UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE
Lucia Conceição Santos de Almeida
RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE –
UMA REFLEXÃO POSSÍVEL.
Rio de Janeiro
2011
Lucia Conceição Santos de Almeida
Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade
Área de Concentração: Psicanálise, Sociedade e Práticas Sociais
RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE –
UMA REFLEXÃO POSSÍVEL.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Mestrado Profissional
em Psicanálise, Saúde e Sociedade da
Universidade Veiga de Almeida, como
requisito ao Título de Mestre em
Psicanálise, Sociedade e Práticas
Sociais.
Orientadora: Profª Drª Maria Cristina C. Poli
Rio de Janeiro
2011
FOLHA DE APROVAÇÃO
Lucia Conceição Santos de Almeida
RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE –
UMA REFLEXÃO POSSÍVEL.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do Mestrado Profissional
em Psicanálise, Saúde e Sociedade da
Universidade Veiga de Almeida, como
requisito ao Título de Mestre em
Psicanálise, Sociedade e Práticas
Sociais.
Aprovada em 25 de março de 2011.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profª. Drª. Maria Cristina C. Poli
Universidade Veiga de Almeida – UVA
_______________________________________________________
Profª. Drª. Maria Alice Ferruccio
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
_______________________________________________________
Profª. Drª. Sonia Xavier de A. Borges
Universidade Veiga de Almeida – UVA
DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU E DE
PESQUISA
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã
20271-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922
FICHA CATALOGRÁFICA
A447
Almeida, Lucia Conceição Santos de
Recursos humanos á luz da psicanálise; uma reflexão possível /
Lucia Conceição Santos de Almeida, 2011.
85f. ; 30 cm.
Digitado (original).
Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida,
Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de
Janeiro, 2011.
Orientação: Profª. Drª. Maria Cristina C. Poli.
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA
Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho
1. Psicanálise. 2. Recursos humanos I. Poli, Maria Cristina C.
(orientador). II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado
Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.
CDD –150.195
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA
Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho
Dedico este trabalho ao meu marido Sergio:
grande incentivador e parceiro das minhas
aspirações e desafios.
A minha filha Ana Beatriz: luz da minha alma,
grande exemplo de superação e amor à vida.
A meus pais: mestres na vida.
À minha amada avó Rosa: exemplo e
saudade eterna.
Aos meus amigos na MSA: apoio nas horas
mais difíceis.
A minha orientadora: pela paciência e apoio
para que eu pudesse entender que não estava
só neste percurso.
RESUMO
A partir da análise das atribuições da área de Recursos
Humanos, propomos promover um debate interdisciplinar num
diálogo com a psicanálise, pois, embora os estudos sobre as
organizações tenham trazido inúmeras contribuições auxiliando
as empresas em sua busca por espaços de trabalho mais
humanizados, não queremos deixar de problematizá-las, na
medida
em
que
elas
podem
produzir
um
modelo
instrumentalizado e instrumentalizador com tal rigor pragmático
e metodológico, que acabe inviabilizando a escuta do
trabalhador
padronização
de
a
um
outro
serviço
lugar
dos
senão
objetivos
de
da
agente
de
empresa.
A
Psicanálise, por sua vez, nos traz conceitos que não só
possibilitam novas significações do significante trabalho, como
também um novo sentido para o que aprisiona o sujeito em
significações como sofrimento e alienação.
Refletindo sobre as mudanças na sociedade, nos movimentos
da administração e analisando as características emergentes
das relações de trabalho como a intensa flexibilidade; visão de
curto prazo; ênfase em valores como cooperação e confiança
em contraponto com o estímulo ao individualismo e a
competitividade; o gradual desaparecimento de carreiras
estáveis e de vínculos profissionais duradouros, discorremos
sobre a possibilidade do profissional de Recursos Humanos
poder ocupar um lugar de escuta fora do modelo de
instrumentalização da subjetividade do trabalhador, utilizando a
ótica da Psicanálise e seus referenciais teóricos.
Palavras-chave: Psicanálise, Cultura, Recursos Humanos,
Trabalho.
ABSTRACT
Analyzing the attributions of the Human Resources area, we
proposed an interdisciplinary approach to promote a dialogue
with psychoanalysis. Although studies on organizations have
brought many contributions assisting companies in their
challenges for more humane working spaces, we considered
important to have another view of them, understanding that they
can produce an instrumented model with such rigor and
pragmatic methodology, which can cause a lack of listening of
the worker and perform as an agent of standardization in the
service of corporate objectives. Psychoanalysis, in turn, brings
us not only concepts that allow new meanings of work
significant, but also a new meaning for that imprisons the
workers in significations such as suffering and alienation.
Reflecting on the changes in society, in the movements of the
administration and analyzing the characteristics of the emerging
labor relations: intense flexibility, short-term vision, emphasis on
values such as cooperation and trust as opposed to the
encouragement of individualism and competitiveness, and the
gradual disappearance of career stable and lasting professional
ties, we discussed the possibility of a professional from Human
Resources can occupy a place of listening outside the model of
instrumentalization of the worker subjectivity, using the lens of
psychoanalysis and its theoretical frameworks.
Keywords: Psychoanalysis, Culture, Human Resources, Labor.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................
08
2. O CONTEXTO SOCIAL DO TRABALHO ............................................ ..
15
3. CONTEXTO DA ADMINISTRAÇÃO DO TRABALHO ...........................
32
4. RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE .............................
43
4.1. Psicanálise e RH – interlocuções possíveis ..............................
57
4.2. France Telecom – um caso ..........................................................
66
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................
71
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁGICAS ........................................................
82
8
1. INTRODUÇÃO
Nestes últimos 20 anos, temos atuado na área de Recursos Humanos (RH)
dentro de empresas dos mais diferentes segmentos de mercado, nos levando a
entender que a sua função essencial é atender aos objetivos estratégicos da
empresa no que se refere aos processos e instrumentos aplicados à Gestão de
RH, tendo como resultado esperado maior incremento e manutenção da
performance do trabalhador, garantindo assim a sobrevivência da empresa
através das pessoas.
Para alcançar esses objetivos, os teóricos da Gestão de RH compartimentaram
sua atuação para que possam potencializar todos os pontos de contato com o
trabalhador, desde a captação dos profissionais até os programas sociais,
estabelecendo identificações positivas que reforcem comportamentos de alta
performance.
No sentido de uma melhor compreensão da atuação dos profissionais de
Recursos Humanos nas empresas e, posteriormente, como a psicanálise pode
contribuir com seus referenciais teóricos a esta área, descrevemos na Figura1,
quais os principais pontos deste contato com o trabalhador, denominados de
subsistemas de RH, que permeiam as práticas de RH.
GESTÃO DE
RECURSOS HUMANOS
RECRUTAMENTO
&
SELEÇÃO
ALOCAÇÃO
E
AVALIAÇÃO DE
DESEMPENHO
REMUNERAÇÃO
TREINAMENTO
E
DESENVOLVIMENTO
RELACIONAMENTO
INSTITUCIONAL
SISTEMAS
DE
INFORMAÇÃO
Figura1. Adaptado de (CHIAVENATO, 1999, p. 12)
O primeiro deles é o subsistema voltado para agregar pessoas e tem como base
o recrutamento e seleção de profissionais para as mais diversas funções dentro
das empresas. Para tanto, utilizam-se técnicas de avaliação que pretendem tornar
possível a verificação da adequação do candidato à função em aberto, sendo a
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principal delas a entrevista individual. Porém outras técnicas também são
utilizadas, como dinâmicas de grupo, testes comportamentais ou psicológicos,
entrevistas em grupo e situacionais, entre outras.
O segundo é aplicar pessoas, tendo como objetivo entender como cada elo da
cadeia produtiva está dividido e como cada função precisa ser definida para
garantir os resultados esperados. Neste subsistema também está inserida a
avaliação de desempenho, que mede os resultados esperados versus os
resultados obtidos e recompensa os trabalhadores por eles. Tanto no
levantamento de cargos quanto na avaliação de desempenho o trabalhador tem a
oportunidade de dizer o que faz, como faz sua atividade e as dificuldades que
encontra para alcançar os resultados definidos.
O terceiro é recompensar pessoas e trata-se da composição da definição e
manutenção da remuneração do trabalhador, entendendo remuneração o salário
e demais benefícios oferecidos pela empresa, como: previdência privada, plano
de saúde e odontológico, participação nos resultados. Dentro deste subsistema
também está incluída a pesquisa de remuneração que avalia junto ao mercado o
quanto atrativa é a empresa para buscar novos profissionais e manter seus
potenciais nos seus quadros.
O quarto é desenvolver pessoas, sendo seu objetivo treinar e desenvolver os
trabalhadores para suas funções, para desafios futuros e para as mudanças que
surgem ao longo da história da empresa, como certificações, fusões e sucessões.
Esta é uma atuação importante do RH, pois em geral se baseia em
levantamentos das necessidades e expectativas pessoais e organizacionais, que
possam ser atendidas essencialmente através do conhecimento. Nesta função a
ação de comunicação é essencial para divulgar, sensibilizar e manter todos os
envolvidos no mesmo foco.
O quinto é manter pessoas. Este é o subsistema que trata da aderência do
trabalhador junto à empresa, ou seja, o estilo de gestão, os programas de
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reconhecimento, os programas de sugestões, os códigos de conduta e valores
institucionais, os programas de qualidade de vida, as relações sindicais.
E o último é monitorar pessoas através de um sistema de informações sobre os
trabalhadores, que sustentam as decisões de gestão quanto às demissões,
admissões, mudanças de estrutura, entre outros indicadores para a melhoria do
desempenho individual ou coletivo.
Analisados, mesmo que superficialmente, os subsistemas de RH, verificamos
uma configuração de conceitos e práticas que apontam para uma possibilidade de
incremento da performance do trabalhador e do aumento de satisfação no
trabalho. Porém, ao longo do nosso percurso profissional, acompanhando os
trabalhadores dentro da empresas, o que pudemos perceber é um distanciamento
entre os resultados esperados dessas ações e o que se traduz em realidade.
Esta percepção pôde ser captada a cada aplicação dos subsistemas acima
referidos. Tomamos por exemplo, os processos de recrutamento e seleção, que
são utilizados para seleção novos colaboradores na empresa. As tecnologias
atuais de avaliação de seleção nos sugerem métodos quantitativos a fim de
reduzir a subjetividade do recrutador. Porém, a avaliação de um candidato é
composta de outros aspectos, como a adequação à cultura da empresa, aos
futuros desafios profissionais, histórico familiar, entre outros que surgem de uma
abordagem menos matemática do candidato. Sendo assim, se aquilo que
diferencia em candidato de outro candidato é a sua singularidade, perguntamos
como não escutá-lo para além do dado objetivo de seu percurso profissional.
Em muitas entrevistas individuais e dinâmicas de grupo por nós realizadas,
pudemos registrar algumas falas de candidatos, como: “existe vida após o
trabalho”; “é importante separar a vida profissional da pessoal”; “precisamos ter
um tempo depois do trabalho para se fazer aquilo que se gosta”.
Pensando nestas falas extraídas do contexto de avaliação e exposição
profissional do candidato sobre suas expectativas pessoais e profissionais, nos
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questionamos, sem ainda aprofundar este assunto no momento, sobre as
conseqüências da não escuta do que o candidato trás como significantes em
relação ao trabalho e em relação a outros significantes como família e escolhas
pessoais.
Nas avaliações de desempenho, muito embora encontremos técnicas bastante
convincentes de que o trabalhador está sendo avaliado em sua integralidade,
percebemos que questões complexas, que a princípio poderiam ser ouvidas como
um processo de identificação com o líder que requer outro endereçamento,
podem estar causando uma redução nos resultados esperados e que não há
quantificação que aponte para esta questão.
Outra
experiência
importante
em
nossa
atuação
é
o
treinamento
e
desenvolvimento de profissionais. Este trabalho tem por objetivo a indicação de
treinamentos que possam desenvolver as potencialidades do trabalhador nas
suas atividades atuais e futuras.
O mapeamento dos treinamentos é feito através de alguns indicadores
importantes de gestão:
1) Mapeamento de competências;
2) Avaliação de desempenho;
3) Mudanças estratégicas;
4) Diagnósticos de cultura, clima, gestão, entre outros;
5) Novas contratações ou progressões.
Encontramos, em algumas empresas, situações onde os trabalhadores não são
consultados quanto aos treinamentos que irão realizar e quando o são, (através
de formulários ou em raros momentos em entrevistas) percebe-se que a visão da
empresa sobre a capacitação e desenvolvimento daquele trabalhador está,
muitas vezes, dissonante com a sua necessidade ou desejo.
Como exemplo, podemos mencionar alguns treinamentos, por nós ministrados,
que atendem alguns itens de capacitação, e nos defrontamos por vezes com
12
profissionais que não sabem o que estão fazendo naquele evento, o que se
espera dele, ou mesmo o que ele espera de seu futuro a partir das informações
que estão sendo repassadas e do qual a empresa espera uma resposta.
O trabalho que acreditamos ser uma das maiores fontes de inspiração para este
trabalho é o diagnóstico de gestão.
Ele tem por método entrevistas abertas e diretivas com os envolvidos,
investigando primeiramente as expectativas do solicitante sobre o diagnóstico a
ser realizado, a quem se destina e o contrato de confidencialidade. Com este
trabalho realizamos um levantamento da história organizacional; situações
importantes vividas pelos envolvidos no diagnóstico (tanto positivas como
negativas); emoções ligadas a esses fatos; metáforas trazidas pelo entrevistado
ou sugerida a partir de seu discurso e ao final a conciliação de demandas:
empresa e gestor. Todo este levantamento gera um Relatório Final identificando
oportunidades de reflexão e ações sobre as questões levantadas.
Trazemos ainda, outra experiência que reforça nosso desejo de avançar em
nossa atuação utilizando a psicanálise como referencial teórico: a assessoria a
empresas que estão em processo de adequação de suas estruturas para receber
pessoas com diferentes modalidades de deficiências.
O trabalho é constituído de avaliação da cultura organizacional verificando
impasses e valores restritivos ou flexíveis para aceitação da diferença,
mobilização e sensibilização através de palestras e depoimentos, avaliação dos
postos de trabalho para adequação de espaços e de instrumentos de trabalho.
A questão central do trabalho de inserção de pessoas com deficiência está na
possibilidade de aceitação por parte dos trabalhadores das diferenças, seja ela
pela via aparente da deficiência física, seja pela via da singularidade como tratada
na psicanálise. Neste embate entre o princípio da normalidade e o princípio da
singularidade, há em causa um desconforto no confronto com o desconhecido.
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Foi atuando, principalmente nos processos acima referidos, ouvindo as empresas,
na figura de seus gestores, e ouvindo os trabalhadores; que consideramos uma
pergunta recorrente: que relevância há neste ouvir que nos impele a contribuir
para a melhoria das relações entre a organização e o trabalhador.
Ao escutar os trabalhadores sobre suas questões profissionais e também aquelas
de cunho mais pessoal, percebe-se que a função de escuta, nos processos de
seleção, avaliação de desempenho, treinamento e outros subsistemas que nos
confrontam com a fala do trabalhador, fica à deriva, não havendo porto seguro
que a acolha dentro das organizações, no sentido de uma prática habitual dos
profissionais que se dizem agentes da melhoria das relações humanas no
trabalho.
Nas possibilidades que se apresentam, dentro dos subsistemas de RH, temos
atuado nesta função faltosa apoiando-nos na escuta dos trabalhadores para além
dos dados quantitativos esperados, e traduzindo essas falas em ações concretas
de melhoria de processos e relações de trabalho.
Enfim, influenciados pela teoria psicanalítica em função de nossa atuação clínica
e nos surpreendendo, muitas vezes, escutando o trabalhador para além do que
seria próprio de nossa atuação como profissional de RH, nos propusemos a
mergulhar na questão da escuta analítica nos subsistemas de recursos humanos,
onde estão inseridos os processos de Recrutamento e Seleção, Avaliações
Diagnósticas e Treinamento, acreditando que poderemos nos apropriar dos
referenciais da psicanálise para instrumentalizar os profissionais de RH a serem
melhores ouvintes de seus clientes internos.
Numa das defesas de dissertação que assistimos, fomos surpreendidos com o
tema a respeito do trabalho institucional com coveiros; recortamos uma fala que
nos colocou em alerta sobre o nosso dilema dentro das organizações “onde existe
sujeito de um sofrimento comum ali está a psicanálise como possibilidade de
escuta e endereçamento para a cura”.
14
Impregnado pela instituição e suas formas de alienação, o sujeito fala na busca
de um sentido. Mas fala em um espaço não próprio para a atuação de um
psicanalista, pois, a princípio, não haveria espaço para tal nas organizações.
Ele fala a um profissional que de alguma forma tem uma posição privilegiada de
escuta, que codifica sua demanda e endereça-a a outro espaço. Mas esse
endereçamento, esta primeira escuta, já não seria uma escuta preliminar em
psicanálise? Não seria a demanda do trabalhador envolta de metáforas laborais
para dar conta de suas questões mais subjetivas?
Assim, esta dissertação se utiliza da pesquisa bibliográfica de artigos acadêmicos,
aulas e palestras pertinentes ao tema, assim como de nossa experiência
profissional, tendo um estudo de caso para ilustrar nossa hipótese.
.
Iniciamos nossa trajetória de pesquisa, percorrendo os movimentos da produção
industrial e os impactos sociais e políticos que influenciam as relações de trabalho
até os dias de hoje, tendo como foco principal a problematização da atuação de
Recursos Humanos, como possibilidade de ocupar um lugar de escuta fora do
modelo de instrumentalização da subjetividade do trabalhador.
