RODRIGO ALBERTO CORREIA DA SILVA A iniciativa privada em saúde e a Constituição de 1988 Mestrado em Direito PUC/SP SÃO PAULO 2006 1 RODRIGO ALBERTO CORREIA DA SILVA A iniciativa privada em saúde e a Constituição de 1988 Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito das relações sociais, área de concentração em Direito Civil, sob orientação do Professor Doutor Silvio Luís Ferreira da Rocha. PUC/SP SÃO PAULO 2006 2 Banca Examinadora __________________________________ __________________________________ __________________________________ 3 Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos. São Paulo, 29 de setembro de 2006 4 RESUMO O acesso aos produtos e serviços de saúde é garantido pela Constituição Federal de 1988, que dispõe que estes serão fornecidos tanto pelo Estado quanto pela iniciativa privada. Todavia, a despeito da determinação constitucional, temos uma crise social, pois nem todas as pessoas têm acesso aos medicamentos e planos de saúde que viabilizem tratamentos de saúde, cujo fornecimento pelo Estado é muito menos abrangente do que o necessário às hordas de miseráveis que vivem no Brasil. O trabalho analisa o controle de preços de medicamentos e de planos de saúde realizados no Brasil, respectivamente pela Câmara de Medicamentos e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, em face da sistemática da ordem econômica brasileira, colocada pela Constituição Federal de 1988, bem como, pelos objetivos de ampliação de acesso a produtos e serviços de saúde também impostos pela Constituição Federal de 1988. A análise de constitucionalidade dos mencionados controles de preços é realizada por meio do estudo do sistema jurídico nacional, da avaliação econômica dos mercados em questão e da inter-relação entre esses dois aspectos do objeto estudado. Ao longo do trabalho se discorre sobre os serviços públicos e os poderes do Estado em relação aos prestadores privados destes serviços sejam concessionários ou permissionários dos serviços públicos e os diferencia dos agentes privados que prestam serviços não privativos do estado. Por fim são analisados aspectos microeconômicos dos mercados de medicamentos e planos de saúde para entender o impacto e os limites da regulação estatal destes e dos mecanismos de controle de preços ali empregados. A conclusão considera o controle de preços inconstitucional, por ferir os princípios da livre concorrência e da livre-iniciativa, entre outros, e por sua ineficácia comprovada para atingir a finalidade constitucional da regulamentação estatal que é a ampliação de acesso da população a esses produtos e serviços. 5 ABSTRACT The access to health products and services is guaranteed by the Federal Constitution of 1988, that allows its supplying for both State and private initiative. Contrary to the constitutional determination we face a social crises once it is note everyone that have access to medicines and health plans that make accessible health treatments. The supply of those utilities by the State is much inferior of the need of the many miserable people that lives in Brazil. The work analyses the medicines and health plans price control that takes place in Brazil by the Medicines Chamber and by the National Supplementary Health Agency respecting the Brazilian economic order system created by the Federal Constitution of 1988 with the targets of population access increasing also mandatory according to the Federal Constitution of 1988. The Constitutionality analyses of those price controls is done through the study of the national legal system the economic analyzes of those markets and the relation between those two aspects of the study object. The work development includes the debate about public services and the State powers over the private renders of those services by permission or concession and the difference between them and the private agents that renders services non privative to the State. At the end the micro-economic aspects of the medicines and health plans are analyzed to understand the impacts and limits of the State Regulation on those and the of the price control mechanisms used today. The conclusion of the work is for the unconstitutionality of the prices control by offending the free competition and free initiative principles, among others, and by being useless to fulfill the constitutional task for the State Regulation that is the increasing of the population acess to those products and services. 6 LISTA DE ILUSTRAÇÕES ILUSTRAÇÃO 2 – LEITOS DE INTERNAÇÃO BRASIL – 1976 A 2000...................................................38 ILUSTRAÇÃO 6 DISTRIBUIÇÃO DA DESPESA MENSAL FAMILIAR EM R$ - BRASIL 2002-2003 (CONTINUAÇÃO)..........................................................................................................................................97 ILUSTRAÇÃO 8 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 02 ...........................105 ILUSTRAÇÃO 9 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 12 ...........................105 ILUSTRAÇÃO 10 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 01.........................106 ILUSTRAÇÃO 11 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 16.........................106 ILUSTRAÇÃO 12 PESQUISA AMCHAM SOBRE ANVISA (2005) - PERGUNTA 10.........................112 ILUSTRAÇÃO 13 DISTRIBUIÇÃO DO CONSUMO DE MEDICAMENTOS POR CLASSE SOCIAL 2001 ..................................................................................................................................................................123 ILUSTRAÇÃO 14 MERCADO FARMACÊUTICO 1997 – 2003 (BARRAS)............................................130 ILUSTRAÇÃO 15 MERCADO FARMACÊUTICO 1997 – 2003 (LINHAS) .............................................130 ILUSTRAÇÃO 16 CONTROLE DE PREÇOS DE MEDICAMENTOS - REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS......................................................................................................................................132 ILUSTRAÇÃO 17 POLÍTICAS DE CONTENÇÃO DE GASTOS EM MEDICAMENTOS REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS.......................................................................................................133 ILUSTRAÇÃO 18 - INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO BRASIL VENDAS SEM IMPOSTOS EM US$ 2000-2003...............................................................................................................................................149 ILUSTRAÇÃO 19 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA - ARRECADAÇÃO 2000 - 2003 ...........................149 ILUSTRAÇÃO 20 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA - POSTOS DE TRABALHO 2000 - 2003............150 ILUSTRAÇÃO 21 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA – INVESTIMENTOS E EXPECTATIVA DE INVESTIMENTOS 2000 - 2003.................................................................................................................150 ILUSTRAÇÃO 22 INDÚSTRIA FARMACÊUTICA - EXPORTAÇÕES E EXPECTATIVA DE EXPORTAÇÕES 2000 - 2003 .....................................................................................................................151 ILUSTRAÇÃO 23 PESQUISA AMCHAM (ANVISA) 2005 PERGUNTA 08 ..........................................158 ILUSTRAÇÃO 24 PLANOS DE SAÚDE POR MODALI DADE DE OPERADORA BRASIL DEZEMBRO 2005 .........................................................................................................................................163 ILUSTRAÇÃO 25 - CONCENTRAÇÃOS DOS PLANOS DE SAÚDE NO BRASIL 2003 - 2005.......165 ILUSTRAÇÃO 26 CURVA ABC DA DISTRIBUIÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS DE PLANOS DE SAÚDE ENTRE AS OPERADORAS........................................................................................................166 ILUSTRAÇÃO 27 PLANOS DE SAÚDE POR NÚMERO DE BENEFICIÁRIOS BRASIL 2005 .......167 ILUSTRAÇÃO 28 BENEFICIÁRIOS DE PLANOS DE SAÚDE, POR TIPO DE CONTRATAÇÃO DO PLANO.............................................................................................................................................................178 ILUSTRAÇÃO 29 BENEFICÍARIOS DE PLANOS DE SAÚDE POR TIPO DE CONTRATAÇÃO 2001 - 2005 ......................................................................................................................................................179 7 SUMÁRIO 1 – EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA E O DIREITO À SAÚDE ..... 12 2 – EVOLUÇÃO DA REGULAÇÃO DA ECONOMIA PELO ESTADO ................... 18 2.1. Regulação da economia na Constituição do Brasil de 1988 ................................ 24 3 – A SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ......................................... 34 3.1. O poder de polícia em relação aos produtos de interesse da saúde ..................... 39 4 – REGULAMENTAÇÃO DA ECONOMIA E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PRIVADA EM SAÚDE .......................................................................... 43 4.1. Análise da validade do poder regulamentar econômico perante a Constituição Federal de 1988........................................................................................................... 46 4.1.1. Serviços públicos .......................................................................................... 51 4.1.2. Produtos e serviços de saúde fornecidos pelos particulares fazem parte do serviço público? ...................................................................................................... 53 5 – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS NA REGULAMENTAÇÃO ECONÔMICA DAS AÇÕES DE SAÚDE .................................................................... 57 5.1.1. Concentração em mercado relevante ............................................................ 84 5.1.2. Barreiras à entrada de novos concorrentes ................................................... 89 5.1.3. Assimetria das informações ....................................................................... 90 5.1.4. Baixa elasticidade da procura .................................................................... 92 5.2. O mercado de medicamentos ............................................................................... 99 5.2.1. Barreiras sanitárias...................................................................................... 103 5.2.2. Patentes de medicamentos ....................................................................... 107 5.2.3. A assimetria das informações quanto aos medicamentos ..................... 115 5.2.4. Problemas de agência ............................................................................... 120 6. CONTROLE DE PREÇOS DE MEDICAMENTOS .......................................... 125 6.1. Legislação brasileira recente de controle de preços de medicamentos.............. 135 6.2. A atual regulamentação de preços de medicamentos pela Lei 10.742/2003 141 7 – PLANOS DE SAÚDE ........................................................................................... 160 7.1. O mercado brasileiro de planos de saúde .......................................................... 163 7.2. A regulamentação dos planos de saúde no Brasil......................................... 169 7.3. Análise de constitucionalidade da regulamentação dos preços dos de planos de saúde no Brasil ................................................................................................... 175 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 182 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 185 8 INTRODUÇÃO Atualmente vivemos em um Estado Democrático de Direito, que permite a liberdade da iniciativa privada, reservando ao Estado a titularidade da prestação daqueles serviços considerados fundamentais para a sociedade, inobstante possam ser executados pela iniciativa privada sob concessão ou permissão de prestação de serviço público. Nas situações em que o Estado, por falta de recursos financeiros, humanos, tecnológicos, gerenciais ou quaisquer outros, houver por bem contratar com a iniciativa privada a sua prestação como maneira de melhor atender ao interesse público e se desincumbir de sua obrigação de prestação do serviço, caber- lhe-á determinar a forma dessa prestação e de sua fiscalização. Para a exploração dessas atividades, a iniciativa privada deverá se curvar aos termos da concessão ou da permissão, aceitando a ingerência estatal em suas atividades nos limites dessa relação jurídica, ou então optar por não explorar a atividade e investir seus recursos alhures. Referido poder-dever advindo dessa relação jurídica se justifica pela própria terceirização desses serviços, que originalmente são de responsabilidade do Estado, pois se é o Estado que responde politicamente perante a sociedade pelo seu fornecimento, deverá ter maneiras de garantir que seja prestado a contento e com preços que permitam alcançar os objetivos dessa mesma sociedade. As demais atividades econômicas, por não terem tamanha relevâ ncia social, seriam livres para a iniciativa privada, desde que respeitada a legislação em vigor, o poder de polícia estatal, o direito do consumidor e desde que se abstendo da prática de atos anticoncorrenciais. Contudo, temos em nossa ordem constituciona l atividades que, embora não estejam reservadas ao monopólio do Estado, não são exclusivas da iniciativa privada e em cuja exploração a iniciativa privada pode sofrer intervenção estatal. Tais atividades configuram um meio-termo entre os serviços públicos próprios e o vasto terreno franqueado à liberdade da iniciativa privada, pois têm grande relevância social. Mas, por razões financeiras e históricas, tais serviços são prestados concomitantemente pelo Estado e pela iniciativa privada: são as atividades de educação e saúde. 9 O foco de nosso trabalho são as atividades de saúde e especialmente a intervenção estatal no aspecto que talvez seja o mais sensível para a iniciativa privada, que é o preço. Quando tratamos de tema que interfere no acesso das pessoas à saúde, é impossível evitar a carga emocional e política envolvida tendo em conta a essencialidade desse bem social, o que só é agravado por um quadro de indutores de tensão social cujos pontos são: o anseio de todos a todos os tratamentos de saúde existentes, o anseio de que estes tratamentos sejam o melhor que a tecnologia pode oferecer, a geração de novos custos em saúde a cada novo acesso oferecido 1 , e finalmente a inexorável limitação dos recursos disponíveis. Entretanto, procuramos uma análise jurídica do tema conforme a Constituição Federal de 1988, utilizando dispositivos que se relacionam fortemente com a ciência da Economia, sem a qual não podem ser analisados. Os dispositivos sob análise trazem determinação de ampliação do acesso da população aos serviços de saúde. Objetivo que por determinação constitucional deve ser buscado pelo Estado Brasileiro inclusive pelo Poder Legislativo ao criar as normas infraconstitucionais. Analisar a questão sob este ângulo exige que o operador do direito e especialmente nossos tribunais avaliem a validade das normas infraconstitucionais sob a perspectiva dos efeitos que causarão no futuro, seja em relação a sua eficácia ou ineficácia ou até sua contrariedade ao alcance do objetivo trazido pela Constituição Federal em atenção aos anseios da população brasileira. Esta necessidade de análise prospectiva, ao nosso ver, faz com que o uso da ciência econômica seja adequado para a análise da validade das normas infraconstitucionais voltadas ao acesso da população a serviços de saúde, passando a ser portanto, um instrumental adicional de grande importância aos operadores do direito e tribunais para que se evite tanto quanto possível que sejam avaliações subjetivas os instrumentais de validação ou não dos efeitos destas normas jurídicas infraconstitucionais perante a Constituição Brasileira. 1 Esta situação é muito fácil de se notar ao verificarmos, por exemplo, que a cada avanço da medicina aumenta a expectativa de vida da população, que, por viver mais e com mais idade, necessita de mais atenção à saúde, ou que a cada avanço no diagnóstico se descobrem novas doenças a serem tratadas etc. 10 Sem esta análise criteriosa e afastada do calor das emoções e das posições políticas ou históricas cairíamos na insegurança jurídica e na submissão dos institutos jurídicos aos ventos das decisões subjetivas. Acreditamos que quando a Constituição Federal traz em seus dispositivos conceitos indeterminados pretende dar aos tribunais a flexibilidade necessária para analisar a validade das normas infraconstitucionais à luz da realidade temporal e espacial da sociedade vigente á época em que a análise será feita, como por exemplo, sob a ótica da livre iniciativa, função social da propriedade, buscando dar eficácia somente as normas infraconstitucionais que estejam em consonância com esta realidade e com os anseios buscados inicialmente pelo Poder Constituinte. Desta forma, os tribunais, dentre os quais notadamente o Supremo Tribunal Federal se torna m guardiões dos valores sociais cristalizados no texto constitucional, adaptando-os através do tempo, dando assim longevidade aos textos constitucionais. Da mesma forma, quando a Constituição Federal de 1988 trouxe em seus dispositivos o acesso universal da população aos serviços de saúde, impôs uma verdadeira missão que deve ser perseguida pelo Estado Brasileiro, em especial por nossos tribunais. Notadamente o Supremo Tribunal Federal, a nosso ver, passa a ser o guardião desta missão devendo fulminar todas as normas infraconstitucionais, pós promulgação da Constituição que pela situação política se desviem da missão real proposta inicialmente pelo Poder Constituinte. Contudo, cabe o questionamento de como os tribunais poderão julgar inválidas as normas infraconstitucionais contrárias ou inócuas a missão constitucional de dar a população amplo acesso aos serviços de saúde? E como evitar o quanto possível o subjetivismo das decisões face à situação política e econômica vivida pelo País no momento de sua prolação? Parece-nos que a resposta para tais perguntas será encontrada com o uso pelo operador do direito e notadamente pelos tribunais da ciência econômica como ferramental auxiliador na busca por normas infraconstitucionais que propiciem os efeitos práticos necessários para o alcance do amplo acesso da população aos serviços de saúde. É por esta razão que este trabalho está recheado de indagações econômicas acerca dos efeitos futuros de normas infraconstitucionais na busca da interpretação harmônica e sistemática de normas infraconstitucionais e mais do que isso na busca real do amplo acesso da população aos serviços de saúde. 11 1 – EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA E O DIREITO À SAÚDE Observando as Constituições brasileiras, desde a Constituição Imperial de 1824 até a atual Constituição Cidadã de 1988, é possível notar uma mudança de foco condizente com as mudanças ocorridas na sociedade brasileira desde então. O conteúdo da Constituição Federal de 1824 é quase que exclusivamente voltado para a estrutura do Estado, seus poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador ou Imperial, para o processo normativo e para a forma de ocupação dos cargos nesses poderes. Temos a garantia de alguns direitos básicos do cidadão com um enfoque de limitação ao poder público e, no que tange à saúde, a menção de garantia dos “socorros públicos” (art. 179, inciso XXXI), para todos os cidadãos brasileiros. A Constituição do Império de 1824 garantia o direito de propriedade, o privilégio de invenção, abolia as corporações de ofício e garantia a liberdade de trabalho, cultura, indústria e comércio, desde que não se opusessem aos costumes, à segurança e à saúde dos cidadãos. Na Constituição de 1891 temos a mesma configuração, com uma ampliação sensível desses direitos individuais de proteção contra o poder público, não tanto em quantidade mas em relação a seu conteúdo. Há clara opção em favor do indivíduo : é uma Constituição Liberal. Havia a previsão da liberdade de associação e do livre exercício de profissão, embora a doutrina vislumbrasse a possibilidade de intervenção do Estado em prol do bem comum, o que efetivamente ocorreu com as crises do café. Importante emenda ao texto original foi realizada em 1926 para permitir a legislação sobre comércio interior e exterior. Entretanto, não temos mais a garantia individual aos socorros públicos; temos apenas a singela menção da garantia a “liberdade, à segurança individual e a propriedade” no caput do artigo 72, que trata das garantias dos indivíduos residentes no Brasil. Em 1934, temos uma nova Constituição Federal, que em comparação com a anterior denota o aumento da complexidade e abrangência das questões relacionadas à aplicação das normas jurídicas, o surgimento do foco em gastos públicos, no funciona lismo público e seu controle. 12 Ocorre a ampliação dos direitos individuais 2 e políticos, e surge o capítulo voltado para a Ordem Econômica e Social, entre outros, sendo criadas para o Estado brasileiro uma série de obrigações sociais. O que diferencia esses novos direitos que o cidadão adquire com a Constituição de 1934 é que não se trata mais apenas de limitações às agressões que o Estado poderia lhe impingir, mas sim de obrigações ativas para o Estado de prover o Bem-estar Social. São normas programáticas decorrentes do desejo de solução de problemas sociais pelo Poder Constituinte Originário, que, desde então, estarão presentes em no ssas Constituições, determinando a prática de políticas públicas pelo Poder Executivo e definindo o conteúdo das leis, vinculando, conseqüentemente, as decisões judiciais ao sentido social ali colocado. Sem dúvida a intenção foi das mais louváveis e, certamente, fruto da situação social da época; porém, desde então, se passou a acreditar que a solução desses graves problemas será alcançada de maneira normativa. O Estado brasileiro passa, então, a penar com a falta de recursos para atingir esses objetivos, gerando as tensões sociais e distorções orçamentárias nas quais vivemos até os dias atuais. No que tange à saúde, a Constituição de 1934 determina em seu artigo 10, inciso II, que compete, concorrentemente, à União e aos Estados “cuidar da saúde e assistênc ias públicas”, especificando no Capítulo relativo à Ordem Econômica e Social, no artigo 121, § 1.º, inciso h, que é garantida a assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante. Atendendo aos profissionais que trabalham mas não são funcionários, o artigo 123 da Constituição de 1934 equipara o profissional liberal ao trabalhador para a obtenção das garantias e benefícios da legislação social, incluindo, portanto, a assistência à saúde. A atenção aos desvalidos, o amparo às crianças e às gestantes, a atenção às doenças mentais e as medidas de higiene contra a propagação de doenças transmissíveis são atribuídas a União, aos Estados e aos Municípios (art. 138), sendo que, para o amparo à maternidade e à infância, estes deverão destinar pelo menos 1% (um por cento) de suas receitas tributárias (art. 141). 2 Diminui a abrangência do Habeas Corpus para a que temos hoje, e institui o Mandado de Segurança contra abuso de autoridade e ato ilegal (art igo 113, item 33), veda a prisão perpétua, o banimento, o confisco (artigo 113, item 29), a prisão por dívidas, multas, ou custas (artigo 113, item 30), entre outras ampliações dos direitos individuais. 13 A organização de um Serviço Nacional de combate às endemias fica sob a responsabilidade da União, que também deverá custeá- lo caso os Estados não consigam fazê- lo (art. 140). É permitida, ainda, mediante justa indenização, a monopolização pelo Estado de atividades econômicas por motivos de interesse público, conforme autorização por Lei especial (art. 116). A Constituição de 1937 começa, em seu artigo 1.º, enunciando que o poder é exercido em nome do povo e que deve ser exercido no interesse de sua honra, independência e bem-estar, o que certamente não seria possível sem saúde e outros tantos direitos sociais, embora se veja a clara diminuição da proteção dos direitos individuais contra o poder estatal em contrapartida a uma forte preocupação com o espírito e a segurança nacional ou com o status quo vigente à sua decretação. É uma Constituição centralizadora, reflexo dos fatos sociais em ebulição a seu tempo. A questão social da saúde está presente nessa Constituição, competindo, privativamente, à União Federal legislar sobre as normas fundamentais de defesa e proteção da saúde, especialmente a saúde da criança (art. 16, inciso XXVII), com possibilidade de delegação para os Estados em caso de forte interesse local, mediante aprovação da União de leis que forem criadas pelas Assembléias estaduais (art. 17). O artigo 137 da Constituição de 1937 determina, no mesmo sentido da anterior, que a Legislação do Trabalho deve, entre outros benefícios, garantir a assistência médica ao trabalhador e à gestante (item l do artigo 137). Além disso, o artigo 135 da referida Constituição garante ao Estado o poder geral de intervenção a bem do “interesse da nação”, conceito altamente subjetivo que podia ser exercido, também, em relação às empresas do setor de saúde, já que podia ser exercido em face de quaisquer empresas e pelo forte impacto social de todas as questões relacionadas à saúde. O retorno da normalidade e dos direitos individuais de proteção contra o Estado se dá, novamente, com a Constituição de 1946, embora não com a amplitude que temos, atualmente, na Constituição Federal de 1988. Pela primeira vez, no caput do seu artigo 141, a Constituição de 1946 garante ao indivíduo o direito à vida, direito óbvio e elementar para o qual é criado o Estado: para a proteção da vida de seu povo. Por incrível que pareça, os direitos da população brasileira ainda não tinham o posicionamento privilegiado que lhes damos nos dias de hoje, pois vinham ao 14 final da Carta Constitucional como se o Estado fosse um fim em si mesmo e não tivesse por finalidade o atendimento à população, sendo esta apenas uma de suas atribuições não a fundamental. Pois bem, permanece a competência da União para legislar sobre proteção da saúde (art. 5.º, inciso XV, alínea b), com a competência estadual para criação de legislação supletiva ou complementar (art. 6.º). É criada imunidade tributária para, entre outros, os artigos que a lei classificar como indispensáveis ao tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica (art. 15, § 1.º), medida que deveríamos ter mantido e ampliado em nossa atual Constituição, dada a essencialidade desses produtos, e que se procura atualmente reintroduzir na Constituição de 1988 por meio da PEC 516/2002, para os medicamentos incluídos em programas governamentais de assistência farmacêutica. Todavia, a assistência sanitária e médico-hospitalar preventiva é constitucionalmente garantida pela legislação trabalhista e previdenciária apenas ao trabalhador e à gestante (art. 157, inciso XIV). A intervenção geral do Estado na iniciativa privada vem da possibilidade, mediante Lei Especial, de intervenção no domínio econômico e da monopolização da indústria ou atividade (art. 146). Contudo, para tanto, o Estado haveria de ter recursos para a prestação do serviço ou produção, o que, em saúde, no Brasil, não é crível, tendo em conta o montante de investimentos necessários e a descapitalização de nosso Estado. Porém, na Constituição Federal de 1946 já há a previsão de combate ao abuso de poder econômico da iniciativa privada visando ao aumento arbitrário dos lucros, que será feito nos termos da legislação infraconstitucional (art. 148). Por sua vez, a Constituição de 1967, expressamente, garante o direito à vida aos residentes no País, o que em uma interpretação ampliativa, cabível aos textos constitucionais, não deixa de ser uma garantia à saúde, pelo menos à saúde de emergência, posto que, sem garantir o direito à saúde, o direito à vida ficaria restrito, apenas, ao direito de não ser assassinado, ou seja, apenas a um direito contra agressão, e não, verdadeiramente, a um direito à manutenção da vida. É mantida a competência legislativa da União em relação à saúde (artigo 8.º, inciso XVII, alínea c), com competência apenas supletiva para os Estados (artigo 8.º, § 2.º). 15 No tocante à atividade executiva, a Constituição de 1967 determina que cabe à União “estabelecer planos nacionais de educação e saúde” (artigo 8.º, inciso XIV), para os quais pode celebrar convênios com os Estados (artigo 8.º, § 1.º). Não é mantida a imunidade tributária para os produtos de tratamento médico dos necessitados, porém é garantia a assistência sanitária, hospitalar e médicopreventiva não só aos trabalhadores mas também às suas famílias, não mais pela Legislação Trabalhista mas, diretamente, pela Constituição Federal (artigo 158, inciso XV), portanto de maneira auto-aplicável e ampla. Todavia, não há na Constituição de 1967 menção de garantia constitucional de proteção à gestante não trabalhadora ou sem trabalhador em sua família, sendo certo que a definição dos limites do que é a família é dada pela legislação infraconstitucional, por falta de definição no próprio texto constitucional, embora este deixe claro que legitima apenas a família constituída pelo casamento (artigo 167). A Constituição de 1967 coloca, ainda, como um dos princípios da ordem econômica a liberdade de iniciativa do inciso I do artigo 157, mas, no mesmo artigo, impõe a função social da propriedade (inciso III) e a repressão ao aumento arbitrário dos lucros e às práticas anticoncorrenciais (inciso VI). Além dis so, é garantida ao Estado a intervenção no domínio econômico e a monopolização de atividade econômica, por determinação legal, tanto por motivos de segurança nacional, quanto para orga nizar setor que não possa se desenvolver com eficiência no regime de competição e de livre- iniciativa (artigo 157, § 8.º). Em 1969, a Constituição foi emendada para acrescentar que a finalidade da intervenção do Estado na economia visaria sempre à busca da expansão das oportunidades de emprego produtivo. Importante notar que tanto a redação original da Constituição de 1967 quanto a emendada em 1969 admitiam a intervenção e o monopólio do Estado para atendimento do interesse público, caracterizado pela segurança nacional ou, simplesmente, para organizar setores que não pudessem se desenvolver no regime de competição e de liberdade de iniciativa. Apesar de Oscar Dias Corrêa, conforme citado por André Ramos Tavares3 , considerar essa Constituição condizente com o liberalismo, ou neoliberalismo econômico, nos parece que a quantidade de conceitos indeterminados que 3 Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2002. p. 126. 16 possibilitavam a intervenção do Estado na economia dava ampla margem ao intervencionismo estatal. Existiam diversos fundamentos para sustentar que uma atividade não poderia se desenvolver em regime de livre- iniciativa, o que encerrou um alto grau de discricionariedade na decisão de intervenção estatal na economia, o que inclusive pode ser verificado na atuação estatal da época. Dessa forma, até o final da vigência da Constituição de 1967, e Emenda de 1969, tínhamos agentes privados explorando a atividade econômica de saúde, posto que até então não havia qualquer impedimento a que o fizessem, e tínhamos a obrigatoriedade de assistência à saúde, do trabalhador e de sua família, pelo Estado, como resultado da evolução desse direito ao longo das Constituições federais pelas quais o País passou. Surge, então, a Constituição Cidadã de 1988, em que os direitos individuais, coletivos e sociais são alçados a principal motivação do Estado, que passa a existir para garantir o seu atendimento. São fartos os dispositivos constitucionais que criam obrigações sociais para o Estado, de modo que não basta o respeito das normas infraconstitucionais ao conteúdo da Constituição Federal para que se considere atendida a Carta Magna; o Estado, notadamente o Poder Executivo, deve empreender políticas públicas tendentes ao alcance dos objetivos sociais gravados na Constituição Federal, quando de sua criação, em atendimento aos anseios da sociedade. Esclareceremos em detalhes no capítulo 3 deste trabalho o que se deve buscar no que tange ao acesso da população a saúde . Paralelamente a esse aumento das missões sociais do Estado brasileiro, vemos, em comparação com a Constituição Federal de 1967 e Emenda de 1969, uma maior estruturação da intervenção do Estado na economia, prestando serviços públicos e garantindo a livre concorrência material na atividade privada, nos termos dos artigos 170 a 181 da Constituição Federal de 1988. 17 2 – EVOLUÇÃO DA REGULAÇÃO DA ECONOMIA PELO ESTADO A evolução constitucional da regulação da economia pelo Estado é reflexo da evolução do próprio papel do Estado em relação ao ambiente econômico e de como este administra as tensões entre a busca do lucro pela iniciativa privada e a busca de melhores condições de vida pela sociedade. Portanto, se faz necessária uma pequena regressão para contextualizarmos a evolução constitucional brasileira relatada acima. A regulação da economia pelo Estado já era percebida em 1700 a.C. no Código de Hamurabi4 , tendo ocorrido em maior ou menor grau em diversos lugares e momentos históricos, ainda que de maneira casuística e desorganizada, sem uma reflexão teórica mais profunda sobre o poder econômico e seu controle. No Império Ro mano, por exemplo, o preço dos produtos era livremente acordado entre as partes, em respeito à liberdade de contratar, porém no final do Império surge por influência da Igreja a noção de preço justo e a idéia do enriquecimento “injusto”, atribuindo, portanto, juízo de valor sobre a atividade econômica. Salientamos, ainda, o estabelecimento de preços para diversos produtos no Império Romano por Diocleciano. Por sua vez, no período medieval verificamos forte interferência na atividade privada por força dos grêmios medievais, ao determinarem que seus membros deveriam cobrar preços razoáveis por seus serviços, sem o abuso do monopólio da atividade de que gozavam. Durante o mercantilismo, as cartas reais são uma clara demonstração da interferência do Estado na economia, na medida em que passavam aos particulares o direito de explorar atividades tidas como estatais, sob regras e contrapartidas determinadas pelo Estado 5 . Em uma tentativa de sistematizar essa evolução, Fábio Nusdeo 6 aponta que historicamente a Economia passou por três sistemas ideais – o da tradição, o da 4 5 6 “... o Código de Hamurabi, em 1.700 a.C., congelou dois preços básicos na Assíria, o do óleo e o do sal, e estabeleceu que os infratores seriam queimados, justamente, em óleo fervente. Porém houve um impasse na execução da norma: com o congelamento, o produto sumiu do mercado e acabou faltando óleo para exterminar os sabotadores do plano econômico da Babilônia” (SILVA, Américo L. M. da. A ordem constitucional econômica. Rio de Janeiro : Lu men Juris, 1996. p. 116). SOUZA, Washington P. A. de. Primeiras linhas de direito econômico. 5. ed. São Paulo: LTr, 2003. p. 332-335. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 97. 18 autoridade e o da autonomia –, advertindo que nenhum desses modelos foi puro, pois cada qual teve predominância maior ou menor em determinada época e local. Até a Idade Média a economia seguiu o modelo da tradição, ou seja, não havia grandes questionamentos ou teorizações a respeito da propriedade dos meios de produção ou sobre o exercício dessa propriedade – as pessoas simplesmente faziam as coisas como sempre haviam sido feitas, sendo que o controle da economia era casuístico, fortemente moral e aleatório. Após esse período, tornou-se dominante o sistema de autoridade segundo o qual toda a condução da economia é determinada pelo fator político, ou seja, aquele que detinha o poder sobre a coletividade tinha também o poder de dirigir a economia, tanto do ponto de vista da alocação de recursos quanto da distribuição de riquezas. Nesse momento, as ciências sociais e políticas passaram a tratar de temas que mais tarde conformariam a ciência econômica. Este foco de estudos decorreu em grande parte das necessidades do planejamento econômico, que era implementado pelo detentor de poder político. Finalmente, chega-se ao sistema de autonomia, baseado nos economistas clássicos dos séculos XVIII e XIX, que identificaram uma operação da economia baseada no hedonismo, na busca da satisfação dos próprios interesses, em que todos os homens procuram satisfazer suas necessidades, reais ou psicológicas, buscando maximizar os efeitos de suas próprias atividades. Em 1776, Adam Smith sistematiza e consagra tais pensamentos em sua teoria da chamada “mão invisível do mercado”, que automática e imperceptivelmente o auto-regularia. Segundo essa teoria, por meio do sistema de determinação de preços, os compradores e os vendedores emitiriam mensagens sobre a oferta e a procura dos bens e serviços e realizariam trocas com proporções baseadas nesses dados, que automaticamente equilibrariam o consumo desses bens e serviços e harmonizariam os interesses dos envolvidos7 . 7 “Para o pensamento liberal, o interesse próprio seria, portanto, a base principal dos mercados autoregulados. Se os consumidores são livres para aplicar as suas rendas como o desejarem e se os homens de negócios são livres para competir sem restrições e conquistar a preferência dos consumidores, então as atividades econômicas escoarão naturalmente” (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 37). 19 A busca da satisfação desses resultados em uma sociedade que admite a propriedade privada dá-se em um ambiente que viabiliza a realização de trocas, que são as comunicações entre os indivíduos que interagem num ambiente chamado mercado. O mercado nada mais é do que uma abstração, que é sustentada no mundo concreto por todas as instituições que protegem a propriedade privada e a troca de mercadorias e serviços. O Direito, como não poderia deixar de ser, passou então a se ocupar fortemente da garantia das instituições do mercado para permitir a operação da “mão invisível” e garantir a não interferência de fatores externos no mercado, que poderiam criar barreiras para tal equilíbrio automático. É interessante notar que o Direito é posto em marcha contrária à até então adotada pelas economias autoritárias, nas quais a política e o Direito (ainda que muitas vezes não individualizados) garantiam justamente o poder de intervenção. Conforme aponta Fábio Konder Comparato, após um período de crença cega nos benefícios da autonomia privada, a Primeira Guerra Mundial obrigou os Estados a interferirem na economia para que os agentes econômicos se alinhassem de forma eficiente no esforço de guerra. Para nós, naquele momento histórico, o esforço de guerra era o bem comum, pois a todos os cidadãos das nações em conflito interessava a ampliação ou manutenção da soberania nacional. Em 1929 os Estados Unidos da América sofreram com a grande depressão, tornando perceptível que a economia não se regula automaticamente para a obtenção do bem comum, por uma série de falhas que desnaturam a efetiva concorrência entre os participantes do mercado, pressuposto essencial da eficácia da “mão invisível” imaginada por Adam Smith. Nesse momento, fez-se necessária a intervenção do Estado na economia, já que, como demonstrou Jonh Maynard Keynes, o mercado não só não se auto-regula como pode incidir em um equilíbrio de subemprego, necessitando da interferência de um fator externo para dar movimento a essa situação inercial em direção a um equilíbrio de pleno emp rego. Efetivamente, o único que tem condições econômicas para realizar essa intervenção é o Estado, além do que apenas ele é suficientemente interessado no bem comum para despender recursos nesse sentido. 20 Dessa forma, o Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt implantou à época, nos Estados Unidos da América, uma forte política de intervenção e fomento da economia pelo Estado, batizada de New Deal, mesmo sofrendo grandes resistências de um sistema econômico e de um pensamento jurídico moldado por 150 anos de suporte ao liberalismo econômico e também de interesses econômicos que estavam obtendo vantagens oportunistas sobre a situação daquele País e do mundo. Ainda temos que considerar que toda uma massa de excluídos gerados pela Revolução Industrial passa a se revoltar quanto à sua situação subumana, especialmente inspirada nas idéias de Karl Marx, conquistando gradativamente seus direitos, nascendo a experiência dos Estados Socialistas, no nosso entender com retorno à economia de autoridade. A população passa a exigir que o Estado se torne responsável por uma série de atividades, o que este faz em um primeiro momento, assumindo para si cada vez mais a obrigação de prestação de utilidades sociais 8 , evolução notada em nossas Constituições Federais, conforme já apontamos. Contudo, após esse período de absorção de obrigações, o Estado passou a sofrer com o inchaço da máquina administrativa e com a falta de orçamento para investir em tais serviços, como está claro hoje em relação ao Estado brasileiro. O Estado Providência gerou benefícios e vantagens que redundaram na multiplicação da população, o que não foi acompanhado da modificação dos mecanismos de seu financiamento. [...] A multiplicação da população e a redução da eficiência das atividades desempenhadas diretamente pelo Estado contribuíram decisivamente para o fenômeno denominado “crise fiscal”. A expressão passou a ser utilizada para indicar a situação de insolvência governamental, inviabilizadora do cumprimento das obrigações assumidas e do desenvolvimento de projetos ambiciosos 9 . 8 “A diferença básica entre a concepção clássica do liberalismo e do Estado de Bem-Estar é que, enquanto naquela se trata tão-somente de colocar barreiras ao Estado, esquecendo-se de fixar-lhe também as obrigações positivas, aqui sem deixar de manter barreiras, se lhe agregam finalidade e tarefas às quais antes não se sentia obrigado (GORDILLO, , p. 74). A idéia de Estado de Bem-Estar ou Estado Social implica alcançar determinados objetivos de bem comum, de garantia de Direitos sociais, que seriam as manifestações concretas de seus postulados, como o amparo à saúde e a previdência social; por outro lado, o Estado liberal mantém premissas de garantia dos Direitos individuais, como propriedade e liberdade, e de atuação negativa do aparelho estatal em respeito a esses Direitos. Assim, num momento de intensa discussão acerca do papel do Estado diante da tão falada globalização econômica, a efetivação e a universalização dos Direitos sociais dependem da atuação decisiva do Poder Público” (ROCHA, Julio César de Sá. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: LTr, 1999, p. 33 e 34. 9 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 19. 21 Apesar de pressionado pela falta de verbas, o Estado, agora social, não se desvencilhou dos anseios sociais que lhe impõem a responsabilidade pela prestação dessas utilidades, de modo que optou por devolvê- los à iniciativa privada, mantendo o ônus de zelar pela sua continuidade e universalização, pois “o atual estágio evolutivo, por muitos considerado “neoliberal”, não implica – a despeito da retomada dos aspectos fundamentais do liberalismo econômico – na rejeição a grande parte dos avanços sociais, introduzidos especialmente pelo pensamento socialista”10 . Portanto, embora prestadas pelos particulares, essas utilidades devem permanecer sob o controle e a fiscalização do Estado, que as faz por meio da regulamentação da prestação de serviços públicos pelos particulares em regime de concessão. Tivemos o exaurimento do sistema socialista com a queda da União Soviética, mas por outro lado temos também uma forte tendência de os Estados tidos como liberais buscarem o bem-estar social, tanto pela assunção de mais responsabilidades, como obrigações positivas perante os cidadãos11 , quanto pela sua interferência na performance da economia nacional. Nesse aspecto, é importante o papel exercido pelo Direito Antitruste no combate ao abus o de poder de mercado, como garantia estrutural do próprio mercado, assegurando a livre concorrência real entre os agentes econômicos. O Direito Antitruste tem por objeto o controle de concentrações e de práticas anticoncorrenciais em geral, como um mecanismo de proteção do mercado do ponto de vista dos mercados relevantes atingidos por tais ocorrências. É aplicável a todos os mercados indistintamente, vale dizer, todos os agentes econômicos estão sujeitos à aplicação dessas normas, independentemente do mercado em que atuem. O 10 11 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 45. “Ao longo do século XX, a ideologia do Estado de Bem-Estar significou a assunção pelo Estado de funções de modelação da vida social. O Estado transformou-se em prestador de serviços e em empresário. Invadiu searas antes reputadas próprias da iniciativa privada, desbravou novos setores comerciais e industriais, remodelou o mercado e comandou a renovação das estruturas sociais e econômicas. [...] O resultado foi extraordinariamente positivo; espantoso, poderia até dizer-se. As condições de vida elevaram-se a níveis nunca anteriormente experimentados. A expectativa de vida média da população elevou-se radicalmente. Nunca anteriormente os seres humanos experimentaram tamanho conforto e tão grande quantidade de benefícios. Mais do que isso, nunca na História se ofertaram benefícios em termos tão democráticos: saneamento, educação, assistência, previdência foram assegurados para todos os cidadãos, em condições de igualdade (ao menos, formal).” (JUSTEN Filho, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes, p. 17 e 18). 22 “objeto da política antitruste é o bem-estar econômico, que é reduzido pelo abuso do poder de mercado”12 . Nos últimos anos, vem sendo renovada a importância conferida à política antitruste. Na Europa, por força da Unificação Européia e a conseqüente necessidade de garantir um ambiente despido de entraves ao comércio, a política antitruste é vista como importante instrumento de reorganização do mercado em composição com a extinção de barreiras tarifárias e não-tarifárias. Por outro lado, revela-se naquele ambiente a preocupação de monitorar as alianças estratégicas promovidas entre empresas de países diferentes no interior da comunidade – motivadas pela pressão competitiva exercida pelos produtos japoneses – e a onda de fusões impulsionada pelo aumento da escala do mercado, agora com 344 milhões de consumidores. Nos EUA, após um período coincidente com as administrações republicanas, em que a política antitruste era tida como um dos principais responsáveis pela frágil performance competitiva dos produtos norte-americanos, observa-se uma preocupação mais intensa com comportamentos de mercado de grandes empresas e com o abuso de poder econômico. Mesmo durante o período em que a política antitruste esteve sujeita a pesadas críticas – de ordem empírica e teórica – houve aperfeiçoamentos importantes em sua aplicação, em virtude da rica interação com a academia. Considerações sobre custos de transação e concorrência potencial passaram a compor as análises da Federal Trade Commission e do Departamento de Justiça desde o final dos anos 1980. Japão e Coréia do Sul, respeitando as especificidades da organização de suas economias, têm reforçado o uso de suas legislações para intensificar a pressão competitiva sobre suas empresas e desestimular acordos defensivos entre elas. Desse modo, podemos afirmar que atualmente os regimes democráticos no mundo se encontram em um sistema misto, em que a liberdade dos agentes econômicos está condicionada à geração de bem-estar para a sociedade em que atuam13 , 12 SANTACRUZ, Ruy. Preço abusivo e cabeça de bacalhau. Revista Doutrina e Jurisprudência do IBRAC, local, v. 7; 13 “Em tese de concurso intitulada ‘Aspectos da racionalização econômica’, afirmava Oscar Dias Corrêa, já em 1949: “Não haveria exagero se falasse em socialização do capitalismo. Como estamos longe do predomínio férreo do capital!” “Da mesma maneira que o liberalismo político é, hoje em dia, doutrina intervencionista, em maior ou menor escala, o capitalismo é socialista, em maior ou menor escala.” Eis aqui o verdadeiro interesse na manutenção do estudo desses dois sistemas desenhados anteriormente. Na tese com que obteve a cátedra de Economia da Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil, em 23 e o Estado, diretamente ou por meio da iniciativa privada, deve prover bens sociais para a sua população. Isso vem ocorrendo também no Brasil, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, senão vejamos: 2.1. Regulação da economia na Constituição do Brasil de 1988 Atualmente, o artigo 5.º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988 garante o direito de propriedade, fundamental para a existência do próprio mercado, mas afirma que esta deve se ater a sua função social no inciso seguinte (art. 5.º, inciso XXIII), demonstrando o equilíbrio que deve ser mantido entre os interesses individuais e os coletivos, conforme pode ser observado na redação do inciso XXXII do referido artigo, ao estabelecer que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Com efeito, a própria Constituição Federal trata da Ordem Econômica e Financeira em seu título VII, que é aplicável a toda atividade econômica, indistintamente. Dentro desse título, o artigo 170 da Constituição Federal contém os primados da atividade econômica em geral, que são: (i) valorização do trabalho e da livre- iniciativa, (ii) justiça social, (iii) soberania nacional, (iv) propriedade privada, (v) função social da propriedade, (vi) livre concorrência, (vii) defesa do consumidor, (viii) defesa do meio ambiente, (ix) redução das desigualdades regionais e sociais, (x) busca do pleno emprego, (ix) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, (xii) livre exercício de atividade econômica, dependente de autorização apenas nos casos previstos em lei. Podemos perceber que o texto constitucional não confere uma liberdade total à iniciativa privada, vez que coloca também como pilares da atividade econômica itens sociais como : valorização do trabalho, justiça social, função social da propriedade, defesa do consumidor e do meio ambiente, redução de desigualdades e busca do pleno emprego. 1957, Oscar Dias Corrêa voltava a insistir na mesma idéia de que “o liberalismo se socializa enquanto o socialismo se capitaliza, ou se liberaliza”. É que o tentava exprimir, em parte, Heilbroner ao anotar: “Na verdade, se formos comparar a Iugoslávia ‘socialista’ com a Itália ‘capitalista’, descobrimos provavelmente muito mais semelhanças de estilo social, vida cultural e atmosfera geral do que se compararmos Iugoslávia ‘socialista’ com a China socialista” (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 45). 24 Dessa forma, parece- nos claro que a mistura de liberalismo e direitos sociais aponta para uma forma de exploração da atividade econômica que deve sempre resultar no benefício da coletividade, ainda que os agentes econômicos também colham os frutos de seu trabalho e da alocação de capital. A liberdade de iniciativa empresarial, portanto, porque inserida no contexto constitucional, há de ser exercitada não somente com vistas ao lucro, mas também como instrumento de realização da justiça social – da melhor distribuição de renda – com a devida valorização do trabalho humano, como forma de assegurar a todos uma existência digna. Assim, o lucro não se legitima por ser mera decorrência da propriedade dos meios de produção, mas como prêmio ou incentivo ao regular desenvolvimento da atividade empresária, segundo as finalidades sociais estabelecidas em lei14 . Note-se, portanto, que estamos diante de uma Constituição em que os direitos à livre-iniciativa, à propriedade privada, à livre concorrência e ao livre exercício de atividade econômica são liberais e visam à criação dos alicerces do mercado, e os direitos à justiça social, à função social da propriedade, à defesa do consumidor, á defesa do meio ambiente, à redução das desigualdades regionais, sociais e à busca do pleno emprego são direitos sociais 15 . Pela conformação de Estado presente em nossa Constituição Federal, podemos concluir que a livre- iniciativa não é um direito absoluto, devendo ser inserida no direito de livre concorrência, que é o método escolhido pela sociedade brasileira para a obtenção dos resultados de justiça social estampados em nossa Constituição 16 . 