamente um mal, na medida
em que pode aumentar a eficiência da economia ao reduzir os custos de transação
(especialmente a concentração vertical) e aumentar o poderio econômico nacional e o
ganho de escala de produção; porém também pode levar a situações indesejáveis.
No monopólio, o fornecedor poderá impor seu preço aos compradores do
produto para maximizar seus lucros, uma vez que o cliente não terá a opção de trocar o
fornecedor do produto.
Certamente o aumento poderá ser tal que o comprador simplesmente pare
de adquirir o produto, situação em que o monopolista enfrentará uma queda em seu
faturamento e, portanto, em seu lucro em valores absolutos, o que o levaria a não adotar
tal estratégia 88 .
Assim, por força de seu poder de mercado, o monopolista sempre poderá
optar por reconstituir seus lucros simplesmente aumentando os preços para os
consumidores que não perdeu, até o limite em que comece novamente a perder clientes,
87
“Em tese os dois agentes em presença deveriam enfrentar uma situação de absoluto conflito de
interesses: o vendedor tentando obter o Máximo de remuneração por um mínimo de produto oferecido;
e, vice-versa, o comprador tentando conseguir o Máximo de produto com o mínimo dispêndio. No
entanto, esse conflito absoluto, que mais se aproxima de um impasse, acaba por se resolver via um
acordo entre o monopolista e o monopsonista no sentido de se associarem, com vistas a ambos
desfrutarem da posição de monopólio detida pelo segundo no mercado situado abaixo, isto é, naquele
no qual ele, monopolista ou oligopolista
Sim, porque, em tese, a situação descrita seria a de um insumo de produção único no mundo, disponível
apenas junto a uma única fonte – uma matéria -prima rara, um processo tecnológico especialíssimo –,
insumo esse passível de ser utilizado apenas por uma unidade produtora. Se esta for a situação, parece
claro que esta ultima será por uma vez monopolista na venda de seus produtos ou quando menos uma
oligopolista, admitindo a existência de sucedâneos para estes” (NUSDEO, Fábio. Curso de economia:
introdução ao direito econômico. p. 272-273).
88
“Note-se que, contrariamente ao sucedido no regime de concorrência perfeita para o monopolista, a
curva de procura não é horizontal, isto é, de elasticidade infinita para o monopolista, a curva de procura
é a curva de procura do mercado, já que ele concentra em si o atendimento de todo o mercado. Logo,
enquanto a única maneira de o vendedor em concorrência perfeita aumentar a sua receita é jogar maior
quantidade no mercado, o vendedor monopolista não necessariamente procederá assim, muito embora
possa também levar a sua produção até o ponto em que o custo marginal iguale o preço.
Isto não significa ser o hedonismo do monopolista, o seu desejo de lucros, maior do que o vendedor em
concorrência perfeita. A única diferença é ter o primeiro condições de fabricar este lucro, pela situação
por ele ocupada no mercado, que, no caso, deixa de ser uma estrutura de controle automático como na
concorrência pura. A rigor no monopólio deixa de existir o preço de mercado, pois ele será, em boa
medida, uma decisão do monopolista” (NUSDEO, Fábio. Op. cit., p. 269).
86
em um círculo vicioso, criando assim cada vez maiores barreiras ao acesso dos
consumidores a seus produtos, situação calamitosa para os produtos objeto do nosso
estudo, por conta de sua relevância social.
A ineficiência alocativa surge diretamente do exercício do poder de
monopólio, ou seja, do fato de o preço ser superior ao custo marginal.
Isso faz com que o consumo seja inferior àquele que seria socialmente
desejado, de tal modo que se abre espaço para a intervenção do Estado
no sentido de promover a concorrência e corrigir essa distorção. Mais
importante ainda é a ineficiência produtiva, que se refere à perda de
motivação por parte da firma que desfruta de lucros elevados,
refletindo-se em um pequeno esforço gerencial e produtivo. Sobre
isso, o ilustre economista John Hicks diz que “o pior custo dos
monopólios é a preguiça dos gerentes”. A concorrência inibe
diretamente esse tipo de ineficiência ao pressionar a empresa a lutar
pela sua sobrevivência. Uma ação do governo no sentido de promover
a concorrência pode, portanto, ser benéfica também nesse caso.
Finalmente a ausência de concorrência pode implicar ineficiência
dinâmica, uma vez que as firmas se vêem menos estimuladas a
promover investimentos em capacitação tecnológica. A concorrência é
o grande motor da busca de novos produtos, novos mercados e novos
processos produtivos. Sem concorrência o estímulo à atividade
inovativa vê-se diminuído 89 .
Voltando ao conceito de concorrência monopolística, verifica-se que é o
que ocorre com os produtos líderes de mercado, pois parte dos consumidores age como
se estes não pudessem ser substituídos, o que leva o monopolista “virtual” 90 a aumentar
seus preços para manter seu lucro absoluto, pelo aumento de sua margem de lucro,
apesar da diminuição do número de unidades vendidas, pois parte dos consumidores
está disposta a trocar o produto pelo seu similar mais barato.
Aspecto importante dos monopólios, especialmente para verificar se há
ou não o abuso do poder econômico e prejuízos à concorrência real, é observar a
conduta do monopolista diante da entrada de um novo concorrente em seu mercado
relevante, considerando que estaremos diante de um jogo de dois jogadores,
monopolista versus desafiante, não cooperativo e seqüencial (portanto de informação
completa).
Dadas estas regras, teremos que após a decisão do desafiante de entrar no
mercado relevante o monopolista poderá:
a. não tomar nenhuma atitude contra o desafiante e como apontado
acima decidir explorar apenas parte do mercado;
89
90
PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 215.
Palavra usada como contraposta a real, já que o monopólio não decorre da real comparação entre os
produtos, mas sim da percepção que o consumidor tem destes.
87
b. iniciar uma guerra de marketing contra o desafiante, tentando
bloquear a entrada deste por meio do uso de campanhas publicitárias, descontos para
intermediários etc.
Na primeira opção o monopolista mantém em grande parte seu lucro
bruto, com certeza maior que o do desafiante, pois aproveitará tanto do aspecto
monopolístico de seu produto quanto da intercambialidade viscosa entre seu produto e o
do desafiante 91 , porém corre o risco de ao longo do tempo (i) perder cada vez mais
participação de mercado para o desafiante e (ii) ter novos concorrentes, que se sentirão
encorajados pelo sucesso do desafiante.
Na segunda opção, o monopolista provavelmente terá uma diminuição de
seu lucro bruto, e também de sua margem de lucro, pois arcará com os custos da guerra,
porém com o passar do tempo poderá manter grande parte de sua participação no
mercado, bem como conseguir obter até a retirada do desafio, pois o desafiante não
conseguirá suportar os custos da guerra. Uma vez retirado o desafiante, portanto, retorna
a situação de monopólio, e o monopolista aumenta seus preços para recompor suas
perdas.
Obviamente não estamos considerando a hipótese de dumping, mas
apenas a competição lícita entre os jogadores; entretanto, é uma opção real de difícil
combate, pois de prova complexa e difícil de ser coletada, especialmente quando
envolver uma cadeia de produção internacional.
A situação torna-se mais complexa quando se verifica que o poder
econômico do monopolista pode ser maior que o do desafiante, tanto por seu caixa
quanto por seu acesso a crédito, de modo que este pode suportar por muito mais tempo a
guerra de marketing, o que ocorre, por exemplo, em disputas entre empresas nacionais e
multinacionais, pois quando a empresa multinacional é o monopolista, o peso do lucro
ou prejuízo em um determinado país acaba diluído no total de seu faturamento mundial,
de modo que seu fôlego para a disputa será praticamente infinito, especialmente se a
avaliação do valor de suas ações levar em conta não só o lucro presente, mas também
sua participação de mercado, que possa causar impacto na remuneração dos acionistas a
longo prazo.
91
Temos por intercambialidade viscosa aquela que ocorre lentamente tendo em vista laços que o
comprador mantém com o produto que já está no mercado ou dúvidas quanto ao produto desafiante em
contrapartida a uma intercambialidade mais fluída, portanto mais proveitosa ao produto com menor preço
ou melhores qualidades.
88
Finalmente, temos a afetação de outros mercados totalmente diferentes
do mercado do monopólio, especialmente em bem essencial, posto que “o detentor de
quantidade relevante de poder econômico é capaz de, maximizando seus lucros,
apropriar-se de parcela da renda social superior à que legitimamente lhe tocaria, se
fosse desprovido desse poder. O poder econômico, assim, pode subverter a correta
distribuição da renda social” 92 .
Passamos então a análise dos fatores que levam a uma grande
concentração de poder de mercado nas mãos de poucos fornecedores que devem ser
combatidos para o atendimento concomitante de todos os incisos do artigo 170 da
Constituição Federal Brasileira.
5.1.2. Barreiras à entrada de novos concorrentes
Em um mercado de concorrência perfeita, ainda que ocorra a
concentração de poder de mercado, este se diluirá pelo efeito gerado pelo próprio ciclo
de aumentos de preços, que poderá gerar o interesse de agentes fora desse mercado em
convergir para o mesmo, preterindo outros investimentos em troca desse mais lucrativo,
o que em tese levaria a um retorno da competição 93 .
Contudo, podem existir barreiras que impeçam a entrada desses novos
concorrentes no mercado específico, exigindo deles um grande investimento, bem como
um baixo resultado inicial, ou que retardem sua entrada no mercado, garantindo uma
92
BRUNA, Sérgio V. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. p. 171.
“Para que uma situação como esta perdure no tempo, com equilíbrio estável, sem que novas firmas
sejam atraídas pelos lucros de monopólio existentes, é necessário que existam barreiras à entrada. Essas
barreiras são custos em que uma empresa entrante tem de incorrer, mas as que já estão instaladas não.
Estas podem ser de natureza tecnológica, como domínio de marcas, patentes e Know-how, devido a
restrições de suprimentos, como Direito de lavra de minérios, ou ainda devido à conquista das
preferências dos consumidores, obtidos por meio de propaganda ou da simples antiguidade de uma
marca.
Existem, contudo, barreiras à entrada que são resultados de ações estratégicas das firmas dominantes para
expulsar as menores ou para impedir a entrada de novos concorrentes. Guerras de propagandas têm
muitas vezes esse objetivo, ao imporem aos competidores menores o ônus de responder apenas a uma
campanha apenas para manter a participação no mercado. Da mesma forma, as várias campanhas
publicitárias ao longo do tempo ajudam a estabelecer e a fixar a reputação da empresa. Para a empresa
atraente, e sem reputação estabelecida, o esforço e os custos de propaganda e fixação de reputação
serão maiores do que as que já operam” (PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.).
Manual de economia. p. 234 e 235.
93
89
dianteira suficiente aos que lá já se encontram para o reforço de sua posição perante os
consumidores, os canais de distribuição ou os vendedores de insumos necessários.
As barreiras à entrada podem ser definidas, ainda, como os custos em
que um concorrente potencial deve incorrer, em desvantagem aos
concorrentes já atuantes naquele mercado. Podem constituir barreiras
à entrada, nesse sentido, as economias de escala determinantes de uma
produção eficiente, a diferenciação de produtos, a integração vertical,
as fontes de suprimentos de fatores de produção e complexidade das
redes de distribuição – entre os outros fatores que, de forma efetiva,
desestimulem a entrada de novos concorrentes ainda quando os
agentes já instalados aufiram lucros acima do nível competitivo 94 .
No caso da saúde e em todas as demais atividades reguladas, ainda que
exploradas sob o regime de permissão, temos a barreira regulatória que exige
investimentos para atender a requisitos técnicos e um grande lapso temporal para início
de atividades e lançamento de produtos, tendo em vista a lentidão da burocracia das
Agências Regulatórias brasileiras.
5.1.3. Assimetria das informações
Em uma análise simplificadora, podemos entender que a definição do
preço de um determinado produto dá-se através da negociação entre vendedor e
comprador, ou no jogo do mercado, no equilíbrio alcançado entre os compradores e
vendedores, com relação a este preço.
Portanto, o preço será uma função do valor que o comprador dá ao
produto versus o quanto o vendedor pretende lucrar com a operação, ou seja, o quanto
ele está disposto a reduzir o preço para não perder a venda.
Dessa forma, partindo do pressuposto que o vendedor tem uma
expectativa firme e fundamentadamente formada sobre o quanto pretende ter de lucro
no produto, será fundamental para a negociação que o consumidor tenha condições de
avaliar o produto, ou seja, que tenha informações suficientes sobre o produto e os
preços de mercado para formar sua percepção do valor do produto.
Classicamente, havia a crença de os preços conterem em si a
informação relevante essencial para os agentes interessados, pois seria
o sinal inconfundível da escassez ou da abundância, conforme
subissem ou baixassem. Tal escassez ou abundância estariam
94
NUSDEO, Ana Maria O. Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da
concentração de empresas. p. 29.
90
refletidas nos preços não apenas a cada momento, quanto às condições
presentes, mas em sua potencialidade, isto é, no tocante às
perspectivas futuras. Assim, muito embora num dado momento o
suprimento de café pudesse estar em seu normal ou até acima, a
notícia de uma geada numa grande região produtora determinaria,
muito provavelmente, uma alta de seus preços ante a perspectiva de
escassez na próxima safra. Será possível, porém, que logo num
primeiro momento esta notícia não se dissemine e apenas alguns
poucos a tenham. Estes, hedonisticamente, expandirão as suas
compras do produto para se locupletarem com a futura alta, à custa
dos demais que, inadvertidamente, se desfizeram do mesmo.
Note-se, ainda, ser também um pressuposto ligado ao ora em exame a
perfeita identificação dos produtos e de suas qualidade ou atributos
por parte dos adquirentes, donde haver um preço para cada tipo de
produto, ainda quando não passem de simples diferenciações do
mesmo bem95 .
No mundo do consumo de massas, normalmente, o consumidor não tem
acesso às informações do produto e muito menos tem condições de entendê- las e
traduzi- las em valor, o que gera a falha de mercado denominada assimetria da
informação, ou seja, o nível de informação que o vendedor tem do produto é superior ao
detido pelo consumidor, como por exemplo expressamente reconhecido pelo Código de
Defesa do Consumidor.
A determinação do valor do produto também passa pelo conceito de
utilidade total (utilidade que uma única unidade do bem tem para o consumidor) e
utilidade marginal (utilidade que o consumidor terá com unidades adicionais do
produto); porém, não sendo um fator relativo à concorrência no mercado como um todo,
mas sim ao comportamento do consumidor, não vamos nos deter na questão, embora
certamente ela seja pertinente no mundo real.
O que nos interessa é o aspecto da intercambialidade, por sua influênc ia
na concorrência existente no mercado. Como já dito, para ocorrer a intercambialidade, o
consumidor tem de perceber os produtos como intercambiáveis, vale dizer, o
consumidor precisa pelo menos ter informação que lhe permita saber que um produto
pode ser trocado pelo outro com a mesma eficácia e segurança. Quando is so não ocorre,
temos a concorrência monopolística e a intercambialidade viscosa em favor de um
agente econômico, conforme já esclarecemos.
Podemos classificar os bens em: (i) bens de busca, cujas informações são
conhecidas pelo consumidor antes da compra; (ii) bens de experiência, quando o
consumidor somente conhecerá a qualidade do bem após a compra; e (iii) bens
95
NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 143 e 144.
91
credenciais, cujas características só podem ser conhecidas por um profissional
especializado.
No tocante à saúde, teremos bens e serviços credenciais, posto que
apenas um técnico habilitado poderá avaliar sua qualidade, eficácia e segurança. No
caso os serviços.de saúde serão também serviços de experiência, pois só terão as
características prometidas confirmadas após a utilização, como qualquer serviço.
5.1.4. Baixa elasticidade da procura
Ao decidir comprar um produto, serviço ou seguro, além das
características do que está comprando o consumidor irá considerar suas próprias
condições financeiras para pagar o preço exigido pelo vendedor. Tal consideração é
relativa, e pode ser afetada pela sensibilidade do consumidor ao preço da compra, de
modo que para analisar o comportamento do mercado necessitamos de uma medida
dessa sensibilidade.
Essa medida da sensibilidade chama-se elasticidade e pode ser
definida como a relação entre o acréscimo (decréscimo), percentual de
quantidade e o decréscimo (acréscimo) percentual de preços96 .
Podemos então agrupar comportamentos padronizados dos compradores
por conta dessa medida em:
Procuras extra-elásticas – O índice de elasticidade é maior do que 1.
Como já dito, são curvas ou segmentos delas, a se inclinarem
suavemente para a direita, significando que pequenas variações de
preços levarão a grandes variações das quantidades procuradas.
Procuras perfeitamente elásticas – O índice é igual a 1 – A inclinação
é proporcional. Significa que a uma dada variação percentual dos
preços corresponde uma igual variação percentual da quantidade
procurada.
Procuras inelásticas ou infra-elásticas – A inclinação é bastante
acentuada. A quantidade procurada pouco reage às variações de preço.
O índice de elasticidade situa-se entre 0 e 1.
Procuras rígidas – A elasticidade é igual a zero. Constitui um caso
extremo, talvez teórico, de um bem tão essencial que a qualquer preço
sua procura seria sempre a mesma. É representada por uma reta
paralela ao eixo dos preços.
A importância desta classificação reside no fato de apontar como
reagirá a receita trazida pelo bem em questão a um aumento ou baixa
do seu preço. Com efeito, sendo a receita o produto do preço pela
96
NUSDEO, Fábio Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 230.
92
quantidade, é fácil compreender que se a uma baixa de preços a
procura reagir com uma elevação mais do que a proporcional, a receita
total subirá, mesmo com a baixa de preços. O mesmo já não se
verificará se o coeficiente de elasticidade for inferior a 1. Neste caso, a
redução do preço provocará um aumento da procura, mas menos do
que proporcional, insuficiente, portanto, para compensá-la, fazendo
cair a receita 97 .
Como é evidente, nos dias de hoje, o tratamento de saúde é essencial para
a sobrevida saudável, de modo que, havendo recursos, o consumidor certamente irá
direcioná-los para a compra de seguro ou plano de saúde e, em caso de necessidade,
para os produtos e serviços de saúde em detrimento inclusive de outras aquisições ou de
sua saúde financeira, conforme se verifica da concentração de gastos com saúde da
população brasileira 98 :
97
Idem, ibidem, p. 231 e 232.
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2002/tab112.
pdf>. Acesso em: 20 maio 2006.
98
93
Ilustração 3 Distribuição da despesa mensal familiar em percentual - Brasil 2002-2003
94
Ilustração 4 Distribuição da despesa mensal familiar em percentual- Brasil 2002-2003 (continuação)
95
Ilustração 5 Distribuição da despesa mensal familiar em R$ - Brasil 2002-2003
96
Ilustração 6 Distribuição da despesa mensal familiar em R$ – Brasil 2002-2003 (continuação)
97
Analisando as tabelas, verifica-se que os percentuais de gastos com a
saúde variam pouco conforme aumenta a renda familiar, enquanto seus valores
absolutos sobem expressivamente.
Dessa forma, podemos verificar que o fator preço será de baixa
relevância para o paciente na decisão de compra, pois este estará disposto a abrir mão de
outros bens menos vitais em favor do medicamento. De outro lado tendo recursos os
aplicará cada vez mais em produtos e serviços de saúde. Nesse sentido, teremos então
uma baixa elasticidade da demanda em face do preço, pois “elasticidades baixas estão
associadas à essencialidade do produto”99 .
Obviamente que a elasticidade não mantém o mesmo índice em toda a
curva de procura versus preço, variando ao longo desta. Contudo, para a análise de
comportamento, devemos nos ater à secção da curva que mais representa o
comportamento real dos consumidores do segmento estudado em um dado tempo.
Sendo assim, vemos baixa ou nenhuma elasticidade de demanda em relação ao preço.
O que se observa é que a compra de seguros, planos, produtos e serviços
de saúde não responde de maneira acentuada ou equivalente ao preço mas sim à renda,
ou seja, tem procuras extra-elásticas em relação à renda, pois como é óbvio são a
primeira aplicação em caso de aumento de renda, dada a sua essencialidade.
Essas são as falhas de concorrência comuns tanto a produtos e serviços
de saúde quanto aos seus seguros ou planos de saúde.
Passemos agora a analisar especificamente cada um destes e a
regulamentação econômica a que estão sujeitos, para verificar sua constitucionalidade
em face da obrigação de ampliação de acesso da população determinada pelos artigos
196 e 197 da Constituição Federal.
A tese por trás deste trabalho é a necessidade da análise de
constitucionalidade das medidas de intervenção econômica e da validade das leis pela
análise da capacidade destas de gerar no mundo concreto os efeitos determinados pelas
normas presentes em nossa Constituição Federal, relativas à ampliação do acesso a
saúde.
Para demonstrar a aplicação prática desta tese, passamos a analisar as
falhas de concorrência existentes primeiramente no mercado de medicamentos e depois
no de planos de saúde, e a resposta dada pela legislação nacional a fim de verificar sua
99
NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p.101
98
eficácia para a ampliação do acesso da população e conseqüentemente sua
constitucionalidade em face dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, por meio da
análise da validade dessas normas com o auxílio do instrumental da ciência econômica,
como defendemos neste trabalho.
5.2. O mercado de medicamentos
Dos produtos para a saúde os medicamentos são os únicos que têm seus
preços controlados, no caso pela Câmara de Medicamentos CMED, em termos que
debateremos de maneira exaustiva adiante, embora se note uma tendência de exigir
dados econômicos informativos para o registro de outros produtos para a saúde.
Os medicamentos devem ser registrados perante a ANVISA para a
aferição de sua eficácia e periculosidade, com referência às suas propriedades
terapêuticas e riscos, bem como a sua bula e embalagem, sendo alguns classificados
como de venda livre, outros como sujeitos a prescrição médica ou, ainda, de venda
controlada pela retenção da receita médica. Em qualquer caso, os medicamentos só
podem ser comercializados após o deferimento do seu registro e durante a validade
desse registro, que é de 5 (anos), renovável quinq üenalmente.
Existe ainda a possibilidade de dispensa de registro para medicamentos
que constem da Farmacopéia Brasileira, sendo necessária a solicitação de Certificado de
Dispensa de Registro.
Atualmente, no Brasil, existem três categorias de medicamentos:
(i)
os inovadores ou de referência, que contêm princípio ativo ou
combinação de princípios ativos inédita e que devem apresentar
estudos suficientes para demonstrar sua eficácia e seus efeitos
colaterais, bioequivalência, biodisponibilidade, estudos clínicos,
entre outros;
(ii)
os similares, que contêm os mesmos princípios ativos que os de
referência, mas são vendidos ostentando marca comercial;
(iii)
os genéricos, que contêm os mesmos princípios ativos dos de
referência, devendo apresentar estudos de bioequivalência e de
biodisponibilidade para demonstrar que têm a mesma atuação dos
99
de referência e são vendidos ostentando o princípio ativo e marca
distintiva como medicamento genérico.
As vantagens do medicamento genérico para o laboratório farmacêutico,
apesar do custo dos testes apresentados, são a intensa propaganda governamental sobre
sua segurança, a possibilidade de serem vendidos em substituição ao medicamento de
referência contido na receita, desde que a troca seja feita pelo farmacêutico, e ainda
temos a vantagem da preferência para compras governamentais.
A definição de mercado relevante de um dado medicamento será simples
ao se tratar de medicamentos com o mesmo princípio ativo; contudo, a situação se torna
um tanto complexa em outras hipóteses, pois na definição do mercado relevante ainda
se deve levar em conta dois fatores:
(i)
a intercambialidade de distintos princípios ativos para o tratamento
da mesma moléstia, inclusive com a comparação da eficácia, do
conforto proporcionado ao paciente e dos efeitos colaterais ; e
(ii)
a intercambialidade entre os diversos tipos de tratamento, também
com a comparação de eficácia, do conforto proporcionado ao
paciente e dos efeitos colaterais.
A questão torna-se complexa, pois com o desenvolvimento da ciência
uma mesma moléstia ao longo do tempo vai tendo o seu combate aperfeiçoado, de
modo que diversas terapias e medicamentos podem ser indicados para o tratamento de
uma única doença.
Assim,
“a
escolha
do
tratamento,
incluindo
o
medicamento
eventualmente prescrito, define a Concorrência Intermarcas, isto é, dos princípios
ativos entre si” 100 , sendo que considerando o número de drogas possíveis para a
realização do tratamento, multiplicando cada droga pelo número de seus fabricantes,
teremos como resultado a medida da concorrência no tratamento específico. Contudo, se
o tratamento definir apenas um tipo de droga, teremos de analisar se ele pode ser
intercambiado por outro.
Do nosso ponto de vista, o mercado relevante em medicamentos será
definido pelos tratamentos e respectivas drogas disponíveis para o combate da doença,
sendo que nesse ambiente é que se deverá buscar a existência ou não de concentração.
100
FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo
econométrico da indústria farmacêutica brasileira. Rio de Janeiro: IPEA, 2001. p. 13.
