A GUERRA SANTA POEMA DRAMÁTICO EM UM ATO DE LUIS ALBERTO DE ABREU A GUERRA SANTA Personagens: DANTE VERGÍLIO BEATRIZ ESPÍRITO DE VERGÍLIO CORO 2 1- CANÇÃO DO CORO COMO SE UM PRÓLOGO FOSSE HOMEM (SURGINDO DE UMA EXTREMIDADE DO PALCO) Eieieiei! Ei! HOMEM 2 (SURGINDO NO OUTRO EXTREMO) Oioioioi! Oíííí! HOMEM O que teu olho tem em vista, aí, da crista desse morro? HOMEM 2 Desordem, talvez desgraça De um lado gritos de socorro Do outro lado o povo em arruaça No meio um homem jaz deitado. HOMEM Morto? HOMEM 2 Com certeza. Gavião traz o prato e urubu já põe a mesa! HOMEM Quem será o infeliz? HOMEM 2 Não é defunto barato pelo modo como ajunta gente. Aliás, nem é um só tem outros caídos mais à frente. HOMEM Aqui corremos risco? Ou é melhor irmos embora? Que terá acontecido? 3 Que acontece agora? Matam-se? Lutam? Morre mais gente? Dá-me o descrito! HOMEM 2 Sossega! Tudo é calmo no momento Nem correria, nem grito. Apenas um rumor que cresce O povo se põe em movimento e desce Em nossa direção. HOMEM Minha Mãe da Conceição! "A luta é boa, mão na espada" Minha alma grita. Mas minha pele sábia também recita "Sebo nas canelas e pé na estrada!" HOMEM 2 Eles vêm cantando. HOMEM Canta a cobra vendo o sapo. HOMEM 2 Os mortos, certamente, eram gente de má obra, Com muitos crimes em conta Senão, qual a razão De alegria em tal monta? HOMEM Gente que agora ri e é tonta, No " A " seguinte, desri e afronta! HOMEM 2 Alegria não é sinal de desgraça! HOMEM Pode ser, mas aqui não fico Nem por ouro, nem de graça! (SAI CORRENDO. ENTRA CORO DE POPULARES CANTANDO RITMADAMENTE. É UMA CORJA DE MISERÁVEIS DESNUDOS, ALEIJADOS, MANCOS. TRAZEM CÍMBALOS, TAMBORES, TRIÂNGULOS, CHOCALHOS, ETC. SUAS ROUPAS SÃO INDEFINÍVEIS QUANTO À ÉPOCA.) 4 CORO Dante, mostra o teu punhal Metal cromado de aço Continuação da mão Que continua o braço E como abelha veloz voa Como garra feroz ferroa E do que vivia nem mais traço! RAPAZ Morte na mão de Dante é morte justa! MULHER Não! Dante é assassino louco! RAPAZ Por o mundo em ordem alguma coisa sempre custa! MULHER Então sonhe com o mundo em ordem e sangue e se farte! HOMEM Silêncio! Nem tanto, nem tão pouco! É certo que nele a violência assusta Mas não se negue nele uma certa arte. Se seu braço é duro e sua maneira é brusca É também admirável como ele reveste a forma bruta Com a suavidade de um balé mudado em luta. A habilidade da mão, a precisão do corte Fazem com que o sangue, a dor, tudo menos importe Que a leveza do gesto Que traz a violência do ato oculta. E se os olhos lamentam a morte O espírito levanta-se e, aplaudindo, exulta. (HOMEM É OVACIONADO COM PALMAS E GRITOS. ORGULHOSO TIRA O CHAPÉU E FAZ UMA REVERÊNCIA.) RAPAZ Ele evém! (POPULARES CORREM ASSUSTADOS.) Calma! Está longe ainda. (POVO OLHA E, MAIS CALMO, ACENA PARA DANTE, AO LONGE, E CANTA.) 5 CORO Dante, mostra o teu punhal Metal cromado de aço Continuação da mão Que continua o braço E como abelha veloz voa Como garra feroz ferroa Do que vivia nem mais traço. (CANTANDO, O POVO ABRE ESPAÇO PARA A CHEGADA DE DANTE, COLOCANDO-SE EM SEGURA DISTÂNCIA. ENTRA O ESPÍRITO DE VERGÍLIO, TRÔPEGO, CAMBALEANTE, TRISTE.) 2 - O ESPÍRITO ACUSA, LAMENTA E CONCLAMA O PÚBLICO A OUVIR SUA HISTÓRIA. ESPÍRITO Nem bem meu grito ecoou na fria noite/ e um duro açoite, vendaval me carregou. / Lembro-me pouco: a mão de Dante, o rosto louco / Punhal cromado, o ar pesado e aqui estou!