Nos propomos em adição, promover um debate interdisciplinar num diálogo com
a psicanálise, pois, embora a Psicologia Organizacional tenha trazido inúmeras
contribuições para a atuação da área de Recursos Humanos, e auxiliando as
empresas em sua busca por espaços de trabalho mais humanizados, não
queremos deixar de problematizá-la, na medida em que ela pode produzir um
modelo instrumentalizado e instrumentalizador com tal rigor pragmático e
metodológico, que acabe inviabilizando a escuta do trabalhador de um outro lugar
senão o de agente de padronização a serviço dos objetivos da empresa.
Finalizando propomos a realização de um Seminário aos profissionais de RH,
tendo como objetivo, ressaltar a escuta do trabalhador, como forma de qualificar
nossa atuação e gerar resultados mais efetivos ao nosso trabalho.
15
2. O CONTEXTO SOCIAL DO TRABALHO
Entendendo
que
as
forças
sociais
estão
intrinsecamente
ligadas
às
transformações do processo laboral e, conseqüentemente, a uma mudança
subjetiva da organização do trabalho, escolhemos três sociólogos que descrevem
a modernidade e seus impactos nas relações de trabalho e as mudanças em suas
representações. São eles: Anthony Giddens (1991), Richard Sennett (1999) e
Zigmundt Bauman (2001).
Iniciamos assim com uma questão, aparentemente simples, porém desafiadora,
sobre o que é, afinal, a modernidade. Anthony Giddens (1991), em seu livro “As
conseqüências da Modernidade” descreve a modernidade em referência ao estilo,
costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do
século XVII, tendo uma repercussão mundial.
Sua característica fundamental é o desatar de todos os nós tradicionais da ordem
social, tanto na sua extensionalidade estabelecendo formas de interconexão
social que são globais quanto na sua intencionalidade alterando características
pessoais de nossa existência.
Como resultado mais específico, essa transformação social penetra nas
organizações e altera a forma de produção e relações de trabalho. Dentro desta
lógica, o desenvolvimento das organizações mundiais modernas criou mais
oportunidades para os seres humanos gozarem de uma existência segura e
gratificante.
Porém, tanto Marx como Durkheim e Weber (apud GIDDENS, 1991, p.20)
observavam a era moderna como fonte de fortes turbulências, sendo cada um
mais ou menos otimista diante das mudanças e das perspectivas de alteração
social.
Marx via a luta de classes como fonte de dissidências na ordem capitalista, mas
via ao mesmo tempo a emergência de um sistema social mais humano. Durkheim
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acreditava na expansão para além do industrialismo estabelecendo uma vida
social harmoniosa e gratificante, integrada através de uma combinação da divisão
do trabalho e do individualismo moral. Já Weber (apud GIDDENS, 1991, p.21) era
mais pessimista, vendo o mundo moderno como paradoxal onde o progresso
material era obtido apenas à custa de uma expansão da burocracia que
esmagava a criatividade e a autonomia individuais.
“..., todos os três autores viram que o trabalho industrial moderno tinha
conseqüências degradantes, submetendo muito seres humanos à
disciplina de um labor maçante e repetitivo.” (GIDDENS, 1991, p.17)
Para autores influenciados por Marx (apud GIDDENS, 1991, p.23), a força
transformadora principal que modela o mundo moderno é o capitalismo. Neste,
não só uma variedade de bens materiais, mas também a força de trabalho
tornam-se mercadoria.
A era moderna está intimamente ligada à transformação do tempo e do espaço,
fomentando relações entre ausentes, localmente distante. “Em condições de
modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico” (GIDDENS, 1991,
p.27). Podemos perceber esta mudança através das transações virtuais
financeiras com fusos horários díspares e relacionamentos cultivados à distância.
Giddens nos leva a pensar também a questão do dinheiro como mais um dos
mecanismos de afastamento simbólico da pura mercadoria. O dinheiro pode ser
qualquer coisa em qualquer lugar. Entendendo assim “dinheiro”, como um
significante cultural, que vai além de seu uso, mas desencadeia uma percepção
de que uma ação deverá ter uma reação que está diretamente ligada a sua
recompensa.
Assim, a lógica estabelecida entre trabalho e recompensas estabelece uma
certeza: de que se os sistemas sociais funcionam como se espera que o façam,
que existem padrões e regras a serem cumpridos e que nada poderá alterar o
curso desta relação. Esta certeza, porém, tem por base uma atitude de alienação,
17
onde se perde algo em benefício da segurança da coletividade, e de confiança de
que não haverá ruptura nestes sistemas sociais, negligenciando por vezes as
contingências da vida. Assim, nos resta ou vivermos alienados ou em um estado
de incertezas onde não há garantias de atendimento as nossas necessidades de
existência.
Para Giddens (1991), o que é característico da modernidade não é uma adoção
do novo por si só, mas a suposição de uma reflexividade, desdobrando a reflexão
sobre a própria natureza da reflexão. Assim, não estamos seguros, como em
outras eras, onde verdades eram estabelecidas e as relações eram dogmáticas.
O que conhecemos hoje talvez possa ser refutado amanhã. Estamos vivendo no
campo do devir e, assim, no campo da angústia, onde não podemos estar
seguros do conhecimento que nos é dado.
Pressupõe ainda um cenário de alta tecnologia, que não tão somente alteram as
formas de produção, mas toda a sociedade (transportes, vida doméstica, relações
sociais, internet, etc.). A natureza fortemente competitiva e expansionista do
empreendimento capitalista implica que a inovação tecnológica tende a ser difusa,
mas constante.
O sistema administrativo do estado capitalista, e dos estados modernos em geral,
tem que ser interpretado em termos de controle coordenado, onde nenhum outro
estado pré-moderno conseguiu se aproximar do nível de coordenação
administrativa da modernidade. Isto implica em um desenvolvimento de condições
de vigilância, que, como o capitalismo e o industrialismo, ascendem da
modernidade. Com isso, a supervisão é inserida como uma ferramenta de
controle, como descrito por Foucault (apud GIDDENS, 1991, p.47) – prisões,
escolas, locais de trabalho, mas caracteristicamente baseada no controle da
informação.
Cabe aqui esclarecer que para Giddens o capitalismo e o industrialismo são
entendidos da seguinte forma:
18
“O capitalismo é um sistema de produção de mercadorias centrado na
relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem
posse de propriedade, esta relação formando o eixo principal de um
sistema de classes. O empreendimento capitalista depende da produção
para mercados competitivos...” (GIDDENS, 1991, p.61)
“A característica principal do industrialismo é o uso de fontes inanimadas
de energia material na produção de bens, combinado ao papel central da
maquinaria no processo de produção.” (GIDDENS, 1991, p.61)
“O industrialismo pressupõe a organização social regularizada da produção,
no sentido de coordenar a atividade humana, as máquinas e as aplicações
e produções de matéria-prima e bens”. (GIDDENS, 1991, p.62)
A emergência do capitalismo, como diz Marx (apud GIDDENS, 1991, p.67),
precedeu ao desenvolvimento do industrialismo e na verdade forneceu o ímpeto
para sua emergência. A produção industrial e a constante revolução na tecnologia,
a ela associada, contribuem para processos de produção mais eficientes e
baratos.
A transformação em mercadoria da força de trabalho foi um ponto de ligação
particularmente importante entre o capitalismo e o industrialismo, porque o
“trabalho abstrato” pode ser diretamente programado no projeto tecnológico de
produção. O contrato de trabalho capitalista envolve a contratação de trabalho
abstrato, ao invés de servidão da “pessoa inteira” (escravidão) – daí a mão-deobra; uma proporção da semana de trabalho, ou do produto.
A globalização está intrinsecamente ligada à idéia de modernidade, dentro do
conceito de tempo e espaço, com conexões presença/ausência. Ela se refere
essencialmente a este processo de alongamento mundial do tempo e espaço.
Este é um processo dialético, onde as conseqüências não caminham em uma
mesma direção.
19
Muitas empresas multinacionais podem imprimir, pelo seu imenso poder
econômico, mudanças culturais nas regiões em que se instalam, visto que muitas
vezes têm orçamentos maiores do que as nações em que se estabelecem.
Se por um lado temos os estados-nação como principais atores dentro da ordem
pública, as empresas são agentes dominantes dentro da economia mundial.
Porém em suas relações comerciais entre si, com estados e consumidores, as
empresas têm como principal objetivo, e dependência, o lucro.
O desenvolvimento industrial teve como aspecto mais óbvio, a expansão global
do trabalho, não apenas no que diz respeito à especialização da indústria, mas
também à difusão mundial de tecnologias de máquinas, afetando a vida cotidiana,
influenciando o caráter genérico da interação humana com o meio ambiente
material.
A difusão do industrialismo criou um mundo ameaçador, com mudanças
ecológicas reais que afetam todo o planeta, porém também transformou as
tecnologias de comunicação nos colocando nesta referência de mundo. No
mundo moderno, o futuro está sempre em aberto, não somente em termos da
contingência comum das coisas, mas em termos da reflexividade do
conhecimento em relação aos quais as práticas sociais são organizadas.
Nos momentos de crise, o verdadeiro repositório de confiança está no sistema
abstrato, na idealização, e não nos indivíduos que o representam. Porém os
pontos de acesso a estes sistemas abstratos trazem lembretes de que são
operadores de carne e osso, por isso mesmo falível, como ouvidorias, gestores,
profissionais de RH, centrais de atendimento, etc.. Giddens toma como exemplo o
ar descontraído da tripulação de um avião que surte mais efeito do que as
estatísticas sobre as quedas de avião.
Por isso o compromisso com o “rosto”, no sentido do contato visual com o outro,
mantém a sensação de confiança, mais do que os códigos de ética envolvidos
nas diversas profissões. Podemos nos lembrar a célebre frase de César sobre
20
sua mulher Pompéia, mesmo sabendo de sua inocência: “À mulher de César não
basta ser honesta, tem que parecer honesta.”
Essas características de segurança são encontradas na primeira infância, quando
recebemos uma dose básica de confiança que elimina ou neutraliza as
suscetibilidades existenciais. A confiança aqui referida não implica somente em
contar com a uniformidade e continuidade dos provedores externos, mas também
que na possibilidade de confiar em si mesmo. Assim a previsibilidade das rotinas
sem importância da vida cotidiana está profundamente envolvida com um
sentimento de segurança psicológica, e quando alteradas a ansiedade transborda.
Podemos evidenciar esta ansiedade nos processos de mudanças organizacionais,
quando são inseridos novos padrões de trabalho ou nos movimentos da
economia, que tem como conseqüência reestruturações não só verticais como
horizontais. Aquilo que se entendia como certeza de atendimento de expectativas,
a organização, se traduz como também submetido a incertezas, seja pela via das
demandas diferenciadas do mercado, seja pelo desenvolvimento tecnológico.
De forma mais intensa, observamos este fenômeno nos processos demissionais,
tanto para aqueles que são desmobilizados quanto para os que permanecem na
organização, visto que há uma identificação direta destes últimos com os
primeiros, ou seja, “se aconteceu com o outro pode acontecer comigo”.
Neste momento, onde não há certezas de respostas adequadas às necessidades
do trabalhador, vem à tona a fragilidade desta confiança básica, inaugural da
primeira infância. Uma intervenção mínima de escuta, por parte dos profissionais
de Recursos Humanos, nos parece que traria resultados de, no mínimo, amparo e
acolhimento deste trabalhador, apontando para uma visão mais reflexiva do
trabalho e do seu papel dentro deste contexto. Além disso, trazer uma outra
perspectiva sobre o trabalho e suas relações, tendo em vista que a rotina não é
parte estrutural de nossa vida e sim as contingências. “só temos uma certeza: que
tudo muda”.
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Enfim, a rotina exige uma vigilância constante e um refazer contratual, entre
indivíduos, também constante, de forma que, caso o contrato seja quebrado, o
transbordamento inevitável de sentimentos como mágoa, perplexidade e traição,
junto com suspeita e hostilidade, seja amenizado.
A segurança da rotina e a confiança em sistemas abstratos se colocam como
substitutos da relação que já não mais se estabelece na vida cotidiana, visto que
a vida privada reduziu suas referências estáveis e a vida pública as acrescentou
em suas relações. Para Horkheimer, no capitalismo organizado “a iniciativa
pessoal desempenha um papel sempre menor em comparação aos planos
daqueles com autoridade”. (apud GIDDENS, 1991, p.118)
Nesta transição a honra é substituída pela lealdade, tendo como apoio o afeto
pessoal e a sinceridade é substituída pela autenticidade, uma exigência de ser
aberto e bem intencionado.
Considerando este cenário, Richard Sennett (1999), em seu livro “A corrosão do
caráter”, indica que o novo capitalismo é marcado pelo mercado global e o uso
maciço de novas tecnologias que tornam a vida mais dinâmica obrigando as
pessoas a se prepararem para freqüentes mudanças, incluindo trocas de
emprego.
A nova forma do capitalismo também se caracteriza pela quebra de tabus antigos
- podemos citar o maior número de mulheres que passam a trabalhar, algumas
até mesmo com a responsabilidade de sustento do lar.
Porém, o capitalismo atual trouxe também efeitos indesejados, como o medo de
perder o controle sobre a própria vida, pois o mercado cada vez mais é motivado
pelo consumidor, e, para manter sua competitividade e produtividade, as
empresas, e, conseqüentemente, seus trabalhadores, se tornam em maior grau
subservientes aos horários dos clientes.
22
O medo da perda de controle está intrinsecamente referido ao controle de tempo.
Tendemos a operar com horários mais flexíveis reinventando o ciclo circadiano
trazendo em decorrência a secundarização da vida emocional e declínio das
carreiras tradicionais. O mundo se tornou mais dinâmico e as mudanças de
emprego, ou mesmo de carreira durante a vida se tornam cada vez mais comuns.
O mercado se torna mutável como nunca antes visto, passando cada vez mais a
se pensar no curto prazo.
Segundo Sennett (1999), as empresas se caracterizam pela "força dos laços
fracos", o emprego passa a ser utilitário e sem vínculo, há uma falta de
perspectiva de compromisso duradouro com a empresa gerando assim uma certa
falta de lealdade institucional. Os trabalhadores tendem a ficar "negociáveis"
assim que descobrem que não podem contar com a empresa. Enfim, o mundo
anterior ao "novo capitalismo" era mais burocrático, previsível. O atual tem a
marca da flexibilidade e do dinamismo, das relações líquidas.
Dois filósofos contemporâneos, no século XVIII, Denis Diderot (apud BORGES,
2008), francês, e Adam Smith (apud BORGES, 2008), escocês, tinham posições
diferentes sobre a rotina no trabalho. Diderot considerava que a rotina laboral não
era degradante, ao contrário, era igual a qualquer outra forma de aprendizado,
indo além afirmando que a rotina estava em constante evolução, pois repetindo
uma tarefa haveria a possibilidade de se descobrir como reduzir seus tempos ou
criar novos procedimentos. Um modelo similar de estudo de uma determinada
tarefa é reinstaurada nos anos 80, pelo modelo japonês de melhoria contínua,
chamado kaisen (termo japonês que indica que é sempre possível se fazer
melhor).
Já Adam Smith via a rotina de forma negativa, algo degradante, fonte de
ignorância mental por falta de conhecimento de como fazer a mudança. A rotina,
portanto se tornava autodestrutiva porque os trabalhadores perdiam o controle
sobre seus próprios esforços.
23
No capitalismo atual, a rotina é de outra ordem, não mais das certezas de
realização
de
uma
tarefa
de
forma
repetida
ou
da
manutenção
de
relacionamentos duradouros. Passa a dar lugar à falta de segurança no emprego,
do futuro incerto, da costumeira reavaliação da carreira, e essa "rotina dinâmica"
é tão ou mais destrutiva quanto a rotina sob o ponto de vista de Smith (apud
BORGES, 2008).
Para minimizar os impactos desta nova demanda de dinamismo e enfrentamento
de incertezas, as organizações se tornaram mais flexíveis a partir do
remodelamento de sua gestão. Antenadas às demandas do mercado, as
organizações se reinventam de forma descontínua, mobilizando e desmobilizando
recursos a cada novo desafio.
Outro fato importante é a especialização flexível da produção sendo um sistema
de inovação permanente. A finalidade é inserir no mercado, cada vez mais rápido,
produtos variados, sendo uma forma de adaptação à mudança permanente e não
uma forma de controlar essa mudança.
Para implantar esta modalidade de gestão é necessário que as decisões sejam
tomadas de forma rápida, com suporte de alta tecnologia, rapidez nas
comunicações e fundamentalmente ter disposição de deixar que as demandas de
mercado externo determinem a estrutura da empresa, que obviamente poderá ser
mutante, ao sabor do mercado.
A concentração de poder sem centralização é uma técnica moderna de dar
liberdade, mas ao mesmo tempo manter o controle. Esta é uma técnica muito
utilizada para grupos de trabalhos, empresas com filiais, prestadores de serviço
ou agências.
Na maioria dos casos é imposta uma meta a ser atingida e é dada liberdade para
o grupo atingir essa meta da forma que achar mais conveniente. Geralmente
essas metas estão além do que normalmente seria alcançável e o controle se dá
através de planilhas ou mapas de acompanhamento. Essa é uma forma de dar
24
mais controle às pessoas sobre as suas atividades diminuindo a burocracia e
envolvendo o trabalhador no negócio da empresa.