100
Em relação à concentração do mercado de medicamentos no Brasil temos
atualmente pequena concentração deste mercado em boa parte porque os medicamentos
são passíveis de cópias por novos concorrentes sejam como medicamentos genéricos
sejam como similares.
Por outro lado, nos mercados de drogas inovadoras temos maior
concentração tendo em vista que estas são patenteadas e, portanto não podem ter cópias
exatas no mercado até a expiração das patentes, embora possam ter como concorrentes
drogas com os mesmos efeitos e indicação terapêuticas.
Já se nota no mercado de medicamentos a tendência de os grandes
distribuidores e redes de farmácias estarem cada vez mais concentrando poder de
compra nos medicamentos em que há grande número de fornecedores, o mesmo
acontecendo com o Estado nas licitações públicas para compras de medicamentos para
programas oficiais.
Dessa forma, a situação tende a torna r-se bastante adversa para a maioria
dos laboratórios farmacêuticos brasileiros, que em sua maioria disputam mercados em
que há efetivamente grande concorrência, uma vez que praticamente não temos
desenvolvimento nacional de medicamentos inovadores, em que os compradores têm
grande poder de mercado em relação aos vendedores e, portanto, os preços tendem a
cair.
Contudo, há que se notar que os laboratórios multinacionais presentes no
Brasil muitas vezes têm alto poder relativo de negociação face aos compradores, por
venderem medicamentos patenteados sem concorrentes, exceção feita aos laboratórios
estrangeiros fabricantes de medicamentos genéricos ou quando estes ve ndem produtos
com patentes expiradas.
Os laboratórios farmacêuticos com marcas líderes de mercado tendem a
reduzir suas produções com a entrada de novos concorrentes, mantendo o preço e
aumentando a lucratividade, até o ponto em que a falta de diluição dos custos fixos ou
pouco variáveis tornar pouco econômica a redução.
O efeito pode ser verificado quando há perda de patente, portanto de
monopólio legal, pelo laboratório farmacêutico, restando- lhe apenas o que chamamos de
monopólio “virtual”101 .
101
“A diferenciação do produto pode ser objetiva, no caso do seu acabamento ou da sua apresentação
variarem, como, também, pode ser subjetiva, quando via propaganda ou outro veículo qualquer se
induzir o consumidor a acreditar que determinado produto ou serviço lhe atendam melhor a necessidade
101
No caso específico dos medicamentos,
os resultados das regressões realizadas indicam que os preços dos
medicamentos líderes sobem mais quanto maior for a taxa de
crescimento dos salários do setor. Os aumentos de preços também são
maiores quando o líder está perdendo participação no mercado para
substitutos genéricos ou similares, o que revela, à semelhança do
observado por Frank e Salkever (1995) nos Estados Unidos, que os
líderes preferem se voltar para um segmento de mercado menos
elástico a preço – aquele que reluta mais em substituir a marca
pioneira por um similar.
Os resultados obtidos contradizem a usual intuição de que a entrada de
novos concorrentes deve resultar em uma redução dos preços
cobrados pelas firmas líderes. Nossas estimativas apontam justamente
o oposto: em consonância com estudos empíricos efetuados em países
desenvolvidos, estimamos que os preços de medicamentos líderes
reagem positivamente ao avanço de medicamentos similares no
mercado; como reverso da moeda, o nível médio dos preços dos
genéricos ou similares tende a baixar e sua dispersão em relação ao
preço do líder tende a subir quando há um acirramento da
concorrência na franja 102 .
Verifica-se, portanto, que a entrada de novos concorrentes é a melhor
maneira de aumentar o acesso da população aos medicamentos, desde que seja
adequadamente combatida a assimetria da informação e a população de menor renda
saiba que pode intercambiar o medicamento a que estava acostumada com o do
desafiante.
O maior fator de concentração de poder nos mercados de medicamentos
que gera aumentos indevidos de preços e, portanto, redução do acesso da população aos
mesmos são as barreiras à entrada de novos concorrentes, tanto no nascimento de novos
laboratórios farmacêuticos quanto no lançamento de produtos pelos laboratórios
farmacêuticos existentes.
No caso dos medicamentos, as principais barreiras à entrada serão (i)
requisitos e autorizações sanitárias e (ii) patentes que estabelecem o monopólio legal de
exploração do produto pelo seu detentor, que além de acumular os lucros do período de
sentida ou criada. Aliás, os símbolos, marcas, patentes, logotipos e outros veículos usados pela
propaganda e pela promoção têm desempenhado um papel fundamental no processo de diferenciação
de produtos e de discriminação de mercados. Essa crença, tão ciosamente instilada nos consumidores
pelos veículos da publicidade, dá origem à chamada procura viscosa – objeto de todo concorrente
imperfeito –, que vem a ser aquela procura grudenta que sob várias formas se apega a determinados
fornecedores, circulando de um para outro morosa e dificultosamente. Estabelece-se uma espécie de
afeição comercial entre alguns clientes e os seus fornecedores, em função do tipo de atendimento, da
decoração do estabelecimento, das características do produto, diferenciadas em função dessa
viscosidade, no fundo um conjunto de características psicoculturais próprias a grupos distintos de
consumidores” (NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 266).
102
FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo
econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 7.
102
sua vigência, gozará de maior prestígio perante os consumidores, por ter sido o pioneiro
em seu lançamento e por ser mais tradicional.
5.2.1. Barreiras sanitárias
Como dito no item em que tratamos da ANVISA, os laboratórios
farmacêuticos só podem operar após a obtenção de (i) autorização de funcionamento da
pessoa jurídica expedida pela própria ANVISA, (ii) licença de funcionamento de cada
estabelecimento expedida pela Secretaria de Vigilância Sanitária Estadual ou Municipal
se o serviço estiver municipalizado e (iii) certificado de boas práticas de fabricação.
A emissão de tais autorizações depende de investimentos nas instalações
físicas, treinamento de pessoal e validação de processos destes agentes econômicos.
Ressalte-se que para atingir os requisitos sanitários de fabricação, armazenamento e
comercialização de medicamentos, tem-se um longo período de tramitação até sua
emissão, e estes são seqüenciais, ou seja, um é pré-requisito do outro.
Estes requisitos pré-operacionais por si só geram uma barreira à entrada
de novos concorrentes tanto por conta dos investimentos necessários, que obviamente
devem ser feitos antes da solicitação das licenças e autorizações, já que as condições
reais de operação devem estar presentes quando da realização de vistorias para sua
emissão, quanto por conta do próprio tempo que leva para uma nova empresa obtê- los.
Quanto aos medicamentos em si, portanto, quanto aos mercados
relevantes especificamente, a entrada somente se dará após o registro do referido
medicamento pela ANVISA, que avaliará sua segurança e eficácia, processo também
custoso e demorado.
103
Conforme pesquisa realizada pela Amcham (Câmara Americana de
Comércio) do Brasil entre janeiro e março de 2003, com 205 empresas, em mais da
metade dos casos o registro de um novo medicamento leva mais de 12 meses.
Ilustração 7 - Pesquisa Amcham sobre Anvisa (2005) - pergunta 04
A estratégia adotada pelos governos do mundo todo para diminuir o
impacto da questão é exigir que os medicamentos similares ou genéricos apresentem
apenas estudos que demonstrem sua intercambialidade (do ponto de vista técnicosanitário) com o medicamento inovador, de modo que se reduza o lapso temporal para a
entrada de novos concorrentes.
Dessa forma, embora tais cautelas sejam imperativas para a segurança da
população, representam uma grande barreira financeira e temporal para a entrada de
novos fornecedores em um mercado relevante, de modo que quanto mais demorado o
processo, maior será essa barreira, o que acaba por garantir menos concorrência para
aqueles que já estão no mercado relevante e que, portanto, poderão praticar preços mais
altos.
Na mesma pesquisa os respondentes apontaram para a aplicação pouco
adequada e uniforme das normas pela ANVISA, o que somente gera insegurança desse
mercado, afastando investimentos e concorrentes, e aumenta a barreira regulatória, na
medida em que em seu custo se inserem os resultados aleatórios do quanto solicitado
pelo setor regulado:
104
Ilustração 8 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 02
Ilustração 9 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 12
Como apurado na citada pesquisa, para significativa parcela do setor
regulado a atuação da ANVISA não é adequada.
105
Ilustração 10 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 01
Ilustração 11 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 16
Pelo exposto, embora a ANVISA tenha seu poder de polícia garantido
pelo artigo 200 da Constituição Federal, sua atuação é uma barreira à entrada de novos
concorrentes, o que tem complicado a aplicação da concorrência no mercado de
medicamentos, em afronta ao artigo 170 da Constituição Federal, inclusive contribuindo
para a manutenção de preços por aqueles que já ultrapassaram essa barreira, em afronta
aos artigos 196 e 197 da Constituição Federal.
A atividade burocrática, lenta e aleatória da ANVISA tem militado
contrariamente ao lançamento de produtos desafiantes que poderiam reduzir o poder de
106
mercado dos laboratórios farmacêuticos, o que diminui o acesso da população aos
medicamentos, bem como evita o lançamento de medicamentos inovadores que
poderiam contribuir no combate a doenças, afrontando, portanto, os artigos 196 e 197
da Constituição Federal.
Considerando que os artigos da Constituição Federal devem ser aplicados
em harmonia, sem sobreposição, a ANVISA há de se tornar mais eficiente para
contribuir ativamente para o aumento da concorrência e conseqüentemente do acesso a
população aos medicamentos.
Para os produtos inovadores ainda há que se considerar a barreira à
entrada de novos concorrentes formada pelas patentes, normalmente de importação, a
estes conferidas, que impedem até que expire o lançamento de produtos desafiantes que
se utilizem da tecnologia protegida.
5.2.2. Patentes de medicamentos
A pesquisa e o desenvolvimento para elaboração de novos produtos
requerem grandes investimentos; assim, para estimular investimentos na atividade
inventiva, as descobertas passíveis de exploração industrial são protegidas por patentes
que garantem proteção na exploração de seu objeto por meio do estabelecimento de um
monopólio, prevenindo que competidores copiem e vendam esse produto por um preço
mais baixo, uma vez que estes não foram onerados com os custos da pesquisa e
desenvolvimento do produto. A proteção conferida pela patente é, portanto, um valioso
e imprescindível instrumento para que a invenção e a criação industrializável tornem-se
um investimento rentável.
Patente é um título de propriedade temporária sobre uma invenção
outorgado pelo Estado aos inventores ou autores ou outras pessoas físicas ou jurídicas
detentoras de Direitos sobre a criação. Em contrapartida, o inventor se obriga a revelar
detalhadamente todo conteúdo técnico da matéria protegida pela patente.
Durante o prazo de vigência da patente, o titular tem o Direito de excluir
terceiros, sem sua prévia autorização, de atos relativos à matéria protegida, tais como
fabricação, comercialização, importação, uso, venda etc.
Nesse sentido, a obtenção da patente faz que a firma inovadora possa, no
período de sua vigência, deter o monopólio do produto, que na falta de outros
107
intercambiáveis lhe dará o monopólio daquele mercado relevante, ou ainda condições
para agir de forma monopolística em relação aos consumidores que não percebem a
referida intercambialidade.
A detenção de mercado em monopólio por um largo prazo, aliada à
característica de ser o primeiro a lançar o produto, ainda faz que haja tamanha fixação
da marca do produto na mente do consumidor, que os entrantes no mercado após a
expiração da patente terão de se valer de preços muito mais baixos, com intensa e
custosa campanha de marketing para obter uma parcela de mercado do líder, em
decorrência do que se pode chamar de intercambialidade viscosa, ou seja, os
compradores custam a realizar a troca – quando a fazem.
Para o melhor entendimento dos aspectos por trás dos recentes debates
travados sobre o tema das patentes de medicamentos, é importante mencionar a
evolução histórica do tema no Brasil, para ressaltar o porquê de apenas em período
recente a questão ter-se tornado tão evidente no País.
Por meio do Alvará do Príncipe Regente de 28 de abril de 1809, o Brasil
foi o quinto país do mundo a conceder privilégios de exploração aos inventores. Em
1884, com outros 13 países, o Brasil adere à Convenção de Paris 103 , sendo que os
produtos na área farmacêutica deixaram de ser patenteáveis no Brasil em 1945 104 , e seus
processos de obtenção em 1969 105 .
A disciplina nacional de protecionismo por meio da não concessão de
patentes em áreas consideradas estratégicas pelo governo militar foi mantida na Lei
5.772/1971, que também não concedia privilégios às invenções relativas aos
medicamentos e seus insumos106 .
Conforme compromisso assumido pelo Governo Brasileiro na Rodada
Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, cuja Ata Final de
Resultados foi assinada em Marrakesh em 12 de abril de 1994, depositada pelo Brasil
em Genebra em 21 de dezembro de 1994 (devendo, portanto, entrar em vigor no Brasil
103
Convenção de Paris de 20.03.1883, revista em: Bruxelas 14.12.1900, Washington 02.06.1911, Haia
06.11.1925, Londres 02.06.1934, Lisboa 31.10.1958 e Estocolmo 14.07.1967, internada pelo Decreto
75.572/1975 com a revisão de Haia e com as alterações da revisão de Estocolmo pelo Decreto
1.263/1992 (sempre promulgados com restrições regimentalmente permitidas).
104
Decreto-lei 7.903/1945.
105
Decreto-lei 1.005/1969.
106
Lei 5.772/ 1971: “Art. 9.º Não são privilegiáveis:
b) as substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos, ressalvando-se, porém,
a privilegiabilidade dos respectivos processos de obtenção ou modificação;
c) as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de
qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação; […]”.
108
em 1.º de janeiro de 1995), o Brasil promulgou o Decreto 1.355/1994, que ia de
encontro ao Código de Propriedade Industrial vigente à época, determinando a
concessão de privilégio a todo e qualquer invento 107 , com vigência para o Brasil, para as
áreas de produtos químicos e produtos e processos relativos a medicamentos e seus
insumos, apenas a partir de 31 de dezembro de 1999 108 .
Apesar de ter aceitado e internado a TRIPS e, conseqüentemente, ser
obrigado a reger a matéria de propriedade industrial de acordo com a mesma, no que
nos interessa (medicamentos) a partir de 31 de dezembro de 1999, o Brasil editou um
novo Código de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996) 109 , que previa (i) a
patenteabilidade dos produtos em questão e (ii) uma regra de transição para os produtos
agora patenteáveis que não o eram110 , mas que já haviam sido patenteados no exterior,
conhecida como pipeline 111 .
107
Decreto 1.355/1994: “Art. 27 – Matéria Patenteável
1 – Sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção de produto ou de processo,
em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e
seja passível de aplicação industrial. Sem preju ízo do disposto no parágrafo 4 do Artigo 65, no
parágrafo 8 do Artigo 70 e no parágrafo 3 deste artigo, as patentes serão disponíveis e os Direitos
patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto ao seu setor
tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente.
2 – Os membros podem considerar como não patenteáveis invenções cuja exploração em seu território
seja necessário evitar para proteger a ordem pública ou a moralidade, inclusive para proteger a vida ou
a saúde humana, animal ou vegetal ou para evitar sérios prejuízos ao meio ambiente, desde que esta
determinação não seja feita apenas porque a exploração é proibida por sua legislação.
3 – Os Membros também podem considerar como não patenteáveis:
a) métodos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos para o tratamento de seres humanos ou de animais;
b) plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de
plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e microbiológicos. Não obstante, os
Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um
sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto
quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC”.
108
Decreto 1.355/94: “Art. 65. Disposições Transitórias […]
4 – Na medida em que um país em desenvolvimento Membro esteja obrigado pelo presente Acordo a
estender proteção patentária de produtos a setores tecnológicos que não protegia em seu território na
data geral de aplicação do presente Acordo, conforme estabelecido no parágrafo 2, ele poderá adiar a
aplicação das disposições sobre patentes de produtos da Seção 5 da Parte II para tais setores
tecnológicos por um prazo adicional de cinco anos.
109
Com vigência a partir de 15.05.1997.
110
Na medida em que a TRIPS ainda não estava em vigor e o Antigo Código de Propriedade Industrial
não lhes conferia o privilégio.
111
Lei 9.279/1996: “Art. 229. Aos pedidos em andamento serão aplicadas as disposições desta Lei, exceto
quanto à patenteabilidade das substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos
químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e
medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação,
que só serão privilegiáveis nas condições estabelecidas nos arts. 230 e 231.
Art. 230. Poderá ser depositado pedido de patente relativo às substâncias, matérias ou produtos obtidos
por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios,
químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de
obtenção ou modificação, por quem tenha proteção garantida em tratado ou convenção em vigor no
Brasil, ficando assegurada a data do primeiro depósito no exterior, desde que seu objeto não tenha sido
colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com seu consentimento,
109
Tal regra de transição foi criada para evitar injustiças para com os
inventores que poderiam ser protegidos pela patente de seus produtos, pois ainda
estariam em vigência seus privilégios caso o Brasil não os incluísse no rol dos não
patenteáveis, e resumidamente impunha os seguintes requisitos para sua utilização:
1) a desistência dos pedidos realizados antes de sua vigência;
2) o protocolamento de novos pedidos até 15 de maio de 1998;
3) que não houvesse a exploração dos produtos no Brasil ou
investimentos para tanto;
4) que o produto não houvesse sido lançado em outros mercados.
Ocorre que as normas relativas às patentes de medicamentos e insumos
farmacêuticos e veterinários foram novamente alteradas pela Medida Provisória 2.014,
de 30 de dezembro de 1999, convertida na Lei 10.196/2001, especialmente no que diz
respeito aos seus efeitos para os que produzem e comercializam substâncias, matérias
ou produtos obtidos por meios ou processos químicos ou substâncias, matérias, misturas
ou produtos alimentícios, químico- farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie,
nem tenham sido realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a exploração do
objeto do pedido ou da patente.
§ 1.º O depósito deverá ser feito dentro do prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei, e deverá
indicar a data do primeiro depósito no exterior.
§ 2.º O pedido de patente depositado com base neste artigo será automaticamente publicado, sendo
facultado a qualquer interessado manifestar-se, no prazo de 90 (noventa) dias, quanto ao atendimento
do disposto no caput deste artigo.
§ 3.º Respeitados os arts. 10 e 18 desta Lei, e uma vez atendidas as condições estabelecidas neste artigo e
comprovada a concessão da patente no país onde foi depositado o primeiro pedido, será concedida a
patente no Brasil, tal como concedida no país de origem.
§ 4.º Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo remanescente de proteção no país
onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do depósito no Brasil e limitado ao prazo
previsto no art. 40, não se aplicando o disposto no seu parágrafo único.
§ 5.º O depositante que tiver pedido de patente em andamento, relativo às substâncias, matérias ou
produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos
alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos
processos de obtenção ou modificação, poderá apresentar novo pedido, no prazo e condições
estabelecidos neste artigo, juntando prova de desistência do pedido em andamento.
§ 6.º Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, ao pedido depositado e à patente concedida com
base neste artigo.
Art. 231. Poderá ser depositado pedido de patente relativo às matérias de que trata o artigo anterior, por
nacional ou pessoa domiciliada no país, ficando assegurada a data de divulgação do invento, desde que
seu objeto não tenha sido colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro
com seu consentimento, nem tenham sido realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos
preparativos para a exploração do objeto do pedido.
§ 1.º O depósito deverá ser feito dentro do prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei.
§ 2.º O pedido de patente depositado com base neste artigo será processado nos termos desta Lei.
§ 3.º Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo remanescente de proteção de 20
(vinte) anos contado da data da divulgação do invento, a partir do depósito no Brasil.
§ 4.º O depositante que tiver pedido de patente em andamento, relativo às matérias de que trata o artigo
anterior, poderá apresentar novo pedido, no prazo e condições estabelecidos neste artigo, juntando
prova de desistência do pedido em andamento”.
110
bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação, cujos depositantes não
tenham exercido a faculdade prevista nos artigos 230 e 231 da Lei 9.279/1996.
Em síntese, a referida norma alterou radicalmente a regra de transição
prevista no pipeline para os produtos em questão, determinando que:
1)
os pedidos depositados até 31 de dezembro de 1994 serão
indeferidos;
2)
os pedidos protocolados após 31 de dezembro de 1994 até
o início da vigência do novo Código de Propriedade Industrial112 serão analisados
segundo os critérios deste, exceto quanto aos pedidos de patente de processo que serão
indeferidos, portanto impondo a retroatividade do novo Código de Propriedade
Industrial desde 1.º de janeiro de 1995;
3) a concessão de patentes de produtos e processos farmacêuticos
dependerá da prévia anuência da ANVISA, sem contudo haver qualquer esclarecimento
na lei quanto ao conteúdo dessa análise, que poderia (i) dizer respeito pura e
simplesmente à regularidade do processo administrativo de concessão da patente, (ii)
dizer respeito à inexistência de inovação do pedido, posto que a ANVISA tem o
cadastro de todos os medicamentos vendidos no Brasil, ou (iii) dizer respeito à
segurança do produto, o que evidentemente teria mero caráter informativo, na medida
em que este não é um critério para a concessão de patente, pois na já citada pesquisa da
Câmara Americana de Comércio parte do setor regulado afirma que a ANVISA
extrapola desta função na concessão de patentes.
112
Que admite o patenteamento dos referidos produtos.
111
Ilustração 12 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 10
Houve grandes debates sobre a concessão de patentes de medicamentos
no Brasil e sobre conflitos entre a TRIPS e a legislação brasileira, todavia parece
inexistir razão para celeuma, uma vez que todos os veículos legislativos utilizados são
hierarquicamente equivalentes, de modo que se aplica sempre o posterior. Assim,
tivemos a substituição da Lei 5.772/1971, pelo Decreto 1.355/1994, pela Lei 9.729/1996
e, finalmente, pela Medida Provisória 2.014/1999, convertida na Lei 10.196/2001, não
havendo que se falar em conflito de normas, especialmente no que toca à Lei
9.729/1996 (pipeline) e ao Decreto 1.355/1994, não tendo o segundo criado Direitos
adquiridos ou expectativa de Direitos, porque jamais entrou em vigor, pois foi
substituído pela primeira.
Ademais, os Direitos dos requerentes das patentes são gerados no
momento do protocolo, uma vez que se aplica a legislação vigente no momento,
ressaltando-se a inconstitucionalidade da retroatividade instituída pela Medida
Provisória 2.014/1999, convertida na Lei 10.196/2001.
Por fim, aqueles que produziam e utilizavam os produtos que passaram a
ser patenteáveis, ainda que se aceite a aplicação retroativa da Lei 9.279/1996, poderão
continuar a fazê- lo nos termos dos artigos 232 e 45 desta, uma vez que não foram
alterados ou revogados pela Medida Provisória 2.014/1999, convertida na Lei
10.196/2001.
Lei 9.279/1996: Art. 45. À pessoa de boa fé que, antes da data de
depósito ou de prioridade de pedido de patente, explorava seu objeto
112
no País, será assegurado o direito de continuar a exploração, sem
ônus, na forma e condição anteriores.
§ 1.º O direito conferido na forma deste artigo só poderá ser cedido
juntamente com o negócio ou empresa, ou parte desta que tenha direta
relação com a exploração do objeto da patente, por alienação ou
arrendamento.
§ 2.º O direito de que trata este artigo não será assegurado a pessoa
que tenha tido conhecimento do objeto da patente através de
divulgação na forma do art. 12, desde que o pedido tenha sido
depositado no prazo de 1 (um) ano, contado da divulgação.
Art. 232. A produção ou utilização, nos termos da legislação anterior,
de substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos
químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos
alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer
espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou
modificação, mesmo que protegidos por patente de produto ou
processo em outro país, de conformidade com tratado ou convenção
em vigor no Brasil, poderão continuar, nas mesmas condições
anteriores à aprovação desta Lei.
§ 1.º Não será admitida qualquer cobrança retroativa ou futura, de
qualquer valor, a qualquer título, relativa a produtos produzidos ou
processos utilizados no Brasil em conformidade com este artigo.
§ 2.º Não será igualmente admitida cobrança nos termos do parágrafo
anterior, caso, no período anterior à entrada em vigência desta Lei,
tenham sido realizados investimentos significativos para a exploração
de produto ou de processo referidos neste artigo, mesmo que
protegidos por patente de produto ou de processo em outro país.
Apesar de as patentes configurarem uma barreira ao lançamento de
medicamentos e, portanto, à ampliação de acesso aos medicamentos, não se pode
entender pela sua inconstitucionalidade por afronta aos artigos 196 e 197 da
Constituição Federal, na medida em que as patentes também têm garantia constitucional
assegurada no artigo 5.º, inciso XXIX, de nossa Carta Magna, não sendo possível
sobrepor um artigo constitucional a outro.
É importante notar que o privilégio garantido pela patente, de forma
análoga aos entendimentos relativos à função social da propriedade – até por poder ser
interpretada como a propriedade de um bem móvel –, é entendido nos dias de hoje como
uma concessão dada pela sociedade para viabilizar o financiamento do avanço científico
que possa gerar benefícios para a própria sociedade, não podendo haver o abuso desse
Direito por parte de seu detentor, sendo previsto o seu licenciamento compulsório em
clara aplicação integrada dos dispositivos constitucionais.