14 BRUNA, Sérgio V. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Revista dos Tribunais , 1997. p. 141. 15 “Quando a Constituição prevê expressamente o Direito a todos do livre exercício de qualquer atividade econômica, em alguns casos mediante autorização dos órgãos públicos, tal assertiva deve ser interpretada conjuntamente aos princípios que regem toda a atividade econômica, com ênfase à busca do bem-estar social. Assim, não basta o desenvolvimento de uma atividade econômica pela iniciativa privada que caminhe contrariamente aos objetivos constitucionais, tornando ilegítima a postura adotada. Na verdade, pode-se dizer que se trata de um Direito fundamental, enquanto exercido no interesse da realização da justiça social, da valorização do trabalho e do desenvolvimento nacional, como princípios primordiais consagrados constitucionalmente”. SANCHEZ, C. G., Aspectos da relação entre Estado e iniciativa privado: enfoque constitucional. 1999. 120f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, p. 26. 16 “não só a concorrência é um valor institucional. Institucional é, como visto, todo aquele elemento conformador, necessário para o funcionamento do sistema. Ora, fundamental para qualquer ordem econômica e para o seu equilíbrio que todos tenham acesso ao serviço. A ques tão da difusão dos serviços (normalmente denominada universalização) é um exemplo típico. Freqüentemente tratada como um objetivo de política econômica, ela é, na verdade, uma garantia sistêmica ou institucional. Inegável é, como visto no primeiro capítulo, que se trata de objetivos que não podem ser convenientemente protegidos por uma simples regulação concorrencial. Constitui-se, portanto, em uma garantia institucional autônoma. A garantia de difusão dos serviços deve ser aqui compreendida em sentido material, e não apenas formal. Isso significa que ela tem dois componentes fundamentais. Em primeiro lugar a garantia de 25 A livre concorrência tem aspectos de direito individual e também de direito difuso, pois é direito do agente econômico que lhe sejam propiciadas oportunidades de uma verdadeira competição com os demais agentes, e é direito de toda a sociedade que seja mantida operacionalidade da competição entre os agentes econômicos para a obtenção dos benefícios sociais dela advindos. Porém esta não é uma novidade de nossa atual Constituição Federal. No Brasil, a legislação antitruste teve início com a Lei 1.521/1951, que definiu crimes contra a economia popular. Contudo, referida legislação teve pouca aplicação em razão da demora na ultimação dos processos, bem como devido a seu rigor excessivo. Posteriormente, tivemos a Lei 4.137/1962, que criou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), mas sem prover os meios necessários para a efetividade de sua atuação. Desde o início da vigência dessas normas, foi objetivo das autoridades alcançar celeridade na conclusão dos processos administrativos, preocupação típica da perspectiva do economic policy maker que foi sendo reforçada pela experiência da primeira fase do CADE, em que ocorreu muitas vezes de a conclusão do processo administrativo se dar quando o fato econômico que lhe dera ensejo já havia se tornado irrelevante, até mesmo pelo desaparecimento da parte lesada. Com base nessa experiência, foi proposta a Medida Provisória 204, em 2 de agosto de 1990. Nas palavras de Sampaio Ferraz Convencido da inoperância dos procedimentos administrativos da Lei n. 4.137/62 (que criou o CADE e os procedimentos de repressão ao abuso do poder econômico), cujos processos tinham uma duração média de 24 meses para conflitos que exigiam, pela celeridade das relações econômicas, decisões rápidas e até cautelares, o Executivo visou fundamentalmente à criação de um dispositivo mais leve, de eficácia maior, que, comandado por um órgão do Ministério da Justiça, a Secretaria Nacional de Direito Econômico, permitisse da acesso aos consumidores. Essa deriva diretamente das garantias constitucionais da concorrência e da defesa do consumidor (art. 170, IV e V), que coerentemente interpretadas, significam a não-exclusão de qualquer consumidor. Entretanto o simples provimento formal dos serviços a todos sem que muitos tenham condições materiais não é também suficiente. Isso não significa dizer que a regulamentação possa ou deva substituir as políticas sociais. Significa que a regulação, como também o Direito antitruste, não pode e não deve ser instrumento de criação de desigualdades sociais e especialmente de exclusão. Novamente aqui essa é a maneira de compatibilizar materialmente os ditames constitucionais de livre concorrência e da justiça social. Particularmente, o controle das estruturas, cujo impacto sobre nível de emprego é inegável, tem que ter em conta esse imperativo (o art. 58, 1.º, da lei concorrencial dele dá conta expressamente). SALOMÃO. Filho, Calixto. Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 126 e 127. 26 parte do Poder Público uma interferência prévia e preventiva diante da ocorrência de anomalias de comportamento econômico, capazes de ferir os princípios constitucionais da ordem econômica17 . A Medida Provisória foi seguida de outras, com pequenas modificações de conteúdo – em função de serem as Medidas Provisórias válidas por um período predefinido de 30 dias e não passíveis de reedição – até a definitiva promulgação da lei, em janeiro de 1991. Os problemas decorrentes da demora do CADE em proferir decisão podem ser resumidos no voto do Conselheiro Leônidas R. Xausa 18 : 2) No mérito, igualmente continuo fiel ao entendimento do Plenário no Processo 128/92 contra Laboratório Hosbon S.A, também por mim relatado, e no Processo 164/91 da ilustre Conselheira Lúcia Helena, onde sustentamos a tese de que a distância excessiva entre a data dos fatos indigitados e o julgamento (aqui de quase seis anos) frustra o objeto da decisão. O rigor metodológico necessário ao exame dos eventuais aumentos excessivos de preços se esfuma após tanto tempo, especialmente se considerada a política governamental errática de controle, à época, e em conjuntura de metástase inflacionária. 3) De conseqüência, se estabelece um desequilíbrio jurídico entre a utilidade social da punição e o dano eventualmente causado pela conduta. 4) Pelo que, na tradição deste Colegiado, aplico subsidiariamente o art. 267, IV, do CPC, conhecendo do recurso para negá-lo, sem julgamento do mérito, mantendo o arquivamento. A Lei 8.158, de 8 de janeiro de 1991, que aparelhou a Secretaria Nacional de Direito Econômico (SDE), originou-se da necessidade de prover a administração pública e a sociedade de um instrumental adequado de regulação de comportamentos de mercado que evitasse – ou ao menos reduzisse – as fricções causadas pela mudança institucional de um ambiente estritamente regulado e controlado para um ambiente de liberalização das atividades econômicas. Por fim, foi com a promulgação da Lei 8.884/1994 que se deu efetividade aos ditames dos artigo s 170 e 173, § 4.º, da Constituição Federal de 1988, por meio da criação do CADE, autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça, ou seja, com personalidade jurídica e autonomia necessárias para o exercício da função e, especialmente, com mandato fixo para seus conselheiros. Assim, o CADE é responsável pelo controle da concentração de poder econômico que resulte da integração de duas ou mais empresas, antes independentes, 17 SAMPAIO FERRAZ JR., Tercio. Lei de defesa da concorrência: origem histórica e base constitucional. Revista dos Mestrandos em Direito Econômico da UFBA, n. 2, p. 71, 1992. 18 Proferido no Recurso de Ofício em Representação 275/92 (aumento abusivo de preço), que teve no pólo ativo o Conselho Regional de Farmácia do Rio de Janeiro e no passivo a Hoechst do Brasil Química e Farmacêutica S.A. 27 visando à compra de participação de mercado, e pela repressão ao abuso do poder econômico. A agência brasileira de política da concorrência aprecia os atos de concentração, definidos como fusão, incorporação ou qualquer forma de agrupamento societário. Para o conhecimento pelo CADE é necessário que cada uma das empresas ou grupo de empresas participantes possua no mínimo 20% de participação de mercado ou faturamento igual ou superior a 400 milhões de reais. Na apreciação do ato de concentração, o CADE procura responder, inicialmente, se a operação é potencialmente anticompetitiva, i.e., se limita ou de qualquer forma prejudica a livre concorrência. Na hipótese de dano potencial, procuram-se estabelecer eventuais eficiências oferecidas pela operação. Um balanço das eficiências e do dano potencial indica se a operação merece aprovação, com ou sem condições, ou se deve ser desfeita total ou parcialmente 19 . O CADE também faz um controle de condutas dos agentes econômicos em conjunto com a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), que exercem funções auxiliares na defesa da concorrência. A primeira - SDE é responsável por instaurar e conduzir processos administrativos que serão encaminhados para decisão pelo CADE, bem como por emitir pareceres nos casos de concentração de poder econômico; já a segunda - SEAE, além de emitir parecer nos casos de concentração de poder econômico e nos processos que investiguem infração à ordem econômica podem, também, exercer atividades investigativas tais como as exercidas pela SDE. Contudo, em todos os casos os pareceres não são vinculantes da decisão e devem seguir critérios técnicos. A Secretaria de Direito Econômico (SDE), ligada diretamente ao Ministério da Justiça, promoverá, para posterior encaminhamento ao CADE, averiguações preliminares, de ofício ou por requerimento escrito e fundamentado de qualquer interessado, função que no caso de produtos de interesse da saúde também é exercida pela Agê ncia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), como veremos adiante. Após a conclusão das averiguações preliminares, no prazo de 60 dias, o secretário da SDE determinará a instauração do processo administrativo ou seu arquivamento, quando os indícios de infração à ordem econômica não forem suficientes para a instauração de processo administrativo, tendo que recorrer de ofício ao CADE. 19 Concorrência e propriedade intelectual. In: FONSECA, Antonio, Curso de defesa da concorrência organizado sob a direção FGV/CADE e realizado no ano de 1997 nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, p. 12. 28 No caso de requisição para a instauração do processo administrativo, este deverá ser feito em prazo não superior a 8 dias, contados do encerramento das averiguações preliminares, ou, ainda, do conhecimento do fato ou da representação. No capítulo que trata das penas, o artigo 23 da Lei 8.884/1994 dispõe que: Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas: I – no caso de empresa, multa de 1% a 30% do valor do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando quantificável; II – no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração cometida por empresa, multa de 10% a 50% do valor daquela aplicável à empresa, de responsabilidade pessoal e exclusiva ao administrador; [...]. Nestes dois incisos conseguimos visualizar que, além de penalizar a empresa responsável pela infração à ordem econômica, seu responsável direta ou indiretamente também responde pela infração, independentemente de culpa. A lei, no entanto, não é extremista, podendo-se a qualquer momento do processo administrativo considerar legítimos os atos de concentração do mercado, desde que sejam necessários por motivo preponderante da economia nacional e do bem comum, e desde que não impliquem prejuízo ao consumidor ou usuário final. Em atenção aos artigos 170 e 173, § 4.º, da Constituição Federal de 1988, a Lei de Defesa da Concorrência considera objetivamente como infração os atos que prejudiquem a livre concorrência, dominem artificialmente o mercado relevante e aumentem arbitrariamente os lucros ou o exercício de posição dominante de forma abusiva. A norma contém rol exemplificativo de condutas que configuram as hipóteses acima 20 , o aumento abusivo de preços 21 , consoante análise de circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes, especialmente (i) custo dos insumos, (ii) alterações do produto, (iii) preço de produtos e serviços similares ou sua evolução em mercados relevantes comparáveis ou (iv) existência de ajuste ou acordo que resulte na majoração desses preços. Importante notar que se o agente econômico conseguir demonstrar a relação de implicação entre o aumento de preços e qualquer dos fatores mencionados nos itens “i” a “iii” estará livre da aplicação de quaisquer penalidades, e no caso do item 20 21 Lei 8.884/ 1994, artigo 20. E no mesmo sentido é a Lei de Proteção e Defesa do Consumidor – Lei 8.078/1990, artigo 39, inciso X. 29 “iv” estará automaticamente sujeito a penalidade se participou de ajuste ou acordo para o aumento injustificado de preços. Também deve ser observado que, conforme a jurisprudência do CADE e da SDE nos períodos de controle de preços – que como se verá adiante no caso de medicamentos foram muitos –, não se pode condenar uma empresa por prática de preço excessivo ou lucros arbitrários, uma vez que os preços são determinados pelo próprio Estado, não decorrendo da conduta livre do agente econômico. Vale como exemplo trecho do voto do relator do Acórdão do Processo Administrativo 75/92, Conselheiro Renault de Freitas Castro, in verbis: Tendo em vista todas as manifestações dos órgãos competentes a discutir a matéria aqui debatida, e todas as provas colhidas durante a instrução processual, especificamente os esclarecimentos prestados pela empresa acionada, entendo não caracterizada a conduta imposta à Representada, eis que, à época, os preços em questão estavam sob o controle do Governo Federal. Com isso, por considerar não configurada infração à Lei n. 8.884/94, em consonância com o parecer da Douta Procuradoria do CADE, conheço do recurso de ofício da SDE para negar-lhe provimento e manter a decisão de arquivamento do feito. Dessa forma, temos que, atualmente, os laboratórios farmacêuticos não estão sujeitos à incidência das hipóteses acima citadas, pois estão submetidos a controle de preços de seus produtos. A atuação concertada entre concorrentes, caracterizada como “os acordos celebrados entre empresas concorrentes (que atuam, pois, no mesmo mercado relevante geográfico e material) e que visam a neutralizar a concorrência existente entre”22 , também está sujeita a penalização pelo CADE. Na obra citada, Paula Forgioni aponta que acordos horizontais são aqueles celebrados entre agentes econômicos que atuam em um mesmo mercado relevante (geográfico e material) e que estão, portanto, em direta relação de concorrência. Já os acordos verticais disciplinam relações entre agentes econômicos que desenvolvem suas atividades em mercados relevantes diversos, muitas vezes complementares. Quando se fala de acordos verticais, em teoria da organização industrial e na legislação antitruste, lida-se com uma imaginária linha vertical que nos conduz, por meio da extração da matéria-prima, das várias fases da produção e comercialização até o 22 FORGIONI, Paula . Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 321-326. 30 consumidor final do produto. Assim, à guisa de exemplo, um acordo celebrado entre uma empresa fabricante do produto e outra distribuidora é um típico acordo vertical. Também temos como condutas condenadas pela legislação antitruste: (i) a realização de venda casada, ou seja, condicionar a compra de um produto ou serviço à compra de outro, (ii) a imposição de restrições ou condutas a participantes da cadeia de venda de produtos ou serviços, bem como discriminação destes, (iii) a manipulação da oferta ou da procura de bens e serviços, ou recusa injustificada de fornecimento e a imposição de barreiras artificiais à entrada de concorrentes em um mercado relevante. Vale apontar que, embora muito se discuta sobre a exclusividade do CADE em fiscalizar o mercado, é razoável afirma r que esta competência é compartilhada com algumas agências reguladoras quando referente a um setor específico do mercado, nos termos da respectiva legislação, como é o caso das Telecomunicações, em que a fiscalização e repressão a atividades anticoncorrênciais é realizado em conjunto com a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), ou no caso da Saúde auxiliadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), já que esta pode instruir os processos que serão decidicos pelo CADE. Ainda vale apontar como garantia do Estado Democrático de Direito o artigo 15 da Lei 8.884/1994, que dispõe: “Esta lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de Direito público ou privado...”, ou seja, tanto os entes públicos como os particulares estão submetidos aos mandamentos da lei. Além da polícia antitruste, acima mencionada, é possível a interferência estatal para garantir que os mercados atendam a uma finalidade social, já que, embora a propriedade e a livre- iniciativa sejam protegidas como fazendo parte do rol de direitos dos cidadãos, estes hoje se encontram relativizados em prol dos direitos sociais. Conforme ensina Eros Grau23 , o Estado poderá interferir na economia diretamente: por absorção, quando reservar para si o monopólio de determinada atividade econômica; e por participação, quando partilhar atividade econômica com a iniciativa privada. Ou poderá interferir indiretamente: por indução, quando adotar medidas que imponham desvantagens econômicas em determinadas condutas ou vantagens em outras, de modo que leve o agente econômico a espontaneamente seguir determinada conduta; ou, finalmente, por direção, quando determinar condutas para a iniciativa privada. 23 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 27. 31 O Estado também tem importante papel simplesmente atuando como agente econômico 24 , utilizando seu peso como comprador ou vendedor de produtos e serviços, como se verifica, exemplificadamente, quando o Banco Central passa a atuar como comprador ou vendedor de moeda estrangeira, interferindo nos mercados de câmbio. Para o mercado, de maneira geral, a livre iniciativa pressupõe o Direito de propriedade consagrado no Capítulo dos Direitos Fundamentais, afastando determinações no sentido de um planejamento vinculante. As regras do livre mercado apenas encontram limites no instante em que há conluios e outras formas para prejudicar o consumidor, sendo certo que, nesse âmbito, o Estado deve criar mecanismos para conter tais abusos25 . Já para o Estado, a Constituição Federal de 1988 limita no caput do artigo 173 a exploração direta da atividade econômica, exceto nos casos de segurança nacional e relevante interesse coletivo, conforme definido por lei. Determina, ainda, que, mesmo nesses casos, o Estado estará sujeito ao mesmo regime da iniciativa privada, evitando a concorrência desleal com os particulares e obrigando à realização de licitação e sujeição à fiscalização para garantir a correta aplicação do dinheiro público. O artigo 174 da Carta Constitucional, por sua vez, em seu caput, determina que o Estado atuará como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este indicativo para a iniciativa privada e determinante para o setor público 26 . 24 “A possibilidade de atuação estatal sobre o ambiente econômico, no texto constitucional, não se esgota na ação normativa, ao seu lado está o atuar regulador da atividade econômica” (SCOTT, Paulo H. R., Direito constitucional econômico: estado e normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2000. p. 113). 25 SANCHEZ, Cristiane G. Aspectos da relação entre Estado e iniciativa privada: enfoque constitucional. 1999. 120f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, p. 463 e 464. 26 “O art. 174 da Carta de 1988 considera o Estado como normatizador e regulador da atividade econômica, atribuindo-lhe as funções de ‘fiscalização’, ‘incentivo’ e ‘planejamento’. Quanto a este último, diferencia-o em ‘determinante’ para o setor público e ‘indicativo’ para o setor privado. Conferelhe competência normativa regulamentar de suas funções tradicionais, juntamente com as de caráter político-econômico de dinamizar a própria iniciativa privada, criando-lhe condições de sedução no sentido das realizações que pretende empreender, mesmo em atenção às de caráter ‘indicativo’ que lhe tocam no planejamento. Este, por sua vez, quando determinante ao Estado, refere-se, no entendimento de alguns teóricos, não à economia em geral, porém restritivamente ao ‘planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado’, pela compatibilização dos planos nacionais e regionais de desenvolvimento segundo o próprio texto constitucional. Foram mantidas, dessa forma, as funções do Estado que progressivamente se constitucionalizaram, nas cartas anteriores, como poder-dever do mesmo, porém com a inovação técnica de incluir o setor privado, atraindo-o por incitações criadas pelo próprio Estado que, assim, procura quebrar-lhes as razões liberais do seu afastamento, pela omissão ou desinteresse (Adam Smith)” (SOUZA, Washington P. A. Teoria da Constituição econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 463 e 464). 32 Dessa forma, não obstante as dificuldades que se antepõem ao discernimento da linha que traça os limites entre os dois campos, ele se impõe: intervenção é atuação na área da atividade econômica em sentido estrito e prestação de serviço público é atuação econômica em sentido amplo e estão sujeitas a distintos regimes jurídicos (arts. 173 e 175 da Constituição de 1988) 27 . Com relação ao setor privado, de maneira geral o Estado poderá atuar apenas por participação, por indução ou, conforme apontamos, para coibir a prática do abuso de poder econômico, nos termos do § 4.º do artigo 173 da Constituição Federal, ou seja, para proteger o Direito de livre concorrência, não sendo permitida por nossa Constituição Federal a substituição pelo Estado do papel do mercado na formação de preço nas atividades reservadas para a iniciativa privada, exceto nos casos de uso de poder econômico para a obtenção de lucros abusivos 28 . Partindo dessas premissas, é preciso verificar o que ocorre no caso específico da saúde, em que, efetivamente, temos a participação direta do Estado exercendo poder de polícia e a determinação estatal de preços em uma atividade econômica franqueada ao particular com a participação do Estado. 27 GRAU, Roberto E. A ordem econômica na Constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 99. 28 “Para o Direito Constitucional Brasileiro – observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho – não há, na Constituição vigente, qualquer norma expressa sobre a formação de preços.” E nem poderia haver se quisesse manter o modelo econômico de mercado, com a livre-iniciativa e a livre concorrência. Trata-se de uma decorrência deste último princípio. Contudo, estabelece a Constituição no § 4.º do art igo 173 que ao Estado incumbe também reprimir o aumento arbitrário dos lucros (por meio de lei). Ao coibir o aumento arbitrário dos lucros, a Constituição acabou por admitir, às avessas, o Direito aos lucros da empresa privada como um Dire ito absolutamente legítimo. O que se combate – e não vai nenhuma novidade aí – é o abuso desse Direito.” (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 269). 33 3 – A SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 O drama da falta de acesso à saúde diz respeito a um tripé no qual se equilibram a sociedade, os governos e a iniciativa privada. Tal tripé é formado pelo anseio da sociedade em ter acesso a todos os recursos de saúde disponíveis, e aos melhores e mais modernos recursos de saúde disponíveis e pela escassez de recursos para viabilizar o alcance dessas verdadeiras exigências sociais. Para o Estado ainda resta o problema gerado pelo próprio êxito das políticas públicas de saúde, uma vez que, quanto melhor o seu desempenho, maior será a demanda por utilidades de saúde, uma vez que a maior oferta de tais utilidades leva ao aumento global de sua demanda como conseqüência do crescimento e do envelhecimento da população, cuja longevidade depende de tais utilidades, bem como a uma maior detecção de problemas individuais de saúde, o que acabará por realimentar o sistema com uma demanda cada vez maior por tais utilidades. A atividade de saúde é um setor produtivo responsável pela geração e pela circulação de valores tão expressivos quanto limitadamente conhecidos. A produção de informações detalhadas sobre a estrutura, a distribuição e a evolução desses valores é fundamental para a tomada de decisões, bem como para a formulação e o acompanhamento de políticas públicas no setor. Diferentemente da regulação da prestação de serviços públicos transferidos para o particular pelo sistema de concessão, no caso da saúde temos a regulação de uma atividade privada, cujo acesso aos particulares é franqueado pela Constituição Federal de 1988 29 . Entretanto, apesar de tratar-se de atividade privada, tal atividade está relacionada a bens coletivos (categoria de bens essenciais, capazes de gerar externalidades para toda a sociedade), de modo que em decorrência do modelo de Estado de bem-estar social adotado pelo Brasil, e a conseqüente regulação ativa da economia, o Estado deve (i) prover o fomento dos mercados de oferta de bens e serviços de saúde para o aumento da oferta de utilidades públicas (no caso desses bens coletivos) e (ii) controlar as externalidades negativas da atividade, especialmente as decorrentes de sua falta ou da especulação no fornecimento desses produtos e serviços. 29 Artigo 197. 34 Dessa forma, entre os deveres sociais do Estado brasileiro está fortemente marcado o deve r de garantir a saúde de sua população como conseqüência ao direito à vida já estampado no caput do artigo 5.º da Constituição Federal, pois faz parte da vida a saúde, que deve ser igualmente protegida pelo Estado brasileiro, consoante expressa o artigo 6.º da Carta Constitucional. A competência legislativa em saúde é privativa da União, na medida em que nos termos do inciso XXIII do artigo 22 da Constituição Federal de 1988 é dela a competência privativa para legislar sobre seguridade social. Além disso, nos termos do caput do artigo 194 da Carta Constitucional, a saúde se encontra no feixe de direitos que compõem a seguridade social. A competência legislativa federal quanto à saúde poderá ser complementada pelos municípios no que tange aos interesses locais (artigo 30, item I) e suplementada no que couber (artigo 30, item II), como é feito pelos Códigos Sanitários Municipais, onde existirem. Aos Estados caberá legislar sobre os estabelecimentos de saúde como sobre quaisquer outros estabelecimentos, já que inexistente vedação a respeito na Constituição Federal (artigo 25, § 1.º), como, inclusive o fazem por meio dos Códigos Sanitários Estaduais. Todavia, não podem dispor sobre questões da saúde propriamente dita, sob pena de inconstitucionalidade, já que se trata de competência exclusiva da União, como já apontado. Expressando um dever de proteção ativa da saúde da população no Brasil, o artigo 23, inciso II, da Constituição Federal determina que é competência executiva comum da União, Estados e Municípios “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”, devendo ser garantido a qualquer pessoa e não mais apenas aos trabalhadores e suas famílias o “acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde”, conforme o artigo 196 da Constituição Federal. É importante notar, novamente, que o acesso às ações e serviços de saúde foram garantidos a todos e não mais apenas aos trabalhadores e suas famílias, como na Constituição precedente, e sem qualquer barreira todos os que estejam no Brasil deverão receber tratamento amplo e eficaz de saúde. O dispositivo constitucional certamente decorreu do atend imento bem intencionado dos anseios sociais tão presentes durante a Assembléia Constituinte. Mas, 35 ao determinar tão ampla obrigação, deixou de considerar o fato de que os custos de tratamento de saúde são sempre crescentes, pois (i) a população que recebe esses tratamentos tende a ter uma expectativa de vida cada vez maior e, sabidamente, os idosos são os que demandam mais recursos em tratamentos de saúde, (ii) a inflação com tratamentos de saúde é crescente, tendo em conta o pagamento dos rápidos avanços científicos e tecnológicos na área e (iii) quanto mais tratamentos de saúde são oferecidos, mais eles são consumidos, na medida em que se diagnosticam novas moléstias nos indivíduos, sobre as quais antes sequer se tinha ciência. Buscando atender tão arrojado objetivo é que foi estruturado o Sistema Único de Saúde (SUS), no qual foram repartidas as obrigações a ele relativas e determinado o seu financiamento pela União, Estados e Municípios (artigo 198 da Constituição Federal), inclusive com a participação complementar da iniciativa privada (art. 199, § 1.º), com exceção de empresas e capitais estrangeiros, salvo nos casos previstos em lei (artigo 199, § 3.º). Tanto o artigo 196 quanto o caput do artigo 199 da Constituição Federal de 1988 deixam clara a participação privada na prestação dos serviços de assistência à saúde no Brasil, adotando, portanto, o sistema se saúde misto com a participação do Estado e da iniciativa privada, com opção livre para o usuário quando de sua utilização e com a possibilidade da participação da iniciativa privada no sistema público. A opção pelo sistema misto nessa conformação é opção política de cada país, no caso do Brasil motivada por continuísmo histórico e pela própria incapacidade financeira do Estado de absorver para si a prestação de todos os serviços de saúde com a sofisticação do sistema privado, seja no tocante a produtos e serviços seja no referente a seguro-saúde. Pode-se ver a convivência e interdependência dos sistemas de saúde público e privado de saúde no Brasil nos quadros a seguir, os quais trazem os números de leitos de cada sistema de saúde face em evolução histórica: 36 Número de Estabelecimentos de saúde - BRASIL - 1976 a 2002 (Pesquisa da Assistência Médica Sanitária -IBGE) 60000 Número de estabelecimentos 50000 40000 30000 20000 10000 0 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1999 2002 (1) (1) (1) Ano (1) sem SADT Total Público Privado Ilustração 1 – Estabelecimentos de Saúde – Brasil – 1976 a 2000 37 Série histórica do número de leitos para internação segundo entidade mantenedora BRASIL - 1976 a 2002 600000 500000 400000 Número de leitos 300000 200000 100000 0 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1992 1999 2002 Público Privado Total Ano Ilustração 2 – Leitos de Internação Brasil – 1976 a 2000 Ao redor do mundo cada país tenta vencer, à sua maneira, o desafio da atenção à saúde, havendo alguns outros com sistemas mistos como o do Brasil, como, por exemplo: a) O Canadá, onde o sistema público oferece à população atenção básica gratuita e a iniciativa privada é proibida de prestar esses serviços; b) A Alemanha, em que as pessoas podem optar por serem atendidas pelo sistema público ou privado, ambos pagos, e uma vez feita a opção pelo sistema privado, não é permitido o retorno ao sistema público; c) O Chile, em que a adesão ao sistema público é opcional e paga mediante contribuição ao Fundo Nacional de Saúde de acordo com a renda familiar. Temos ainda países em que o sistema de saúde é integral ou quase integralmente público e financiado pelos tributos, como o brasileiro, como por exemplo: a) O Reino Unido, que se utiliza de uma avaliação dos centros médicos e profissionais por performance financeira no tratamento da população sob seus cuidados; e b) A França, onde a rede privada existe apenas para casos especializados. No outro extremo temo s os Estados Unidos da América, em que o serviço público atende gratuitamente apenas aos muito pobres e aos veteranos de guerra, deixando o restante para a iniciativa privada. 38 Todos esses sistemas são vitoriosos em alguns frontes e falhos em outros, avaliação que inclusive muda ao longo do tempo, levando a contínuos debates e reformas para a sua melhoria em face das mudanças do mercado de saúde, do avanço científico, dos anseios da população e do perfil de seu envelhecimento. Contudo, nosso foco de estudo não é o sistema público de saúde no Brasil, mas sim o tratamento constitucional da iniciativa privada em saúde e suas conseqüências infralegais. 3.1. O poder de polícia em relação aos produtos de interesse da saúde Para termos uma visão absolutamente pura do tema deste trabalho, temos que considerar dois aspectos diferentes ao tratarmos da atividade coercitiva do Estado em relação a produtos e serviços de saúde: um é a sua atuação como agente fiscalizador da atividade fim das empresas que exploram esse setor para a proteção da população, ou seja, o exercício de poder de polícia; e o outro é o aspecto da regulamentação econômica propriamente dita. Quanto ao poder de polícia relativo aos produtos e serviços de saúde temos o artigo 200, inciso I, da Carta Constitucional que determina que caberá ao Sistema Único de Saúde “controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos”. O controle, que se pode chamar de sanitário desses produtos e serviços é realizado com base no que se pode chamar de microssistema de direito sanitário brasileiro, que se insere dentro do direito administrativo mas destaca-se por possuir um princípio que lhe é próprio e que permeia toda a legislação infraconstitucinal, inclusive com respaldo na parte do artigo 196 da Constituição Federal que trata da redução do risco da doença que pode advir desses produtos e serviços caso sejam ofertados no mercado estando inadequados do ponto de vista sanitário. O princípio em questão, que é próprio do direito sanitário, é o princípio da prevenção do risco sanitário, e tal qual o princípio da prevenção do direito ambiental, visa evitar a ocorrência de dano tendo em vista a sua irreversibilidade e a importância dos bens sociais protegido, no caso a saúde e a vida. 39 Por força deste princípio, o Estado brasileiro exerce não só a fiscalização repressiva das condutas causadoras de danos à saúde mas também forte prevenção pela análise prévia dos produtos e serviços que forem ofertados à população e das empresas que irão oferecê- los. Tal fiscalização continua com a renovação periódica de suas permissões mediante fiscalização e novas análises. O sistema em questão, portanto, tem regras federais, estaduais e municipais, e em nível federal é formado: a) pela Lei 5.991/1973, no quanto não revogada, que trata da atividade do comércio farmacêutico e de insumos farmacêuticos; b) pela Lei 6.360/1976 e alterações, que trata das atividades das empresas fornecedoras de produtos e serviços para a saúde e dos requisitos dos produtos para a saúde; c) pela Lei 6.437/1077, que estabelece as infrações a essas normas e suas penas; e d) pela Lei 9.782/1999 e posteriores alterações, que criou autarquia de regime especial, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, para substituir a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, e que cumulou suas competências e acervo com novas competências que lhe foram atribuídas, exercendo a regulamentação técnica de produtos e serviços para evitar a exposição da população a riscos, incluindo no conceito de risco a ineficácia do produto. Atualmente a ANVISA tem as seguintes atribuições: (i) conceder autorização de funcionamento para empresas que explorem produtos de interesse da saúde; (ii) realizar o registro ou emitir certificado de dispensa de registro para os produtos de interesse da saúde; (iii) emitir normas técnicas relacionadas aos produtos e serviços de interesse da saúde, exceto as fontes de financiamento que estão regulamentadas pela Agência Nacional de Saúde (ANS), e as relativas às empresas produtoras ou prestadoras de serviços de saúde; 40 (iv) intervir temporariamente na administração de entidades produtoras financiadas com recursos públicos, assim como nos prestadores de serviço ou fabricantes de produtos exclusivos ou estratégicos; (v) coordenação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), do Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados e do Programa Nacional de Prevenção e Controle de Infecções Hospitalares; (vi) monitorar preços de medicamentos e de produtos para a saúde; (vii) atribuições relativas à regulamentação, controle e fiscalização da produção de fumígenos; (viii) suporte técnico na concessão de patentes pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI); (ix) controle da propaganda de produtos sujeitos ao regime de vigilância sanitária; (x) controle de portos, aeroportos e fronteiras, e a interlocução junto ao Ministério das Relações Exteriores e instituições estrangeiras para tratar de assuntos internacionais na área de vigilância sanitária; (xi) promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, processos, insumos e tecnologias a eles relacionados; (xii) requisitar informações, para posterior encaminhamento para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em caso de suspeita de infração à ordem econômica. No controle sanitário que é exercido pela ANVISA estão incluídas as competências para a emissão de regras sobre o exercício da atividade de extração, produção, fabricação, transformação, sintetização, purificação, fracionamento, embalagem, reembalagem, importação, exportação, armazenagem de medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, produtos de higiene, cosméticos, perfumes, saneantes domissanitários e produtos destinados à correção estética, bem como sobre a prestação de serviços de saúde, como clínicas, hospitais, unidades de tratamento e laboratórios de análise e registro de alimentos. Além da competência para a emissão de regras para as atividades acima relacionadas, a ANVISA partilha com as Secretarias de Vigilância Sanitária estaduais e municipais competência para a fiscalização desses estabelecimentos da seguinte forma: 41 as Secretarias têm a competência específica de fiscalização corriqueira das empresas que realizam essas atividades; e a ANVISA exercerá a fiscalização quando da concessão de suas autorizações e certificados, podendo, ainda, agir em cooperação com as Secretarias em regime de competência concorrente. Em termos gerais, as empresas que pretendam exercer as atividades de interesse da saúde são reguladas por normas técnicas infralegais específicas, e deverão possuir três documentos essenciais, que devem estar válidos constantemente para o exercício regular da atividade e exigidos para a participação em concorrências públicas: (i) Autorização de Funcionamento para o exercício da atividade específica, relativa à pessoa jurídica que a exerce, emitida pela ANVISA uma única vez; (ii) Licença de Funcionamento, concedida pela Secretaria de Vigilância Estadual ou Municipal, conforme o caso, relativa ao estabelecimento onde a atividade é exercida, que deve ser renovada anualmente; (iii) Certificado de Boas Práticas da atividade (alguns ainda estão sendo regulamentados, mas é consistente a tendência de regulamentação específica dos requisitos de emissão do certificado por atividade), relativo ao estabelecimento, o qual é emitido pela ANVISA e renovado anualmente. Os produtos de interesse da saúde, conforme o caso, devem ser registrados perante a ANVISA, ou podem ser dispensados de registro, sendo necessária a dispensa desse registro pela ANVISA, ou ainda em caso de produtos de menor periculosidade, podem ser comercializados mediante simples comunicação a esse órgão, exceção óbvia apenas para os alimentos in natura, que não precisam seguir nenhuma dessas formalidades. As penalidades que podem ser aplicadas tanto pela ANVISA quanto pelas Secretarias de Vigilância Sanitária podem ser de advertência, multa, suspensão de exercício da atividade ou revogação das autorizações e licenças. A nosso ver, a validade do microssistema de direito sanitário e da ação da ANVISA não cons titui regulamentação econômica de mercado, mas sim exercício de poder de polícia, e está lastreada diretamente nos artigos 197 e 200, inciso I, da Constituição Federal. 42 4 – REGULAMENTAÇÃO DA ECONOMIA E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PRIVADA EM SAÚDE Até o momento não tratamos da regulação da atividade econômica das empresas privadas em saúde, posto que tratamos de diferenciar o sistema público e o sistema privado de saúde, e de diferenciar a regulamentação como decorrência do poder de polícia da regulamentação econômica , o que se fez necessário para delimitarmos o nosso tema de trabalho. Mas não é só. Ainda é necessário, antes de adentrarmos no tema da regulamentação da atividade econômica em saúde, precisar os termos que usaremos neste trabalho, com a finalidade de evitar debates infrutíferos e especialmente desnecessários decorrentes de ruídos de comunicação. Conforme apontam Marçal Justen Filho 30 e Washington Peloso Albino de Souza 31 , o termo regulation é tomado da literatura inglesa no sentido que para nós seria tanto de regulação quanto de regulamentação, e algumas confusões também são causadas pelo termo interferência, que na literatura de língua hispânica também teria esses mesmos dois significados. Neste trabalho tomaremos “regulação” como toda e qualquer atividade do Estado voltada para a interferência no mercado, seja na forma direta seja na indireta. Será, portanto, o conjunto que contém todas as atividades do Estado voltadas a obter um resultado por meio da atividade econômica da iniciativa privada 32 . 30 O direito das agências reguladoras independentes. p. 15 Ob. cit. p. 330. 32 “A intervenção estatal no domínio econômico pode ocorrer de maneira direta ou indireta, adotadas as expressões nos termos a seguir expostos. A intervenção estatal indireta refere-se à cobrança de tributos, concessão de subsídios, subvenções, benefícios fiscais e creditícios e, de maneira geral, à regulamentação normativa de atividades econômicas, a serem naturalmente desenvolvidas pelos particulares. Na intervenção direta o Estado participa ativamente, de maneira concreta, na economia, na condição de produtor de bens ou serviços, ao lado dos particulares ou como se particular fosse. Trata-se, nesta última hipótese, do Estado enquanto agente econômico. Na lição abalizada de Eros Grau, a intervenção pode ocorrer de quatro formas: por absorção, por participação, por direção e por indução. A intervenção do Estado no domínio econômico ocorre por absorção quando ele assume por completo o exercício da atividade em determinado setor da economia, atuando em regime de monopólio. Ocorrerá o regime de participação quando o Estado exercer atividade econômica paralelamente aos particulares. O Estado, nessa situação, compete com empresas privadas, do mesmo setor. Não se pode ignorar, aqui, contudo, a posição privilegiada que o Estado passa a ocupar como agente econômico” (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. p. 57-59). 31 43 Porém, o objeto de estudo neste trabalho é a regulamentação, ou seja, o poder das agências regulatórias de emitir comandos normativos infralegais que vinculem os particulares. Importante também notar a diferença entre a regulamentação expedida pelas chamadas Agências Regulatórias, especificamente neste trabalho a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), autarquias especiais, e o poder regulamentar do Chefe do Poder Executivo, que só pode ser exercido para a fiel execução de lei. Vanessa Vieira de Mello 33 , em sua obra Regime jurídico da competência regulamentar, traz diversas posições relativas a esse poder regulamentar, que para alguns autores deriva diretamente da Constituição Federal, para outros, da lei que está sendo regulamentada e, para outros ainda, do poder normativo ainda existente para o Poder Executivo em situações de urgência – a nosso ver sem fundamento na atual Constituição Federal. Acompanhamos a autora ao entender que o poder regulamentar nada mais é do que um poder derivado da norma constitucional para emitir ordens aos servidores públicos e membros da administração pública, para que organizem, operacionalmente, a máquina estatal objetivando a efetivação dos ditames legais, não podendo jamais transbordar dos limites da lei regulamentada ou desvirtuar suas determinações 34 . 33 MELLO, Vanessa Vieira de, Regime jurídico da competência regulamentar. São Paulo: Dialética, 2001. p. 54. 34 “Damos, ao final, nosso conceito: É a competência normativa secundária, haurida do texto constitucional, dirigida ao Administrador Público, determinando a expedição de regulamentos, na busca da efetivação da lei, sujeita aos controles parlamentar e jurisdicional. Cuida-se de competência normativa secundária. Os regulamentos, conforme se apresentam no Texto Constitucional, não têm o condão de inovar originariamente na ordem jurídica. Há uma subsunção, uma preocupação em ater-se aos limites da lei, seu centro de atenção. Observamos que a situação de limitação ao disposto na lei não retira do regulamento seu caráter de fonte de Direito. O regulamento veicula aspectos técnicos, inerentes à evolução e ao progresso da sociedade, melhorando e possibilitando a aplicabilidade das leis. [...] A doutrina não chegou a um conceito unânime de regulamento. Iniciaremos apresentando o conceito de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, para quem: Os regulamentos são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização e à ação do Estado, enquanto poder público. Eles são emanados pelo Poder Executivo, mediante decreto. No escólio de Celso Antônio Bandeira de Mello, o regulamento é: [...] ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública. Pimenta Bueno assim o definiu: Os regulamentos são atos do Poder Executivo, disposições gerais revestidas de certas formas mandadas observar por decreto imperial, que determinam os detalhes, os meios, as providências necessárias para 44 As Agências Regulatórias brasileiras emitem comandos normativos conforme poderes conferidos pelas leis que as criaram, de modo que importa ainda diferenciar a regulamentação econômica por meio da emissão de comandos normativos pelas agências regulatórias da criação de leis pelo Presidente da República por delegação do Congresso Nacional, que por um aspecto formal inarredável se diferenciam, pois “não pode haver delegação do Poder Legislativo a entes autônomos do Poder Executivo para que sejam emitidos regulamentos”35 . Quanto ao aspecto específico da delegação legislativa, vale notar que os atos legislativos devem seguir formas específicas de expedição e formalidades também próprias para sua votação (por exemplo, Leis Ordinárias e Leis Complementares são leis formalmente distintas quanto à sua denominação e têm quóruns distintos de votação). É justamente isso que ocorre com as delegações legislativas que devem ser feitas por Resolução do Congresso Nacional, após solicitação do Presidente da República. Efetivamente, a única previsão de Delegação Legislativa existente em nosso ordenamento jurídico é a do artigo 64 da Constituição Federal, que (i) só pode ser feita ao Presidente da República e (ii) deve seguir a forma do artigo 68 da nossa Carta Magna 36 . Assim, essa forma de delegação legislativa não poderia ser feita por lei para as Agências Regulatórias, na medida em que, independentemente de seu conteúdo, a forma da delegação estaria incorreta tanto quanto o seu destinatário pelo que não é este o fundamento para que as normas infralegais de regulamentação econômica emitidas por agências reguladoras ou outros órgãos do Estado brasileiro que as leis tenham fácil execução em toda a extensão do Estado. São instruções metódicas e não arbitrárias, que não podem contrariar o texto, nem as deduções lógicas da lei, que devem proceder de acordo com os seus preceitos e conseqüências, que não têm por fim empregar os expedientes acidentais e variáveis precisos para remover as dificuldades e facilitar a observância das normas legais. São medidas que regulam a própria ação do Poder Executivo, de seus agentes, dos executores, no desempenho de sua missão; são atos, não da legislação, sim de pura execução, e dominados pela lei” (MELLO, Vanessa Vieira de. Regime jurídico da competência regulamentar. p. 55). 35 Idem, ibidem, p. 94-95. 36 “Art. 68. As Leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. § 1.º Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à Lei Complementar, nem a legislação sobre: (...) § 2.º A delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício.” 45 vinculem os particulares, razão pela qual temos que aprofundar nossos estudos como passamos a fazer. Tratamos neste trabalho especificamente da regulamentação econômica da atividade da iniciativa privada em saúde. Assim, teremos a regulamentação exercida sobre os preços de medicamentos feita pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e a regulamentação sobre os preços de planos individuais de saúde realizada pela ANS. Está excluída a atividade da ANVISA, pois como visto decorre do exercício de poder de polícia a ela atribuído pelo artigo 200, inciso I, de nossa Constituição Federal. Estamos tratando, portanto, de fenômeno que enseja a emissão de normas infralegais que geram obrigações para a iniciativa privada de maneira original. Podemos chamar de regulamentação da economia ou de poder normativo regulador, como consta do artigo 174 da Constituição Federal, que, aliás, é fundamento de validade das leis que criaram as demais agências regulatórias brasileiras e lhes dá referida atribuição, a despeito dos óbices acima citados presentes em nossa Constituição Federal acerca da criação de direitos e obrigações por normas infralegais, que passamos a estudar mais detidamente. 4.1. Análise da validade do poder regulamentar econômico perante a Constituição Federal de 1988 O primeiro óbice colocado para o poder regulamentar econômico é o princípio da legalidade37 , uma vez que o ato regulamentar, apesar de sua carga 37 “O princípio da legalidade, resumido na proposição suporta e lei que fizeste significa estar a Administração Pública, em toda a sua atividade, presa aos mandamentos da lei, deles não se podendo afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor” (GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 6). “O princípio da legalidade eleva, portanto, a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado. Nesse sentido, como visto, ela é uma garantia, o que não exclui, contudo, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem do seu norte autêntico. Nessa acepção a própria isonomia de todos perante a lei é uma contenção de possíveis abusos que ela possa encerrar. A sua submissão à Constituição não deixa, também, de ser uma delimitação da sua vontade soberana” (BASTOS, Celso Ribeiro . Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 186). 46 normativa, é ato administrativo 38 , e a atividade administrativa deve estar estreitamente determinada pela lei, não podendo ser inovadora no sistema jurídico e realizada fora desses rígidos limites, consoante disposto nos artigos 5.º, inciso II, 37, caput, e 84, inciso IV, de nossa Constituição Federal, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello 39 . Instaura-se o princípio de que todo poder emana do povo, de tal sorte que os cidadãos é que são proclamados como os detentores do poder. Os governantes nada mais são, pois, que representantes da sociedade. O art. 1.