Na verdade, esses sistemas de informação oferecendo total controle sobre os
atos "independentes" do grupo é uma nova forma de poder aparentemente
libertador, mas na realidade desigual, pois aumenta o poder da alta administração
de forma dissimulada tornando o trabalhador único responsável pelo seu êxito ou
fracasso.
O trabalho se torna ilegível no capitalismo flexível porque há perda da
identificação entre o ato e o ator do trabalho. O trabalho passa a ser frio,
mecânico, asséptico. A alienação e a indiferença, no que se refere ao produto do
trabalho, se instauram e o trabalhador não tem mais o domínio do processo, não
sabe mais o seu ofício original, ou seu valor no processo produtivo, o que
acarreta em identificação fluida com o trabalho. Outro aspecto observado quando
o trabalhador se torna alienado do trabalho é a falta de vínculos dentro do grupo.
Uma nova ética do trabalho se estabelece no trabalho em equipe, onde se
destaca a capacidade de ouvir e de se adaptar as diversas circunstâncias
exigidas no ambiente interno e externo, sendo necessário maior cooperativismo.
Porém, o que poderia ser um catalisador para um retorno aos vínculos mais
densos, se traduz na evitação desses vínculos, onde os grupos tendem a manterse juntos na superfície das coisas. "O trabalho em equipe deixa o reino da
tragédia para encenar as relações humanas como uma farsa". (SENNETT, 1991,
p.91)
Outro ponto deste momento na ordem do trabalho é que o fracasso não é mais a
perspectiva apenas dos pobres ou desprivilegiados, tornou-se mais conhecido
como um fato regular na vida da classe média.
Sennett discorre sobre sua experiência com alguns profissionais da IBM que
acreditavam que suas carreiras seriam quase que vitalícias, mas depois de
demitidos descobriram no próprio fracasso certa revelação sobre suas vidas.
25
Este é um mito importante nas relações de trabalho: que o vinculo de trabalho é
para sempre. Não há uma visão transitória de relação, por isso tanta mágoa
envolvida nas demissões. A empresa se apropria não só do trabalhador como do
seu desejo e quando a relação utilitária já não é mais produtiva, o vínculo se
rompe e se rompe o mito, despedaçando o trabalhador em sua existência.
A IBM era administrada por Thomas Watson Sr., que administrava de forma
feudal e dirigida como um exército. Como as relações feudais, os empregos são
vitalícios para a maioria dos trabalhadores e uma espécie de contrato social entre
administração e mão-de-obra.
Em 1956, Thomas Watson Jr, assumiu o lugar do pai, implantando uma
administração com maior delegação e escuta dos trabalhadores, proporcionando
maiores benefícios. Após 1980 houve grandes perdas para o mercado da IBM,
Thomas Watson Jr. se aposentou, entrando outros presidentes em seu lugar.
Em 1993, a IBM procurou substituir as rígidas estruturas hierárquicas por formas
mais flexíveis de organização, e com uma produção flexível orientada para maior
diversidade de produtos no mercado com maior rapidez. A estabilidade dos 400
mil trabalhadores mudou dentro desta nova realidade acarretando demissões em
grande escala.
Depois de algum tempo os trabalhadores que foram demitidos sentavam-se em
um café em Nova York para discutir o fracasso em suas carreiras. Quando
Sennett (1991) se junta a eles, no começo todos se achavam vítimas passivas da
empresa, mas depois mudam o foco para seu próprio comportamento. Esses
trabalhadores acreditavam que tinham sido traídos pela IBM e que a lealdade à
empresa havia morrido.
Como uma das formas de se tornar competitiva, reduzindo em especial os custos
com trabalhadores, a IBM passou a contratar mão-de-obra indiana, onde pagava
muito menos do que aos americanos. Esses mesmos homens que se juntavam
num bar, ressentidos de suas demissões, reconheceram a qualidade de trabalho
26
que vinha da Índia e passaram a pensar no que deveriam ter feito antes de suas
carreiras chegarem ao ponto que chegara.
O tema, porém, das discussões ainda era mais o fracasso e a falta de controle
sobre as suas vidas. Eles julgavam que estiveram errados em não se qualificar e
acreditavam que deveriam ter corrido mais riscos. Sennett (1991) percebeu que
aos poucos os programadores estavam tentando enfrentar a realidade do
fracasso e de seus próprios limites. Para eles o que importava não era mais o que
aconteceu, mas o que eles deveriam ter feito há alguns anos: ter tomado suas
vidas em suas mãos e se responsabilizarem por elas. Após algum tempo a
percepção quanto ao ocorrido na IBM tornou-se mais realista.
O regime flexível talvez pareça gerar uma estrutura de caráter constantemente
em recuperação. Exige-se um senso maior de comunidade, e um senso mais
pleno de caráter, do crescente número de pessoas que, no capitalismo moderno,
estão condenados a fracassar. Cabe aqui destacar a definição de caráter para
Sennett: “traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais
buscamos que os outros nos valorizem” (SENNETT, 1991, p.10).
Sennett passa a então a questionar as relações de trabalho contemporâneo e
suas implicações nos valores pessoais como a lealdade e os compromissos
mútuos. Não é possível construir um caráter em um capitalismo flexível, onde não
há metas a longo prazo, pois a construção deste depende de valores e relações
duradouras e isto não é possível em uma sociedade onde as instituições vivem se
desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas.
A partir desta experiência, o que fica de alerta é a exigência de uma resiliência do
eu, sendo entendida como a capacidade de resistir à pressão das situações
adversas dentro das organizações, na medida em que precisamos estar
preparados para enfrentar um constante correr de riscos a partir do
estabelecimento de relações mais flexíveis, em todos os níveis.
27
Sennett (1991) coloca que diante da destruição da esperança e do desejo, a
preservação de nossa voz ativa é a única maneira de tornar o sofrimento
suportável, assim a narrativa dos ex-trabalhadores tentou uma espécie de saída
através da palavra.
Podemos compreender, a partir deste relato, a importância de um espaço de
possibilidade de verbalização das questões que perpassam a vida do trabalhador
na empresa, desde sua admissão até a sua demissão.
As propostas práticas mais convincentes que existem para enfrentar os
problemas do novo capitalismo concentram-se nos lugares onde ele opera, ou
seja, nas organizações sociais ou privadas.
Hoje a dependência é uma condição vergonhosa: o ataque à rígida hierarquia
burocrática quer libertar estruturalmente as pessoas da dependência; o assumir
riscos destina-se mais a estimular a auto-afirmação que a submissão ao que
existe. Dependência vira sinônimo de fracasso.
Porém, a ideologia do parasitismo social, termo apropriado da Biologia que
descreve organismos que vivem em associação com outros aos quais retiram os
meios para a sua sobrevivência, normalmente prejudicando o organismo
hospedeiro, é um instrumento utilizado no local de trabalho. Ou seja, enquanto as
organizações estimulam a autonomia e o trabalhador precisa demonstrar que não
está se aproveitando do trabalho dos outros, este ainda está subjugado à
hierarquia organizacional. Em muitas sociedades havia pouca vergonha de
depender de outras pessoas. O fato de o fraco necessitar do forte, como na
sociedade indiana e japonesa, não é considerado humilhação.
No mercado moderno a maioria da massa laborativa trabalha para os outros. A
vergonha da dependência tem uma conseqüência prática, corrói a confiança e o
compromisso de qualquer empreendimento coletivo. Os laços de confiança são
testados quando as coisas dão errado e a necessidade de ajuda se torna aguda.
A falta de confiança também pode ser criada pelo exercício flexível do poder.
28
No trabalho em equipe supõe-se que todos partilham da mesma motivação, e é
essa suposição que enfraquece a verdadeira comunicação, fortes laços entre as
pessoas significam enfrentar com o tempo suas diferenças. A comunidade aberta
em seus conflitos é exatamente o que um regime flexível deveria inspirar.
A grande questão no capitalismo moderno é: "Quem precisa de mim?", isso reduz
o sujeito ao sentido de sermos necessários, a falta de resposta é uma reação
lógica ao sentimento de que não somos necessários, sendo sua conseqüência o
adoecimento do trabalhador tanto de forma física como mental.
Dentro desta visão podemos considerar que o que se pede é que não exista a
falta como elemento singular do ser humano. Considerando o Seminário 7
(LACAN, 1960), Lacan irá criticar esse ideal de autonomia, como uma
possibilidade de escapar à falta para ser Um com o Outro: ser sem falta em um
gozo narcísico.
Porém, na experiência psicanalítica, tratamos este ponto como um lugar de
impossibilidade, objeto almejado e objeto obtido são diferentes. O objeto da Lei
(das ding) não são os objetos dos nossas vontades, mas o objeto para sempre
perdido, que instaura o desejo como falta que procura ser preenchida com objetos
causa de desejo, categorizado por Lacan como objeto a. Assim deslizamos
através de objetos em torno dessa falta, buscando significá-la.
Ora se a completude é a ausência da falta original, o que se oferece a este
trabalhador é o adoecimento, a morte ou, se articularmos os modos de gozo
tratados por Lacan, tendo no centro o objeto a, teremos o que nos parece ser o
principal modo de gozo da sociedade contemporânea, onde o sujeito procura a
completude não no sentido, mas nas coisas. Desta forma, a sociedade capitalista
estaria vinculada a um modo de gozo a partir da aquisição, ter em detrimento do
ser e, consequentemente, ao consumismo.
Zygmundt Bauman (2001), em seu livro “Modernidade Líquida”, faz um recorte da
sociedade traduzindo-a como indivíduos colecionadores de experiências e
29
sensações. Pela propriedade de não fixação no espaço e por não se prenderem
ao tempo, utilizou-se da metáfora da “fluidez” ou “liquidez” para definir a era
moderna.
A modernidade fluida, segundo Bauman, produziu uma profunda mudança na
condição humana e em seus conceitos básicos de individualidade, relação
tempo/espaço, vínculos de trabalho e a participação em comunidade.
O tempo adquire importância singular pela velocidade do movimento através do
espaço, da imaginação e da capacidade humana. Não há limites neste contexto,
pois o que existe é um esforço contínuo, rápido e irrefreável para que todo e
qualquer limite seja ultrapassado.
O acesso a meios mais rápidos de mobilidade na modernidade é a principal
ferramenta de poder e dominação, principalmente no que tange a mobilidade
virtual.
A definição de homem moderno a ser incapaz de parar e de ficar parado, tendo
necessidade de estar sempre à frente de si mesmo, significando também, ter uma
identidade que só pode existir como um projeto não realizado. Estamos tratando
de um ser em devir.
Há que se fazer, porém, uma distinção histórica entre a condição na
modernidade em que vivemos e a condição da modernidade de nossos ancestrais.
Bauman se utiliza de duas características para apresentar diferenças na situação
atual. A primeira diz respeito ao declínio da crença de que há um estado de
perfeição a ser atingido no fim do caminho. A segunda diz respeito à autoafirmação do indivíduo, que se reflete no discurso ético/político do quadro da
“sociedade justa” para o dos “direitos humanos”.
Ou seja, se a modernidade era densa em suas ideologias, a modernidade atual é
fluida, livre de deveres libertários. Diferente da individualização de cem anos atrás,
a individualização na modernidade atual, consiste em transformar a identidade
30
humana em uma tarefa, onde seus autores serão responsáveis pela realização
dessa tarefa e das conseqüências advindas com a mesma.
Em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud (1930) concebeu um mundo no futuro
regido pela segurança no qual uma ordem social extrema daria incontestável
forma a um desejo coletivo de controle e justiça. A estabilidade social romperia o
fluxo constante do afloramento das pulsões; a sexualidade e a agressividade,
entre outras exigências, e sofreriam com a renúncia que o processo civilizatório
demanda, porém essa renúncia seria acatada em troca de um pouco de
felicidade, para não perder a segurança iminente nesse arcabouço de perigos em
um trajeto desconhecido.
Mas, no pensamento de Bauman (1998), em particular no livro “O Mal-Estar da
Pós-Modernidade”, encontraremos um mundo repleto de incertezas onde o ser
humano troca a segurança, outrora desejada, pela liberdade, mas não uma
liberdade qualquer: a liberdade individual engendrada por uma vontade suprema.
Porém esta vontade suprema reduz o homem a um estado de insegurança, de
medo universal, de tecnologia excludente, de ameaças constantes e desemprego
crescente. Mudanças repentinas, aonde o tempo é o senhor que tudo pode.
Mudanças
econômicas,
políticas,
culturais
transformam
o
cotidiano
em
ambivalente. A rotina e a estabilidade das relações que traduz um sentimento de
confiança já não existem e o sentimento de incompletude, de vazio é mais um
fantasma a assombrar os humanos “pós-modernos”.
As incertezas apontadas por Bauman contagiam todos os setores de atuação
humana. Os pressupostos que nos regem, e indicam um pseudo ideal de
liberdade totalizante, são o do mercado consumidor, competitividade, indiferença,
verdades
múltiplas,
que
salientam
diferenças,
mas
não
respeitam
as
singularidades.
A globalização como veículo de enquadramento e padronização, despersonaliza
as diversas culturas alimentando-as de produtos para consumo rápido, liberdade
de escolha que não alcança a satisfação prometida, pois parece impossível o
31
prazer nesta época de constante oferta de oportunidades de satisfação através
das coisas e das pessoas.
Neste contexto encontramos um mundo de guerras preventivas, como são
preventivas as ofertas de produtos que nem se sabia precisar, levando ao
consumismo exacerbado. Assim o homem pós-moderno no sentido de combater
o vazio que incessantemente tenta ser preenchido pelo outro, busca um
prolongamento de sua vida em novas formas de comunitarismo (nos quais estão
incluídos o nacionalismo e o fundamentalismo religioso – e até terrorista), neste
mundo onde o homem sonha com o prolongamento de sua vida, essas formas de
comunitarismo são tentativas legítimas de combater os excessos da liberdade, da
falta de ética, da invasão de um livre mercado internacional, onde os países
desenvolvidos fazem as regras.
O mundo “pós-moderno” nos desafia a refletir sobre quais os benefícios da
desapropriação do ser para a apropriação do ter. Além disso, o quanto devemos
abrir mão de nossa individualidade em prol de uma sociedade que nos massifica
e enquadra para seu próprio prazer e benefício.
Se por um lado Giddens (1991) nos leva a considerar a noção de reflexividade
como ponto de possibilidade de ver e agir criticamente no mundo, por outro
Bauman (2001) nos apresenta uma visão de sociedade crua considerando os
caminhos da sociedade apontando para uma padronização do ser e uma
valorização do ter. Já Sennett (1999) contextualiza as organizações e seus
impactos nas relações de trabalho.
Por fim, o que pretendemos é nos apropriar da visão de Giddens trazendo a
reflexividade como ponto de atenção para a atuação dos profissionais de RH,
utilizar Sennett como base para a contextualização das organizações na
sociedade moderna e Bauman, trazendo uma visão crítica da sociedade,
impactando o sujeito que é convocado a trabalhar nas organizações,
estabelecendo diferentes formas de relações de trabalho.
32
3. O CONTEXTO DA ADMINISTRAÇÃO DO TRABALHO
Temos presenciado profundas transformações no mundo do trabalho, tanto nas
formas de estrutura produtiva quanto nas formas sociais e políticas. Nos
arriscamos a dizer que essas repercussões influenciaram tanto a materialidade do
trabalho quanto a sua subjetividade.
O grande salto tecnológico, a automação, as tecnologias da informação,
invadiram o ambiente organizacional revirando os paradigmas do trabalho e de
suas relações.
Mas para entender a realidade do mundo do trabalho é necessário entender os
movimentos históricos que nortearam a sua estrutura e que ainda estão presentes,
de forma residual ou integral. Seja através dos tempos e movimentos pelo
cronômetro fordista ou pela produção em série taylorista, ou pela especialização
flexível do toyotismo, temos elementos que nos indicam possíveis hipóteses para
discutir o sofrimento do trabalhador frente às mudanças no processo produtivo ou
a manutenção de estruturas de trabalho que reforçam a coisificação da
subjetividade.
Trataremos basicamente das mudanças nos trabalhos produtivos da indústria em
seus principais movimentos como o Taylorismo, Fordismo, Toyotismo, entre
outros, entendendo os diferentes focos que engendram o trabalhador e sua
posição diante do trabalho.
O Taylorismo, ou a chamada Administração Científica, foi desenvolvido por
Frederick W. Taylor (apud BORGES, 2008), engenheiro americano do início do
sec. XIX e é constituído basicamente de um modelo de desenvolvimento dos
trabalhadores e seus resultados, através de instruções e procedimentos, para que
pudessem fazê-los produzir mais e com qualidade melhor.
Esta era uma época onde os trabalhadores eram desqualificados e tratados com
desprezo, pois não havia interesse em investir já que a demanda de
33
trabalhadores era enorme. Taylor (apud BORGES, 2008) então identifica, a partir
de sua análise da singularidade da tarefa, que trabalhadores desqualificados
eram trabalhadores de baixa produtividade e, conseqüentemente, menos lucro,
forçando a um maior número de contratações.
Além disso, instituiu o modelo de planejamento de produção para que pudesse ter
maior controle sobre o produto final, visando sempre potencializar a cadeia
produtiva, assim sendo acreditava que os melhores resultados refletiriam em
menores custos e, conseqüentemente, em salários mais altos.
Dentro desta lógica científica, de análise e controle de dados, introduziu o
conceito de “tempos e movimentos”, que tinha por objetivo fazer com o que o
trabalhador executasse uma determinada tarefa dentro de uma seqüência e
tempos pré-programados de modo a ter um desperdício mínimo de produção.