A nova Lei de Proteção da Propriedade Industrial contém várias
disposições que merecem atenção. Consagra-se a exaustão de Direitos
(art. 43-IV e 68 §§ 3.º e 4.º). Admite-se a cláusula de grantback (art.
63). Admite-se a licença compulsória sem exclusividade por abuso
dos Direitos decorrentes da patente (misuse), por abuso de poder
113
econômico, por falta injustificada de exploração ou atendimento
insuficiente da demanda, em caso de dependência de patentes e em
razão de emergência nacional ou interesse público (artigos 68 a 72)113 .
Essas medidas são voltadas a impedir que o detentor do monopólio legal
o use de modo a prejudicar a sociedade ao invés de favorecê-la, solução equivalente à
que foi dada pela Lei de Cultivares 114 , que em certo sentido andou melhor, pois atribui a
competência para conceder a licença compulsória ao CADE, que é um órgão mais
aparelhado para tratar de questões de abuso de poder econômico, que afinal é a hipótese
também do abuso de Direito patentário, apesar de se tratar de um poder econômico
criado por um privilégio legal.
Para evitar que o detentor da patente pudesse gozar de um período maior
de monopólio do que o da própria patente, decorrente do tempo que os novos
competidores pudessem levar para obter o registro de produto genérico ou similar, as
autoridades brasileiras não vedam o registro de produto patenteado, por entenderem que
(i) o registro tem como critério as características do produto e não sua possibilidade de
comercialização e (ii) que a patente confere Direito individual ao seu titular, que terá de
defender seu Direito com os meios que a Lei de Patentes lhe garante.
Ademais, os medicamentos concorrentes, genéricos e similares não
precisam realizar todos os testes clínicos e pré-clínicos realizados pelo medicamento
original, de modo que seu registro deveria ocorrer em prazo mais curto.
Já nos Estados Unidos da América e na Europa a tônica da discussão foi
diferente, e o grande debate se deu por conta da perda de uma parte do prazo de gozo do
monopólio legal em decorrência do tempo de desenvolvimento dos testes de segurança e
da demora no registro dos medicamentos, criando uma diferença entre o prazo formal de
patente e seu prazo real, aquele que efetivamente é aproveitado economicamente pelo
seu detentor, apesar de lá igualmente haver uma extensão do prazo de monopólio
decorrente da demora no registro dos produtos genéricos.
Nos Estados Unidos da América foi editada a Lei Waxman-Hatch, que
por meio de um cálculo complexo estende o prazo da patente proporciona lmente ao
prazo para o registro do produto e, por outro lado, liberou os medicamentos genéricos
de realizarem todos os testes realizados pelo medicamento inovador, devendo
simplesmente passar pelo teste de bioequivalência.
113
114
FONSECA, Antonio, Concorrência e propriedade intelectual. p. 6.
Lei 9.456/ 1997, art. 28.
114
Na Europa, cada país criou por me io de legislação própria um certificado
de extensão de patente. A questão ainda está sendo harmonizada no âmbito da
Comunidade Econômica Européia, uma vez que mesmo países que não adotam uma lei
própria sobre o tema ainda divergem quanto à interpretação das normas do bloco.
Finalmente, é importante notar que, por meio de contratos relativos à
propriedade industrial também é possível a concentração de poder econômico, como por
exemplo no contrato de licenciamento, contratos com cláusula de não concorrência ou
de exclusividade, com o mesmo perfil das fusões e aquisições.
Embora tais contratos devam ser registrados no Instituto Nacional de
Propriedade Industrial, não se verifica a preocupação com os aspectos concorrenciais
dos ajustes, de modo que também é importante a criação de normas de controle
preventivo de efeitos danosos decorrentes de práticas abusivas por meio de tais
contratos nos mesmos moldes das normas de controle das concentrações.
5.2.3. A assimetria das informações quanto aos medicamentos
Os medicamentos são bens credenciais, ou seja, os pacientes não têm
condições de conhecer as características dos produtos mesmo após o seu consumo 115 ,
apenas os médicos a têm, de modo que, no mercado farmacêutico, a assimetria da
informação é um dado extremamente relevante que aumenta em muito o poder de
mercado das empresas já estabelecidas, que é crescente em proporção à novidade e à
complexidade do produto.
Um dado da realidade atual é que mesmo os médicos sofrem com a
assimetria da informação, pois não conseguem estar continuamente atualizados sobre os
avanços da indústria farmacêutica. Em sua maioria, o acesso dos médicos às
informações sobre medicamentos dá-se por meio dos propagandistas dos laboratórios
farmacêuticos, que continuamente os visitam trazendo informações tendentes à
prescrição dos produtos que representam116 .
115
“A assimetria de informações é outra característica importante do mercado farmacêutico. No caso dos
medicamentos éticos, é o médico que prescreve o medicamento, restando ao paciente a decisão de
comprá-lo ou não, já que não consta da receita referência à denominação genérica do produto. Esse fato
confere ao laboratório um poder de mercado muito grande, mesmo nos casos em que possa haver uma
opção idêntica à do medicamento receitado.” Relatório da CPI dos medicamentos – Título II.
116
“Os medicamentos éticos encaixam-se perfeitamente na categoria de bens credenciais. Sua venda
depende da apresentação de uma prescrição médica. O profissional médico, que é o tomador da decisão
de escolha do medicamento, depara-se com um conjunto crescente de substâncias ativas, cuja eficácia e
115
Com a finalidade de combater a assimetria das informações existente no
mercado nacional, que dificulta a competição por parte dos medicamentos similares
(medicamentos iguais aos originais mas com marca própria), o Governo Federal, em
atenção a sua missão de ampliação do acesso da população à saúde, determinada nos
artigos 196 e 197 da Constituição Federal, editou a Lei 9.787/1999, que criou o
medicamento genérico, posteriormente regulamentada pelo Decreto 3.181/1999 e com
efeitos reforçados pelo Decreto 3.675/2000, que facilita o registro de medicamentos
genéricos importados.
Outra contribuição importante do estudo da assimetria de informações
foi o conceito de seleção adversa. O tipo de problema agora enfocado
segurança não são conhecidas por ele. Sua escolha é condicionada por uma série de fatores [Hemminki,
apud Pepe e Veras (1995)]:
1. Fatores condicionantes:
1.1. as tradições e a educação da população moldam as expectativas dos pacientes e a visão do médico;
1.2. o ensino médico e o pensamento profissional determinam o uso dos serviços médicos e definem o
conceito de saúde/doença;
1.3. a política pública e a distribuição da renda em cada país afetam a disponibilidade de profissionais e o
acesso a medicamentos; e
1.4. o poder e a vitalidade da indústria farmacêutica.
2. Fatores que influenciam individualmente os profissionais:
2.1. as demandas e expectativas da sociedade;
2.2. a influência da indústria farmacêutica e os resultados de pesquisas na área; e
2.3. as medidas regulatórias e de controle impostas pelas autoridades de saúde. É importante salientar que
a falta de informações fluidas, sistematizadas e consolidadas sobre efetividade comparada entre os
medicamentos disponíveis no mercado é um sério obstáculo a uma avaliação abalizada do médico sobre
qual medicamento prescrever, magnificando o efeito do fator 2.2; portanto a fluidez da informação é
tão ou mais importante que a sua mera existência. Temin (1980) aponta três causas para esse problema
de informação:
a) a segurança e a eficácia do medicamento têm múltiplas dimensões: quais condições indesejadas visa
corrigir; qual o método de administração ao paciente; qual a velocidade de ação e sua durabilidade; a
amplitude de condições que ele trata; e quais os efeitos adversos etc.;
b) os médicos não podem sair usando seus pacientes como cobaias; e
c) falta aos médicos capacidade de extrapolar os resultados dos testes publicados para sua realidade. Para
eles, estatística e prática da medicina são atividades distintas. Eles não têm qualificação para fazer
pesquisa ou avaliar as pesquisas dos outros.
O processo de decisão do médico pode, então, ser compreendido como composto de duas etapas, cada
uma com um tipo de assimetria de informação envolvido:
1. O médico escolhe o tratamento mais eficaz e seguro para o paciente com base em seu conhecimento
acadêmico e na sua experiência, ou na experiência de seus pares, apreendida em congressos, revistas
especializadas ou rede de contatos individual. No entanto, Temin (1980), Hellerstein (1994) e Berndt,
Pindyck e Azoulay (2000) apontam para a predominância de um comportamento no qual a prescrição
se dá por costume ou inércia.
Isso ocorre porque o médico individual normalmente não obtém uma larga experiência com os efeitos de
nenhuma droga em particular (que é o problema do bem credencial), e as pesquisas publicadas
disponíveis sobre drogas concorrentes entre si tendem a tratar mais de biodisponibilidade do que de
seus verdadeiros efeitos. Essa abordagem do médico lhe traz, portanto, duas vantagens: primeiro,
minimiza o custo de obtenção da informação sobre os medicamentos mais indicados para os
tratamentos diagnosticados, e segundo, serve como argumento de defesa contra possíveis complicações
em um processo jurídico. Disso decorre que a difusão do consumo de um medicamento gera
externalidades de informação para os médicos, e pode-se dizer que os seus hábitos de prescrição
seguem um padrão típico de comportamento de manada [Berndt, Pindyck e Azoulay (2000)]” (FIÚZA,
Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico
da indústria farmacêutica brasileira. p. 11-12.
116
não mais se refere ao comportamento pós-contratual, mas sim à
adesão ou não a determinada transação. Um mercado que possui
diferentes qualidades de bens, e essa é a informação privada de uma
das partes, tende a ser ineficiente à medida que as transações
desejadas em um mundo de informação perfeita não se realizam.
Resumidamente, o mecanismo de seleção adversa elimina do mercado
os produtos de boa qualidade porque o vencedor não consegue
convencer o comprador sobre a qualidade do produto. Da parte do
vendedor, a transação só é interessante se o valor a ser recebido for
maior ou igual ao valor do bem, dado em função da qualidade do bem,
não se pode simplesmente comparar valor e qualidade. Como
alternativa, o comprador compara o valor a ser pago com a qualidade
esperada. Se um bem for de alta qualidade, o vendedor, ciente disso,
exigirá alto valor para a transação. O consumidor, no entanto,
ignorante quanto à qualidade do bem, aceita pagar um valor
correspondente à qualidade esperada, que, por definição, é inferior a
um bem de alta qualidade. Conseqüentemente, somente os bens de
qualidade inferior seriam comercializados.
A solução para um problema de seleção adversa é conhecida como
sinalização. O vendedor agiria de modo que provesse o comprador de
informações confiáveis a respeito do bem – como certificados de
qualidade ou garantia –, atenuando a assimetria de informações e,
como conseqüência, o problema da seleção adversa. O exemplo
clássico para este fenômeno é o mercado de carros usados, no qual a
qualidade é variável e dificilmente observável de forma apropriada 117 ;
Para esta questão o medicamento genérico, com o perdão do trocadilho, também é o
remédio.
O medicamento genérico tem sua intercambialidade terapêutica com o
medicamento de referência atestada por testes de bioequivalência e biodisponibilidade
certificados pela ANVISA, tendo sido dada por força da referida lei ampla publicidade
do fato, financiada pelo governo, constando inclusive da caixa do produto sinal
distintivo em destaque para fácil reconhecimento pelo comprador 118 .
117
PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 221.
“O médico pode receitar o medicamento pelo nome de fantasia ou pelo nome genérico. É aqui que se
define a Concorrência Intramarca entre o produto ‘de marca’ propriamente dito e os medicamentos
genéricos e similares. Aqui as assimetrias de informação são duas: o médico desconhece os preços dos
genéricos, e tem reservas quanto à sua qualidade em relação ao produto de referência. A qualidade, por
sua vez, abre-se nas dimensões de: a) biodisponibilidade – quanto do princípio ativo é absorvido no
fluxo sangüíneo, onde e quanto age terapeuticamente; b) bioequivalência – dois medicamentos são
bioequivalentes se têm a mesma composição química e a mesma biodisponibilidade; e c) grau de
pureza do produto (e, portanto, do processo produtivo).
Uma política de certificação de qualidade teria, portanto, uma função de sinalizadora de informação
para os profissionais a fim de corrigir dois níveis de assimetria de informação na distinção de
efetividade e segurança: dos princípios ativos entre si, e entre os medicamentos de referência e os
genéricos de um mesmo princípio ativo. Deve sinalizar, também, aos médicos e à população que as
condições de produção atendem a requisitos mínimos de controle de qualidade do processo. E o mais
importante de tudo: deve sistematizar essas informações de modo que os médicos tenham todos os
elementos para poderem comparar a efetividade dos medicamentos entre si. Vale notar que, mesmo
depois que a patente original expira, o patenteador original perde o monopólio do medicamento, mas
118
117
Ainda em reforço, foi permitida a troca da receita dada pelo médico pelo
farmacêutico sempre que o médico não a proibir no corpo da própria receita, além do
que, para estimular a oferta, foi garantida preferência aos medicamentos genéricos em
licitações no âmbito do SUS, que também passou a fazer licitações utilizando o nome da
substância ativa do produto.
É interessante observar o ocorrido com o mercado americano com a
entrada dos medicamentos genéricos, por ser um indicativo do que pode ocorrer no
mercado nacional:
Centenas de novos medicamentos genéricos foram aprovadas pela
FDA em curto espaço de tempo, mesmo com a ocorrência de
procedimentos fraudulentos em vários casos. Em 1989, os genéricos
compreendiam mais de 33% de todas as prescrições realizadas nos
Estados Unidos.
Os genéricos se fizeram mais presentes em hospitais que em
farmácias, as quais comercializavam um volume muito maior de
drogas prescritas. Mesmo assim, a presença dos genéricos no varejo
aumentou de 17% em 1980 para 30% em 1989 [Masson e Steiner
(1985)].
O que não ocorreu, contudo, foi a disputa esperada entre o
medicamento de marca e seu substituto genérico pelo mesmo mercado
consumidor. Alguns estudos mostram que, na média, os
medicamentos de marca aumentaram seus preços quando os
substitutos genéricos invadiram o mercado [Frank e Salkever (1991),
Grabowski e Vernon (1992)]. Esses acontecimentos foram reportados
mesmo quando os genéricos praticavam preços entre 40% e 70%
abaixo dos preços dos respectivos medicamentos de marca. Este
aparente paradoxo pode ser explicado pela “bifurcação” que ocorre no
mercado consumidor, quando da entrada dos genéricos.
Os consumidores mais sensíveis aos preços dos medicamentos tendem
a optar pelo substituto genérico, como é o caso de hospitais e
não da marca, por isso é interessante para o laboratório fixar a marca, já que a promoção da substância
acaba gerando externalidades informativas (spillover) para os fornecedores de genéricos.
Até certo ponto, fica difícil para o profissional distinguir as dimensões de qualidade relacionadas à
substância daquelas dimensões que separam medicamentos de referência e genéricos. As incertezas
decorrentes criam um diferencial de qualidade percebido pelos agentes, que é apropriado pela firma
líder do mercado através da cobrança de um preço maior associado à marca. No caso em que o
medicamento não tem sua patente reconhecida (como era o caso do Brasil de 1969 até 1998), a
promoção da marca reveste-se de importância ainda maior, pois o laboratório tem de diferenciar seu
produto dos concorrentes que, desde cedo, entram no mercado.
Note-se que, como já comentamos, os entrantes podem replicar os gastos de promoção no lançamento
das novas marcas. No caso da concorrência intramarcas, esse custo deve até ser menor do que o
incorrido pelo pioneiro, pois o médico já conhece a substância e suas propriedades terapêuticas, e cabe
à firma apenas convencê-lo da sua equivalência – ele estaria, então, internalizando o custo da
certificação, a qual estaria dizendo a mesma coisa ao médico. Mas é importante observar que, mesmo
podendo ser menor, esse custo é, como era o do pioneiro, em boa parte irrecuperável, ou ‘afundado’
(sunk cost); ora, uma vez incorrido o custo afundado do pioneiro, ele é irrelevante para o seu
comportamento posterior, enquanto o custo afundado do entrante define a estratégia deste ao entrar.
Mesmo se não admitirmos que o custo é afundado, o ativo intangível que o investimento na marca cria
(um estoque de ‘simpatia’ pela marca, ou goodwill) já está dado para o pioneiro, ao contrário do
entrante” (FIÚZA, Eduardo P. S.; Lisboa, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um
estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 13-14).
118
organizações mantenedoras de saúde. Por outro lado, parcela
considerável do mercado consumidor é avessa ao risco, portanto,
insensível aos preços dos medicamentos, como é o caso de médicos e
de pacientes que não se sentem seguros ou informados devidamente a
respeito da eficácia do substituto genérico. Muitas vezes o médico,
mesmo estando devidamente informado sobre terapias alternativas,
prefere continuar prescrevendo os medicamentos de marca por uma
simples questão de hábito ou mesmo falta de “cultura” no que
concerne à racionalização de custos”119 .
Conforme dados fornecidos pela ANVISA, no seminário internacional
“Acceso a Medicamentos: Derecho Fundamental, papel del Estado” realizado no Rio de
Janeiro em 22 de outubro de 2002, em 50 classes terapêuticas os genéricos atendem
60% (sessenta por cento) da necessidade de prescrição, e os objetivos da divulgação dos
medicamentos genéricos foram alcançados pois, em pesquisa realizada com 2.200
consumidores de medicamentos, com idades entre 16 e 74, interceptados em drogarias
de 236 municípios de 16.11 a 12.12.2001, constatou-se que:
– 95% (noventa e cinco por cento) dos consumidores conhecem os
genéricos e 91% definiram estes medicamentos corretamente;
– 80% (oitenta por cento) dos consumidores confiam que o genérico faz
o mesmo efeito (ou seja, acreditam na intercambialidade do produto);
– 71% (setenta e um por cento) dos consumidores reconhecem os
genéricos, 55% pelo G da embalagem e 16% de outras formas;
– 7,2% consultam a lista de medicamentos genéricos.
Contudo foram detectados os seguintes problemas na sua implantação no
Brasil:
– oferta pouco diversificada e insuficiente de genéricos;
– dificuldades na montagem de processos de registro pelas empresas;
– demora na concessão do regis tro – 150 a 180 dias (como vimos, na
opinião do setor regulado, o prazo será bem maior);
– dúvidas quanto à manutenção da qualidade dos genéricos pós-registro;
– dificuldade na identificação dos genéricos no momento da compra e
“Empurroterapia” do similar com denominação genérica.
Acrescentamos a estes um problema novo trazido pelo controle de preços
de medicamentos com as resoluções da CMED relativas à estipulação de preços de
lançamentos de medicamentos genéricos, que estabelecem que estes devem
119
FIÚZA, Eduardo P. S.; Lisboa, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo
econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 25.
119
obrigatoriamente ser 30% mais baratos que os medicamentos de referência, o que pode
impedir o lançamento de medicamentos genéricos que não possam atingir esse patamar
mantendo margens de lucro atrativas.
Quanto a esses aspectos, o mais alarmante do ponto de vista da
concorrência é, em nossa opinião, o aspecto das dúvidas quanto à manutenção da
qualidade do genérico na medida em que poderá levar a um comportamento do
consumidor de não considerar todos os genéricos intercambiáveis entre si, mas tãosomente aqueles produzidos por determinadas empresas, criando a figura de um
medicamento genérico de grife, que poderá ter o mesmo comportamento daquele
medicamento que mantém uma marca reconhecida no mercado, o que já se verifica com
o lançamento de medicamentos genéricos por laboratórios fabricantes de medicamentos
de marca líder de mercado.
Ademais, do ponto de vista social, as iniciativas relativas ao
medicamento genérico resolvem apenas parte do problema do acesso a medicamentos,
uma vez que apenas a parcela da população que já tem acesso aos medicamentos passa a
consumi- los, enquanto aquela parcela realmente pobre, que a eles não tem acesso,
continua sem tê- lo, pois não tem a renda mínima para comprar até mesmo os
medicamentos genéricos.
5.2.4. Problemas de agência
Os medicamentos são bens credenciais e, por isso, apenas um especialista
terá condições de avaliar suas características reais e, portanto, sua eventual
intercambialidade, o que já é suficiente para gerar os problemas de assimetria das
informações em relação a qualquer produto ou serviço.
Ademais, no caso de medicamentos, temos ainda um outro complicador
que é o fato de que quem opta pela compra do produto não é o paciente, mas sim o
médico, ao definir o tratamento indicado. O estudo do tema é feito pela chamada teoria
da agência:
O modelo básico da teoria da agência apresenta dois atores –
denominados principal e agente – que se relacionam por meio de uma
transação qualquer. O principal é um ator cujo retorno depende da
ação de um agente ou de uma informação que é propriedade privada
120
deste último. Assim, a característica fundamental de uma relação entre
principal e agente é a “assimetria de informações”, tendo o agente
uma informação que o principal não dispõe.
Essa relação introduz dois tipos de problemas transacionais, relevantes
para a decisão sobre o modo como devem se organizar as firmas e
suas relações com fornecedores e clientes. O primeiro problema ficou
conhecido como risco moral, referindo-se à possibilidade de o agente
fazer uso de sua informação privada em benefício próprio após a
celebração de um contrato, eventualmente impondo prejuízos ao
principal.
Dois tipos de risco moral podem ser distinguidos: a) informação
oculta (hidden information) – em que as ações do agente são
observáveis e verificáveis pelo principal, mas uma informação ao
resultado final é adquirida e mantida pelo agente; e b) ação oculta
(hidden action) – em que as ações do agente não são observáveis.
Uma ação é observável se o principal é capaz de avaliá -la em
qualidade e/ou quantidade, mesmo que isso não implique alguma
forma de mensuração. Uma ação é verificável se, além de observável
pelo principal, este tenha meios de provar que a observou perante a
instância responsável pela resolução das querelas contratuais – por
exemplo, um tribunal120 .
Nessa situação, o principal fica à mercê do agente na definição de sua
participação na relação econômica, o que torna desvinculado do interesse do principal o
equilíbrio na fixação do preço do produto consumido.
O exemplo clássico de risco moral com informação oculta é a relação
entre paciente (principal) e médico (agente). A ação do médico – uma
operação ou aplicação de um medicamento – é, presume-se,
observável. No entanto, o médico, por meio de exames e amparado
pela obscuridade de seu conhecimento, adquire uma informação
privada essencial à transação em questão, qual seja o diagnóstico. O
paciente pode exigir contratualmente o acesso a essa informação
privada, o que aparentemente eliminaria o problema de risco moral.
No entanto, mesmo que o paciente fique ciente de um diagnóstico,
nada assegura que este seja de fato verdadeiro. Em outras palavras, se
o agente tiver motivos para mentir, o diagnóstico fornecido será inútil,
não resolvendo o problema da assimetria informacional. Um obstetra
poderia, por exemplo, recomendar uma cesariana (pela qual, supõe-se,
receberia mais que por um parto normal), sem que a situação do
paciente exigisse este tipo de tratamento. Não havendo qualquer
restrição ética ao comportamento do médico, ele poderia mentir na
apresentação do diagnóstico, de modo que fizesse uso dos incentivos
financeiros que a realização de uma cesariana implicaria. Nesse caso,
o médico estaria usando a assimetria informacional em benefício
próprio, influindo negativamente sobre o retorno que o principal
(paciente) pretendia obter na transação121 .
Outra hipótese que não parte da má- fé do médico, mas, pelo contrário, de
sua boa-fé em obter os melhores resultados com o menor risco para o paciente, e para si
120
121
PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 220.
PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 220.
121
mesmo, é aquela em que o médico seleciona o melhor tratamento existente, sem
considerar os custos envolvidos – situação bastante evidente por exemplo em termos de
requintados exames diagnósticos.
Temos então situação em que o médico poderá prescrever o
medicamento a ser comprado pelo paciente sem se preocupar com o impacto econômico
dessa prescrição e, exceto no caso da existência de medicamento genérico, o paciente
não terá opção além e comprar o medicamento indicado.
Somando-se a isto o fato de os médicos tenderem a aderir mais
fortemente à marca do primeiro medicamento que conheceram para tratar aquela
moléstia, temos um tipo de intercâmbialidade viscosa para o agente, que será mais
viscosa, pois o agente não terá motivação para buscar uma alternativa ; pelo contrário,
sua motivação será permanecer em solo seguro. Isso tudo combinado é causa de grande
dificuldade para os desafiantes no mercado farmacêutico e, portanto, gera uma
tendência anticoncorrencial que deve ser combatida nos termos do artigo 170, inciso IV,
da Constituição Federal, para se atingirem os objetivos de seus artigos 196 e 197.
Contudo, não se trata de prática abusiva para aumento arbitrário dos
lucros do ou dos líderes de mercado, punível em face da legislação antitruste, que é
lastreada no § 4.º do artigo 173 da Constituição Federal de 1988, de modo que se devem
buscar outras soluções para o problema, como foi a louvável iniciativa dos
medicamentos genéricos.