º, parágrafo único, da Constituição dispõe que ‘todo poder emana do povo, que o exerce através de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Além disto, é a representação popular, o Legislativo, que deve, impessoalmente, definir na lei e na conformidade da Constituição os interesses públicos e os meios e modos de persegui-los, cabendo ao Executivo, cumprindo ditas leis, dar-lhes a concreção necessária. Por isto se diz, na conformidade da máxima oriunda do Direito Inglês, que no Estado de Direito quer-se o governo das leis, e não o dos homens; impera a rule of law, not of men. Assim o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito Brasileiro. Dessa forma, temos a necessidade de lei que determine a intervenção estatal na economia, servindo como fundamento de validade do ato administrativo interventivo, do contrário este simplesmente não será exigível, posto que ilegal40 . À idéia de submissão do Estado à ordem jurídica, aplicável ao Direito público, opõe-se o princípio, que está na base do Direito privado, da liberdade dos indivíduos. Para o particular praticar validamente um ato, não necessita de autorização expressa da norma jurídica; basta que o ato não seja proibido pelo Direito. Por isso se afirma que o 38 “É possível conceituar ato administrativo como: declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público) no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 215). 39 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 83-85. 40 “A liberdade de contratar envolve: 1) a faculdade de ser parte em um contrato; 2) a faculdade de se escolher com quem realizar o contrato; 3) a faculdade de escolher o tipo de negócio a realizar; 4) a faculdade de fixar o conteúdo do contrato segundo as convicções e conveniências das partes; e, por fim 5) o poder de acionar o Judiciário para fazer valer as disposições contratuais (garantia estatal da efetividade do contrato por meio da coação). Considerando do ponto de vista estatal, o princípio em análise é a garantia de legalidade. Nesse sentido, exige lei para que se admita legítima a intervenção do Estado, e dentro dos limites constitucionais ” (TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 249). 47 particular pode fazer tudo o que a Constituição e as leis não proíbem, enquanto o Estado só pode fazer aquilo que tais normas autorizam expressamente. Em outras palavras: a validade dos atos privados depende apenas de sua não-contrariedade com o Direito, enquanto a dos atos de Direito público depende não só disso, mas também de seu anteparo em norma (constitucional ou legal) autorizadora específica41 . Com a ressalva, extremamente pertinente, de que o administrador não deve apenas aplicar a lei, mas integrar o sistema jurídico, Lúcia Valle Figueiredo segue a mesma linha 42 . Certo é que, em caso de descumprimento da lei, é possível a anulação “com eficácia ex tunc, de um ato administrativo ou da relação jurídica por ele gerada ou de ambos, por haverem sido produzidos em dissonância com a ordem jurídica”43 . Vale, contudo, observar que, no caso das Agências Reguladoras, os atos normativos por elas emitidos decorrem de poderes conferidos pela própria lei, ou seja, são as leis que criam essas Agências e que lhes conferem poderes para criar estes atos normativos discricionariamente. Dessa forma, não estamos diante de uma afronta direta ao princípio da legalidade, pois este é respeitado. É a própria lei que dá tais poderes normativos discricionários. Valendo apenas notar que apesar de estarmos diante de Agências Regulatórias independentes, sua independência e, portanto, sua discricionariedade não é totalmente livre de controles, há controles do poder central sobre elas: a regulação desse controle está disciplinada no contrato de gestão existente entre a diretoria da agência e o Ministério correspondente. Assim, estabelecem-se indicadores básicos que permitem ao Ministério avaliar o desempenho do órgão, mediante a aplicação de parâmetros pré-elaborados, tanto para a sua administração interna quanto para as metas a serem estabelecidas nos planos anuais de trabalho 44 . O problema não recai sobre análise de afronta ao princípio da legalidade, mas sim sobre reserva legal. Impõe-se verificar se a Constituição Federal reservou apenas para a própria lei a possibilidade de edição de normas regulamentares, ou se o 41 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3. ed. São Paulo : Malheiros, 1997. p. 151. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 42. 43 ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. 44 SANCHEZ, Cristiane G. Aspectos da relação entre Estado e iniciativa privada: enfoque constitucional, p. 48. 42 48 princípio da legalidade também está voltado para o legislador, que não pode criar leis que transfiram esta prerrogativa. Leila Cuéllar 45 , conclui que, como nossa atual Constituição Federal não contém a reserva legal geral e apenas em alguns pontos faz menção às necessidades de lei para tratar de matérias específicas, estaria aberto o campo para a transferência de competência para que instâncias administrativas editassem as regulamentações econômicas, posição com a qual não concordamos em absoluto, conforme esclarecemos mais a frente. Destacada posição defensora da intervenção estatal na economia, segundo uma análise funcional do direito, é a do Professor Eros Grau46 , crítico fervoroso do positivismo jurídico, que entende vazio. Para o autor, o positivismo deve ser substituído por uma doutrina real do direito, que aproxima o direito, ou, como prefere, a análise dos direitos, da política e da sociologia, e verifica sua validade não conforme critérios de verdade ou falsidade, mas sim de aceitabilidade (justificação). Pessoalmente, nos parece que a posição seria um retrocesso ao negar a existência de uma ciência do direito que busca na lógica uma forma de garantir a segurança jurídica. É importante ter em mente que a publicação da Teoria Pura do Direito por Hans Kelsen se deu em um momento histórico de procura de independência do direito da sociologia, e especialmente da política, para garantir segurança jurídica por meio da reprodutibilidade das decisões judiciais. Kelsen não ignorou que o direito sempre é fruto e reflexo de uma situação política, mas, simplesmente, separou criatura e criador, isolou o direito posto da influência política por meio de um estratagema teórico que foi a sustentação das Constituições por uma abstração que chamou de Norma Hipotética Fundamental. Fazendo isso, Kelsen alçou a Constituição ao fundamento de validade de todo o sistema jurídico, de sua aplicação, de sua estática e dinâmica, forçando que todas as análises partissem do contraste das normas com a Constituição e que todas as decisões considerassem esse contraste. Obviamente que isso privilegia o Poder Constituinte Originário, no nosso caso a Assembléia que criou a Constituição Federal de 1988, e encolhe os poderes 45 46 CUÉLLAR, Leila. As agências reguladoras e seu poder normativo. São Paulo: Dialética, 2001. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 49 Executivo, Judiciário e não menos o Poder Legislativo delegado pelo poder constituinte originário. A utilização da Teoria Pura do Direito, limitando o operador do direito à verificação do fundamento de validade das normas contra os preceitos constitucionais, com a verificação da subsunção dos fatos do mundo concreto às hipóteses contidas nas normas jurídicas, sem a possibilidade de quaisquer enxertos de suas vontades políticas nesse processo, é a única forma de garantir segurança jurídica aos cidadãos. De outra forma, ficaríamos sujeitos à instabilidade normativa, à imprevisibilidade das decisões, à ditadura dos que detêm o poder político, ao casuísmo das decisões, aos caprichos dos julgadores e dos mandantes do Brasil. Note-se que, mesmo com o reforço teórico a uma estrutura rígida de aplicação do direito, vivemos em um ambiente legal altamente volátil, o que tem trazido insegurança jurídica e prejuízos enormes ao nosso povo, de modo que a última coisa de que se precisa é de um arcabouço teórico que traga ainda mais incertezas para o sistema jurídico. Ademais, ao cientista, ao estudioso, não é dado mascarar o seu objeto de estudo para obter as conclusões a que inicialmente já queria chegar. O estudo científico deve ser honesto, calcado na observação e nas informações advindas do objeto estudado, e isto não é diferente para o cientista do direito: o estudioso do direito deve analisar o sistema jurídico posto e daí tirar suas conclusões. A Constituição brasileira vigente não contém em nenhum artigo qualquer autorização para a inobservância do princípio da legalidade e da reserva legal geral, para todo e qualquer tema, de modo que as conclusões em contrário, por mais bemintencionadas, são comprovadamente falsas, posto que, em desacordo com o objeto estudado. Em nossa opinião, seguindo a linha de Celso Antônio Bandeira de Mello, nos parece que o artigo 5.º da Constituição Federal, ao mencionar em seu inciso II que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, já reserva exclusivamente para a lei a possibilidade de inovação no ordenamento jurídico, de modo que qualquer lei que pretenda possibilitar a criação de normas infralegais que imponham a alguém uma obrigação positiva ou negativa será substancialmente inconstitucional por confrontar com esse dispositivo. Esse entendimento é corroborado pelo artigo 25, inciso I, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, já que 50 revogou no prazo de 180 dias da promulgação da Constituição “todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional...”. Tampouco nos parece convincente o entendimento de que no poder de fiscalização constante do caput do referido artigo 174 da Constituição Federal está implícito o poder normatizador, pela simples razão de que não há qualquer confusão entre fiscalizar e normatizar, pois é perfeitamente possível e até usual que seja fiscalizado o cumprimento de normas criadas por outrem, como é o caso mais corriqueiro da Polícia Civil e Militar ou dos fiscais de rendas. Porém, simplesmente afirmar que não é possível a edição de normas inovadoras do sistema jurídico pelas Agências Regulatórias é ir contra as lições de Carlos Maximiliano em sua brilhante obra Hermenêutica e aplicação do direito47 :“Prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade”. Uma vez que a parte final do artigo 174 da Constituição Federal expressa que o planejamento feito pelo Estado é “determinante para o setor público”, seria totalmente inútil o dispositivo se entendêssemos que apenas a Lei pode impor obrigações para o setor público, já que obviamente a lei lhe é determinante, sendo desnecessária a menção; acreditamos que a edição de regulamentação normatizante infralegal pode ser criada por lei para a vinculação do setor público. Cumpre então analisar o que compõe o setor público, além das atividades internas da própria administração pública. 4.1.1. Serviços públicos Além das atividades internas da administração pública, o setor público também é composto pelos serviços públicos, conforme determina o artigo 175 da Constituição Federal. Os doutrinadores praticamente são concordes em afirmar que a definição clássica de serviço público reunia três elementos, embora se 47 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 249. 51 desse maior ou menor ênfase ora a um, ora a outro, dentre eles, quais sejam: 1) o subjetivo, que considera a pessoa jurídica prestadora da atividade – o serviço público seria aquele prestado pelo Estado; 2) o material, que considera a atividade exercida – o serviço público seria a atividade que tem por objeto a satisfação de necessidades coletivas; 3) o formal, que considera o regime jurídico – o serviço público seria aquele exercido sob regime de Direito Público derrogatório e exorbitante do Direito comum 48 . Insuperável o ensinamento de Duguit de que serviço público es toda actividad cuyo cumplimento debe ser regulado, asegurado y fiscalizado por los gobernantes, por ser indispensable a la realización y al desenvolvimiento de la interdependencia social, y de tal naturaleza que no puede asegurado completamente más que por de la intervención de la fuerza gobernante49 Para verificação de quais são as atividades assim consideradas em um dado tempo e espaço histórico, temos de nos ater ao critério formal conforme aponta Celso Antônio Bandeira de Mello 50 . Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituídas em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo. Depreende-se então que serão serviços públicos por absorção todos aqueles assim definidos por nossa Constituição Federal como tal. No nosso entender, no caso dos serviços públicos, ou outros monopólios estatais que fazem parte do setor público nos termos de nossa Constituição Federal, as normas que garantem o poder normativo das Agências Regulatórias são voltadas para os próprios servidores públicos, que devem observá- las na confecção dos editais de concessão de serviço público, que devem conter a observação de que a prestação do serviço seguirá a normatização da respectiva agência, ou nas regulamentações de concessão de licenças, autorizações ou permissões para o exercício das atividades relativas a esses serviços. 48 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria dos serviços públicos e sua transformação. In: Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 42. 49 DUGUIT, Léon. Las transformaciones del derecho público. 2. ed. Madrid, 1913, p. 105. 50 Curso de direito administrativo, p. 600. 52 Os agentes econômicos privados não estão, a priori, sujeitos a essas normas, o que apenas ocorrerá voluntariamente, na medida em que aderirem aos contratos administrativos para atuarem nas atividades reservadas ao Estado: adentraram em um negócio jurídico, de caráter público, devendo, portanto, se ater às suas regras, que decorrem de vínculo contratual. O próprio dispositivo constitucional indica o caráter contratual do instituto jurídico em questão, correspondente a uma adesão voluntária do ente concessionário, sujeitando-se a certas cláusulas regulamentares, assegurado o equilíbrio econômico financeiro, sem o qual deixaria de haver interesse para a prestação do serviço51 . No entanto, tais observações não solucionam o problema ora analisado, pois os serviços e produtos para a saúde não dizem respeito à atividade titularizada pelo Estado, que para exploração pelos particulares depende de adesão aos termos de sua regulamentação; estamos diante de serviços públicos sim, pois podem e devem ser prestados pelo Estado em condições normais, mas de serviços públicos não privativos, já que também podem ser livremente prestados pelos particulares. 4.1.2. Produtos e serviços de saúde fornecidos pelos particulares fazem parte do serviço público? Os produtos e serviços de saúde podem afetar grandemente a própria economia e a sociedade como um todo, não apenas seus fornecedores e consumidores. Este impacto para aqueles que não fazem parte da relação direta de compra e venda de determinado produto ou serviço decorre das chamadas externalidades que se configuram como efeitos colaterais da atividade econômica, prejudicando ou beneficiando sujeitos que não fazem parte das relações de compra e venda e que, portanto, não podem ser cobrados ou premiados, pois estes terceiros são estranhos a tal relação originadora dos efeitos. Assim, a sociedade que sofre os efeitos dessa atividade passa a pressionar o poder político para devolver esses efeitos aos agentes econômicos que participam da relação de compra e venda, promovendo, então, a internalização das externalidades, o que pode se dar com uma intermediação financeira do Estado, ao recolher impostos 51 SANCHEZ, Cristiane G. Aspectos da relação entre Estado e iniciativa privado: enfoque constitucional. p. 36. 53 mais altos e devolver benefícios para a sociedade, ou diretamente pelos agentes econômicos que são levados a assumir obrigações para mitigar ou compensar os prejuízos causados 52 . É bastante evidente tal característica nos produtos e serviços da saúde, pois sua utilização gera benefícios para o Estado e para a economia – diminuindo o absentismo, a queda de produtividade e o abandono de emprego – e também para a própria sociedade, pois a diminuição dos agravos à saúde é um objetivo do Estado Social moderno. Portanto, os produtos e serviços de saúde fazem parte de um rol de bens ou serviços que, muito embora exclusivos, geram um tal montante de externalidades positivas a ponto de serem cada vez mais vistos, eles próprios, como bens coletivos. É o caso da vacina: aparentemente trata -se de um bem exclusivo, pois protege a quem foi com ela inoculado. Mas, à medida que uma parcela razoável da população a receba, aumentam as probabilidades de todo o conjunto de habitantes ver-se livre de uma possível epidemia. As altas externalidades fazem a vacina ser encarada muito mais como um bem coletivo do que exclusivo. [...] Daí o desenvolvimento e a diversificação das modalidades pelas quais o Estado supre estes bens, quer diretamente, quer mediante a concessão de serviços públicos, quer pela contratação com terceiros, quer, ainda, via incentivos à produção, pelo setor privado, de bens dotados de alto coeficiente de externalidades positivas 53 . Por esta razão o artigo 197 da Constituição Federal considerou como de “relevância pública” esses serviços, cabendo ao “Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”, e aqui não há qualquer implicação meramente teleológica entre fiscalização e controle, pois o dispositivo constitucional é expresso ao tratar de controle 54 . 52 “Se, em virtude dos efeitos externos, custos ou benefícios circulam livremente pela sociedade, atingindo-a diretamente, isto é, sem passar pelos canais do mercado, parece intuitivo deva o seu antídoto basear-se em mecanismos aptos a promoverem a internalização de tais efeitos, ou seja, destinados a levar os custos e benefícios a incidirem sobre as próprias unidades responsáveis pela sua geração. Como visto, também, este segundo aspecto – a internalização de benefícios – é incomparavelmente mais fácil de ser conseguido, pois vai ao encontro da tendência natural do próprio mercado, por definição um maximizador de receitas. As dificuldades são extremamente sérias quando se trata de internalizar ou privatizar efeitos negativos representados pelos custos sociais. Por isso, em grande parte, as normas jurídicas neste campo têm esta finalidade: promover a internalização daqueles custos pelas suas unidades geradoras; ou então simplesmente, imp edir a própria geração dos mesmos” (NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 158). 53 Idem, ibidem, p. 162 54 “Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde, em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra 54 Temos, então, uma parcela da atividade econômica na qual o Estado, além de interferir por participação, tem poderes de regulamentação sobre a atividade privada, o que se dá em decorrência da alta carga de interesse público nela envolvida. Só não temos os produtos e serviços de saúde como típicos serviços públicos por uma opção do poder constituinte, que não os reservou exclusivamente ao Estado, muito embora tenham grande relevância para a interdependência social. Não se deve confundir o serviço público com o serviço de utilidade pública. Estes não incubem ao Estado, que não os titulariza. Apenas que, em se tratando de serviço de interesse comunitário, são assim reconhecidos, como ocorre com os serviços educacionais e assistenciais. Aqui, há um grande interesse por parte do Estado em aproximar-se mais intensamente da prestação desses serviços, para acompanhar e fiscalizar a atividade 55 . É o que Morenilla 56 chama de serviço público impróprio ou virtual, no qual o particular sofre a imposição de uma série de deveres e controles próximos aos impostos aos concessionários de serviço público, hipótese evidente no caso da saúde, conforme aponta Eros Grau, que não usa a mesma nomenclatura de Morenilla, mas classifica os serviços públicos entre privativos e não-privativos e aplica as mesmas conclusões quanto à atividade privada nos serviços públicos não-privativos 57 . inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante” (RE 267.612, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23.08.2000). 55 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. p. 291. 56 SAUVIRÓN MORENILLA, José Maria. La actividad de la administración y el servicio público. Granada: Comares, 1998. 57 “Cumpre distinguir, desde logo, os serviços públicos privativos dos serviços públicos não privativos. Entre os primeiros, aquele cuja prestação é privativa do Estado (União, Estado-membro ou Município), ainda que admitida a possibilidade de entidades do setor privado desenvolvê-los, apenas e tão somente, contudo, em regime de concessão ou permissão (art. 175 da Constituição de 1988). Entre os restantes – serviços públicos não privativos – aqueles que em edições anteriores deste livro equivocadamente afirmei terem por substrato atividade econômica que tanto pode ser desenvolvida pelo Estado, enquanto serviço público, quanto pelo setor privado, caracterizando-se tal desenvolvimento, então, como modalidade de atividade econômica em sentido estrito. Exemplos típicos de serviços públicos não privativos manifestar-se-iam nas hipóteses de prestação de serviços de educação e saúde. Assim o que torna os chamados serviços públicos não privativos distintos dos privativos é a circunstância de os primeiros poderem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização, ao passo que os últimos apenas poderão ser prestados pelo setor privado sob um destes regimes. Há, portanto, serviço público mesmo nas hipóteses de prestação de serviços de educação e saúde pelo setor privado. Por isso mesmo é que os arts. 209 e 199 declaram expressamente serem livres à iniciativa privada a assistência à saúde e o ensino – não se tratasse, saúde e ensino, de serviço público razão não haveria para as afirmações dos preceitos constitucionais. Não importa quem preste tais serviços – União, Estados-membros, Municípios ou particulares; em qualquer hipótese haverá serviço público” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 105 e 106). 55 Especificamente no que concerne às ações relativas à saúde, são elas de relevância pública, devendo o Estado exercer sua regulamentação, fiscalização e controle 58 . A Lei maior da república estipulou critérios para que a saúde seja corretamente determinada em seu texto. Assim vinculou sua realização às políticas sociais e econômicas e ao acesso às ações e serviços destinados, não só à sua recuperação, mas também à sua promoção e proteção. Em outras palavras, adotou-se o conceito que engloba tanto a ausência da doença, quanto o bem-estar, enquanto derivado das políticas públicas que têm por objetivo, seja apenas a política, seja sua implementação, traduzida na garantia de acesso – universal e igualitário – às ações e serviços com o mesmo obje tivo (CF, artigo 196) 59 . Assim, por força do artigo 197 da Constituição Federal, cuja motivação são as externalidades sociais geradas pelas atividades privadas relacionadas à saúde, bem como, em última análise, a própria decisão política que foi tomada qua ndo da Assembléia Constituinte, é possível a regulamentação, fiscalização e controle da iniciativa privada neste mercado em especial, como hipótese típica de intervenção por direção: No caso das normas de intervenção por direção estamos diante de comandos imperativos, dotados de cogência, impositivos de certos comportamentos a serem necessariamente cumpridos pelos agentes que atuam no campo da atividade econômica em sentido estrito – inclusive pelas próprias empresas estatais que a exploram60 . 58 “A Constituição Federal de 1988 introduziu entre nós o termo “relevância pública”. Com efeito, a expressão indica que as ações e serviços de saúde devem ser desempenhados pelo Poder Público e pela iniciativa privada como atividade essencial na defesa da vida, configurando, em síntese, um princípiogarantia em benefício do cidadão” (ROCHA, Julio César de Sá. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e coletivos. Pág. 199). 59 DALLARI, Sueli G. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Hucitec, 1995. p. 30. 60 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 128. 56 5 – PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICADOS NA REGULAMENTAÇÃO ECONÔMICA DAS AÇÕES DE SAÚDE É importante notar que a atividade legislativa e regulamentadora do Estado na economia deverá obedecer aos princípios do artigo 170 da Constituição Federal, de modo que normas infraconstitucionais que não tenham esse sentido serão maculadas pela inconstitucionalidade, sob pena de perda de unidade e consistência da Carta Constitucional, pois embora não possam os princípios gerar Direitos subjetivos, eles desempenham uma função transcendental dentro da Constituição. Eles é que lhe dão vida e estrutura, porque são como a carne no corpo humano, revestindo, portanto, a ossatura do esqueleto. É o que dá feição de unidade ao texto constitucional, determinando-lhe as diretrizes fundamenta is61 . Nos termos da Constituição Federal de 1988, a atividade do Estado em relação a esses serviços públicos impróprios não poderá ser realizada de maneira absolutamente livre e discricionária, deverá ser pautada pela busca constante, proativa e sem retrocessos da ampliação do acesso da população aos tratamentos e ações de saúde, pois é isto que expressamente determina o artigo 196 da Constituição Federal62 . 61 62 BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994. “O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...). O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5.º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF” (RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2000). No mesmo sentido: RE 393.175, Rel. Min. Celso de Mello. 57 As normas infraconstitucionais que estabeleçam a regulação no setor de saúde (permitida nos pelo artigo 197 da Constituição) somente serão constitucionais se afinadas com os objetivos contidos no artigo 196 da Constituição Federal, quais sejam “a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, pois o legislador constituinte fornece a orientação a ser seguida pelo legislador infraconstitucional. Este ponto tem fundamental importância para o nosso trabalho e merece ser observado com maior atenção, pois a despeito de sua simplicidade traz conseqüências importantes para a análise da validade da legislação infraconstitucional sob uma ótica incomum para a maioria dos que lidam com o direito atualmente. Como é sabido, a Constituição Federal, além de conter em si o processo de criação de novas normas jurídicas, sejam infraconstitucionais ou de fiel execução de lei, e ainda das próprias emendas constitucionais, fixa o conteúdo das normas infraconstitucionais, na medida em que limita esse conteúdo negativamente, vale dizer, uma norma infraconstitucional não pode ser contrária a um ditame constitucional, pois se o for não será parte do sistema jurídico, já que carente de fundamento de validade. Na maior parte da nossa Constituição temos essa fixação de conteúdo por meio de dispositivos constitucionais que simplesmente criam direitos ou obrigações para sujeitos que se enquadrem nas condições hipotéticas definidas por esses dispositivos. É bem verdade que tais direitos e obrigações são atribuídos de maneira muito genérica, de modo que permitem a sua especialização e procedimentalização pela legislação infraconstitucional, algumas vezes até com conceitos vagos, que são preenchidos conforme sua interpretação pela sociedade em um determinado tempo e que, portanto, podem variar com sua evolução. Mas, de qualquer forma, nesses casos, a leitura do texto da Constituição, preenchendo tais conceitos abertos, e a leitura do texto das normas infraconstitucionais são o suficiente para se perquirir a validade dessa norma. Contudo, no capítulo da saúde o constituinte originário utilizou outro instrumental, e conferiu um objetivo a ser alcançado pelo Estado – Estado como junção dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário –, dando- lhe uma verdadeira missão a ser perseguida, qual seja a ampliação do acesso à saúde à população brasileira. Esta técnica faz que a análise de validade da norma infraconstitucional não possa ser feita simplesmente contrastando seu texto com o texto constitucional; é 58 necessário fazer uma análise prospectiva dos possíveis resultados de sua aplicação. Não se olha para o presente ou para o passado. O aplicador do direito deve olhar para o futuro e buscar prever os resultados da aplicação daquela norma, para verificar se estes estão de acordo com o determinado pela Constituição 63 . Nesse aspecto nos será útil a teoria pura do Direito de Hans Kelsen64 , porque nos interessa analisar a validade das normas que conferem o poder regulamentar relacionado ao mercado de saúde. Para Kelsen, o Direito é criado pela chamada norma jurídica fundamental, que não passa de uma pré-suposição teórica, um artifício utilizado para evitar questionamentos e aprofundamentos fora do próprio Direito. Dessa forma, Kelsen cria uma teoria pura do Direito, não questionando o poder, apenas estudando o sistema jurídico formado por normas postas, cujo fundamento de validade será a norma hipotética fundamental. Kelsen vê dois princípios em todo o ordenamento jurídico: o estático e o dinâmico. Conforme a dinâmica jurídica, a norma fundamental é desprovida de conteúdo, conferindo apenas e tão-somente competência para a criação da Constituição, que poderá ter qualquer conteúdo, conforme verificamos ao elencar as Constituições acima. Importante notar que Kelsen foi muito criticado ao assim se posicionar, pois para ele tanto uma Constituição democrática quanto uma nazista seriam igualmente válidas, o que é real se analisado o ponto de vista exclusivo da lógica formal puramente jurídica. A Constituição terá normas procedimentais para a criação de leis e suas respectivas competências, e também normas que fixam, a partir de conceitos gerais, o conteúdo das normas infraconstitucionais. A partir dessa limitação de conteúdo válido, tem início a estática do sistema jurídico, na medida em que as normas infraconstitucionais terão como fundamento de validade a própria Constituição, e seu conteúdo não poderá contrastar com o nela fixado. No caso específico dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, estes trazem proposições voltadas para um resultado que deve ser buscado no âmbito do 63 “As diretrizes constitucionais, que estabelecem obrigação de resultado, vinculam o aplicador ou intérprete, condicionando a legalidade da norma à submissão aos fins nelas declarados” (DALLARI, Sueli G. Os estados brasileiros e o direito à saúde. p. 28). 64 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 59 mundo concreto. São determinações da atuação do Estado como Poder Executivo e Legislativo, que obviamente devem ser julgadas pelo Poder Judiciário quanto à sua validade. Sendo assim, a conduta do Estado enquanto Poder Executivo será a busca cada vez maior da utilidade pública em saúde, conforme lhe permitirem seus orçamentos. Para o Estado Legislador, que não entrega diretamente a utilidade pública, fica a obrigação de produzir normas jurídicas que também possam gerar no mundo fenomênico tais efeitos concretos de ampliação do acesso da população aos produtos e serviços de saúde. Faz-se pertinente aqui um questionamento: se as normas jurídicas são criadas para produzirem efeitos no futuro, no caso específico para provocarem um comportamento nos age ntes econômicos – seja indutiva seja coercitivamente – que deverá resultar na criação futura de utilidade social, como então avaliar a constitucionalidade dessas normas sem cair no subjetivismo dos julgadores? Propomos para possibilitar a redução da subjetividade desta análise buscar critérios objetivos que possam prever os efeitos da ação dos agentes econômicos para que conforme esta previsão o sistema jurídico acolha ou repila como inválida uma norma infraconstitucional. No momento atual entendemos que a única ciência com instrumental objetivo para tanto é a economia. A ciência econômica busca criar cenários futuros conforme o conhecimento acumulado e as teorias econômicas. Entendemos que somente através do uso da ciência econômica será possível a criação de normas infraconstitucionais e aplicação das já existentes conforme o atual texto constitucional que busca o amplo acesso da população aos serviços de saúde. Isto porque a análise acerca da concretização futura e efetiva deste amplo acesso, ou seja, da validade das leis face a Constituição Federal, somente é viável através da projeção de efeitos econômicos ao longo da vigência das normas infraconstitucionais. Esta análise somente será possível com o uso de ferramentas existentes dentro da ciência econômica, de acordo com seus aspectos funcionais e prospectivos, ou seja, deverá ser feita uma análise da validade das leis segundo um estudo econômico de seus efeitos possíveis, para verificar se propiciarão ou não os efeitos determinados pela Constituição Federal. 60 Esta proposição não parte de uma idéia de direito alternativo ou de uma tentativa de quebra das estruturas positivistas do Direito. Pelo contrário, foi o legislador constituinte que, ao fixar o conteúdo das normas infraconstitucionais, o fez não da forma tradicional, delineando uma hipótese de incidência e uma conseqüência, mas sim fixando objetivos que devem ser alcançados no mundo concreto pelas normas infralegais. Porém, nem o aplicador do direito e sequer a própria ciência do direito são aparelhados para fazer esse tipo de análise prospectiva de construção de cenários futuros, o que pode criar uma instabilidade jurídica terrível, que desestruturaria o próprio sistema jurídico se deixada ao sabor das preferências pessoais de cada aplicador do direito e, especialmente, de cada julgador em um casuísmo absolutamente deletério. Parece-nos que o receio de se fazer uma análise de validade no presente com base no futuro incerto é que acaba gerando uma reação de negação na classe jurídica; entretanto, não adianta negar, os artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988 estão assim redigidos, não cabendo à classe jurídica rejeitar no todo ou em parte uma norma constitucional válida, devendo aplicá- la nos seus exatos termos, seja isto bom ou ruim. A redação dos referidos dispositivos constitucionais confere, assim, uma garantia ao cidadão brasileiro, necessária em face do poder conferido ao Estado de regulamentar a atividade econômica, inclusive substituindo as regras de mercado de definição de preços, como no caso em tela, posto que o estabelecimento de objetivos que devem ser alcançados com esse poder é um freio eficaz no direcionamento das normas legais para os interesses sociais. Neste sentido os tribunais não podem se furtar e devem atuar como verdadeiro filtro das normas legais criadas a partir do poder Legislativo ou Executivo com interesses políticos que não estejam conforme a determinação da Constituição Federal que lhes dá o fundamento de validade. Resta, então, o problema de como aplicar referida aná lise prospectiva de validade de normas jurídicas, evitando o casuísmo. A solução para tanto seria simplesmente buscar em outras ciências humanas os mecanismos para a construção desses cenários futuros, de maneira que possa ser validada ou contestada em bases concretas. Esta ciência é justamente a Economia, posto que é a ciência que se ocupa de estudar a alocação de recursos escassos, no caso produtos e serviços para saúde, 61 analisando os comportamentos do mercado, para descobrir quais são as variáveis determinantes de suas reações e, com base nisso, realizar previsões e criar cenários futuros factíveis. Não se trata aqui de submeter todo o sistema jurídico a uma perspectiva de outra ciência que não a jurídica, mas simplesmente de utilizar o instrumento adequado, quando determinado pelo próprio sistema jurídico. Aliás, a utilização de outras ciências que não a jurídica como ferramentais auxiliadores para a análise de validação das normas infraconstitucionais pelos operadores do direito e tribunais já vem sendo há tempos utilizado quando, por exemplo, da análise da validação dos atos administrativos quanto à eficiência através da ciência da administração ou das normas penais através da medicina quando necessário. Sendo assim, a validade das normas jurídicas infraconstitucionais que tenham por fundamento os artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988 está condicionada à análise econômica dos resultados de sua aplicação, e é por essa razão que o presente trabalho, a despeito de seu objeto jurídico, tratará em tantas linhas de questões econômicas relativas aos medicamentos e aos planos de saúde. Da mesma forma que em relação aos seus objetivos específicos as normas devem-se ater aos princípios da atividade econômica contidos no artigo 170 da Carta Constitucional, sob pena de invalidade perante o sistema 65 ; as normas infraconstitucionais relativas à regulação da atividade econômica pública ou privada em saúde devem ampliar o acesso universal e igualitário aos serviços a ela relacionados por meio desses mesmos princípios do artigo 170 da Constituição Federal, de modo que as leis contrárias a tal objetivo serão inconstitucionais. Portanto, as normas infraconstitucionais deverão prover condições, segundo o sistema de livre concorrência material, para que a atuação dos agentes econômicos no mercado gere a buscada ampliação de acesso à saúde para as pessoas, de modo que as normas que não tiverem tal orientação sejam consideradas inconstitucionais por contrariarem os princípios da atividade econômica constantes do mencionado artigo 170 da Constituição Federal. 65 “Assim, a ordem econômica de que cuido, a ser complementada pelo legislador ordinário, no quadro de seus princípios – e, saliento, não há nenhum mal em que a Constituição a ele atribua esta tarefa, de dar concreção aos princípios – veiculada a uma ideologia que não se fecha em si própria. Esse modelo há de ser complementado pelo legislador ordinário, evidentemente tangido, também, pelos princípios e regras contempladas no bojo da Constituição” (GRAU, Eros R. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 269). 62 A imprescindível aplicação harmonizada 66 dos artigos 170, 196 e 197 da Constituição Federal resulta em que o conteúdo das normas infraconstitucionais sobre a matéria de saúde deva sempre garantir a ampliação do acesso a ações e serviços de saúde pela população, preservando a livre concorrência material com o combate das falhas do mercado em questão, ou seja, o método para o alcance dessa meta constitucional deve ser a ampliação e utilização da livre concorrência e o livre mercado, que sustente a entrada no mercado de novos concorrentes e conseqüente redução dos preços que são a grande barreira de acesso a estes produtos e serviços. Como se verá adiante, cresce no Brasil a opção pelo controle de preços para a ampliação do acesso da população a produtos e serviços de saúde, transferindo para a iniciativa privada os custos dessa ampliação de acesso, que na verdade fazem parte da missão do Estado, que deveria suportar tais custos e direcionar a iniciativa privada nesse sentido, sem tal transferência. Tais medidas de controle de mercado afrontam o artigo 170 da Constituição Federal, especialmente seus incisos II e IV e parágrafo único, na medida em que não só não propiciam a livre concorrência como eliminam o livre mercado em troca de um preço determinado por lei e normas infralegais, o que acaba com a lucratividade das empresas e, portanto, lhes drena paulatinamente a propriedade, conforme lição de Miguel Reale que trazemos apesar de longa, devido à pertinência ao tema ora tratado e sapiência do Ilustre Professor 67 : Volta e meia, torna-se a falar em programa de congelamento de preços, do tipo Plano Cruzado ou do Plano Bresser, e já agora com a idéia de instituir-se nova moeda, o real, mais uma tentativa de contornar ou impedir o jogo dos preços que caracteriza a economia de mercado, Com tais propostas não se percebe, no entanto, que a Constituição de 1988 veio por paradeiro a qualquer plano que tenha por fim estabelecer, direta ou indiretamente, o congelamento dos preços. É elevada à dignidade de princípio Constitucional, como se acha consagrada no artigo 170, inciso 4.º da Carta Magna em vigor, e isto depois de, no “caput” desse mesmo artigo, declarar-se que a ordem econômica no Brasil se funda, entre outros, sobre o valor da “iniciativa privada”. Por sinal que esta é referida logo no artigo 1.º da Constituição de 5 de outubro de 1988, artigo esse de natureza preambular que enumera os “princípios fundamentais” de nosso Estado de Direito. Como se vê, não é um item isolado da Constituição 66 CLÈVE, Clémerson Merlin; FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. Algumas notas sobre colis ão de direitos fundamentais . In: Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo, 2003. p. 237. 67 REALE, Miguel. Inconstitucionalidade de congelamentos, Folha de S. Paulo, 19 out. 1988, coluna “Tendências e Debates”. 63 que dá novo sentido à nossa ordem econômica, mas sim todo o contexto de suas disposições. Ora, livre iniciativa e livre concorrência são conceitos complementares, mas essencialmente distintos. A primeira não é senão a projeção da liberdade individua l no plano de produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio de livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados artigos 1.º e 170. Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, significando o “pr incípio econômico” segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos de autoridade, mas sim de livre jogo das forças em disputa de clientela na economia de mercado. Houve, por conseguinte, iniludível opção de nossos constituintes por dado tipo, o tipo liberal do processo econômico, o qual só admite a intervenção do Estado para coibir embate econômico que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário dos lucros. Como se vê, não estou interpretando o novo texto constitucional somente à luz de único dispositivo, mas levando em conta o art. 170, que consagra a livre concorrência, contém também um item que se refere ao princípio da “defesa do consumidor”. Este objetivo é completado pelo parágrafo 4.º ao art. 171, segundo o qual, sempre mediante a lei, devem ser reprimidos os abusos do poder econômico e qualquer tentativa de eliminação da concorrência com aumento arbitrário de lucros. Da exegese conjugada desses dispositivos podemos inferir algumas conseqüências básicas, a saber: a) a livre concorrência deve ser a regra ou diretriz básica da ordem econômica; b) o Estado só deve intervir na vida econômica que vise à obtenção de lucros ilícitos. Se assim é, cumpre-se deixar de aplicar as leis, que disciplinam a política de preços ou visam a impedir o abuso do poder econômico, segundo o espírito autoritário das Cartas de 1967 e 1969, reconhecendo que tais leis somente podem ter validade e eficácia em consonância com os novos princíp ios da nova Carta Magna. É inegável que a promulgação de uma nova Constituição não representa uma fratura absoluta no sistema jurídico vigente, uma vez que se opera a “recepção das leis antigas”, desde que não conflitem com as disposições da Carta Constitucional superveniente. Todavia, mesmo essa recepção das normas no conjunto de novas normas constitucionais, a cujo espírito e princípios devem se conformar. Isto quer dizer que elas perdem o seu significado originário para adquirir aquele que resulta do novo ordenamento político, tal como nos ensinou o insigne Teixeira de Freitas ao cotejar as Ordenações do Reino com as normas da Constituição do Império, elaborando uma “consolidação das leis civis” que foi uma reelaboração à luz do que lhe parecia ser uma diretriz de uma monarquia representativa. A primeira conclusão que me parece necessário estabelecer, neste artigo de caráter introdutório a um grande tema, é a seguinte: cabe preservar, como regra basilar, o princípio da livre concorrência, e, somente secundariamente, admitir-se a intervenção do Estado na ordem econômica. 64 A segunda conclusão que me parece irrecusável, diz respeito à inviabilidade de qualquer plano que tenha por fim implantar congelamento dos preços, eliminando a livre concorrência: bem como insubsistência de leis que subordinem de antemão a fixação dos preços das mercadorias à previa aprovação de órgãos administrativos, não raro segundo critérios rudimentares e secretos. Esse controle somente pode ser “a posteriori”, segundo critérios previamente estabelecidos em lei. Entendimento contrário a estas conclusões está no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 319-4, proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Conferem) contra a já revogada Lei 8.039/1990, que estabelecia que o reajuste de mensalidades escolares não poderia ser superior ao reajuste do salário mínimo. A referida Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em junho de 1990 foi julgada apenas parcialmente procedente em 1993: a parte improcedente da ação foi justamente a que pugnava pela inconstitucionalidade do controle de preços das mensalidades escolares por violação dos incisos II e IV e parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal. A argumentação contida na decisão vai no sentido de que : (i) a educação é atividade essencial para a sociedade, de modo que deve ser regulamentada pelo Estado para a garantida dos direitos do cidadão, por força dos artigos 5.º, 206 e 207 da Constituição Federal; (ii) as garantias do artigo 170 a Constituição Federal não são absolutas, devendo ser temperadas com a proteção do consumidor, a função social da propriedade e os objetivos sociais do Estado brasileiro. De tais proposições os ilustres Ministros Julgadores da Ação, com exceção do Ministro Marco Aurélio, entendem que o controle de preços não é possível apenas para a educação, serviço público impróprio, mas, também, para qualquer atividade econômica já que o interesse coletivo tutelado pelo Estado deve prevalecer sobre o interesse individual do agente econô mico. O julgamento expressa um entendimento segundo o qual a exploração de atividade econômica em questões que envolvam o interesse social deve se subordinar a este, com o controle estatal servindo de mediador entre esses interesses, estabelecendo os ganho s que podem ser auferidos pela iniciativa privada. Temos até o voto do Ministro Paulo Brossard, segundo o qual sequer o lucro faz sentido nesse tipo de atividade, devendo o agente privado ser mantido sob 65 cabresto que lhe permitisse apenas receber como retribuição pelo serviço ofertado o suficiente para a manutenção desse serviço. É claro que alguém que abre uma escola – seja uma pessoa física ou seja uma pessoa jurídica, seja uma sociedade civil ou seja uma corporação religiosa – terá de auferir uma remuneração mínima que lhe assegure a manutenção e conservação do serviço, a menos que possa contar, e conte efetivamente, com outras fontes de renda. Normalmente, esse serviço há de ser remunerado, e como toda remuneração deve cobrir as despesas e ensejar uma margem que eu não diria de lucro, porque não se trata de atividade econômica propriamente dita, mas de uma sobra que permita não só a conservação como a melhoria do serviço. Mas, repito, não me parece seja aplicável ao serviço de Ensino regra específica para a atividade econômica propriamente dita. E no caso até para o abuso do poder econômico, “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros.” Acho mesmo que seria preciso forçar o sentido das palavras para aplicar esta regra constitucional ao setor do Ensino, embora possa ocorrer exploração mercantil do Ensino. Mas não é regra! Entre nós, pelo menos até aonde eu conheço, a regra é no sentido contrário. É que o magistério é muito mais um modo de vida do que um meio de vida, e o magistério é a parte maior do ensino e da educação. Realmente, nunca se viu um professor enriquecer, nem mesmo os professores vinculados ao sistema oficial. Pode ocorrer uma organização modelada empresarialmente? Pode! Não nego que possa haver, e não nego até que haja. Mas creio que o preceito constitucional quando fala em abuso de poder econômico, dominação dos mercados, eliminação de concorrência, aumento arbitrário dos lucros, não está pensando em Ensino! Volto a dizer que não nego possa haver exploração mercantilizada no Ensino; mas se existe é por tolerância e complacência da Administração Pública. (Voto do Ministro Paulo Brossard na ADIn 319-4). Ora, referido posicionamento demonstra uma vertente absolutamente intervencionista do Estado e reprime a aplicação dos incisos II e IV e parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal, contra seus próprios termos, forçando o que se entendeu na época como o raciocínio mais voltado para o bem social. Referida visão intervencionista e inimiga do lucro não o vê como meio de captação de novos investimentos para um setor em que o Estado tem o dever de prestar um serviço público de qualidade, mas não consegue atender à demanda sem a presença da iniciativa privada, mas o vê apenas como um resultado da espoliação da população como se todo lucro fosse por definição abusivo. Tal visão esquece que todo aquele que investe seu capital em uma dada atividade econômica está optando por colocar seus recursos em algo produtivo em vez 66 de aplicá-lo no muito mais seguro mercado financeiro, e o faz com a expectativa de receber um retorno desse investimento na forma de lucro, sem o qual não teremos novos investimentos ou mesmo capacidade de investimento na expansão da atividade econômica. Considerando que tanto a atividade educacional quando o acesso a produtos e serviços de saúde foram, em atenção aos anseios da sociedade brasileira, considerados por nossa Constituição de relevante interesse público e dada a incapacidade do Estado de atender adequadamente a esse anseio, o que se deveria é estimular o lucro não advindo do abuso de poder econômico, pois assim, com mais investimentos, teríamos mais oferta desses serviços e produtos, com ampliação do acesso e da concorrência. Atualmente, temos a consciência de que a estabilidade jurídica é o maior incentivo para a atividade econômica, de modo que a interpretação das normas jurídicas não deve ser condicionada ao entendimento dos julgadores do que seria melhor bem estar social mas sim condicionadas ao que está escrito nas normas interpretadas, pois esta é a regra que se espera seja aplicada, conforme voto do Ministro Marco Aurélio na já citada ADIn 319-4: É induvidoso que a Carta da República de 1988 agasalhou princípios próprios à chamada economia de mercado. O Título VII – “DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEIRA”, contém capítulo alusivo aos “PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA”, cogitando o artigo 170 de uma ordem econômica fundada não só na “valorização do trabalho humano”, garantia que, neste caso, não está em questão, como também na “livre iniciativa”. Fê-lo de forma explícita e, por isso mesmo, pedagógica, pois, no mesmo artigo, balizou a citada ordem, isto ao apontar os princípios que se lhe mostram norteadores. Dentre estes, três têm pertinência na hipótese dos autos de forma direta e estão revelados na busca e preservação da propriedade privada, de livre concorrência e da defesa do consumidor. Observa-se, de imediato, a plena harmonia do Título referido com o intróito da própria Lei Básica. O que nele consta inserido decorre, justamente, do fato de a República Federativa do Brasil constituir-se, por definição maior – artigo 1.º – em Estado Democrático de Direito (caput) e que tem por fundamento, ao lado da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, do pluralismo político, os valores sociais do trabalho e, também, da livre iniciativa. Não obstante, a Constituição é um grande sistema e, assim, no trato das diversas matérias merecedoras da estatura constitucional, teve-se presente o alicerce maior, ou seja, a base revelada pela escolha política e que distingue a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito, para não fugirmos a letra expressa da Lei Máxima. [...] A Lei n. 8.039/90 preserva a livre iniciativa tão cara aos Estados Democráticos? 67 A resposta é, para mim, desenganadamente negativa. Assim o é porque no campo econômico prevalece como regra a liberdade de mercado, fator indispensável à preservação da livre iniciativa, repetida em vários dispositivos da Constituição, inclusive nos referentes ao ensino. A exceção corre à conta das hipóteses em que configurado abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros – artigo 173, § 4.