Eliminando movimentos inúteis e fazendo o trabalho se tornar mais rápido e
eficaz.
É neste momento em que a figura do supervisor se inaugura dentro das fábricas
com a função de verificar se os trabalhadores estão desenvolvendo duas
atividades dentro dos procedimentos definidos. Institui-se também a separação
entre aqueles que executam e aqueles que planejam. A noção do bom
trabalhador se traduz naquele que cumpre ordens e não as discute, tendo o
supervisor como aquele que dá as ordens.
Dentro do seu método existia um olhar sobre o trabalhador para além das
questões da produção. Ele estabelece alguns preceitos até hoje difundidos na
administração moderna.
Uma relação entre a fadiga e a diminuição da produtividade, com perda de
qualidade de resultados, doenças e aumento da rotatividade de pessoal.
Estabelece ainda que todas as instruções programadas devam ser transmitidas a
todos os trabalhadores, definindo as aptidões de cada trabalhador para
determinada tarefa na direção da especialização e divisão do trabalho.
34
Incentivos salariais e prêmios por produtividade, para aqueles que se
destacassem além do estabelecido (atualmente chamado de meritocracia) e a
melhoria do ambiente físico para maior conforto do trabalhador e, por
conseqüência; maior produtividade.
Entra em cena a noção do homem econômico, motivado por recompensas
salariais e materiais e que hoje em dia ainda é foco de todas as empresas para
que se possa estimular o aumento da produtividade.
Este método traz em si maior controle sobre os trabalhadores e desapropriação
do trabalhador em relação ao seu trabalho, visto que a segmentação das tarefas
era vital para maior produtividade.
Analisando os sistemas de gerenciamento e controle da qualidade dos resultados
nas últimas duas décadas, nos deparamos com a permanência da administração
científica nas atuais ditas inovações de gestão. O treinamento contínuo, as
certificações que garantem o resultado final, a função da supervisão como ponto
chave para a manutenção de um processo produtivo com resultados de
excelência, são ainda a base da administração contemporânea, mesmo se
travestida de outros nomes.
Um exemplo do resquício do Taylorismo na atualidade são as normas
International Organization for Standardization-9000 (ISO-9000), que garantem,
através de itens de controle da qualidade, o produto entregue ao cliente, a forma
de gestão, o treinamento a ser aplicado para cada função.
Quando da nossa atuação como Auditora da Qualidade para as normas ISO-9000
(grupo de normas técnicas que estabelecem um modelo de gestão da qualidade
para organizações em geral, qualquer que seja o seu tipo ou) e do Prêmio
Nacional da Qualidade (PNQ), a padronização dos macro fluxos de processo, a
descrição das atividades e sua real aplicação no trabalho, a definição de
indicadores de qualidade e de técnicas estatísticas que pudessem garantir esses
resultados eram, e são, fatores decisivos para o controle da produção e do
35
controle da atuação do trabalhador. A Área de Recursos Humanos sofreu uma
valorização pela necessidade de “motivar” seus trabalhadores para as novas
práticas de trabalho, além de analisar outras formas de gestão.
Henry Ford (apud BORGES, 2008), fundador da Ford Motor Company,
revolucionou a indústria automobilística a partir de 1914, quando introduziu a
automatização da linha de montagem de seus carros, utilizando os princípios de
padronização e simplificação de Frederick W. Taylor. Seu grande objetivo era
popularizar o automóvel através da redução dos custos da produção.
No filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin, podemos verificar como a linha
de montagem do modelo fordista operava. Esteiras rolantes movimentavam-se
com as peças, enquanto os operários ficavam estáticos realizando uma parte da
tarefa da produção. Assim não era necessária nenhuma qualificação dos
trabalhadores.
Fixo em seu posto de trabalho, o trabalhador era parte da máquina, sem que
houvesse necessidade de elaboração mental para o exercício de sua função.
Sem interferência da mente, novamente desapropriando o trabalhador de seu
trabalho, a linha de produção homem-máquina se constituía em uma só entidade.
Enquanto no Taylorismo ainda havia a preocupação de se adequar as
potencialidades às necessidades de especialização da tarefa, no Fordismo, pela
implantação de movimentos repetitivos e sem atuação mental, volta-se a
desprestigiar a qualificação e a prestigiar somente a “mão-de-obra”, mais barata e
substituível. Ford, em 1913, relata:
“Para certa classe de homens, o trabalho repetido, ou a reprodução
contínua de uma operação idêntica, por processos que não variam nunca,
constitui um espetáculo horrível. A mim me causa horror. Por preço algum
do mundo poderia fazer todos os dias as mesmas coisas.
Entretanto, atrevo-me a dizer que para a maioria a repetição nada tem de
desagradável. Para certos temperamentos, a obrigação de pensar é uma
36
verdadeira tortura, porque o ideal consiste em operações que de modo
algum exijam instinto criador.” (apud BORGES, 2008, slide 25)
Ford traduz uma realidade de mão-de-obra marginalizada, sem capacitação, que
se assujeitava a realizar qualquer tipo de trabalho em troca de uma remuneração.
Aqui ele já inaugura uma tentativa de avaliar as tendências do trabalhador para
uma ou outra atividade, porém ainda com a visão segmentada entre elaboração
mental e trabalho braçal, como se ambas pudessem ser dicotomizadas.
O Fordismo teve seu ápice na Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 1950 e
1960, conhecidas também como Os Anos Dourados. Porém o mundo mudou
após a guerra e com isso o modelo rígido de gestão e de produção de um único
produto que atendesse a todos os potenciais compradores, levou o Fordismo ao
declínio.
Em 1970, a General Motors flexibiliza sua gestão e sua produção, cria diversos
modelos de carro com cores variadas e adota um sistema de gestão
profissionalizado, assim ultrapassando a Ford como maior montadora do mundo.
Neste mesmo período com a crise do petróleo e a entrada de competidores
japoneses neste mercado, um novo modelo de produção se inicia baseado no
Toyotismo e em 2007, a Toyota se torna a maior montadora de veículos do
mundo colocando fim ao Fordismo.
O Japão, após a Segunda Guerra Mundial, apesar de destruído, encontrou
condições favoráveis para retomar sua economia e mudar o curso da história
dentro das organizações. Diferentemente dos EUA e da Europa, o Japão tinha um
mercado consumidor pequeno, com capital e matéria-prima escassos e grande
disponibilidade de mão de obra especializada. Nesta conjuntura, a aplicação do
modelo americano de administração de produção em massa era inviável.
O que se configurou como resposta foi o aumento da produtividade através da
fabricação de pequenas quantidades de numerosos modelos de produtos,
37
voltados para o mercado externo, de modo a gerar divisas para a sua
reconstrução pós-guerra.
O Toyotismo, como modelo de organização produtiva, foi elaborado por Taiichi
Ohno, que tem como base a filosofia orgânica da produção industrial. Em seu
sistema foram identificados alguns aspectos importantes de sustentação, como a
introdução de uma mecanização flexível onde a produção é realizada a partir da
necessidade da entrega, em contraponto com o Fordismo que privilegiava o
estoque de excedentes da produção, sendo assim flexível a demanda do
mercado.
Além disso, a estruturação de processos multifuncionais ou de polivalência de
seus trabalhadores, incentivando o enriquecimento do trabalho e investimento em
educação, visto que com mercados muito segmentados a função de especialista
restringia a produção.
O envolvimento do trabalhador no pensar a produção, foi extremamente
estimulado com a implantação de sistemas de controle de qualidade total,
promovendo ciclos de palestras onde o trabalhador desenvolve a visão de todo o
processo produtivo e sua importância dentro dele.
Hoje ainda verificamos a utilização do sistema “Just in time”, originalmente
idealizado por Henry Ford (apud BORGES, 2008), porém implantada por ele,
baseado em controles estatísticos de processo produzindo o necessário, na
quantidade e no momento necessários.
Apesar das maravilhas e novidades que o Toyotismo trouxe através da tecnologia
nos modos de produção atual, esse mesmo modo desencadeou um elevado
aumento das disparidades socioeconômicas e uma necessidade desenfreada de
aperfeiçoamento constante para simplesmente se manter no mercado.
38
Alguns pensadores, entre eles Richard Sennett (1999), concordam que a nova
crise econômica mundial, deflagrada em setembro de 2008, representa uma
profunda ruptura com a visão de trabalho predominante no século XX.
Esta ruptura vinha se processando com a emergência das novas tecnologias da
era digital que, por si, já modificaram a natureza do trabalho contemporâneo. No
ambiente de crise, essas mudanças derivadas da técnica, criam um quadro
potencialmente explosivo em curto prazo.
Onde a globalização impetra um nova ordem social e econômica, não há espaço
para as relações de confiança estabelecidas de forma clara e transparente. As
ações dentro do contexto do trabalho são documentadas virtualmente para que se
possa garantir que a mensagem foi enviada, porém não está em questão o
recebimento
e
o
entendimento
da
mensagem
e
sim
a
emissão
descompromissada da informação, pois uma vez enviada, já não faz mais parte
da responsabilidade daquele que enviou.
Os espaços verbais de discussões e análise tornaram-se espaços vazios de
elaboração. Hoje se seguem os twitters pessoais ou corporativos, mas que
elaborações subjetivas efetivas se traduzem deste colóquio virtual?
No isolamento de seus computadores, cada trabalhador se coloca como um
espectro para o outro, protegido pela máquina. As relações aumentam em
quantidade e diminuem qualidade. Chega-se ao máximo do distanciamento do
outro ao serem enviados e-mails aos colegas que estão ao seu lado fisicamente.
O tempo é uma variável que se expande na medida em que as pessoas e as
corporações, envolvidas no trabalho, estão em diversas partes do mundo e o
acesso às informações é online. Os profissionais estão conectados através de
seus computadores fixos ou móveis de forma que são acessados em todo o
tempo e lugar. A pressão por resultados de excelência e pela manutenção do
trabalho desloca o tempo do trabalho para o tempo livre, sem que o inverso seja
uma verdade.
39
Os vínculos que se estabelecem com as empresas já não são mais fantasiosos,
cumprindo uma promessa de convivência eterna e de plena satisfação. A relação
de uso entre as coisas e as pessoas, muito bem colocado por Bauman (2001), é
também vivenciada nas relações de trabalho que estabelecem vínculos frágeis e
sem envolvimento subjetivo.
Muitos têm sido os estudos que procuram desvendar a natureza de novas formas
de trabalho imaterial – mais associativas e coletivas liberadas dos locais de
emprego, com novas recomposições entre o manual e o intelectual. E a
perspectiva para os próximos anos traz reformulações importantes tanto para o
trabalhador quanto para aqueles que fazem a arquitetura das relações de trabalho.
Assim, neste item nos interessa refletir sobre as características do "novo
capitalismo": a exigência de flexibilidade; a visão de curto prazo; a contradição
entre enaltecer valores como lealdade, ajuda mútua e confiança e estimular o
individualismo e a competitividade; o desaparecimento de carreiras estáveis e de
vínculos profissionais duradouros; questionando se tais condições não estariam
contribuindo para corrosão do caráter, criando novas subjetividades.
Muito se tem falado sobre novas formas de subjetivação na atualidade, se
utilizarmos como parâmetro a tradição ocidental do individualismo iniciada no
século XVII, tendo as noções de interioridade e reflexão sobre si mesma como
eixos constitutivos. Mas o que nos parece mais apropriado é inferir que com todas
as mudanças na sociedade até agora descritas, não se trata de uma nova forma
de subjetividade, mas a forma reativa a uma sociedade que trás para cada sujeito
a necessidade de sobreviver em meio à fluidez de ideais, vínculos frágeis,
descrenças nas autoridades e tantas outras inconstâncias advindas do Outro.
Talvez seja importante que repensemos os fundamentos de nossa leitura da
subjetividade atentando para os "destinos do desejo" na atualidade, na medida
em que tais destinos podem nos levar a perceber o que se passa nas
“subjetividades”. Se conseguirmos, por exemplo, identificar os destinos do desejo
assumindo uma direção auto-centrada e exibicionista, onde há um esvaziamento
40
e um não investimento nas relações humanas, podemos inferir que a
subjetividade latente é a impossibilidade de reconhecer o outro em sua diferença
radical, característica fundamental na cultura narcísica.
Quando nos referimos à cultura do narcisismo, é importante utilizarmos o
historiador e crítico social Christopher Lasch (1983). Pode-se definir a “cultura do
narcisismo” como uma cultura que requer a sobrevivência de um mínimo eu
diante dos sentimentos de impotência em que somos jogados diariamente através
dos meios de comunicação ou de nossos contatos sociais. A decadência dos
vínculos, o descrédito nas instituições públicas, privadas ou religiosas, o consumo
estimulando o prazer imediatista e a perda das ideologias podem ativar nossas
defesas narcísicas para que o ego, confrontado exaustivamente com a frustração,
possa sobreviver. Temos aqui a supervalorização da realização individual em
detrimento dos ideais coletivos.
Freud, no texto “Introdução ao Narcisismo” (FREUD, 1914), aborda a questão da
constituição do ego, que consiste de um afastamento do narcisismo primário,
como processo de individuação. A libido é deslocada em direção ao ideal do ego,
que está diretamente ligado a identificações com os pais ou outras figuras
substitutivas e depois com os ideais da cultura. O ideal do ego representa o
modelo a ser atingido e as realizações a serem alcançadas.
“A busca do atingimento do “ideal do ego” implica, enfim, o
desenvolvimento, crescimento e transformação do ego narcísico; implica
também a renúncia e adiamento do “prazer imediato” em função de um
“modelo ideal”, ele próprio “libidinizado”, mas que aponta para projetos
futuros e requer a inserção do sujeito no real. Por outro lado, o recurso
ao “ego ideal” consiste numa saída que envolve uma renúncia do
enfrentamento da realidade e um fascínio por um “objeto-engodo” que
encerra o sujeito num pseudo-estado a-conflitivo mediante o processo
de “idealização”.” (SEVERIANO, 2006, p.1)
41
Freud (1921) afirma ainda, no texto, “Psicologia das Massas e Análise do Eu”,
que somente através da identificação mútua entre os membros da massa e do
controle da expansão narcísica pode haver possibilidade de coesão social,
indicando a importância dos vínculos libidinais para a limitação do narcisismo e os
compromissos primordiais para a existência de um grupo.
Mas se esses mesmos compromissos estão dissolvidos em relações virtuais e
frágeis, se o princípio da impessoalidade colocou os líderes em uma posição
ilusória, percebemos que a saída para a sobrevivência deste ego é a emersão de
defesas narcísicas, que coloca o outro no lugar de objeto para satisfação de seus
desejos na busca da realização do ideal a ser alcançado, porém sem sentido.
Podemos talvez dizer que há ainda uma saída, pois se por um lado o sujeito na
cultura do narcisismo encerra o outro como objeto para seu usufruto, por outro, as
experiências de perda e o reconhecimento da incompletude do sujeito têm a
possibilidade de abrir caminho para a subjetivação permanente, para a alteridade
e temporalidade e, consequentemente, para um futuro que tenha sentido.
Porém, no ambiente de trabalho, essa esperança de subjetivação permanente,
que Giddens (1991) chamou de reflexividade, está capturada pelas organizações
capitalistas, amarrando o trabalhador no ideário narcisista, tendo em vista que
quanto mais fluidas são as relações, muito bem descrito por Bauman (2001), mais
submetido às regras como ponto de apoio para sua sobrevivência e mais
submetido aos seus próprios interesses em detrimento do todo, gerando uma
competitividade por vezes doentia e que adoece o trabalhador, para o alcance de
resultados cada vez melhores, com reconhecimento também maior. Como em um
círculo vicioso, temos o trabalhador que precisa produzir mais, para ser
reconhecido e alavancar seu status profissional.
Assim, como Sennett (1999) coloca, a corrosão do caráter acontece para fazer
frente a constante desconstrução do que se é diante de um vínculo de trabalho.
Se o trabalhador não pode mais criar laços com a empresa, pois não há mais
garantias de longo prazo, se não pode criar laços com seus colegas de trabalho,
42
pois existe uma competição acontecendo por melhores resultados, se o ideário da
empresa pode mudar a qualquer momento devido a fusões, compra, venda ou
internacionalização de outras culturas, o que resta é a sustentação de um mínimo
de narcisismo para a proteção do ego.
Quanto menos vínculos existirem, quanto mais contarmos somente conosco,
quanto mais autônomo e auto-suficiente o trabalhador for, maior a possibilidade
de ele sobreviver tanto no mundo do trabalho quanto emocionalmente, visto que a
insistência das organizações capitalistas é a redução ou coisificação da
subjetividade do trabalhador.
43
4. RECURSOS HUMANOS À LUZ DA PSICANÁLISE
Após caminharmos pelas interlocuções com a administração e a sociologia no
que diz respeito ao trabalho, finalmente chegamos à Psicanálise, saber que mais
nos interessa para embasar esta dissertação.
Iniciemos, assim, nosso percurso pelo entendimento dos complexos laços que se
estabelecem nas empresas através dos textos de Freud sobre a cultura,
percorrendo a linha do tempo em que ele discorre sobre o assunto.
Destacamos os textos Totem Tabu (1913); Psicologia das Massas e Análise do
eu (1921); O Futuro de uma Ilusão (1927) e O Mal estar da Civilização (1930),
como fundamentais para entender a cultura através da visão da psicanálise.