/ Nem vivo pois aqui me falta o corpo / Nem morto pois inda tenho noção / Maldita mão que manejou maldito ferro / Parou-me a voz, o passo após, depois a ação. (ENTRA DANTE CARREGANDO O CORPO DE VERGÍLIO NOS BRAÇOS. DEPÕE O CORPO NO CHÃO E SE CURVA SOBRE ELE ASSIM PERMANECENDO ATÉ O FINAL DA FALA DO ESPÍRITO.) Maldito Dante! Tua mão que dispersou minha vida em partes / Refaça a arte como a fez o ser divino / Sangue e veia, mente e vida uni no morto / Dê-me meu corpo, luz e olhos, assassino! E agora sou apenas isso: alma, miragem! / Triste imagem do que há pouco fui em vida. / Mas quem sois vós / Trazem a alma unida ao corpo? Ou tudo é morto e, como eu, sois divididas? Pelo grão de fé que em vós habita porventura / Centelha pura que anima o corpo vivo. / Acreditai: se a vida é sonho melhor estais / Tens muito mais porque do sonho aqui me privo. / E me privo dos sentidos e da paixão / Da terna mão e da vontade, do desejo. / Sou só sombra, 6 mera imagem, leve véu / Estais no céu. É no inferno que me vejo. / Mas narro. E narrando esqueço a privação da vida. / Conto. E contando dou sentido à eternidade. / Lembro. E lembrando preencho meu futuro. / E afasto a sensação de insanidade. / O, vós, que peregrinais no imenso mundo / Ao fundo dessas almas descei comigo / Maior que o mundo, a alma humana é universo / Disperso ao nada que não seja o que vos digo. (LUZ LENTAMENTE COMEÇA A SE EXTINGUIR ENQUANTO O ESPÍRITO DE VERGÍLIO SE AFASTA.) Ai! Tristeza dura de campos tão devastados / Galhos cortados antes da fruta madura / Por mais que os anos cavem rugas em nosso rosto / A vida é o gosto, a morte é sempre prematura. 3 - O PASSADO COBRA O SALDO DEVEDOR. VERGÍLIO Não percebes, verso, que comeste por dentro o homem que verseja? Veja! Sou um homem oco que acreditou que a poesia me preencheria. Arte é da vida modo diverso. Sou homem oco. O que me preenchia Está agora em meus versos. (BEBE) Entre, doce absinto! Me ponha nu, me faça tolo, Me expulse a dor e me faz viver. E, por favor, Me faça rir.(RI) Pobres versos! DANTE (QUE ENTROU SEM SER PERCEBIDO) Pobres versos! VERGÍLIO Dante! DANTE Meu velho mestre! VERGÍLIO Ou isso é insulto ou ironia. Que quer? 7 DANTE Você não está muito surpreso em me ver. Depois de vinte anos! VERGÍLIO Se tivessem se passado mais dez anos, agora fariam trinta! DANTE Não é possível! Nenhuma surpresa? VERGÍLIO Você é humano e nada do que é humano me surpreende. Só assusta. DANTE Embaralhas bem as palavras. VERGÍLIO É meu ofício. Pergunto novamente: que quer? DANTE Rever um velho amigo. VERGÍLIO Já reviu. Agora saia. DANTE (SOTURNO) Não me fale neste tom! VERGÍLIO (IRÔNICO) Sejamos sociáveis: quantos teu punhal sangrou esta semana? DANTE Como você, eu também escrevo minha arte: Dia a dia com a ação Não com a abstração Da pena sobre o papel Não com o seu véu de rebeldia Impresso em papel couchê! VERGÍLIO Então você lê minhas poesias? DANTE Poesia, eu mesmo a faço todo dia com as mãos. E o meu verso ao seu não se assemelha. VERGÍLIO Eu sei. Sua tinta é vermelha E sua pena é seu punhal. 