Como visto, são diversas as falhas de concorrência no mercado de
medicamentos que reduzem o acesso da população aos medicamentos; apesar disso,
deve-se ter em mente que a solução desses problemas não elimina o problema da
população como um todo, pois conforme a política nacional de medicamentos (Portaria
3.916/MS/GM, de 30 de outubro de 1998), temos três segmentos de consumidores de
medicamentos que se comportam de maneiras diferentes:
a) o segmento com renda acima de 10 salários mínimos, com despesa
média anual de US$ 193,40 (cento e noventa e três dólares norte-americanos e quarenta
centavos) per capita, que tem farta cond ição de comprar os medicamentos e que tem
baixa elasticidade de procura em relação ao preço, normalmente serão os segmentos em
que os líderes de mercado se fixam após a perda de proteção patentária;
b) o segmento com renda entre 4 e 10 salários mínimos, com despesa
média anual de US$ 64,15 (sessenta e quatro dólares norte-americanos e quinze
centavos), que tem condição de comprar os medicamentos, mas que tem grande
122
elasticidade de procura de marcas em relação ao preço, mas em se tratando de
medicamentos tem baixa elasticidade para a procura de tratamentos, obviamente em
relação com a sua essencialidade; e
c) o segmento com renda entre 0 e 4 salários mínimos, com despesa
média anual de US$ 18,95 (dezoito dólares norte-americanos e noventa e cinco
centavos), que não tem qualquer condição de adquirir medicamentos e, portanto, está na
situação muito próxima de inexistência de elasticidade em relação a preço, pois por
mais baratos que os medicamentos se tornem ainda estarão acima de seu poder de
compra – conforme informação divulgada pela Associação Pró-Genéricos, 50% dos
pacientes que precisam de um medicamento não podem comprá- lo e abandonam o
tratamento.
O consumo per capita de Medicamentos no Brasil em 2001 pode, assim,
ser representado no quadro a seguir:
Ilustração 13 Distribuição do consumo de medicamentos por classe social 2001
Dessa forma, na classe B, na qual os medicamentos têm baixa
elasticidade de procura em relação aos preços, os medicamentos acabam seqüestrando
grande parte da renda das famílias; e na classe C, em que a procura é praticamente
inelástica, temos um grande contingente de excluídos, o que gera um problema social
que não pode ser resolvido por uma diminuição de preço dos medicamentos, mas
apenas por uma elevação de renda.
Entre novembro de 1999 e maio de 2000, a Câmara dos Deputados
realizou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para verificar a situação do acesso da
população brasileira aos medicamentos. A CPI dos Medicamentos desenvolveu intensa
programação de trabalho, tendo sido realizadas 64 reuniões, compreendendo audiências
públicas e reuniões de trabalho investigatório. Foram recebidos 2.488 documentos,
contendo assuntos gerais e 150 mil documentos referentes à quebra de sigilo bancário.
Transcrevemos uma pequena parte de seu relatório, que na época retratou o drama do
123
acesso aos medicamentos pela população brasileira, que levou o Governo Federal a
buscar no controle de preços de medicamentos a solução para a crise.
Segundo a revista americana The Economist, O Brasil é o 9.º país do
mundo em consumo de medicamentos, mas, quando se trata de
consumo per capita , ficamos atrás de mais de cinqüenta países.
Enquanto alguns grupos sociais no Brasil têm um consumo anual
semelhante aos dos países avançados, a grande maioria da população
tem um consumo parecido com aqueles dos países mais pobres do
mundo.
Certamente, no interior do segmento de menor consumo per capita ,
existem grupos cuja despesa média anual é próxima do zero. Estes
grupos dependem exclusivamente dos programas governamentais.
Outros grupos, apesar de terem algum consumo, com despesa própria,
despendem uma grande parte dos seus recursos para comprar
remédios, deixando de atender outras necessidades, ou então, não
conseguem comprar todos os medicamentos de que necessitam.
O processo de envelhecimento da população brasileira, e o
conseqüente aumento da incidência e prevalência de doenças crônicodegenerativas, torna ainda mais dramática a situação daqueles que não
podem comprar medicamentos por sua própria conta e cria uma
demanda cada vez maior, e de maior custo, para o sistema de saúde.
Pelas evidências encontradas por esta CPI, podemos inferir que, sob o
ponto de vista da saúde pública, temos um duplo problema: por um
lado, um segmento com amplo acesso aos medicamentos,
consumindo-os de forma abusiva e equivocada, conseqüência da
extrema liberalidade de ação das farmácias e drogarias que vendem
qualquer medicamento a qualquer pessoa que as procure; por outro
lado, temos um grande contingente de população que não tem poder
aquisitivo suficiente para comprar no mercado os produtos de que
necessita, que depende dos programas governamentais do SUS, da
assistência social ou da caridade alheia 122 .
Inobstante esse entendimento da própria CPI dos Medicamentos e a
própria experiência nacional com controles de preços, tal foi a solução dada para as
falhas de concorrência no mercado de medicamentos que apontamos, que passamos a
analisar, e sua capacidade de aumento do acesso da população aos medicamentos, para
verificar sua validade em face dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988,
estudando a aplicação da tese por nós defendida.
122
Relatório da CPI dos Medicamentos, título VI.
124
6. CONTROLE DE PREÇOS DE MEDICAMENTOS
A experiência de controle e de intervenção de preços de medicamentos
no Brasil modernamente pode ser dividida em vários períodos: a) o controle de preços
realizado pelo extinto Conselho Interministerial de Preços – CIP, nos anos 1970/1980;
b) a política do período dos Planos Collor I e II (1990/1992); c) o período de
acompanhamento informal de preços que antecedeu o Plano Real (1993/1994); d) a
liberação gradual do período mais recente (1997/1999) e, finalmente, o retorno de sua
regulamentação, que é o objeto deste estudo.
Nas décadas de 1970/1980 quase todos os preços da economia, em
especial os de medicamentos, eram controlados diretamente pelo CIP. Exceção feita aos
medicamentos fitoterápicos, oficinais e homeopáticos, todos os demais eram
administrados por aquele órgão.
O CIP foi criado pelo Decreto 63.196/1968 com a finalidade de realizar o
acompanhamento de preços e de orientação geral da economia brasileira, tendo como
membros os Ministros da Fazenda, da Indústria e Comércio, da Agricultura e do
Planejamento e Coordenação Geral.
Para aparelhar suas competências o CIP tinha poderes para (i) requisitar
informações e esclarecimentos dos agentes econômicos, bem como apresentação prévia
de preços programados, (ii) para restabelecer níveis de preços e (iii) determinar a
intervenção do domínio econômico com base na Lei Delegada 4/1962 e a repressão ao
abuso do poder econômico com base na Lei 4.137/1962.
A aprovação de preços de medicamentos era feita pela Superintendência
Nacional do Abastecimento (SUNAB) por força da Lei Delegada 5/1962.
A edição do Decreto- lei 808/1969 pela Junta Militar que governava o
País acabou concedendo todos os poderes para o CIP ser o órgão encarregado de
aprovar os aumentos de preços de diversos produtos, inclusive os medicamentos.
A lógica de determinação de preços pelo CIP, conforme os artigos 5.º e
6.º do Decreto 63.196/1968, seguia a linha de que os custos adicionados a um lucro
considerado razoável pelos administradores públicos deveria ser igual ao preço
autorizado, de modo que, em uma economia fechada, bastava que o agente econômico
demonstrasse ao órgão um aumento de custos para automaticamente lhe ser concedido
125
um aumento de preço e, conseqüentemente, de faturamento, independentemente de
qualquer esforço para aumentar sua participação no mercado ou até para ampliar seu
mercado específico.
Todavia, os resultados dessa política foram desastrosos, na medida em
que o empresariado nacional, bem como as empresas multinacionais aqui instaladas,
não buscaram mais uma melhoria em seus processos de produção com a queda de
custos, já que isto se refletiria em uma barreira no momento da negociação de aumento
de preços com o CIP.
Sabe-se, por exemplo, que a Central de Medicamentos – CEME, órgão
responsável pelo incentivo à produção nacional de medicamentos, que acabou se
transformando simplesmente em comprador de medicamentos para as iniciativas
governamentais, enfrentou, durante muito tempo, problemas de falta de oferta de
diversos medicamentos, que, segundo os fornecedores, ocorreu por insuficiência de
margem de lucro, em razão do controle exercido pelo CIP.
O CIP, no entender de muitos empresários, foi o grande responsável
pelas irregularidades de oferta de muitos medicamentos básicos no mercado na década
de 1980. Os medicamentos mais tradicionais eram justamente os mais controlados, pelo
seu maior consumo e necessidade.
Em síntese, os empresários, para driblar o controle de preços, passaram a
adotar vários expedientes, tais como: cobrança de ágio; “maquiagem” de produtos –
pequenas modificações nos produtos controlados para justificar preços acima do
permitido; adicional de frete; venda casada; superfaturamento, via compra direta da
matriz; uso de matérias-primas e embalagens inferiores e até aumentos com autorização
forjada. Se impossível a adoção de quaisquer desses expedientes, ocorria o
desabastecimento.
No início do Governo Collor, em março de 1990, quando se deu fim à
existência do CIP 123 , os preços dos medicamentos e os demais preços da economia
foram congelados em face do descontrole inflacionário (Portaria MDFP 106, de 16 de
abril de 1990, Plano Collor I). Em agosto do mesmo ano, iniciou-se o processo de
liberação de preços do setor e, em outubro, apenas os medicamentos de uso contínuo
permaneceram sob controle. Esse período caracterizou-se por fortes elevações de
123
Cuja extinção se deu por meio da Lei 8.030, de 12 de abril de 1990, que instituiu a nova sistemática
para reajuste de preços e salários em geral.
126
preços, o que motivou um no vo congelamento de preços em fevereiro de 1991, agora
sob a égide do Plano Collor II.
O período de descongelamento do Plano Collor II teve início com a
instalação das Câmaras Setoriais 124 , mais especificamente com a Câmara Setorial da
Indústria Farmacêutica. A partir da primeira reunião dessa Câmara, ocorrida em 24 de
maio de 1991, teve início uma nova fase de reajustes de preços no setor, com a
autorização de um aumento linear de 8% para todos os produtos (Portaria MEFP 418, de
29 de maio de 1991).
Em junho foi autorizado novo reajuste (Portaria MEFP 430, de 3 de
junho de 1991): os medicamentos de uso contínuo foram reajustados em 10,8%, e os de
uso especial, em 6,48%.
Na segunda reunião da Câmara Setorial, ocorrida em 28 de junho de
1991, foi autorizado novo reajuste de preços em forma de um abono no preço de venda,
que variou de Cr$ 50,00 a Cr$ 1.250,00 (Portaria MEFP 594, de 3 de julho de 1991),
ocasião em que foram liberados os preços dos homeopáticos, fitoterápicos e oficinais,
medicamentos tradicionalmente liberados pela política de controle de preços. Nas duas
reuniões seguintes, ocorridas em julho e setembro de 1991, novos reajustes foram
acordados (Portarias MEFP 156, de 19 de agosto de 1991, 206, de 16 de setembro de
1991, e 953, de 7 de outubro de 1991).
Na reunião de setembro ficou determinado para o mês seguinte o reinício
do processo de liberação gradual de preços do setor, abrangendo 100 classes
terapêuticas, assim classificadas: classes de venda livre, classes de receituário médico e
de doenças crônicas. Iniciou-se o processo pelas classes de maior número de
medicamentos e de empresas, sendo a primeira etapa autorizada pela Portaria MEFP
940, de 8 de outubro de 1991, que liberou 24 classes terapêuticas de venda livre. Com
as Portarias MEFP 275, 309 e 363, respectivamente, de 7 de novembro de 1991, 27 de
novembro de 1991 e de 20 de dezembro de 1991, foram iniciadas a segunda, a terceira e
a quarta fases do processo de liberação de preços, com a inclusão do segundo, terceiro e
quarto grupos de classes terapêuticas, permanecendo sob controle apenas as classes
terapêuticas de doenças crônicas. Finalmente, em maio de 1992, foram liberados do
controle governamental todos os preços dos produtos farmacêuticos da linha humana
por meio da Portaria MEFP 37/1992.
124
Grupos de trabalho que tinham a participação de órgãos do governo e representações da iniciativa
privada para propor medidas para o Governo ao lidar com diversos mercados relevantes.
127
No período que antecedeu o Plano Real, os preços foram convertidos
para a URV pela média dos meses de setembro a dezembro de 1993, de acordo com o
disposto na Medida Provisória 542, de 30 de junho de 1994, que tratou do Plano Real.
De junho de 1994 até o final de 1996, o Governo manteve um entendimento informal
com a indústria farmacêutica, por intermédio do qual foram fixados parâmetros de
aumentos de preços a cada seis meses. Qualquer reajuste fora desse acerto era
encaminhado à SDE/CADE, para ser objeto de investigação no âmbito da Lei
8.884/1994.
Entre 1997 e 1999, o Governo, com base no disposto no art. 10 da Lei
9.021/1995, baixou a Portaria 127, de 27de novembro de 1998, que estabeleceu nova
sistemática de acompanhamento de preços, determinando a obrigação de os laboratórios
farmacêuticos comunicarem à Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE do
Ministério da Fazenda os aumentos de preços dos remédios sujeitos à prescrição
médica.
Após a desvalorização cambial de janeiro de 1999, a SEAE firmo u um
acordo de cavalheiros com os laboratórios nas seguintes bases: a) nos produtos
importados prontos, o repasse do câmbio foi realizado em duas parcelas, projetando-se
uma taxa de câmbio escalonada em duas etapas: a partir de R$ 1,21 em fevereiro, para
R$ 1,43 em março e R$ 1,70 em abril. Para as matérias-primas importadas ficou
acertado o repasse em três parcelas: R$ 1,36 em março; R$ 1,52 em abril; e R$ 1,70 em
maio.
No período julho/agosto de 1999, vigorou novo acordo objetivando o
repasse do impacto das variações cambiais sobre os demais insumos (basicamente
embalagens). Segundo a SEAE, o aumento médio acumulado foi de 8,0%.
No final do ano 2000 foi editada a Medida Provisória 2.063, de 18 de
dezembro de 2000, logo substituída pela Medida Provisória 2.138-2, de 28de dezembro
de 2000, convertida na Lei Ordinária 10.213 aos 27 de março de 2001.
Referidas normas instituíram novamente no Brasil o regime de
congelamento e controle de preços de atividades particulares, especificamente dos
preços de venda de medicamentos.
O controle de preços de medicamentos foi atribuído à Câmara de
Medicamentos – CAMED, conforme estipulado pelo artigo 12 da Lei 10.213/2001, que
seria responsável pela aprovação e análise de tais preços, bem como dos seus aumentos
128
extraordinários e exclusão de categorias de produtos desse regime, entre outras
atividades.
Após a extinção da CAMED, pelo término da vigência da Lei
10.213/2001 em dezembro de 2002, foi feito um acordo entre a indústria farmacêutica e
o novo governo para a manutenção dos preços de medicamentos.
A proliferação de legislação relativa à saúde decorreu, evidentemente, da
importância social dada ao tema. Por sua vez, a maciça intervenção estatal no mercado
de medicamentos decorreu de sua crescente essencialidade na manutenção da saúde da
população e, no caso particular do Brasil, do inexorável aumento da barreira existente
entre aqueles que precisam dos medicamentos e o acesso a estes.
As tabelas abaixo demonstram uma queda no consumo total de unidades
de medicamentos no País 125 , um aumento de faturamento com vendas, se medido em
reais, e uma queda desse faturamento se medido em dólares norte-americanos, para o
período entre 1997 e 2003, portanto tanto sob o congelamento de preços quanto em
período de liberdade de preços.
A acentuada queda nas vendas de medicamentos é um indicativo do
problema social de falta de acesso aos medicamentos, que se tornou também um drama
da iniciativa privada, que vê o mercado de medicamentos cair a cada dia, com inegável
impacto em seu faturamento, apesar da possibilidade de manutenção de lucro bruto em
mercados monopolizados.
125
Fonte: Grupemef, elaborada pela Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica – Departamento de
Economia.
129
Ilustração 14 Mercado Farmacêutico 1997 – 2003 (barras)
Ilustração 15 Mercado Farmacêutico 1997 – 2003 (linhas)
Por conta dos aspectos já estudados, os preços de medicamentos muitas
vezes são elevados por refletirem as falhas de concorrência existentes no mercado, o
que é agravado pelo poder conferido aos fornecedores, tendo em vista a baixa
elasticidade da procura por conta da essencialidade do bem.
130
Em virtude das externalidades geradas pelo fornecimento de bens e
serviços em saúde e sua importância na interdependência social, estes são considerados
serviços públicos impróprios e, embora no Brasil sua exploração seja permitida para os
agentes econômicos da iniciativa privada, estes são regulamentados pelo Estado,
inclusive por determinação constitucional.
Os problemas relativos ao mercado de medicamentos e sua importância
social não são exclusividade do Brasil, embora aqui os problemas sejam agravados por
não termos a criação de medicamentos inovadores pela indústria nacional, que também
não tem como característica a detenção de marcas líderes de mercado, além dos
problemas graves de distribuição de renda.
Desta forma, diversos países criaram modelos de regulação do mercado
de medicamentos, conforme tabelas trazidas pelo estudo do Ipea sobre a indústria
brasileira de medicamentos 126 , que espelham as principais políticas de regulação de
preços de medicamentos adotadas pelos países europeus, a primeira (10) com as
políticas de intervenção e reembolsos e a segunda (12) 127 com as políticas para a
diminuição de custos nos atos de prescrição, dispensação e consumo.
126
FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L., Bens credenciais e poder de mercado: um estudo
econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p.17-21.
127
“As políticas relacionadas na Tabela 12 podem ser descritas sucintamente da seguinte forma: Listas
Positivas e Negativas: As agências de controle de qualidade de medicamentos podem aprovar um
medicamento para ser lançado no mercado, mas isso não significa que ela os considere custo-efetivos,
e, portanto, não necessariamente os medicamentos aprovados para consumo serão elegíveis para
reembolso pelo sistema social de saúde. As listas que excluem determinados medicamentos do
reembolso são ditas ‘listas negativas’ Diretrizes de Prescrição: Na verdade, essa é uma medida
relacionada à provisão de informação, e equivale aos guias terapêuticos já sugeridos. Em alguns casos,
esses guias estão disponíveis sob forma de programas de computador. Mas o monitoramento é
necessariamente uma medida de enforcement para que o comportamento de prescrição do médico seja
avaliado por seus pares. Cadastros únicos dos pacientes são manipulados com este fim, seja por meio da
instituição do “guardião”, que é um clínico geral incumbido da triagem dos pacientes, seja através do
uso de um smartcard. Orçamentos de Prescrição: Médicos individuais, grupos de médicos (Reino
Unido) ou até regiões (Alemanha) são sujeitos a restrições orçamentárias, cujo enforcement se dá
através de multas por excesso de despesa ou partilha de ganhos em caso de economia de recursos.
Substituição de Medicamentos na Dispensação: Em geral, os farmacêuticos têm de dispensar
exatamente o prescrito. Segundo Hudson (2000), na Europa os médicos freqüentemente especificam
simplesmente o nome genérico do medicamento. Na maioria desses países, a substituição só é permitida
em emergências ou casos excepcionais, e tem de haver o consentimento do médico, tick -in (em vez de
haver a substituição a não ser que o médico proíba), (tick -out). Controle de Preços ou Preços de
Referência: O preço de referência é o preço do medicamento (genérico) mais barato, e os custos são
reembolsados só até esse valor; qualquer valor acima disso é pago pelo paciente ou pelo médico. Copagamento: Fazendo o paciente pagar por medicamentos parcialmente, o sistema de saúde o incentiva a
cobrar do médico prescrições mais baratas. Prescrição de Genéricos: Em alguns países, a prescrição de
genéricos é encorajada como forma de baixar custos; em outros, onde os preços são baixos, os
genéricos não são devidamente promovidos” (FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens
credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 1721).
131
Ilustração 16 Controle de preços de medicamentos – referências internacionais
Verificamos, portanto, que em diversos países apenas os medicamentos
passíveis de reembolso têm seus preços controlados, numa fórmula mais suave apenas
quanto ao valor do próprio reembolso e, em uma mais incisiva, quanto ao preço do
medicamento em qua lquer situação, caso este esteja incluído nas listas de reembolso.
Nesse aspecto temos uma aproximação do sistema de adesão vigente nos
serviços públicos próprios, em que o particular adere ao contrato administrativo que lhe
impõe a submissão ao controle estatal para ter um benefício econômico, pois também os
fabricantes de medicamentos nesses países estarão sujeitos ao controle de preços de
medicamentos reembolsáveis, mas em troca terão um incremento de suas vendas
impulsionado pelo próprio reembolso.
132
Ilustração 17 Políticas de contenção de gastos em medicamentos – referências internacionais
Nesta tabela percebemos que os países europeus se valem de diversas
estratégias combinadas para combater as falhas do mercado de medicamentos e, assim,
garantir a competição entre os fornecedores, que resulta em uma diminuição de preço.
As listas de medicamentos passíveis de reembolso são um forte impulso
para que o fornecedor mantenha preços baixos para seus produtos, pois apenas assim
estes serão eleitos para reembolso pelos sistemas públicos de saúde. Dessa forma, o
agente econômico não é obrigado a praticar preços baixos, mas é induzido a obter um
aumento de vendas de seus produtos.
As diretrizes de prescrição para os médicos visam tratar do problema de
agência, fazendo com estes tenham a preocupação com os custos dos tratamentos que
prescrevem. No mesmo sentido estão os orçamentos de prescrição que são concedidos a
grupos de médicos para manejarem os custos dos tratamentos de uma população que
está sob sua atenção, com recompensa financeira em caso de êxito.
Os incentivos à prescrição de medicamentos genéricos visam ao combate
ao problema de assimetria de informações, conforme mencionamos anteriormente, o
que pode ser reforçado pela permissão de substituição da prescrição médica de um
medicamento de marca por um medicamento genérico pelo farmacêutico.
O co-pagamento visa combater um problema que existe nesses países,
que é o aumento do custo de tratamento impulsionado pelos próprios pacientes, que por
133
não arcarem com os custos dos medicamentos, que são reembolsados pelo sistema
público, não têm uma preocupação com seus custos. O problema não existe no Brasil,
pois não temos políticas públicas de reembolso com gastos em medicamentos, temos
apenas políticas de dispensação direta destes pelo Estado.
O controle de preços por meio do estabelecimento de preços de
referência, nesses países, não é feito nos moldes brasileiros, com a pura e simples
imposição de um preço de venda, mas apenas com a imposição de um preço para o
reembolso do medicamento pelos sistemas públicos, de modo que o agente econômico é
induzido e não obrigado a praticar preços dentro de um patamar desejado pelo órgão
regulador.
Já os Estados Unidos da América se caracterizam pela peculiaridade de
terem uma reduzida participação do Estado no financiamento de gastos da população
com saúde, pois grande parte da população dispõe de seguros e planos de assistência
médica privados, o que não impede que também sofram com o incremento de gastos
com a saúde, que foram atacados pelo governo por meio de reformas na regulação dos
seguros-saúde nas décadas de 1970 e 1980.
O sistema preponderante até a década de 1980 era o de reembolso dos
gastos dos segurados com medicamentos; como o médico era o fator determinante
desses gastos, estava presente o problema de agência já discutido, agravado pela
conhecida indústria norte-americana das indenizações, que fazia que os médicos não
poupassem gastos que pudessem livrá-los de qualquer responsabilidade por má conduta,
o que levou ao aumento de gastos com a saúde.
A desregulamentação dos contratos de seguro a partir de meados dos
anos 1970 deu liberdade às seguradoras de criarem um novo sistema, o Managed Care,
cujas características fundamentais são: (i) o apontamento pelo segurado de um médico
responsável por indicar e aprovar quaisquer gastos com procedimentos ou
medicamentos, e (ii) os contratos de honorários médicos que contêm incentivos
financeiros, que refletem os custos e benefícios de longo prazo obtidos com os
tratamentos dos pacientes individuais e, também, da totalidade de seus pacientes, além
do o paciente ter sempre o direito de indicar outro médico para a função.
Dessa forma, o médico estará preocupado com os custos de tratamento,
pois estes refletem em sua remuneração, e também com a saúde do paciente, para evitar
134
que este o substitua e também para que lhe indique outros pacientes, além de também se
preocupar com o aspecto estatístico daquele grupo que está sob sua gestão 128 .
Sendo assim, existe naquele mercado forte pressão por parte dos
financiadores privados de tratamentos médicos e também pelo sistema público,
medicare e medicaid, e, ainda pelos hospitais, para a troca dos medicamentos de marca
pelos medicamentos genéricos, tendo em vista a redução de custos acarretada pela troca.