Em Totem e Tabu (1913), Freud faz uma reflexão sobre a origem da civilização,
abordando o mito da horda primeva e da morte do pai totêmico que levam a
hipóteses acerca da origem das instituições sociais e culturais, além da religião e
da moralidade.
São escolhidas, como objeto de estudo, as tribos primitivas da Austrália que eram
regidas pelo sistema de totemismo, tendo como característica principal a
proibição
de
relações
sexuais
entre
membros
de
um
mesmo
clã,
conseqüentemente a proibição do incesto como fator fundamental - substituindo o
parentesco consangüíneo real pelo parentesco totêmico.
Freud (1913) distingue o laço totêmico do familiar, sendo o primeiro mais forte e
herdado pela linhagem feminina.
Proibição e desejo – Freud retoma sua teoria a respeito do Complexo de Édipo
sobre a primeira escolha amorosa da criança que é incestuosa. Assim, ele
encontra esta ambivalência nos tabus, pois proíbem algo que é desejado e a sua
violação precisa ser vingada para que outros não repitam a mesma ação do
transgressor.
44
Analisando os tabus (termo que possui dois sentidos contraditórios: sagrado e
proibido - tendo como característica comum o temor do contato) dos povos
primitivos, Freud (1913) pontua que estes não divergem de alguns dos costumes
de nossa sociedade, comparando a psicologia dos povos primitivos com a
psicologia dos neuróticos, em especial com a neurose obsessiva.
Os atos cerimoniais e o desejo de violar a proibição insistem no inconsciente,
produzindo uma posição ambivalente frente ao proibido (temor e desejo), em
decorrência um senso de culpa é convocado toda vez que um tabu é violado,
levando à angústia e ao caráter obsessivo. Há também que se respeitar
severamente os tabus que protegem o totem, sendo que qualquer violação seria
punida com doença grave ou morte.
A partir do mito da horda primeva, Freud descreve uma situação mítica em que os
filhos matam e devoram o pai tirânico colocando fim à horda patriarcal – o fato de
devorarem o pai fazia com que se identificassem com ele (aquisição de parte de
sua força, mito presente nas tribos antropofágicas)
Apresentam-se então sentimentos ambivalentes dos irmãos perante o pai, pois ao
mesmo tempo em que o odiavam (obstáculo para seus desejos sexuais), também
o amavam e o admiravam. Esta ambivalência levaria ao sentimento de culpa e à
herança simbólica: “o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo... o que
até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos
próprios filhos” (FREUD, 1913, p. 171 e 172).
A estrutura totêmica teria então surgido a partir do sentimento filial de culpa e
também como impeditivo de repetição do ato de destruição do pai real.
A morte do pai da horda faz surgir “um ideal que corporificava o poder ilimitado do
pai primevo contra quem haviam lutado, assim como a disposição de submeter-se
a ele” (FREUD, 1913, p.177). Ou seja, o retorno do amor, o aparecimento da
identificação e da organização social, entrelaçando lei e desejo.
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Freud (1913) então finaliza nos aconselhando a não nos deixar influenciar demais
pelo nosso julgamento em relação aos homens primitivos em analogia com os
neuróticos, visto que há distinções, principalmente no que tange ao pensar e ao
fazer em ambos. Ele diz: “... os neuróticos acima de tudo, inibidos em suas ações:
neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato.” (FREUD, 1913, p.
190). “Os homens primitivos, por outro lado, são desinibidos: o pensamento
transforma-se direto em ação.” (FREUD, 1913, p.191).
Mas presume, por fim, com segurança, que “no princípio foi o Ato”, remetendo-se
a Parte I da Cena 3, em Fausto, de Goethe e como em João 1: 1-3: “No princípio
era o Verbo”.
Pensamos então, como este traço primário da existência humana, pode ser
identificado nos complexos grupos que se formam dentro das organizações.
Uma empresa é a concretização do desejo de uma ou mais pessoas com o
objetivo de subsistência, riqueza e poder. Trazendo para nossa lente de estudo
uma empresa qualquer, escolhida dentro da amostragem de nossa percepção
cotidiana, vamos encontrar em algumas empresas os nomes próprios de seus
fundadores
em
sua
marca,
em
outras
marcas
que
identificam
seus
produtos/serviços ou uma metáfora associada a estes. Porém, todas são repletas
de significados subjacentes.
Podemos assim entender que a marca de uma empresa nos remete a um totem,
sendo este um símbolo de um grupo ao qual o indivíduo se filia a um sistema de
códigos e proibições. Esta filiação subjetiva, em algumas situações, pode ser
transmitida por parentesco.
Em algumas regiões, onde uma empresa tem uma grande relevância econômica
e social para a população, o respeito e o desejo de fazer parte daquela empresa
são cultivados desde cedo, seja pela experiência dos familiares e amigos
próximos, seja pelo lugar de destaque que a filiação à essa empresa trás para o
indivíduo.
Em
nossos
processos
seletivos,
quando
os
candidatos
são
46
questionados sobre o interesse em trabalhar em determinada empresa,
escutamos frases como “Eu sempre sonhei trabalhar nesta empresa”; “Meu pai
me levava ao trabalho dele e eu adorava ver os trens com todo aquele minério”;
“Quase todo mundo da minha família trabalhou ou trabalha lá, e eu tenho esta
meta também”; “É o sonho de todos da cidade poder um dia trabalhar aqui”.
Essa marca (como ícone desse grupo de significantes que a sustentam) deve ser
respeitada e assimilada pelos seus trabalhadores e através de seus uniformes,
camisetas, crachás, carteiras de trabalho e demais elementos objetivos e
subjetivos, irão marcar sua existência e filiação. Nas tribos primitivas os animais
do totem estavam representados em seus elmos, roupas ou em tatuagens.
Nas empresas, assim como nos grupos primitivos, existe o controle da ação do
indivíduo, a garantia de sua subsistência física e uma posição que o define dentro
do grupo. Além disso, os trabalhadores agregam aos seus nomes aos nomes das
empresas em que trabalham, transmitindo a eles, status e posição na sociedade.
Além disso, as empresas têm seus códigos de ética e conduta, valores definidos
e afixados em locais visíveis (tabus). Sendo ainda existente uma das proibições
mais antigas que é o sexo entre os membros do mesmo clã como parte deste
código. Em muitas empresas, seus empregados não podem se relacionar
afetivamente sob pena se serem demitidos. Os trabalhadores agregam aos seus
nomes os nomes das empresas em que trabalham, transmitindo a eles, status e
posição na sociedade.
Enquanto o vínculo com as tribos é permanente, à exceção daqueles que
descumprem as regras, nas empresas esses vínculos são estabelecidos e
rompidos na medida em que o mercado de trabalho se organiza. Ou seja, o
sujeito refaz suas identificações a cada novo vínculo empregatício necessitando
introjetar novos totens e tabus.
Podemos retomar aqui a experiência de Richard Sennett na International
Business Machines (IBM), tratada no capítulo sobre o contexto social do trabalho,
47
que indica claramente como este luto do desligamento de uma empresa e de
seus significantes pode marcar profundamente o indivíduo a ponto de paralisá-lo
para o estabelecimento de novos laços sociais e especificamente de trabalho.
A vinculação a uma empresa gera ao indivíduo uma posição de importência
(paramos neste momento para explicar esta palavra, ato falho na nossa escrita,
pois o que gostaríamos de escrever era “importância”, mas o que veio foi sua
aglutinação com a palavra “impotência”. Necessário dizer que a “importância”
nesta vinculação à empresa também está atrelada à “impotência” que se
estabelece a partir desta vinculação. Potência e impotência se posicionam nesta
relação. Explicamos, ao estarmos vinculados a uma organização nos colocamos
a seu serviço, sujeitos a sua ordem, impotentes em nosso desejo. Por outro lado,
como benefício desta relação de assujeitamento, temos a potência de termos
empregos, remunerações, posição junto à sociedade produtiva. Creio que o ato
falho importência” revela sobremaneira a nossa relação com o trabalho).
A partir deste ato falho, vamos ao texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”,
onde Freud (1921) detalha os conceitos de laços libidinais, identificação e
idealização para a formação de grupos e líderes: “...os homens não são
espontaneamente amantes do trabalho e ... os argumentos não tem valia alguma
contra suas paixões.” (FREUD, 1921, p.18)
Freud descreve que a produção de massas compreende regulamentos especiais
particularmente a partir da infância, cujos benefícios da civilização seriam
introjetados de tal forma que poderiam efetuar sacrifícios referentes ao trabalho e
à satisfação instintual que forem necessários para sua preservação.
Sugere ainda que para que se dê a produção de uma geração com tal qualidade,
é necessário existirem líderes inabaláveis, que como educadores, devem exercer
uma coerção ainda maior antes que tais exigências sejam postas em prática
(trabalho e satisfação pulsional).
48
Quando o homem começa a se distanciar de sua condição animal, ali se
produziram proibições que levaram ao processo civilizatório e que até hoje
imperam constituindo a origem da hostilidade contra a civilização, visto que toda
criança nasce padecendo dos mesmos desejos instintuais, como o canibalismo, o
incesto e o desejo de matar. Porém não podemos dizer que não houve evoluções
no processo coercitivo, visto que o supereu se tornou o guardião da internalização
gradativa das proibições civilizatórias.
É só por meio dessa evolução que uma criança se torna um ser moral e social,
sendo o fortalecimento do supereu uma vantagem cultural muito importante no
campo psicológico. Essa operação transforma opositores em veículos da
civilização.
É importante também colocar que embora as reivindicações pulsionais acima
descritas tenham sido, de alguma forma, internalizadas, à exceção das
psicopatologias, outras proibições culturais só são mantidas sob a pressão da
coerção externa, conhecidas como exigências morais da civilização que se
aplicam a todos.
Identificamos claramente as reminiscências dessa coerção no exercício da
liderança dentro das organizações. O gestor tem como principal função preparar a
equipe para fazer o trabalho com alto desempenho, através da elaboração de
procedimentos escritos e de manuais de treinamento, planos de treinamento,
determinação cuidadosa do perfil, integração intensa com RH no momento da
seleção de seus futuros funcionários, auditoria feita por ele próprio e por terceiros,
avaliações freqüentes do desempenho dos seus profissionais com feedback claro,
elaboração de planos de desenvolvimento individual para suprir as carências de
seus comandados. Todas essas responsabilidades demonstram a ortopedia
necessária para que o trabalhador possa responder às expectativas da
organização.
49
Muito embora muitas pessoas se neguem a matar ou cometer incesto, não se
furtam a satisfazer seus impulsos agressivos e sexuais acobertando-os através
de mentiras, fraudes e calúnias para manterem-se impunes.
O assédio moral no ambiente de trabalho pode ser considerado uma das
possibilidades de satisfação dos impulsos agressivos acobertada pelas
exigências de competitividade e alta performance são perpassadas por abuso de
poder, ofensas repetitivas, agressões, maximização dos “erros” e culpas, que se
repetem por toda jornada, degradando deliberadamente as condições de
trabalho.
A partir deste relato fica notório que, como o próprio Freud (1921) coloca em seu
texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, a psicologia individual e a
psicologia social estão intrinsecamente ligadas, visto que não há como desprezar
os fenômenos sociais da pesquisa sobre o indivíduo e vice versa.
Coloca, porém, que o questionamento da psicologia social ou de grupo se baseia
na influência de um indivíduo por um grande número de pessoas, com que se
acha ligado por qualquer circunstância, e que, quando rompido este laço, um
fenômeno facilmente observável se revela, chamado por Freud de “instinto social”
(tradução das expressões originais herd mind, group mind) (FREUD, 1921, pg.
92), mas que de alguma forma pode ser analisado sob a ótica da primeira
constituição social: a família e não tão somente como algo primitivo.
Freud se utiliza da obra de Lê Bon para recorrer aos fenômenos do indivíduo em
grupo, indagando o porquê, sob certa condição grupal, um indivíduo, a quem
havia chegado a compreender, agiu de maneira inteiramente diferente daquela
que seria esperada e qual seria a natureza desta força que produz este tipo de
alteração mental. Le Bon tenta responder a este questionamento dizendo que os
indivíduos em grupo tomam posse de uma mente coletiva que os fazem agir de
forma diferente de quando isolados. Ele trata este fenômeno como grupo
psicológico que é um ser provisório com características diversas daquelas dos
indivíduos que o compõe.
50
Em algumas organizações, em especial as que produzem produtos ou serviços
controversos, como álcool, cigarros, armas, podemos observar claramente a
assimilação de códigos e valores que não estariam presentes se não houvesse a
vinculação com o grupo psicológico estabelecido.
Le Bom (apud FREUD, 1921) coloca que os indivíduos apresentam novas
características que não possuíam anteriormente, (na psicanálise, porém, diz-se
que o indivíduo é colocado sob condições que permitem o surgimento das
repressões dos impulsos instintuais inconscientes, as características que
aparentemente
são
novas,
na
realidade
são
as
manifestações
desse
inconsciente), por conta de três fatores diferentes: a) o poder invencível por
considerações numéricas, b) Contágio (porém como efeito de sugestionabilidade)
e c) sugestionabilidade.
Nos grupos, as idéias mais contraditórias podem existir lado a lado e tolerar-se
mutuamente, sem que nenhum conflito surja da contradição lógica entre elas.
Esse é também o caso da vida mental inconsciente dos indivíduos, das crianças e
dos neuróticos. Os grupos dão, constantemente, precedência ao que é irreal
sobre o real; são quase tão intensamente influenciados pelo que é falso quanto
pelo que é verdadeiro. Possuem tendência evidente a não distinguir entre as duas
coisas.
Essa predominância da vida da fantasia e da ilusão nascida de um desejo
irrealizado é o fator dominante na psicologia das neuroses. Descobrimos que
aquilo por que os neuróticos se guiam não é a realidade objetiva comum, mas a
realidade psicológica.
Quanto à liderança dos grupos, Le Bon diz que, assim que seres vivos se reúnem
em certo número, se colocam sob a influência de um chefe, pois possui tal anseio
de obediência, que se submete a qualquer um que se indique a si próprio como
chefe.
51
Podemos falar de outras manifestações de formação de grupo que revelam uma
opinião muito mais elevada da mente grupal como: 1) os princípios éticos de um
grupo que podem ser mais elevados do que os dos indivíduos que o compõe e 2)
o trabalho intelectual revelado na linguagem, no folclore, nas canções populares.
Freud (1921) cita McDougall: uma multidão ocasional só se torna um grupo no
sentido psicológico quando há algo em comum uns com os outros, um interesse
comum num objeto, uma inclinação emocional semelhante numa situação ou
noutra. Isto tem como resultado a exaltação ou intensificação da emoção
produzida em cada membro. O grupo não organizado é emocional, impulsivo,
violento, influenciável, sem auto-critica. McDougall fala de cinco ‘condições
principais' para a elevação da vida mental coletiva a um nível mais alto:
1)continuidade de existência do grupo, 2) idéia definida da natureza, composição,
funções e capacidades do grupo para desenvolver uma relação emocional com o
grupo como um todo, 3) interação com outros grupos semelhantes, 4) tradições,
costumes e hábitos tais, que determinem a relação de seus membros uns com os
outros e 5) estrutura definida, expressa na especialização e diferenciação das
funções de seus constituintes.
O indivíduo num grupo está sujeito, através da influência deste, ao que com
freqüência constitui profunda alteração em sua atividade mental. Sua submissão
à emoção torna-se extraordinariamente intensificada e sua capacidade intelectual
é acentuadamente reduzida. Freud se pergunta por que no grupo cedemos ao
contágio de uma emoção e quando sozinhos resistimos?
Dentro deste questionamento introduz o conceito de Libido ligado à energia das
pulsões sexuais.
Freud vai destacar uma distinção entre grupos com líderes e grupos sem líderes.
Dois grupos altamente organizados, permanentes e artificiais: ao Igreja e o
exército. É de notar que nesses dois grupos cada indivíduo está ligado por laços
libidinais por um lado ao líder (Cristo, o comandante-chefe) e por outro aos
demais membros do grupo.
52
Freud (1921) então vem dizer que os laços libidinais são o que caracterizam um
grupo. Os indivíduos do grupo comportam-se de forma semelhante, toleram seus
outros membros, e não sentem aversão por eles. Este fenômeno ocorre a partir
de uma limitação do narcisismo que só pode ser produzida pela existência de um
laço libidinal com outras pessoas.
A libido se liga à satisfação das necessidades básicas e escolhe como seus
primeiros objetos aqueles que de alguma forma fizeram parte desta satisfação.
Nos grupos, não se pode falar de objetivos sexuais, havendo outros mecanismos
para os laços emocionais, as chamadas identificações.
A identificação é a mais remota expressão de um laço emocional com outra
pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo.
“Um menino mostrará um interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como
ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que
toma o pai como seu ideal” (FREUD, 1921, p.133).
Assim, o laço existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma
identificação com uma qualidade emocional comum, que reside na natureza do
laço com o líder.
Outro conceito importante, segundo Freud, é o da idealização que se dá na
presença do amor, que tende a falsificar o julgamento a respeito do outro, visto
que, quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista
de direciona para o objeto. Esse amor se volta para as qualidades que nos
esforçamos em obter para o nosso próprio ego e que de maneira indireta satisfaz
nosso narcisismo. Como Freud diz: o objeto foi colocado no lugar do ideal do eu.
Do estado de estar amando à hipnose vai, evidentemente, apenas um curto
passo. Os aspectos em que os dois concordam são evidentes. Existe a mesma
sujeição humilde, que há para com o objeto amado. Há o mesmo debilitamento da
iniciativa própria do sujeito; ninguém pode duvidar que o hipnotizador colocou-se
no lugar do ideal do eu.