8 DANTE Não está só aí a diferença. VERGÍLIO Não. Sua poesia é doença Que se espalha, mutila homens, Mal sem cura. DANTE Já a sua é calma, pura, sentimental. Canta uma paz humilhante! VERGÍLIO E a sua, Dante? Louva e chama a guerra brutal! DANTE Louvo e chamo a mãe de todas as guerras! E quero estar nas primeiras águas dessa inundação! E quero ser a mão Que vai fazer o parto do novo mundo. VERGÍLIO Novo mundo! DANTE Não importa o que vai nascer Se monstro disforme, Forma sem geometria, O que vem, Vergílio, Não se adia. Depois... VERGÍLIO ...de contar os incontáveis afogados... DANTE Depois... VERGÍLIO Depois de toda, total e inútil sangria... DANTE (TOMA DO PUNHAL E AMEAÇADOR O APONTA PARA VERGÍLIO) Cala! Prá você, sangria É só uma palavra, Uma rima, um som num verso, Um verso numa poesia! Andando! Vamos conhecer o inferno e seus condenados. 9 VERGÍLIO Que é isso? Aonde vamos? DANTE Vamos caminhar nas sombras, entre mutilados, Entre mortos que se crêem vivos. Ouvir silvos, ais, pragas, blasfêmias, Ver onde as palavras se geram brutas E plenas de significados. Vem, Vergílio, vem entender o que é sangria, Vem ver onde se forma a tempestade. Você não é poeta. Apenas enfileira palavras, organiza sons ocos! Louco! Cego pela luz do dia, Vem conhecer a noite. O que vem, Vergílio, Não se adia! VERGÍLIO O que quer de mim? Porque veio depois de tantos anos? Porque abandonou seu abrigo? DANTE (IRÔNICO) Vim visitar um amigo. (AUTORITÁRIO) Andando! SAEM) 4-PEQUENA NARRATIVA DE UM BRUTAL INCIDENTE. ESPÍRITO (QUE ACOMPANHAVA ATENTO AS IMAGENS ANTERIORES.) Sem recusar, sem gesto e voz segui meu guia / Na estranha via que os olhos mal divisavam. / Se era a estrada corriqueira, deste mundo / Também no fundo de nossa alma os pés pisavam. Pois era o mesmo o turbilhão de chuva e vento / Que dentro d'alma e fora dela se agitava / Fora riscava a noite luz, raio brutal / Fino cristal dentro de mim também quebrava. 10 E percebendo-me partido por inteiro / Em desespero refreei a alma revolta / No entanto, alma é ser que não se doma / E sempre assoma forte, livre, ave solta. E recolhi resto de força onde não sei / E recusei, feroz, seguir caminho adiante / Logo senti ferir-me o braço o punhal / Golpe brutal guiado pela mão de Dante. / E estremeceu-me a violência mais que a dor / Horror e espanto desenharam meu semblante / E contemplei o rosto do antigo amigo / Desconhecido, não humano, não era Dante! (VERGÍLIO CAI DESMAIADO) 5- OS PEREGRINOS DA GUERRA SANTA ESPÍRITO Maldito! (AFASTA-SE E SENTA-SE À DISTÂNCIA. DANTE OLHA VERGÍLIO CAÍDO E SE AFASTA FURIOSO. ENTRA BEATRIZ. SEM OLHAR VERGÍLIO, BEATRIZ ACARICIA E BEIJA DANTE COM OBSESSIVA PAIXÃO. DANTE A EMPURRA COM VIOLÊNCIA. BEATRIZ EMITE UM URRO, MISTO DE RAIVA E PRAZER. ABRAÇA-SE NOVAMENTE A DANTE, TENTA DESPI-LO, ACARICIA-O LENTAMENTE MAS COM VOLÚPIA. DANTE JOGA-A AO CHÃO COM RAIVA.) DANTE Saia! BEATRIZ (NO CHÃO, SENSUAL) Vem. DANTE Não! BEATRIZ (AUTORITÁRIA) Vem! DANTE (QUASE DESCONTROLADO) Não! BEATRIZ Você me quer. 11 DANTE Não agora. BEATRIZ Eu decido quando. E quando é agora. (DANTE A CUSTO SE AFASTA. BEATRIZ DEITA E SENSUALMENTE TENTA ATRAÍ-LO. ACARICIA O PRÓPRIO VENTRE.) Eu sei, você quer. Você quer meus lábios, minha saliva Minha língua viva Aprisionada em sua boca Minha língua louca percorrendo seu pescoço Lambendo o sal de sua pele. Eu, mulher. Eu, profana, você quer. DANTE (AUTORITÁRIO) Levanta! BEATRIZ (SEDUTORA) Deita. Pouse seu peso em meu ventre macio Pele a