A situação de mercado nesses países difere da do Brasil, pois “nos países
desenvolvidos, o custo dos medicamentos é, em geral, reembolsado ao paciente ou pago
diretamente ao fornecedor, seja pelo Estado (arranjo mais comum na Europa e Japão),
ou por organizações privadas (caso dos Estados Unidos). A coincidência entre pagador
e regulador significa que há incentivos em fazer fluir a informação e superar o
problema dos bens credenciais, pois os benefícios são apropriados pelo mesmo
ente”129 .
A legislação brasileira relativa aos planos de saúde, bem como a
regulação proveniente da ANS, não prevê a prestação de assistência farmacêutica com o
fornecimento de medicamentos aos pacientes, deixando ao arbítrio de cada operadora de
plano de saúde optar ou não pelo seu fornecimento. Como referidas operadoras
efetivamente não optam por tal fornecimento espontaneamente, o Brasil não conta com
os benefícios da pressão que as operadoras de plano de saúde poderiam fazer para a
redução dos preços de medicamentos.
6.1. Legislação brasileira recente de controle de preços de medicamentos
No Brasil, historicamente, a regulação de mercados muitas vezes é feita
pelo controle ou congelamento de preços. Em verdade, o congelamento de preços nada
128
“Em Andrade e Lisboa (2000) sistematiza-se a evidência dos impactos do Managed Care tanto sobre
os gastos médios com saúde quanto com a sua taxa de crescimento, ambos inferiores ao do sistema de
contrato tradicional. Além disso, há evidência de que os médicos realizam uma quantidade maior de
exames preventivos no Managed Care do que no sistema tradicional. Em Lisboa e Moreira (2000)
mostra-se que os grupos com maiores perdas de renda em caso de doença, precisamente a PEA, são os
maiores beneficiados pelos contratos de Managed Care, enquanto a população idosa pode preferir os
contratos tradicionais que, ainda que mais caros, oferecem maiores benefícios no curto prazo. Esse
resultado, como discutido em Andrade e Lisboa (2000), é consistente com os fatos estilizados do
mercado de seguros norte-americano em que a maior parte da PEA revela preferência pelo primeiro
tipo de contrato” (FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de
mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 23).
129
FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo
econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 17.
135
mais é do que um controle de preços com prazo prefixado de manutenção dos preços
tabelados, pelo que daremos o mesmo tratamento a ambos.
Importante neste ponto fazer menção a que nossas críticas ao controle de
preços são voltadas para a atividade privada, não se referindo aos serviços públicos
prestados por particulares, em regime de concessão de maneira mono ou oligopolizada
ou prestados em regime de direito público, na medida em que nestes não temos
concorrência que pudesse levar a uma estabilização de preços, pois estamos diante de
um monopólio legal.
Após o CIP e os congelamentos gerais de preços em nossa economia,
tivemos uma situação de liberdade em relação ao tema específico de preços de
medicamentos, exceto pelos processos abertos pelo CADE por abuso de poder
econômico, os quais foram por uma razão ou outra todos arquivados.
No apagar das luzes do ano de 2000, foi, novamente, implementado o
congelamento e controle de preços de medicamentos por meio da Medida Provisória
2.063, de 18 de dezembro de 2000, logo substituída pela Medida Provisória 2.138-2, de
28 de dezembro de 2000, que foi até sua 4.ª (quarta) reedição, e, finalmente, se
transformou na Lei 10.213, de 27 de março de 2001, que congelou os preços de todos os
medicamentos pelo prazo de 1 (um) ano, permitindo aumentos por meio de uma
complexa fórmula que aplicava o chamado Índice Paramétrico de Medicamentos.
O controle de preços de medicamentos foi atribuído à Câmara de
Medicamentos – CAMED, conforme estipulado pelo artigo 12 da Lei 10.213/2001, que
seria responsável pela aprovação e análise de tais preços, bem como dos seus aumentos
extraordinários, e exclusão de categorias de produtos desse regime, entre outras
atividades.
Muito embora a Lei 10.213/2001 tivesse previsão, em seu artigo 12, de
uma forma de aumento de preços de medicamentos, tal aumento era extraordinário e
excepcional, de modo que o ordinário em sua aplicação foi o congelamento dos preços,
até porque não havia na lei critérios claros para a concessão desse aumento de preços.
Os artigos 5.º e 6.º da Lei 10.213/2001 estabeleciam critério sui generis
para a sujeição dos laboratórios farmacêuticos ao congelamento de preços, dividindo as
empresas em duas classes distintas conforme tivessem praticado aumento dos preços de
seus produtos no período de 1.º de novembro de 1999 a 31 de outubro de 2001 em
percentual: (i) maior ou igual; ou (ii) menor ao Índice Paramétrico de Medicamentos,
arbitrariamente fixado em 4,4% (itens 2.1 e 2.2 do anexo da Lei 10.213/2001).
136
As empresas que se enquadravam no primeiro grupo não podiam
aumentar seus preços enquanto perdurasse o congelamento, e as empresas que se
enquadrassem no segundo grupo poderiam aumentar seus preços em janeiro de 2001 até
o limite do Índice Paramétrico de Medicamentos (4,4%) considerado, no período de 1.º
de novembro de 1999 a 31de outubro de 2001, respeitado o limite de 135% do Índice
Paramétrico de Medicamentos.
Dessa forma, as empresas sujeitas ao congelamento de preços tinham sua
conduta posterior à vigência da Lei 10.213/2001 (possibilidade de utilização do
aumento em janeiro de 2001) determinada por atos praticados antes dessa vigência
(entre 1.º de novembro de 1999 e 31de outubro de 2001).
Com isso, a Lei 10.213/2001 impunha, de maneira dissimulada, a
retroação dos seus efeitos, penalizando aqueles que, antes de sua vigência, adotaram
conduta, que foi arbitrariamente vedada, qual seja ter aumentado seus preços acima do
limite de 4,4% naquele período.
Ora, a irretroatividade das leis existe justamente para impedir desmandos
e perseguições, para impedir que alguém seja penalizado por conduta imutável, pois
pretérita, uma vez que os sujeitos passivos da lei só devem, pois só podem, obedecê- la
após sua vigência ou pelo menos, após sua existência, momento em que têm a
consciência da conduta que a lei lhes impõe.
Ademais, a irretroatividade das leis também protege o cidadão, em um
sistema onde o criador da lei não conhece aqueles que por ela serão atingidos, pois sua
incidência dependerá de atos futuros, evitando a criação de leis com “alvo s certos”, o
que, exemplificando, pelo absurdo, seria equivalente ao governante, querendo castigar
fulano, criar norma por medida provisória tornando crime conduta praticada no dia 17
de abril de 2001 que ele, de antemão, sabe que foi praticada por este.
Portanto, a Lei 10.213/2001 éinconstitucional por ferir o artigo 5.º, inciso
XXXVI, da nossa Constituição Federal, que trata da irretroatividade das leis.
A lei em questão também trazia inválida delegação de poderes à
CAMED
130
, que segundo esta tinha poderes para, sem parâmetros definidos, (i) julgar
os pedidos de reajustes extraordinários de preços, (ii) decidir pela exclusão de grupos ou
classes de medicamentos da incidência do regime de congelamento de preços e (iii)
130
Integrada pelo Chefe da Casa Civil, Ministro de Estado da Justiça, Ministro de Estado da Fazenda e
Ministro de Estado da Saúde, e com comitê técnico formado pelo Secretário de Direito Econômico do
Ministério da Justiça, o Secretário de acompanhamento econômico do Ministério da Fazenda e um
representante da Casa Civil.
137
definir os documentos a serem apresentados nos Relatórios de Comercialização que
deveriam ser apresentados, mensalmente, pelos laboratórios farmacêuticos.
O princípio da legalidade, base dos países minimamente democráticos,
está cristalino no artigo 5.º, inciso II, de nossa Carta Magna (“ninguém é obrigado a
fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei”), cabendo repetir em virtude de lei, e,
não em virtude de decreto, de portaria ou até de resolução de quem quer que seja, pois
estas normas simplesmente não são lei como requer o princípio constitucional.
Assim, não é possível que nenhum órgão público inove o ordenamento
jurídico, criando, extinguindo ou modificando Direitos, como tinha poderes para fazer a
CAMED, por transferência, pela Lei 10.213/2001. Isto significa dizer que a criação de
direitos e deveres é prerrogativa apenas do Poder Legislativo, e não tendo este poder
criado tal obrigação, não poderia o Poder Executivo fazê-lo, a menos que houvesse uma
delegação legislativa pelo Congresso Nacional transferindo a competência para legislar
sobre determinado tema específico para o Presidente da República – único apto a
receber tal delegação, ou por meio de medidas provisórias, que, na verdade, nada mais
são do que um poder.
O conteúdo do artigo 12 da Lei 10.213/2001 pretendeu realizar,
disfarçadamente, referida delegação, conferindo à Câmara de Medicamentos
prerrogativa justamente para inovar o ordenamento jurídico sem quaisquer parâmetros
ou objetivos que deveriam ser perseguidos ou alcançados com seus atos regulamentares:
(i) alterando o aspecto subjetivo da hipótese de incidência da Lei –
com poderes para “excluir grupos ou classes de medicamentos da incidência”;
(ii) julgar, segundo os critérios que inventasse, conforme deixa claro
o inciso VII do referido artigo 12, ao frisar que a câmara iria “elaborar ... os critérios
para a concessão de reajuste extraordinário de preços”; assim o inciso I do artigo 12
da Lei 10.213/2001 obrigou o empresariado nacional à mendicância por aumentos de
preços, com grau inaceitável de discricionariedade pelos administradores públicos;
(iii) “regulamentar [na verdade criar critérios e normas jurídicas
pois estes não estão na lei] a redução dos preços dos medicamentos que forem objeto de
redução de tributos”.
Ora, o princípio da legalidade existe justamente para frear os arroubos do
Poder Executivo e garantir que a vontade do Congresso – verdadeiro sensor da vontade
social e espelho da sociedade que o elegeu – seja soberana sobre as das demais funções
do Estado, sendo certo que, ao votar fato consumado (como todos os outros abusos de
138
medidas provisórias) de alto apelo de marketing político, não expressa livremente esta
vontade, como bem sabe nosso Poder Executivo.
O critério para a permissão caso a caso de Reajuste Médio de Preços
decorria da diferença entre a Evolução Média de Preços da empresa 131 e o Índice
Paramétrico de Medicamentos de 4,4%.
Conforme se verifica no item 2.1 do Anexo da Lei 10.213/2001, que
definia a Fórmula Paramétrica de Reajuste de Medicamentos, o EMP era calculado com
base em variáveis definidas pelo histórico de faturamento do medicamento no período
de 1.º de novembro de 1999 a 31 de outubro de 2000 e seus preços no período de 1.º de
agosto de 1999 a 30 de novembro de 2000, informações que deviam ser fornecidas na
forma da Resolução 1 da CAMED.
Em 6 de setembro de 2001, o Presidente da República editou a Medida
Provisória 2.230/2001, que alterou radicalmente esse sistema de aplicação da análise de
preços de lançamento de novos produtos/novas apresentações de medicamentos, dando
novos poderes para a CAMED, além de estender o congelamento de preços até
dezembro de 2002.
Segundo
essa
nova
medida
provisória,
os
medicamentos
ou
apresentações vendidos a partir de 2002 tinham regime jurídico diferenciado para o
estabelecimento de seus preços iniciais.
Segundo o parágrafo único inserido no artigo 8.º da Lei 10.213/2001, “as
novas apresentações incluídas na lista de produtos vendidos pela empresa, em 2002,
observarão os critérios de definição de preços unitários iniciais estabelecidos pela
Câmara de Medicamentos e não poderão ser elevados até 31 de dezembro de 2002”.
E, de acordo com o parágrafo único, inserido no artigo 9.º da Lei
10.213/2001, “os produtos novos incluídos na lista de produtos vendidos pela empresa,
em 2002, observarão os critérios de definição de preços unitários iniciais estabelecidos
pela Câmara de Medicamentos e não poderão ser elevados até 31 de dezembro de
2002”.
Referida Medida Provisória permitiu que a partir de 2002 a Câmara de
Medicamentos:
1) determinasse livremente “os critérios de definição de preços unitários
iniciais” das novas apresentações, que, anteriormente, teriam de ser inferiores apenas à
131
Evidentemente inexistente para produtos não comercializados pela empresa anteriormente.
139
média dos preços unitários das apresentações já existentes, dando, assim, competência
para a CAMED alterar por Resolução o mandamento da norma jurídica em questão; e
2) determinasse livremente “os critérios de definição de preços unitários
iniciais” dos novos produtos, que, anteriormente, não estavam sujeitos à análise de seus
preços de lançamento, dando competência, na melhor das hipóteses, para a CAMED
alterar por Resolução o mandamento dessa nova norma jurídica que determina a análise
dos preços de lançamento dos medicamentos novos.
Mas não é só: a Medida Provisória em questão foi editada pelo
Presidente da República no dia 6 de setembro de 2001, contendo normas para aplicação
apenas em 2002.
Ora, é sabido que, nos termos do artigo 62 da Constituição Federal de
1988, em sua redação original, o Presidente da República só pode adotar Medidas
Provisórias “em caso de relevância e urgência”.
Parece-nos evidente que não havia urgência na edição da referida medida
provisória, posto que foi editada em setembro de 2001 com sua eficácia apenas para o
ano de 2002, sendo contraditória a determinação dessa eficácia diferida, com o próprio
conceito de urgência, pois o que urge não pode esperar, ainda mais tendo em vista que
as medidas provisórias, na forma da Constituição Federal em vigor, na ocasião tinham
vigência de apenas 30 dias.
Dessa forma, nosso Presidente da República poderia, sem maiores
dificuldades, ter feito projeto de lei para submissão à votação de nossas Casas
Parlamentares no regime de urgência, previsto no parágrafo único do artigo 64 da Carta
Magna. Este seria o caminho constitucional e, acima de tudo, democrático.
No dia 5 de setembro de 2001, o Plenário do Senado Federal aprovou a
Emenda Constitucional 32, que impediu a reedição de medidas provisórias mais de uma
vez, mas, em seu artigo 2.º, determinou que as medidas provisórias editadas em data
anterior à sua publicação permanecessem em vigor até sua revogação por outra medida
provisória ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.
No dia da votação da Emenda, o Deputado Efraim Morais convocou
sessão no Plenário da Câmara dos Deputados para o dia 11 de setembro de 2001 para a
promulgação da referida Emenda Constitucional 32, e no dia 6 de setembro de 2001, foi
publicada a citada medida provisória.
Assim, referida Medida Provisória, como tantas outras, teve vigência
como se lei fosse, atitude premeditada e contrária à moralidade administrativa, posto
140
que voltada a burlar as normas constitucionais voltadas à provisoriedade, por isso
denominadas medidas provisórias.
Com efeito, tal medida provisória, além de inconstitucional, conforme já
apontamos, padeceu de outro vício insanável pela ausência do pré-requisito da urgência
existente na redação original do artigo 62 da Constituição Federal e existente na nova
redação do artigo dada pela Emenda Constitucional 32/2001. Assim, todos os seus
efeitos, tanto no tocante à extensão do prazo de congelamento de preços de
medicamentos, quanto na extensão dos poderes da Câmara de Medicamentos, são
inválidos perante nosso sistema jurídico.
6.2. A atual regulamentação de preços de medicamentos pela Lei 10.742/2003
Após o término da vigência do congelamento de preços apontado acima,
no vácuo criado pela mudança de governo causada pela eleição presidencial, vigorou
um acordo entre os laboratórios farmacêuticos e o novo governo que manteve o
congelamento de preços até a edição da Medida Provisória 123, de 26 de junho de 2003,
que novamente congelou os preços de medicamentos até março de 2004, determinando
que a partir de então os preços de medicamentos seriam definitivamente controlados, e
que foi convertida na Lei 10.742, de 6 de outubro de 2003.
Nos termos do citado artigo 4.º, a fixação de preços de medicamentos
será baseada em um modelo de teto de preços calculado em três fatores, quais sejam:
a) um índice monetário, o IPCA/IBGE, que contém em sua composição
fatores que não estão relacionados com o mercado de medicamentos e não contém
fatores intimamente relacionados com o setor, como por exemplo a variação cambial;
b) um percentual de fator de produtividade destinado a passar para os
consumidores os ganhos de produtividades da indústria, o que traz novamente as
práticas do CIP, na medida em que as empresas deixariam de buscar a produtividade,
pois esta se torna prejudicial na fixação oficial de seus preços;
c) um fator de ajuste de preços relativos com um componente (i) intrasetor, com base no poder de monopólio, na assimetria da informação e nas barreiras à
entrada; e (ii) entre setores; calculado com base na variação de custos de insumos, caso
não sejam recuperados pelo IPCA/IBGE.
Este último componente merece algumas considerações no tocante ao
componente intra-setor. Em primeiro lugar, espanta que o componente realmente
141
relativo à análise casuística de mercados relevantes, verdadeira regulação econômica,
tenha apenas ínfima influência na determinação dos referidos preços.
Em segundo lugar, é bastante evidente que, ao inverter a relação,
colocando o tabelamento de preços em primeiro lugar e para todos os medicamentos
comercializados e, depois, permitindo uma análise oficial dos fatores concorrenciais, a
efetivação da métrica se torna inviáve l, especialmente se considerarmos a divisão
geográfica de mercados relevantes, pois (i) a máquina estatal não terá recursos humanos
para a análise de todos os mercados relevantes (conforme já mencionado) e acabará por
fixar índices gerais que não refletirão a realidade de cada mercado relevante, e (ii) a
lógica de funcionamento da máquina estatal não conseguirá realizar as liberações de
preços em velocidade suficiente para acompanhar a velocidade das oscilações de
mercado, gerando prejuízos ao próprio mercado.
O órgão responsável pela regulação de preços de medicamentos, segundo
a Lei 10.742/2003, é a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED),
que tem competência para estabelecer critérios para fixação de margens de
comercialização
de
medicamentos a serem observados pelos representantes,
distribuidores, farmácias e drogarias, inclusive das margens de farmácias voltadas
especificamente ao atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra
equivalente de assistência médica (art. 6.º, inciso V).
A prática não é nova, pois desde a Portaria MEFP 37/1992 já tivemos a
fixação de margens de lucros das farmácias em 30%, com resultados desastrosos,
conforme apontou a CPI dos medicamentos, que inclusive também concluiu pela sua
inconstitucionalidade:
Por outro lado, as investigações feitas demonstraram, claramente, que
a Portaria n. 37/92, por prefixar margens para as distribuidoras e
farmácias, estimula a prática de sobrestimação de custos/preços.
Assim, para cada 1% de aumento nos custos dos la boratórios, ela
repercute em acréscimo de 1,43% no preço de varejo do medicamento.
Ademais, é patente a sua inconstitucionalidade por prefixar margem
de custos/lucros das distribuidoras e farmácias, razão pela qual
estamos propondo sua revogação.
De modo que igualmente entendemos absurda a manutenção da referida
medida até os dias de hoje e inconstitucional também esta reincidência da Lei
10.472/2003 nos erros do passado.
Referida norma cria órgão específico para a regulação do setor, o que é
saudável tendo em conta suas especificidades e relevância social, porém anda mal ao
142
determinar que a composição do órgão será feita pelo Executivo, que o fez por meio do
Decreto 4.776/2003, determinando que o órgão será composto por um Conselho de
Ministros presidido pelo Ministro da Saúde, com a participação do Chefe da Casa Civil
da Presidência da República, do Ministro da Justiça, e do Ministro da Fazenda,
determinando que as decisões serão tomadas por unanimidade, o que é claramente
contrário à agilidade na tomada de qualquer decisão que dependa de negociação entre as
pastas.
O Conselho de Ministros terá competência para I –aprovar critérios para
reajustes de preços de medicamentos; II – decidir pela inclusão ou exclusão de produtos
no regime de tabelamento; III – aprovar o regimento interno da CMED; e IV – aprovar
os preços dos medicamentos que forem objeto de alteração da carga tributária.
Para as funções operacionais foi constituído um Comitê Técnico
Executivo coordenado pelo Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos
do Ministério da Saúde e composto pelo Secretário- Executivo da Casa Civil da
Presidência da República, pelo Secretário de Direito Econômico do Ministério da
Justiça, e pelo Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.
Dessa forma, percebe-se que não foi criada uma agência com poderes
independentes, mas simplesmente um órgão do Poder Executivo, que certamente
decidirá as questões do mercado farmacêutico segundo critérios políticos, com os
problemas decorrentes da intervenção política em suas decisões132 .
Pelo exposto, quanto às falhas existentes no mercado nacional de
medicamentos, fica clara a necessidade de regulação desse mercado para que sejam
criadas condições efetivas de concorrência 133 , salientando que a intervenção só se
132
“Com efeito, dentro de uma perspectiva normativo-constitucional, o Direito de proteção à
concorrência é entendido como legislação que dá concretude aos princípios jurídicos da livre iniciativa,
de livre concorrência e da repressão ao abuso do poder econômico – princípios de base da ordem
econômica constitucional brasileira. Essa característica, de certa forma comum a todos os ordenamentos
jurídicos de nações cujo sistema econômico é o de mercado, impõe seja a aplicação das normas
antitruste administrada por autoridades administrativas independentes – autarquias no Direito Brasileiro
– e pelo Poder Judiciário, isolando-a de pressões políticas mais imediatas. Diferem, assim, de outros
instrumentos de política econômica sob controle direto do poder Executivo” (NUSDEO, Ana Maria O.
Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da concentração de empresas. p. 63).
133
“Na teoria de preços, num regime de concorrência, existem o preço normal e o de mercado. O preço
normal é praticamente inviável de obtenção, considerando o dinamismo social e a constante mutação
das relações e as condições econômicas. O preço de mercado é aquele constatado em determinado
momento, influenciado pelo jogo da oferta e procura de bens. Sua determinação condiciona-se às leis
do mercado, que são: regra da utilidade, entendendo-se que o preço é único num dado momento para
um objeto determinado; regra de ação, na qual o preço tende a subir quando a procura excede a oferta e
o preço tende a baixar na situação inversa; regra de reação, na qual a alta de preços tende a reduzir a
procura e a aumentar a oferta, assim como a baixa faz aumentar a procura e diminuir a oferta; regra do
equilíbrio, na qual o preço se estabelece a tal nível que a oferta se iguala à procura.
143
justifica nos mercados relevantes em que esta realmente não se apresente, devendo ser
eficaz para instaurá- la e não para substituí- la, como ocorre com o controle de preços.
Apenas assim será possível atender ao disposto no artigo 170, inciso IV,
da Constituição Federal, bem como ampliar o acesso da população às ações e
tratamentos de saúde para atender ao disposto nos artigos 196 e 197 da Constituição
Federal, pelo que devemos estudar se a medida tomada pelo Governo Federal é legítima
para tal finalidade. Com efeito,
a fixação de preços pelo Estado gera a obrigação, para o agente
econômico, de praticá-lo no limite fixado, daí se originando dois
Direitos distintos: o público, do Estado, de ver cumprida sua
determinação, tendo em vista a satisfação do interesse social e o
privado, da parte adversa contratante, de ver satisfeito o seu interesse,
pessoal, em não pagar mais do que o definido pelo texto normativo134 .
No regime de controle de preços o agente econômico só poderá cobrar
pelos seus produtos os valores autorizados pelo órgão competente para definir seus
preços, podendo, em caso de descumprimento, tanto ser penalizado administrativamente
quanto ser acionado pelos compradores de seus produtos.
Ora, o controle de preços trata das conseqüências da falta de
concorrência, dos seus efeitos, sem efetivamente tratar das causas que levam ao seu
aumento abusivo, sem combater as falhas de concorrência que já apontamos neste
trabalho. É uma medida extrema que substitui o próprio mercado, pois bloqueia o sinal
que os agentes econômicos trocam entre si, qual seja o próprio preço. Referida medida
acaba gerando grande poder para o administrador público, que passa a ter a competência
para tomar a decisão sobre o aumento de preço solicitado pelo fornecedor.
Dessa forma, o poder econômico acaba submetido ao poder político, que
passa a dar uma finalidade ao mercado, contrastando com a própria idéia de
concorrência, que levaria os fornecedores, na ânsia de aumentar sua participação no
mercado, a buscarem diferenciais entre si de forma aleatória. O controle de preços
aniquila a efervescência do mercado, que é responsável pelas suas próprias evoluções
inusitadas, selecionadas pelas escolhas do consumidor.
Com o controle de preços o poder político dá uma finalidade ao mercado,
a finalidade política que acaba com essa efervescência natural do mercado, já que o
Ocorre, no entanto, que essas regras que atuam no mercado livre de determinações nem sempre
apresentam os resultados pretendidos, gerando desequilíbrios. Nesse momento se justifica a intervenção
do Estado para regular e reequilibrar a economia, afastando as distorções geradas” (SANCHEZ, C. G.
Aspectos da relação entre estado e iniciativa privada: enfoque constitucional. p. 86-87).
134
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 86-87.
144
agente econômico passa a jogar conforme a Teoria dos Jogos, anteriormente explicada,
não mais com base nos movimentos dos consumidores, mas sim com base nos
movimentos do governo, passando a buscar a maximização de seus resultados por meio
desse relacionamento com o governo.