º, quando, então, a repressão se impõe. Contudo, a Lei n. 8.039/90 não versa sobre tais defeitos. Com abrangência ímpar e inafastável, introduz critérios de reajuste das mensalidades, jungindoos inteiramente, seja qual for a prática adotada por esta ou aquela escola, ao percentual mínimo mensal dos salários em geral, fixado no inciso II do artigo 2.º da Lei n. 8.030, de 13 de abril de 1990. Com isto, deixa de estimular a educação, conflitando com o artigo 205 aludido. Inibe a iniciativa privada no que introduz desequilíbrio nas relações jurídicas mantidas entre alunos ou pais de alunos e as escolas, forçando a fuga destas últimas do campo no qual vêm atuando, discrepando, assim, da previsão do artigo 209 antes referido. Interfere na livre concorrência dos estabelecimentos de ensino, distanciando-se, assim, do mandamento constitucional pertinente – inciso IV do artigo 170. Introduz mecanismo de preços que coloca em plano secundário a liberdade de mercado, acabando por forçar os prestadores de serviços a aceitá-lo, ainda que em prejuízo até mesmo da qualidade de ensino e do empreendimento econômico, ante o evidente achatamento das mensalidades, como quebra, inclusive, da natureza sinalagmática dos contratos firmados, compreendida nesta a comutatividade. A não ser isto, a única alternativa é o abandono das atividades. Pergunta-se: estará o ensino público em condições de fornecer atendimento educacional na hipótese? Senhor Presidente, nos incisos do artigo 209 da Constituição inexiste previsão que dê respaldo à Lei em julgamento. As normas nesta contidas não são normas gerais da educação nacional, nem, muito menos, consubstanciam autorização à iniciativa privada para que atue no ramo do ensino ou uma forma de avaliar-se a qualidade do que já vem sendo ministrado. Por outro lado, fica afastada a possibilidade de cogitar-se de abuso do poder econômico, por sinal de difícil configuração na espécie, porquanto não coabita o mesmo teto da existência do sistema gratuito preconizado e imposto pela Carta quando dispõe ser a educação dever do Estado. Ao contrário, implica intervenção indevida no mercado, em detrimento de valores consagrados e que dizem respeito à propriedade. Conflita com princípios básicos permanentes e que não podem ser postergados em prol desta ou daquela política reinantes. Aliás, quanto a esta, sugere nítida dissonância em relação ao preconizado pelo próprio Governo Federal – a liberdade de mercado, expungidos os abusos. Por isso, sem mesmo entrar no campo das conseqüências econômicofinanceiras da Lei em comento, peço vênia ao nobre Ministro Relator para dele dissentir, concluindo, portanto, pela inconstitucionalidade do artigo 1.º da Lei n. 8.039/90. Como apontado no voto acima transcrito os citados incisos do artigo 170 da Constituição Federal, por se aplicarem, conjuntamente, com os demais incisos voltados a questões sociais, inibem o controle de preços, pois o intervencionismo de tão 68 violento acabaria com a livre concorrência, subtraindo lentamente, a propriedade privada e encarcerando a livre iniciativa com o controle estatal de preços. Como os diversos incisos do artigo 170 da Constituição Federal são de mesma hierarquia, devem ser aplicados ao sistema jurídico e as normas infraconstitucionais conjuntamente e com o mesmo peso de modo que a norma que vise atender um dos princípios seja freada pela aplicação dos demais. Por exemplo, uma. norma que vise a proteção do consumidor (inciso V) não pode ferir a livre concorrência material (inviso IV) e demais princípios do artigo 170. Idealmente além de não violar os demais princípios do artigo 170 a norma que vise declaradamente atingir o objetivo de um deles deve buscar fazê- lo através dos demais princípios. No exemplo citado a proteção do consumidor deve se dar através da ampliação e não da redução da livre concorrência. Podemos imaginar ainda como exemplo, o caso dos bancos no Brasil que cobram juros altos para os padrões mundiais, não repassando as reduções das taxas de juros oficiais para os seus correntistas. Uma norma que pretenda atender a proteção do consumidor (art. 170, V) não poderia determinar de maneira obrigatória as taxas de juros bancários, mas deveria fomentar a criação de novos bancos desafiantes. Assim os bancos precisariam cobrar juros menores para conseguir novos clientes, conforme a ampliação da livre concorrência material (art. 170, IV). Na saúde temos como exemplo de aplicação harmônica entre os incisos do artigo 170 a norma legal que criou o caso bem sucedido dos medicamentos genéricos que colocaram produtos sem marca e produtos de marca conhecida em igualdade de condições perante o consumidor. Dada a importância e correlação com o objetivo principal deste trabalho debateremos este caso em capítulo específico. Resta clara, portanto, a incorreção do julgado que é constantemente citado como contraponto à tese de inviabilidade do controle de preços por vedação constitucional que estamos sustentando. Nesse sentido, aliás, são os julgamentos recentes e coerentes com o moderno entendimento da amplitude do artigo 170 e seu papel no desenvolvimento econômico nacional de recursos extraordinários que concedem indenização para a indústria sucroalcooleira, que foi sujeita a controle de preços que de maneira violenta estabeleceu preços abaixo dos custos de produção, de cujo exemplo é o de n. 422.941 de dezembro de 2005 do qual extraímos os seguintes trechos de fundamental importância: 69 06/12/2005 SEGUNDA TURMA RECURSO EXTRAORDINÁRIO 422.941-2 DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO RECORRENTE(S): DESTILARIA ALTO ALEGRE S/A ADVOGADO(A/S): HAMILTON DIAS DE SOUZA E OUTRO(A/S) RECORRIDO(A/S): UNIÃO ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO EMENTA: CONSTITUCIONAL. ECONÔMICO. INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA: REGULAMENTAÇÃO E REGULAÇÃO DE SETORES ECONÔMICOS: NORMAS DE INTERVENÇÃO. LIBERDADE DE INICIATIVA. CF, art. 1.º, IV; art. 170. CF, art. 37, § 6.º. I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art. 1.º, IV; art. 170. (...) Voto do relator Sr. Ministro CARLOS VELLOSO . De fato, o texto constitucional de 1988 é claro ao autorizar a intervenção estatal na economia, por meio da regula mentação e da regulação de setores econômicos. Entretanto, o exercício de tal prerrogativa deve se ajustar aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica, nos termos do art. 170 da Constituição. Assim, a faculdade atribuída ao Estado de criar normas de intervenção estatal na economia (Direito Regulamentar Econômico, na lição de Bernard Chenot e Alberto Venâncio Filho, Droit public économique, Dictionnaire des Sciences Économiques, 1958, pp. 420-423 e A intervenção do Estado no domínio econômico. O direito econômico no Brasil, 1968, respectivamente) não autoriza a violação ao princípio da livre-iniciativa, fundamento da República (art. 1.º) e da Ordem Econômica (art. 170, caput). No caso, a fixação de preços a serem praticados pela Recorrente, por parte do Estado, em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor constitui-se em sério empecilho ao livre exercício da atividade econômica, em desrespeito ao princípio da liberdade de iniciativa. Ademais, o estabelecimento de regras bem definidas de intervenção estatal na economia e sua observância são fundamentais para o amadurecimento das instituições e do mercado brasileiros, proporcionando a necessária estabilidade econômica que conduz ao desenvolvimento nacional. No caso, o Estado, entendendo por bem fixar os preços do setor, elaborou legislação em que estabelecia parâmetros para a definição daqueles. Celebrou contrato com Instituição privada, para que essa fizesse levantamentos que funcionariam como embasamento para a fixação dos preços, nos termos da lei. Mesmo assim, fixava-os em valores inferiores. Essa conduta, se capaz de gerar danos patrimoniais ao agente econômico, no caso, a Recorrente, por si só, acarreta inegável dever de indenizar (art. 37, § 6.º). O dever de indenizar, por parte do Estado, no caso, decorre do dano causado e independe do fato de ter havido ou não desobediência à lei específica. A intervenção estatal na economia encontra limites no princípio constitucional da liberdade de iniciativa, e o dever de 70 indenizar (responsabilidade objetiva do Estado) é decorrente da existência do dano atribuível à atuação do Estado. (...) No caso, o acórdão recorrido ignorou os prejuízos causados à recorrida pelo poder público, prejuízos apurados na instância ordinária, inclusive mediante perícia. Ignorou, olimpicamente, os prejuízos, ao curioso argumento de que assiste ao Estado o poder discricionário “na adequação das necessidades públicas ao contexto econômico estatal”. É dizer, com base nessa discricionariedade inadmissível num Estado de Direito, é possível ao Estado, ao intervir no domínio econômico, desrespeitar liberdades públicas e causar prejuízos aos particulares, impunemente. Esclareça-se, ao cabo quase em termos de repetição que não se trata, no caso, de submeter o interesse público ao interesse particular da Recorrente. A ausência de regras claras quanto à política econômica estatal, ou, no caso, a desobediência aos próprios termos da política econômica estatal desenvolvida, gerando danos patrimoniais aos agentes econômicos envolvidos, são fatores que acarretam insegurança e instabilidade, desfavoráveis à coletividade e, em última análise, ao próprio consumidor. Voto de vista do Senhor. Ministro JOAQUIM BARBOSA O tabelamento de preços de venda para o setor sucroalcooleiro, estabelecido pelo governo federal com o objetivo de diminuir as diferenças regionais e controlar o mercado, não reservava ao particular nenhuma outra opção senão a de se adequar às normas impostas e comercializar seus produtos com os preços determinados pelo Estado. Contudo, o controle de preços é forma de intervenção do Estado na economia e somente pode ser considerado lícito se praticado em caráter de excepcionalidade, uma vez que a atuação do Estado está limitada pelos princípios da liberdade de iniciativa e de concorrência (art. 170, caput e IV, da Constituição de 1988, e art. 157, I e V, da Constituição de 1967/1969). Não pode o governo suprimir integralmente a liberdade de concorrência e de iniciativa dos particulares sem que haja razoabilidade nessa medida, vale dizer, sem que ela decorra de uma situação de anormalidade econômica tal que seja imprescindível impor restrição tão radical e, por fim, desde que os preços fixados não sejam inferiores aos custos de produção. Luis Roberto Barroso, com precisão, evidencia que “impor ao empresário a venda com prejuízo configura confisco, constitui privação de propriedade sem devido processo legal (art. 5.º, LIV). E mais: é da essência do sistema capitalista a obtenção do lucro. O preço de um bem deve cobrir o seu custo de produção, as necessidades de reinvestimento e a margem de lucro”. BARROSO, Luis Roberto. A crise econômica e o direito constitucional. Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Distrito Federal, n. 12, p. 34-74, out./dez. 1993. Como discorrido, a aplicação dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal não inibe a incidência do artigo 170 da Carta para a iniciativa privada, devendo haver a aplicação integrada desses artigos na criação de leis relativas à iniciativa privada 71 em ações e serviços de saúde e em sua aplicação, o que não ocorre com os controles de preços. Dito e demonstrado, portanto, que qualquer controle de preços é inconstitucional, por afronta ao artigo 170 da Constituição Federal, poderíamos encerrar este trabalho afirmando que as normas de substituição ao mercado com a fixação de preços, notadamente o controle de preços de medicamentos e o controle de preços e planos individuais de saúde, são inconstitucionais. Contudo, para além dessa inconstitucionalidade flagrante, temos outros aspectos a analisar do ponto de vista da própria utilidade das citadas normas no alcance da meta constitucional, ou seja, qual a resposta para a pergunta: Estas normas tendem à ampliação do acesso à população às ações e serviços de saúde? A questão não tem importância puramente econômica, pois, como já demonstramos os artigos 196 e 197 da Constituição Federal determinam que as leis e sua aplicação, pelo menos, tendam à ampliação do acesso da população às ações e serviços de saúde. Sendo assim, como vimos dizendo devemos avaliar, o que faremos mais adiante, se o controle de preços pode ou não colaborar com este objetivo do ponto de vista da ciência econômica para avaliar a constitucionalidade das normas jurídicas. Uma resposta negativa a esta avaliação encerrará mais uma inconstitucionalidade do citado controle de preços, agora por afronta aos artigos 196 e 197 da Constituição Federal. Dessa forma, para alcançar o tema, além do estudo do Direito, teremos que analisar alguns aspectos econômicos para verificar a forma da regulação imposta pelo Estado brasileiro no tocante às atividades de saúde e sua conveniência em comparação com os resultados gerados pela liberdade de mercado, pois “se o sistema de mercado assegura o uso eficiente dos recursos para a produção de bens de caráter privado, a regulamentação tem como condição necessária a existência de falhas de mercado”68 . É claro, esta regulamentação deve ser eficiente no seu combate. 68 PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 230. 72 5.1. O mercado de produtos e serviços para saúde Qualquer relação de compra e venda envolve os mesmos aspectos básicos: um vendedor, um produto ou serviço, um comprador e um pagamento, cuja representação é o preço. Em uma relação simples entre dois indivíduos, estes negociam até comporem um equilíbrio satisfatório de seus interesses contrapostos, sendo, então, realizado o negócio. Normalmente, teremos mais de um vendedor e mais de um comprador e também mais de um produto ou serviço que podem ser comprados, seja um substituto do outro ou não, de modo que temos uma grande interação entre todas essas variáveis. Dentro de um modelo de pura concorrência, supõe-se sempre ser a quantidade procurada uma função do preço, isto é, os consumidores irão amoldar o seu desejo de obter determinado bem ou serviço ao preço por eles encontrado no mercado69 . O estudo das relações verdadeiras que se estabelecem entre as diversas combinações de tais variáveis é feito por meio de uma abstração que pretende isolar o ambiente em que elas ocorrem, o chamado mercado. O mercado pode ser estudado em suas características globais ou segmentado nos chamados mercados relevantes, que comporão o ambiente em que determinados agentes econômicos interagem entre si. Em geral os mercados relevantes são definidos por produtos passíveis de serem intercambiados 70 . O mercado relevante é o ambiente em que as empresas efetivamente competem entre si pela compra, ou seja, pelo dinheiro de seu consumidor em relação a produtos intercambiáveis. Esse ambiente pode ser segmentado tanto geograficamente quanto em relação ao próprio produto. Para definição geográfica do ambiente importa a verificação da mobilidade dos consumidores para a compra dos produtos em um ou outro território. 69 NUSDEO, Fábio Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 227. “A delimitação material do mercado é feita a partir da perspectiva do consumidor. O mercado relevante abrange todos os produtos ou serviços pelos quais o consumidor poderia trocar, razoavelmente, o produto ou serviço acerca de cuja produção ou distribuição se pesquisa a ocorrência de infração contra a ordem econômica. Se a me rcadoria ou o serviço pode ser perfeitamente substituído, de acordo com a avaliação do consumidor médio, por outros de igual qualidade, oferecidos na mesma localidade ou região, então o mercado relevante compreenderá também todos os outros produtos ou serviços potencialmente substitutos. A definição geográfica e material do mercado relevante, portanto, apenas pode ser feita mediante análise casuística” (COELHO, Fábio Ulhoa. Direito antitruste brasileiro: comentários à Lei n. 8.884/94. São Paulo, Saraiva, 1995, p. 58). 70 73 Dessa forma, temos que apenas produtos intercambiáveis estarão incluídos em um mercado relevante por conta da possibilidade de o consumidor substituir livremente um pelo outro e satisfazer sua necessidade, salientando que podemos ainda incorrer no que Ana Maria Nusdeo 71 chama de concorrência monopolística, que ocorre quando não há realmente um monopólio ou oligopólio. Contudo, na visão do consumidor, há diferenciações entre os produtos que fazem com que um não concorra com o outro em razão da inocorrência da percepção da intercambialidade 72 . Deve ser observado que, embora se estabeleçam critérios para a definição do mercado relevante, sua aplicação – e mesmo o próprio estabelecimento dos critérios – pode levar a diferentes resultados. Ora ampliando excessivamente o mercado em questão, ora restringindo-o. Em geral, sua delimitação mais ampla tende a descaracterizar a exigência de poder de mercado, pois mais produtos serão tidos como sucedâneos. Ao contrário, sua delimitação muito estreita implicará a identificação de um poder de mercado possivelmente superestimado. A insistência de critérios únicos de definição do mercado relevante e sua influência na análise da existência de poder de mercado propicia uma margem de discussão sobre suas fronteiras pelas partes envolvidas numa operação sob exame de autoridades antitruste e, mesmo, a divergência da doutrina com rela ção aos critérios mais acertados para a definição do mercado relevante. Nesse último caso, freqüentemente, a discussão tende a um caráter ideológico. Assim, aqueles adeptos de uma política antitruste mais severa, confiantes na necessidade de prevenir a concentração de poder de mercado, tenderão a defender critérios de definição do mercado relevante mais restritivos. O contrário se passará com os defensores de uma maior 71 NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da concentração de empresas. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 35. 72 “Podemos distinguir duas fontes de diferenciação de produto: real e informacional. A primeira, relativamente menos importante para a determinação de barreiras à entrada, consiste na diferença de atributos físicos ou locacionados entre o produto de uma firma estabelecida e os produtos da firma entrante. Uma empresa já reconhecida no mercado pode apresentar um produto que atenta com maior acuidade aos elementos demandados pelos consumidores, de tal modo que estes possam aceitar pagar um preço superior àquele que seria obtido pelo produto das firmas entrantes. Diferenciação do produto real é especialmente relevante na concorrência entre marcas conhecidas dos consumidores, não sendo característica tão importante na concorrência entre uma firma estabelecida e os concorrentes potenciais entrantes. Não havendo segredos industriais, patentes para a exploração do produto ou propriedade de ativos exclusivos, as firmas entrantes poderão produzir produtos idênticos aos da firma estabelecida. Mais relevante para o estabelecimento de barreiras à entrada é a diferenciação de produtos de caráter informal. Os produtos de uma firma estabelecida podem ser preferidos por dois motivos. De um lado, o acúmulo de esforços de propaganda e marketing tornam uma marca conhecida, o que informa ao consumidor sobre as características do produto. Em igualdade de condições, o consumidor irá preferir o produto do qual ele tem informações (isto é, o produto da firma já estabelecida), o que caracteriza uma barreira à entrada. De outro lado, o consumo continuado do produto já estabelecido, mesmo sem esforços de propaganda e marketing, estabelece reputação sobre suas características. Essa reputação pode garantir a fidelidade do consumidor, o que corresponde, mais uma vez, a uma barreira de entrada” PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marcos A. S. (Org.). Manual de economia. p. 211. 74 margem de liberdade econômica, que acreditam na possibilidade de concorrência mesmo em cenários de maior concentração econômica73 . Nos mercados relevantes, as empresas concorrem entre si pela preferência do consumidor, pelo produto ou serviço específico oferecido por elas, buscando uma situação de conforto onde não sofram ataques de outras empresas para deslocar esse consumidor74 . Na visão liberal clássica, o mercado teria condições de se auto-regular, gerando um ótimo aproveitamento dos bens econômicos por meio da competição de seus participantes. Na concorrência perfeita, o preço surge natural e objetivamente da interação recíproca dos inúmeros agentes em presença. Funciona soberano, sem ressalvas à lei da oferta e da procura, e tanto consumidores como compradores pautam suas decisões única e exclusivamente pelas suas utilidades em cotejo com o preço objetivamente fixado pelo mercado, que é único para todos eles. Dizse que nele o consumidor é rei, já que todo o aparato produtivo se expandirá ou se contrairá em função do que ele, consumidor, decidir (princípio da soberania do consumidor). Os produtores tenderão a oferecer o máximo de quantidade compatível com os seus custos. Irão, portanto, até o ponto em que o preço iguale o seu custo marginal, deixando de oferecer os bens quando por excesso de oferta o preço de mercado cair abaixo do custo marginal75 . Contudo, a existência de tais mercados não passa de uma abstração, na medida em que as condições para sua existência não estão presentes, exceto em ocasiões muito raras e efêmeras 76 , quais sejam: 73 NUSDEO, Ana Maria O. Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da concentração de empresas. p. 30 e 31. 74 “A concorrência deve ser entendida como a luta entre as firmas pelo estabelecimento de poder de mercado; é o processo de ‘enfrentamento’ das firmas como representantes dos diversos capitais individuais, isto é, como unidades de valorização e expansão do capital global. Alimentada pelo progresso técnico, a concorrência é um processo de criação constante, embora descontínuo, de assimetrias entre as firmas. O mercado é onde a concorrência acontece, onde esta atua como portadora de inovações e de mudanças qualitativas responsáveis pela seleção de agentes aptos ao processo. A firma opera sempre na tentativa de concentrar o mercado a seu favor, como se a situação de monopólio fosse seu objetivo no processo de concorrência (POSSAS, 1996)” (SENHORAS, Elói Martins, Defesa da concorrência: políticas e perspectivas . Caderno de Pesquisas em Administração, v. 10, n. 1, jan.mar. 2003). 75 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 264. 76 “Uma presunção básica para a funcionalidade dos mercados sempre foi a de serem os fatores de produção dotados de razoável mobilidade, a fim de poderem reagir aos sinais indicativos, representados pelos preços, os quais promoveriam em curto tempo os deslocamentos necessários a fim de se reverterem automaticamente certas situações indesejáveis. A essa capacidade de autocorreção do mercado chamou-se de automatismo. E o nome é bom, porque os empresários-produtores eram vistos como autômatos, para, guiados pelo seu hedonismo, poderem responder rápido e fielmente às decisões soberanas do consumidor-rei, via impulsos do sistema de preços. Tal agilidade, entretanto, na prática não ocorre. 75 (i) tamanho e número de produtores e consumidores, que estes sejam incapazes de individualmente afetar a conduta dos demais concorrentes (inexistência de poder de mercado); (ii) homogeneidade dos produtos, ou seja, os consumidores trocam livremente um produto pelo outro, apenas por influência do preço; (iii) acesso pleno as informações, tanto por parte de consumidores quanto de fornecedores, de modo que todos conheçam os produtos, os níveis de consumo e preços praticados no mercado; (iv) mobilidade total dos fatores de produção e agentes do mercado (inexistência de barreiras para entrada e saída), ou seja, qualquer agente econômico pode assumir qualquer posição neste mercado; (v) inexistência de economias de escala de produção, o que, em nossa opinião, está incluído na mobilidade total, na medida em que a necessidade de um investimento ou alcance de uma escala de produção obviamente será uma barreira; (vi) inexistência de externalidades. Posteriormente o conceito será mais bem explorado, mas por agora podemos tê- lo como malefícios ou benefícios não refletidos no preço do produto. Um instrumento importante para a análise do comportamento dos agentes econômicos nos mercados relevantes é a Teoria dos Jogos 77 . Os matemáticos sempre Existe, isto sim, uma rigidez mais ou menos pronunciada em quase todos os fatores, impedindo-lhes esses deslocamentos céleres automáticos e oportunos. Rigidez de toda ordem: física, operacional, institucional, psicológica” (NUSDEO, Fabio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 139 e 140). 77 “Os jogos, que são objeto de análise econômica, por constituírem método de investigação científica, têm conotação específica e tratamento formal, que é fornecido pela teoria dos jogos. Esta tem como objetivo a análise de problemas por meio da interação entre os agentes, na qual as decisões de um indivíduo, firma ou governo afetam as decisões dos demais agentes ou jogadores ou vice-versa. A teoria dos jogos, definida como estudo das decisões em situação interativa, não se restringe à Economia, sendo também bastante utilizada em Ciência Política, Sociologia, estratégia militar, entre outras. Dentro da Economia, ou da Microeconômica, a teoria dos jogos procura analisar o processo de tomada de decisão em situação um pouco diferente da preconizada pela concorrência perfeita. Do mesmo modo que a concorrência perfeita, parte-se do pressuposto que os agentes tomam decisões intencionalmente, ou seja, procurando atingir um objetivo, e racionalmente – as ações tomadas são consistentes com a busca do objetivo. Além disso, na teoria dos jogos, assim como na Microeconômica clássica, pressupõe-se comportamento maximizador, ou seja, o agente toma as decisões procurando ‘maximizar’ seus objetivos, buscando o máximo lucro, a máxima satisfação, entre outros. O que diferencia a teoria dos jogos é o ambiente no qual essas decisões (intencionais, racionais e maximizadoras) são tomadas. Na microeconômica tradicional, o agente decide com base em um conjunto de informações, num ambiente dito paramétrico, ou seja, ambiente em que o resultado depende apenas da sua decisão, não importando as ações dos demais agentes. Já em teoria dos jogos, trabalha-se com o chamado ambiente estratégico, no qual o resultado de determinada ação depende não apenas dela, mas também das ações 76 estudaram os jogos do ponto de vista da análise das variáveis possíveis e prováveis, de modo que com o avanço dos estudos de lógica e probabilidades foi-se desenvolvendo a Teoria dos Jogos, que teve sua aplicação em economia estudada já na primeira metade do século XIX, quando Augustin Cournot analisou a questão da interdependência nas situações de duopólio. Diversos outros trabalhos influenciaram a Teoria dos Jogos, como por exemplo quando o matemático alemão Zermelo provou o teorema de que nos jogos nãocooperativos de duas pessoas, com ações seqüenciais e informação completa, é possível determinar todas as jogadas. O mesmo ocorreu em 1944 no Livro Teoria dos Jogos e Comportamento Econômico, pelo matemático Jonh von Neuman e o economista Oskar Morgenstein. Porém, uma contribuição que pode ser considerada decisiva foi dada nos anos 1950 por John Nash, ante a descoberta do chamado equilíbrio de Nash (também chamado equilíbrio de Nash-Cournot), segundo o qual em jogos não-cooperativos é possível uma solução estável (que não leva ao arrependimento dos jogadores) quando os jogadores fizerem opções que lhes garantam uma situação favorável por força da opção dos demais, ou seja, ainda que não seja a opção ótima, que poderia ser impedida pelas opções dos outros jogadores, vale notar que pelo jogo de variáveis é possível ser alcançada mais de uma solução estável, de modo que a análise dependerá de refinamentos relativos às percepções e preferências dos jogadores. Os jogadores são agentes econômicos que tomam decisões. São consumidores buscando maximizar sua satisfação, firmas que procuram maximizar seu lucro ou aumentar sua fatia no mercado, investidores que devem decidir entre tomar ou não um empréstimo, bancos que têm de decidir se concedem ou não empréstimos, ou mesmo o governo que tem de tomar a decisão de implementar determinada medida econômica. Esses jogadores são, a princ ípio, considerados racionais e têm preferências em relação aos resultados do jogo. Na tomada de decisão, eles procuram maximizar suas preferências78 . É interessante observar a contribuição dessa análise ao debate relativo à eficácia das agências regulatórias independentes, que são criadas com o objetivo de aumentar a eficácia do jogador Governo ao aumentar a sua agilidade na resposta aos movimentos dos demais jogadores – agentes econômicos, que tomarão decisões em relação aos movimentos governamentais sejam legislativos, executivos ou judiciários. dos outros tomadores de decisão (PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org). Manual de economia. p. 244 e 245). 78 Idem, ibidem, p. 247. 77 Nesse aspecto específico, fazemos uma pequena digressão para cruzar com tais observações outra teoria que nos parece também de grande utilidade, especialmente no tocante à necessidade da velocidade de regulação estatal: trata-se da Teoria dos Sistemas de Nik las Luhmann. A Teoria dos Sistemas parte da análise da comunicação compartilhada para o exercício de uma determinada função na sociedade moderna, portanto jogos de informação aberta. Os diversos tipos de comunicação são definidos pelos códigos utilizados nessas mesmas comunicações, que conformam sistemas com funcionamento interno auto-referencial que os diferencia do ambiente no qual se encontram. Assim, temos diversos sistemas no ambiente da sociedade moderna: sistema político, sistema jurídico e sistema econômico, apenas para citar os que nos interessam no momento. Tais sistemas são operativamente fechados, pois o pressuposto de uma comunicação sempre será outra comunicação (autopoiese). Contudo, são cognitivamente abertos, já que estão sujeitos a “irritação” pelos outros sistemas (para o qual são meramente o ambiente), ou seja, traduzem e processam comunicações vindas de outros sistemas. As informações recebidas de um sistema pelo outro são selecionadas e processadas de acordo com os rituais e regras do sistema receptor. Tal comunicação dáse por meio dos chamados acoplamentos estruturais. Assim, para Luhmann o sistema jurídico está acoplado estruturalmente ao sistema econômico, por meio dos contratos e da propriedade, e ao sistema político por meio da Constituição, por razões e formas que adiante veremos. Na sociedade moderna a enorme possibilidade de escolhas gera uma alta complexidade, pois após uma escolha sempre surgirá seu desdobramento em diversas escolhas decorrentes e assim por diante. Surge então o Direito, que tem como uma de suas funções restringir o número de escolhas possíveis, por meio do código lícito e ilícito. O Direito alcança este resultado com a aplicação de modais deônticos que banem da possibilidade das condutas lícitas aquelas que se quer evitar, dando ao sujeito de direitos e obrigações menos opções de escolhas válidas reconhecidas pelo sistema. Dessa forma, o Direito alcança uma generalização congruente das expectativas normativas, já que todos “sabem a regra do jogo”, todos sabem quais são as comunicações possíveis no sistema, posto que o Direito garante que as comunicações 78 vedadas, os atos ilícitos, serão objeto de uma decisão previamente programada pelo próprio sistema por meio de um “gatilho” bicondicional79 . Os acoplamentos estruturais decorrem da prestação que um sistema entrega para o outro e das interferências que um sistema gera no outro por conta dessa prestação. Existe um duplo intercâmbio de prestações entre o sistema jurídico e o sistema político. O sistema político, por meio do Congresso, cria as normas jurídicas e dessa maneira define as expectativas normativas que servirão para o sistema jurídico aplicar o código lícito e ilícito, de onde se nota que o sistema político se utiliza de um outro código também binário, qual seja o de governo/oposição, ou o de maioria/minoria. Por isso é que o acoplamento estrutural entre os sistemas dá-se através da Constituição, porque lá é que se encontra o ritual por meio do qual o sistema jurídico recebe comunicações do sistema político, conforme ficou claro no início deste trabalho, quando apresentamos a evolução do nosso tema nas Constituições Federais brasileiras. É lá que está o processo legislativo. Por um lado, o Direito reforça as premissas normativas recebidas do sistema político pela sua aplicação repetitiva e, por outro, alivia o sistema político do fardo do uso da violência, interrompendo um ciclo do uso da violência. O sistema político é aquele que, na criação do Estado, recebe dos cidadãos o monopólio do uso da força. Os cidadãos abdicam de resolver suas disputas pelas próprias mãos e subordinam-se a um poder superior, seja autoritário seja democrático, que resolverá as questões e implementará com o uso da força a solução. Uma vez que o Direito surge como um sistema que se responsabiliza pelas decisões quanto à aplicação ou não da força, por meio de processos pré-definidos com uma série de garantias, com resultados pré-programados, afasta do sistema político as eventuais cargas da insatisfação geradas por elas. Por outro lado, o sistema político garante a implementação das decisões judiciais através do uso da força, conforme definido pelo sistema jurídico. 79 Parece-nos que o Direito trabalha com o bicondicional e não apenas o condicional, já que apenas se a hipótese ocorrer o conseqüente será legítimo, muito embora muitos bicondicionais diferentes possam apontar para a mesma conseqüência (p. ex., muitos tipos de infração diferentes podem acarretar a aplicação de uma multa), mas apenas se um deles efetivamente ocorrer o conseqüente ocorrerá (a multa só será aplicada se pelo menos uma das infrações for cometida). 79 É importante observar que o sistema político gera decisões voltadas para o futuro, por meio de uma perspectiva teleológica, e o sistema jurídico, por sua vez, gera decisões previamente programadas, de uma perspectiva condicional, sempre em um ciclo de comunicação, por meio do acoplamento estrutural entre os dois sistemas. Na regulamentação de mercado realizada pelo Poder Executivo com a faculdade para o órgão regulador de criar normas jurídicas, o perigo é a reunião do poder político com o poder jurídico, já que os cargos nas agências regulatórias, apesar de terem a garantia de independência, têm indicação política, de modo que o sistema jurídico pode perder a função de conter e legitimar o poder político, o que deve ser verificado em cada caso, de acordo com o processo de decisão e competências de cada agência reguladora. Já para o sistema econômico, que funciona segundo o código de tem/não tem, o sistema jurídico entrega a prestação de garantir o respeito à propriedade, já que este conceito é meramente jurídico e cultural, pois não existe vinculação de fato entre as pessoas e as coisas, existindo apenas uma vinculação jurídica, respeitada pelos demais indivíduos, bem como a prestação de garantir que os contratos serão respeitados, sob pena de serem objeto de uma decisão judicial, que será aplicada pelo sistema político. Assim, está muito presente a função do Direito de garantir as expectativas dos agentes econômicos, gerando a base de segurança sem a qual os negócios não se desenvolveriam. No caso da regulação econômica, podemos supor que o sistema jurídico também tem a incumbência de garantir o saneamento do mercado para que o sistema econômico possa funcionar adequadamente o mais próximo possível da concorrência perfeita. Contudo, os sistemas jurídico e econômico têm grandes diferenças, não só de código, mas especialmente de tempo. O tempo interno do sistema jurídico é muitas vezes mais lento do que o sistema econômico, o que gera grandes assincronias, pois o sistema jurídico é mais hierarquizado, além de ter mais procedimentos formais. Ao passo que o sistema econômico tem menos hierarquia e seus procedimentos são dinâmicos e casuísticos – especialmente se verificarmos a situação brasileira, em que temos um processo legislativo (ritual do sistema jurídico que traduz as comunicações do sistema político) extremamente lento e incapaz de responder em tempo eficaz aos anseios sociais e movimentos dos agentes econômicos. 80 Surge aqui o cerne da dificuldade na atividade de regulamentação econômica, uma vez que o órgão regulador é criado pelo Direito e este dita seus procedimentos, cria normas jurídicas (ainda que infralegais), que no caso das agências regulatórias têm por finalidade a implementação de uma política pública e interferem grandemente no sistema econômico. O desafio regulatório é criar e atualizar normas jurídicas com a agilidade necessária para acompanhar as mudanças no sistema econômico, evitando sua obsolescência, que pode gerar tanto sua ineficácia, quanto o engessamento prejudicial ao sistema econômico, tudo is so sem afetar a segurança jurídica que é justamente a prestação do sistema jurídico. Simultaneamente, é preciso conciliar o sistema político, que impõe as políticas públicas que se pretende alcançar, com o sistema econômico, que por sua maior velocidade e flexibilidade se adapta rapidamente às novas normas e diretrizes, causando muitas vezes distorções que geram o aproveitamento predatório das novas condições, minando a própria política pública que se pretendeu implementar. Sob o enfoque da Teoria dos Jogos, temos que o jogador/agente econômico se adapta rapidamente à jogada do jogador/governo, que demora demais para responder a essa adaptação. Na visão de Luhmann, tal nível de interferência entre os sistemas seria inconciliável. Contudo, a atual proposta para solução de todas essas incongruências é a criação das agências regulatórias independentes, nas quais (i) existe mandato fixo para os dirigentes e orçamento próprio para minorar os efeitos danosos da influência política e (ii) é conferida uma maior autonomia legislativa para os dirigentes dessas agências, imprimindo-lhes agilidade suficiente para acompanhar o tempo do sistema econômico. Veremos mais adiante como se pode tentar manter um nível razoável de separação entre os sistemas mesmo com tais problemas. A Teoria dos Jogos também trata de comunicação, já que um jogo também deve definir que tipo de informações está disponível para os jogadores. Em outras palavras, deve-se ter respostas para perguntas do tipo “o que o jogador sabe?” ou “ele sabe sobre as preferências dos outros jogadores, sobre as ações permitidas aos outros jogadores, sobre os resultados a serem alcançados?”. Chamamse jogos de informação completa aqueles nos quais os jogadores possuem todas as informações necessárias para a tomada de decisão. Esses são os mais conhecidos e mais facilmente analisados. Quando 81 parte das informações não está disponível, temos um jogo de informação incompleto 80 . Dessa forma, será fundamental descobrir como transita a informação nos jogos que se realizam no sistema econômico. Podemos ter jogos de informação perfeita (ou seqüências) e os jogos de informação imperfeita (ou simultâneos). Nos jogos em que a jogada é simultânea, como o “par ou ímpar”, a informação é imperfeita, já que um jogador não sabe o que outro vai fazer. Nos jogos cujas ações ocorrem em seqüência, como o xadrez, a inf ormação é perfeita, pois o outro jogador sabe o que o outro fez antes de fazer sua ação81 . No jogo de mercado é possível observar que estamos diante de um jogo seqüencial, no qual cada jogador faz um movimento de mercado e os demais agem em resposta a ele, o que é facilmente perceptível, por exemplo, em pregões de bolsa. Os agentes econômicos dentro do jogo adotarão condutas buscando maximizar os seus resultados, podendo tais condutas ser chamadas de estratégias82 , classificadas pela Teoria dos Jogos na tentativa de prever os movimentos futuros dos jogadores. 80 PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 248 e 249. Idem, ibidem, p. 248 e 249. 82 “Uma estratégia é chamada de dominante em relação a outra quando os resultados obtidos com sua utilização são melhores em relação aos resultados obtidos com outra estratégia, qualquer que seja a atuação dos demais jogadores. Essa estratégia é, assim, melhor que as outras e pressupõe-se que é a que deverá ser escolhida pelo jogador. Outra forma de escolher a estratégia, quando não existe estratégia dominante, é o chamado maxmin. Nesse caso, o jogador procura maximizar o mínimo que ele pode assegurar para si, independentemente das estratégias dos outros jogadores. A estratégia maxmin é a que garante ganho mínimo para o jogador. A idéia aqui é a seguinte: não sei o que fazer, farei aquilo que me der “o menos pior” dos piores resultados possíveis. O conceito de equilíbrio (ou solução) de Nash é também conhecido como o do não arrependimento. A combinação de estratégias escolhidas leva a um resultado no qual nenhum dos jogadores individualmente se arrepende, ou seja, esse jogador não poderia melhorar a sua situação unilateralmente modificando a estratégia escolhida. Numa situação em que se utiliza o conceito de Nash, um jogador escolhe a melhor estratégia, dada a escolha do outro. Teoricamente, a maior parte dos jogos que são modelados pela teoria econômica, como os exemplos citados até aqui, são definidos como jogos não-cooperativos, nos quais cada agente econômico busca maximizar seu payoff efetivando ações sem se preocupar com o bem-estar do seu oponente ou o estabelecimento de acordos. Não se pode concluir, no entanto, que o mundo real seja não-cooperativo. Existem inúmeras situações cooperativas na sociedade. A criação de associações, de sindicatos e cooperativas são exemplos de cooperação entre os agentes. Tais situações são consideradas, pela teoria dos jogos, como jogos cooperativos, cuja sofisticação matemática e complexidade dos conceitos escapam dos objetivos de um livro introdutório. Os jogos não-cooperativos, no entanto, ainda são os mais utilizados nos livros-textos e cursos, em vista da facilidade com que são aplicados a inúmeras situações estudadas pela Economia. Outra questão importante diz respeito ao número de vezes que o jogo é realizado. A repetição de um jogo pode dar início a um processo de aprendizagem acerca das estratégias dos jogadores, levando a resultados diferentes caso fosse realizado apenas uma única vez. Imagine sucessivas repetições do jogo dilema dos prisioneiros. Nesse caso é difícil imaginar que sempre o resultado será os dois confessarem. Enfim, são inúmeras as possibilidades na teoria dos jogos, o que talvez explique a crescente popularidade que ela vem alcançando dentro da teoria econômica” (PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 256). 81 82 No sistema econômico partimos da premissa de que os jogadores não cooperam mas competem entre si. As situações em que há cooperação entre os jogadores poderão ser classificadas como práticas cartelizadas, sempre que intentarem o abuso de posição dominante (individual ou obtida pelos cooperativos) e prejudicarem a livre concorrência. Com base na Teoria dos Jogos, fica cristalino o conceito de poder de mercado, que pode se expressar sinteticamente como o potencial de influenciar o comportamento dos demais agentes econômicos em um dado mercado relevante, ou seja, um jogador pode ter o poder de dominar o jogo, sem que os demais possam se contrapor a esse domínio, quaisquer que sejam as suas estratégias. O sentido de dominação ou poder de mercado expressa, em síntese, a capacidade de uma empresa ou grupo de empresas de aumentar os preços dos seus produtos acima do custo marginal, sem perder clientes, i.e., agindo por razoável período de tempo independentemente dos concorrentes e dos consumidores. A dominação de mercado pode também ser expressa, embora com menos freqüência, mediante prática temporária de preços predatórios, i.e., abaixo do custo marginal. O complexo teste jurídico-econômico da dominação exige uma análise estrutural do mercado adequadamente definido, no qual os concorrentes atuam. Ponto de partida dessa análise é a identificação do mercado relevante e da participação de mercado, embora o percentual de market share não seja um dado bastante em si para denotar dominação. É necessário, por exemplo, verificar a existência de substitutos próximos para um produto, processo ou obra objeto da ou relacionado com o Direito de propriedade 83 . Partimos então para a análise das falhas de concorrência presentes no mercado de saúde como um todo para depois tratarmos especificamente dos medicamentos e dos planos e seguros saúde, posto que cada um tem as peculiaridades próprias de seus mercados relevantes, embora com semelhanças, pois no que tange à saúde sempre teremos fatores que geram o poder de mercado, como a concentração de mercados relevantes, estimulada pela existência de grandes barreiras à entrada de novos concorrentes, e outros que agravam o problema econômico do acesso da população, como a (i) assimetria de informações, (ii) os problemas de agência e (iii) a inelasticidade da procura por se tratarem de bens essenciais – que também traz em si um problema social, como já tratamos. 83 FONSECA, Antonio, Concorrência e propriedade intelectual, p. 13. 83 5.1.1. Concentração em mercado relevante Provavelmente o fator mais relevante para a alta de preços de qualquer produto e, portanto, de maiores prejuízos para os compradores, consumidores finais e, no caso de saúde para a população, é a alta concentração dos fornecedores que por falta de competidores exploram o mercado obtendo lucros abusivos. A concentração em um mercado relevante pode ocorrer como decorrência: (i) da competição, na qual os agentes econômicos obtêm parcelas maiores de mercado por seus méritos; (ii) de um monopólio estabelecido pelo sistema jurídico; (iii) de um monopólio natural, no qual as condições fáticas da exploração de dada atividade econômica são tais que pode existir apenas um agente explorando a atividade; (iv) da incorporação de concorrentes ou qualquer outra forma de agrupamento de empresas; ou (v) da obtenção de controle de um agente sobre outros, de modo que gere um poder de mercado em favor de um concorrente individual ou coletivamente considerado. Em resumo, a concentração econômica representa uma folha de estrutura a inibir os mecanismos decisórios e controladores do mercado. Em um mercado concentrado, a alta de preços proveniente de um aumento da procura não necessariamente levará a um aumento da oferta, pelo simples fato de ser mais fácil para as poucas unidades nele atuantes conluiarem-se e elevarem mais os preços. Por outro lado, estes poderão também subir, por iniciativas dos vendedores conluiados, sem qualquer relação com uma possível elevação da procura84 . A concentração de fornecedores em um mercado relevante pode levar a duas situações conforme o nível de concentração – o monopólio e o oligopólio, cuja diferenciação dá-se apenas quanto às relações entre os que detêm o poder de mercado, sem diferenciação quanto aos efeitos dessa concentração para o mercado, conforme se infere da Resolução do CADE 20, de 9 de junho de 1999, na qual se definiu cartéis como “acordos explícitos ou tácitos entre concorrentes do mesmo mercado, envolvendo parte substancial do mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para níveis mais próximos dos de monopólio”, pelo que as afirmações feitas neste item sobre o monopólio valem igualmente para o oligopólio. 84 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 150. 84 A concentração de mercado relevante faz que os detentores do poder de mercado resultante da concentração possam elevar seus preços com a segurança de não perderem clientela. Conforme aponta a ex-conselheira do CADE Neide Terezinha Malard: 1) o cartel orienta suas condutas tanto no sentido horizontal – fixando preços, dividindo mercados ou promovendo acordos com o objetivo de controlar a inovação de produto, estabelecer prazos de entrega, discriminar preços, uniformizar serviços que podem ser prestados ao consumidor, entre outras práticas; quanto no sentido vertical – fixando preço de aquisição de matérias-primas ou serviços, impondo a venda casada, organizando esquemas de distribuição, dentre outras estratégias; 2) o cartel é um fenômeno coletivo que, embora agindo de forma organizada, com objetivos claros e bem definidos, não se apresenta nem formal, nem materialmente estruturado. Trata-se de organização informal e clandestina, sancionada pelo ordenamento jurídico positivo como conduta criminosa e danosa ao interesse público, repugnada pela sociedade, a maior vítima de suas condutas; [...] 3) entre os participantes do cartel, nem sempre o jogo é aberto, pois iminente a suspeita da não adesão e até de eventual traição. Se o cartel funciona na forma esperada ou acordada por seus organizadores, duas situações devem ocorrer: vende-se menos e os lucros obtidos são os esperados 85 . Porém, é importante notar que a atuação concertada de concorrentes pode-se dar dolosamente na forma apontada, o que será caracterizado como cartel e condenado pela legislação antitruste 86 ou, em mercados com poucos concorrentes de peso, pela acomodação dos concorrentes alcançada ao longo do tempo, pela verificação dos lances seqüenciais entre eles na definição de seus preços, o que não caracteriza ilícito, porém pode trazer os mesmos efeitos indesejáveis, ainda que em menor grau. A situação de concentração também pode ocorrer do ponto de vista do comprador – são os chamados monopsônios e o oligopsônios, situação em que o poder de compra está nas mãos de um ou de poucos agentes econômicos, o que lhes dá o poder de impor preços e condutas aos vendedores. É o que ocorre, por exemplo, no caso dos grandes supermercados, que por serem o único ou o mais importante canal de 85 MALARD, Neide Terezinha. Estudos introdutórios de direito econômico. Brasília : Brasília Jurídica, 1997. p. 65-74. 86 “Para a configuração da infração, é necessário que haja efetivo acordo entre os agentes envolvidos. Não basta apenas o efeito da padronização de preços e condições de negócios. É indispensável que tenha havido realmente algum tipo de entendimento entre os empresários com vistas ao tratamento concertado da questão. Se muitos agentes de certo segmento de mercado praticam preços uniformes ou paritários, mas não estabeleceram acordo de nenhum tipo nesse sentido, inexiste concerto e tampouco infração” (COELHO, Fábio Ulhoa. Direito antitruste brasileiro: comentários a Lei n. 8.884/94. p. 66). 85 escoamento da produção de alimentos e saneantes, impõe seus preços aos fabricantes, especialmente os pequenos fabricantes não detentores de poder de mercado. Finalmente temos a possibilidade de formação de um duopólio, ou seja, existe apenas um fornecedor e um comprador em um mercado relevante. Em tal situação, estes vão se conluiar para conjuntamente explorar o próximo mercado, ou seja, aquele em que o comprador é fornecedor, com melhores resultados para ambos87 . A concentração de mercado não é necessariamente um mal, na medida em que pode aumentar a eficiência da economia ao reduzir os custos de transação (especialmente a concentração vertical) e aumentar o poderio econômico nacional e o ganho de escala de produção; porém também pode levar a situações indesejáveis. No monopólio, o fornecedor poderá impor seu preço aos compradores do produto para maximizar seus lucros, uma vez que o cliente não terá a opção de trocar o fornecedor do produto. Certamente o aumento poderá ser tal que o comprador simplesmente pare de adquirir o produto, situação em que o monopolista enfrentará uma queda em seu faturamento e, portanto, em seu lucro em valores absolutos, o que o levaria a não adotar tal estratégia 88 . Assim, por força de seu poder de mercado, o monopolista sempre poderá optar por reconstituir seus lucros simplesmente aumentando os preços para os consumidores que não perdeu, até o limite em que comece novamente a perder clientes, 87 “Em tese os dois agentes em presença deveriam enfrentar uma situação de absoluto conflito de interesses: o vendedor tentando obter o Máximo de remuneração por um mínimo de produto oferecido; e, vice-versa, o comprador tentando conseguir o Máximo de produto com o mínimo dispêndio. No entanto, esse conflito absoluto, que mais se aproxima de um impasse, acaba por se resolver via um acordo entre o monopolista e o monopsonista no sentido de se associarem, com vistas a ambos desfrutarem da posição de monopólio detida pelo segundo no mercado situado abaixo, isto é, naquele no qual ele, monopolista ou oligopolista Sim, porque, em tese, a situação descrita seria a de um insumo de produção único no mundo, disponível apenas junto a uma única fonte – uma matéria -prima rara, um processo tecnológico especialíssimo –, insumo esse passível de ser utilizado apenas por uma unidade produtora. Se esta for a situação, parece claro que esta ultima será por uma vez monopolista na venda de seus produtos ou quando menos uma oligopolista, admitindo a existência de sucedâneos para estes” (NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 272-273). 