53
Assim, podemos considerar a constituição libidinal dos grupos que têm um líder e
que não adquiriram as características de um indivíduo, que seu movimento foi de
colocar um objeto no lugar de seu ideal do eu e, conseqüentemente, se
identificaram uns com os outros em seu ego.
Em termos da teoria da libido, o gregarismo é outra manifestação da tendência
proveniente da libido e sentida por todos os seres vivos da mesma espécie, e os
impulsiona a fazerem parte de unidades cada vez maiores. Freud, porém,
questiona a existência de um instinto gregário. A linguagem deve sua importância
à aptidão para o entendimento mútuo, sendo nela que a identificação mútua dos
indivíduos repousa em grande parte.
O homem é um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida
por um chefe. O pai da horda primeva, porém, era livre, seus atos intelectuais
eram fortes e independentes, e não necessitava do reforço de outros, seu ego
possuía poucos vínculos libidinais, ele não amava ninguém, a não ser a si próprio,
ou a outras pessoas, na medida em que atendiam às suas necessidades. Aos
objetos, seu ego não dava mais que o estritamente necessário.
O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser
governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade. O
pai primevo é o ideal do grupo , que dirige o ego no lugar do ideal do eu.
Em muitos indivíduos, a separação entre o ego e o ideal do eu não se acha muito
avançada e os dois ainda coincidem facilmente; o ego amiúde preservou sua
primitiva autocomplacência narcisista. A seleção do líder é muitíssimo facilitada
por essa circunstância.
Freud (1921) coloca que o controle da massa (entendida como grupo) por uma
minoria e a coerção no trabalho da civilização é condição básica para a
manutenção do processo civilizatório. Só através de um processo de influência de
indivíduos que possam fornecer exemplo e que sejam reconhecidos como líderes,
54
a massa poderá ser induzida a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de
que a existência depende.
Freud (1921) não intenta dissociar cultura e civilização, sendo ambas inerentes ao
ser humano e o que o diferencia da condição animal. A partir do século XVI, o
conceito de cultura passa a articular-se, ora positiva ora negativamente, com o
conceito de civilização, pois, inicialmente, o conceito de civilização referia-se, de
um lado, ao civil, correspondente ao homem educado e polido, e do outro lado, à
ordem social. Com o tempo, civilização passou a designar um estágio ou etapa do
desenvolvimento histórico ocidental ligado ao progresso. Desde então, ao
aproximar-se do conceito de civilização, a cultura passou a exprimir os aspectos
do desenvolvimento material da sociedade moderna que via como civilizado o
homem moderno.
Para os alemães Kultur (cultura) é um conceito com maior expressão, pois
determinam os aspectos intelectuais, artísticos, religiosos, técnicos, morais,
sociais e acima de tudo a realização no próprio Ser. Para eles, o conceito de
cultura não tem o mesmo significado do conceito de civilização, estabelecido
pelos ingleses e franceses, pelo fato desse conceito estar relacionado à produção
humana como no caso, de obras filosóficas, obras de arte, obras literárias, ou
seja, a particularidade desse povo.
Distinguem-se duas tendências da civilização: o conhecimento e a capacidade de
controlar as forças da natureza e extrair suas riquezas para atender suas
necessidades e a outra são os regulamentos de ajuste das relações entre os
homens e sua distribuição de riquezas. Freud considera ambas interdependentes,
1º) pela satisfação pulsional que a riqueza traz; 2º) que o homem pode ser
traduzido como riqueza para outro homem, na medida em que é utilizada sua
capacidade de trabalho ou como escolha de objeto sexual e 3º) todo “indivíduo” é
virtualmente inimigo da civilização. E assim a civilização deve ser defendida
contra o “indivíduo” e para tanto existe sua regulamentação. E da mesma forma
que as produções humanas são erguidas para sua regulação, podem também ser
facilmente destruídas.
55
Falar sobre remoção de fontes de insatisfação, só é possível através da renúncia
à repressão das pulsões, que parece ser incompatível com o processo civilizatório,
na medida em que todos os homens têm tendências destrutivas, anti-sociais e
anticulturais. Sabemos disso, pois algumas pessoas se determinam fortemente
por este comportamento na sociedade.
Assim, vimos deslocar as questões materiais de apropriação de riquezas para
questões mentais, deixando para nós uma questão decisiva: se é possível
diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais, reconciliá-los com os sacrifícios que
devem permanecer e fornecer uma compensação.
Em “O Mal-Estar da Civilização”, Freud (1930) diz que o propósito da vida, é a
busca por intensos sentimentos de prazer e ausência de sofrimento (princípio do
prazer). Segundo ele, a infelicidade é muito mais fácil de ser experimentada:
através de nosso próprio corpo, do mundo externo e do relacionamento com
outras pessoas. Muitas vezes a felicidade é entendida meramente como ausência
de sofrimento, dada a dificuldade de experimentá-la.
Existem alguns métodos para fuga do sofrimento: o isolamento, o controle das
pulsões, as substâncias tóxicas, o deslocamento de libido, etc.. A religião também
é uma fuga do sofrimento, apresentando para a felicidade e deformando a visão
de mundo real. A infelicidade causada pelos relacionamentos entre humanos
(relações sociais) pode nos remeter à idéia de que a grande responsável por
nossa desgraça seria a civilização, supondo equivocadamente que um retorno às
condições primitivas nos proporcionaria maior felicidade. O aumento do controle
da humanidade sobre o espaço e o tempo não aumentou a quantidade de
satisfação prazerosa nem nos tornou mais felizes, o que nos permite concluir que
esse poder sobre a natureza não é a única precondição de felicidade humana.
Esperamos da civilização uma valorização da beleza, da limpeza e da ordem,
contrariamente à tendência do homem para o descuido, irregularidade e
irresponsabilidade. O passo decisivo de uma civilização é a substituição do poder
individual pelo poder da comunidade (direito), atendendo a primeira exigência da
56
civilização: a justiça. A civilização é construída sobre uma renúncia às pulsões,
provocando uma frustração cultural, que domina o grande campo dos
relacionamentos sociais.
Na busca pela felicidade, através do amor, muitos se protegem contra a perda de
objetivo voltando seu amor para todos os homens, evitando as incertezas e
decepção do amor genital. Para Freud (1930) um amor assim tem uma
desvalorização, pois faz injustiça ao objeto.
Freud repudia algumas exortações religiosas, tais como “Amarás a teu próximo
como a ti mesmo” e “Ama os teus inimigos”, que vão fortemente contra a natureza
original do homem. Para ele, uma exortação mais correta poderia ser: “Amarás a
teu próximo como este te ama”. Segundo ele, os homens não são criaturas gentis
que desejam ser amadas, mas são, pelo contrário, criaturas em cujos dotes
pulsionais devem-se considerar poderosa cota de agressividade, que é o maior
impedimento à civilização e que é internalizada pelo supereu - agente de punição
e herdeiro do Complexo de Édipo. O processo civilizatório só ocorre através da
renúncia pulsional e a neurose é uma resposta às exigências culturais e essa
resposta é declarada através do sintoma.
Uma das produções civilizatórias é o trabalho, que tem uma ação coercitiva sobre
a pulsão. É sabido ainda que a palavra “trabalhar” vem do latim vulgar tripaliare,
que significa torturar, e é derivado do latim clássico tripalium, antigo instrumento
de tortura. Ora, temos assim uma produção que trás em si o próprio significado da
coerção pulsional, ou seja a tortura.
A importância e o significado que o trabalho tem sobre o sujeito, pode variar
dentro de culturas diferentes, posições hierárquicas, condições sociais e
econômicas, pois muitos de nós somos identificados a partir do trabalho e de
suas identificações com ele. O trabalho nomeia o sujeito, por vezes, mais do que
sua singularidade, qualificando-o inclusive subjetivamente. Sendo assim podemos
supor que o trabalho traz para o sujeito uma submissão a exigência do Outro.
57
Como agravantes, já anteriormente citados, na nossa imersão pela sociologia,
existem relações líquidas e deslocadas do ambiente grupal, sendo os laços
definidos de forma fluida e superficial, especialmente as relações dentro dos
ambientes virtuais, com o tempo fora do ciclo circadiano e a inserção de um
universo de atuação não mais local e sim global.
No livro “O Artífice”, o autor, Richard Sennett (2009), menciona que na época
anterior a Revolução Industrial, o artesão e o produto do seu trabalho eram um.
Aquilo que era produzido levava a marca de seu autor. Após a Revolução
Industrial cada vez mais o homem se distanciou do produto final do seu trabalho,
sendo que muitas vezes desconhece o impacto de suas ações no produto final.
Assim também a marca pessoal que advém de nosso desejo e de nossa
singularidade ficou perdida, fragmentada
em processos, hierarquias de
responsabilidade e distanciamento do outro. Assim o sujeito vira um espectro
daquilo que é, assujeitado às relações da cadeia produtiva do trabalho e suas
formas de intra e inter-relação.
4.1. Psicanálise e RH – interlocuções possíveis
Pensamos assim, em possibilidades de escuta do trabalhador dentro da atuação
do profissional de Recursos Humanos, como forma de propor ações que reduzam
os impactos da renúncia pulsional, mas ainda a serviço dos interesses da
empresa.
Uma ferramenta de RH utilizada na escuta e direcionamento da demanda
profissional é o Coaching.
O Coaching é uma ferramenta de orientação de empregados com o objetivo de
aumentar o seu desempenho profissional. Seu instrumento principal é a palavra,
ou seja, o Coach (treinador ou facilitador) e Coachee (treinando) se submetem a
reuniões de orientação sobre as atividades executadas e tratam de assuntos que
podem de alguma forma dificultar o processo produtivo como relacionamento com
58
os seus pares no trabalho, suporte de treinamento ou dificuldades com a chefia
imediata. O discurso é livre, mas voltado para questões profissionais, o Coachee
se coloca em sua singularidade, sendo um convite sutil para o sujeito
comparecer.
Existem algumas formas de atuação do Coaching. Consideraremos aqui somente
duas: o realizado por profissional interno à empresa e será nomeado em
situações específicas, principalmente aquelas em que o empregado precisa de
um profissional mais maduro para guiá-lo a novos desafios profissionais; e o
realizado por profissional certificado para orientar profissionais em suas carreiras
e é nesta atividade que, através de perguntas abertas, o Coachee pode se
colocar mais livremente para falar de si e de suas escolhas profissionais. Neste
momento, através da palavra, pode-se pensar numa possibilidade de emergência
do sujeito, mas não é seguro que isso ocorra visto que o local constituído para tal,
assim como o local de trabalho, está impregnado de significantes do trabalho que
ainda poderão enrijecem o discurso do Coachee.
O que podemos supor, com esta ferramenta, é que se há um discurso, mesmo
que fomentado para atuar em uma questão específica do sujeito, esse discurso
poderá trazer informações que, para um ouvinte preparado, aqui me refiro ao
profissional que fez sua formação em psicanálise, é possível inferir hipóteses que
estabeleçam novas significações não só ao objeto do Coaching, mas também a
outras questões relativas a vida do Coachee.
Como sabemos, a psicanálise tem como alguns de seus recursos para a
investigação do sujeito os lapsos, os atos falhos, os chistes, os comportamentos
repetitivos e por vezes o próprio silêncio que se instala.
Assim, não há pretensão de se realizar no trabalho de Coaching um tratamento
psicanalítico, mas sim escutar algo se singular que se produz neste discurso para
além do objeto de intervenção proposto.
59
Mas vamos aprofundar a questão da escuta em psicanálise de forma a entender
os seus benefícios no ambiente organizacional.
A escuta tem um espaço medular na psicanálise. Não importa se as palavras vêm
maquiadas de mentiras ou silêncios, e sim que são portas que se abrem para
uma possibilidade de interpretação e levantamento de hipóteses a cerca do
sujeito. Desta forma, entendemos que também na empresa podemos tecer
hipóteses sobre o discurso do trabalhador, desde que haja um interlocutor atento
e preparado para tal.
Acreditamos que a utilização apropriada das ferramentas existentes na atuação
da área de Recursos Humanos, como em Recrutamento e Seleção, Treinamento,
Avaliação de Desempenho ou na Entrevista de Desligamento, propiciam ao
trabalhador um espaço de posicionamento diante das variáveis em que este está
submetido e, sendo assim, há uma possibilidade de dar uma direção às hipóteses
levantadas a partir deste posicionamento (fala do trabalhador).
Caminhar no sentido de desvelar a fala do trabalhador na empresa é um percurso
árduo, que precisa de algumas arestas, visto que aquilo que temos nesta
condição de ouvintes dentro das empresas são apenas pistas que por vezes
podem ser enganadoras ou encobridoras de outras questões, principalmente
porque nos parece que há mais a ser dito, mas o espaço que se permite a fala é
restritivo a uma exposição maior do trabalhador.
Mas algo é dito e quanto a isso não há como negar. Temos uma causa e um
efeito sendo apresentado constantemente, seja pela via da observação direta do
trabalhador na sua relação com sua função, seja pela fala junto ao seu
supervisor, seja pela sua possibilidade de colocação pela via do RH. Em algum
momento sabemos que o sujeito e seu desejo irão comparecer e que, para
sermos efetivos em nossa ação de escuta e direcionamento de demanda,
devemos estar atentos.
Remetemo-nos, assim, ao texto de Silvia Alonso (2007), “A escuta psicanalítica”:
60
“Nisto se baseia o conceito de inconsciente, onde Freud coloca a fala em
outro lugar. Neste falar, em certos momentos, a lógica consciente se rompe,
se desvanece, e algo diferente se torna presente, manifestando uma outra
lógica.”
Através dos lapsos, chistes, esquecimentos, das frases contraditórias, do duplo
sentido, se revelam o sentido que aparentemente seria um sem sentido no discurso
do trabalhador. Como quando um trabalhador ao falar de seu chefe o chama de
“paitrão” e ri pela palavra que formou. Logo após quando questionado sobre este
neologismo, responde que o chefe tem comportamentos com ele que o faz lembrar
seu pai e isso o incomoda, trazendo problemas de relacionamento com seu chefe e
consequentemente em seu desempenho.
Não podemos propor nas empresas a associação livre, regra fundamental para a
situação analítica, mas podemos aproveitar espaços da fala do trabalhador e
esperar que algo compareça em algum momento. Mais do que isso, estar
disponível para ouvi-lo quando este momento acontecer.
“Diria então que, do lugar do analista, se escuta tudo, para poder escutar
alguma coisa. Coisa essa que é o inconsciente, que no seio da repetição
insiste para ser escutado, que na trama dos movimentos imaginários se
disfarça, se fantasia e, no entanto, vai tecendo o fantasma.” (ALONSO,
2007).
Porém, existem riscos nesta conduta de escuta nas empresas. Para ilustrar
relatamos o caso de alguns trabalhadores em uma fábrica que reclamaram de
uma psicóloga que parecia “investigar” os seus pensamentos, fazendo perguntas
sem sentido para eles, longe do contexto do trabalho. Questionada sobre sua
conduta a psicóloga relatou que estava buscando informações importantes para
entender o baixo desempenho dos mesmos, mas o que aconteceu foi exatamente
o contrário, a resistência se instalou não só nestes trabalhadores como também
nos demais que acabaram sabendo do ocorrido. O que queremos considerar com
este exemplo é que podemos ter as mesmas respostas sem que precisemos ser
61
invasivos, criando um ambiente favorável para que o trabalhador possa se
colocar, o que precisamos saber, para a entendermos a dinâmica de um grupo ou
de um trabalhador em função de sua atuação, comparece na sua fala.
Remetemo-nos neste momento ao famoso caso Emmy que pede, certa vez, que
não a tocasse, não a olhasse e nada falasse; queria apenas ser escutada.
Outro risco é fazer hipóteses de forma precoce, sem que as mesmas sejam
minimamente aprofundadas com outras variáveis, visto que time is money nas
empresas e sendo assim o tempo que utilizamos para este fim é reduzido, sem
que possamos seguir de perto as repetições derivadas da insistência da pulsão.
Aqui temos um grande paradoxo, posicionar o ser humano em um complexo
sistema de valores científicos, previsíveis e controlados, tendo como grande
protagonista deste sistema um ser relativo, complexo e instável. Além disso, um
ser em relação, histórico, em eterno (enquanto dure) devir.
Um conceito importante dentro do campo da fala e da escuta é o da transferência,
onde o analisando endereça ao analista seu desejo, de forma a não reconhecer a
falta. Mas o analista só permite este endereçamento para que na sua
presença/ausência o desejo possa deslizar entre os significantes e assim
possibilitar simbolizações estruturantes.
Isso só é possível por conta da renúncia narcísica do analista, que concede a ele
um lugar de angústia que o remete a sua própria análise, visto que por vezes o
discurso do paciente fomenta os pontos cegos do analista. Assim, para que o
analista possa “sobreviver” a este lugar é fundamental que tenha passado por sua
análise pessoal, pois só assim ele poderá sustentar a transferência sem que sua
história seja confundida com a história do paciente e consequentemente sua
escuta fique implicada.
Pensamos assim como este processo transferencial pode ocorrer na empresa
visto que aquele que escuta também está submetido às mesmas variáveis que
aquele que fala e assim comprometido com a história do outro semelhante. Mais
62
do que isso, aquele que escuta não está protegido pelo espaço analítico ou pelo
tempo lógico que ele impõe. E, para finalizar, não tem a formação ou a análise
pessoal que possa fazê-lo se distanciar no momento da escuta para poder
levantar hipóteses mais isentas a partir da fala do trabalhador.