pele, beijos, uivos e dentes, Lobo e loba em noite de cio. Você, torrente de águas, Eu, terra tragando rio. Vem, Dante, morrer seu cansaço, Descansar sua fúria, Mergulhar no escuro, estar no oco da terra, Dormir dentro de mim. Faz de meu ventre sua tumba E depois de tanto prazer, Eu parir E você de novo nascer! DANTE (AGITANDO-A VIOLENTAMENTE) Acorde, estúpida! BEATRIZ (COMO SE VIESSE DE UM LONGO SONO) Que foi que eu fiz? DANTE Você nunca se lembra do que faz? 12 BEATRIZ Com certeza não há nada a ser lembrado. DANTE Cuide dele. BEATRIZ (CUIDANDO DO BRAÇO DE VERGÍLIO) Outra vítima sua? Como é que ainda respira? VERGÍLIO (IRÔNICO) Sou amigo dele. BEATRIZ Está explicado! DANTE Engula a ironia! O ferro que feriu seu braço ainda tem a mesma ponta! (VERGÍLIO COM RAIVA TENTA AFRONTAR DANTE. É IMPEDIDO POR BEATRIZ.) BEATRIZ Não faça conta! DANTE Cuide dele, Beatriz. BEATRIZ Me deixe fazer o que ele diz. VERGÍLIO Vergílio, Beatriz e Dante! Que deus de mente insana Fez coincidir a Divina Comédia Com essa ridícula paródia humana? (ENTRAM OS PEREGRINOS. CANSADOS, DOENTES E FERIDOS CANTAM UM RESPONSÓRIO.) DANTE Paródia melhor se aproxima. PEREGRINO Água dos rios CORO Lavai os pecados PEREGRINO Flores dos montes 13 CORO Deixai perfumados PEREGRINO Águas das fontes CORO Os nossos caminhos PEREGRINO Frutos da terra CORO Em busca do céu PEREGRINO Do Jardim das Delícias CORO De favos de mel PEREGRINO Recebei-nos, senhor CORO Na mesa celestial. BEATRIZ DANÇA DESENGONÇADAMENTE EM VOLTA DOS PEREGRINOS. CANTA A MESMA LADAINHA.) BEATRIZ Mesa farta e posta Com pratos de bosta Tomai seu assento Comei dessa ceia Tem sopa de vento Pirão de areia Bife de osso Filé de pescoço Pão sem as pontas E também sem o meio Bolo sem casca E também sem recheio. (RI JUNTAMENTE COM VERGÍLIO.) DANTE Cala a boca, Beatriz! (Á VERGÍLIO) Venha ouvir! 14 (AO PEREGRINO) Conte sua história. (Á VERGÍLIO) Procure nela razões para rir. PEREGRINO Nada tenho a contar. Sou raça de peregrino Amilembro inda menino Buscar veredas de Deus Como fez meu pai em antes, Meu avô anos distantes A pregar o fim dos tempos Turbilhão de fogo e vento Guerra, morte, peste, fome E o final de todo homem No ano mil novecentos. VERGÍLIO Porque me arrastou aqui, Dante? DANTE (IRÔNICO) Não te comove a miséria humana Que tanto te comoveu um dia? VERGÍLIO Não mais. Eu só me quero distante Dessa companhia. DANTE São afáveis, quase santos! VERGÍLIO Aprendi a odiar a miséria E igualmente a resignação dos miseráveis. PEREGRINO (QUE DURANTE A FALA TRANSFORMA A HUMILDADE EM ÓDIO DESMEDIDO) Humildade vem marcada em nós desde o nascimento Como a doença, a rudeza dos dias O destino de andarilhos E a magreza dos filhos. Pés grossos para andar nessa terra devastada Prá subir a escada dos céus e arrancar de Deus A antiga promessa de consolo tantas vezes adiada! E descer de novo à terra 15 E arrastar homem manso pela palavra mansa E o infiel pela ferida a ferro Pelo fogo e fé feroz! E navegar essas águas violentas Violentar a fúria dos ventos Domar a maré revolta E impor a palavra de Deus Ao final da guerra santa! (O PEREGRINO TERMINA A FALA AOS BRADOS, AGRESSIVO, QUASE SOBRE VERGÍLIO. INESPERADAMENTE VERGÍLIO REVIDA COM A MESMA INTENSIDADE.) VERGÍLIO Volte às suas orações! PEREGRINO (HUMILDE) Perdão, senhor. Fui tocado Pelo