88 “Note-se que, contrariamente ao sucedido no regime de concorrência perfeita para o monopolista, a curva de procura não é horizontal, isto é, de elasticidade infinita para o monopolista, a curva de procura é a curva de procura do mercado, já que ele concentra em si o atendimento de todo o mercado. Logo, enquanto a única maneira de o vendedor em concorrência perfeita aumentar a sua receita é jogar maior quantidade no mercado, o vendedor monopolista não necessariamente procederá assim, muito embora possa também levar a sua produção até o ponto em que o custo marginal iguale o preço. Isto não significa ser o hedonismo do monopolista, o seu desejo de lucros, maior do que o vendedor em concorrência perfeita. A única diferença é ter o primeiro condições de fabricar este lucro, pela situação por ele ocupada no mercado, que, no caso, deixa de ser uma estrutura de controle automático como na concorrência pura. A rigor no monopólio deixa de existir o preço de mercado, pois ele será, em boa medida, uma decisão do monopolista” (NUSDEO, Fábio. Op. cit., p. 269). 86 em um círculo vicioso, criando assim cada vez maiores barreiras ao acesso dos consumidores a seus produtos, situação calamitosa para os produtos objeto do nosso estudo, por conta de sua relevância social. A ineficiência alocativa surge diretamente do exercício do poder de monopólio, ou seja, do fato de o preço ser superior ao custo marginal. Isso faz com que o consumo seja inferior àquele que seria socialmente desejado, de tal modo que se abre espaço para a intervenção do Estado no sentido de promover a concorrência e corrigir essa distorção. Mais importante ainda é a ineficiência produtiva, que se refere à perda de motivação por parte da firma que desfruta de lucros elevados, refletindo-se em um pequeno esforço gerencial e produtivo. Sobre isso, o ilustre economista John Hicks diz que “o pior custo dos monopólios é a preguiça dos gerentes”. A concorrência inibe diretamente esse tipo de ineficiência ao pressionar a empresa a lutar pela sua sobrevivência. Uma ação do governo no sentido de promover a concorrência pode, portanto, ser benéfica também nesse caso. Finalmente a ausência de concorrência pode implicar ineficiência dinâmica, uma vez que as firmas se vêem menos estimuladas a promover investimentos em capacitação tecnológica. A concorrência é o grande motor da busca de novos produtos, novos mercados e novos processos produtivos. Sem concorrência o estímulo à atividade inovativa vê-se diminuído 89 . Voltando ao conceito de concorrência monopolística, verifica-se que é o que ocorre com os produtos líderes de mercado, pois parte dos consumidores age como se estes não pudessem ser substituídos, o que leva o monopolista “virtual” 90 a aumentar seus preços para manter seu lucro absoluto, pelo aumento de sua margem de lucro, apesar da diminuição do número de unidades vendidas, pois parte dos consumidores está disposta a trocar o produto pelo seu similar mais barato. Aspecto importante dos monopólios, especialmente para verificar se há ou não o abuso do poder econômico e prejuízos à concorrência real, é observar a conduta do monopolista diante da entrada de um novo concorrente em seu mercado relevante, considerando que estaremos diante de um jogo de dois jogadores, monopolista versus desafiante, não cooperativo e seqüencial (portanto de informação completa). Dadas estas regras, teremos que após a decisão do desafiante de entrar no mercado relevante o monopolista poderá: a. não tomar nenhuma atitude contra o desafiante e como apontado acima decidir explorar apenas parte do mercado; 89 90 PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 215. Palavra usada como contraposta a real, já que o monopólio não decorre da real comparação entre os produtos, mas sim da percepção que o consumidor tem destes. 87 b. iniciar uma guerra de marketing contra o desafiante, tentando bloquear a entrada deste por meio do uso de campanhas publicitárias, descontos para intermediários etc. Na primeira opção o monopolista mantém em grande parte seu lucro bruto, com certeza maior que o do desafiante, pois aproveitará tanto do aspecto monopolístico de seu produto quanto da intercambialidade viscosa entre seu produto e o do desafiante 91 , porém corre o risco de ao longo do tempo (i) perder cada vez mais participação de mercado para o desafiante e (ii) ter novos concorrentes, que se sentirão encorajados pelo sucesso do desafiante. Na segunda opção, o monopolista provavelmente terá uma diminuição de seu lucro bruto, e também de sua margem de lucro, pois arcará com os custos da guerra, porém com o passar do tempo poderá manter grande parte de sua participação no mercado, bem como conseguir obter até a retirada do desafio, pois o desafiante não conseguirá suportar os custos da guerra. Uma vez retirado o desafiante, portanto, retorna a situação de monopólio, e o monopolista aumenta seus preços para recompor suas perdas. Obviamente não estamos considerando a hipótese de dumping, mas apenas a competição lícita entre os jogadores; entretanto, é uma opção real de difícil combate, pois de prova complexa e difícil de ser coletada, especialmente quando envolver uma cadeia de produção internacional. A situação torna-se mais complexa quando se verifica que o poder econômico do monopolista pode ser maior que o do desafiante, tanto por seu caixa quanto por seu acesso a crédito, de modo que este pode suportar por muito mais tempo a guerra de marketing, o que ocorre, por exemplo, em disputas entre empresas nacionais e multinacionais, pois quando a empresa multinacional é o monopolista, o peso do lucro ou prejuízo em um determinado país acaba diluído no total de seu faturamento mundial, de modo que seu fôlego para a disputa será praticamente infinito, especialmente se a avaliação do valor de suas ações levar em conta não só o lucro presente, mas também sua participação de mercado, que possa causar impacto na remuneração dos acionistas a longo prazo. 91 Temos por intercambialidade viscosa aquela que ocorre lentamente tendo em vista laços que o comprador mantém com o produto que já está no mercado ou dúvidas quanto ao produto desafiante em contrapartida a uma intercambialidade mais fluída, portanto mais proveitosa ao produto com menor preço ou melhores qualidades. 88 Finalmente, temos a afetação de outros mercados totalmente diferentes do mercado do monopólio, especialmente em bem essencial, posto que “o detentor de quantidade relevante de poder econômico é capaz de, maximizando seus lucros, apropriar-se de parcela da renda social superior à que legitimamente lhe tocaria, se fosse desprovido desse poder. O poder econômico, assim, pode subverter a correta distribuição da renda social” 92 . Passamos então a análise dos fatores que levam a uma grande concentração de poder de mercado nas mãos de poucos fornecedores que devem ser combatidos para o atendimento concomitante de todos os incisos do artigo 170 da Constituição Federal Brasileira. 5.1.2. Barreiras à entrada de novos concorrentes Em um mercado de concorrência perfeita, ainda que ocorra a concentração de poder de mercado, este se diluirá pelo efeito gerado pelo próprio ciclo de aumentos de preços, que poderá gerar o interesse de agentes fora desse mercado em convergir para o mesmo, preterindo outros investimentos em troca desse mais lucrativo, o que em tese levaria a um retorno da competição 93 . Contudo, podem existir barreiras que impeçam a entrada desses novos concorrentes no mercado específico, exigindo deles um grande investimento, bem como um baixo resultado inicial, ou que retardem sua entrada no mercado, garantindo uma 92 BRUNA, Sérgio V. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. p. 171. “Para que uma situação como esta perdure no tempo, com equilíbrio estável, sem que novas firmas sejam atraídas pelos lucros de monopólio existentes, é necessário que existam barreiras à entrada. Essas barreiras são custos em que uma empresa entrante tem de incorrer, mas as que já estão instaladas não. Estas podem ser de natureza tecnológica, como domínio de marcas, patentes e Know-how, devido a restrições de suprimentos, como Direito de lavra de minérios, ou ainda devido à conquista das preferências dos consumidores, obtidos por meio de propaganda ou da simples antiguidade de uma marca. Existem, contudo, barreiras à entrada que são resultados de ações estratégicas das firmas dominantes para expulsar as menores ou para impedir a entrada de novos concorrentes. Guerras de propagandas têm muitas vezes esse objetivo, ao imporem aos competidores menores o ônus de responder apenas a uma campanha apenas para manter a participação no mercado. Da mesma forma, as várias campanhas publicitárias ao longo do tempo ajudam a estabelecer e a fixar a reputação da empresa. Para a empresa atraente, e sem reputação estabelecida, o esforço e os custos de propaganda e fixação de reputação serão maiores do que as que já operam” (PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 234 e 235. 93 89 dianteira suficiente aos que lá já se encontram para o reforço de sua posição perante os consumidores, os canais de distribuição ou os vendedores de insumos necessários. As barreiras à entrada podem ser definidas, ainda, como os custos em que um concorrente potencial deve incorrer, em desvantagem aos concorrentes já atuantes naquele mercado. Podem constituir barreiras à entrada, nesse sentido, as economias de escala determinantes de uma produção eficiente, a diferenciação de produtos, a integração vertical, as fontes de suprimentos de fatores de produção e complexidade das redes de distribuição – entre os outros fatores que, de forma efetiva, desestimulem a entrada de novos concorrentes ainda quando os agentes já instalados aufiram lucros acima do nível competitivo 94 . No caso da saúde e em todas as demais atividades reguladas, ainda que exploradas sob o regime de permissão, temos a barreira regulatória que exige investimentos para atender a requisitos técnicos e um grande lapso temporal para início de atividades e lançamento de produtos, tendo em vista a lentidão da burocracia das Agências Regulatórias brasileiras. 5.1.3. Assimetria das informações Em uma análise simplificadora, podemos entender que a definição do preço de um determinado produto dá-se através da negociação entre vendedor e comprador, ou no jogo do mercado, no equilíbrio alcançado entre os compradores e vendedores, com relação a este preço. Portanto, o preço será uma função do valor que o comprador dá ao produto versus o quanto o vendedor pretende lucrar com a operação, ou seja, o quanto ele está disposto a reduzir o preço para não perder a venda. Dessa forma, partindo do pressuposto que o vendedor tem uma expectativa firme e fundamentadamente formada sobre o quanto pretende ter de lucro no produto, será fundamental para a negociação que o consumidor tenha condições de avaliar o produto, ou seja, que tenha informações suficientes sobre o produto e os preços de mercado para formar sua percepção do valor do produto. Classicamente, havia a crença de os preços conterem em si a informação relevante essencial para os agentes interessados, pois seria o sinal inconfundível da escassez ou da abundância, conforme subissem ou baixassem. Tal escassez ou abundância estariam 94 NUSDEO, Ana Maria O. Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da concentração de empresas. p. 29. 90 refletidas nos preços não apenas a cada momento, quanto às condições presentes, mas em sua potencialidade, isto é, no tocante às perspectivas futuras. Assim, muito embora num dado momento o suprimento de café pudesse estar em seu normal ou até acima, a notícia de uma geada numa grande região produtora determinaria, muito provavelmente, uma alta de seus preços ante a perspectiva de escassez na próxima safra. Será possível, porém, que logo num primeiro momento esta notícia não se dissemine e apenas alguns poucos a tenham. Estes, hedonisticamente, expandirão as suas compras do produto para se locupletarem com a futura alta, à custa dos demais que, inadvertidamente, se desfizeram do mesmo. Note-se, ainda, ser também um pressuposto ligado ao ora em exame a perfeita identificação dos produtos e de suas qualidade ou atributos por parte dos adquirentes, donde haver um preço para cada tipo de produto, ainda quando não passem de simples diferenciações do mesmo bem95 . No mundo do consumo de massas, normalmente, o consumidor não tem acesso às informações do produto e muito menos tem condições de entendê- las e traduzi- las em valor, o que gera a falha de mercado denominada assimetria da informação, ou seja, o nível de informação que o vendedor tem do produto é superior ao detido pelo consumidor, como por exemplo expressamente reconhecido pelo Código de Defesa do Consumidor. A determinação do valor do produto também passa pelo conceito de utilidade total (utilidade que uma única unidade do bem tem para o consumidor) e utilidade marginal (utilidade que o consumidor terá com unidades adicionais do produto); porém, não sendo um fator relativo à concorrência no mercado como um todo, mas sim ao comportamento do consumidor, não vamos nos deter na questão, embora certamente ela seja pertinente no mundo real. O que nos interessa é o aspecto da intercambialidade, por sua influênc ia na concorrência existente no mercado. Como já dito, para ocorrer a intercambialidade, o consumidor tem de perceber os produtos como intercambiáveis, vale dizer, o consumidor precisa pelo menos ter informação que lhe permita saber que um produto pode ser trocado pelo outro com a mesma eficácia e segurança. Quando is so não ocorre, temos a concorrência monopolística e a intercambialidade viscosa em favor de um agente econômico, conforme já esclarecemos. Podemos classificar os bens em: (i) bens de busca, cujas informações são conhecidas pelo consumidor antes da compra; (ii) bens de experiência, quando o consumidor somente conhecerá a qualidade do bem após a compra; e (iii) bens 95 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 143 e 144. 91 credenciais, cujas características só podem ser conhecidas por um profissional especializado. No tocante à saúde, teremos bens e serviços credenciais, posto que apenas um técnico habilitado poderá avaliar sua qualidade, eficácia e segurança. No caso os serviços.de saúde serão também serviços de experiência, pois só terão as características prometidas confirmadas após a utilização, como qualquer serviço. 5.1.4. Baixa elasticidade da procura Ao decidir comprar um produto, serviço ou seguro, além das características do que está comprando o consumidor irá considerar suas próprias condições financeiras para pagar o preço exigido pelo vendedor. Tal consideração é relativa, e pode ser afetada pela sensibilidade do consumidor ao preço da compra, de modo que para analisar o comportamento do mercado necessitamos de uma medida dessa sensibilidade. Essa medida da sensibilidade chama-se elasticidade e pode ser definida como a relação entre o acréscimo (decréscimo), percentual de quantidade e o decréscimo (acréscimo) percentual de preços96 . Podemos então agrupar comportamentos padronizados dos compradores por conta dessa medida em: Procuras extra-elásticas – O índice de elasticidade é maior do que 1. Como já dito, são curvas ou segmentos delas, a se inclinarem suavemente para a direita, significando que pequenas variações de preços levarão a grandes variações das quantidades procuradas. Procuras perfeitamente elásticas – O índice é igual a 1 – A inclinação é proporcional. Significa que a uma dada variação percentual dos preços corresponde uma igual variação percentual da quantidade procurada. Procuras inelásticas ou infra-elásticas – A inclinação é bastante acentuada. A quantidade procurada pouco reage às variações de preço. O índice de elasticidade situa-se entre 0 e 1. Procuras rígidas – A elasticidade é igual a zero. Constitui um caso extremo, talvez teórico, de um bem tão essencial que a qualquer preço sua procura seria sempre a mesma. É representada por uma reta paralela ao eixo dos preços. A importância desta classificação reside no fato de apontar como reagirá a receita trazida pelo bem em questão a um aumento ou baixa do seu preço. Com efeito, sendo a receita o produto do preço pela 96 NUSDEO, Fábio Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 230. 92 quantidade, é fácil compreender que se a uma baixa de preços a procura reagir com uma elevação mais do que a proporcional, a receita total subirá, mesmo com a baixa de preços. O mesmo já não se verificará se o coeficiente de elasticidade for inferior a 1. Neste caso, a redução do preço provocará um aumento da procura, mas menos do que proporcional, insuficiente, portanto, para compensá-la, fazendo cair a receita 97 . Como é evidente, nos dias de hoje, o tratamento de saúde é essencial para a sobrevida saudável, de modo que, havendo recursos, o consumidor certamente irá direcioná-los para a compra de seguro ou plano de saúde e, em caso de necessidade, para os produtos e serviços de saúde em detrimento inclusive de outras aquisições ou de sua saúde financeira, conforme se verifica da concentração de gastos com saúde da população brasileira 98 : 97 Idem, ibidem, p. 231 e 232. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pof/2002/tab112. pdf>. Acesso em: 20 maio 2006. 98 93 Ilustração 3 Distribuição da despesa mensal familiar em percentual - Brasil 2002-2003 94 Ilustração 4 Distribuição da despesa mensal familiar em percentual- Brasil 2002-2003 (continuação) 95 Ilustração 5 Distribuição da despesa mensal familiar em R$ - Brasil 2002-2003 96 Ilustração 6 Distribuição da despesa mensal familiar em R$ – Brasil 2002-2003 (continuação) 97 Analisando as tabelas, verifica-se que os percentuais de gastos com a saúde variam pouco conforme aumenta a renda familiar, enquanto seus valores absolutos sobem expressivamente. Dessa forma, podemos verificar que o fator preço será de baixa relevância para o paciente na decisão de compra, pois este estará disposto a abrir mão de outros bens menos vitais em favor do medicamento. De outro lado tendo recursos os aplicará cada vez mais em produtos e serviços de saúde. Nesse sentido, teremos então uma baixa elasticidade da demanda em face do preço, pois “elasticidades baixas estão associadas à essencialidade do produto”99 . Obviamente que a elasticidade não mantém o mesmo índice em toda a curva de procura versus preço, variando ao longo desta. Contudo, para a análise de comportamento, devemos nos ater à secção da curva que mais representa o comportamento real dos consumidores do segmento estudado em um dado tempo. Sendo assim, vemos baixa ou nenhuma elasticidade de demanda em relação ao preço. O que se observa é que a compra de seguros, planos, produtos e serviços de saúde não responde de maneira acentuada ou equivalente ao preço mas sim à renda, ou seja, tem procuras extra-elásticas em relação à renda, pois como é óbvio são a primeira aplicação em caso de aumento de renda, dada a sua essencialidade. Essas são as falhas de concorrência comuns tanto a produtos e serviços de saúde quanto aos seus seguros ou planos de saúde. Passemos agora a analisar especificamente cada um destes e a regulamentação econômica a que estão sujeitos, para verificar sua constitucionalidade em face da obrigação de ampliação de acesso da população determinada pelos artigos 196 e 197 da Constituição Federal. A tese por trás deste trabalho é a necessidade da análise de constitucionalidade das medidas de intervenção econômica e da validade das leis pela análise da capacidade destas de gerar no mundo concreto os efeitos determinados pelas normas presentes em nossa Constituição Federal, relativas à ampliação do acesso a saúde. Para demonstrar a aplicação prática desta tese, passamos a analisar as falhas de concorrência existentes primeiramente no mercado de medicamentos e depois no de planos de saúde, e a resposta dada pela legislação nacional a fim de verificar sua 99 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p.101 98 eficácia para a ampliação do acesso da população e conseqüentemente sua constitucionalidade em face dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, por meio da análise da validade dessas normas com o auxílio do instrumental da ciência econômica, como defendemos neste trabalho. 5.2. O mercado de medicamentos Dos produtos para a saúde os medicamentos são os únicos que têm seus preços controlados, no caso pela Câmara de Medicamentos CMED, em termos que debateremos de maneira exaustiva adiante, embora se note uma tendência de exigir dados econômicos informativos para o registro de outros produtos para a saúde. Os medicamentos devem ser registrados perante a ANVISA para a aferição de sua eficácia e periculosidade, com referência às suas propriedades terapêuticas e riscos, bem como a sua bula e embalagem, sendo alguns classificados como de venda livre, outros como sujeitos a prescrição médica ou, ainda, de venda controlada pela retenção da receita médica. Em qualquer caso, os medicamentos só podem ser comercializados após o deferimento do seu registro e durante a validade desse registro, que é de 5 (anos), renovável quinq üenalmente. Existe ainda a possibilidade de dispensa de registro para medicamentos que constem da Farmacopéia Brasileira, sendo necessária a solicitação de Certificado de Dispensa de Registro. Atualmente, no Brasil, existem três categorias de medicamentos: (i) os inovadores ou de referência, que contêm princípio ativo ou combinação de princípios ativos inédita e que devem apresentar estudos suficientes para demonstrar sua eficácia e seus efeitos colaterais, bioequivalência, biodisponibilidade, estudos clínicos, entre outros; (ii) os similares, que contêm os mesmos princípios ativos que os de referência, mas são vendidos ostentando marca comercial; (iii) os genéricos, que contêm os mesmos princípios ativos dos de referência, devendo apresentar estudos de bioequivalência e de biodisponibilidade para demonstrar que têm a mesma atuação dos 99 de referência e são vendidos ostentando o princípio ativo e marca distintiva como medicamento genérico. As vantagens do medicamento genérico para o laboratório farmacêutico, apesar do custo dos testes apresentados, são a intensa propaganda governamental sobre sua segurança, a possibilidade de serem vendidos em substituição ao medicamento de referência contido na receita, desde que a troca seja feita pelo farmacêutico, e ainda temos a vantagem da preferência para compras governamentais. A definição de mercado relevante de um dado medicamento será simples ao se tratar de medicamentos com o mesmo princípio ativo; contudo, a situação se torna um tanto complexa em outras hipóteses, pois na definição do mercado relevante ainda se deve levar em conta dois fatores: (i) a intercambialidade de distintos princípios ativos para o tratamento da mesma moléstia, inclusive com a comparação da eficácia, do conforto proporcionado ao paciente e dos efeitos colaterais ; e (ii) a intercambialidade entre os diversos tipos de tratamento, também com a comparação de eficácia, do conforto proporcionado ao paciente e dos efeitos colaterais. A questão torna-se complexa, pois com o desenvolvimento da ciência uma mesma moléstia ao longo do tempo vai tendo o seu combate aperfeiçoado, de modo que diversas terapias e medicamentos podem ser indicados para o tratamento de uma única doença. Assim, “a escolha do tratamento, incluindo o medicamento eventualmente prescrito, define a Concorrência Intermarcas, isto é, dos princípios ativos entre si” 100 , sendo que considerando o número de drogas possíveis para a realização do tratamento, multiplicando cada droga pelo número de seus fabricantes, teremos como resultado a medida da concorrência no tratamento específico. Contudo, se o tratamento definir apenas um tipo de droga, teremos de analisar se ele pode ser intercambiado por outro. Do nosso ponto de vista, o mercado relevante em medicamentos será definido pelos tratamentos e respectivas drogas disponíveis para o combate da doença, sendo que nesse ambiente é que se deverá buscar a existência ou não de concentração. 100 FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. Rio de Janeiro: IPEA, 2001. p. 13. 100 Em relação à concentração do mercado de medicamentos no Brasil temos atualmente pequena concentração deste mercado em boa parte porque os medicamentos são passíveis de cópias por novos concorrentes sejam como medicamentos genéricos sejam como similares. Por outro lado, nos mercados de drogas inovadoras temos maior concentração tendo em vista que estas são patenteadas e, portanto não podem ter cópias exatas no mercado até a expiração das patentes, embora possam ter como concorrentes drogas com os mesmos efeitos e indicação terapêuticas. Já se nota no mercado de medicamentos a tendência de os grandes distribuidores e redes de farmácias estarem cada vez mais concentrando poder de compra nos medicamentos em que há grande número de fornecedores, o mesmo acontecendo com o Estado nas licitações públicas para compras de medicamentos para programas oficiais. Dessa forma, a situação tende a torna r-se bastante adversa para a maioria dos laboratórios farmacêuticos brasileiros, que em sua maioria disputam mercados em que há efetivamente grande concorrência, uma vez que praticamente não temos desenvolvimento nacional de medicamentos inovadores, em que os compradores têm grande poder de mercado em relação aos vendedores e, portanto, os preços tendem a cair. Contudo, há que se notar que os laboratórios multinacionais presentes no Brasil muitas vezes têm alto poder relativo de negociação face aos compradores, por venderem medicamentos patenteados sem concorrentes, exceção feita aos laboratórios estrangeiros fabricantes de medicamentos genéricos ou quando estes ve ndem produtos com patentes expiradas. Os laboratórios farmacêuticos com marcas líderes de mercado tendem a reduzir suas produções com a entrada de novos concorrentes, mantendo o preço e aumentando a lucratividade, até o ponto em que a falta de diluição dos custos fixos ou pouco variáveis tornar pouco econômica a redução. O efeito pode ser verificado quando há perda de patente, portanto de monopólio legal, pelo laboratório farmacêutico, restando- lhe apenas o que chamamos de monopólio “virtual”101 . 101 “A diferenciação do produto pode ser objetiva, no caso do seu acabamento ou da sua apresentação variarem, como, também, pode ser subjetiva, quando via propaganda ou outro veículo qualquer se induzir o consumidor a acreditar que determinado produto ou serviço lhe atendam melhor a necessidade 101 No caso específico dos medicamentos, os resultados das regressões realizadas indicam que os preços dos medicamentos líderes sobem mais quanto maior for a taxa de crescimento dos salários do setor. Os aumentos de preços também são maiores quando o líder está perdendo participação no mercado para substitutos genéricos ou similares, o que revela, à semelhança do observado por Frank e Salkever (1995) nos Estados Unidos, que os líderes preferem se voltar para um segmento de mercado menos elástico a preço – aquele que reluta mais em substituir a marca pioneira por um similar. Os resultados obtidos contradizem a usual intuição de que a entrada de novos concorrentes deve resultar em uma redução dos preços cobrados pelas firmas líderes. Nossas estimativas apontam justamente o oposto: em consonância com estudos empíricos efetuados em países desenvolvidos, estimamos que os preços de medicamentos líderes reagem positivamente ao avanço de medicamentos similares no mercado; como reverso da moeda, o nível médio dos preços dos genéricos ou similares tende a baixar e sua dispersão em relação ao preço do líder tende a subir quando há um acirramento da concorrência na franja 102 . Verifica-se, portanto, que a entrada de novos concorrentes é a melhor maneira de aumentar o acesso da população aos medicamentos, desde que seja adequadamente combatida a assimetria da informação e a população de menor renda saiba que pode intercambiar o medicamento a que estava acostumada com o do desafiante. O maior fator de concentração de poder nos mercados de medicamentos que gera aumentos indevidos de preços e, portanto, redução do acesso da população aos mesmos são as barreiras à entrada de novos concorrentes, tanto no nascimento de novos laboratórios farmacêuticos quanto no lançamento de produtos pelos laboratórios farmacêuticos existentes. No caso dos medicamentos, as principais barreiras à entrada serão (i) requisitos e autorizações sanitárias e (ii) patentes que estabelecem o monopólio legal de exploração do produto pelo seu detentor, que além de acumular os lucros do período de sentida ou criada. Aliás, os símbolos, marcas, patentes, logotipos e outros veículos usados pela propaganda e pela promoção têm desempenhado um papel fundamental no processo de diferenciação de produtos e de discriminação de mercados. Essa crença, tão ciosamente instilada nos consumidores pelos veículos da publicidade, dá origem à chamada procura viscosa – objeto de todo concorrente imperfeito –, que vem a ser aquela procura grudenta que sob várias formas se apega a determinados fornecedores, circulando de um para outro morosa e dificultosamente. Estabelece-se uma espécie de afeição comercial entre alguns clientes e os seus fornecedores, em função do tipo de atendimento, da decoração do estabelecimento, das características do produto, diferenciadas em função dessa viscosidade, no fundo um conjunto de características psicoculturais próprias a grupos distintos de consumidores” (NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. p. 266). 102 FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 7. 102 sua vigência, gozará de maior prestígio perante os consumidores, por ter sido o pioneiro em seu lançamento e por ser mais tradicional. 5.2.1. Barreiras sanitárias Como dito no item em que tratamos da ANVISA, os laboratórios farmacêuticos só podem operar após a obtenção de (i) autorização de funcionamento da pessoa jurídica expedida pela própria ANVISA, (ii) licença de funcionamento de cada estabelecimento expedida pela Secretaria de Vigilância Sanitária Estadual ou Municipal se o serviço estiver municipalizado e (iii) certificado de boas práticas de fabricação. A emissão de tais autorizações depende de investimentos nas instalações físicas, treinamento de pessoal e validação de processos destes agentes econômicos. Ressalte-se que para atingir os requisitos sanitários de fabricação, armazenamento e comercialização de medicamentos, tem-se um longo período de tramitação até sua emissão, e estes são seqüenciais, ou seja, um é pré-requisito do outro. Estes requisitos pré-operacionais por si só geram uma barreira à entrada de novos concorrentes tanto por conta dos investimentos necessários, que obviamente devem ser feitos antes da solicitação das licenças e autorizações, já que as condições reais de operação devem estar presentes quando da realização de vistorias para sua emissão, quanto por conta do próprio tempo que leva para uma nova empresa obtê- los. Quanto aos medicamentos em si, portanto, quanto aos mercados relevantes especificamente, a entrada somente se dará após o registro do referido medicamento pela ANVISA, que avaliará sua segurança e eficácia, processo também custoso e demorado. 103 Conforme pesquisa realizada pela Amcham (Câmara Americana de Comércio) do Brasil entre janeiro e março de 2003, com 205 empresas, em mais da metade dos casos o registro de um novo medicamento leva mais de 12 meses. Ilustração 7 - Pesquisa Amcham sobre Anvisa (2005) - pergunta 04 A estratégia adotada pelos governos do mundo todo para diminuir o impacto da questão é exigir que os medicamentos similares ou genéricos apresentem apenas estudos que demonstrem sua intercambialidade (do ponto de vista técnicosanitário) com o medicamento inovador, de modo que se reduza o lapso temporal para a entrada de novos concorrentes. Dessa forma, embora tais cautelas sejam imperativas para a segurança da população, representam uma grande barreira financeira e temporal para a entrada de novos fornecedores em um mercado relevante, de modo que quanto mais demorado o processo, maior será essa barreira, o que acaba por garantir menos concorrência para aqueles que já estão no mercado relevante e que, portanto, poderão praticar preços mais altos. Na mesma pesquisa os respondentes apontaram para a aplicação pouco adequada e uniforme das normas pela ANVISA, o que somente gera insegurança desse mercado, afastando investimentos e concorrentes, e aumenta a barreira regulatória, na medida em que em seu custo se inserem os resultados aleatórios do quanto solicitado pelo setor regulado: 104 Ilustração 8 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 02 Ilustração 9 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 12 Como apurado na citada pesquisa, para significativa parcela do setor regulado a atuação da ANVISA não é adequada. 105 Ilustração 10 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 01 Ilustração 11 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 16 Pelo exposto, embora a ANVISA tenha seu poder de polícia garantido pelo artigo 200 da Constituição Federal, sua atuação é uma barreira à entrada de novos concorrentes, o que tem complicado a aplicação da concorrência no mercado de medicamentos, em afronta ao artigo 170 da Constituição Federal, inclusive contribuindo para a manutenção de preços por aqueles que já ultrapassaram essa barreira, em afronta aos artigos 196 e 197 da Constituição Federal. A atividade burocrática, lenta e aleatória da ANVISA tem militado contrariamente ao lançamento de produtos desafiantes que poderiam reduzir o poder de 106 mercado dos laboratórios farmacêuticos, o que diminui o acesso da população aos medicamentos, bem como evita o lançamento de medicamentos inovadores que poderiam contribuir no combate a doenças, afrontando, portanto, os artigos 196 e 197 da Constituição Federal. Considerando que os artigos da Constituição Federal devem ser aplicados em harmonia, sem sobreposição, a ANVISA há de se tornar mais eficiente para contribuir ativamente para o aumento da concorrência e conseqüentemente do acesso a população aos medicamentos. Para os produtos inovadores ainda há que se considerar a barreira à entrada de novos concorrentes formada pelas patentes, normalmente de importação, a estes conferidas, que impedem até que expire o lançamento de produtos desafiantes que se utilizem da tecnologia protegida. 5.2.2. Patentes de medicamentos A pesquisa e o desenvolvimento para elaboração de novos produtos requerem grandes investimentos; assim, para estimular investimentos na atividade inventiva, as descobertas passíveis de exploração industrial são protegidas por patentes que garantem proteção na exploração de seu objeto por meio do estabelecimento de um monopólio, prevenindo que competidores copiem e vendam esse produto por um preço mais baixo, uma vez que estes não foram onerados com os custos da pesquisa e desenvolvimento do produto. A proteção conferida pela patente é, portanto, um valioso e imprescindível instrumento para que a invenção e a criação industrializável tornem-se um investimento rentável. Patente é um título de propriedade temporária sobre uma invenção outorgado pelo Estado aos inventores ou autores ou outras pessoas físicas ou jurídicas detentoras de Direitos sobre a criação. Em contrapartida, o inventor se obriga a revelar detalhadamente todo conteúdo técnico da matéria protegida pela patente. Durante o prazo de vigência da patente, o titular tem o Direito de excluir terceiros, sem sua prévia autorização, de atos relativos à matéria protegida, tais como fabricação, comercialização, importação, uso, venda etc. Nesse sentido, a obtenção da patente faz que a firma inovadora possa, no período de sua vigência, deter o monopólio do produto, que na falta de outros 107 intercambiáveis lhe dará o monopólio daquele mercado relevante, ou ainda condições para agir de forma monopolística em relação aos consumidores que não percebem a referida intercambialidade. A detenção de mercado em monopólio por um largo prazo, aliada à característica de ser o primeiro a lançar o produto, ainda faz que haja tamanha fixação da marca do produto na mente do consumidor, que os entrantes no mercado após a expiração da patente terão de se valer de preços muito mais baixos, com intensa e custosa campanha de marketing para obter uma parcela de mercado do líder, em decorrência do que se pode chamar de intercambialidade viscosa, ou seja, os compradores custam a realizar a troca – quando a fazem. Para o melhor entendimento dos aspectos por trás dos recentes debates travados sobre o tema das patentes de medicamentos, é importante mencionar a evolução histórica do tema no Brasil, para ressaltar o porquê de apenas em período recente a questão ter-se tornado tão evidente no País. Por meio do Alvará do Príncipe Regente de 28 de abril de 1809, o Brasil foi o quinto país do mundo a conceder privilégios de exploração aos inventores. Em 1884, com outros 13 países, o Brasil adere à Convenção de Paris 103 , sendo que os produtos na área farmacêutica deixaram de ser patenteáveis no Brasil em 1945 104 , e seus processos de obtenção em 1969 105 . A disciplina nacional de protecionismo por meio da não concessão de patentes em áreas consideradas estratégicas pelo governo militar foi mantida na Lei 5.772/1971, que também não concedia privilégios às invenções relativas aos medicamentos e seus insumos106 . Conforme compromisso assumido pelo Governo Brasileiro na Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, cuja Ata Final de Resultados foi assinada em Marrakesh em 12 de abril de 1994, depositada pelo Brasil em Genebra em 21 de dezembro de 1994 (devendo, portanto, entrar em vigor no Brasil 103 Convenção de Paris de 20.03.1883, revista em: Bruxelas 14.12.1900, Washington 02.06.1911, Haia 06.11.1925, Londres 02.06.1934, Lisboa 31.10.1958 e Estocolmo 14.07.1967, internada pelo Decreto 75.572/1975 com a revisão de Haia e com as alterações da revisão de Estocolmo pelo Decreto 1.263/1992 (sempre promulgados com restrições regimentalmente permitidas). 104 Decreto-lei 7.903/1945. 105 Decreto-lei 1.005/1969. 106 Lei 5.772/ 1971: “Art. 9.º Não são privilegiáveis: b) as substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos, ressalvando-se, porém, a privilegiabilidade dos respectivos processos de obtenção ou modificação; c) as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação; […]”. 108 em 1.º de janeiro de 1995), o Brasil promulgou o Decreto 1.355/1994, que ia de encontro ao Código de Propriedade Industrial vigente à época, determinando a concessão de privilégio a todo e qualquer invento 107 , com vigência para o Brasil, para as áreas de produtos químicos e produtos e processos relativos a medicamentos e seus insumos, apenas a partir de 31 de dezembro de 1999 108 . Apesar de ter aceitado e internado a TRIPS e, conseqüentemente, ser obrigado a reger a matéria de propriedade industrial de acordo com a mesma, no que nos interessa (medicamentos) a partir de 31 de dezembro de 1999, o Brasil editou um novo Código de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996) 109 , que previa (i) a patenteabilidade dos produtos em questão e (ii) uma regra de transição para os produtos agora patenteáveis que não o eram110 , mas que já haviam sido patenteados no exterior, conhecida como pipeline 111 . 107 Decreto 1.355/1994: “Art. 27 – Matéria Patenteável 1 – Sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2 e 3 abaixo, qualquer invenção de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial. Sem preju ízo do disposto no parágrafo 4 do Artigo 65, no parágrafo 8 do Artigo 70 e no parágrafo 3 deste artigo, as patentes serão disponíveis e os Direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto ao seu setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente. 2 – Os membros podem considerar como não patenteáveis invenções cuja exploração em seu território seja necessário evitar para proteger a ordem pública ou a moralidade, inclusive para proteger a vida ou a saúde humana, animal ou vegetal ou para evitar sérios prejuízos ao meio ambiente, desde que esta determinação não seja feita apenas porque a exploração é proibida por sua legislação. 3 – Os Membros também podem considerar como não patenteáveis: a) métodos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos para o tratamento de seres humanos ou de animais; b) plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC”. 108 Decreto 1.355/94: “Art. 65. Disposições Transitórias […] 4 – Na medida em que um país em desenvolvimento Membro esteja obrigado pelo presente Acordo a estender proteção patentária de produtos a setores tecnológicos que não protegia em seu território na data geral de aplicação do presente Acordo, conforme estabelecido no parágrafo 2, ele poderá adiar a aplicação das disposições sobre patentes de produtos da Seção 5 da Parte II para tais setores tecnológicos por um prazo adicional de cinco anos. 109 Com vigência a partir de 15.05.1997. 110 Na medida em que a TRIPS ainda não estava em vigor e o Antigo Código de Propriedade Industrial não lhes conferia o privilégio. 111 Lei 9.279/1996: “Art. 229. Aos pedidos em andamento serão aplicadas as disposições desta Lei, exceto quanto à patenteabilidade das substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação, que só serão privilegiáveis nas condições estabelecidas nos arts. 230 e 231. Art. 230. Poderá ser depositado pedido de patente relativo às substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação, por quem tenha proteção garantida em tratado ou convenção em vigor no Brasil, ficando assegurada a data do primeiro depósito no exterior, desde que seu objeto não tenha sido colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com seu consentimento, 109 Tal regra de transição foi criada para evitar injustiças para com os inventores que poderiam ser protegidos pela patente de seus produtos, pois ainda estariam em vigência seus privilégios caso o Brasil não os incluísse no rol dos não patenteáveis, e resumidamente impunha os seguintes requisitos para sua utilização: 1) a desistência dos pedidos realizados antes de sua vigência; 2) o protocolamento de novos pedidos até 15 de maio de 1998; 3) que não houvesse a exploração dos produtos no Brasil ou investimentos para tanto; 4) que o produto não houvesse sido lançado em outros mercados. Ocorre que as normas relativas às patentes de medicamentos e insumos farmacêuticos e veterinários foram novamente alteradas pela Medida Provisória 2.014, de 30 de dezembro de 1999, convertida na Lei 10.196/2001, especialmente no que diz respeito aos seus efeitos para os que produzem e comercializam substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos ou substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico- farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, nem tenham sido realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do pedido ou da patente. § 1.º O depósito deverá ser feito dentro do prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei, e deverá indicar a data do primeiro depósito no exterior. § 2.º O pedido de patente depositado com base neste artigo será automaticamente publicado, sendo facultado a qualquer interessado manifestar-se, no prazo de 90 (noventa) dias, quanto ao atendimento do disposto no caput deste artigo. § 3.º Respeitados os arts. 10 e 18 desta Lei, e uma vez atendidas as condições estabelecidas neste artigo e comprovada a concessão da patente no país onde foi depositado o primeiro pedido, será concedida a patente no Brasil, tal como concedida no país de origem. § 4.º Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, contado da data do depósito no Brasil e limitado ao prazo previsto no art. 40, não se aplicando o disposto no seu parágrafo único. § 5.º O depositante que tiver pedido de patente em andamento, relativo às substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação, poderá apresentar novo pedido, no prazo e condições estabelecidos neste artigo, juntando prova de desistência do pedido em andamento. § 6.º Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, ao pedido depositado e à patente concedida com base neste artigo. Art. 231. Poderá ser depositado pedido de patente relativo às matérias de que trata o artigo anterior, por nacional ou pessoa domiciliada no país, ficando assegurada a data de divulgação do invento, desde que seu objeto não tenha sido colocado em qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com seu consentimento, nem tenham sido realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do pedido. § 1.º O depósito deverá ser feito dentro do prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei. § 2.º O pedido de patente depositado com base neste artigo será processado nos termos desta Lei. § 3.º Fica assegurado à patente concedida com base neste artigo o prazo remanescente de proteção de 20 (vinte) anos contado da data da divulgação do invento, a partir do depósito no Brasil. § 4.º O depositante que tiver pedido de patente em andamento, relativo às matérias de que trata o artigo anterior, poderá apresentar novo pedido, no prazo e condições estabelecidos neste artigo, juntando prova de desistência do pedido em andamento”. 110 bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação, cujos depositantes não tenham exercido a faculdade prevista nos artigos 230 e 231 da Lei 9.279/1996. Em síntese, a referida norma alterou radicalmente a regra de transição prevista no pipeline para os produtos em questão, determinando que: 1) os pedidos depositados até 31 de dezembro de 1994 serão indeferidos; 2) os pedidos protocolados após 31 de dezembro de 1994 até o início da vigência do novo Código de Propriedade Industrial112 serão analisados segundo os critérios deste, exceto quanto aos pedidos de patente de processo que serão indeferidos, portanto impondo a retroatividade do novo Código de Propriedade Industrial desde 1.º de janeiro de 1995; 3) a concessão de patentes de produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da ANVISA, sem contudo haver qualquer esclarecimento na lei quanto ao conteúdo dessa análise, que poderia (i) dizer respeito pura e simplesmente à regularidade do processo administrativo de concessão da patente, (ii) dizer respeito à inexistência de inovação do pedido, posto que a ANVISA tem o cadastro de todos os medicamentos vendidos no Brasil, ou (iii) dizer respeito à segurança do produto, o que evidentemente teria mero caráter informativo, na medida em que este não é um critério para a concessão de patente, pois na já citada pesquisa da Câmara Americana de Comércio parte do setor regulado afirma que a ANVISA extrapola desta função na concessão de patentes. 112 Que admite o patenteamento dos referidos produtos. 111 Ilustração 12 Pesquisa Amcham sobre ANVISA (2005) – pergunta 10 Houve grandes debates sobre a concessão de patentes de medicamentos no Brasil e sobre conflitos entre a TRIPS e a legislação brasileira, todavia parece inexistir razão para celeuma, uma vez que todos os veículos legislativos utilizados são hierarquicamente equivalentes, de modo que se aplica sempre o posterior. Assim, tivemos a substituição da Lei 5.772/1971, pelo Decreto 1.355/1994, pela Lei 9.729/1996 e, finalmente, pela Medida Provisória 2.014/1999, convertida na Lei 10.196/2001, não havendo que se falar em conflito de normas, especialmente no que toca à Lei 9.729/1996 (pipeline) e ao Decreto 1.355/1994, não tendo o segundo criado Direitos adquiridos ou expectativa de Direitos, porque jamais entrou em vigor, pois foi substituído pela primeira. Ademais, os Direitos dos requerentes das patentes são gerados no momento do protocolo, uma vez que se aplica a legislação vigente no momento, ressaltando-se a inconstitucionalidade da retroatividade instituída pela Medida Provisória 2.014/1999, convertida na Lei 10.196/2001. Por fim, aqueles que produziam e utilizavam os produtos que passaram a ser patenteáveis, ainda que se aceite a aplicação retroativa da Lei 9.279/1996, poderão continuar a fazê- lo nos termos dos artigos 232 e 45 desta, uma vez que não foram alterados ou revogados pela Medida Provisória 2.014/1999, convertida na Lei 10.196/2001. Lei 9.279/1996: Art. 45. À pessoa de boa fé que, antes da data de depósito ou de prioridade de pedido de patente, explorava seu objeto 112 no País, será assegurado o direito de continuar a exploração, sem ônus, na forma e condição anteriores. § 1.º O direito conferido na forma deste artigo só poderá ser cedido juntamente com o negócio ou empresa, ou parte desta que tenha direta relação com a exploração do objeto da patente, por alienação ou arrendamento. § 2.º O direito de que trata este artigo não será assegurado a pessoa que tenha tido conhecimento do objeto da patente através de divulgação na forma do art. 12, desde que o pedido tenha sido depositado no prazo de 1 (um) ano, contado da divulgação. Art. 232. A produção ou utilização, nos termos da legislação anterior, de substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação, mesmo que protegidos por patente de produto ou processo em outro país, de conformidade com tratado ou convenção em vigor no Brasil, poderão continuar, nas mesmas condições anteriores à aprovação desta Lei. § 1.º Não será admitida qualquer cobrança retroativa ou futura, de qualquer valor, a qualquer título, relativa a produtos produzidos ou processos utilizados no Brasil em conformidade com este artigo. § 2.º Não será igualmente admitida cobrança nos termos do parágrafo anterior, caso, no período anterior à entrada em vigência desta Lei, tenham sido realizados investimentos significativos para a exploração de produto ou de processo referidos neste artigo, mesmo que protegidos por patente de produto ou de processo em outro país. Apesar de as patentes configurarem uma barreira ao lançamento de medicamentos e, portanto, à ampliação de acesso aos medicamentos, não se pode entender pela sua inconstitucionalidade por afronta aos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, na medida em que as patentes também têm garantia constitucional assegurada no artigo 5.º, inciso XXIX, de nossa Carta Magna, não sendo possível sobrepor um artigo constitucional a outro. É importante notar que o privilégio garantido pela patente, de forma análoga aos entendimentos relativos à função social da propriedade – até por poder ser interpretada como a propriedade de um bem móvel –, é entendido nos dias de hoje como uma concessão dada pela sociedade para viabilizar o financiamento do avanço científico que possa gerar benefícios para a própria sociedade, não podendo haver o abuso desse Direito por parte de seu detentor, sendo previsto o seu licenciamento compulsório em clara aplicação integrada dos dispositivos constitucionais. A nova Lei de Proteção da Propriedade Industrial contém várias disposições que merecem atenção. Consagra-se a exaustão de Direitos (art. 43-IV e 68 §§ 3.º e 4.