O fenômeno é o mesmo que já ocorreu nos tempos do CIP, quando os
agentes econômicos deixaram de buscar o aumento de produtividade e redução de
custos simplesmente porque para maximizar seus resultados não poderiam diminuir
seus custos, pois se o fizessem não teriam argumentos para obter aumentos de preço.
Outro malefício do controle de preços é o risco de o administrador
público responsável por aprovar os aumentos de preços passar a utilizar seu poder para
fins próprios, sejam escusos ou simplesmente políticos, não de política social, mas de
sua própria política, o que é até natural já que para este a maximização dos resultados se
dá pela popularidade de suas medidas e não pela sua eficiência, de modo que poderá
adotar medidas populares mas ineficientes do ponto de vista econômico.
Em nosso entender é ingênuo argumentar que o administrador público
procurará sempre as medidas mais eficazes porque gerarão melhorias econômicas que
lhe darão maior popularidade, na medida em que seus interesses pessoais tendem a
interferir em seu critério de julgamento.
Como é natural, os políticos têm em mente sempre o calendário eleitoral,
de modo que suas medidas têm de produzir resultados sensíveis no período pré-eleitoral,
para que possam colher resultados nas próximas eleições, ainda que as medidas
produzam efeitos negativos após esse prazo, e também há assimetria de informações nas
eleições, de modo que o que importará para o político não são os efeitos reais de suas
medidas mas sim os efeitos perceptíveis pelo eleitor.
Efetivamente, diversas opções econômicas podem ser tomadas para ter
um bom resultado em curto prazo, com péssimos resultados em longo prazo. É o caso,
por exemplo, do aumento de importações de países que, por diversas razões, possuem
preços mais competitivos em relação aos fornecedores nacionais (p. ex., legislação
trabalhista, fiscal ou ambiental mais branda), o que gera uma redução momentânea de
preços mas acaba por desmantelar o parque industrial nacional, criando dependência de
importações, como ocorrido no mercado de matérias-primas farmacêuticas.
Ainda que todos os agentes econômicos e políticos sejam extremamente
bem-intencionados e totalmente desprendidos de seus interesses pessoais – hipótese
absolutamente cerebrina, já que, infelizmente, sabidamente irreal –, o controle de preços
145
trará malefícios a longo prazo porque (i) os detentores de capital serão arredios a fazer
investimentos em um mercado sujeito a possíveis humores políticos, e (ii) os políticos
teriam de ser oniscientes em relação às informações do mercado, dos fornecedores e dos
consumidores envolvidos para conseguirem ajustar totalmente os preços tabelados à
realidade temporal e regional dos mercados relevantes em tempo real, o que
evidentemente é impossível, de modo que suas decisões têm grande probabilidade de
serem equivocadas, intempestivas e injustas, gerando graves desequilíbrios e
instabilidades
para
o
mercado
regulado,
o
que
gradativamente
levará
ao
desabastecimento 135 .
Por estas razões o controle de preços de medicamentos não foi
recomendado pela própria CPI dos medicamentos:
Dentro do atual quadro político-econômico brasileiro não há mais
campo para a prática de políticas de tabelamento de preços. A
experiência passada a respeito foi desastrosa, especialmente no caso
dos medicamentos. Os laboratórios, para driblar o controle de preços,
passaram a adotar vários expedientes: cobrança de ágio; “maquiagem”
de produtos; venda casada; preços de transferência na compra de
matéria -prima diretamente da matriz; uso de matérias-primas e
embalagens inferiores e até aumentos com autorização forjada. Se
135
“Quais serão as conseqüências deste controle de preços? Podemos analisá-las utilizando o instrumento
já desenvolvido de oferta, demanda e equilíbrio.
Ao preço P1 haverá demanda insatisfeita. Nem toda a quantidade desejada pelos consumidores (Q0) pode
ser adquirida, pois os ofertantes só desejam vender a quantidade Qs. Sem o tabelamento, surgiriam
pressões para os preços aumentarem, de forma que tornasse a quantidade demandada igual à oferecida.
Em outras palavras, o mecanismo de preços é responsável ou é a forma pela qual a quantidade ofertada
se distribui entre os consumidores. Com o aumento de preços, desaparece o excesso de demanda.
Estabelecido o tabelamento, os preços não poderão subir. Serão necessários outros mecanismos para
distribuir a quantidade ofertada entre os consumidores. Vários sistemas aparecem espontaneamente.
Vamos apresentá-los por meio de um exemplo. Suponhamos que joguem, no Morumbi, São Paulo e
Corinthians decidindo o campeonato paulista. Os ingressos são tabelados e limitados. O público que
deseja apreciar o espetáculo é maior que a capacidade do estádio. Surge o excesso de demanda. Como
este problema pode ser resolvido? Existem várias possibilidades. I – surgirem filas nas bilheterias. Os
primeiros que chegarem serão contemplados. As filas aparecem não só no futebol, mas nos cinemas,
nos ônibus e outros. É critério que surge quando aparece excesso de demanda. II – serem feitas vendas
por debaixo do pano. A Federação Paulista de Futebol reserva certo número de ingressos e os vende aos
amigos. Em geral, a Federação separa parte dos ingressos aos clubes, e estes os vendem a seus diretores
e conselheiros. Esses adquirem ingressos sem precisar entrar em filas. Mas não é só neste caso que
surgem essas vendas. Podem surgir para qualquer produto que seja escasso em certo momento. Um
vendedor qualquer recebe produção limitada de determinado artigo de grande demanda. Para quem ele
vai vender? Em geral, vai dar preferência aos fregueses antigos, aos amigos e a outras pessoas, por
outras razões. Para os demais consumidores, a mercadoria “está em falta” III – surgir o mercado negro.
Alguns elementos (cambistas) compram certas quantidades de ingressos e os vendem a preços maiores
que os fixados, daí auferindo lucros. O mercado negro surge quando a autoridade não dispõe de meios
adequados para fiscalizar as vendas. O mercado negro pode surgir no atacado ou no varejo, dependendo
das condições de mercado e de fiscalização. Assim, por exemplo, se houver poucas empresas
produtoras do bem tabelado, a fiscalização nesse nível é fácil e operante. Mas, se no varejo houver
muitos vendedores, as dificuldades de fiscalização poderão causar o aparecimento do mercado negro.
Essas três são as formas mais comuns e surgem espontaneamente no mercado” (PINHO, Diva B.;
VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 153 e 154).
146
impossível a adoção de quaisquer desses expedientes, ocorria o
desabastecimento.
Por outro lado, o tabelamento de preços, além de não assegurar preços
estáveis por prazos razoáveis, afugenta os investimentos que poderiam
ser feitos no setor, seja para pesquisa e desenvolvimento para a
produção de novos medicamentos, seja para a implantação de plantas
mais modernas e produtivas.
Não há, portanto, em economias de livre mercado, como a nossa,
alternativa para evitar a prática de preços excessivos e lucros
arbitrários que não seja através dos instrumentos de controle indireto
de preços, via monitoramento e acompanhamento do mercado.
Em absoluto defendemos a desregulamentação do setor. É dentro
dessa ótica que entendemos deva ser construído um ambiente de
regulação de preços que possa superar os problemas decorrentes das
falhas de mercado e assegurar o equilíbrio relativo dos preços de
medicamentos.
É isso que existe nas economias de mercado do mundo e o Brasil não
pode se afastar dessa realidade 136 .
As mesmas opiniões foram expressas pelo Ministério da Fazenda:
O Ministério da Fazenda é de opinião que trata-se de alternativa que
não pode ser descartada, tendo em vista a importância do setor para a
saúde e para a poupança da população. O Ministério é, entretanto, de
opinião que as medidas de natureza estrutural e regulatórias acima
discutidas, uma vez adotadas, terão o condão de assegurar evolução
módica de preços nesse setor. O Ministério é de opinião que essas
medidas devem ser implantadas antes de ser considerada a hipótese
mais traumática de controle de preços. Isto porque a eventual
instituição de sistema de controle de preços (i) poderia ter o efeito,
indesejável, de inibir investimentos no setor, inclusive em pesquisa e
desenvolvimento; (ii) seria contrária ao processo de liberação de
preços da economia que o Brasil vem conhecendo ao longo dos
últimos anos , e que tem efeitos benéficos para o grau de competição
entre os agentes econômicos; (iii) introduziria distorções no
funcionamento do setor, principalmente por substituir, com relação a
preços, as decisões dos agentes econômicos pelas decisões,
necessaria mente menos eficientes, do Governo 137 .
O tabelamento de preços também encontra dificuldades práticas de
aplicação, que o tornam ineficiente, conforme apontou Paulo Correa, SecretárioAdjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda 138 , na
época da própria CPI dos medicamentos:
O tabelamento de preços não funciona por diferentes razões. Uma
delas é que a empresa regulada detém, por definição, mais
informações sobre o seu negócio que o órgão regulador. Nessa
situação, é difícil para o órgão regulador distinguir despesas legítimas
das ilegítimas e praticamente impossível definir os preços socialmente
136
CPI dos Medicamentos, Título XII – Conclusões.
Nota a imprensa, sobre preços de medicamentos, divulgada em 27.11.1998.
138
CORREA,
Paulo.
Para
além
do
tabelamento.
Disponível
http://www.fazenda.gov.br/seae/arquivos/artigo_remedios.pdf. Acesso em: 15 out. 2003.
137
em:
147
ótimos. Mesmo que fosse possível calcular tais preços, vigiar a sua
aplicação não seria uma tarefa factível: são mais de 10 mil
apresentações de medicamentos éticos comercializados em mais de 42
mil drogarias. Por isso, não há experiência internacional exitosa de
tabelamento de preços.
Mesmo o Canadá, que vem sendo mencionado como exemplo a esse
respeito, controla apenas os preços dos medicamentos com patente em
vigor no país. No Reino Unido, outra referência freqüente, o que
existe desde 1993 é uma política de compras públicas que estabelece,
como condição de aquisição, um nível máximo de reajuste de preços,
o que é distinto do simples tabela mento de preços de medicamentos
vendidos em drogarias.
A previsão de sanções à fixação de preços abusivos, que consta da Lei
8884/94, apresenta pelo menos um problema operacional. O conceito
de preço “abusivo” só faz sentido quando existe um parâmetro de
referência. Ao definir esse parâmetro, entretanto, todos os preços
superiores tornam-se, por conseqüência, ilegais. Estaríamos, portanto,
de volta ao sistema de tabelamento de preços, com todas as contraindicações conhecidas.
Alternativamente, poder-se-ia considerar “abusivo” todo o preço
decorrente de uma conduta anticompetitiva, independentemente do
parâmetro de referência. Esta interpretação implica, entretanto,
redirecionar o foco da questão do simples tabelamento de preços para
o da investigação das condutas que lhes dão origem. É sintomático
que todos os 151 casos de abusividade de preços (35 da indústria
farmacêutica) julgados pelo CADE, entre 1997 e 1998, tenham sido
considerados improcedentes.
O resultado desastroso do tabelamento de preços pode ser observado
empiricamente nas tabelas preparadas pela Federação Brasileira da Indústria
Farmacêutica,
que
engloba
as
associações
representativas
dos
laboratórios
farmacêuticos, nacionais e internacionais, que operam tanto com medicamentos
inovadores quanto com genéricos e similares.
A primeira tabela representa a perda de faturamento da Indústria
Farmacêutica com vendas de medicamentos no Brasil:
148
Ilustração 18 - Indústria Farmacêutica no Brasil vendas sem impostos em US$ 2000-2003
A Tabela abaixo aponta a perda de recolhimento de impostos incidentes
sobre as operações da Indústria Farmacêutica:
Ilustração 19 Indústria Farmacêutica – Arrecadação 2000-2003
149
A Tabela a seguir espelha a perda de postos de Trabalho na Indústria
Farmacêutica no Brasil:
Ilustração 20 Indústria Farmacêutica – Postos de Trabalho 2000-2003
A seguir, temos a tabela que demonstra o quanto arredios os detentores
de capital se encontram com o me rcado brasileiro de medicamentos, por meio da perda
de investimentos em ativos fixos na indústria farmacêutica no Brasil, demonstrando que
os capitais estão migrando para outros investimentos e que, a longo prazo, a competição
no mercado de medicamentos tende a diminuir ainda mais como efeito da redução da
oferta de medicamentos e presença de concorrentes neste mercado.
Ilustração 21 Indústria Farmacêutica – Investimentos e Expectativa de Investimentos 2000-2003
150
E, por fim, a queda das Exportações da Indústria Farmacêutica nacional,
que sinaliza nossa perda de competitividade em relação ao mercado internacional de
medicamentos.
Ilustração 22 Indústria Farmacêutica – Exportações e Expectativa de Exportações 2000-2003
Da análise das tabelas acima, podemos extrair que a política de
congelamento e controle de preços, que já não solucionou o problema do acesso a
medicamentos da indústria nacional nos anos 1970/1980, também não produziu efeitos
positivos em seu renascimento recente, pelo que a Lei 10.742/2003, que, novamente,
impôs esse sistema de autoridade nesse mercado, certamente também não resolverá o
problema, pois, como dito, cuida apenas dos efeitos das falhas do mercado de
medicamentos e não de suas causas, que no entanto perduram.
Ademais, o controle de preços contido na Lei 10.742/2003 prevê reajuste
de preços anuais, o que apenas serve para aumentar sua ineficiência, tendo em conta que
a rapidez do sistema econômico não se ajusta à lentidão de apenas anualmente poder se
dar o reajuste de preços, de modo que o estabelecimento de prazo fixo apenas aumenta a
assincronia existente entre os sistemas econômico, jurídico e político, o que milita
fortemente contra o próprio sentido da regulação feita pelo Poder Executivo, que visa
reduzir e não aumentar tal assincronia.
151
Portanto, considerando o disposto nos artigos 196 da Constituição
Federal, que determina que somente serão constitucionais as medidas eficazes do ponto
de vista econômico para aumentar o acesso da população aos medicamentos e que,
como visto, o congelamento de preços não é eficaz para tal finalidade, resta evidente a
sua inconstitucionalidade.
Neste ponto é importante salientar que o debate, ora em pauta, em
relação à aplicação dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal não tem qualquer
relação com os aspectos já questionados do controle de preços de mensalidades
escolares perante o Supremo Tribunal Federal, com o julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade
319-4,
proposta
pela
Confederação
Nacional
dos
Estabelecimentos de Ensino (Confenem), que, conforme já comentamos, está
desconforme ao artigo 170 da Constituição Federal.
A importância de realizar a diferenciação decorre do fato de os serviços
de educação terem em comum com o setor de saúde serem serviços públicos não
privativos e, portanto, neste ponto existir a possibilidade de confusão dos debates ali
travados com os ora realizados.
Pois bem, naquela oportunidade a Confenem sustentou a impossibilidade
do controle de mensalidades escolares por afronta ao artigo 170 da Constituição
Federal, especialmente no tocante à livre-iniciativa e a livre concorrência, o que nos
parece absolutamente correto, conforme já colocamos.
Neste ponto do estudo, sustentamos algo diferente, pois alé m da
inconstitucionalidade de qualquer controle de preços debatida no início deste trabalho,
agora sustentamos a inconstitucionalidade do controle de preços de medicamentos pela
sua ineficácia e contrariedade aos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, que
obviamente devem ser aplicados em conjunto com o artigo 170 da mesma Carta.
Os argumentos daquela ação judicial jamais poderiam ser os mesmos que
os aqui expendidos, pelo simples fato de que a obrigatoriedade de ampliação de acesso
não existe no artigo 209 da Constituição Federal, que trata da atuação privada na
educação.
Após este breve, mas necessário, esclarecimento, salientamos que, ainda
que se pudesse entender como constitucional o tabelamento de preços em face do artigo
170, inciso IV, da Constituição Federal, os critérios estabelecidos pelo referido artigo
4.º da Lei 10.742/2003 são absolutamente impróprios para alcançar os fins
constitucionais ou da própria norma expressos em seu artigo 1.º.
152
Pelo exposto, consideramos a inconstitucionalidade do artigo 4.º da Lei
10.742/2003, que trata da fixação de preços de medicamentos, e de seu artigo 7.º, que
trata do estabelecimento de preços para produtos novos ou novas apresentações 139 , que
devem ser automaticamente considerados banidos de nosso Direito, tornando ineficaz o
inciso IV do artigo 6.º da referida lei, que prevê a exclusão e reinclusão de mercados
relevantes no controle de preços 140 , por afronta aos artigos 196 e 197 da Constituição
Federal, pois estes dispositivos legais são contrários à ampliação de acesso da
população aos medicamentos..
A despeito do inconstitucional congelamento/controle de preços, com
reajustes anuais, a nova norma de regulamentação de preços de medicamentos possui
inegáveis avanços se comparada com a anterior, especialmente porque contém os
objetivos que devem ser alcançados pelo órgão regulador em consonância com os
artigos 196 e 197 da Constituição Federal, quais sejam: promover a assistência
farmacêutica à população por meio de mecanismos que estimulem a oferta de
medicamentos e a competitividade do setor (artigo 1.º), os quais estão em consonância
com a norma constitucional.
Excluindo-se o conteúdo inconstitucional da Lei 10.742/2003, resta que a
CMED terá por objetivos a adoção, a implementação e a coordenação de atividades
relativas à regulação econômica do mercado de medicamentos, voltadas a promover a
assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta
de medicamentos e a competitividade do setor, com as seguintes competências:
– definir diretrizes e procedimentos relativos à regulação econômica do
mercado de medicamentos;
– coordenar ações dos órgãos componentes da CMED voltadas à
implementação dos seus objetivos;
– sugerir a adoção, pelos órgãos competentes, de diretrizes e
procedimentos voltados à implementação da política de acesso a medicamentos;
– propor a adoção de legislações e regulamentações referentes à
regulação econômica do mercado de medicamentos;
139
Para os quais valem as mesmas observações feitas sobre os artigos 8.º e 9.º da Lei 10.213/2003.
Medida razoável caso o tabelamento fosse constitucional, pois permite a avaliação da existência de
concorrência em mercado relevante e sua liberação, embora o inciso careça de determinação clara deste
objetivo, bem como de um tratamento específico não só para o tratamento peculiar dos mercados
relevantes, mas também para cada jogador de um mercado relevante em relação ao poder de mercado
que detém, não tem sentido controlar preços de um desafiante que ainda não acumulou poder de
mercado.
140
153
–
opinar
sobre
regulamentações
que
envolvam
tributação
de
medicamentos;
– assegurar o efetivo repasse aos preços dos medicamentos de qualquer
alteração da carga tributária;
– sugerir a celebração de acordos e convênios internacionais relativos ao
setor de medicamentos;
– monitorar o mercado de medicamentos, podendo, para tanto, requisitar
informações sobre produção, insumos, matérias-primas, vendas e quaisquer outros
dados que julgar necessários ao exercício desta competência, em poder de pessoas de
direito público ou privado;
– zelar pela proteção dos interesses do consumidor de medicamentos;
– decidir sobre a aplicação de penalidades, na Lei 8.078, de 11 de
setembro de 1990, relativamente ao mercado de medicamentos, sem prejuízo das
competências dos demais órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor em
concorrência com o CADE.
A CMED deverá exercer tais competências para combater cada uma das
falhas de concorrência existentes no mercado de medicamentos, valendo-se de múltiplas
estratégias combinadas, sem ferir a livre-iniciativa e a livre concorrência, conforme já
vem sendo realizado em diversos países do mundo, o que certamente é mais efetivo do
que simplesmente impor um arbitrário controle de preços aos laboratórios
farmacêuticos.
Importante notar que, além do controle dos atos expedidos pela CMED,
em relação a sua eficácia econômica, estes não deixam de ser atos administrativos que
devem também ser analisados sob luz das normas do artigo 37 da Constituição Federal e
princípios do Direito Administrativo.
Portanto, o ato regulatório deverá atender aos princípios de finalid ade,
razoabilidade, proporcionalidade, motivação (com seus motivos determinantes),
impessoalidade, publicidade, devido processo legal (processual e substantivo),
moralidade, responsabilidade do Estado, e estar sujeito ao controle judicial sobre os
mesmos e também ao princípio da eficiência.
O princípio da eficiência remete ao alcance concreto de objetivos pelos
administradores públicos. No caso de atos regulamentares, as normas infralegais criadas
devem conduzir aos objetivos propostos pelo sistema jurídico, que dá validade aos
mesmos também em atendimento ao princípio da eficiência, portanto, no caso,
154
novamente, eficiência econômica, para ampliação da oferta de medicamentos e
competitividade no setor 141 .
Para reforçar a necessidade de análise econômica dos atos praticados pela
CMED, nos valemos também do princípio da legalidade 142 , pois considerando que o
artigo 1.º da Lei 10.742/2003 determina “a finalidade de promover a assistência
farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta de
medicamentos e a competitividade do setor”, quaisquer atos contrários a este objetivo
do ponto de vista econômico estarão condenados a ilegalidade.
Ademais, a determinação legal para que o administrador tenha o
dever/poder de praticar um ato administrativo sempre será relativa a um fato que será a
mola propulsora da prática do ato administrativo: uma situação de fato é condição
necessária e suficiente para a prática do ato.
Nesse sentido, a existência do fato é pressuposto de validade do ato
administrativo que foi praticado, que sem este não o seria ; temos aí, portanto, a doutrina
dos motivos determinantes dos atos administrativos 143 .
141
“Em uma divisão exclusivamente didática, Roberto Dromi e Carlos Menen separam em duas espécies
de ação de eficiência: 1. Na ‘organização econômica’, que seria destinada ao planejamento (imposição
de metas), regulação (de contratos e serviços), descentralização (privatização, competição e
desmonopolização), fiscalização, estabilização e promoção (fomento e investimento); e 2. Na
‘organização administrativa’, que visaria à obtenção de uma Administração racional, desburocratizada,
moderna e não legista.
Dicotomia esta que, embora interessante, não é tecnologicamente mais adequada. Mais produtivo é
ressaltar que o princípio da eficiência não somente se aplica à organização (aspecto estático), como
também à própria atividade administrativa (aspecto dinâmico). Entretanto, mesmo utilizando-se a
distinção proposta, cabe salientar que por eficiência administrativa deve-se compreender não só a
chamada organização e atividade eminentemente administrativas, como também, e muito, a econômica.
Por outro lado, em uma concepção abrangente, não seria correto falar em ‘eficiência administrativa’,
mas sim em ‘eficiência de Estado’, pois não se pode acreditar que somente nas funções administrativas
o Estado precisaria ser eficiente. São, portanto, passíveis de submissão ao ideal de eficiência também as
funções judiciárias e legislativas (além daquelas de cunho propriamente governamental)” (GABARDO,
E. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. p. 18 e 19).
142
“Inexiste poder para a Administração Pública que não seja concedido pela lei: o que ela não concede
expressamente, nega-lhe implicitamente. Por isso, seus agentes não dispõem de liberdade – existente
somente para os indivíduos considerados como tais – mas de competências, hauridas e limitadas na lei.
(...)
A ligação da Administração Pública com a lei é, portanto, extensa e inafastável, podendo ser resumida
como segue: a) seus atos não podem contrariar, implícita ou explicitamente a letra, o espírito ou a
finalidade da lei; b) a Administração não pode agir quando a lei não autorize expressamente, pelo que
nada pode exigir ou vedar aos particulares que não esteja previamente imposto nela” (SUNDFELD,
Carlos A. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 29 e 30).
143
“Motivo é a circunstância de fato ou de Direito que autoriza ou impõe ao agente público a prática do
ato administrativo. Consubstancia situações do mundo real que devem ser levadas em consideração
para o agir da Administração Pública competente. São ações ou omissões dos agentes públicos ou dos
administrados ou, ainda, necessidades do próprio Poder Público que impelem a Administração Pública
à expedição do ato administrativo. (...)
A obrigatoriedade da existência, no mundo real, dos mo tivos alegados e que determinam a prática do
ato administrativo, como requisito de sua validade, acabou por dar origem à teoria dos motivos
155
O motivo
é, pois, a situação do mundo empírico que deve ser tomada em conta
para prática do ato. Logo, é externo ao ato. Inclusive o antecede. Por
isso não pode ser considerado como parte, como elemento do ato. [...]
em todo e qualquer caso, se o agente se embasar na ocorrência de um
dado motivo, a validade do ato dependerá da existência do motivo que
houver sido enunciado. Isto é, se o motivo que invocou for inexistente,
o ato será inválido 144 .
Ao tratarmos de normas de regula mentação econômica, o motivo sempre
será um fato econômico, pois econômico é o substrato da norma. Assim, na falta do
motivo econômico, descrito na necessária mo tivação do ato regulatório, o referido ato
será nulo 145 .
Dessa forma, temos que o motivo para a prática do ato regula mentar
deverá sempre ser o fato econômico de ausência de concorrência ou de redução da
oferta de medicamentos em um mercado relevante, de modo que tais atos deverão estar
devidamente motivados nesse sentido e, caso seja comprovada a inexistência do motivo,
estes serão inválidos.