fogo sagrado da fé. VERGÍLIO E pela bestialidade das feras! (DANTE RI) DANTE A velha onça ainda tem garras! PEREGRINO Perdão, senhor, sou apenas um homem que espera, Filho de gente que espera Neto de desesperados Que espera a luta final E as portas do paraíso. (VOLTA-SE E AFASTA-SE HUMILDEMENTE PARA JUNTO DOS OUTROS PEREGRINOS.) DANTE E isso é apenas um aviso Um pequeno sopro da fúria do vento futuro. VERGÍLIO Eu sei. A intolerância que move esse tipo de fé É a mesma que vi vagar entre destroços 16 Na turba enlouquecida Que queimou três ladrões vivos em Matupá. DANTE (SARCÁSTICO) Esse é o sopro do futuro Esteja ciente. É bom que logo Se converta. VERGÍLIO Morro crendo na inexistência de Deus Do que ser a tal fé obediente! PEREGRINO (FURIOSO) Blasfêmia! DANTE Quieto! Fora! Andando! (O PEREGRINO DEBATE-SE ENTRE AFRONTAR E OBEDECER A ORDEM DE DANTE. DANTE TIRA O PUNHAL) PEREGRINO (BAIXA A CABEÇA) Eu me submeto a seu mando. DANTE (ABENÇOANDO COMA MESMA MÃO QUE SEGURA O PUNHAL) Deus vos abençoe. (SAEM ENTOANDO A LADAINHA.) PEREGRINO Águas dos rios CORO Lavai os pecados...(Etc.) DANTE Aí vai um pedaço do futuro. VERGÍLIO Prefiro meus antigos versos. DANTE Sigamos. Vem conhecer um pouco mais desse universo. 17 6- A BARQUEIRA DOS INFERNOS O ESPÍRITO, DESESPERADO, TENTA LEMBRAR-SE DE TRECHOS DA HISTÓRIA QUE CONTA. LUZ COMEÇA A SUBIR E O ESPÍRITO VÊ BEATRIZ REMANDO EM SUA DIREÇÃO.) ESPÍRITO Beatriz e um barco / Faz tão pouco sentido! Mas também pouco me lembro do há pouco acontecido: A minha morte violenta...Meu Deus! Pior estado inexiste. Mais triste que não ter futuro é esquecer o passado. Minha memória começa a perder lembranças / E em mim avança o terror da inconsciência. Breve serei nada: oco, um pálido olhar / Vento a invejar vossa sólida existência. / Por isso, com piedade o que conto escutai. E imaginai: um barco a vagar cortando rio. / É isso? Não sei. Talvez cidades em chamas... / Como tecer a trama se me faltam fios? / Mas desprezai a coerência doravante / Beatriz, Vergílio, Dante...Barco em negro rio... / Melhor navegar nas paixões do que vos conto / Não importa o ponto onde a narrar reinicio. BEATRIZ CONDUZ UM BARCO ONDE ESTÃO VERGÍLIO E DANTE. BEATRIZ REMA E CANTA ALEGRE.) BEATRIZ Rio abaixo, rio acima Remador quem se aproxima É um pescador eu acho Se enganou é uma menina. Vem à flor das águas rente É conhecida ou é parente Ela vem nua à luz da lua É linda mas não é gente. VERGÍLIO É bonita. BEATRIZ É uma canção velha. (PAUSA. SE ILUMINA) Toda noite eu tenho um mesmo sonho: 18 Sou eu que subo este rio Eu sigo... É difícil narrar um sonho A não ser que o imagineis comigo. VERGÍLIO Conte que, caminhando rente às suas palavras, eu sigo. BEATRIZ Clarágua, prata de lua Cristais de luz no escuro O céu no rio debrua Um móvel espelho de estrelas. Imaginai o momento: Lento o rio, o calor do tempo. Verão. Vê a menina nua. Sou eu quem à flor d'água flutua. Rio acima vou. / Canoa e pescador descendo rio imaginai agora. Cruzamos olhos, cruzamos barcos. / Pescador me mirou cabelos, boca, ventre. / Canoa por mim passou / Foi embora leve, vazia de gente. / Pescador ficou. Eita!, n'água tomba e retomba, Retumba o desejo por dentro. Atraio, atraiçôo, enlaço, Gemo e arquejo, Caço, seguro, rejo o momento, sou dona, Sou fera, voragem, vertigem Mordo, devoro e flutuo: Não gente, sou bicho, sou farta. Imagina, depois, meu ventre aumentado Nu, transparente, como vidro. E, lá dentro, vivos, Veja milhares de peixes. E, agora, me veja rir, Contrair o ventre e explodir E transbordar de vida o rio. E o rio inundar a terra. (RI FELIZ) Toda noite eu tenho esse sonho. 