º). Admite-se a cláusula de grantback (art. 63). Admite-se a licença compulsória sem exclusividade por abuso dos Direitos decorrentes da patente (misuse), por abuso de poder 113 econômico, por falta injustificada de exploração ou atendimento insuficiente da demanda, em caso de dependência de patentes e em razão de emergência nacional ou interesse público (artigos 68 a 72)113 . Essas medidas são voltadas a impedir que o detentor do monopólio legal o use de modo a prejudicar a sociedade ao invés de favorecê-la, solução equivalente à que foi dada pela Lei de Cultivares 114 , que em certo sentido andou melhor, pois atribui a competência para conceder a licença compulsória ao CADE, que é um órgão mais aparelhado para tratar de questões de abuso de poder econômico, que afinal é a hipótese também do abuso de Direito patentário, apesar de se tratar de um poder econômico criado por um privilégio legal. Para evitar que o detentor da patente pudesse gozar de um período maior de monopólio do que o da própria patente, decorrente do tempo que os novos competidores pudessem levar para obter o registro de produto genérico ou similar, as autoridades brasileiras não vedam o registro de produto patenteado, por entenderem que (i) o registro tem como critério as características do produto e não sua possibilidade de comercialização e (ii) que a patente confere Direito individual ao seu titular, que terá de defender seu Direito com os meios que a Lei de Patentes lhe garante. Ademais, os medicamentos concorrentes, genéricos e similares não precisam realizar todos os testes clínicos e pré-clínicos realizados pelo medicamento original, de modo que seu registro deveria ocorrer em prazo mais curto. Já nos Estados Unidos da América e na Europa a tônica da discussão foi diferente, e o grande debate se deu por conta da perda de uma parte do prazo de gozo do monopólio legal em decorrência do tempo de desenvolvimento dos testes de segurança e da demora no registro dos medicamentos, criando uma diferença entre o prazo formal de patente e seu prazo real, aquele que efetivamente é aproveitado economicamente pelo seu detentor, apesar de lá igualmente haver uma extensão do prazo de monopólio decorrente da demora no registro dos produtos genéricos. Nos Estados Unidos da América foi editada a Lei Waxman-Hatch, que por meio de um cálculo complexo estende o prazo da patente proporciona lmente ao prazo para o registro do produto e, por outro lado, liberou os medicamentos genéricos de realizarem todos os testes realizados pelo medicamento inovador, devendo simplesmente passar pelo teste de bioequivalência. 113 114 FONSECA, Antonio, Concorrência e propriedade intelectual. p. 6. Lei 9.456/ 1997, art. 28. 114 Na Europa, cada país criou por me io de legislação própria um certificado de extensão de patente. A questão ainda está sendo harmonizada no âmbito da Comunidade Econômica Européia, uma vez que mesmo países que não adotam uma lei própria sobre o tema ainda divergem quanto à interpretação das normas do bloco. Finalmente, é importante notar que, por meio de contratos relativos à propriedade industrial também é possível a concentração de poder econômico, como por exemplo no contrato de licenciamento, contratos com cláusula de não concorrência ou de exclusividade, com o mesmo perfil das fusões e aquisições. Embora tais contratos devam ser registrados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, não se verifica a preocupação com os aspectos concorrenciais dos ajustes, de modo que também é importante a criação de normas de controle preventivo de efeitos danosos decorrentes de práticas abusivas por meio de tais contratos nos mesmos moldes das normas de controle das concentrações. 5.2.3. A assimetria das informações quanto aos medicamentos Os medicamentos são bens credenciais, ou seja, os pacientes não têm condições de conhecer as características dos produtos mesmo após o seu consumo 115 , apenas os médicos a têm, de modo que, no mercado farmacêutico, a assimetria da informação é um dado extremamente relevante que aumenta em muito o poder de mercado das empresas já estabelecidas, que é crescente em proporção à novidade e à complexidade do produto. Um dado da realidade atual é que mesmo os médicos sofrem com a assimetria da informação, pois não conseguem estar continuamente atualizados sobre os avanços da indústria farmacêutica. Em sua maioria, o acesso dos médicos às informações sobre medicamentos dá-se por meio dos propagandistas dos laboratórios farmacêuticos, que continuamente os visitam trazendo informações tendentes à prescrição dos produtos que representam116 . 115 “A assimetria de informações é outra característica importante do mercado farmacêutico. No caso dos medicamentos éticos, é o médico que prescreve o medicamento, restando ao paciente a decisão de comprá-lo ou não, já que não consta da receita referência à denominação genérica do produto. Esse fato confere ao laboratório um poder de mercado muito grande, mesmo nos casos em que possa haver uma opção idêntica à do medicamento receitado.” Relatório da CPI dos medicamentos – Título II. 116 “Os medicamentos éticos encaixam-se perfeitamente na categoria de bens credenciais. Sua venda depende da apresentação de uma prescrição médica. O profissional médico, que é o tomador da decisão de escolha do medicamento, depara-se com um conjunto crescente de substâncias ativas, cuja eficácia e 115 Com a finalidade de combater a assimetria das informações existente no mercado nacional, que dificulta a competição por parte dos medicamentos similares (medicamentos iguais aos originais mas com marca própria), o Governo Federal, em atenção a sua missão de ampliação do acesso da população à saúde, determinada nos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, editou a Lei 9.787/1999, que criou o medicamento genérico, posteriormente regulamentada pelo Decreto 3.181/1999 e com efeitos reforçados pelo Decreto 3.675/2000, que facilita o registro de medicamentos genéricos importados. Outra contribuição importante do estudo da assimetria de informações foi o conceito de seleção adversa. O tipo de problema agora enfocado segurança não são conhecidas por ele. Sua escolha é condicionada por uma série de fatores [Hemminki, apud Pepe e Veras (1995)]: 1. Fatores condicionantes: 1.1. as tradições e a educação da população moldam as expectativas dos pacientes e a visão do médico; 1.2. o ensino médico e o pensamento profissional determinam o uso dos serviços médicos e definem o conceito de saúde/doença; 1.3. a política pública e a distribuição da renda em cada país afetam a disponibilidade de profissionais e o acesso a medicamentos; e 1.4. o poder e a vitalidade da indústria farmacêutica. 2. Fatores que influenciam individualmente os profissionais: 2.1. as demandas e expectativas da sociedade; 2.2. a influência da indústria farmacêutica e os resultados de pesquisas na área; e 2.3. as medidas regulatórias e de controle impostas pelas autoridades de saúde. É importante salientar que a falta de informações fluidas, sistematizadas e consolidadas sobre efetividade comparada entre os medicamentos disponíveis no mercado é um sério obstáculo a uma avaliação abalizada do médico sobre qual medicamento prescrever, magnificando o efeito do fator 2.2; portanto a fluidez da informação é tão ou mais importante que a sua mera existência. Temin (1980) aponta três causas para esse problema de informação: a) a segurança e a eficácia do medicamento têm múltiplas dimensões: quais condições indesejadas visa corrigir; qual o método de administração ao paciente; qual a velocidade de ação e sua durabilidade; a amplitude de condições que ele trata; e quais os efeitos adversos etc.; b) os médicos não podem sair usando seus pacientes como cobaias; e c) falta aos médicos capacidade de extrapolar os resultados dos testes publicados para sua realidade. Para eles, estatística e prática da medicina são atividades distintas. Eles não têm qualificação para fazer pesquisa ou avaliar as pesquisas dos outros. O processo de decisão do médico pode, então, ser compreendido como composto de duas etapas, cada uma com um tipo de assimetria de informação envolvido: 1. O médico escolhe o tratamento mais eficaz e seguro para o paciente com base em seu conhecimento acadêmico e na sua experiência, ou na experiência de seus pares, apreendida em congressos, revistas especializadas ou rede de contatos individual. No entanto, Temin (1980), Hellerstein (1994) e Berndt, Pindyck e Azoulay (2000) apontam para a predominância de um comportamento no qual a prescrição se dá por costume ou inércia. Isso ocorre porque o médico individual normalmente não obtém uma larga experiência com os efeitos de nenhuma droga em particular (que é o problema do bem credencial), e as pesquisas publicadas disponíveis sobre drogas concorrentes entre si tendem a tratar mais de biodisponibilidade do que de seus verdadeiros efeitos. Essa abordagem do médico lhe traz, portanto, duas vantagens: primeiro, minimiza o custo de obtenção da informação sobre os medicamentos mais indicados para os tratamentos diagnosticados, e segundo, serve como argumento de defesa contra possíveis complicações em um processo jurídico. Disso decorre que a difusão do consumo de um medicamento gera externalidades de informação para os médicos, e pode-se dizer que os seus hábitos de prescrição seguem um padrão típico de comportamento de manada [Berndt, Pindyck e Azoulay (2000)]” (FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 11-12. 116 não mais se refere ao comportamento pós-contratual, mas sim à adesão ou não a determinada transação. Um mercado que possui diferentes qualidades de bens, e essa é a informação privada de uma das partes, tende a ser ineficiente à medida que as transações desejadas em um mundo de informação perfeita não se realizam. Resumidamente, o mecanismo de seleção adversa elimina do mercado os produtos de boa qualidade porque o vencedor não consegue convencer o comprador sobre a qualidade do produto. Da parte do vendedor, a transação só é interessante se o valor a ser recebido for maior ou igual ao valor do bem, dado em função da qualidade do bem, não se pode simplesmente comparar valor e qualidade. Como alternativa, o comprador compara o valor a ser pago com a qualidade esperada. Se um bem for de alta qualidade, o vendedor, ciente disso, exigirá alto valor para a transação. O consumidor, no entanto, ignorante quanto à qualidade do bem, aceita pagar um valor correspondente à qualidade esperada, que, por definição, é inferior a um bem de alta qualidade. Conseqüentemente, somente os bens de qualidade inferior seriam comercializados. A solução para um problema de seleção adversa é conhecida como sinalização. O vendedor agiria de modo que provesse o comprador de informações confiáveis a respeito do bem – como certificados de qualidade ou garantia –, atenuando a assimetria de informações e, como conseqüência, o problema da seleção adversa. O exemplo clássico para este fenômeno é o mercado de carros usados, no qual a qualidade é variável e dificilmente observável de forma apropriada 117 ; Para esta questão o medicamento genérico, com o perdão do trocadilho, também é o remédio. O medicamento genérico tem sua intercambialidade terapêutica com o medicamento de referência atestada por testes de bioequivalência e biodisponibilidade certificados pela ANVISA, tendo sido dada por força da referida lei ampla publicidade do fato, financiada pelo governo, constando inclusive da caixa do produto sinal distintivo em destaque para fácil reconhecimento pelo comprador 118 . 117 PINHO, Diva B. e VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 221. “O médico pode receitar o medicamento pelo nome de fantasia ou pelo nome genérico. É aqui que se define a Concorrência Intramarca entre o produto ‘de marca’ propriamente dito e os medicamentos genéricos e similares. Aqui as assimetrias de informação são duas: o médico desconhece os preços dos genéricos, e tem reservas quanto à sua qualidade em relação ao produto de referência. A qualidade, por sua vez, abre-se nas dimensões de: a) biodisponibilidade – quanto do princípio ativo é absorvido no fluxo sangüíneo, onde e quanto age terapeuticamente; b) bioequivalência – dois medicamentos são bioequivalentes se têm a mesma composição química e a mesma biodisponibilidade; e c) grau de pureza do produto (e, portanto, do processo produtivo). Uma política de certificação de qualidade teria, portanto, uma função de sinalizadora de informação para os profissionais a fim de corrigir dois níveis de assimetria de informação na distinção de efetividade e segurança: dos princípios ativos entre si, e entre os medicamentos de referência e os genéricos de um mesmo princípio ativo. Deve sinalizar, também, aos médicos e à população que as condições de produção atendem a requisitos mínimos de controle de qualidade do processo. E o mais importante de tudo: deve sistematizar essas informações de modo que os médicos tenham todos os elementos para poderem comparar a efetividade dos medicamentos entre si. Vale notar que, mesmo depois que a patente original expira, o patenteador original perde o monopólio do medicamento, mas 118 117 Ainda em reforço, foi permitida a troca da receita dada pelo médico pelo farmacêutico sempre que o médico não a proibir no corpo da própria receita, além do que, para estimular a oferta, foi garantida preferência aos medicamentos genéricos em licitações no âmbito do SUS, que também passou a fazer licitações utilizando o nome da substância ativa do produto. É interessante observar o ocorrido com o mercado americano com a entrada dos medicamentos genéricos, por ser um indicativo do que pode ocorrer no mercado nacional: Centenas de novos medicamentos genéricos foram aprovadas pela FDA em curto espaço de tempo, mesmo com a ocorrência de procedimentos fraudulentos em vários casos. Em 1989, os genéricos compreendiam mais de 33% de todas as prescrições realizadas nos Estados Unidos. Os genéricos se fizeram mais presentes em hospitais que em farmácias, as quais comercializavam um volume muito maior de drogas prescritas. Mesmo assim, a presença dos genéricos no varejo aumentou de 17% em 1980 para 30% em 1989 [Masson e Steiner (1985)]. O que não ocorreu, contudo, foi a disputa esperada entre o medicamento de marca e seu substituto genérico pelo mesmo mercado consumidor. Alguns estudos mostram que, na média, os medicamentos de marca aumentaram seus preços quando os substitutos genéricos invadiram o mercado [Frank e Salkever (1991), Grabowski e Vernon (1992)]. Esses acontecimentos foram reportados mesmo quando os genéricos praticavam preços entre 40% e 70% abaixo dos preços dos respectivos medicamentos de marca. Este aparente paradoxo pode ser explicado pela “bifurcação” que ocorre no mercado consumidor, quando da entrada dos genéricos. Os consumidores mais sensíveis aos preços dos medicamentos tendem a optar pelo substituto genérico, como é o caso de hospitais e não da marca, por isso é interessante para o laboratório fixar a marca, já que a promoção da substância acaba gerando externalidades informativas (spillover) para os fornecedores de genéricos. Até certo ponto, fica difícil para o profissional distinguir as dimensões de qualidade relacionadas à substância daquelas dimensões que separam medicamentos de referência e genéricos. As incertezas decorrentes criam um diferencial de qualidade percebido pelos agentes, que é apropriado pela firma líder do mercado através da cobrança de um preço maior associado à marca. No caso em que o medicamento não tem sua patente reconhecida (como era o caso do Brasil de 1969 até 1998), a promoção da marca reveste-se de importância ainda maior, pois o laboratório tem de diferenciar seu produto dos concorrentes que, desde cedo, entram no mercado. Note-se que, como já comentamos, os entrantes podem replicar os gastos de promoção no lançamento das novas marcas. No caso da concorrência intramarcas, esse custo deve até ser menor do que o incorrido pelo pioneiro, pois o médico já conhece a substância e suas propriedades terapêuticas, e cabe à firma apenas convencê-lo da sua equivalência – ele estaria, então, internalizando o custo da certificação, a qual estaria dizendo a mesma coisa ao médico. Mas é importante observar que, mesmo podendo ser menor, esse custo é, como era o do pioneiro, em boa parte irrecuperável, ou ‘afundado’ (sunk cost); ora, uma vez incorrido o custo afundado do pioneiro, ele é irrelevante para o seu comportamento posterior, enquanto o custo afundado do entrante define a estratégia deste ao entrar. Mesmo se não admitirmos que o custo é afundado, o ativo intangível que o investimento na marca cria (um estoque de ‘simpatia’ pela marca, ou goodwill) já está dado para o pioneiro, ao contrário do entrante” (FIÚZA, Eduardo P. S.; Lisboa, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 13-14). 118 organizações mantenedoras de saúde. Por outro lado, parcela considerável do mercado consumidor é avessa ao risco, portanto, insensível aos preços dos medicamentos, como é o caso de médicos e de pacientes que não se sentem seguros ou informados devidamente a respeito da eficácia do substituto genérico. Muitas vezes o médico, mesmo estando devidamente informado sobre terapias alternativas, prefere continuar prescrevendo os medicamentos de marca por uma simples questão de hábito ou mesmo falta de “cultura” no que concerne à racionalização de custos”119 . Conforme dados fornecidos pela ANVISA, no seminário internacional “Acceso a Medicamentos: Derecho Fundamental, papel del Estado” realizado no Rio de Janeiro em 22 de outubro de 2002, em 50 classes terapêuticas os genéricos atendem 60% (sessenta por cento) da necessidade de prescrição, e os objetivos da divulgação dos medicamentos genéricos foram alcançados pois, em pesquisa realizada com 2.200 consumidores de medicamentos, com idades entre 16 e 74, interceptados em drogarias de 236 municípios de 16.11 a 12.12.2001, constatou-se que: – 95% (noventa e cinco por cento) dos consumidores conhecem os genéricos e 91% definiram estes medicamentos corretamente; – 80% (oitenta por cento) dos consumidores confiam que o genérico faz o mesmo efeito (ou seja, acreditam na intercambialidade do produto); – 71% (setenta e um por cento) dos consumidores reconhecem os genéricos, 55% pelo G da embalagem e 16% de outras formas; – 7,2% consultam a lista de medicamentos genéricos. Contudo foram detectados os seguintes problemas na sua implantação no Brasil: – oferta pouco diversificada e insuficiente de genéricos; – dificuldades na montagem de processos de registro pelas empresas; – demora na concessão do regis tro – 150 a 180 dias (como vimos, na opinião do setor regulado, o prazo será bem maior); – dúvidas quanto à manutenção da qualidade dos genéricos pós-registro; – dificuldade na identificação dos genéricos no momento da compra e “Empurroterapia” do similar com denominação genérica. Acrescentamos a estes um problema novo trazido pelo controle de preços de medicamentos com as resoluções da CMED relativas à estipulação de preços de lançamentos de medicamentos genéricos, que estabelecem que estes devem 119 FIÚZA, Eduardo P. S.; Lisboa, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 25. 119 obrigatoriamente ser 30% mais baratos que os medicamentos de referência, o que pode impedir o lançamento de medicamentos genéricos que não possam atingir esse patamar mantendo margens de lucro atrativas. Quanto a esses aspectos, o mais alarmante do ponto de vista da concorrência é, em nossa opinião, o aspecto das dúvidas quanto à manutenção da qualidade do genérico na medida em que poderá levar a um comportamento do consumidor de não considerar todos os genéricos intercambiáveis entre si, mas tãosomente aqueles produzidos por determinadas empresas, criando a figura de um medicamento genérico de grife, que poderá ter o mesmo comportamento daquele medicamento que mantém uma marca reconhecida no mercado, o que já se verifica com o lançamento de medicamentos genéricos por laboratórios fabricantes de medicamentos de marca líder de mercado. Ademais, do ponto de vista social, as iniciativas relativas ao medicamento genérico resolvem apenas parte do problema do acesso a medicamentos, uma vez que apenas a parcela da população que já tem acesso aos medicamentos passa a consumi- los, enquanto aquela parcela realmente pobre, que a eles não tem acesso, continua sem tê- lo, pois não tem a renda mínima para comprar até mesmo os medicamentos genéricos. 5.2.4. Problemas de agência Os medicamentos são bens credenciais e, por isso, apenas um especialista terá condições de avaliar suas características reais e, portanto, sua eventual intercambialidade, o que já é suficiente para gerar os problemas de assimetria das informações em relação a qualquer produto ou serviço. Ademais, no caso de medicamentos, temos ainda um outro complicador que é o fato de que quem opta pela compra do produto não é o paciente, mas sim o médico, ao definir o tratamento indicado. O estudo do tema é feito pela chamada teoria da agência: O modelo básico da teoria da agência apresenta dois atores – denominados principal e agente – que se relacionam por meio de uma transação qualquer. O principal é um ator cujo retorno depende da ação de um agente ou de uma informação que é propriedade privada 120 deste último. Assim, a característica fundamental de uma relação entre principal e agente é a “assimetria de informações”, tendo o agente uma informação que o principal não dispõe. Essa relação introduz dois tipos de problemas transacionais, relevantes para a decisão sobre o modo como devem se organizar as firmas e suas relações com fornecedores e clientes. O primeiro problema ficou conhecido como risco moral, referindo-se à possibilidade de o agente fazer uso de sua informação privada em benefício próprio após a celebração de um contrato, eventualmente impondo prejuízos ao principal. Dois tipos de risco moral podem ser distinguidos: a) informação oculta (hidden information) – em que as ações do agente são observáveis e verificáveis pelo principal, mas uma informação ao resultado final é adquirida e mantida pelo agente; e b) ação oculta (hidden action) – em que as ações do agente não são observáveis. Uma ação é observável se o principal é capaz de avaliá -la em qualidade e/ou quantidade, mesmo que isso não implique alguma forma de mensuração. Uma ação é verificável se, além de observável pelo principal, este tenha meios de provar que a observou perante a instância responsável pela resolução das querelas contratuais – por exemplo, um tribunal120 . Nessa situação, o principal fica à mercê do agente na definição de sua participação na relação econômica, o que torna desvinculado do interesse do principal o equilíbrio na fixação do preço do produto consumido. O exemplo clássico de risco moral com informação oculta é a relação entre paciente (principal) e médico (agente). A ação do médico – uma operação ou aplicação de um medicamento – é, presume-se, observável. No entanto, o médico, por meio de exames e amparado pela obscuridade de seu conhecimento, adquire uma informação privada essencial à transação em questão, qual seja o diagnóstico. O paciente pode exigir contratualmente o acesso a essa informação privada, o que aparentemente eliminaria o problema de risco moral. No entanto, mesmo que o paciente fique ciente de um diagnóstico, nada assegura que este seja de fato verdadeiro. Em outras palavras, se o agente tiver motivos para mentir, o diagnóstico fornecido será inútil, não resolvendo o problema da assimetria informacional. Um obstetra poderia, por exemplo, recomendar uma cesariana (pela qual, supõe-se, receberia mais que por um parto normal), sem que a situação do paciente exigisse este tipo de tratamento. Não havendo qualquer restrição ética ao comportamento do médico, ele poderia mentir na apresentação do diagnóstico, de modo que fizesse uso dos incentivos financeiros que a realização de uma cesariana implicaria. Nesse caso, o médico estaria usando a assimetria informacional em benefício próprio, influindo negativamente sobre o retorno que o principal (paciente) pretendia obter na transação121 . Outra hipótese que não parte da má- fé do médico, mas, pelo contrário, de sua boa-fé em obter os melhores resultados com o menor risco para o paciente, e para si 120 121 PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 220. PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 220. 121 mesmo, é aquela em que o médico seleciona o melhor tratamento existente, sem considerar os custos envolvidos – situação bastante evidente por exemplo em termos de requintados exames diagnósticos. Temos então situação em que o médico poderá prescrever o medicamento a ser comprado pelo paciente sem se preocupar com o impacto econômico dessa prescrição e, exceto no caso da existência de medicamento genérico, o paciente não terá opção além e comprar o medicamento indicado. Somando-se a isto o fato de os médicos tenderem a aderir mais fortemente à marca do primeiro medicamento que conheceram para tratar aquela moléstia, temos um tipo de intercâmbialidade viscosa para o agente, que será mais viscosa, pois o agente não terá motivação para buscar uma alternativa ; pelo contrário, sua motivação será permanecer em solo seguro. Isso tudo combinado é causa de grande dificuldade para os desafiantes no mercado farmacêutico e, portanto, gera uma tendência anticoncorrencial que deve ser combatida nos termos do artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal, para se atingirem os objetivos de seus artigos 196 e 197. Contudo, não se trata de prática abusiva para aumento arbitrário dos lucros do ou dos líderes de mercado, punível em face da legislação antitruste, que é lastreada no § 4.º do artigo 173 da Constituição Federal de 1988, de modo que se devem buscar outras soluções para o problema, como foi a louvável iniciativa dos medicamentos genéricos. Como visto, são diversas as falhas de concorrência no mercado de medicamentos que reduzem o acesso da população aos medicamentos; apesar disso, deve-se ter em mente que a solução desses problemas não elimina o problema da população como um todo, pois conforme a política nacional de medicamentos (Portaria 3.916/MS/GM, de 30 de outubro de 1998), temos três segmentos de consumidores de medicamentos que se comportam de maneiras diferentes: a) o segmento com renda acima de 10 salários mínimos, com despesa média anual de US$ 193,40 (cento e noventa e três dólares norte-americanos e quarenta centavos) per capita, que tem farta cond ição de comprar os medicamentos e que tem baixa elasticidade de procura em relação ao preço, normalmente serão os segmentos em que os líderes de mercado se fixam após a perda de proteção patentária; b) o segmento com renda entre 4 e 10 salários mínimos, com despesa média anual de US$ 64,15 (sessenta e quatro dólares norte-americanos e quinze centavos), que tem condição de comprar os medicamentos, mas que tem grande 122 elasticidade de procura de marcas em relação ao preço, mas em se tratando de medicamentos tem baixa elasticidade para a procura de tratamentos, obviamente em relação com a sua essencialidade; e c) o segmento com renda entre 0 e 4 salários mínimos, com despesa média anual de US$ 18,95 (dezoito dólares norte-americanos e noventa e cinco centavos), que não tem qualquer condição de adquirir medicamentos e, portanto, está na situação muito próxima de inexistência de elasticidade em relação a preço, pois por mais baratos que os medicamentos se tornem ainda estarão acima de seu poder de compra – conforme informação divulgada pela Associação Pró-Genéricos, 50% dos pacientes que precisam de um medicamento não podem comprá- lo e abandonam o tratamento. O consumo per capita de Medicamentos no Brasil em 2001 pode, assim, ser representado no quadro a seguir: Ilustração 13 Distribuição do consumo de medicamentos por classe social 2001 Dessa forma, na classe B, na qual os medicamentos têm baixa elasticidade de procura em relação aos preços, os medicamentos acabam seqüestrando grande parte da renda das famílias; e na classe C, em que a procura é praticamente inelástica, temos um grande contingente de excluídos, o que gera um problema social que não pode ser resolvido por uma diminuição de preço dos medicamentos, mas apenas por uma elevação de renda. Entre novembro de 1999 e maio de 2000, a Câmara dos Deputados realizou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para verificar a situação do acesso da população brasileira aos medicamentos. A CPI dos Medicamentos desenvolveu intensa programação de trabalho, tendo sido realizadas 64 reuniões, compreendendo audiências públicas e reuniões de trabalho investigatório. Foram recebidos 2.488 documentos, contendo assuntos gerais e 150 mil documentos referentes à quebra de sigilo bancário. Transcrevemos uma pequena parte de seu relatório, que na época retratou o drama do 123 acesso aos medicamentos pela população brasileira, que levou o Governo Federal a buscar no controle de preços de medicamentos a solução para a crise. Segundo a revista americana The Economist, O Brasil é o 9.º país do mundo em consumo de medicamentos, mas, quando se trata de consumo per capita , ficamos atrás de mais de cinqüenta países. Enquanto alguns grupos sociais no Brasil têm um consumo anual semelhante aos dos países avançados, a grande maioria da população tem um consumo parecido com aqueles dos países mais pobres do mundo. Certamente, no interior do segmento de menor consumo per capita , existem grupos cuja despesa média anual é próxima do zero. Estes grupos dependem exclusivamente dos programas governamentais. Outros grupos, apesar de terem algum consumo, com despesa própria, despendem uma grande parte dos seus recursos para comprar remédios, deixando de atender outras necessidades, ou então, não conseguem comprar todos os medicamentos de que necessitam. O processo de envelhecimento da população brasileira, e o conseqüente aumento da incidência e prevalência de doenças crônicodegenerativas, torna ainda mais dramática a situação daqueles que não podem comprar medicamentos por sua própria conta e cria uma demanda cada vez maior, e de maior custo, para o sistema de saúde. Pelas evidências encontradas por esta CPI, podemos inferir que, sob o ponto de vista da saúde pública, temos um duplo problema: por um lado, um segmento com amplo acesso aos medicamentos, consumindo-os de forma abusiva e equivocada, conseqüência da extrema liberalidade de ação das farmácias e drogarias que vendem qualquer medicamento a qualquer pessoa que as procure; por outro lado, temos um grande contingente de população que não tem poder aquisitivo suficiente para comprar no mercado os produtos de que necessita, que depende dos programas governamentais do SUS, da assistência social ou da caridade alheia 122 . Inobstante esse entendimento da própria CPI dos Medicamentos e a própria experiência nacional com controles de preços, tal foi a solução dada para as falhas de concorrência no mercado de medicamentos que apontamos, que passamos a analisar, e sua capacidade de aumento do acesso da população aos medicamentos, para verificar sua validade em face dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal de 1988, estudando a aplicação da tese por nós defendida. 122 Relatório da CPI dos Medicamentos, título VI. 124 6. CONTROLE DE PREÇOS DE MEDICAMENTOS A experiência de controle e de intervenção de preços de medicamentos no Brasil modernamente pode ser dividida em vários períodos: a) o controle de preços realizado pelo extinto Conselho Interministerial de Preços – CIP, nos anos 1970/1980; b) a política do período dos Planos Collor I e II (1990/1992); c) o período de acompanhamento informal de preços que antecedeu o Plano Real (1993/1994); d) a liberação gradual do período mais recente (1997/1999) e, finalmente, o retorno de sua regulamentação, que é o objeto deste estudo. Nas décadas de 1970/1980 quase todos os preços da economia, em especial os de medicamentos, eram controlados diretamente pelo CIP. Exceção feita aos medicamentos fitoterápicos, oficinais e homeopáticos, todos os demais eram administrados por aquele órgão. O CIP foi criado pelo Decreto 63.196/1968 com a finalidade de realizar o acompanhamento de preços e de orientação geral da economia brasileira, tendo como membros os Ministros da Fazenda, da Indústria e Comércio, da Agricultura e do Planejamento e Coordenação Geral. Para aparelhar suas competências o CIP tinha poderes para (i) requisitar informações e esclarecimentos dos agentes econômicos, bem como apresentação prévia de preços programados, (ii) para restabelecer níveis de preços e (iii) determinar a intervenção do domínio econômico com base na Lei Delegada 4/1962 e a repressão ao abuso do poder econômico com base na Lei 4.137/1962. A aprovação de preços de medicamentos era feita pela Superintendência Nacional do Abastecimento (SUNAB) por força da Lei Delegada 5/1962. A edição do Decreto- lei 808/1969 pela Junta Militar que governava o País acabou concedendo todos os poderes para o CIP ser o órgão encarregado de aprovar os aumentos de preços de diversos produtos, inclusive os medicamentos. A lógica de determinação de preços pelo CIP, conforme os artigos 5.º e 6.º do Decreto 63.196/1968, seguia a linha de que os custos adicionados a um lucro considerado razoável pelos administradores públicos deveria ser igual ao preço autorizado, de modo que, em uma economia fechada, bastava que o agente econômico demonstrasse ao órgão um aumento de custos para automaticamente lhe ser concedido 125 um aumento de preço e, conseqüentemente, de faturamento, independentemente de qualquer esforço para aumentar sua participação no mercado ou até para ampliar seu mercado específico. Todavia, os resultados dessa política foram desastrosos, na medida em que o empresariado nacional, bem como as empresas multinacionais aqui instaladas, não buscaram mais uma melhoria em seus processos de produção com a queda de custos, já que isto se refletiria em uma barreira no momento da negociação de aumento de preços com o CIP. Sabe-se, por exemplo, que a Central de Medicamentos – CEME, órgão responsável pelo incentivo à produção nacional de medicamentos, que acabou se transformando simplesmente em comprador de medicamentos para as iniciativas governamentais, enfrentou, durante muito tempo, problemas de falta de oferta de diversos medicamentos, que, segundo os fornecedores, ocorreu por insuficiência de margem de lucro, em razão do controle exercido pelo CIP. O CIP, no entender de muitos empresários, foi o grande responsável pelas irregularidades de oferta de muitos medicamentos básicos no mercado na década de 1980. Os medicamentos mais tradicionais eram justamente os mais controlados, pelo seu maior consumo e necessidade. Em síntese, os empresários, para driblar o controle de preços, passaram a adotar vários expedientes, tais como: cobrança de ágio; “maquiagem” de produtos – pequenas modificações nos produtos controlados para justificar preços acima do permitido; adicional de frete; venda casada; superfaturamento, via compra direta da matriz; uso de matérias-primas e embalagens inferiores e até aumentos com autorização forjada. Se impossível a adoção de quaisquer desses expedientes, ocorria o desabastecimento. No início do Governo Collor, em março de 1990, quando se deu fim à existência do CIP 123 , os preços dos medicamentos e os demais preços da economia foram congelados em face do descontrole inflacionário (Portaria MDFP 106, de 16 de abril de 1990, Plano Collor I). Em agosto do mesmo ano, iniciou-se o processo de liberação de preços do setor e, em outubro, apenas os medicamentos de uso contínuo permaneceram sob controle. Esse período caracterizou-se por fortes elevações de 123 Cuja extinção se deu por meio da Lei 8.030, de 12 de abril de 1990, que instituiu a nova sistemática para reajuste de preços e salários em geral. 126 preços, o que motivou um no vo congelamento de preços em fevereiro de 1991, agora sob a égide do Plano Collor II. O período de descongelamento do Plano Collor II teve início com a instalação das Câmaras Setoriais 124 , mais especificamente com a Câmara Setorial da Indústria Farmacêutica. A partir da primeira reunião dessa Câmara, ocorrida em 24 de maio de 1991, teve início uma nova fase de reajustes de preços no setor, com a autorização de um aumento linear de 8% para todos os produtos (Portaria MEFP 418, de 29 de maio de 1991). Em junho foi autorizado novo reajuste (Portaria MEFP 430, de 3 de junho de 1991): os medicamentos de uso contínuo foram reajustados em 10,8%, e os de uso especial, em 6,48%. Na segunda reunião da Câmara Setorial, ocorrida em 28 de junho de 1991, foi autorizado novo reajuste de preços em forma de um abono no preço de venda, que variou de Cr$ 50,00 a Cr$ 1.250,00 (Portaria MEFP 594, de 3 de julho de 1991), ocasião em que foram liberados os preços dos homeopáticos, fitoterápicos e oficinais, medicamentos tradicionalmente liberados pela política de controle de preços. Nas duas reuniões seguintes, ocorridas em julho e setembro de 1991, novos reajustes foram acordados (Portarias MEFP 156, de 19 de agosto de 1991, 206, de 16 de setembro de 1991, e 953, de 7 de outubro de 1991). Na reunião de setembro ficou determinado para o mês seguinte o reinício do processo de liberação gradual de preços do setor, abrangendo 100 classes terapêuticas, assim classificadas: classes de venda livre, classes de receituário médico e de doenças crônicas. Iniciou-se o processo pelas classes de maior número de medicamentos e de empresas, sendo a primeira etapa autorizada pela Portaria MEFP 940, de 8 de outubro de 1991, que liberou 24 classes terapêuticas de venda livre. Com as Portarias MEFP 275, 309 e 363, respectivamente, de 7 de novembro de 1991, 27 de novembro de 1991 e de 20 de dezembro de 1991, foram iniciadas a segunda, a terceira e a quarta fases do processo de liberação de preços, com a inclusão do segundo, terceiro e quarto grupos de classes terapêuticas, permanecendo sob controle apenas as classes terapêuticas de doenças crônicas. Finalmente, em maio de 1992, foram liberados do controle governamental todos os preços dos produtos farmacêuticos da linha humana por meio da Portaria MEFP 37/1992. 124 Grupos de trabalho que tinham a participação de órgãos do governo e representações da iniciativa privada para propor medidas para o Governo ao lidar com diversos mercados relevantes. 127 No período que antecedeu o Plano Real, os preços foram convertidos para a URV pela média dos meses de setembro a dezembro de 1993, de acordo com o disposto na Medida Provisória 542, de 30 de junho de 1994, que tratou do Plano Real. De junho de 1994 até o final de 1996, o Governo manteve um entendimento informal com a indústria farmacêutica, por intermédio do qual foram fixados parâmetros de aumentos de preços a cada seis meses. Qualquer reajuste fora desse acerto era encaminhado à SDE/CADE, para ser objeto de investigação no âmbito da Lei 8.884/1994. Entre 1997 e 1999, o Governo, com base no disposto no art. 10 da Lei 9.021/1995, baixou a Portaria 127, de 27de novembro de 1998, que estabeleceu nova sistemática de acompanhamento de preços, determinando a obrigação de os laboratórios farmacêuticos comunicarem à Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE do Ministério da Fazenda os aumentos de preços dos remédios sujeitos à prescrição médica. Após a desvalorização cambial de janeiro de 1999, a SEAE firmo u um acordo de cavalheiros com os laboratórios nas seguintes bases: a) nos produtos importados prontos, o repasse do câmbio foi realizado em duas parcelas, projetando-se uma taxa de câmbio escalonada em duas etapas: a partir de R$ 1,21 em fevereiro, para R$ 1,43 em março e R$ 1,70 em abril. Para as matérias-primas importadas ficou acertado o repasse em três parcelas: R$ 1,36 em março; R$ 1,52 em abril; e R$ 1,70 em maio. No período julho/agosto de 1999, vigorou novo acordo objetivando o repasse do impacto das variações cambiais sobre os demais insumos (basicamente embalagens). Segundo a SEAE, o aumento médio acumulado foi de 8,0%. No final do ano 2000 foi editada a Medida Provisória 2.063, de 18 de dezembro de 2000, logo substituída pela Medida Provisória 2.138-2, de 28de dezembro de 2000, convertida na Lei Ordinária 10.213 aos 27 de março de 2001. Referidas normas instituíram novamente no Brasil o regime de congelamento e controle de preços de atividades particulares, especificamente dos preços de venda de medicamentos. O controle de preços de medicamentos foi atribuído à Câmara de Medicamentos – CAMED, conforme estipulado pelo artigo 12 da Lei 10.213/2001, que seria responsável pela aprovação e análise de tais preços, bem como dos seus aumentos 128 extraordinários e exclusão de categorias de produtos desse regime, entre outras atividades. Após a extinção da CAMED, pelo término da vigência da Lei 10.213/2001 em dezembro de 2002, foi feito um acordo entre a indústria farmacêutica e o novo governo para a manutenção dos preços de medicamentos. A proliferação de legislação relativa à saúde decorreu, evidentemente, da importância social dada ao tema. Por sua vez, a maciça intervenção estatal no mercado de medicamentos decorreu de sua crescente essencialidade na manutenção da saúde da população e, no caso particular do Brasil, do inexorável aumento da barreira existente entre aqueles que precisam dos medicamentos e o acesso a estes. As tabelas abaixo demonstram uma queda no consumo total de unidades de medicamentos no País 125 , um aumento de faturamento com vendas, se medido em reais, e uma queda desse faturamento se medido em dólares norte-americanos, para o período entre 1997 e 2003, portanto tanto sob o congelamento de preços quanto em período de liberdade de preços. A acentuada queda nas vendas de medicamentos é um indicativo do problema social de falta de acesso aos medicamentos, que se tornou também um drama da iniciativa privada, que vê o mercado de medicamentos cair a cada dia, com inegável impacto em seu faturamento, apesar da possibilidade de manutenção de lucro bruto em mercados monopolizados. 125 Fonte: Grupemef, elaborada pela Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica – Departamento de Economia. 129 Ilustração 14 Mercado Farmacêutico 1997 – 2003 (barras) Ilustração 15 Mercado Farmacêutico 1997 – 2003 (linhas) Por conta dos aspectos já estudados, os preços de medicamentos muitas vezes são elevados por refletirem as falhas de concorrência existentes no mercado, o que é agravado pelo poder conferido aos fornecedores, tendo em vista a baixa elasticidade da procura por conta da essencialidade do bem. 130 Em virtude das externalidades geradas pelo fornecimento de bens e serviços em saúde e sua importância na interdependência social, estes são considerados serviços públicos impróprios e, embora no Brasil sua exploração seja permitida para os agentes econômicos da iniciativa privada, estes são regulamentados pelo Estado, inclusive por determinação constitucional. Os problemas relativos ao mercado de medicamentos e sua importância social não são exclusividade do Brasil, embora aqui os problemas sejam agravados por não termos a criação de medicamentos inovadores pela indústria nacional, que também não tem como característica a detenção de marcas líderes de mercado, além dos problemas graves de distribuição de renda. Desta forma, diversos países criaram modelos de regulação do mercado de medicamentos, conforme tabelas trazidas pelo estudo do Ipea sobre a indústria brasileira de medicamentos 126 , que espelham as principais políticas de regulação de preços de medicamentos adotadas pelos países europeus, a primeira (10) com as políticas de intervenção e reembolsos e a segunda (12) 127 com as políticas para a diminuição de custos nos atos de prescrição, dispensação e consumo. 126 FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L., Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p.17-21. 127 “As políticas relacionadas na Tabela 12 podem ser descritas sucintamente da seguinte forma: Listas Positivas e Negativas: As agências de controle de qualidade de medicamentos podem aprovar um medicamento para ser lançado no mercado, mas isso não significa que ela os considere custo-efetivos, e, portanto, não necessariamente os medicamentos aprovados para consumo serão elegíveis para reembolso pelo sistema social de saúde. As listas que excluem determinados medicamentos do reembolso são ditas ‘listas negativas’ Diretrizes de Prescrição: Na verdade, essa é uma medida relacionada à provisão de informação, e equivale aos guias terapêuticos já sugeridos. Em alguns casos, esses guias estão disponíveis sob forma de programas de computador. Mas o monitoramento é necessariamente uma medida de enforcement para que o comportamento de prescrição do médico seja avaliado por seus pares. Cadastros únicos dos pacientes são manipulados com este fim, seja por meio da instituição do “guardião”, que é um clínico geral incumbido da triagem dos pacientes, seja através do uso de um smartcard. Orçamentos de Prescrição: Médicos individuais, grupos de médicos (Reino Unido) ou até regiões (Alemanha) são sujeitos a restrições orçamentárias, cujo enforcement se dá através de multas por excesso de despesa ou partilha de ganhos em caso de economia de recursos. Substituição de Medicamentos na Dispensação: Em geral, os farmacêuticos têm de dispensar exatamente o prescrito. Segundo Hudson (2000), na Europa os médicos freqüentemente especificam simplesmente o nome genérico do medicamento. Na maioria desses países, a substituição só é permitida em emergências ou casos excepcionais, e tem de haver o consentimento do médico, tick -in (em vez de haver a substituição a não ser que o médico proíba), (tick -out). Controle de Preços ou Preços de Referência: O preço de referência é o preço do medicamento (genérico) mais barato, e os custos são reembolsados só até esse valor; qualquer valor acima disso é pago pelo paciente ou pelo médico. Copagamento: Fazendo o paciente pagar por medicamentos parcialmente, o sistema de saúde o incentiva a cobrar do médico prescrições mais baratas. Prescrição de Genéricos: Em alguns países, a prescrição de genéricos é encorajada como forma de baixar custos; em outros, onde os preços são baixos, os genéricos não são devidamente promovidos” (FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 1721). 131 Ilustração 16 Controle de preços de medicamentos – referências internacionais Verificamos, portanto, que em diversos países apenas os medicamentos passíveis de reembolso têm seus preços controlados, numa fórmula mais suave apenas quanto ao valor do próprio reembolso e, em uma mais incisiva, quanto ao preço do medicamento em qua lquer situação, caso este esteja incluído nas listas de reembolso. Nesse aspecto temos uma aproximação do sistema de adesão vigente nos serviços públicos próprios, em que o particular adere ao contrato administrativo que lhe impõe a submissão ao controle estatal para ter um benefício econômico, pois também os fabricantes de medicamentos nesses países estarão sujeitos ao controle de preços de medicamentos reembolsáveis, mas em troca terão um incremento de suas vendas impulsionado pelo próprio reembolso. 132 Ilustração 17 Políticas de contenção de gastos em medicamentos – referências internacionais Nesta tabela percebemos que os países europeus se valem de diversas estratégias combinadas para combater as falhas do mercado de medicamentos e, assim, garantir a competição entre os fornecedores, que resulta em uma diminuição de preço. As listas de medicamentos passíveis de reembolso são um forte impulso para que o fornecedor mantenha preços baixos para seus produtos, pois apenas assim estes serão eleitos para reembolso pelos sistemas públicos de saúde. Dessa forma, o agente econômico não é obrigado a praticar preços baixos, mas é induzido a obter um aumento de vendas de seus produtos. As diretrizes de prescrição para os médicos visam tratar do problema de agência, fazendo com estes tenham a preocupação com os custos dos tratamentos que prescrevem. No mesmo sentido estão os orçamentos de prescrição que são concedidos a grupos de médicos para manejarem os custos dos tratamentos de uma população que está sob sua atenção, com recompensa financeira em caso de êxito. Os incentivos à prescrição de medicamentos genéricos visam ao combate ao problema de assimetria de informações, conforme mencionamos anteriormente, o que pode ser reforçado pela permissão de substituição da prescrição médica de um medicamento de marca por um medicamento genérico pelo farmacêutico. O co-pagamento visa combater um problema que existe nesses países, que é o aumento do custo de tratamento impulsionado pelos próprios pacientes, que por 133 não arcarem com os custos dos medicamentos, que são reembolsados pelo sistema público, não têm uma preocupação com seus custos. O problema não existe no Brasil, pois não temos políticas públicas de reembolso com gastos em medicamentos, temos apenas políticas de dispensação direta destes pelo Estado. O controle de preços por meio do estabelecimento de preços de referência, nesses países, não é feito nos moldes brasileiros, com a pura e simples imposição de um preço de venda, mas apenas com a imposição de um preço para o reembolso do medicamento pelos sistemas públicos, de modo que o agente econômico é induzido e não obrigado a praticar preços dentro de um patamar desejado pelo órgão regulador. Já os Estados Unidos da América se caracterizam pela peculiaridade de terem uma reduzida participação do Estado no financiamento de gastos da população com saúde, pois grande parte da população dispõe de seguros e planos de assistência médica privados, o que não impede que também sofram com o incremento de gastos com a saúde, que foram atacados pelo governo por meio de reformas na regulação dos seguros-saúde nas décadas de 1970 e 1980. O sistema preponderante até a década de 1980 era o de reembolso dos gastos dos segurados com medicamentos; como o médico era o fator determinante desses gastos, estava presente o problema de agência já discutido, agravado pela conhecida indústria norte-americana das indenizações, que fazia que os médicos não poupassem gastos que pudessem livrá-los de qualquer responsabilidade por má conduta, o que levou ao aumento de gastos com a saúde. A desregulamentação dos contratos de seguro a partir de meados dos anos 1970 deu liberdade às seguradoras de criarem um novo sistema, o Managed Care, cujas características fundamentais são: (i) o apontamento pelo segurado de um médico responsável por indicar e aprovar quaisquer gastos com procedimentos ou medicamentos, e (ii) os contratos de honorários médicos que contêm incentivos financeiros, que refletem os custos e benefícios de longo prazo obtidos com os tratamentos dos pacientes individuais e, também, da totalidade de seus pacientes, além do o paciente ter sempre o direito de indicar outro médico para a função. Dessa forma, o médico estará preocupado com os custos de tratamento, pois estes refletem em sua remuneração, e também com a saúde do paciente, para evitar 134 que este o substitua e também para que lhe indique outros pacientes, além de também se preocupar com o aspecto estatístico daquele grupo que está sob sua gestão 128 . Sendo assim, existe naquele mercado forte pressão por parte dos financiadores privados de tratamentos médicos e também pelo sistema público, medicare e medicaid, e, ainda pelos hospitais, para a troca dos medicamentos de marca pelos medicamentos genéricos, tendo em vista a redução de custos acarretada pela troca. A situação de mercado nesses países difere da do Brasil, pois “nos países desenvolvidos, o custo dos medicamentos é, em geral, reembolsado ao paciente ou pago diretamente ao fornecedor, seja pelo Estado (arranjo mais comum na Europa e Japão), ou por organizações privadas (caso dos Estados Unidos). A coincidência entre pagador e regulador significa que há incentivos em fazer fluir a informação e superar o problema dos bens credenciais, pois os benefícios são apropriados pelo mesmo ente”129 . A legislação brasileira relativa aos planos de saúde, bem como a regulação proveniente da ANS, não prevê a prestação de assistência farmacêutica com o fornecimento de medicamentos aos pacientes, deixando ao arbítrio de cada operadora de plano de saúde optar ou não pelo seu fornecimento. Como referidas operadoras efetivamente não optam por tal fornecimento espontaneamente, o Brasil não conta com os benefícios da pressão que as operadoras de plano de saúde poderiam fazer para a redução dos preços de medicamentos. 