Essas são questões que não vamos desenvolver com profundidade, mas ficam
como pontos de atenção e de estudo para outra oportunidade. Mas mesmo não
avançando de forma devida, é fato que Freud privilegia a palavra como porta de
acesso ao desconhecido e, assim sendo, a escuta se instaura como o
decodificador para este desconhecido que se apresenta e se ausenta, a partir da
fala, cuja produção é singular a cada ser humano.
Eugène Enriquez (1997), em seu livro, “A Organização em Análise”, fala da
importância da psicanálise para a análise organizacional, principalmente quando
tratamos de aspectos inconscientes da conduta social, porém coloca que a lógica
da psicanálise é outra e não pode ser confundida com aspectos sociais,
afirmando que:
“[...]… porquanto Freud mantém, apesar das ligações existentes, uma
distância entre a realidade psíquica e realidade histórica. Essas duas
realidades que estão naturalmente em interações, como já salientei antes,
procedem de universos diferentes, conhecem sua própria lógica, suas
próprias leis de funcionamento e não podem se reduzir uma a outra.”
(ENRIQUEZ, 1997, p. 28).
Enriquez trás uma contribuição relevante ao nosso tema quando revela que a
organização como um sistema simultaneamente cultural, simbólico e imaginário.
Como sistema cultural, define a possibilidade da organização oferecer uma
estrutura de valores e normas, auxiliando na constituição de uma determinada
cultura. Com isso são constituídas expectativas de papéis, condutas e hábitos de
pensamento e de ação. Além disso, apresenta um processo de formação e de
socialização que permite que novos atores possam se inserir nesse sistema,
estabelecendo bons comportamentos e boas condutas.
63
Como sistema simbólico, apresenta a possibilidade de criação de uma narrativa
onde os atores dão sentido aos seus atos e legitimam suas condutas e práticas.
Apesar do sistema simbólico não estar completamente fechado, as organizações
procuram, consciente ou inconscientemente, criá-lo para que os indivíduos não se
sintam inseguros quanto ao sistema.
Um sistema imaginário também será produzido para sustentar o sistema cultural e
simbólico, de forma que a organização consiga capturar “os indivíduos nas
armadilhas de seus próprios desejos de afirmação narcisista” (ENRIQUEZ, 1997,
p. 35). Assim, imaginário, a organização busca a substituição do imaginário dos
indivíduos pelo dela. Neste processo de sedução, aparecendo simultaneamente
como muito poderosa e possuindo extrema fragilidade, o que se propõe é ocupar
a totalidade psíquica do indivíduo. Além disso, o imaginário reflete a ilusão de que
a organização permite a criatividade para que os indivíduos não se sintam
reprimidos com as regras organizacionais.
Para melhor análise das organizações, Enriquez propõe sete instâncias (ou
níveis) baseando-se no pensamento de Freud: a instância mítica, a instância
sócio-histórica, a instância institucional, a instância organizacional, a instância
grupal, a instância individual e a instância pulsional.
A instância mítica se refere às narrativas que contam uma história sobre um
tempo sem data, que possibilita que os atores, situados no tempo histórico, dêem
sentido aos seus atos. Nas organizações há uma valorização do passado, da
história sempre gloriosa, entre dificuldades e triunfos, e que afirma sua existência
e perenidade. Há diferentes formas de mitos, mas ele é conservador por
excelência, já que une pensamento e comportamentos, clamando por ações
coerentes com a narrativa que ele conta.
“Assim, o mito trata de congregar a comunidade em torno da narrativa,
provocando nela uma identificação com os protagonistas do drama; cada
um sendo colhido nesse processo afetivo poderá identificar-se com os
outros membros e contribuir com a construção comunitária. Nessa ótica o
64
mito é criador na sideração e no amor... o mito permite elevar o comum
dos mortais à altura dos Seres de que ele fala.” (ENRIQUEZ, 1997, P.42)
O mito aponta para a ideologia como forma de revestir a trama social com maior
coesão. Essa é a instância social-histórica, ou seja, o modo de acontecer no
tempo e espaço e a forma de ser da organização, segundo as nuances do mito
construído. A ideologia, segundo Enriquez, pretende simultaneamente: 1)
expressar a realidade, porque caso não estivesse fundamentada em algum nível
de verdade, não faria nenhum sentido e 2) mascará-la porque pretende ocultar os
conflitos, assimetrias e relações de dominação existentes em qualquer sociedade
com classes.
É na instância institucional que se encontram os verdadeiros fenômenos de poder
que advêm da instância sócio-histórica. É nela que encontramos a expressão do
poder, onde tudo é controlado e direcionado. Aqui a palavra instituição é utilizada
para dar visibilidade e poder ao que não é visível: “a instituição é assim, aceite”,
impondo limites a subjetividade, visando manter um estado de coisas, estabelece
uma repetição de comportamentos, assegurando a transmissão de normas,
regras, valores e comportamentos aceitáveis.
“O que desejo salientar no estudo da instância institucional... é a
capacidade da instituição de se defender contra toda a interrogação, a
promulgar suas leis e decretos sem se indagar se são justos ou
pertinentes.” (ENRIQUEZ, 1997, P.80).
A instância organizacional é o que torna concreta a instituição e busca servir
como porta-voz legítimo dessa. Podemos ter várias organizações sob a égide de
uma mesma instituição. Verificamos claramente a representação desta instância
na fala de um gestor em uma entrevista de diagnóstico gerencial: “Se fosse eu
não seria assim, mas como represento a empresa, tenho que fazer.” Aqui vemos
como somos embotados em nossos desejos e valores, sendo destituídos de
nossa subjetividade em prol da organização. A organização traduz as assimetrias
de poder em divisão do trabalho e em sistemas de autoridade. Se a instituição é o
65
lugar das disputas políticas, a organização é o lugar onde se dão as relações de
força, as lutas explícitas e implícitas e as estratégias dos atores.
Além do trabalho, da produção e do lucro, dentro das organizações existem
grupos que estabelecem relações afetivas e interesses comuns, por vezes com
identificações fora do contexto do trabalho. Sendo assim, a instância grupal é
fundamental para a compreensão dos fenômenos coletivos. Um grupo se
estabelece em torno de uma causa seja instituída em um primeiro momento, ou
proposta a posteriori. É nos grupos que se expressa a solidariedade entre os
trabalhadores, onde as pessoas se agrupam para resolver seus problemas no
trabalho e simultaneamente onde surgem as estratégias de resistência e luta. Na
essência de um grupo está a noção de comunidade. Por comunidade entende-se:
“[...] uma associação voluntária de pessoas que experimentam em comum a
necessidade de trabalharem juntos em conjunto ou de viverem juntas de maneira
intensa, a fim de realizarem um ou diversos projetos que assinalam sua razão de
existir.” (ENRIQUEZ, 1997, p. 103)
A instância individual preocupa-se com as condutas normais e patológicas do
indivíduo na construção social. Enriquez não nega que o indivíduo nasce em uma
sociedade já com uma cultura e que essa cultura vai estruturar a conduta do
indivíduo. No entanto, o indivíduo possui certa autonomia na construção do social
e para o autor, retirar o indivíduo do estudo é não entender que ele é agente
passivo e ativo da construção social.
A última instância é a pulsional. Trieb (Pulsão) significa uma força germinativa;
um impulso, impulsão, propulsão. É a forma originária do querer. Freud (1916)
define pulsão como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o
somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam no corpo
- dentro do organismo - e alcança a mente, como uma medida da exigência feita à
mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo.
A instância pulsional, é apreendida pelos seus efeitos e representantes psíquicos,
sendo constituída pela pulsão de vida e pela pulsão de morte, entendendo pulsão
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como “um processo dinâmico consistindo num impulso que faz o organismo
tender para um objetivo” (ENRIQUEZ, 1997, p. 123). A pulsão de vida favorece o
amor e a amizade entre os seres, pois representa as exigências da libido, mas é
canalizada ou sublimada para o fortalecimento dos elos sociais. Nas
organizações essa pulsão se dá com busca de eficiência, dinamismo, mudança e
criatividade e põe em funcionamento o processo de ligação favorecendo a coesão
e harmonia. A pulsão de morte é uma compulsão a repetição e a tendência à
redução das tensões ao estado zero. Essa pulsão manifesta-se nas organizações
como uma força que tende à homogeneização do trabalho, à recusa da
criatividade, à repetição e a própria burocratização.
4.2. France Télécom – um caso
Compreendendo os diversos impasses do sujeito, diante das múltiplas
representações do trabalho: o trabalho como base de valoração do homem, como
sofrimento, como definição do que se é perante a sociedade e analisando o
contexto das relações de trabalho e as instâncias sugeridas por Enriquez (1997),
trazemos uma evidência indiscutível sobre as conseqüências do mundo do
trabalho sobre o trabalhador.
A
France
Télécom
foi
considerada
a
principal
empresa
francesa
de
telecomunicações e a 71ª empresa mundial no ano de 2010. Emprega quase
187.000 pessoas, cerca de 100.000 na França, e atende cerca de 174 milhões de
clientes no mundo.
Para responder a uma diretiva européia de colocação em concorrência dos
serviços públicos nacionais, a Direction Générale des Télécommunications (DGT)
torna-se a France Télécom em 1º de Janeiro de 1988.
Em julho de 1990, a partir da lei instituída para fins de mudança de administração,
transforma a France Télécom em uma empresa de direito público, onde é dotada
de uma personalidade moral distinta do Estado e adquire autonomia financeira.
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Em setembro de 2004, o Estado francês vende uma parte das suas ações, para
reduzir seu nível abaixo dos 50%, transformando A France Télécom
definitivamente em uma empresa privada.
Após essa transição de capital e administração, precisamos entender que sua
história não se reduz a uma mudança de modelo administrativo-financeiro. Temos
uma instituição pública com códigos de conduta, valores, vínculos de trabalho e
relações humanas próprias que regem este tipo de instituição e ocorre uma
mudança para uma instituição privada, com novas regras, valores, vínculos e uma
mudança estratégica drástica do posicionamento da gestão de seus empregados.
Foram utilizadas técnicas para obrigar os empregados a deixarem a companhia,
como transferências forçadas para outras regiões e mudanças nas atividades e
cargos dos funcionários. O programa "É hora de se mover" obrigou os gestores a
mudar de profissão ou área geográfica, a cada três anos.
Seus empregados foram compelidos a se filiar a outra instituição, mesmo sendo
aparentemente a mesma, sem que tenham feito uma escolha por ela, tendo que
se submeter a códigos de competitividade e rotatividade que desconheciam.
Essas, entre outras modificações no modelo de gestão dessa empresa, foram
reconhecidas como as causas de depressões em seus empregados, entre outros
problemas psicológicos, e estariam ligadas também ao grande número de
suicídios entre 2008 e 2010.
Neste período ocorreram mais de 30 suicídios e mais de 20 tentativas.
A
empresa admitiu que as mudanças organizacionais necessárias durante a
transição de uma companhia estatal para uma multinacional competitiva poderiam
ser consideradas estressantes e como conseqüência ter motivado os suicídios e
demais estados psicológicos alterados.
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Segundo o sindicato SUD-Solidaires, um dos empregados que se suicidou tinha
sido transferido recentemente e não se sentia bem no seu novo serviço, “do qual
se libertou”, segundo sua carta de despedida.
Patrice Diochet, de um dos sindicatos ligados a France Télécom , reagiu à notícia
dizendo: "É aterrorizante. Ele trabalhava numa seção conhecida há muito tempo
por ser insuportável, havia uma verdadeira indiferença, nenhum calor humano,
não se falava senão de números. Os empregados eram carne para canhão”.
Outra empregada se jogou do quarto andar do prédio da empresa, depois de uma
reunião de trabalho em que lhe foi comunicado que mudaria de função. O marido
da vítima, um executivo sênior, escreveu uma carta acusando a empresa de ser
responsável pelo gesto de sua esposa.
“Suicido-me devido ao meu trabalho na France Télécom. É a única causa.” O
autor desta frase desesperada, um empregado de 51 anos, pôs termo aos seus
dias em seu domicílio, em Marselha. Na carta deixada à sua família, cujo
conteúdo foi comunicado, de acordo com a sua vontade, aos seus colegas e aos
delegados dos trabalhadores (representantes sindicais na empresa), evoca
nomeadamente “a urgência permanente”, “a sobrecarga de trabalho”, “a ausência
de formação”, “a desorganização total da empresa” e “a gestão do terror”.
Outro empregado escreve: “Aquilo desorganizou-me totalmente e perturbou-me.
Tornei-me um barco naufragado, é melhor terminar.”
A Direção da empresa confirmou os suicídios, mas não teceu comentários sobre
o conteúdo das cartas, relatando somente a importância de se tentar
compreender o que se passou, recordando que as causas de um suicídio podem
ser sempre múltiplas. A empresa afirmou ainda que alguns dias antes de alguns
dos suicídios, os colegas dos empregados e os seus responsáveis observaram
sinais de depressão.
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Um dos delegados dos trabalhadores tinha alertado sobre o mal estar no trabalho
de um dos empregados suicidas e a empresa tentou diminuir o volume de seu
trabalho, conforme informado pelo delegado dos trabalhadores Denis Capdevielle,
do Comitê de Higiene, Segurança e Condição de Trabalho (CHSCT) da unidade
onde trabalhava. “Mas o seu mal estar devia ser profundo”, acrescentou.
Os sindicatos denunciaram durante vários anos o estresse na France Télécom e
as pressões sobre o pessoal, principalmente, pressionando-os à demissão
voluntária, para atender um plano de reestruturação que se traduziu em mais de
22.000 “partidas voluntárias” entre 2005 e 2008.
Fabienne Viala, representante de um dos sindicatos, denunciou sobrecargas de
trabalho ligadas à baixa de efetivos e às responsabilidades cada vez mais
pesadas, principalmente para as chefias, como era um dos empregados falecidos.
Diante deste quadro, a Direção da France Télécom instaurou um dispositivo de
escuta para os colegas envolvidos nas perdas. No entanto, nos perguntamos se
este dispositivo não deveria ter surgido no momento em que houve a decisão da
privatização.
Nos perguntamos ainda se a área de Recursos Humanos da France Télécom
instaurou algum dispositivo para identificar os impactos que essa mudança
poderia gerar, e efetivamente acabou gerando, em seus trabalhadores.
Questionamos ainda se a área de Recursos Humanos pode ter voz para agir
estrategicamente neste processo e minimizar os impactos que seriam facilmente
identificados, se pudesse atuar neste processo.
Os seis sindicatos envolvidos com a empresa tiveram uma esperança ao serem
atendidos em uma reunião com o Diretor de Recursos Humanos, Olivier Barberot,
um deles saindo da reunião dizendo: “Começa a haver uma escuta na France
Télécom …”. Na véspera deste encontro, a direção tentava minimizar o sentido a
dar a estes suicídios, mas a pressão e os alertas foram finalmente entendidos.
70
Todos saíram da reunião com vários compromissos de multiplicação das
iniciativas. Como a “Comissão Estresse” criada no CHSCT; a formação dos seus
gerentes para a detecção dos sinais de fragilidade em seus empregados - índices
que levam a suspeita que um empregado encontra-se em dificuldade; além dos
espaços de escuta e de acompanhamento.
Mas apesar de todos os esforços, após algum tempo, o acompanhamento dessas
ações acordadas foram criticadas pelos sindicalistas que denunciaram a falta de
reuniões da comissão para redução do estresse, assim como a inoperância da
escuta realizada pelos gestores, visto que os empregados se sentiam intimidados
em relatar seus problemas frente aos seus superiores hierárquicos.
A empresa insistiu no acompanhamento dos empregados através de seus 70
médicos do trabalho e seus 40 assistentes sociais. Porém reconheceram que não
eram bastante numerosos.
É aqui que a atuação do profissional de Recursos Humanos é crucial, de forma
estratégica, estruturada e antecipatória na sua escuta da organização e de seus
trabalhadores, tornando-se parte importante na forma de organização do trabalho,
nos processos de mudança e outras ações que envolvem pessoas, de modo a
apoiar e direcionar as demandas dos trabalhadores às instâncias passíveis de
ação.
Sabendo que a essência do homem o conflito e certo grau de insatisfação, o que
nos resta é escutar em que bases foram estabelecidas as identificações para
formação dos grupos e o quanto o trabalho, através de seus códigos, proibições e
exigências amarram o trabalhador de forma a que a única saída para dar conta
desta renúncia seja agressão contra si mesmo ou contra o outro.
Entendemos,
por fim, que é a partir da escuta que podemos apontar para
uma possibilidade de ações que mantenham minimamente esses investimentos
libidinais sustentando esse lugar seguro da realidade.
71
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa afinidade com a teoria psicanalítica, e nossa atuação como profissional de
RH, muitas vezes, escutando o trabalhador para além do que seria nossa função,
nos impulsionou a mergulhar nas contribuições possíveis da psicanálise para o
entendimento das questões do trabalhador frente às relações de trabalho.
Nos propusemos ainda a discorrer sobre a questão da escuta analítica nos
subsistemas de recursos humanos, acreditando que poderemos nos apropriar de
alguns referenciais da psicanálise para instrumentalizar os profissionais de RH a
serem melhores ouvintes, atuando fora do contexto de instrumentalização da
subjetividade,
Para nos amparar neste desafio, discorremos sobre a atual dinâmica do trabalho,
onde tempo e espaço são fluidos, e as relações humanas estabelecidas são
intermediadas pelo mundo virtual, não havendo mais certezas. Giddens nos diz
que estamos em um mundo cada vez mais fantasmagórico. O que conhecemos
hoje poder ser refutado amanhã, trazendo para nós o campo da angústia.