19 Então acordo, ainda prenhe de sonho e rio. E me lembro de mim menina. DANTE (IRRITADO) Pára com isso, Beatriz! BEATRIZ (REAFIRMANDO) E como sempre lembro de mim menina. DANTE Que prazer você tem em repetir a mesma coisa, do mesmo jeito, todo dia? BEATRIZ Dezessete é o mais feliz dos anos. Aos dezessete por três vezes eu pensei em me matar. (RI) E, por três vezes, eu me agarrei, furiosa, à fúria da vida. Dezessete é o mais louco dos anos. VERGÍLIO Dante, não este, o outro de melhor vida e melhor arte, escreveu num verso: "É triste lembrar na desgraça os dias felizes". Mas um dia pensei o inverso E, talvez como um tolo, escrevi Que a lembrança é o melhor consolo. DANTE (INQUIETO, AMEAÇADOR) É melhor que não continuem. BEATRIZ (SEM DAR IMPORTÂNCIA) Aos dezessete anos somos irresponsáveis e descuidados. Aos dezessete anos sou leve Tenho o ventre transparente repleto de peixes vivos. VERGÍLIO Você parece feliz. BEATRIZ Sou. Toda noite tenho o mesmo sonho. (GEME, DE REPENTE ASSALTADA PELA DOR.) DANTE (IRRITADO) Cala a boca! BEATRIZ (COM ÓDIO) Cala você! 20 DANTE (SARCÁSTICO) Inútil alma. Louca quando se agita, idiota quando se acalma! BEATRIZ Toda noite tenho o mesmo sonho. Há um rio, mas sem menina, sem voragem Há peixes que bóiam mortos em suas margens E meu ventre, repleto de sal e areia, Granito estéril, dá à luz não a peixes, nem meninos, Só a sementes secas, raízes apodrecidas Em campo deserto. Então desperto. E olho em volta. (GEME E CHORA SURDAMENTE. DANTE A PUXA COM VIOLÊNCIA PELOS CABELOS E A ARROJA AO CHÃO.) VERGÍLIO Pára, Dante! DANTE Não me provoque ou estropio seu outro braço! (EMPURRA BEATRIZ COM VIOLÊNCIA.) Suma! Desapareça! VERGÍLIO Chega, Dante! DANTE Um braço não foi o bastante. Quem sabe eu deva fazer o mesmo... VERGÍLIO Faça! DANTE Perdeu o medo? VERGÍLIO Cansei de ameaças. DANTE (SORRI) Te conto um segredo. VERGÍLIO Basta! DANTE O medo pode nos manter vivos. 21 VERGÍLIO E passivos. DANTE E apreensivos quanto ao próximo momento, porém, vivos! VERGÍLIO Você está brincando comigo? DANTE Estou. VERGÍLIO Pois eu não estou mais, Dante! DANTE Lhe dou um aviso: Toda coragem é um perigo! VERGÍLIO E eu lhe digo: me deixe em paz! Não sei o que lhe passa pela cabeça Mas você não me assusta mais! DANTE Até onde você vai? VERGÍLIO (GRITA) Cala que agora sou eu quem fala! Vou dizer em claro e bom som: daqui eu volto Nesta farsa não gosto do papel de prisioneiro Embora carcereiro seja o teu melhor papel! Não sei seu próximo passo Mas sei o meu: daqui eu volto! E se não lhe bastou um, estropia meu outro braço! DANTE Quieto, Vergílio! VERGÍLIO Não adianta, Dante. Só me calo se me cortar a garganta. DANTE (SOTURNO) Se é assim que deseja... VERGÍLIO Daqui eu volto! E que assim seja! (ENCARAM-SE. DANTE DESMONTA A DUREZA DO OLHAR E SORRI APLAUDINDO VERGÍLIO SARCASTICAMENTE.) 