6.1. Legislação brasileira recente de controle de preços de medicamentos No Brasil, historicamente, a regulação de mercados muitas vezes é feita pelo controle ou congelamento de preços. Em verdade, o congelamento de preços nada 128 “Em Andrade e Lisboa (2000) sistematiza-se a evidência dos impactos do Managed Care tanto sobre os gastos médios com saúde quanto com a sua taxa de crescimento, ambos inferiores ao do sistema de contrato tradicional. Além disso, há evidência de que os médicos realizam uma quantidade maior de exames preventivos no Managed Care do que no sistema tradicional. Em Lisboa e Moreira (2000) mostra-se que os grupos com maiores perdas de renda em caso de doença, precisamente a PEA, são os maiores beneficiados pelos contratos de Managed Care, enquanto a população idosa pode preferir os contratos tradicionais que, ainda que mais caros, oferecem maiores benefícios no curto prazo. Esse resultado, como discutido em Andrade e Lisboa (2000), é consistente com os fatos estilizados do mercado de seguros norte-americano em que a maior parte da PEA revela preferência pelo primeiro tipo de contrato” (FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 23). 129 FIÚZA, Eduardo P. S.; LISBOA, Marcos B. L. Bens credenciais e poder de mercado: um estudo econométrico da indústria farmacêutica brasileira. p. 17. 135 mais é do que um controle de preços com prazo prefixado de manutenção dos preços tabelados, pelo que daremos o mesmo tratamento a ambos. Importante neste ponto fazer menção a que nossas críticas ao controle de preços são voltadas para a atividade privada, não se referindo aos serviços públicos prestados por particulares, em regime de concessão de maneira mono ou oligopolizada ou prestados em regime de direito público, na medida em que nestes não temos concorrência que pudesse levar a uma estabilização de preços, pois estamos diante de um monopólio legal. Após o CIP e os congelamentos gerais de preços em nossa economia, tivemos uma situação de liberdade em relação ao tema específico de preços de medicamentos, exceto pelos processos abertos pelo CADE por abuso de poder econômico, os quais foram por uma razão ou outra todos arquivados. No apagar das luzes do ano de 2000, foi, novamente, implementado o congelamento e controle de preços de medicamentos por meio da Medida Provisória 2.063, de 18 de dezembro de 2000, logo substituída pela Medida Provisória 2.138-2, de 28 de dezembro de 2000, que foi até sua 4.ª (quarta) reedição, e, finalmente, se transformou na Lei 10.213, de 27 de março de 2001, que congelou os preços de todos os medicamentos pelo prazo de 1 (um) ano, permitindo aumentos por meio de uma complexa fórmula que aplicava o chamado Índice Paramétrico de Medicamentos. O controle de preços de medicamentos foi atribuído à Câmara de Medicamentos – CAMED, conforme estipulado pelo artigo 12 da Lei 10.213/2001, que seria responsável pela aprovação e análise de tais preços, bem como dos seus aumentos extraordinários, e exclusão de categorias de produtos desse regime, entre outras atividades. Muito embora a Lei 10.213/2001 tivesse previsão, em seu artigo 12, de uma forma de aumento de preços de medicamentos, tal aumento era extraordinário e excepcional, de modo que o ordinário em sua aplicação foi o congelamento dos preços, até porque não havia na lei critérios claros para a concessão desse aumento de preços. Os artigos 5.º e 6.º da Lei 10.213/2001 estabeleciam critério sui generis para a sujeição dos laboratórios farmacêuticos ao congelamento de preços, dividindo as empresas em duas classes distintas conforme tivessem praticado aumento dos preços de seus produtos no período de 1.º de novembro de 1999 a 31 de outubro de 2001 em percentual: (i) maior ou igual; ou (ii) menor ao Índice Paramétrico de Medicamentos, arbitrariamente fixado em 4,4% (itens 2.1 e 2.2 do anexo da Lei 10.213/2001). 136 As empresas que se enquadravam no primeiro grupo não podiam aumentar seus preços enquanto perdurasse o congelamento, e as empresas que se enquadrassem no segundo grupo poderiam aumentar seus preços em janeiro de 2001 até o limite do Índice Paramétrico de Medicamentos (4,4%) considerado, no período de 1.º de novembro de 1999 a 31de outubro de 2001, respeitado o limite de 135% do Índice Paramétrico de Medicamentos. Dessa forma, as empresas sujeitas ao congelamento de preços tinham sua conduta posterior à vigência da Lei 10.213/2001 (possibilidade de utilização do aumento em janeiro de 2001) determinada por atos praticados antes dessa vigência (entre 1.º de novembro de 1999 e 31de outubro de 2001). Com isso, a Lei 10.213/2001 impunha, de maneira dissimulada, a retroação dos seus efeitos, penalizando aqueles que, antes de sua vigência, adotaram conduta, que foi arbitrariamente vedada, qual seja ter aumentado seus preços acima do limite de 4,4% naquele período. Ora, a irretroatividade das leis existe justamente para impedir desmandos e perseguições, para impedir que alguém seja penalizado por conduta imutável, pois pretérita, uma vez que os sujeitos passivos da lei só devem, pois só podem, obedecê- la após sua vigência ou pelo menos, após sua existência, momento em que têm a consciência da conduta que a lei lhes impõe. Ademais, a irretroatividade das leis também protege o cidadão, em um sistema onde o criador da lei não conhece aqueles que por ela serão atingidos, pois sua incidência dependerá de atos futuros, evitando a criação de leis com “alvo s certos”, o que, exemplificando, pelo absurdo, seria equivalente ao governante, querendo castigar fulano, criar norma por medida provisória tornando crime conduta praticada no dia 17 de abril de 2001 que ele, de antemão, sabe que foi praticada por este. Portanto, a Lei 10.213/2001 éinconstitucional por ferir o artigo 5.º, inciso XXXVI, da nossa Constituição Federal, que trata da irretroatividade das leis. A lei em questão também trazia inválida delegação de poderes à CAMED 130 , que segundo esta tinha poderes para, sem parâmetros definidos, (i) julgar os pedidos de reajustes extraordinários de preços, (ii) decidir pela exclusão de grupos ou classes de medicamentos da incidência do regime de congelamento de preços e (iii) 130 Integrada pelo Chefe da Casa Civil, Ministro de Estado da Justiça, Ministro de Estado da Fazenda e Ministro de Estado da Saúde, e com comitê técnico formado pelo Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça, o Secretário de acompanhamento econômico do Ministério da Fazenda e um representante da Casa Civil. 137 definir os documentos a serem apresentados nos Relatórios de Comercialização que deveriam ser apresentados, mensalmente, pelos laboratórios farmacêuticos. O princípio da legalidade, base dos países minimamente democráticos, está cristalino no artigo 5.º, inciso II, de nossa Carta Magna (“ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei”), cabendo repetir em virtude de lei, e, não em virtude de decreto, de portaria ou até de resolução de quem quer que seja, pois estas normas simplesmente não são lei como requer o princípio constitucional. Assim, não é possível que nenhum órgão público inove o ordenamento jurídico, criando, extinguindo ou modificando Direitos, como tinha poderes para fazer a CAMED, por transferência, pela Lei 10.213/2001. Isto significa dizer que a criação de direitos e deveres é prerrogativa apenas do Poder Legislativo, e não tendo este poder criado tal obrigação, não poderia o Poder Executivo fazê-lo, a menos que houvesse uma delegação legislativa pelo Congresso Nacional transferindo a competência para legislar sobre determinado tema específico para o Presidente da República – único apto a receber tal delegação, ou por meio de medidas provisórias, que, na verdade, nada mais são do que um poder. O conteúdo do artigo 12 da Lei 10.213/2001 pretendeu realizar, disfarçadamente, referida delegação, conferindo à Câmara de Medicamentos prerrogativa justamente para inovar o ordenamento jurídico sem quaisquer parâmetros ou objetivos que deveriam ser perseguidos ou alcançados com seus atos regulamentares: (i) alterando o aspecto subjetivo da hipótese de incidência da Lei – com poderes para “excluir grupos ou classes de medicamentos da incidência”; (ii) julgar, segundo os critérios que inventasse, conforme deixa claro o inciso VII do referido artigo 12, ao frisar que a câmara iria “elaborar ... os critérios para a concessão de reajuste extraordinário de preços”; assim o inciso I do artigo 12 da Lei 10.213/2001 obrigou o empresariado nacional à mendicância por aumentos de preços, com grau inaceitável de discricionariedade pelos administradores públicos; (iii) “regulamentar [na verdade criar critérios e normas jurídicas pois estes não estão na lei] a redução dos preços dos medicamentos que forem objeto de redução de tributos”. Ora, o princípio da legalidade existe justamente para frear os arroubos do Poder Executivo e garantir que a vontade do Congresso – verdadeiro sensor da vontade social e espelho da sociedade que o elegeu – seja soberana sobre as das demais funções do Estado, sendo certo que, ao votar fato consumado (como todos os outros abusos de 138 medidas provisórias) de alto apelo de marketing político, não expressa livremente esta vontade, como bem sabe nosso Poder Executivo. O critério para a permissão caso a caso de Reajuste Médio de Preços decorria da diferença entre a Evolução Média de Preços da empresa 131 e o Índice Paramétrico de Medicamentos de 4,4%. Conforme se verifica no item 2.1 do Anexo da Lei 10.213/2001, que definia a Fórmula Paramétrica de Reajuste de Medicamentos, o EMP era calculado com base em variáveis definidas pelo histórico de faturamento do medicamento no período de 1.º de novembro de 1999 a 31 de outubro de 2000 e seus preços no período de 1.º de agosto de 1999 a 30 de novembro de 2000, informações que deviam ser fornecidas na forma da Resolução 1 da CAMED. Em 6 de setembro de 2001, o Presidente da República editou a Medida Provisória 2.230/2001, que alterou radicalmente esse sistema de aplicação da análise de preços de lançamento de novos produtos/novas apresentações de medicamentos, dando novos poderes para a CAMED, além de estender o congelamento de preços até dezembro de 2002. Segundo essa nova medida provisória, os medicamentos ou apresentações vendidos a partir de 2002 tinham regime jurídico diferenciado para o estabelecimento de seus preços iniciais. Segundo o parágrafo único inserido no artigo 8.º da Lei 10.213/2001, “as novas apresentações incluídas na lista de produtos vendidos pela empresa, em 2002, observarão os critérios de definição de preços unitários iniciais estabelecidos pela Câmara de Medicamentos e não poderão ser elevados até 31 de dezembro de 2002”. E, de acordo com o parágrafo único, inserido no artigo 9.º da Lei 10.213/2001, “os produtos novos incluídos na lista de produtos vendidos pela empresa, em 2002, observarão os critérios de definição de preços unitários iniciais estabelecidos pela Câmara de Medicamentos e não poderão ser elevados até 31 de dezembro de 2002”. Referida Medida Provisória permitiu que a partir de 2002 a Câmara de Medicamentos: 1) determinasse livremente “os critérios de definição de preços unitários iniciais” das novas apresentações, que, anteriormente, teriam de ser inferiores apenas à 131 Evidentemente inexistente para produtos não comercializados pela empresa anteriormente. 139 média dos preços unitários das apresentações já existentes, dando, assim, competência para a CAMED alterar por Resolução o mandamento da norma jurídica em questão; e 2) determinasse livremente “os critérios de definição de preços unitários iniciais” dos novos produtos, que, anteriormente, não estavam sujeitos à análise de seus preços de lançamento, dando competência, na melhor das hipóteses, para a CAMED alterar por Resolução o mandamento dessa nova norma jurídica que determina a análise dos preços de lançamento dos medicamentos novos. Mas não é só: a Medida Provisória em questão foi editada pelo Presidente da República no dia 6 de setembro de 2001, contendo normas para aplicação apenas em 2002. Ora, é sabido que, nos termos do artigo 62 da Constituição Federal de 1988, em sua redação original, o Presidente da República só pode adotar Medidas Provisórias “em caso de relevância e urgência”. Parece-nos evidente que não havia urgência na edição da referida medida provisória, posto que foi editada em setembro de 2001 com sua eficácia apenas para o ano de 2002, sendo contraditória a determinação dessa eficácia diferida, com o próprio conceito de urgência, pois o que urge não pode esperar, ainda mais tendo em vista que as medidas provisórias, na forma da Constituição Federal em vigor, na ocasião tinham vigência de apenas 30 dias. Dessa forma, nosso Presidente da República poderia, sem maiores dificuldades, ter feito projeto de lei para submissão à votação de nossas Casas Parlamentares no regime de urgência, previsto no parágrafo único do artigo 64 da Carta Magna. Este seria o caminho constitucional e, acima de tudo, democrático. No dia 5 de setembro de 2001, o Plenário do Senado Federal aprovou a Emenda Constitucional 32, que impediu a reedição de medidas provisórias mais de uma vez, mas, em seu artigo 2.º, determinou que as medidas provisórias editadas em data anterior à sua publicação permanecessem em vigor até sua revogação por outra medida provisória ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional. No dia da votação da Emenda, o Deputado Efraim Morais convocou sessão no Plenário da Câmara dos Deputados para o dia 11 de setembro de 2001 para a promulgação da referida Emenda Constitucional 32, e no dia 6 de setembro de 2001, foi publicada a citada medida provisória. Assim, referida Medida Provisória, como tantas outras, teve vigência como se lei fosse, atitude premeditada e contrária à moralidade administrativa, posto 140 que voltada a burlar as normas constitucionais voltadas à provisoriedade, por isso denominadas medidas provisórias. Com efeito, tal medida provisória, além de inconstitucional, conforme já apontamos, padeceu de outro vício insanável pela ausência do pré-requisito da urgência existente na redação original do artigo 62 da Constituição Federal e existente na nova redação do artigo dada pela Emenda Constitucional 32/2001. Assim, todos os seus efeitos, tanto no tocante à extensão do prazo de congelamento de preços de medicamentos, quanto na extensão dos poderes da Câmara de Medicamentos, são inválidos perante nosso sistema jurídico. 6.2. A atual regulamentação de preços de medicamentos pela Lei 10.742/2003 Após o término da vigência do congelamento de preços apontado acima, no vácuo criado pela mudança de governo causada pela eleição presidencial, vigorou um acordo entre os laboratórios farmacêuticos e o novo governo que manteve o congelamento de preços até a edição da Medida Provisória 123, de 26 de junho de 2003, que novamente congelou os preços de medicamentos até março de 2004, determinando que a partir de então os preços de medicamentos seriam definitivamente controlados, e que foi convertida na Lei 10.742, de 6 de outubro de 2003. Nos termos do citado artigo 4.º, a fixação de preços de medicamentos será baseada em um modelo de teto de preços calculado em três fatores, quais sejam: a) um índice monetário, o IPCA/IBGE, que contém em sua composição fatores que não estão relacionados com o mercado de medicamentos e não contém fatores intimamente relacionados com o setor, como por exemplo a variação cambial; b) um percentual de fator de produtividade destinado a passar para os consumidores os ganhos de produtividades da indústria, o que traz novamente as práticas do CIP, na medida em que as empresas deixariam de buscar a produtividade, pois esta se torna prejudicial na fixação oficial de seus preços; c) um fator de ajuste de preços relativos com um componente (i) intrasetor, com base no poder de monopólio, na assimetria da informação e nas barreiras à entrada; e (ii) entre setores; calculado com base na variação de custos de insumos, caso não sejam recuperados pelo IPCA/IBGE. Este último componente merece algumas considerações no tocante ao componente intra-setor. Em primeiro lugar, espanta que o componente realmente 141 relativo à análise casuística de mercados relevantes, verdadeira regulação econômica, tenha apenas ínfima influência na determinação dos referidos preços. Em segundo lugar, é bastante evidente que, ao inverter a relação, colocando o tabelamento de preços em primeiro lugar e para todos os medicamentos comercializados e, depois, permitindo uma análise oficial dos fatores concorrenciais, a efetivação da métrica se torna inviáve l, especialmente se considerarmos a divisão geográfica de mercados relevantes, pois (i) a máquina estatal não terá recursos humanos para a análise de todos os mercados relevantes (conforme já mencionado) e acabará por fixar índices gerais que não refletirão a realidade de cada mercado relevante, e (ii) a lógica de funcionamento da máquina estatal não conseguirá realizar as liberações de preços em velocidade suficiente para acompanhar a velocidade das oscilações de mercado, gerando prejuízos ao próprio mercado. O órgão responsável pela regulação de preços de medicamentos, segundo a Lei 10.742/2003, é a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que tem competência para estabelecer critérios para fixação de margens de comercialização de medicamentos a serem observados pelos representantes, distribuidores, farmácias e drogarias, inclusive das margens de farmácias voltadas especificamente ao atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica (art. 6.º, inciso V). A prática não é nova, pois desde a Portaria MEFP 37/1992 já tivemos a fixação de margens de lucros das farmácias em 30%, com resultados desastrosos, conforme apontou a CPI dos medicamentos, que inclusive também concluiu pela sua inconstitucionalidade: Por outro lado, as investigações feitas demonstraram, claramente, que a Portaria n. 37/92, por prefixar margens para as distribuidoras e farmácias, estimula a prática de sobrestimação de custos/preços. Assim, para cada 1% de aumento nos custos dos la boratórios, ela repercute em acréscimo de 1,43% no preço de varejo do medicamento. Ademais, é patente a sua inconstitucionalidade por prefixar margem de custos/lucros das distribuidoras e farmácias, razão pela qual estamos propondo sua revogação. De modo que igualmente entendemos absurda a manutenção da referida medida até os dias de hoje e inconstitucional também esta reincidência da Lei 10.472/2003 nos erros do passado. Referida norma cria órgão específico para a regulação do setor, o que é saudável tendo em conta suas especificidades e relevância social, porém anda mal ao 142 determinar que a composição do órgão será feita pelo Executivo, que o fez por meio do Decreto 4.776/2003, determinando que o órgão será composto por um Conselho de Ministros presidido pelo Ministro da Saúde, com a participação do Chefe da Casa Civil da Presidência da República, do Ministro da Justiça, e do Ministro da Fazenda, determinando que as decisões serão tomadas por unanimidade, o que é claramente contrário à agilidade na tomada de qualquer decisão que dependa de negociação entre as pastas. O Conselho de Ministros terá competência para I –aprovar critérios para reajustes de preços de medicamentos; II – decidir pela inclusão ou exclusão de produtos no regime de tabelamento; III – aprovar o regimento interno da CMED; e IV – aprovar os preços dos medicamentos que forem objeto de alteração da carga tributária. Para as funções operacionais foi constituído um Comitê Técnico Executivo coordenado pelo Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e composto pelo Secretário- Executivo da Casa Civil da Presidência da República, pelo Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça, e pelo Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda. Dessa forma, percebe-se que não foi criada uma agência com poderes independentes, mas simplesmente um órgão do Poder Executivo, que certamente decidirá as questões do mercado farmacêutico segundo critérios políticos, com os problemas decorrentes da intervenção política em suas decisões132 . Pelo exposto, quanto às falhas existentes no mercado nacional de medicamentos, fica clara a necessidade de regulação desse mercado para que sejam criadas condições efetivas de concorrência 133 , salientando que a intervenção só se 132 “Com efeito, dentro de uma perspectiva normativo-constitucional, o Direito de proteção à concorrência é entendido como legislação que dá concretude aos princípios jurídicos da livre iniciativa, de livre concorrência e da repressão ao abuso do poder econômico – princípios de base da ordem econômica constitucional brasileira. Essa característica, de certa forma comum a todos os ordenamentos jurídicos de nações cujo sistema econômico é o de mercado, impõe seja a aplicação das normas antitruste administrada por autoridades administrativas independentes – autarquias no Direito Brasileiro – e pelo Poder Judiciário, isolando-a de pressões políticas mais imediatas. Diferem, assim, de outros instrumentos de política econômica sob controle direto do poder Executivo” (NUSDEO, Ana Maria O. Defesa da concorrência e globalização econômica: o controle da concentração de empresas. p. 63). 133 “Na teoria de preços, num regime de concorrência, existem o preço normal e o de mercado. O preço normal é praticamente inviável de obtenção, considerando o dinamismo social e a constante mutação das relações e as condições econômicas. O preço de mercado é aquele constatado em determinado momento, influenciado pelo jogo da oferta e procura de bens. Sua determinação condiciona-se às leis do mercado, que são: regra da utilidade, entendendo-se que o preço é único num dado momento para um objeto determinado; regra de ação, na qual o preço tende a subir quando a procura excede a oferta e o preço tende a baixar na situação inversa; regra de reação, na qual a alta de preços tende a reduzir a procura e a aumentar a oferta, assim como a baixa faz aumentar a procura e diminuir a oferta; regra do equilíbrio, na qual o preço se estabelece a tal nível que a oferta se iguala à procura. 143 justifica nos mercados relevantes em que esta realmente não se apresente, devendo ser eficaz para instaurá- la e não para substituí- la, como ocorre com o controle de preços. Apenas assim será possível atender ao disposto no artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal, bem como ampliar o acesso da população às ações e tratamentos de saúde para atender ao disposto nos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, pelo que devemos estudar se a medida tomada pelo Governo Federal é legítima para tal finalidade. Com efeito, a fixação de preços pelo Estado gera a obrigação, para o agente econômico, de praticá-lo no limite fixado, daí se originando dois Direitos distintos: o público, do Estado, de ver cumprida sua determinação, tendo em vista a satisfação do interesse social e o privado, da parte adversa contratante, de ver satisfeito o seu interesse, pessoal, em não pagar mais do que o definido pelo texto normativo134 . No regime de controle de preços o agente econômico só poderá cobrar pelos seus produtos os valores autorizados pelo órgão competente para definir seus preços, podendo, em caso de descumprimento, tanto ser penalizado administrativamente quanto ser acionado pelos compradores de seus produtos. Ora, o controle de preços trata das conseqüências da falta de concorrência, dos seus efeitos, sem efetivamente tratar das causas que levam ao seu aumento abusivo, sem combater as falhas de concorrência que já apontamos neste trabalho. É uma medida extrema que substitui o próprio mercado, pois bloqueia o sinal que os agentes econômicos trocam entre si, qual seja o próprio preço. Referida medida acaba gerando grande poder para o administrador público, que passa a ter a competência para tomar a decisão sobre o aumento de preço solicitado pelo fornecedor. Dessa forma, o poder econômico acaba submetido ao poder político, que passa a dar uma finalidade ao mercado, contrastando com a própria idéia de concorrência, que levaria os fornecedores, na ânsia de aumentar sua participação no mercado, a buscarem diferenciais entre si de forma aleatória. O controle de preços aniquila a efervescência do mercado, que é responsável pelas suas próprias evoluções inusitadas, selecionadas pelas escolhas do consumidor. Com o controle de preços o poder político dá uma finalidade ao mercado, a finalidade política que acaba com essa efervescência natural do mercado, já que o Ocorre, no entanto, que essas regras que atuam no mercado livre de determinações nem sempre apresentam os resultados pretendidos, gerando desequilíbrios. Nesse momento se justifica a intervenção do Estado para regular e reequilibrar a economia, afastando as distorções geradas” (SANCHEZ, C. G. Aspectos da relação entre estado e iniciativa privada: enfoque constitucional. p. 86-87). 134 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. p. 86-87. 144 agente econômico passa a jogar conforme a Teoria dos Jogos, anteriormente explicada, não mais com base nos movimentos dos consumidores, mas sim com base nos movimentos do governo, passando a buscar a maximização de seus resultados por meio desse relacionamento com o governo. O fenômeno é o mesmo que já ocorreu nos tempos do CIP, quando os agentes econômicos deixaram de buscar o aumento de produtividade e redução de custos simplesmente porque para maximizar seus resultados não poderiam diminuir seus custos, pois se o fizessem não teriam argumentos para obter aumentos de preço. Outro malefício do controle de preços é o risco de o administrador público responsável por aprovar os aumentos de preços passar a utilizar seu poder para fins próprios, sejam escusos ou simplesmente políticos, não de política social, mas de sua própria política, o que é até natural já que para este a maximização dos resultados se dá pela popularidade de suas medidas e não pela sua eficiência, de modo que poderá adotar medidas populares mas ineficientes do ponto de vista econômico. Em nosso entender é ingênuo argumentar que o administrador público procurará sempre as medidas mais eficazes porque gerarão melhorias econômicas que lhe darão maior popularidade, na medida em que seus interesses pessoais tendem a interferir em seu critério de julgamento. Como é natural, os políticos têm em mente sempre o calendário eleitoral, de modo que suas medidas têm de produzir resultados sensíveis no período pré-eleitoral, para que possam colher resultados nas próximas eleições, ainda que as medidas produzam efeitos negativos após esse prazo, e também há assimetria de informações nas eleições, de modo que o que importará para o político não são os efeitos reais de suas medidas mas sim os efeitos perceptíveis pelo eleitor. Efetivamente, diversas opções econômicas podem ser tomadas para ter um bom resultado em curto prazo, com péssimos resultados em longo prazo. É o caso, por exemplo, do aumento de importações de países que, por diversas razões, possuem preços mais competitivos em relação aos fornecedores nacionais (p. ex., legislação trabalhista, fiscal ou ambiental mais branda), o que gera uma redução momentânea de preços mas acaba por desmantelar o parque industrial nacional, criando dependência de importações, como ocorrido no mercado de matérias-primas farmacêuticas. Ainda que todos os agentes econômicos e políticos sejam extremamente bem-intencionados e totalmente desprendidos de seus interesses pessoais – hipótese absolutamente cerebrina, já que, infelizmente, sabidamente irreal –, o controle de preços 145 trará malefícios a longo prazo porque (i) os detentores de capital serão arredios a fazer investimentos em um mercado sujeito a possíveis humores políticos, e (ii) os políticos teriam de ser oniscientes em relação às informações do mercado, dos fornecedores e dos consumidores envolvidos para conseguirem ajustar totalmente os preços tabelados à realidade temporal e regional dos mercados relevantes em tempo real, o que evidentemente é impossível, de modo que suas decisões têm grande probabilidade de serem equivocadas, intempestivas e injustas, gerando graves desequilíbrios e instabilidades para o mercado regulado, o que gradativamente levará ao desabastecimento 135 . Por estas razões o controle de preços de medicamentos não foi recomendado pela própria CPI dos medicamentos: Dentro do atual quadro político-econômico brasileiro não há mais campo para a prática de políticas de tabelamento de preços. A experiência passada a respeito foi desastrosa, especialmente no caso dos medicamentos. Os laboratórios, para driblar o controle de preços, passaram a adotar vários expedientes: cobrança de ágio; “maquiagem” de produtos; venda casada; preços de transferência na compra de matéria -prima diretamente da matriz; uso de matérias-primas e embalagens inferiores e até aumentos com autorização forjada. Se 135 “Quais serão as conseqüências deste controle de preços? Podemos analisá-las utilizando o instrumento já desenvolvido de oferta, demanda e equilíbrio. Ao preço P1 haverá demanda insatisfeita. Nem toda a quantidade desejada pelos consumidores (Q0) pode ser adquirida, pois os ofertantes só desejam vender a quantidade Qs. Sem o tabelamento, surgiriam pressões para os preços aumentarem, de forma que tornasse a quantidade demandada igual à oferecida. Em outras palavras, o mecanismo de preços é responsável ou é a forma pela qual a quantidade ofertada se distribui entre os consumidores. Com o aumento de preços, desaparece o excesso de demanda. Estabelecido o tabelamento, os preços não poderão subir. Serão necessários outros mecanismos para distribuir a quantidade ofertada entre os consumidores. Vários sistemas aparecem espontaneamente. Vamos apresentá-los por meio de um exemplo. Suponhamos que joguem, no Morumbi, São Paulo e Corinthians decidindo o campeonato paulista. Os ingressos são tabelados e limitados. O público que deseja apreciar o espetáculo é maior que a capacidade do estádio. Surge o excesso de demanda. Como este problema pode ser resolvido? Existem várias possibilidades. I – surgirem filas nas bilheterias. Os primeiros que chegarem serão contemplados. As filas aparecem não só no futebol, mas nos cinemas, nos ônibus e outros. É critério que surge quando aparece excesso de demanda. II – serem feitas vendas por debaixo do pano. A Federação Paulista de Futebol reserva certo número de ingressos e os vende aos amigos. Em geral, a Federação separa parte dos ingressos aos clubes, e estes os vendem a seus diretores e conselheiros. Esses adquirem ingressos sem precisar entrar em filas. Mas não é só neste caso que surgem essas vendas. Podem surgir para qualquer produto que seja escasso em certo momento. Um vendedor qualquer recebe produção limitada de determinado artigo de grande demanda. Para quem ele vai vender? Em geral, vai dar preferência aos fregueses antigos, aos amigos e a outras pessoas, por outras razões. Para os demais consumidores, a mercadoria “está em falta” III – surgir o mercado negro. Alguns elementos (cambistas) compram certas quantidades de ingressos e os vendem a preços maiores que os fixados, daí auferindo lucros. O mercado negro surge quando a autoridade não dispõe de meios adequados para fiscalizar as vendas. O mercado negro pode surgir no atacado ou no varejo, dependendo das condições de mercado e de fiscalização. Assim, por exemplo, se houver poucas empresas produtoras do bem tabelado, a fiscalização nesse nível é fácil e operante. Mas, se no varejo houver muitos vendedores, as dificuldades de fiscalização poderão causar o aparecimento do mercado negro. Essas três são as formas mais comuns e surgem espontaneamente no mercado” (PINHO, Diva B.; VASCONCELOS, Marco A. S. (Org.). Manual de economia. p. 153 e 154). 146 impossível a adoção de quaisquer desses expedientes, ocorria o desabastecimento. Por outro lado, o tabelamento de preços, além de não assegurar preços estáveis por prazos razoáveis, afugenta os investimentos que poderiam ser feitos no setor, seja para pesquisa e desenvolvimento para a produção de novos medicamentos, seja para a implantação de plantas mais modernas e produtivas. Não há, portanto, em economias de livre mercado, como a nossa, alternativa para evitar a prática de preços excessivos e lucros arbitrários que não seja através dos instrumentos de controle indireto de preços, via monitoramento e acompanhamento do mercado. Em absoluto defendemos a desregulamentação do setor. É dentro dessa ótica que entendemos deva ser construído um ambiente de regulação de preços que possa superar os problemas decorrentes das falhas de mercado e assegurar o equilíbrio relativo dos preços de medicamentos. É isso que existe nas economias de mercado do mundo e o Brasil não pode se afastar dessa realidade 136 . As mesmas opiniões foram expressas pelo Ministério da Fazenda: O Ministério da Fazenda é de opinião que trata-se de alternativa que não pode ser descartada, tendo em vista a importância do setor para a saúde e para a poupança da população. O Ministério é, entretanto, de opinião que as medidas de natureza estrutural e regulatórias acima discutidas, uma vez adotadas, terão o condão de assegurar evolução módica de preços nesse setor. O Ministério é de opinião que essas medidas devem ser implantadas antes de ser considerada a hipótese mais traumática de controle de preços. Isto porque a eventual instituição de sistema de controle de preços (i) poderia ter o efeito, indesejável, de inibir investimentos no setor, inclusive em pesquisa e desenvolvimento; (ii) seria contrária ao processo de liberação de preços da economia que o Brasil vem conhecendo ao longo dos últimos anos , e que tem efeitos benéficos para o grau de competição entre os agentes econômicos; (iii) introduziria distorções no funcionamento do setor, principalmente por substituir, com relação a preços, as decisões dos agentes econômicos pelas decisões, necessaria mente menos eficientes, do Governo 137 . O tabelamento de preços também encontra dificuldades práticas de aplicação, que o tornam ineficiente, conforme apontou Paulo Correa, SecretárioAdjunto da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda 138 , na época da própria CPI dos medicamentos: O tabelamento de preços não funciona por diferentes razões. Uma delas é que a empresa regulada detém, por definição, mais informações sobre o seu negócio que o órgão regulador. Nessa situação, é difícil para o órgão regulador distinguir despesas legítimas das ilegítimas e praticamente impossível definir os preços socialmente 136 CPI dos Medicamentos, Título XII – Conclusões. Nota a imprensa, sobre preços de medicamentos, divulgada em 27.11.1998. 138 CORREA, Paulo. Para além do tabelamento. Disponível http://www.fazenda.gov.br/seae/arquivos/artigo_remedios.pdf. Acesso em: 15 out. 2003. 137 em: 147 ótimos. Mesmo que fosse possível calcular tais preços, vigiar a sua aplicação não seria uma tarefa factível: são mais de 10 mil apresentações de medicamentos éticos comercializados em mais de 42 mil drogarias. Por isso, não há experiência internacional exitosa de tabelamento de preços. Mesmo o Canadá, que vem sendo mencionado como exemplo a esse respeito, controla apenas os preços dos medicamentos com patente em vigor no país. No Reino Unido, outra referência freqüente, o que existe desde 1993 é uma política de compras públicas que estabelece, como condição de aquisição, um nível máximo de reajuste de preços, o que é distinto do simples tabela mento de preços de medicamentos vendidos em drogarias. A previsão de sanções à fixação de preços abusivos, que consta da Lei 8884/94, apresenta pelo menos um problema operacional. O conceito de preço “abusivo” só faz sentido quando existe um parâmetro de referência. Ao definir esse parâmetro, entretanto, todos os preços superiores tornam-se, por conseqüência, ilegais. Estaríamos, portanto, de volta ao sistema de tabelamento de preços, com todas as contraindicações conhecidas. Alternativamente, poder-se-ia considerar “abusivo” todo o preço decorrente de uma conduta anticompetitiva, independentemente do parâmetro de referência. Esta interpretação implica, entretanto, redirecionar o foco da questão do simples tabelamento de preços para o da investigação das condutas que lhes dão origem. É sintomático que todos os 151 casos de abusividade de preços (35 da indústria farmacêutica) julgados pelo CADE, entre 1997 e 1998, tenham sido considerados improcedentes. O resultado desastroso do tabelamento de preços pode ser observado empiricamente nas tabelas preparadas pela Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica, que engloba as associações representativas dos laboratórios farmacêuticos, nacionais e internacionais, que operam tanto com medicamentos inovadores quanto com genéricos e similares. A primeira tabela representa a perda de faturamento da Indústria Farmacêutica com vendas de medicamentos no Brasil: 148 Ilustração 18 - Indústria Farmacêutica no Brasil vendas sem impostos em US$ 2000-2003 A Tabela abaixo aponta a perda de recolhimento de impostos incidentes sobre as operações da Indústria Farmacêutica: Ilustração 19 Indústria Farmacêutica – Arrecadação 2000-2003 149 A Tabela a seguir espelha a perda de postos de Trabalho na Indústria Farmacêutica no Brasil: Ilustração 20 Indústria Farmacêutica – Postos de Trabalho 2000-2003 A seguir, temos a tabela que demonstra o quanto arredios os detentores de capital se encontram com o me rcado brasileiro de medicamentos, por meio da perda de investimentos em ativos fixos na indústria farmacêutica no Brasil, demonstrando que os capitais estão migrando para outros investimentos e que, a longo prazo, a competição no mercado de medicamentos tende a diminuir ainda mais como efeito da redução da oferta de medicamentos e presença de concorrentes neste mercado. Ilustração 21 Indústria Farmacêutica – Investimentos e Expectativa de Investimentos 2000-2003 150 E, por fim, a queda das Exportações da Indústria Farmacêutica nacional, que sinaliza nossa perda de competitividade em relação ao mercado internacional de medicamentos. Ilustração 22 Indústria Farmacêutica – Exportações e Expectativa de Exportações 2000-2003 Da análise das tabelas acima, podemos extrair que a política de congelamento e controle de preços, que já não solucionou o problema do acesso a medicamentos da indústria nacional nos anos 1970/1980, também não produziu efeitos positivos em seu renascimento recente, pelo que a Lei 10.742/2003, que, novamente, impôs esse sistema de autoridade nesse mercado, certamente também não resolverá o problema, pois, como dito, cuida apenas dos efeitos das falhas do mercado de medicamentos e não de suas causas, que no entanto perduram. Ademais, o controle de preços contido na Lei 10.742/2003 prevê reajuste de preços anuais, o que apenas serve para aumentar sua ineficiência, tendo em conta que a rapidez do sistema econômico não se ajusta à lentidão de apenas anualmente poder se dar o reajuste de preços, de modo que o estabelecimento de prazo fixo apenas aumenta a assincronia existente entre os sistemas econômico, jurídico e político, o que milita fortemente contra o próprio sentido da regulação feita pelo Poder Executivo, que visa reduzir e não aumentar tal assincronia. 151 Portanto, considerando o disposto nos artigos 196 da Constituição Federal, que determina que somente serão constitucionais as medidas eficazes do ponto de vista econômico para aumentar o acesso da população aos medicamentos e que, como visto, o congelamento de preços não é eficaz para tal finalidade, resta evidente a sua inconstitucionalidade. Neste ponto é importante salientar que o debate, ora em pauta, em relação à aplicação dos artigos 196 e 197 da Constituição Federal não tem qualquer relação com os aspectos já questionados do controle de preços de mensalidades escolares perante o Supremo Tribunal Federal, com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 319-4, proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem), que, conforme já comentamos, está desconforme ao artigo 170 da Constituição Federal. A importância de realizar a diferenciação decorre do fato de os serviços de educação terem em comum com o setor de saúde serem serviços públicos não privativos e, portanto, neste ponto existir a possibilidade de confusão dos debates ali travados com os ora realizados. Pois bem, naquela oportunidade a Confenem sustentou a impossibilidade do controle de mensalidades escolares por afronta ao artigo 170 da Constituição Federal, especialmente no tocante à livre-iniciativa e a livre concorrência, o que nos parece absolutamente correto, conforme já colocamos. Neste ponto do estudo, sustentamos algo diferente, pois alé m da inconstitucionalidade de qualquer controle de preços debatida no início deste trabalho, agora sustentamos a inconstitucionalidade do controle de preços de medicamentos pela sua ineficácia e contrariedade aos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, que obviamente devem ser aplicados em conjunto com o artigo 170 da mesma Carta. Os argumentos daquela ação judicial jamais poderiam ser os mesmos que os aqui expendidos, pelo simples fato de que a obrigatoriedade de ampliação de acesso não existe no artigo 209 da Constituição Federal, que trata da atuação privada na educação. Após este breve, mas necessário, esclarecimento, salientamos que, ainda que se pudesse entender como constitucional o tabelamento de preços em face do artigo 170, inciso IV, da Constituição Federal, os critérios estabelecidos pelo referido artigo 4.º da Lei 10.742/2003 são absolutamente impróprios para alcançar os fins constitucionais ou da própria norma expressos em seu artigo 1.º. 152 Pelo exposto, consideramos a inconstitucionalidade do artigo 4.º da Lei 10.742/2003, que trata da fixação de preços de medicamentos, e de seu artigo 7.º, que trata do estabelecimento de preços para produtos novos ou novas apresentações 139 , que devem ser automaticamente considerados banidos de nosso Direito, tornando ineficaz o inciso IV do artigo 6.º da referida lei, que prevê a exclusão e reinclusão de mercados relevantes no controle de preços 140 , por afronta aos artigos 196 e 197 da Constituição Federal, pois estes dispositivos legais são contrários à ampliação de acesso da população aos medicamentos.. A despeito do inconstitucional congelamento/controle de preços, com reajustes anuais, a nova norma de regulamentação de preços de medicamentos possui inegáveis avanços se comparada com a anterior, especialmente porque contém os objetivos que devem ser alcançados pelo órgão regulador em consonância com os artigos 196 e 197 da Constituição Federal, quais sejam: promover a assistência farmacêutica à população por meio de mecanismos que estimulem a oferta de medicamentos e a competitividade do setor (artigo 1.º), os quais estão em consonância com a norma constitucional. Excluindo-se o conteúdo inconstitucional da Lei 10.742/2003, resta que a CMED terá por objetivos a adoção, a implementação e a coordenação de atividades relativas à regulação econômica do mercado de medicamentos, voltadas a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta de medicamentos e a competitividade do setor, com as seguintes competências: – definir diretrizes e procedimentos relativos à regulação econômica do mercado de medicamentos; – coordenar ações dos órgãos componentes da CMED voltadas à implementação dos seus objetivos; – sugerir a adoção, pelos órgãos competentes, de diretrizes e procedimentos voltados à implementação da política de acesso a medicamentos; – propor a adoção de legislações e regulamentações referentes à regulação econômica do mercado de medicamentos; 139 Para os quais valem as mesmas observações feitas sobre os artigos 8.º e 9.º da Lei 10.213/2003. Medida razoável caso o tabelamento fosse constitucional, pois permite a avaliação da existência de concorrência em mercado relevante e sua liberação, embora o inciso careça de determinação clara deste objetivo, bem como de um tratamento específico não só para o tratamento peculiar dos mercados relevantes, mas também para cada jogador de um mercado relevante em relação ao poder de mercado que detém, não tem sentido controlar preços de um desafiante que ainda não acumulou poder de mercado. 140 153 – opinar sobre regulamentações que envolvam tributação de medicamentos; – assegurar o efetivo repasse aos preços dos medicamentos de qualquer alteração da carga tributária; – sugerir a celebração de acordos e convênios internacionais relativos ao setor de medicamentos; – monitorar o mercado de medicamentos, podendo, para tanto, requisitar informações sobre produção, insumos, matérias-primas, vendas e quaisquer outros dados que julgar necessários ao exercício desta competência, em poder de pessoas de direito público ou privado; – zelar pela proteção dos interesses do consumidor de medicamentos; – decidir sobre a aplicação de penalidades, na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, relativamente ao mercado de medicamentos, sem prejuízo das competências dos demais órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor em concorrência com o CADE. A CMED deverá exercer tais competências para combater cada uma das falhas de concorrência existentes no mercado de medicamentos, valendo-se de múltiplas estratégias combinadas, sem ferir a livre-iniciativa e a livre concorrência, conforme já vem sendo realizado em diversos países do mundo, o que certamente é mais efetivo do que simplesmente impor um arbitrário controle de preços aos laboratórios farmacêuticos. Importante notar que, além do controle dos atos expedidos pela CMED, em relação a sua eficácia econômica, estes não deixam de ser atos administrativos que devem também ser analisados sob luz das normas do artigo 37 da Constituição Federal e princípios do Direito Administrativo. Portanto, o ato regulatório deverá atender aos princípios de finalid ade, razoabilidade, proporcionalidade, motivação (com seus motivos determinantes), impessoalidade, publicidade, devido processo legal (processual e substantivo), moralidade, responsabilidade do Estado, e estar sujeito ao controle judicial sobre os mesmos e também ao princípio da eficiência. O princípio da eficiência remete ao alcance concreto de objetivos pelos administradores públicos. No caso de atos regulamentares, as normas infralegais criadas devem conduzir aos objetivos propostos pelo sistema jurídico, que dá validade aos mesmos também em atendimento ao princípio da eficiência, portanto, no caso, 154 novamente, eficiência econômica, para ampliação da oferta de medicamentos e competitividade no setor 141 . Para reforçar a necessidade de análise econômica dos atos praticados pela CMED, nos valemos também do princípio da legalidade 142 , pois considerando que o artigo 1.º da Lei 10.742/2003 determina “a finalidade de promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta de medicamentos e a competitividade do setor”, quaisquer atos contrários a este objetivo do ponto de vista econômico estarão condenados a ilegalidade. Ademais, a determinação legal para que o administrador tenha o dever/poder de praticar um ato administrativo sempre será relativa a um fato que será a mola propulsora da prática do ato administrativo: uma situação de fato é condição necessária e suficiente para a prática do ato. Nesse sentido, a existência do fato é pressuposto de validade do ato administrativo que foi praticado, que sem este não o seria ; temos aí, portanto, a doutrina dos motivos determinantes dos atos administrativos 143 . 141 “Em uma divisão exclusivamente didática, Roberto Dromi e Carlos Menen separam em duas espécies de ação de eficiência: 1. Na ‘organização econômica’, que seria destinada ao planejamento (imposição de metas), regulação (de contratos e serviços), descentralização (privatização, competição e desmonopolização), fiscalização, estabilização e promoção (fomento e investimento); e 2. Na ‘organização administrativa’, que visaria à obtenção de uma Administração racional, desburocratizada, moderna e não legista. Dicotomia esta que, embora interessante, não é tecnologicamente mais adequada. Mais produtivo é ressaltar que o princípio da eficiência não somente se aplica à organização (aspecto estático), como também à própria atividade administrativa (aspecto dinâmico). Entretanto, mesmo utilizando-se a distinção proposta, cabe salientar que por eficiência administrativa deve-se compreender não só a chamada organização e atividade eminentemente administrativas, como também, e muito, a econômica. Por outro lado, em uma concepção abrangente, não seria correto falar em ‘eficiência administrativa’, mas sim em ‘eficiência de Estado’, pois não se pode acreditar que somente nas funções administrativas o Estado precisaria ser eficiente. São, portanto, passíveis de submissão ao ideal de eficiência também as funções judiciárias e legislativas (além daquelas de cunho propriamente governamental)” (GABARDO, E. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. p. 18 e 19). 142 “Inexiste poder para a Administração Pública que não seja concedido pela lei: o que ela não concede expressamente, nega-lhe implicitamente. Por isso, seus agentes não dispõem de liberdade – existente somente para os indivíduos considerados como tais – mas de competências, hauridas e limitadas na lei. (...) A ligação da Administração Pública com a lei é, portanto, extensa e inafastável, podendo ser resumida como segue: a) seus atos não podem contrariar, implícita ou explicitamente a letra, o espírito ou a finalidade da lei; b) a Administração não pode agir quando a lei não autorize expressamente, pelo que nada pode exigir ou vedar aos particulares que não esteja previamente imposto nela” (SUNDFELD, Carlos A. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 29 e 30). 143 “Motivo é a circunstância de fato ou de Direito que autoriza ou impõe ao agente público a prática do ato administrativo. Consubstancia situações do mundo real que devem ser levadas em consideração para o agir da Administração Pública competente. São ações ou omissões dos agentes públicos ou dos administrados ou, ainda, necessidades do próprio Poder Público que impelem a Administração Pública à expedição do ato administrativo. (...) A obrigatoriedade da existência, no mundo real, dos mo tivos alegados e que determinam a prática do ato administrativo, como requisito de sua validade, acabou por dar origem à teoria dos motivos 155 O motivo é, pois, a situação do mundo empírico que deve ser tomada em conta para prática do ato. Logo, é externo ao ato. Inclusive o antecede. Por isso não pode ser considerado como parte, como elemento do ato. [...] em todo e qualquer caso, se o agente se embasar na ocorrência de um dado motivo, a validade do ato dependerá da existência do motivo que houver sido enunciado. Isto é, se o motivo que invocou for inexistente, o ato será inválido 144 . Ao tratarmos de normas de regula mentação econômica, o motivo sempre será um fato econômico, pois econômico é o substrato da norma. Assim, na falta do motivo econômico, descrito na necessária mo tivação do ato regulatório, o referido ato será nulo 145 . Dessa forma, temos que o motivo para a prática do ato regula mentar deverá sempre ser o fato econômico de ausência de concorrência ou de redução da oferta de medicamentos em um mercado relevante, de modo que tais atos deverão estar devidamente motivados nesse sentido e, caso seja comprovada a inexistência do motivo, estes serão inválidos. Obviamente também não será lícita a convalidação do ato regulatório caso o fato econômico aconteça após sua emissão 146 , como por exemplo a redução da concorrência pela retirada de fornecedores em um dado mercado relevante, causada por um ato regulatório, emitido com base em uma falta de concorrência inexistente antes de sua emissão. determinantes. Por essa teoria só é válido o ato se os motivos enunciados efetivamente aconteceram. Desse modo, a menção de motivos falsos ou inexistentes vicia irremediavelmente o ato praticado, mesmo que não exigidos por lei” (GASPARINI, Diógenes, Direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 66). 