Obviamente também não será lícita a convalidação do ato regulatório
caso o fato econômico aconteça após sua emissão 146 , como por exemplo a redução da
concorrência pela retirada de fornecedores em um dado mercado relevante, causada por
um ato regulatório, emitido com base em uma falta de concorrência inexistente antes de
sua emissão.
determinantes. Por essa teoria só é válido o ato se os motivos enunciados efetivamente aconteceram.
Desse modo, a menção de motivos falsos ou inexistentes vicia irremediavelmente o ato praticado,
mesmo que não exigidos por lei” (GASPARINI, Diógenes, Direito administrativo. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 1995. p. 66).
144
MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de direito administrativo. 14. ed. 2002. p. 350.
145
“O motivo do ato administrativo constitui o pressuposto fático (ocorrência no mundo fenomênico) que
permite ou determina que a Administração o emita. Tais circunstâncias fáticas devem, por óbvio, estar
previstas em lei (motivo legal) e, uma vez configuradas, legitimam a administração a praticar o ato.
Recorde-se por oportuno, que o motivo do ato há de estar em perfeita sintonia com o motivo legal, isto é,
as circunstâncias fáticas previstas em lei devem estar caracterizadas. Ter-se-á, assim, um ato inválido,
pelo menos do ponto de vista do motivo” (SIMÕES, Mônica M. T. O processo administrativo e a
invalidação de atos viciados.p. 149).
146
“Nem sempre, todavia, ocorre a desejada sintonia [entre o motivo legal e o motivo de fato]. Em
situações deste jaez, está-se diante de um ato inválido, por vício de motivo, quando, então, revela-se
imperiosa a restauração da legalidade.
Num primeiro momento, poder-se-ia cogitar de convalidar o ato. Mas seria isso possível? Uma análise
mais detida conduzirá à resposta negativa.
Ora, se o ato apresenta vício quanto ao motivo, significa isso dizer que o pressuposto fático previsto em
lei para a prática do ato não restou configurado. E, para que o ato seja válido o motivo deve
indiscutivelmente fazer-se presente.
Não seria razoável supor que a administração pudesse, após a emissão de ato inválido por ausência de
motivo, convalida-lo” (SIMÕES, Mônica M. T. Op. cit., p. 149).
156
Conforme coloca Weida Zancaner, é um problema de dimensão
temporal, pois o motivo deveria existir num dado tempo, anterior à produção do ato
administrativo subseqüente; não tem utilidade para tal fim o motivo que vier a acontecer
após a produção do ato administrativo, pois “a ausência do motivo de fato impossibilita
a convalidação do ato, posto que não há como fazê-lo retroagir à data de sua
emissão”147 , tanto mais em se tratando de ato regulatório, que pode até gerar a falha de
mercado que se propunha a combater.
De modo que resta claro que a argumentação tanto do órgão regulador
quanto dos agentes econômicos sempre será econômica e balizada em aspectos técnicos,
devido ao peculiar objeto e aos objetivos das normas regulatórias.
Sendo assim, é à luz dos objetivos econômicos da Lei 10.742/2003 que
devem ser analisados os atos praticados pela CMED, ou seja, todos os atos
regulamentares emitidos pela CMED devem ser economicamente efetivos para fazer
que no curto, médio e longo prazos seja ampliada a oferta de medicamentos e a
competitividade nos mercados relevantes atingidos pela medida, sob pena de serem
considerados ilegais, por descumprimento ao artigo 1.º da Lei 10.742/2003.
Da mesma forma acreditamos que os artigos 196 e 197 da Constituição
devem ser aplicados para verificar a validade das normas infralegais de regulamentação
do mercado de medicamentos, por uma análise econômica e prospectiva. Acreditamos
que o mesmo deve ser feito quanto ao artigo 1.º da Lei 10.472/2003, pois o legislador
não o colocou na norma inutilmente, apenas para elucidar o que lhe passava pela mente;
se o fez, foi para produzir efeitos, para conduzir aqueles que têm competência para
emitir os atos regulamentares que a lei cria e para reprimir os atos que praticarem contra
os objetivos dessa competência, que nada mais é do que um instrumento para o seu
alcance.
Isto posto, a CMED tem o poder/dever de emitir normas regulamentares
relativas aos mercados relevantes em que constatar a inexistência de competição
economicamente eficaz para fomentar a competição no mercado e ampliar a oferta de
medicamentos, porém deve evitar a sua emissão em mercados relevantes onde a
competição exista.
Infelizmente, a despeito da capacidade dos membros da CMED, o que se
tem observado é que suas resoluções vêm sendo absolutamente despropositadas, cria ndo
147
ZANCANER, Weida, Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. p. 65.
157
regras absurdas e sem justificação técnica possível, como: (i) estabelecer critérios de
fixação de preços de medicamentos novos por grandes grupos, cujo critério nada tem
que ver com a situação do mercado relevante do medicamento, mas é baseada em um
critério subjetivo; (ii) comparar preços com países sem qualquer identidade com o
Brasil; (iii) fixar percentuais de preços de medicamentos genéricos em relação a outros
produtos, eventualmente afastando competidores que poderiam ter preços menores mas
talvez em percentual menor que o fixado etc., conforme apontado na já citada pesquisa
realizada pela Câmara Americana de Comércio com o Setor Regulado:
Ilustração 23 Pesquisa Amcham (ANVISA) 2005 – pergunta 08
Não se sabe se isso decorre de falta de informações, de recursos e de
pessoal, ou apenas do velho hábito dos governos brasileiros de quererem resolver
problemas concretos com normas que sacrificam a iniciativa privada, apenas para
agradar a platéia que ainda tem uma visão maniqueísta do mundo. Mas nada justifica
essa atitude, que, no médio e longo prazos, apenas agrava a dificuldade de acesso da
população aos medicamentos, que já não é pequena.
Como já apontamos, entendemos pela inconstitucionalidade do controle
de preços de medicamentos por afronta ao artigo 170, incisos II e IV, da Constituição
Federal, por ser contrário à concorrência e impor perdas à propriedade.
Pelas razões explanadas, o entendemos igualmente inconstitucional por
contribuir no longo prazo para a redução da atividade econômica dos laboratórios
158
farmacêuticos e para a redução do mercado, que não acompanhado pelo aumento da
população e de suas necessidades, demonstrando ser contrário ao atendimento da
obrigação de ampliação de acesso da população aos tratamentos e ações de saúde
determinado pelo artigo 196 da Constituição Federal.
Passamos então a analisar a regulamentação econômica dos planos de
saúde para verificar sua constitucionalidade em contraste com os mesmos artigos 196 e
197 da Constituição Federal.
159
7 – PLANOS DE SAÚDE
A assistência médica suplementar no Brasil é prestada por operadoras de
planos de saúde, cuja cobertura do atendimento pelos serviços de saúde prestados por
uma rede própria ou credenciada é garantida pelo contratado, sendo que o contratante é
obrigado ao pagamento de um valor mensal, ficando, assim, protegido do risco em
saúde, que é diluído entre todos os integrantes da mesma carteira do plano de saúde.
Os planos de saúde podem ser oferecidos por empresas, ou cooperativas
médicas, criadas para este fim para pessoas físicas, ou como benefício dado por pessoas
jurídicas a seus funcionários, ou podem ser operados pelas próprias empresas para seus
funcionários, os chamados planos de autogestão.
Temos ainda os seguros-saúde, em que não há a prestação direta de
serviços de saúde mas tão-somente a cobertura desse risco: seu grande segredo está nos
cálculos atuariais que garantem o lastro financeiro e o equilíbrio entre indivíduos sãos e
doentes dentro da carteira.
Há no Brasil uma divisão jurídico- institucional dos planos privados de
saúde que estabelece quatro grupos: medicina de grupo, cooperativas médicas,
seguradoras e autogestão. Este mercado é composto por mais de 1.000 empresas,
movimentando cerca de US$ 14,8 bilhões por ano, cerca de 2,6% do Produto Interno
Bruto (PIB), cobrindo cerca de 1/4 da população brasileira. Este cenário vem sofrendo
alterações desde o início do processo de regulamentação dos planos de saúde, instituído
pela Lei federal 9.656/1998, cuja constitucionalidade também nos cabe investigar.
Passemos então a analisar os tipos de planos de saúde presentes no
Brasil.
Medicina de Grupo
A forma predominante das medicinas de grupo nesse mercado é
semelhante às Health Maintenance Organizations (HMOs) dos EUA, compondo-se por
serviços de saúde próprios, credenciados, ou por ambos. As medicinas de grupo
surgiram por volta de 1920 nos Estados Unidos, como organização dos primeiros
grupos médicos e evoluíram lentamente até se adaptar, em 1970, às características da
sociedade americana e se tornarem grandes.
160
As medicinas de grupo chegaram ao Brasil em 1960 na região do ABC
paulista, quando o governo incentivava os convênios-empresa.
A Medicina de Grupo nada mais é do que um sistema de criação e
administração de serviços médico-hospitalares para atendimento em larga escala com
bom padrão profissional e custos controlados.
Sua estrutura inclui médicos contratados e credenciados. Trata-se de um
plano de pré-pagamento, em que os seus beneficiários e dependentes ou são vinculados
ao grupo médico por contratos coletivos firmados pelas empresas onde trabalham, ou
por planos individuais e familiares.
Está presente em quase todas as cidades brasileiras com mais de 40 mil
habitantes.
Os usuários têm acesso a rede própria e credenciada, e o uso de serviços
não credenciados é previsto nos planos mais caros, implicando o ressarcimento dos
gastos.
Há, evidentemente, planos mais caros, dependendo do tipo de
atendimento e variando de um grupo médico para outro. Os planos básicos, contudo,
garantem um padrão compatível com as necessidades da população trabalhadora, com
direito a consultas médicas com hora marcada, exames complementares, internações
hospitalares e cirurgias. O convênio-empresa não tem qualquer tipo de carência.
Cooperativa Médica
As cooperativas médicas começaram a surgir em 1967 com a intenção
dos principais órgãos associativos da classe médica de reagir ao surgimento das
primeiras empresas de medicina de grupo no Brasil. As cooperativas são regidas pela
legislação do cooperativismo. Prestam assistência aos beneficiários por meio de
contratos coletivos, familiares e individuais, tendo ampla cobertura médico-hospitalar e
laboratorial por profissionais cooperados.
Na concepção desse segmento, os médicos são ao mesmo tempo sócios e
prestadores de serviços, recebendo, proporcionalmente à sua produção, por tipo e
qualidade de atendimento. Também participam do rateio do resultado positivo final
obtido pelas unidades.
161
Seguro-saúde
Conforme definição legal, Seguro Saúde é o seguro destinado a dar
cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar, cuja garantia consiste no
pagamento em dinheiro, efetuado pela sociedade seguradora à pessoa física ou jurídica
prestadora da assistência médica ao segurado.
A livre escolha do médico e ho spital é condição obrigatória nos
contratos, sendo vedado às sociedades seguradoras acumular assistência financeira com
assistência médico-hospitalar. Portal razão as seguradoras não podem prestar serviços
de assistência médico-hospitalar com rede própria.
Os seguros de saúde podem ser contratados por pessoas físicas ou por
pessoas jurídicas, a favor de seus empregados e diretores.
O pagamento das contas médicas e hospitalares poderá ser feito
diretamente aos médicos e hospitais ou aos segurados, mediante reembolso, de acordo
com as tabelas de procedimentos médicos e de custos hospitalares de cada seguradora e
à vista dos documentos comprobatórios.
Autogestão
A autogestão trata de plano de saúde próprio, gerenciado pela empresa ou
por uma assessoria especializada, sem finalidade lucrativa. A empresa que implanta a
autogestão estabelece o formato do plano, define o credenciamento de médicos,
hospitais, carências e coberturas, reduzindo os gastos decorrentes com a intermediação
das empresas de planos de saúde do mercado. Fazem parte desse segmento os planos de
saúde destinados a empregados ativos e aposentados ou a participantes de entidades
associativas, beneficentes, assistenciais, previdenciárias, sindicais e de cooperativas de
usuários, bem como seus dependentes até o terceiro grau de parentesco.
A direção do plano de saúde na modalidade de autogestão pode ser
exercida: de forma predominante pela empresa patrocinadora, no caso de plano para
seus empregados; predominantemente pelo corpo social, no caso de associações de
classe ou cooperativas; ou ainda de forma conjunta (co-gestão), no caso de planos de
entidades, cujo participantes são ligados também às empresas patrocinadoras.
A adesão ao plano pode ser compulsória, no caso de a patrocinadora
assumir integralmente, ou substancialmente, os custos, ou facultativa no caso de os
empregados ou associados contribuírem para o seu funcionamento.
162
A assistência à saúde nos planos de autogestão pode ser prestada por
meio de rede credenciada (profissionais e instituições de saúde que atendem mediante
tabela de preços previamente acordada com a administração do plano), ou de serviços
próprios (estrutura própria de atendimento à saúde, mantida pela organização) ou por
livre escolha (utilização dos serviços de profissionais e instituições de saúde disponíveis
no mercado, com posterior reembolso dos gastos pelo plano, conforme sua tabela), ou
então por uma combinação dessas formas.
Atualmente a distribuição entre as diversas modalidades de planos de
saúde se dá conforme o quadro abaixo:
Distribuição percentual dos beneficiários de planos de saúde, por modalidade da operadora
– Brasil – dezembro/2005
Fontes: Cadastro de Beneficiários -– ANS/MS –12/2005 e Cadastro de Operadoras/ANS/MS – 02/2006
Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo.
Ilustração 24 Planos de saúde por modalidade de operadora – Brasil dezembro 2005
7.1. O mercado brasileiro de planos de saúde
Como no caso dos medicamentos, o mercado de planos de saúde também
está longe de ser um mercado de concorrência perfeito, como se pode ver ao
contrastarmos o contexto desses mercados com aquele que já expusemos ser necessário
para uma concorrência perfeita.
Antes de tudo, há que se determinar um critério para a definição do
mercado relevante dos planos de saúde, ou seja, qual será o universo que será estudado
para identificar o grau de concorrência entre os seus participantes.
Já colocamos que o mercado relevante é definido pela possibilidade de
substituição pelo consumidor dos produtos e serviços oferecidos, a intercambialidade,
163
que efetivamente colocará um ofertante em confronto com o outro pela decisão de
compra.
A análise deve ser feita, independentemente do preço destes produtos e
serviços, pois se parte da premissa de que o consumidor é racional e sempre vai
procurar maximizar seus benefícios com o valor investido dentro de sua capacidade
financeira, que tem grande impacto nos gastos relacionados à saúde, dada a sua
essencialidade, conforme já apontamos, e pode ser percebido verificando a evolução dos
gastos familiares com saúde por faixa de renda relatada no início deste trabalho.
Quando o contratante do plano de saúde for uma empresa, a
racionalidade da decisão certamente estará mais presente para seus funcionários do que
nas decisões individuais.
Pois bem, os critérios que levam um consumidor a optar por um ou outro
plano de saúde, são (i) cobertura geográfica, (ii) nível da rede credenciada de médicos,
hospitais e laboratórios de diagnósticos, dos quais ele poderá usufruir ou aqueles
acessíveis pelo valor de reembolso, e (iii) atendimento da própria operadora do plano de
saúde. Os dois primeiros serão os critérios fundamentais, pois são os que podem ser
conhecidos antes da contratação, de modo que estes dois fatores é que definem o
mercado relevante em planos de saúde.
Feito isto, já se verifica uma grande redução do universo de concorrentes,
especialmente fora das capitais dos Estados mais populosos e ricos do País, o que se
soma à concentração existente também em relação aos prestadores de serviços de
assistência à saúde existentes fora desse circuito excepcional.
Esse vetor de concentração regional está evidente no Atlas econômicofinanceiro da Saúde Suplementar no Brasil de 2005, editado pela ANS, ao verificarmos
o índice de concentração econômica segundo o HHI (Herfindahl- Hirschman Index) e o
percentual de mercado mantido pelas 4 (quatro) empresas lideres de mercado em alguns
estados brasileiros:
164
ConcentraçãoBrasil (%)
Concentração SP (%)
Concentração Sergipe (%)
Concentração RJ (%)
Concentração Rondônia (%)
Concentração MG (%)
Concentração DF (%)
Ilustração 25 - Concentração dos Planos de Saúde no Brasil 2003-2005
165
Sendo assim, já se percebe, em algumas regiões do País, a concentração
do mercado com as conseqüênc ias de possível aumento de preços, dificuldades para
desafiantes e, portanto, barreiras de acesso para a população, que demonstramos no
início deste trabalho.
A análise é apenas estadual, e não considera a concentração dos
mercados nas cidades, onde, especialmente nas cidades pequenas do interior dos
estados, a concentração é muito maior.
No Brasil, a menor parte das operadoras de planos de saúde detêm a
maior parte do mercado, como se vê no s quadros abaixo.
Curva ABC da distribuição dos beneficiários de planos de saúde entre as operadoras
– Brasil – dezembro/2005
Fontes: Cadastro de Beneficiários – ANS/MS – 12/2006 e Cadastro de Operadoras/ANS/MS – 02/2006
Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo.
Curva A: 274 operadoras (15,8% do total) detêm 80% dos beneficiários.
Curva B: 500 operadoras (28,9% do total) detêm 90% dos beneficiários.
Curva C: 1.729 operadoras (100% do total) detêm 100 % dos beneficiários.
Ilustração 26 Curva ABC da distribuição dos beneficiários de planos de saúde entre as operadoras
166
Planos de saúde registrados com beneficiários, por número de beneficiários
– Brasil – setembro/2005
1 a 100
101 a 1.000
1.001 a 10.000
10.001 a 50.000
50.001 a 100.000
Mais de 100.000
Fontes: Cadastro de Beneficiários/ANS/MS – 12/2005 e RPS/ANS/MS – 21.02.2006
Nota: Existem 17.234 planos sem beneficiários ativos.
Ilustração 27 Planos de saúde por número de beneficiários – Brasil 2005
Somando a concentração de mercado, temos, ainda, as barreiras à entrada
de novos concorrentes, principalmente (i) a barreira regulatória da ANS, que
esclareceremos em detalhes mais adiante e, especialmente, (ii) a forte presença de
economias de escala no lançamento de cada novo produto pelas operadoras de planos de
saúde, pois estes se compõem de carteiras fechadas em receitas e despesas e (iii) os
investimentos necessários para a instalação de serviços de saúde próprios ou na
formação da rede credenciada.
É fácil notar que em qualquer atividade de pulverização de riscos quanto
maior a população atendida, melhores as previsões atuariais, maior o colchão financeiro
e maior a possibilidade de alcançar um equilíbrio dinâmico entre contribuintes, não
usuários da cobertura, e contribuintes que a estão usando com custos maiores que a sua
contribuição.
Assim, quanto maior a população atendida pelo plano ou seguro-saúde,
melhor será sua performance financeira e menores seus riscos de quebra, o que, somado
à diluição de custos fixos, dá larga vantagem competitiva aos planos e seguros de saúde
maiores em relação a possíveis desafiantes.
Ou seja, os ganhos de escala são extremamente relevantes para os planos
de saúde.
167
Verifica-se, ainda, a baixa intercambialidade entre planos de saúde tanto
empresariais quanto individuais decorrente das carências impostas para que os usuários
possam acessar certos tipos de serviços de saúde, e a falta de cobertura de doenças
preexistentes, ou seja, conhecidas anteriormente à adesão ao novo plano de saúde.
Quanto à instalação dos serviços de saúde pelas medicinas de grupo, em
caso de serviços próprios, temos um alto custo de construção, de aparelhamento e até de
ultrapassagem da barreira regulatória sanitária.
No caso de rede credenciada própria, a sua criação pode inclusive ser
dificultada por vínculos existentes entre a rede e outras operadoras de planos de saúde e,
princ ipalmente, as cooperativas médicas, pois os profissionais médicos teriam interesses
conflitantes entre serem credenciados do desafiante e membros da cooperativa.
Temos então baixa mobilidade dos fatores de produção e desestímulos
para a entrada de novas empresas nesse mercado.
Embora não tenhamos os problemas de agência presentes na compra de
medicamentos, temos assimetria da informação em menor nível, mas presente, pois
normalmente os contratantes não têm condições de avaliar segundo critérios técnicos a
qualidade da rede de atendimento própria ou credenciada, especialmente quanto aos
médicos.
O conhecimento dos serviços oferecidos aos usuários dos planos de
saúde a posteriori os qualifica como bens de conhecimento e em muitos casos os
serviços serão credenciais devido à impossibilidade de análise pelo usuário, como por
exemplo os serviços de diagnósticos ou tratamentos mais complexos.
Vemos, portanto, que não se trata de um mercado de auto-regulação
automática, no qual o combate a eventuais práticas anticoncorrenciais de seus
participantes pela legislação antitruste seria suficiente para garantir a livre concorrência
real.
Há necessidade da intervenção do Estado para a ampliação do acesso da
população aos planos de saúde e conseqüentemente às ações e serviços de saúde.
Além da aplicação da legislação antitruste e de defesa do consumidor,
foram editadas leis específicas para os planos de saúde em decorrência de suas
especificidades e de sua relevância em um país em que a atenção oferecida pelo Sistema
Único de Saúde está longe de ser satisfatória e a população precisa recorrer ao sistema
suplementar.
168
7.2. A regulamentação dos planos de saúde no Brasil
A Lei 9.656, sancionada em 3 de junho de 1998, entrou em vigor em 3 de
setembro de 1998, noventa dias após sua publicação, marcando o início da
regulamentação específica dos planos privados de assistência à saúde. Esta lei foi
modificada em seguida pela edição de medidas provisórias, renovadas a cada 30 dias,
além de dezenas de Resoluções do Conselho de Saúde Suplementar (CONSU).
Conforme se esgotava o prazo de cada medida provisória, o que ocorria a
cada 30 dias, o Poder Executivo era obrigado a editar uma nova (quando houvesse
alteração no seu texto) ou reeditar a mesma, até que o Congresso a colocasse em pauta.
Os modelos anteriores de planos de saúde puderam continuar sendo
comercializados até 31 de dezembro de 1998, a partir do que entraria em vigor o
disposto na Lei 9.656, permanecendo com validade por tempo indeterminado, a não ser
que o seu usuário manifestasse o interesse de migrar para enquadrar-se na regulação
nascente. Já os novos planos, que, então, deveriam ser protocolados na SUSEP,
passariam a ser oferecidos enquadrados na legislação pertinente.
A nova legislação trouxe mudanças positivas para os usuários de planos
de saúde de todos os segmentos. A maioria delas com aplicação imediata apenas para os
planos instituídos a partir de janeiro de 1999 ou para aqueles que optassem pela
adaptação ao sistema previsto na lei. Algumas alterações:
•
instituição de coberturas mínimas a serem oferecidas em todos os planos de
saúde;
•
proibição da empresa de vedar a participação do usuário, em razão de sua idade,
doença preexistente ou deficiência, mas possibilidade de agravamento (aumento)
da mensalidade em alguns casos;
•
regulação do descredenciamento de prestadores de serviços;
•
limitação dos prazos de carência;
•
assistência ao recém- nascido nos primeiros 30 dias de vida;
•
rescisão contratual unilateral pela empresa apenas nos casos de fraude ou atraso
de pagamento da mensalidade em período superior a 60 (sessenta) dias;
•
cobertura em saúde mental;
•
garantia ao demitido sem justa causa e ao aposentado, que contribuíram por mais
de dez anos com plano coletivo de empresa, ao direito de permanecerem no
mesmo plano, desde que assumam o pagamento integral;
169
•
ressarcimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) toda vez que um usuário de
plano de saúde for atendido em hospitais públicos;
•
padronização de sete faixas etárias: (0 a 17; 18 a 29; 30 a 39; 40 a 49; 50 a 59;
60 a 69; e acima de 70 anos). Os valores das mensalidades em cada faixa podem
variar entre as empresas, desde que o valor da última não seja superior a seis
vezes o da primeira;
•
Cobertura de transplantes de rim e córnea.
Posteriormente, a Lei 9.961/2000 criou a ANS com o intuito de
impulsionar a operacionalização das determinações da Lei 9.656/1998 e regulamentar
esse mercado, exercendo parte das competências anteriormente exercidas pela
Superintendência de Seguros Privados (SUSEP ) e pelo Conselho Nacional de Seguros
Privados (CNSP), por meio de sua Câmara de Saúde Suplementar.
A ANS foi criada pela Lei 9.961/2000 como autarquia de regime
especial, vinculada ao Ministério da Saúde, que passou a acumular as atribuições da
Saúde e da Fazenda na regulamentação do setor, com a missão de promover a defesa do
interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais,
inclusive nas suas relações com prestadores e consumidores.
A ANS é a Agência Regulatória de regulação, normatização, controle e
fiscalização das atividades dos planos, seguros e convênios de saúde, com autonomia
administrativa e financeira, nos moldes de outras agências governamentais. É
responsável pela elaboração de rol de procedimentos e coberturas, normas para
ressarcimento ao Sistema Único de Saúde, segmentação dos planos, critérios de controle
de qualidade e fiscalização dos planos de saúde, recolhimento de informações de
natureza econômico- financeira das operadoras, liquidação das empresas cassadas, entre
outras tarefas.