Acrescentamos a visão de Bauman sobre a modernidade, como produtora de
uma profunda mudança na condição humana e em seus conceitos básicos de:
individualidade, relação tempo/espaço, vínculos de trabalho e a participação em
comunidade.
Consideramos, ainda, Sennet como o autor que caracteriza as empresas pela
"força dos laços fracos", pela falta de vínculos mais estáveis e da falta de uma
perspectiva de compromisso duradouro com a empresa, levando os trabalhadores
a terem uma relação menos fiel do que aquela existente no passado.
Sennet acrescenta que diante da destruição da esperança e do desejo, a
preservação de nossa voz ativa é a única maneira de tornar o sofrimento
suportável, tentando uma espécie de saída através da palavra. Neste ponto nos
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apoiamos no autor em nossa crença de que, ao ouvir o trabalhador, talvez haja
uma possibilidade de redução da insatisfação na relação com o seu trabalho.
Falamos dos impactos deste novo modelo de trabalho, que exige dinamismo e
enfrentamento de incertezas. O que poderia ser um catalisador para um retorno
aos vínculos mais densos, se traduz na evitação desses vínculos, onde os grupos
tendem a manter-se juntos na superfície das coisas.
Além disso, há a perda da identificação entre o ato e o ator do trabalho. A
alienação e a indiferença, no que se refere ao produto do trabalho, se instauram e
o trabalhador não tem mais o domínio, mesmo que parcial, do seu processo
produtivo, desconhecendo o seu valor dentro dele.
Podemos exemplificar esta perda, com a fala de uma psicóloga, em um posto de
saúde, que precisa alcançar as metas estabelecidas pela gestão, atendendo certo
número de pacientes por dia. Questionamos onde está o seu ofício original
durante o processo de alcance de metas e onde está o operador deste ofício
impregnado por elas.
Após visitarmos o contexto social consideramos importante, e necessário,
discorrer sobre os principais movimentos da administração do trabalho, para que
a posteriori pudéssemos articular os laços sociais estabelecidos na atualidade
dentro das empresas e assim posicionar a atuação do profissional de recursos
humanos.
Vários foram os movimentos da administração, alguns com foco nas tarefas,
outros na estrutura, nas pessoas, nos ambientes e por último na tecnologia.
Porém circunscrevemos somente alguns dos movimentos da administração, a fim
de pontuar suas reminiscências nos dias de hoje dentro das empresas.
O Taylorismo, ou a chamada Administração Científica, constituído basicamente
de um modelo de desenvolvimento dos empregados e seus resultados, através
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de instruções e procedimentos, para que pudessem fazê-los produzir mais e com
qualidade melhor.
O Fordismo que revolucionou a indústria automobilística a partir de 1914, quando
introduziu a automatização da linha de montagem de seus carros, utilizando os
princípios de padronização e simplificação de Taylor. Seu grande objetivo era
popularizar o automóvel através da redução dos custos da produção.
Em 1970, a General Motors flexibiliza sua gestão e sua produção, cria diversos
modelos de carro com cores variadas e adota um sistema de gestão
profissionalizado, assim ultrapassando a Ford como maior montadora do mundo.
Neste mesmo período com a crise do petróleo e a entrada de competidores
japoneses neste mercado, um novo modelo de produção se inicia baseado no
Toyotismo e em 2007, a Toyota se torna a maior montadora de veículos do
mundo colocando fim ao Fordismo.
Apesar das maravilhas e novidades que o Toyotismo trouxe através da tecnologia
nos modos de produção atual, esse mesmo modo desencadeou um elevado
aumento das disparidades socioeconômicas e uma necessidade desenfreada de
aperfeiçoamento tecnológico para se manter no mercado.
Em setembro de 2008, vivemos uma nova crise econômica mundial e Richard
Sennett coloca que ela representa uma profunda ruptura com a visão de trabalho
predominante no século XX.
Esta ruptura vinha se processando com a emergência das novas tecnologias da
era digital que, por si, já modificaram a natureza do trabalho contemporâneo. No
ambiente de crise, essas mudanças derivadas da técnica, criam um quadro
potencialmente explosivo em curto prazo.
Os vínculos que se estabelecem com as empresas já não são mais fantasiosos,
cumprindo uma promessa de convivência eterna e de plena satisfação. A relação
de uso entre as coisas e as pessoas, muito bem colocado por Bauman, é também
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vivenciada nas relações de trabalho que estabelecem vínculos frágeis e sem
envolvimento subjetivo.
Diferentemente de se pensar em uma nova forma de subjetividade que estaria
surgindo a partir de todas as mudanças no mundo do trabalho, pensamos em
uma forma de subjetividade reativa a uma sociedade que trás para cada sujeito a
necessidade de sobreviver em meio à fluidez de ideais, vínculos frágeis,
descrenças nas autoridades e tantas outras inconstâncias advindas do Outro.
Freud afirma ainda, no texto, Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), que
somente através da identificação mútua entre os membros da massa e do
controle da expansão narcísica pode haver possibilidade de coesão social,
indicando a importância dos vínculos libidinais para a limitação do narcisismo e os
compromissos primordiais para a existência de um grupo.
Porém, no ambiente de trabalho, essa esperança de estabelecimento de vínculos
está capturada pelas organizações capitalistas, amarrando o trabalhador no
ideário narcisista, tendo em vista que, quanto mais fluidas são as relações, muito
bem descrito por Bauman, mais submetido às regras como ponto de apoio para
sua sobrevivência e mais submetido aos seus próprios interesses em detrimento
do todo, gerando uma competitividade por vezes doentia e que adoece o
trabalhador.
Sennet coloca que a corrosão do caráter acontece para fazer frente a esta
constante desconstrução do que se é diante de um vínculo de trabalho. Se o
trabalhador não pode mais criar laços com a empresa, pois não há mais garantias
de longo prazo, se não pode criar laços com seus colegas de trabalho, pois existe
uma competição acontecendo por melhores resultados, se o ideário da empresa
pode mudar a qualquer momento devido a fusões, compra, venda ou
internacionalização de outras culturas, o que resta é a sustentação de um mínimo
de narcisismo para a proteção do ego.
75
Quanto menos vínculos existirem, quanto mais autônomo e auto-suficiente o
trabalhador for, maior a possibilidade de sobreviver tanto no atual mundo do
trabalho quanto emocionalmente, visto que a insistência das organizações
capitalistas é a redução ou coisificação da subjetividade do trabalhador.
Exemplificamos as conseqüências deste fato com o caso da France Telecom,
principal empresa francesa de telecomunicações que para responder a uma
diretiva européia transforma-se em 2004 em uma empresa privada.
Assim, temos uma instituição pública com códigos de conduta, valores, vínculos
de trabalho e relações humanas próprias, que regem este tipo de instituição. Há
então uma mudança radical da instituição de pública para privada, com novas
regras, valores, vínculos e uma mudança estratégica drástica do posicionamento
de seus Recursos Humanos.
Entendemos que trabalhadores foram forçados a se filiar a outra instituição
submetidos a códigos de competitividade e rotatividade que desconheciam.
As conseqüências desta mudança foi o grande número de suicídios nessa
empresa e o reconhecimento de sua relação com as modificações no modelo de
gestão dessa empresa.
Entre 2008 e 2010, ocorreram mais de 30 suicídios e mais 20 tentativas. Em
alguns de seus pronunciamentos, a empresa admite que as mudanças
organizacionais necessárias durante a transição de uma companhia estatal para
uma multinacional competitiva poderiam ser consideradas estressantes e como
conseqüência ter motivado os suicídios.
Foram utilizados artifícios para obrigar os empregados a deixarem a companhia,
como transferências forçadas para outras regiões ou mudanças nas atividades e
cargos dos funcionários.
76
Mesmo que tardiamente, a direção da France Telecom se rende a necessidade
de ao menos apoiar os colegas daqueles que se suicidaram, instaurando “um
dispositivo de escuta”.
No entanto, nos perguntamos se este dispositivo não deveria ter surgido no
momento em que houve a decisão da privatização, quando no processo de
mudança, muitos desses trabalhadores poderiam ser ouvidos em suas
inseguranças.
Questionamos ainda se a área de Recursos Humanos da France Télécom
instaurou algum dispositivo antecipatório para identificar os impactos que essa
mudança poderia gerar em seus trabalhadores e se pode ter voz para agir
estrategicamente neste processo e minimizar os impactos que seriam facilmente
identificados se pudesse atuar neste processo.
Diante deste caso e da realidade encontrada dentro das empresas, utilizamos os
textos culturais de Freud. Observamos as similaridades entre os totens e tabus
nas tribos primitivas, com os totens e os tabus nas empresas, numa tentativa de
realizar uma analogia deste traço primário da existência humana com os
complexos grupos que se formam dentro das organizações.
Discorremos sobre os fenômenos do indivíduo em grupo, indagando o porquê,
sob certa condição grupal, um indivíduo age de maneira inteiramente diferente
daquela que seria esperada e qual seria a natureza desta força que produz este
tipo alteração mental.
Le Bon tenta responder a este questionamento dizendo que os indivíduos em
grupo tomam posse de uma mente coletiva que os fazem agir de forma diferente
de quando isolados. Ele trata este fenômeno como grupo psicológico que é um
ser provisório com características diversas daquelas dos indivíduos que o compõe.
Para a psicanálise, porém, diz-se que o indivíduo é colocado sob condições que
permitem o surgimento das repressões dos impulsos instintuais inconscientes, as
77
características que aparentemente são novas, na realidade são as manifestações
desse inconsciente e que quando se reúnem em certo número, se colocam
instintivamente sob a influência de um chefe, pois possui tal anseio de obediência,
que se submete instintivamente a qualquer um que se indique a si próprio como
chefe.
No filme infantil “Onde moram os monstros?”, baseado no livro de Maurice
Sendak, é retratado um mergulho na mente de Max, um menino de
aproximadamente 8 anos que, depois de ser mandado para a cama sem jantar,
"cria" uma enorme floresta em seu quarto. A floresta torna-se um mundo, que
Max explora com um barquinho a vela. Ao chegar à terra firme, ele conhece
monstros assustadores, dos quais se torna rei, simplesmente nomeando-se como
tal. Mas embora tornar-se rei não tenha sido tão difícil, pois os monstros que
moravam na ilha ansiavam por liderança, manter-se como tal foi um desafio. Este
filme é uma alegoria de questões como liderança, trabalho em equipe, e a
necessidade natural de liderança, retratadas com profundidade no texto de Freud,
Psicologia das Massas e Análise do Eu (1923).
Podemos observar, ainda neste filme, logo em seu início, a resistência e o
desapontamento dos monstros na tentativa de se submeter às demandas
impostas pelo líder, em especial o retorno dos relacionamentos entre os monstros.
Esta passagem nos remeteu ao texto de Freud, O Mal estar na Cultura, onde
coloca que a infelicidade causada pelos relacionamentos sociais pode nos
remeter à idéia de que a grande responsável por nossa desgraça seria a
civilização, supondo equivocadamente que um retorno às condições primitivas
nos proporcionaria maior felicidade.
Freud coloca ainda que o controle da massa (entendida como grupo) por uma
minoria e a coerção no trabalho da civilização é condição básica para a
manutenção do processo civilizatório. Só através de um processo de influência de
indivíduos que possam fornecer exemplo, e que sejam reconhecidos como líderes,
o grupo poderá ser induzido a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que
a existência depende.
78
O mal estar então resultaria da renúncia pulsional que a civilização exige, a
substituição do poder do indivíduo pelo poder do grupo instaurado pelo líder.
Na tentativa de reduzir a insatisfação diante da força da civilização, a humanidade
luta pelo controle sobre o espaço e o tempo, porém os resultados dessa luta não
aumentaram a quantidade de satisfação prazerosa nem nos tornou mais felizes, o
que nos permite concluir que esse poder sobre a natureza não é a única
precondição de felicidade humana.
FREUD, em O Futuro de uma Ilusão, relata que:
"Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão
firmemente à realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho, pois este,
pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na
comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar
uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos,
agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os
relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de
maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza algo
indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. A
atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for
livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar possível o
uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou
constitucionalmente reforçados." (Freud, 1930, p.99 nota 1)
Pensando neste recorte podemos inferir então que o trabalho profissional tem
uma função importante para a sociedade e, se também constitui uma fonte de
satisfação, nos arriscamos então a pensar que a atuação do profissional de RH
pode
estar,
mesmo
que
indiretamente,
vinculada
ao
entendimento
do
direcionamento satisfatório dos componentes libidinais.
Mas analisadas, mesmo que superficialmente, as atividades de RH, verificamos
que embora sua configuração de conceitos e práticas apontem para uma
79
possibilidade de incremento da performance do trabalhador e do aumento de
satisfação no trabalho, o que pudemos perceber, ao longo do nosso percurso
profissional,
acompanhando
trabalhadores
dentro
da
empresas,
é
um
distanciamento entre os resultados esperados dessas ações e o que se traduz em
realidade.
Em muitas entrevistas individuais e dinâmicas de grupo, por nós realizadas,
pudemos registrar algumas falas de candidatos, como: “existe vida após o
trabalho”; “é importante separar a vida profissional da pessoal”; “precisamos ter
um tempo depois do trabalho para se fazer aquilo que se gosta”.
Pensando nestas falas extraídas do contexto de avaliação e exposição
profissional do trabalhador sobre suas expectativas pessoais e profissionais, nos
questionamos, sobre as conseqüências da não escuta de seus significantes em
relação ao trabalho.
Encontramos, em algumas empresas, situações onde os trabalhadores não são
consultados quanto aos treinamentos que irão realizar e quando o são, (através
de formulários ou em raros momentos em entrevistas) percebe-se que a visão da
empresa sobre a capacitação e desenvolvimento daquele trabalhador está,
muitas vezes, dissonante com a sua necessidade ou desejo.
Foi ouvindo as empresas, na figura de seus gestores, e ouvindo os trabalhadores;
que consideramos uma pergunta recorrente: que relevância há neste ouvir que
nos impele a contribuir para a melhoria das relações entre a organização e o
trabalhador.
Ao escutar os trabalhadores sobre suas questões profissionais e também aquelas
de cunho mais pessoal, percebe-se que a função de escuta, nos processos de
seleção, avaliação de desempenho, treinamento e outros subsistemas que nos
confrontam com a fala do trabalhador, fica à deriva, não havendo porto seguro
que a acolha dentro das organizações, no sentido de uma prática habitual dos
80
profissionais que se dizem agentes da melhoria das relações humanas no
trabalho.
Nas possibilidades que se apresentam, dentro dos subsistemas de RH, temos
atuado nesta função faltosa apoiando-nos na escuta dos trabalhadores para além
dos dados quantitativos esperados, traduzindo essas falas em ações concretas
de melhoria de processos e relações de trabalho.
Uma dessas ações já praticadas em nosso trabalho é o treinamento de
consultores em avaliações de RH, sejam entrevistas, dinâmicas, análise de
desempenho, levantamento de clima e cultura, tendo como base o arcabouço da
psicanálise, para que utilizem a palavra do trabalhador para além da informação,
ou seja, para que se aprofundem, dentro dos objetivos da atividade executada,
nas questões subjetivas do trabalhador.
É importante afirmar que o profissional de RH não atua na posição de analista,
onde o sujeito fala na busca de um sentido. Mas fala em um espaço de
elaboração de hipóteses e sugestões de ações, que podem ser direcionadas ao
próprio trabalhador, ao gestor ou para a empresa como visão global de sua
organização, tendo como norte a ética e a confidencialidade.
O que propomos é escutar em que bases foram estabelecidas as identificações
para formação dos grupos, através de seus códigos, proibições e exigências
amarram o trabalhador de forma que possamos ver outras saídas para dar conta
desta renúncia, e não tão somente a agressão contra si mesmo ou contra o outro.
Diante do exposto, entendemos que o profissional de RH não pode ser um agente
mudo da organização, só o será se for surdo àqueles que falam.
Entendemos ainda que na formação do psicólogo, que irá atuar nos processos de
RH, não é considerado o saber da Psicanálise como uma possibilidade de
articulação com sua prática, por isso nos propomos a atuar na formação dos
profissionais que se interessam pela prática organizacional e pela psicanálise a
81
fim de instrumentalizá-los com premissas significativas para a escuta da cultura
organizacional através da voz do trabalhador.
Nesta proposta de formação, entendemos que devemos apontar os movimentos e
teorias da administração e suas reminiscências nas estruturas organizacionais
atuais; percorrer o contexto social do trabalho; discutir os textos culturais de
Freud realizando analogias com o cotidiano no trabalho e, por fim, enfatizar a
importância da apropriação da escuta analítica para que o profissional de RH
possa potencializar sua função dentro das organizações, se apropriando de outro
saber que saia do modelo de instrumentalização do trabalhador.
Por fim, não podemos deixar de nos remeter a Lacan, no texto Função e campo
da fala e da linguagem, que se tornou fundamental para esta dissertação:
“Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a
psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente. A evidência
desse fato não justifica que se o negligencie. Ora, toda a fala pede uma
resposta. Mostraremos que não há fala sem resposta, mesmo que depare
apenas com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte, e que é esse o
cerne de sua função em análise.” (Lacan, 1953, p.248)
82
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Recursos Humanos à Luz da Psicanálise - Uma Reflexão