144 MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de direito administrativo. 14. ed. 2002. p. 350. 145 “O motivo do ato administrativo constitui o pressuposto fático (ocorrência no mundo fenomênico) que permite ou determina que a Administração o emita. Tais circunstâncias fáticas devem, por óbvio, estar previstas em lei (motivo legal) e, uma vez configuradas, legitimam a administração a praticar o ato. Recorde-se por oportuno, que o motivo do ato há de estar em perfeita sintonia com o motivo legal, isto é, as circunstâncias fáticas previstas em lei devem estar caracterizadas. Ter-se-á, assim, um ato inválido, pelo menos do ponto de vista do motivo” (SIMÕES, Mônica M. T. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados.p. 149). 146 “Nem sempre, todavia, ocorre a desejada sintonia [entre o motivo legal e o motivo de fato]. Em situações deste jaez, está-se diante de um ato inválido, por vício de motivo, quando, então, revela-se imperiosa a restauração da legalidade. Num primeiro momento, poder-se-ia cogitar de convalidar o ato. Mas seria isso possível? Uma análise mais detida conduzirá à resposta negativa. Ora, se o ato apresenta vício quanto ao motivo, significa isso dizer que o pressuposto fático previsto em lei para a prática do ato não restou configurado. E, para que o ato seja válido o motivo deve indiscutivelmente fazer-se presente. Não seria razoável supor que a administração pudesse, após a emissão de ato inválido por ausência de motivo, convalida-lo” (SIMÕES, Mônica M. T. Op. cit., p. 149). 156 Conforme coloca Weida Zancaner, é um problema de dimensão temporal, pois o motivo deveria existir num dado tempo, anterior à produção do ato administrativo subseqüente; não tem utilidade para tal fim o motivo que vier a acontecer após a produção do ato administrativo, pois “a ausência do motivo de fato impossibilita a convalidação do ato, posto que não há como fazê-lo retroagir à data de sua emissão”147 , tanto mais em se tratando de ato regulatório, que pode até gerar a falha de mercado que se propunha a combater. De modo que resta claro que a argumentação tanto do órgão regulador quanto dos agentes econômicos sempre será econômica e balizada em aspectos técnicos, devido ao peculiar objeto e aos objetivos das normas regulatórias. Sendo assim, é à luz dos objetivos econômicos da Lei 10.742/2003 que devem ser analisados os atos praticados pela CMED, ou seja, todos os atos regulamentares emitidos pela CMED devem ser economicamente efetivos para fazer que no curto, médio e longo prazos seja ampliada a oferta de medicamentos e a competitividade nos mercados relevantes atingidos pela medida, sob pena de serem considerados ilegais, por descumprimento ao artigo 1.º da Lei 10.742/2003. Da mesma forma acreditamos que os artigos 196 e 197 da Constituição devem ser aplicados para verificar a validade das normas infralegais de regulamentação do mercado de medicamentos, por uma análise econômica e prospectiva. Acreditamos que o mesmo deve ser feito quanto ao artigo 1.º da Lei 10.472/2003, pois o legislador não o colocou na norma inutilmente, apenas para elucidar o que lhe passava pela mente; se o fez, foi para produzir efeitos, para conduzir aqueles que têm competência para emitir os atos regulamentares que a lei cria e para reprimir os atos que praticarem contra os objetivos dessa competência, que nada mais é do que um instrumento para o seu alcance. Isto posto, a CMED tem o poder/dever de emitir normas regulamentares relativas aos mercados relevantes em que constatar a inexistência de competição economicamente eficaz para fomentar a competição no mercado e ampliar a oferta de medicamentos, porém deve evitar a sua emissão em mercados relevantes onde a competição exista. Infelizmente, a despeito da capacidade dos membros da CMED, o que se tem observado é que suas resoluções vêm sendo absolutamente despropositadas, cria ndo 147 ZANCANER, Weida, Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. p. 65. 157 regras absurdas e sem justificação técnica possível, como: (i) estabelecer critérios de fixação de preços de medicamentos novos por grandes grupos, cujo critério nada tem que ver com a situação do mercado relevante do medicamento, mas é baseada em um critério subjetivo; (ii) comparar preços com países sem qualquer identidade com o Brasil; (iii) fixar percentuais de preços de medicamentos genéricos em relação a outros produtos, eventualmente afastando competidores que poderiam ter preços menores mas talvez em percentual menor que o fixado etc., conforme apontado na já citada pesquisa realizada pela Câmara Americana de Comércio com o Setor Regulado: Ilustração 23 Pesquisa Amcham (ANVISA) 2005 – pergunta 08 Não se sabe se isso decorre de falta de informações, de recursos e de pessoal, ou apenas do velho hábito dos governos brasileiros de quererem resolver problemas concretos com normas que sacrificam a iniciativa privada, apenas para agradar a platéia que ainda tem uma visão maniqueísta do mundo. Mas nada justifica essa atitude, que, no médio e longo prazos, apenas agrava a dificuldade de acesso da população aos medicamentos, que já não é pequena. Como já apontamos, entendemos pela inconstitucionalidade do controle de preços de medicamentos por afronta ao artigo 170, incisos II e IV, da Constituição Federal, por ser contrário à concorrência e impor perdas à propriedade. Pelas razões explanadas, o entendemos igualmente inconstitucional por contribuir no longo prazo para a redução da atividade econômica dos laboratórios 158 farmacêuticos e para a redução do mercado, que não acompanhado pelo aumento da população e de suas necessidades, demonstrando ser contrário ao atendimento da obrigação de ampliação de acesso da população aos tratamentos e ações de saúde determinado pelo artigo 196 da Constituição Federal. Passamos então a analisar a regulamentação econômica dos planos de saúde para verificar sua constitucionalidade em contraste com os mesmos artigos 196 e 197 da Constituição Federal. 159 7 – PLANOS DE SAÚDE A assistência médica suplementar no Brasil é prestada por operadoras de planos de saúde, cuja cobertura do atendimento pelos serviços de saúde prestados por uma rede própria ou credenciada é garantida pelo contratado, sendo que o contratante é obrigado ao pagamento de um valor mensal, ficando, assim, protegido do risco em saúde, que é diluído entre todos os integrantes da mesma carteira do plano de saúde. Os planos de saúde podem ser oferecidos por empresas, ou cooperativas médicas, criadas para este fim para pessoas físicas, ou como benefício dado por pessoas jurídicas a seus funcionários, ou podem ser operados pelas próprias empresas para seus funcionários, os chamados planos de autogestão. Temos ainda os seguros-saúde, em que não há a prestação direta de serviços de saúde mas tão-somente a cobertura desse risco: seu grande segredo está nos cálculos atuariais que garantem o lastro financeiro e o equilíbrio entre indivíduos sãos e doentes dentro da carteira. Há no Brasil uma divisão jurídico- institucional dos planos privados de saúde que estabelece quatro grupos: medicina de grupo, cooperativas médicas, seguradoras e autogestão. Este mercado é composto por mais de 1.000 empresas, movimentando cerca de US$ 14,8 bilhões por ano, cerca de 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB), cobrindo cerca de 1/4 da população brasileira. Este cenário vem sofrendo alterações desde o início do processo de regulamentação dos planos de saúde, instituído pela Lei federal 9.656/1998, cuja constitucionalidade também nos cabe investigar. Passemos então a analisar os tipos de planos de saúde presentes no Brasil. Medicina de Grupo A forma predominante das medicinas de grupo nesse mercado é semelhante às Health Maintenance Organizations (HMOs) dos EUA, compondo-se por serviços de saúde próprios, credenciados, ou por ambos. As medicinas de grupo surgiram por volta de 1920 nos Estados Unidos, como organização dos primeiros grupos médicos e evoluíram lentamente até se adaptar, em 1970, às características da sociedade americana e se tornarem grandes. 160 As medicinas de grupo chegaram ao Brasil em 1960 na região do ABC paulista, quando o governo incentivava os convênios-empresa. A Medicina de Grupo nada mais é do que um sistema de criação e administração de serviços médico-hospitalares para atendimento em larga escala com bom padrão profissional e custos controlados. Sua estrutura inclui médicos contratados e credenciados. Trata-se de um plano de pré-pagamento, em que os seus beneficiários e dependentes ou são vinculados ao grupo médico por contratos coletivos firmados pelas empresas onde trabalham, ou por planos individuais e familiares. Está presente em quase todas as cidades brasileiras com mais de 40 mil habitantes. Os usuários têm acesso a rede própria e credenciada, e o uso de serviços não credenciados é previsto nos planos mais caros, implicando o ressarcimento dos gastos. Há, evidentemente, planos mais caros, dependendo do tipo de atendimento e variando de um grupo médico para outro. Os planos básicos, contudo, garantem um padrão compatível com as necessidades da população trabalhadora, com direito a consultas médicas com hora marcada, exames complementares, internações hospitalares e cirurgias. O convênio-empresa não tem qualquer tipo de carência. Cooperativa Médica As cooperativas médicas começaram a surgir em 1967 com a intenção dos principais órgãos associativos da classe médica de reagir ao surgimento das primeiras empresas de medicina de grupo no Brasil. As cooperativas são regidas pela legislação do cooperativismo. Prestam assistência aos beneficiários por meio de contratos coletivos, familiares e individuais, tendo ampla cobertura médico-hospitalar e laboratorial por profissionais cooperados. Na concepção desse segmento, os médicos são ao mesmo tempo sócios e prestadores de serviços, recebendo, proporcionalmente à sua produção, por tipo e qualidade de atendimento. Também participam do rateio do resultado positivo final obtido pelas unidades. 161 Seguro-saúde Conforme definição legal, Seguro Saúde é o seguro destinado a dar cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar, cuja garantia consiste no pagamento em dinheiro, efetuado pela sociedade seguradora à pessoa física ou jurídica prestadora da assistência médica ao segurado. A livre escolha do médico e ho spital é condição obrigatória nos contratos, sendo vedado às sociedades seguradoras acumular assistência financeira com assistência médico-hospitalar. Portal razão as seguradoras não podem prestar serviços de assistência médico-hospitalar com rede própria. Os seguros de saúde podem ser contratados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas, a favor de seus empregados e diretores. O pagamento das contas médicas e hospitalares poderá ser feito diretamente aos médicos e hospitais ou aos segurados, mediante reembolso, de acordo com as tabelas de procedimentos médicos e de custos hospitalares de cada seguradora e à vista dos documentos comprobatórios. Autogestão A autogestão trata de plano de saúde próprio, gerenciado pela empresa ou por uma assessoria especializada, sem finalidade lucrativa. A empresa que implanta a autogestão estabelece o formato do plano, define o credenciamento de médicos, hospitais, carências e coberturas, reduzindo os gastos decorrentes com a intermediação das empresas de planos de saúde do mercado. Fazem parte desse segmento os planos de saúde destinados a empregados ativos e aposentados ou a participantes de entidades associativas, beneficentes, assistenciais, previdenciárias, sindicais e de cooperativas de usuários, bem como seus dependentes até o terceiro grau de parentesco. A direção do plano de saúde na modalidade de autogestão pode ser exercida: de forma predominante pela empresa patrocinadora, no caso de plano para seus empregados; predominantemente pelo corpo social, no caso de associações de classe ou cooperativas; ou ainda de forma conjunta (co-gestão), no caso de planos de entidades, cujo participantes são ligados também às empresas patrocinadoras. A adesão ao plano pode ser compulsória, no caso de a patrocinadora assumir integralmente, ou substancialmente, os custos, ou facultativa no caso de os empregados ou associados contribuírem para o seu funcionamento. 162 A assistência à saúde nos planos de autogestão pode ser prestada por meio de rede credenciada (profissionais e instituições de saúde que atendem mediante tabela de preços previamente acordada com a administração do plano), ou de serviços próprios (estrutura própria de atendimento à saúde, mantida pela organização) ou por livre escolha (utilização dos serviços de profissionais e instituições de saúde disponíveis no mercado, com posterior reembolso dos gastos pelo plano, conforme sua tabela), ou então por uma combinação dessas formas. Atualmente a distribuição entre as diversas modalidades de planos de saúde se dá conforme o quadro abaixo: Distribuição percentual dos beneficiários de planos de saúde, por modalidade da operadora – Brasil – dezembro/2005 Fontes: Cadastro de Beneficiários -– ANS/MS –12/2005 e Cadastro de Operadoras/ANS/MS – 02/2006 Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo. Ilustração 24 Planos de saúde por modalidade de operadora – Brasil dezembro 2005 7.1. O mercado brasileiro de planos de saúde Como no caso dos medicamentos, o mercado de planos de saúde também está longe de ser um mercado de concorrência perfeito, como se pode ver ao contrastarmos o contexto desses mercados com aquele que já expusemos ser necessário para uma concorrência perfeita. Antes de tudo, há que se determinar um critério para a definição do mercado relevante dos planos de saúde, ou seja, qual será o universo que será estudado para identificar o grau de concorrência entre os seus participantes. Já colocamos que o mercado relevante é definido pela possibilidade de substituição pelo consumidor dos produtos e serviços oferecidos, a intercambialidade, 163 que efetivamente colocará um ofertante em confronto com o outro pela decisão de compra. A análise deve ser feita, independentemente do preço destes produtos e serviços, pois se parte da premissa de que o consumidor é racional e sempre vai procurar maximizar seus benefícios com o valor investido dentro de sua capacidade financeira, que tem grande impacto nos gastos relacionados à saúde, dada a sua essencialidade, conforme já apontamos, e pode ser percebido verificando a evolução dos gastos familiares com saúde por faixa de renda relatada no início deste trabalho. Quando o contratante do plano de saúde for uma empresa, a racionalidade da decisão certamente estará mais presente para seus funcionários do que nas decisões individuais. Pois bem, os critérios que levam um consumidor a optar por um ou outro plano de saúde, são (i) cobertura geográfica, (ii) nível da rede credenciada de médicos, hospitais e laboratórios de diagnósticos, dos quais ele poderá usufruir ou aqueles acessíveis pelo valor de reembolso, e (iii) atendimento da própria operadora do plano de saúde. Os dois primeiros serão os critérios fundamentais, pois são os que podem ser conhecidos antes da contratação, de modo que estes dois fatores é que definem o mercado relevante em planos de saúde. Feito isto, já se verifica uma grande redução do universo de concorrentes, especialmente fora das capitais dos Estados mais populosos e ricos do País, o que se soma à concentração existente também em relação aos prestadores de serviços de assistência à saúde existentes fora desse circuito excepcional. Esse vetor de concentração regional está evidente no Atlas econômicofinanceiro da Saúde Suplementar no Brasil de 2005, editado pela ANS, ao verificarmos o índice de concentração econômica segundo o HHI (Herfindahl- Hirschman Index) e o percentual de mercado mantido pelas 4 (quatro) empresas lideres de mercado em alguns estados brasileiros: 164 ConcentraçãoBrasil (%) Concentração SP (%) Concentração Sergipe (%) Concentração RJ (%) Concentração Rondônia (%) Concentração MG (%) Concentração DF (%) Ilustração 25 - Concentração dos Planos de Saúde no Brasil 2003-2005 165 Sendo assim, já se percebe, em algumas regiões do País, a concentração do mercado com as conseqüênc ias de possível aumento de preços, dificuldades para desafiantes e, portanto, barreiras de acesso para a população, que demonstramos no início deste trabalho. A análise é apenas estadual, e não considera a concentração dos mercados nas cidades, onde, especialmente nas cidades pequenas do interior dos estados, a concentração é muito maior. No Brasil, a menor parte das operadoras de planos de saúde detêm a maior parte do mercado, como se vê no s quadros abaixo. Curva ABC da distribuição dos beneficiários de planos de saúde entre as operadoras – Brasil – dezembro/2005 Fontes: Cadastro de Beneficiários – ANS/MS – 12/2006 e Cadastro de Operadoras/ANS/MS – 02/2006 Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo. Curva A: 274 operadoras (15,8% do total) detêm 80% dos beneficiários. Curva B: 500 operadoras (28,9% do total) detêm 90% dos beneficiários. Curva C: 1.729 operadoras (100% do total) detêm 100 % dos beneficiários. Ilustração 26 Curva ABC da distribuição dos beneficiários de planos de saúde entre as operadoras 166 Planos de saúde registrados com beneficiários, por número de beneficiários – Brasil – setembro/2005 1 a 100 101 a 1.000 1.001 a 10.000 10.001 a 50.000 50.001 a 100.000 Mais de 100.000 Fontes: Cadastro de Beneficiários/ANS/MS – 12/2005 e RPS/ANS/MS – 21.02.2006 Nota: Existem 17.234 planos sem beneficiários ativos. Ilustração 27 Planos de saúde por número de beneficiários – Brasil 2005 Somando a concentração de mercado, temos, ainda, as barreiras à entrada de novos concorrentes, principalmente (i) a barreira regulatória da ANS, que esclareceremos em detalhes mais adiante e, especialmente, (ii) a forte presença de economias de escala no lançamento de cada novo produto pelas operadoras de planos de saúde, pois estes se compõem de carteiras fechadas em receitas e despesas e (iii) os investimentos necessários para a instalação de serviços de saúde próprios ou na formação da rede credenciada. É fácil notar que em qualquer atividade de pulverização de riscos quanto maior a população atendida, melhores as previsões atuariais, maior o colchão financeiro e maior a possibilidade de alcançar um equilíbrio dinâmico entre contribuintes, não usuários da cobertura, e contribuintes que a estão usando com custos maiores que a sua contribuição. Assim, quanto maior a população atendida pelo plano ou seguro-saúde, melhor será sua performance financeira e menores seus riscos de quebra, o que, somado à diluição de custos fixos, dá larga vantagem competitiva aos planos e seguros de saúde maiores em relação a possíveis desafiantes. Ou seja, os ganhos de escala são extremamente relevantes para os planos de saúde. 167 Verifica-se, ainda, a baixa intercambialidade entre planos de saúde tanto empresariais quanto individuais decorrente das carências impostas para que os usuários possam acessar certos tipos de serviços de saúde, e a falta de cobertura de doenças preexistentes, ou seja, conhecidas anteriormente à adesão ao novo plano de saúde. Quanto à instalação dos serviços de saúde pelas medicinas de grupo, em caso de serviços próprios, temos um alto custo de construção, de aparelhamento e até de ultrapassagem da barreira regulatória sanitária. No caso de rede credenciada própria, a sua criação pode inclusive ser dificultada por vínculos existentes entre a rede e outras operadoras de planos de saúde e, princ ipalmente, as cooperativas médicas, pois os profissionais médicos teriam interesses conflitantes entre serem credenciados do desafiante e membros da cooperativa. Temos então baixa mobilidade dos fatores de produção e desestímulos para a entrada de novas empresas nesse mercado. Embora não tenhamos os problemas de agência presentes na compra de medicamentos, temos assimetria da informação em menor nível, mas presente, pois normalmente os contratantes não têm condições de avaliar segundo critérios técnicos a qualidade da rede de atendimento própria ou credenciada, especialmente quanto aos médicos. O conhecimento dos serviços oferecidos aos usuários dos planos de saúde a posteriori os qualifica como bens de conhecimento e em muitos casos os serviços serão credenciais devido à impossibilidade de análise pelo usuário, como por exemplo os serviços de diagnósticos ou tratamentos mais complexos. Vemos, portanto, que não se trata de um mercado de auto-regulação automática, no qual o combate a eventuais práticas anticoncorrenciais de seus participantes pela legislação antitruste seria suficiente para garantir a livre concorrência real. Há necessidade da intervenção do Estado para a ampliação do acesso da população aos planos de saúde e conseqüentemente às ações e serviços de saúde. Além da aplicação da legislação antitruste e de defesa do consumidor, foram editadas leis específicas para os planos de saúde em decorrência de suas especificidades e de sua relevância em um país em que a atenção oferecida pelo Sistema Único de Saúde está longe de ser satisfatória e a população precisa recorrer ao sistema suplementar. 168 7.2. A regulamentação dos planos de saúde no Brasil A Lei 9.656, sancionada em 3 de junho de 1998, entrou em vigor em 3 de setembro de 1998, noventa dias após sua publicação, marcando o início da regulamentação específica dos planos privados de assistência à saúde. Esta lei foi modificada em seguida pela edição de medidas provisórias, renovadas a cada 30 dias, além de dezenas de Resoluções do Conselho de Saúde Suplementar (CONSU). Conforme se esgotava o prazo de cada medida provisória, o que ocorria a cada 30 dias, o Poder Executivo era obrigado a editar uma nova (quando houvesse alteração no seu texto) ou reeditar a mesma, até que o Congresso a colocasse em pauta. Os modelos anteriores de planos de saúde puderam continuar sendo comercializados até 31 de dezembro de 1998, a partir do que entraria em vigor o disposto na Lei 9.656, permanecendo com validade por tempo indeterminado, a não ser que o seu usuário manifestasse o interesse de migrar para enquadrar-se na regulação nascente. Já os novos planos, que, então, deveriam ser protocolados na SUSEP, passariam a ser oferecidos enquadrados na legislação pertinente. A nova legislação trouxe mudanças positivas para os usuários de planos de saúde de todos os segmentos. A maioria delas com aplicação imediata apenas para os planos instituídos a partir de janeiro de 1999 ou para aqueles que optassem pela adaptação ao sistema previsto na lei. Algumas alterações: • instituição de coberturas mínimas a serem oferecidas em todos os planos de saúde; • proibição da empresa de vedar a participação do usuário, em razão de sua idade, doença preexistente ou deficiência, mas possibilidade de agravamento (aumento) da mensalidade em alguns casos; • regulação do descredenciamento de prestadores de serviços; • limitação dos prazos de carência; • assistência ao recém- nascido nos primeiros 30 dias de vida; • rescisão contratual unilateral pela empresa apenas nos casos de fraude ou atraso de pagamento da mensalidade em período superior a 60 (sessenta) dias; • cobertura em saúde mental; • garantia ao demitido sem justa causa e ao aposentado, que contribuíram por mais de dez anos com plano coletivo de empresa, ao direito de permanecerem no mesmo plano, desde que assumam o pagamento integral; 169 • ressarcimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) toda vez que um usuário de plano de saúde for atendido em hospitais públicos; • padronização de sete faixas etárias: (0 a 17; 18 a 29; 30 a 39; 40 a 49; 50 a 59; 60 a 69; e acima de 70 anos). Os valores das mensalidades em cada faixa podem variar entre as empresas, desde que o valor da última não seja superior a seis vezes o da primeira; • Cobertura de transplantes de rim e córnea. Posteriormente, a Lei 9.961/2000 criou a ANS com o intuito de impulsionar a operacionalização das determinações da Lei 9.656/1998 e regulamentar esse mercado, exercendo parte das competências anteriormente exercidas pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP ) e pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), por meio de sua Câmara de Saúde Suplementar. A ANS foi criada pela Lei 9.961/2000 como autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, que passou a acumular as atribuições da Saúde e da Fazenda na regulamentação do setor, com a missão de promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive nas suas relações com prestadores e consumidores. A ANS é a Agência Regulatória de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades dos planos, seguros e convênios de saúde, com autonomia administrativa e financeira, nos moldes de outras agências governamentais. É responsável pela elaboração de rol de procedimentos e coberturas, normas para ressarcimento ao Sistema Único de Saúde, segmentação dos planos, critérios de controle de qualidade e fiscalização dos planos de saúde, recolhimento de informações de natureza econômico- financeira das operadoras, liquidação das empresas cassadas, entre outras tarefas. Já por essas atribuições se nota que a ANS tem poderes de regulamentação econômica das empresas sob sua competência até mais contundente do que os que a CMED tem sobre os laboratórios farmacêuticos, além de ter poderes de polícia superiores aos da ANVISA. É necessário, portanto, um breve panorama das atividades da ANS ao investigar a constitucionalidade dessas atribuições. A ANS, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades dos planos, seguros e convênios de saúde, nos termos da Lei 9.961/2000, é responsável por: autorizar o registro dos planos privados de assistência à saúde e das operadoras de planos privados de assistência à saúde, que não poderão atuar e 170 comercializar seus produtos sem o competente registro nessa agência; estabelecer critérios gerais para o exercício de cargos diretivos das operadoras de planos privados de assistência à saúde; autorizar reajustes; avaliar a capacidade técnico-operacional das operadoras de planos privados de assistência à saúde para garantir a compatibilidade da cobertura oferecida com os recursos disponíveis na área geográfica de abrangência, podendo instituir, se necessário, o regime de direção fiscal ou técnica nas operadoras; proceder à liquidação daquelas operadoras que tiverem cassada a autorização de funcionamento; promover a alienação de carteira de planos. As operadoras de planos privados de saúde, seus diretores, administradores, membros de conselhos administrativos, deliberativos, consultivos, fiscais e assemelhados estão sujeitos às penalidades abaixo arroladas, a serem aplicadas pela ANS, sem prejuízo da aplicação das sanções de natureza civil e penal cabíveis: I. advertência; II. multa pecuniária; III. suspensão de exercício dos cargos acima mencionados; IV. inabilitação temporária para o exercício dos cargos acima mencionados, em operadoras de planos de assistência à saúde; e V. cancelamento da autorização de funcionamento e alienação da carteira da operadora mediante leilão. Após regularmente constituída como empresa, a operadora de plano de saúde deverá solicitar o registro provisório de funcionamento à ANS, que notificará a requerente sobre o resultado da análise. No caso de aprovação da solicitação, a notificação será efetuada com a inclusão dos dados cadastrais da operadora na listagem disponibilizada no site da ANS (http://ans.saude.gov.br). O exercício de qualquer cargo ou função de diretor, curador ou conselheiro e gerente só poderá ser realizado por pessoas naturais residentes no País, com reputação ilibada, não impedidas por lei ou inabilitadas, que não estejam respondendo judicia lmente ou extrajudicialmente por dívidas, eque tenham exercido, pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos, funções de direção ou gerência, em alguns casos, em entidades públicas ou privadas, sendo exigível do responsável pela área técnica de saúde o registro no Conselho Regional de Medicina – CRM ou no Conselho Regional de Odontologia – CRO, conforme o caso (Lei 9.961/2000, art. 4, inciso XIV). A comunicação de eleição, nomeação ou designação para ocupação de cargo de administrador em operadora será feita no prazo de 30 (trinta) dias contados da 171 data de realização do ato à ANS, que poderá recusar o cadastramento do mesmo, determinando à operadora a imediata substituição do eleito, nomeado ou contratado. As operadoras de plano s deverão, para obter autorização de reajuste anual das contraprestações pecuniárias dos planos individuais e/ou familiares, protocolizar suas solicitações de reajustes junto à ANS, acompanhadas dos documentos exigidos por esta agência (Lei 9.961/2000 art. 4, inciso XVII). As operadoras que ma ntenham planos coletivos deverão comunicar à ANS os percentuais de reajustes a serem aplicados com 30 dias de antecedência, informando a justificativa dos valores a serem praticados, fornecendo cópia dos contratos que serão objeto de reajuste e demonstração da massa assistida e sua delimitação. Os planos coletivos com vínculo empregatício, financiados total ou parcialmente pela pessoa jurídica empregadora, não necessitam comunicar à ANS os percentuais de reajustes a serem aplicados. Qualquer transferência de controle societário de operadora de plano de saúde deve ser submetida à aprovação da ANS, bem como os atos isolados ou em conjunto de qualquer pessoa física ou jurídica ou de grupo de pessoas representando interesse comum, acordo de acionistas/quotistas, e negócios jurídicos celebrados entre os colaboradores (Lei 9.961/2000, art. 4, incisos XXII e XXVIII). A ANS, após o exame das informações prestadas, poderá deferir o projeto, sobrestá- lo ou indeferi- lo. No caso de deferimento, a operadora de planos de saúde deverá, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, a contar da comunicação da ANS, registrar a transferência de controle no órgão competente e enviar a documentação registrada a essa agência para homologação. As regras definidas pela ANS que as operadoras deverão seguir, para garantir a continuidade de sua operação, representam um patamar mínimo que garante a sua continuidade. As operadoras de planos de saúde sujeitar-se-ão, conforme o caso, à constituição das garantias financeiras abaixo mencionadas para o início e continuidade das operações. 1. capital mínimo ou provisão de operação; 2. provisão de risco; 3. provisão para eventos ocorridos e não-avisados; 4. margem de solvência; 5. outras provisões técnicas. 172 As sociedades seguradoras, especializadas em saúde, possuem regras próprias e as autogestões patrocinadas terão regras de patrocínio; por esta razão esses tipos de operadoras não necessitam constituir as garantias financeiras estabelecidas pela ANS. Qualquer outra provisão técnica poderá ser constituída, como por exemplo para oscilação do índice de inadimplência da operadora, desde que seja encaminhada uma Nota Técnica Atuarial de Provisões – NTAP para análise e aprovação da ANS. As garantias poderão ser constituídas com ativos que deverão estar vinculados à ANS e não poderão ser alienados. A ANS, no uso de suas atribuições, poderá, ainda, instaurar direção fiscal ou direção técnica, ou ambas, na operadora de plano de saúde, por prazo não superior a 180 (cento e oitenta) dias. A direção fiscal ocorrerá sempre que se verificar insuficiência nas garantias do equilíbrio financeiro ou anormalidades econômico-financeiras, tais como totalidade dos bens inferior às obrigações para com terceiros; insuficiência de recursos garantidores em relação ao montante total das provisões técnicas; não apresentação, não aprovação ou não cumprimento do plano de recuperação. A direção técnica poderá ser instaurada sempre que ocorrerem anormalidades administrativas graves que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, tais como : atraso contumaz no pagamento dos prestadores; não atingimento das metas qualitativas e quantitativas; desequilíbrio atuarial da carteira; evasão excessiva de beneficiários; excessiva rotatividade da rede credenciada ou descredenciamento em massa; criação de óbices ao acesso dos beneficiários. Caberá ao diretor fiscal e ao diretor técnico determinar a adoção de medidas que possam sanar as irregularidades verificadas na gestão econômicofinanceira da operadora e restabelecer a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, respectivamente. O regime de direção, fiscal ou técnica, será encerrado quando decretado o regime de liquidação extrajudicial ou quando for alcançado o objetivo de saneamento da insuficiência nas garantias do equilíbrio financeiro ou anormalidades econômicofinanceiras graves, no caso de direção fiscal, e, quando forem saneadas as anormalidades administrativas graves, no caso de direção técnica. 173 A ANS, no uso de suas atribuições, poderá determinar a liquidação extrajudicial da operadora de planos de assistência à saúde: quando verificar sua insolvência econômico-financeira; quando não for alcançado por esta o objetivo de saneamento da insuficiência nas garantias do equilíbrio financeiro ou das anormalidades econômico- financeiras graves proposto pelo regime de direção fiscal; ou quando não for atingido o saneamento das anormalidades administrativas graves proposto pelo regime de direção técnica. A liquidação extrajudicial será processada pela ANS, que nomeará o liquidante com amplos poderes de administração e liquidação. Os administradores das operadoras em liquidação extrajudicial, bem como todos aqueles que tenham estado no exercício das funções nos doze meses anteriores ao ato, ficarão com todos os seus bens indisponíveis, não podendo, por qualquer forma, direta ou indireta, aliená- los ou onerá- los, até apuração e liquidação final de suas responsabilidades. tal indisponibilidade poderá ser estendida aos bens dos gerentes, conselheiros fiscais e todos aqueles que, até o limite da responsabilidade estimada de cada um, tenham concorrido, nos últimos doze meses, para a decretação da liquidação extrajudicial, assim como aos bens das pessoas que, nos últimos doze meses, os tenham a qualquer título adquirido de administradores, gerentes ou conselheiros da instituição. Essas pessoas não poderão ausentar-se do foro da liquidação extrajudicial sem prévia e expressa autorização da ANS. A liquidação extrajudicial cessará se os interessados, apresentando as necessárias condições de garantias, tomarem para si o prosseguimento das atividades econômicas da empresa; ou com a apresentação das contas finais do liquidante e baixa no registro público competente. A ANS poderá determinar a alienação de carteira das operadoras de planos de assistência à saúde nas situações que impliquem risco para a continuidade da assistência à saúde ou na vigência de Regime de Direção Fiscal e/ou de Direção Técnica. A operação de alienação de carteira deverá ocorrer no prazo máximo de 30 (trinta) dias a contar da data do recebimento pela operadora do plano de saúde da comunicação da decisão da ANS. Deverão ser mantidos integralmente os contratos de planos de saúde, sem restrição de direitos ou prejuízos para os beneficiários. A inobservância às determinações da ANS no que tange à alienação de carteira poderá ensejar a pena de inabilitação temporária por 10 (dez) anos aos membros 174 do Conselho de Administração e da Diretoria da operadora alienante para o exercício de cargos de direção ou em Conselhos de Operadoras de Planos de Assistência à Saúde, bem como o leilão da carteira. A alienação da totalidade da carteira deverá ser comunicada pela operadora adquirente aos titulares beneficiários, mediante carta registrada com aviso de recebimento, enquanto a operadora aliena nte deverá comunicá-la mediante publicação em jornal de grande circulação na sua área de atuação. A alienação de carteiras das operadoras de planos privados de assistência à saúde dependerá de decisão da ANS e poderá ocorrer por leilão em decorrência de decisão transitada em julgado em processo de aplicação de penalidade e por proposta do Diretor Fiscal ou Técnico. O leilão sempre atingirá a totalidade da carteira, que poderá ser adquirida em proposta conjunta por duas ou mais operadoras, quando necessário para garantir maior participação e melhores condições de absorção de todo universo de consumidores. Poderá participar do leilão de carteira qualquer operadora que esteja em situação regular perante a ANS e que atenda às exigências de qualificação técnica e econômica previstas no edital, resultando como vencedora a operadora que apresente a melhor proposta de acordo com os critérios de julgamento estabelecidos no edital. As operadoras deverão ressarcir os atendimentos previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS. O ressarcimento será cobrado de acordo com os procedimentos estabelecidos na Tabela Única Nacional de Equivalência. 7.3. Análise de constitucionalidade da regulamentação dos preços dos de planos de saúde no Brasil As já citadas Leis 9.656/1998 e 9.961/2000 têm uma série de dispositivos de controle e intervenção nos planos de saúde, cuja constitucionalidade também deve ser avaliada. Antes, contudo, de se avaliar essa constitucionalidade, há que se observar atentamente a natureza dos planos de saúde. As operadoras de planos de saúde não têm como foco primordial o fornecimento do próprio serviço de saúde, que será fornecido 175 por médicos ou serviços de saúde e que podem ser prestados tanto pela sua rede quanto por terceiros. Ainda que se trate de rede própria, a prestação dos serviços de saúde, no caso de medicinas de grupo, cooperativas e autogestões, será atividade distinta da atividade principal do plano de saúde. Um plano de divisão de risco e financiamento de tratamentos próprio dos seguros é, portanto, uma atividade financeira e atuarial. Isto posto, a fundamentação constitucional da atuação da ANS e da regulamentação dos planos privados de saúde não advém do artigo 200 da Constituição Federal, pois este trata apenas da fiscalização pelo SUS de produtos e serviços para a saúde (inciso I do artigo 200 da Constituição Federal) e, como dito, fundamenta a existência e atuação da ANVISA dentro do microssistema de direito sanitário. Tampouco se pode dizer que sua fundamentação estaria no artigo 197 da Constituição Federal, pois este diz respeito à regulamentação, à fiscalização e ao controle de ações e serviços de saúde e não se pode considerar o financiador desses serviços e ações com o próprio prestador dos serviços ou realizador das ações por ele financiadas, como são os planos de saúde em sua essência. Embora nas medicinas de grupo, autogestões e cooperativas o serviço de saúde com rede própria de serviços esteja imbricado com o seu financiamento, podemos separar as atividades financeiras e de serviços nessas operadoras de modo que aos serviços se aplicam as regras de direito sanitário e às financeiras as constantes das Leis 9.656/1998 e 9.961/2000, que é o que realmente acontece. Estamos, portanto, tratando das disposições das Leis 9.656/1998 e 9.961/2000, as quais dizem respeito ao negócio central dos planos de saúde, sua atuação financeira e securitária. Tais normas trazem dispositivos voltados à proteção daqueles que pagam para ter a segurança de em uma eventualidade (sinistro) terem acesso a um serviço de saúde esperado. Assim, são disposições relativas à saúde financeira das operadoras, à bilateralidade, e dizem respeito aos contratos de planos de saúde. Portanto, tais dispositivos visam à proteção dos consumidores desses planos de saúde, de modo que seu fundamento de validade constitucional é o artigo 5.º, inciso XXXII, da Constituição Federal, pois embora seja uma proteção específica a um consumidor em particular, é a isto que elas se dirigem: à proteção do consumidor executada por meio de uma agência regulatória, no caso a ANS. 176 As proteções determinadas diretamente pelas Leis em comento são válidas, pois têm este lastro constitucional. Mas e a atuação da ANS, é constitucional? É constitucional a produção de normas jurídicas inovadoras e vinculantes para a iniciativa privada sem a participação do Poder Legislativo ? Conforme apontamos no início deste trabalho, cremos que a atuação normativa inovadora de Agência Regulatória se legitimaria pela concessão de serviço público, e que esta ainda é aceitável perante a Constituição Federal no caso da ANVISA por força dos artigos 197 e 200 da Constituição Federal. Entretanto, já afirmamos e demonstramos porque tais artigos constitucionais não se aplicariam à ANS, de modo que a criação normativa inovadora desta, em nossa opinião, é inconstitucional, pois viola a reserva legal do Poder Legislativo, exceto nos casos em que a ANS esteja expedindo normas não inovadoras, dando aplicação às Leis 9.656/1998 e 9.961/2000, ou mesmo caso esteja exercendo função executiva e fiscalizatória do atendimento pelas operadoras de planos de saúde aos ditames desta, casos em que as referidas normas devem ser aplicadas. Todas essas exigências e poderes da ANS são voltadas à garantia de transparência e eqüidade dos contratos dos planos de saúde e à garantia de segurança financeira das operadoras de planos de saúde e portanto são, em última análise, proteção ao consumidor que ali deposita direta ou indiretamente, por meio de seu empregador, seu dinheiro com a expectativa de socorro em caso de sinistro de saúde. Dessa forma, em nossa opinião, o puro e simples poder de polícia da ANS, embora contundente, é perfe itamente constitucional, pois lastreado na defesa do consumidor prevista nos artigos 5.º, inciso XXXII, e 170, inciso V, da Constituição Federal. Entretanto nos cabe analisar a constitucionalidade do poder de regulamentação econômica da ANS trazido pela Lei 9.961/2000 em seu artigo 4.º, incisos XVII e XVIII, na previsão que confere à ANS poderes para controlar os preços dos planos de saúde. Em nossa opinião, como já dito, a previsão já seria inicialmente inconstitucional por ferir o artigo 170 da Constituição Federal, já que não garante, mas ao contrário aniquila a concorrência. Porém, como no caso dos medicamentos, há que se analisar a sua eficácia para o atendimento do disposto no artigo 196 da Constituição Federal, ou seja, para a ampliação do acesso da população às ações e serviços de saúde. 177 O controle de preços vem sendo exercido pela ANS apenas em relação aos planos de saúde contratados por pessoas físicas, com autorizações de aumento anua l padrão por índice nacional calculado pela média dos aumentos dos planos de saúde empresaria is. Referido controle não combate as falhas de concorrência que apontamos no mercado de planos de saúde e não considera os mercados relevantes em que poderia ou não ocorrer a concorrência, de modo a não contribuir para a redução dos preços dos planos de saúde, algumas vezes até dando aumentos que, em alguns casos, vão além do que seriam naturalmente dado pelos planos de saúde em determinado mercado relevante. A ineficiência do controle de preços realizada é facilmente percebida ao se acompanhar a evolução dos planos de saúde para pessoas físicas no Brasil, marcada pela redução da abertura desses planos e pela retração de sua venda em relação aos planos empresariais. Beneficiários de planos de saúde, por tipo de contratação do plano – Brasil – 2000-2005 Font e: Cadastro de Beneficiários – ANS/MS – 12/2005 Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo. Ilustração 28 Beneficiários de planos de saúde, por tipo de contratação do plano 178 Distribuição percentual dos beneficiários de planos de saúde novos, por tipo de contratação do plano – Brasil – dezembro/2005 2.001 2.002 individual 33,7% individual 29,8% coletivo 70,2% coletivo 66,3% 2.003 individual 27,5% coletivo 72,5% Fonte: Cadastro de Beneficiários – ANS/MS – 12/2001, 2002, 2003, 2005 Nota: O termo "beneficiário" refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo. Ilustração 29 Beneficíarios de Planos de Saúde por tipo de contratação 2001– 2005 Verifica-se assim que os planos de saúde sujeitos ao controle de preços (planos individuais) regridem percentualmente em face daqueles regidos pela livre concorrência (planos empresariais ), mesmo diante do aumento do número total de vidas seguradas. Tal regressão dos planos de saúde com preços controlados demonstra de maneira empírica e cabal que o controle de preços é um desestímulo ao acesso aos planos de saúde, contrariamente ao preceito constitucional. Vale notar que esta regressão dos planos das pessoas físicas impõe uma redução do acesso às ações de saúde, pois os níveis de utilização de serviços de saúde também são maiores nesses planos do que nos empresariais, inclusive porque nestes a presença de idosos e crianças é mais acentuada: 179 Ilustração 30 Utilização Média do Plano de Saúde (item/tipo de contratação) 2002 - 2004 Assim, os planos de saúde no Brasil são voltados para a oferta empresarial, deixando as pessoas físicas não empregadas relegadas ao atendimento ineficiente do SUS, sendo interessante notar a semelhança dessa situação com a que tínhamos no atendimento de saúde pelo Estado no passado, ou seja, o atendimento apenas aos trabalhadores. Conforme a ilustração nº. 29, os planos de saúde individuais (com preços controlados) estão diminuindo percentualmente face os planos de saúde coletivos (sem preços controlados). Isto posto, pode-se observar de forma empírica, independentemente de maiores digressões, que o controle de preços de planos de saúde desfavorece o acesso da população aos planos de saúde e, conseqüentemente, aos serviços de saúde que 180 seriam financiados por estes, afrontando, assim, o artigo 196 da Constituição Federal, sendo portanto inconstitucional o controle de preços de planos de saúde. Ademais, a atuação da ANS em relação aos reajustes de plano de saúde, por desastrosa que se vem demonstrando, afronta como ato administrativo o princípio da eficiência esculpido no caput do artigo 37 da Constituição Federal, posto que estão sendo claramente ineficie ntes para a ampliação do acesso aos planos de saúde conforme determinado por nossa Constituição Federal. 181 CONCLUSÃO A partir do momento em que o ser humano passou a produzir excedentes em sua luta pela subsistência, surgiu a possibilidade de trocas desse excedente por outras coisas com outras pessoas, surgindo assim hipoteticamente a primeira operação econômica. Evidentemente uma troca pressupõe que as coisas trocadas sejam das partes e que as outras pessoas respeitem tal suposição. Surge a propriedade, a regra de conduta segundo a qual alguém pode dispor de alguma coisa e os demais devem respeitar o Direito da pessoa de fazer com esta coisa o que bem entender. Ademais, as partes têm de se respeitar mutuamente no sentido de que se entregue um bem, deve-se dar a entrega do outro, surgindo ainda com o aproveitamento social destas trocas um sistema social que garante que a troca seja honrada, criando penalidades para os que não a honrarem. Desta simples situação hipotética podemos tirar a idéia de que as relações econômicas dependem do Direito para se realizarem e que também o Direito existe também porque as relações, em grande parte econômicas, precisam ser garantidas. O Estado, legitimado pelo sistema jurídico. surge para monopolizar o uso da força e para defender os cidadãos. Neste monopólio do uso da força ele se torna responsável por criar e fazer cumprir o Direito, que também cria e dá forma ao próprio Estado. Além das funções ligadas ao Direito, o Estado também se torna responsável pela prestação de utilidades públicas e posteriormente pelo bom andamento da própria economia privada, para o alcance do bem-estar social, conforme lhe dita o Direito. Da interação desses fatores sucintamente apontados, temos que o Direito e a economia estão intimamente ligados na medida em que são objetos culturais interdependentes e necessários para a vida em sociedade e o progresso da humanidade. A atuação livre dos agentes econômicos, sempre em busca de seus interesses hedonistas, que levou a grande avanço da humanidade, deixa de ser uma solução viável quando os agentes econômicos acumulam tamanho poder que deixam de se curvar aos ditames dos consumidores para passar a ditar- lhes regras, momento em que o Estado é chamado a intervir. 182 O Estado também não consegue prestar todas as utilidades públicas que concentrou e passa a conceder à iniciativa privada o privilégio de seu fornecimento, mas mantém seu poder interventivo nessas atividades de grande relevância social. A intervenção do Estado na economia restou refletida pelo Direito em normas destinadas a proteger a higidez do mercado (legislação antitruste), a regular a atuação dos agentes econômicos em relação aos serviços públicos privatizados, bem como a regular a atividade dos agentes econômicos que fornecem utilidades, que, apesar de não serem monopolizadas pelo Estado, são tão relevantes para a sociedade que também são de responsabilidade do Estado, que deve regular estes mercados, como de fato ocorre com a saúde e a educação. No Brasil, nossa atual Constituição Federal admite a planificação das atividades econômicas relacionadas à prestação de serviços públicos por conta da adesão ao contrato pelos particulares que prestam serviços públicos, garantindo a livre concorrência para os particulares nos demais mercados. Apesar de os produtos e serviços de interesse da saúde não serem propriamente considerados serviços públicos, suas muitas externalidades fizeram que o constituinte de 1988 considerasse essa atividade econômica como de interesse público, e, muito embora não tenha estabelecido um monopólio para o Estado, sujeitou os particulares a regulamentação, que é exercida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e agora pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária trata dos aspectos técnicos da garantia dos cidadãos contra o risco dos produtos e serviços para a saúde, bem como da fiscalização de sua prestação adequada. A Agência Nacional de Saúde Suplementar cuida dos riscos contra a economia popular inerentes à atividade de seguro saúde. A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) é responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos, visando ao aumento da competição no mercado de medicamentos e à oferta destes à população. Tanto a ANS quanto a CMED têm poderes de regulamentação de preços, o que nos termos da atual sistemática constitucional brasileira, no tocante à ordem econômica, será inconstitucional em todas as atividades que não sejam serviços públicos próprios. 183 A regulamentação da atividade econômica em saúde e para os planos de saúde é constitucional, mas não o controle de preços, que, além do vício geral de inconstitucionalidade por ser contrário à livre concorrência e à livre- iniciativa, ainda padece de inconstitucionalidade específica por coibir a atividade econômica, a concorrência e a expansão da oferta de produtos e serviços para saúde. Conforme demonstramos, o controle de preços não combate as falhas de concorrência presentes nos mercados de medicamentos e planos de saúde e está coibindo investimentos e a concorrência nesses setores; o controle de preços trata unicamente do sintoma dessas falhas e não de sua causa. E, como o medicamento que reduz a febre mas não cura a infecção, está mascarando os efeitos e impedindo o tratamento eficaz de sua doença, necessário para o atendimento do mandamento constitucional de ampliação de acesso à população brasileira. 184 BIBLIOGRAFIA AGUILLAR, Fernando H. Controle social de serviços públicos. São Paulo: Max Limonad, 1999. AZEVEDO, Eurico A.; ALENCAR, Maria L. M. Concessão de serviços públicos: comentários às Leis 8.987 e 9.074 (parte geral), com as modificações introduzidas pela Lei 9.648, de 25.5.98. São Paulo: Malheiros, 1998. BANDEIRA DE MELLO, Celso A. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. ______. Curso de direito administrativo. 8. ed. 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