Já por essas atribuições se nota que a ANS tem poderes de
regulamentação econômica das empresas sob sua competência até mais contundente do
que os que a CMED tem sobre os laboratórios farmacêuticos, além de ter poderes de
polícia superiores aos da ANVISA. É necessário, portanto, um breve panorama das
atividades da ANS ao investigar a constitucionalidade dessas atribuições.
A ANS, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização
das atividades dos planos, seguros e convênios de saúde, nos termos da Lei 9.961/2000,
é responsável por: autorizar o registro dos planos privados de assistência à saúde e das
operadoras de planos privados de assistência à saúde, que não poderão atuar e
170
comercializar seus produtos sem o competente registro nessa agência; estabelecer
critérios gerais para o exercício de cargos diretivos das operadoras de planos privados
de assistência à saúde; autorizar reajustes; avaliar a capacidade técnico-operacional das
operadoras de planos privados de assistência à saúde para garantir a compatibilidade da
cobertura oferecida com os recursos disponíveis na área geográfica de abrangência,
podendo instituir, se necessário, o regime de direção fiscal ou técnica nas operadoras;
proceder à liquidação daquelas operadoras que tiverem cassada a autorização de
funcionamento; promover a alienação de carteira de planos.
As operadoras de
planos
privados
de
saúde,
seus
diretores,
administradores, membros de conselhos administrativos, deliberativos, consultivos,
fiscais e assemelhados estão sujeitos às penalidades abaixo arroladas, a serem aplicadas
pela ANS, sem prejuízo da aplicação das sanções de natureza civil e penal cabíveis:
I. advertência;
II. multa pecuniária;
III. suspensão de exercício dos cargos acima mencionados;
IV. inabilitação temporária para o exercício dos cargos acima mencionados, em
operadoras de planos de assistência à saúde; e
V. cancelamento da autorização de funcionamento e alienação da carteira da
operadora mediante leilão.
Após regularmente constituída como empresa, a operadora de plano de
saúde deverá solicitar o registro provisório de funcionamento à ANS, que notificará a
requerente sobre o resultado da análise. No caso de aprovação da solicitação, a
notificação será efetuada com a inclusão dos dados cadastrais da operadora na listagem
disponibilizada no site da ANS (http://ans.saude.gov.br).
O exercício de qualquer cargo ou função de diretor, curador ou
conselheiro e gerente só poderá ser realizado por pessoas naturais residentes no País,
com reputação ilibada, não impedidas por lei ou inabilitadas, que não estejam
respondendo judicia lmente ou extrajudicialmente por dívidas, eque tenham exercido,
pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos, funções de direção ou gerência, em alguns casos,
em entidades públicas ou privadas, sendo exigível do responsável pela área técnica de
saúde o registro no Conselho Regional de Medicina – CRM ou no Conselho Regional
de Odontologia – CRO, conforme o caso (Lei 9.961/2000, art. 4, inciso XIV).
A comunicação de eleição, nomeação ou designação para ocupação de
cargo de administrador em operadora será feita no prazo de 30 (trinta) dias contados da
171
data de realização do ato à ANS, que poderá recusar o cadastramento do mesmo,
determinando à operadora a imediata substituição do eleito, nomeado ou contratado.
As operadoras de plano s deverão, para obter autorização de reajuste
anual das contraprestações pecuniárias dos planos individuais e/ou familiares,
protocolizar suas solicitações de reajustes junto à ANS, acompanhadas dos documentos
exigidos por esta agência (Lei 9.961/2000 art. 4, inciso XVII).
As operadoras que ma ntenham planos coletivos deverão comunicar à
ANS os percentuais de reajustes a serem aplicados com 30 dias de antecedência,
informando a justificativa dos valores a serem praticados, fornecendo cópia dos
contratos que serão objeto de reajuste e demonstração da massa assistida e sua
delimitação. Os planos coletivos com vínculo empregatício, financiados total ou
parcialmente pela pessoa jurídica empregadora, não necessitam comunicar à ANS os
percentuais de reajustes a serem aplicados.
Qualquer transferência de controle societário de operadora de plano de
saúde deve ser submetida à aprovação da ANS, bem como os atos isolados ou em
conjunto de qualquer pessoa física ou jurídica ou de grupo de pessoas representando
interesse comum, acordo de acionistas/quotistas, e negócios jurídicos celebrados entre
os colaboradores (Lei 9.961/2000, art. 4, incisos XXII e XXVIII).
A ANS, após o exame das informações prestadas, poderá deferir o
projeto, sobrestá- lo ou indeferi- lo. No caso de deferimento, a operadora de planos de
saúde deverá, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, a contar da comunicação da ANS,
registrar a transferência de controle no órgão competente e enviar a documentação
registrada a essa agência para homologação.
As regras definidas pela ANS que as operadoras deverão seguir, para
garantir a continuidade de sua operação, representam um patamar mínimo que garante a
sua continuidade.
As operadoras de planos de saúde sujeitar-se-ão, conforme o caso, à
constituição das garantias financeiras abaixo mencionadas para o início e continuidade
das operações.
1.
capital mínimo ou provisão de operação;
2.
provisão de risco;
3.
provisão para eventos ocorridos e não-avisados;
4.
margem de solvência;
5.
outras provisões técnicas.
172
As sociedades seguradoras, especializadas em saúde, possuem regras
próprias e as autogestões patrocinadas terão regras de patrocínio; por esta razão esses
tipos de operadoras não necessitam constituir as garantias financeiras estabelecidas pela
ANS.
Qualquer outra provisão técnica poderá ser constituída, como por
exemplo para oscilação do índice de inadimplência da operadora, desde que seja
encaminhada uma Nota Técnica Atuarial de Provisões – NTAP para análise e aprovação
da ANS.
As garantias poderão ser constituídas com ativos que deverão estar
vinculados à ANS e não poderão ser alienados.
A ANS, no uso de suas atribuições, poderá, ainda, instaurar direção fiscal
ou direção técnica, ou ambas, na operadora de plano de saúde, por prazo não superior a
180 (cento e oitenta) dias.
A direção fiscal ocorrerá sempre que se verificar insuficiência nas
garantias do equilíbrio financeiro ou anormalidades econômico-financeiras, tais como
totalidade dos bens inferior às obrigações para com terceiros; insuficiência de recursos
garantidores em relação ao montante total das provisões técnicas; não apresentação, não
aprovação ou não cumprimento do plano de recuperação.
A direção técnica poderá ser instaurada sempre que ocorrerem
anormalidades administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a
qualidade do atendimento à saúde, tais como : atraso contumaz no pagamento dos
prestadores; não atingimento das metas qualitativas e quantitativas; desequilíbrio
atuarial da carteira; evasão excessiva de beneficiários; excessiva rotatividade da rede
credenciada ou descredenciamento em massa; criação de óbices ao acesso dos
beneficiários.
Caberá ao diretor fiscal e ao diretor técnico determinar a adoção de
medidas que possam sanar as irregularidades verificadas na gestão econômicofinanceira da operadora e restabelecer a continuidade ou a qualidade do atendimento à
saúde, respectivamente.
O regime de direção, fiscal ou técnica, será encerrado quando decretado o
regime de liquidação extrajudicial ou quando for alcançado o objetivo de saneamento da
insuficiência nas garantias do equilíbrio financeiro ou anormalidades econômicofinanceiras graves, no caso de direção fiscal, e, quando forem saneadas as
anormalidades administrativas graves, no caso de direção técnica.
173
A ANS, no uso de suas atribuições, poderá determinar a liquidação
extrajudicial da operadora de planos de assistência à saúde: quando verificar sua
insolvência econômico-financeira; quando não for alcançado por esta o objetivo de
saneamento da insuficiência nas garantias do equilíbrio financeiro ou das anormalidades
econômico- financeiras graves proposto pelo regime de direção fiscal; ou quando não for
atingido o saneamento das anormalidades administrativas graves proposto pelo regime
de direção técnica.
A liquidação extrajudicial será processada pela ANS, que nomeará o
liquidante com amplos poderes de administração e liquidação.
Os administradores das operadoras em liquidação extrajudicial, bem
como todos aqueles que tenham estado no exercício das funções nos doze meses
anteriores ao ato, ficarão com todos os seus bens indisponíveis, não podendo, por
qualquer forma, direta ou indireta, aliená- los ou onerá- los, até apuração e liquidação
final de suas responsabilidades. tal indisponibilidade poderá ser estendida aos bens dos
gerentes, conselheiros fiscais e todos aqueles que, até o limite da responsabilidade
estimada de cada um, tenham concorrido, nos últimos doze meses, para a decretação da
liquidação extrajudicial, assim como aos bens das pessoas que, nos últimos doze meses,
os tenham a qualquer título adquirido de administradores, gerentes ou conselheiros da
instituição. Essas pessoas não poderão ausentar-se do foro da liquidação extrajudicial
sem prévia e expressa autorização da ANS.
A liquidação extrajudicial cessará se os interessados, apresentando as
necessárias condições de garantias, tomarem para si o prosseguimento das atividades
econômicas da empresa; ou com a apresentação das contas finais do liquidante e baixa
no registro público competente.
A ANS poderá determinar a alienação de carteira das operadoras de
planos de assistência à saúde nas situações que impliquem risco para a continuidade da
assistência à saúde ou na vigência de Regime de Direção Fiscal e/ou de Direção
Técnica.
A operação de alienação de carteira deverá ocorrer no prazo máximo de
30 (trinta) dias a contar da data do recebimento pela operadora do plano de saúde da
comunicação da decisão da ANS. Deverão ser mantidos integralmente os contratos de
planos de saúde, sem restrição de direitos ou prejuízos para os beneficiários.
A inobservância às determinações da ANS no que tange à alienação de
carteira poderá ensejar a pena de inabilitação temporária por 10 (dez) anos aos membros
174
do Conselho de Administração e da Diretoria da operadora alienante para o exercício de
cargos de direção ou em Conselhos de Operadoras de Planos de Assistência à Saúde,
bem como o leilão da carteira.
A alienação da totalidade da carteira deverá ser comunicada pela
operadora adquirente aos titulares beneficiários, mediante carta registrada com aviso de
recebimento, enquanto a operadora aliena nte deverá comunicá-la mediante publicação
em jornal de grande circulação na sua área de atuação.
A alienação de carteiras das operadoras de planos privados de assistência
à saúde dependerá de decisão da ANS e poderá ocorrer por leilão em decorrência de
decisão transitada em julgado em processo de aplicação de penalidade e por proposta do
Diretor Fiscal ou Técnico.
O leilão sempre atingirá a totalidade da carteira, que poderá ser adquirida
em proposta conjunta por duas ou mais operadoras, quando necessário para garantir
maior participação e melhores condições de absorção de todo universo de
consumidores.
Poderá participar do leilão de carteira qualquer operadora que esteja em
situação regular perante a ANS e que atenda às exigências de qualificação técnica e
econômica previstas no edital, resultando como vencedora a operadora que apresente a
melhor proposta de acordo com os critérios de julgamento estabelecidos no edital.
As operadoras deverão ressarcir os atendimentos previstos nos
respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em
instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS. O
ressarcimento será cobrado de acordo com os procedimentos estabelecidos na Tabela
Única Nacional de Equivalência.
7.3. Análise de constitucionalidade da regulamentação dos preços dos de planos de
saúde no Brasil
As já citadas Leis 9.656/1998 e 9.961/2000 têm uma série de dispositivos
de controle e intervenção nos planos de saúde, cuja constitucionalidade também deve
ser avaliada.
Antes, contudo, de se avaliar essa constitucionalidade, há que se observar
atentamente a natureza dos planos de saúde. As operadoras de planos de saúde não têm
como foco primordial o fornecimento do próprio serviço de saúde, que será fornecido
175
por médicos ou serviços de saúde e que podem ser prestados tanto pela sua rede quanto
por terceiros.
Ainda que se trate de rede própria, a prestação dos serviços de saúde, no
caso de medicinas de grupo, cooperativas e autogestões, será atividade distinta da
atividade principal do plano de saúde. Um plano de divisão de risco e financiamento de
tratamentos próprio dos seguros é, portanto, uma atividade financeira e atuarial.
Isto posto, a fundamentação constitucional da atuação da ANS e da
regulamentação dos planos privados de saúde não advém do artigo 200 da Constituição
Federal, pois este trata apenas da fiscalização pelo SUS de produtos e serviços para a
saúde (inciso I do artigo 200 da Constituição Federal) e, como dito, fundamenta a
existência e atuação da ANVISA dentro do microssistema de direito sanitário.
Tampouco se pode dizer que sua fundamentação estaria no artigo 197 da
Constituição Federal, pois este diz respeito à regulamentação, à fiscalização e ao
controle de ações e serviços de saúde e não se pode considerar o financiador desses
serviços e ações com o próprio prestador dos serviços ou realizador das ações por ele
financiadas, como são os planos de saúde em sua essência.
Embora nas medicinas de grupo, autogestões e cooperativas o serviço de
saúde com rede própria de serviços esteja imbricado com o seu financiamento, podemos
separar as atividades financeiras e de serviços nessas operadoras de modo que aos
serviços se aplicam as regras de direito sanitário e às financeiras as constantes das Leis
9.656/1998 e 9.961/2000, que é o que realmente acontece.
Estamos, portanto, tratando das disposições das Leis 9.656/1998 e
9.961/2000, as quais dizem respeito ao negócio central dos planos de saúde, sua atuação
financeira e securitária.
Tais normas trazem dispositivos voltados à proteção daqueles que pagam
para ter a segurança de em uma eventualidade (sinistro) terem acesso a um serviço de
saúde esperado. Assim, são disposições relativas à saúde financeira das operadoras, à
bilateralidade, e dizem respeito aos contratos de planos de saúde.
Portanto, tais dispositivos visam à proteção dos consumidores desses
planos de saúde, de modo que seu fundamento de validade constitucional é o artigo 5.º,
inciso XXXII, da Constituição Federal, pois embora seja uma proteção específica a um
consumidor em particular, é a isto que elas se dirigem: à proteção do consumidor
executada por meio de uma agência regulatória, no caso a ANS.
176
As proteções determinadas diretamente pelas Leis em comento são
válidas, pois têm este lastro constitucional. Mas e a atuação da ANS, é constitucional? É
constitucional a produção de normas jurídicas inovadoras e vinculantes para a iniciativa
privada sem a participação do Poder Legislativo ?
Conforme apontamos no início deste trabalho, cremos que a atuação
normativa inovadora de Agência Regulatória se legitimaria pela concessão de serviço
público, e que esta ainda é aceitável perante a Constituição Federal no caso da ANVISA
por força dos artigos 197 e 200 da Constituição Federal.
Entretanto, já afirmamos e demonstramos porque tais artigos
constitucionais não se aplicariam à ANS, de modo que a criação normativa inovadora
desta, em nossa opinião, é inconstitucional, pois viola a reserva legal do Poder
Legislativo, exceto nos casos em que a ANS esteja expedindo normas não inovadoras,
dando aplicação às Leis 9.656/1998 e 9.961/2000, ou mesmo caso esteja exercendo
função executiva e fiscalizatória do atendimento pelas operadoras de planos de saúde
aos ditames desta, casos em que as referidas normas devem ser aplicadas.
Todas essas exigências e poderes da ANS são voltadas à garantia de
transparência e eqüidade dos contratos dos planos de saúde e à garantia de segurança
financeira das operadoras de planos de saúde e portanto são, em última análise, proteção
ao consumidor que ali deposita direta ou indiretamente, por meio de seu empregador,
seu dinheiro com a expectativa de socorro em caso de sinistro de saúde.
Dessa forma, em nossa opinião, o puro e simples poder de polícia da
ANS, embora contundente, é perfe itamente constitucional, pois lastreado na defesa do
consumidor prevista nos artigos 5.º, inciso XXXII, e 170, inciso V, da Constituição
Federal.
Entretanto nos cabe analisar a constitucionalidade do poder de
regulamentação econômica da ANS trazido pela Lei 9.961/2000 em seu artigo 4.º,
incisos XVII e XVIII, na previsão que confere à ANS poderes para controlar os preços
dos planos de saúde.
Em nossa opinião, como já dito, a previsão já seria inicialmente
inconstitucional por ferir o artigo 170 da Constituição Federal, já que não garante, mas
ao contrário aniquila a concorrência.
Porém, como no caso dos medicamentos, há que se analisar a sua eficácia
para o atendimento do disposto no artigo 196 da Constituição Federal, ou seja, para a
ampliação do acesso da população às ações e serviços de saúde.
177
O controle de preços vem sendo exercido pela ANS apenas em relação
aos planos de saúde contratados por pessoas físicas, com autorizações de aumento anua l
padrão por índice nacional calculado pela média dos aumentos dos planos de saúde
empresaria is.
Referido controle não combate as falhas de concorrência que apontamos
no mercado de planos de saúde e não considera os mercados relevantes em que poderia
ou não ocorrer a concorrência, de modo a não contribuir para a redução dos preços dos
planos de saúde, algumas vezes até dando aumentos que, em alguns casos, vão além do
que seriam naturalmente dado pelos planos de saúde em determinado mercado
relevante.
A ineficiência do controle de preços realizada é facilmente percebida ao
se acompanhar a evolução dos planos de saúde para pessoas físicas no Brasil, marcada
pela redução da abertura desses planos e pela retração de sua venda em relação aos
planos empresariais.
Beneficiários de planos de saúde, por tipo de contratação do plano
– Brasil – 2000-2005
Font e: Cadastro de Beneficiários – ANS/MS – 12/2005
Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo.
Ilustração 28 Beneficiários de planos de saúde, por tipo de contratação do plano
178
Distribuição percentual dos beneficiários de planos de saúde novos,
por tipo de contratação do plano – Brasil – dezembro/2005
2.001
2.002
individual
33,7%
individual
29,8%
coletivo
70,2%
coletivo
66,3%
2.003
individual
27,5%
coletivo
72,5%
Fonte: Cadastro de Beneficiários – ANS/MS – 12/2001, 2002, 2003, 2005
Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo.
Ilustração 29 Beneficíarios de Planos de Saúde por tipo de contratação 2001– 2005
Verifica-se assim que os planos de saúde sujeitos ao controle de preços
(planos individuais) regridem percentualmente em face daqueles regidos pela livre
concorrência (planos empresariais ), mesmo diante do aumento do número total de vidas
seguradas.
Tal regressão dos planos de saúde com preços controlados demonstra de
maneira empírica e cabal que o controle de preços é um desestímulo ao acesso aos
planos de saúde, contrariamente ao preceito constitucional.
Vale notar que esta regressão dos planos das pessoas físicas impõe uma
redução do acesso às ações de saúde, pois os níveis de utilização de serviços de saúde
também são maiores nesses planos do que nos empresariais, inclusive porque nestes a
presença de idosos e crianças é mais acentuada:
179
Ilustração 30 Utilização Média do Plano de Saúde (item/tipo de contratação) 2002 - 2004
Assim, os planos de saúde no Brasil são voltados para a oferta
empresarial, deixando as pessoas físicas não empregadas relegadas ao atendimento
ineficiente do SUS, sendo interessante notar a semelhança dessa situação com a que
tínhamos no atendimento de saúde pelo Estado no passado, ou seja, o atendimento
apenas aos trabalhadores.
Conforme a ilustração nº. 29, os planos de saúde individuais (com preços
controlados) estão diminuindo percentualmente face os planos de saúde coletivos (sem
preços controlados).
Isto posto, pode-se observar de forma empírica, independentemente de
maiores digressões, que o controle de preços de planos de saúde desfavorece o acesso
da população aos planos de saúde e, conseqüentemente, aos serviços de saúde que
180
seriam financiados por estes, afrontando, assim, o artigo 196 da Constituição Federal,
sendo portanto inconstitucional o controle de preços de planos de saúde.
Ademais, a atuação da ANS em relação aos reajustes de plano de saúde,
por desastrosa que se vem demonstrando, afronta como ato administrativo o princípio
da eficiência esculpido no caput do artigo 37 da Constituição Federal, posto que estão
sendo claramente ineficie ntes para a ampliação do acesso aos planos de saúde conforme
determinado por nossa Constituição Federal.
181
CONCLUSÃO
A partir do momento em que o ser humano passou a produzir excedentes
em sua luta pela subsistência, surgiu a possibilidade de trocas desse excedente por
outras coisas com outras pessoas, surgindo assim hipoteticamente a primeira operação
econômica.
Evidentemente uma troca pressupõe que as coisas trocadas sejam das
partes e que as outras pessoas respeitem tal suposição. Surge a propriedade, a regra de
conduta segundo a qual alguém pode dispor de alguma coisa e os demais devem
respeitar o Direito da pessoa de fazer com esta coisa o que bem entender.
Ademais, as partes têm de se respeitar mutuamente no sentido de que se
entregue um bem, deve-se dar a entrega do outro, surgindo ainda com o aproveitamento
social destas trocas um sistema social que garante que a troca seja honrada, criando
penalidades para os que não a honrarem.
Desta simples situação hipotética podemos tirar a idéia de que as relações
econômicas dependem do Direito para se realizarem e que também o Direito existe
também porque as relações, em grande parte econômicas, precisam ser garantidas.
O Estado, legitimado pelo sistema jurídico. surge para monopolizar o uso
da força e para defender os cidadãos.
Neste monopólio do uso da força ele se torna responsável por criar e
fazer cumprir o Direito, que também cria e dá forma ao próprio Estado.
Além das funções ligadas ao Direito, o Estado também se torna
responsável pela prestação de utilidades públicas e posteriormente pelo bom andamento
da própria economia privada, para o alcance do bem-estar social, conforme lhe dita o
Direito.
Da interação desses fatores sucintamente apontados, temos que o Direito
e a economia estão intimamente ligados na medida em que são objetos culturais
interdependentes e necessários para a vida em sociedade e o progresso da humanidade.
A atuação livre dos agentes econômicos, sempre em busca de seus
interesses hedonistas, que levou a grande avanço da humanidade, deixa de ser uma
solução viável quando os agentes econômicos acumulam tamanho poder que deixam de
se curvar aos ditames dos consumidores para passar a ditar- lhes regras, momento em
que o Estado é chamado a intervir.
182
O Estado também não consegue prestar todas as utilidades públicas que
concentrou e passa a conceder à iniciativa privada o privilégio de seu fornecimento, mas
mantém seu poder interventivo nessas atividades de grande relevância social.
A intervenção do Estado na economia restou refletida pelo Direito em
normas destinadas a proteger a higidez do mercado (legislação antitruste), a regular a
atuação dos agentes econômicos em relação aos serviços públicos privatizados, bem
como a regular a atividade dos agentes econômicos que fornecem utilidades, que, apesar
de não serem monopolizadas pelo Estado, são tão relevantes para a sociedade que
também são de responsabilidade do Estado, que deve regular estes mercados, como de
fato ocorre com a saúde e a educação.
No Brasil, nossa atual Constituição Federal admite a planificação das
atividades econômicas relacionadas à prestação de serviços públicos por conta da
adesão ao contrato pelos particulares que prestam serviços públicos, garantindo a livre
concorrência para os particulares nos demais mercados.
Apesar de os produtos e serviços de interesse da saúde não serem
propriamente considerados serviços públicos, suas muitas externalidades fizeram que o
constituinte de 1988 considerasse essa atividade econômica como de interesse público,
e, muito embora não tenha estabelecido um monopólio para o Estado, sujeitou os
particulares a regulamentação, que é exercida pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e agora pela
Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária trata dos aspectos técnicos
da garantia dos cidadãos contra o risco dos produtos e serviços para a saúde, bem como
da fiscalização de sua prestação adequada.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar cuida dos riscos contra a
economia popular inerentes à atividade de seguro saúde.
A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) é
responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos, visando ao
aumento da competição no mercado de medicamentos e à oferta destes à população.
Tanto a ANS quanto a CMED têm poderes de regulamentação de preços,
o que nos termos da atual sistemática constitucional brasileira, no tocante à ordem
econômica, será inconstitucional em todas as atividades que não sejam serviços
públicos próprios.
183
A regulamentação da atividade econômica em saúde e para os planos de
saúde é constitucional, mas não o controle de preços, que, além do vício geral de
inconstitucionalidade por ser contrário à livre concorrência e à livre- iniciativa, ainda
padece de inconstitucionalidade específica por coibir a atividade econômica, a
concorrência e a expansão da oferta de produtos e serviços para saúde.
Conforme demonstramos, o controle de preços não combate as falhas de
concorrência presentes nos mercados de medicamentos e planos de saúde e está
coibindo investimentos e a concorrência nesses setores; o controle de preços trata
unicamente do sintoma dessas falhas e não de sua causa. E, como o medicamento que
reduz a febre mas não cura a infecção, está mascarando os efeitos e impedindo o
tratamento eficaz de sua doença, necessário para o atendimento do mandamento
constitucional de ampliação de acesso à população brasileira.
184
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RODRIGO ALBERTO CORREIA DA SILVA