22 DANTE Um homem de coragem! Coragem melhor que esta eu já vi em pedintes! Gente que se humilha E implora o pão Apenas para estar vivo o dia seguinte, Apenas prá sentar à mesma trilha, Apenas prá estender a mesma mão! Beatriz chora o passado, Você, com porte altivo, Exibe coragem de morrer. Mas os papéis estão trocados: Que morra e que se enterre é o passado Porque coragem maior é estar vivo! E para isso é preciso fúria, Vergílio. Não coragem como a sua, Suave coragem de quem se desespera E se deixa morrer sem luta. O caos presente necessita feras, Coragem bruta, gritos vivos entre os escombros, Uivos mais altos que o sussurrar dos mortos. O presente requer mão que dome a confusão reinante. VERGÍLIO Me escute, Dante! DANTE Logo rompe o dia E vocês, se ainda não estão mortos, Como a noite, estão em agonia. (VOLTA-SE E SAI) VERGÍLIO (CHAMA) Dante! Dante! O que você quer de mim? Porque me trouxe aqui? (À BEATRIZ) Onde é que estamos? 7- BEATRIZ, A QUE NÃO SABE 23 BEATRIZ (RI) A mim você pergunta? Não sei de começo, nem de fim, nem de meio. Tenho a memória fraca, A cabeça sem recheio Sei que sou Beatriz Mas isso tão pouco me diz Como se eu fosse Luis ou João. (RI) E então? Quer saber mais? Se Deus faz, o diabo desfaz Sou mulher fora de prumo Desejo não tem hora Caminho não tem rumo Vontade de momentos atrás Não é a mesma de agora. Só sei que sou Beatriz Não sou Maria nem Raimunda Não sei onde ponho o nariz Não sei onde assento a bunda. (GARGALHA. ENTRA NO BARCO.) Ocupo lugar no espaço. Não lembro o que fiz, não sei o que faço. Apenas faço. VERGÍLIO Beatriz, me ajude. BEATRIZ (SUBITAMENTE LÚCIDA, DEPOIS DE OLHÁ-LO LONGAMENTE) Ajudo. VERGILIO Onde estamos? BEATRIZ Estamos no mundo. E se prepare que, esta noite, Vamos descer mais fundo Em direção ao centro da terra Onde, no ponto mais escuro Desse mergulho insano, Pulsa leve O obscuro coração humano. 24 VERGÍLIO (SACUDINDO-A COM RAIVA) Onde estamos indo? BEATRIZ Mais um dia E chegaremos lá, além das montanhas, Onde, com seus companheiros Dante se esconde. Lá onde afia suas facas Fermenta sua raiva Aumenta sua fama Lá, onde, às vezes, Dante me ama. VERGÍLIO Lá ele se esconde. Meu Deus! E, há vinte anos, Contra toda razão, Contra todo cansaço, Sem interrupção, Ele ergue o braço E grita ao mundo sua guerra! Enlouqueceu. (RECEOSO) E por que ele me arrasta até lá? BEATRIZ (RI) O que eu sei é que lá Ele aguça a ponta do punhal, se adestra. Até o dia em que sua mão Mestra no corte, sábia no talho Vem cumprir com competência Uma sentença de morte. VERGÍLIO Louco! BEATRIZ (PERDENDO NOVAMENTE A LUCIDEZ) Mais não sei. Nem ao menos sei o que falei.O instante atrás já se vai distante. (RI) Bendito seja o fim da lucidez! VERGÍLIO Você vai me ajudar a sair dessa loucura! 25 BEATRIZ (OLHANDO-O SURPRESA, COMO SE O VISSE PELA PRIMEIRA VEZ) Tenho de ir. VERGÍLIO Onde vai? (BEATRIZ RI) Não ri! (RI MAIS) Idiota! BEATRIZ Você parece louco! (REMA) VERGÍLIO Onde você vai? Não me deixe aqui! BEATRIZ Um dia eu volto. VERGÍLIO Beatriz! BEATRIZ (ENQUANTO DESAPARECE) Anteontem um tarado me pegou Hoje cruzei com ele sobre a ponte Furiosa então gritei: Por que não veio ontem? Por que não veio ontem? (RI) 8- O PESADELO DE ALIGHIERI (VERGÍLIO SENTA-SE E REFLETE EM SILÊNCIO. APROXIMA-SE O ESPÍRITO E POUSA A MÃO EM SEU OMBRO.) ESPÍRITO Pouco me lembro desse meu instante vago / Dele só trago a mais confusa impressão. / O mundo, a noite e os homens loucos e eu diferente / Ou eu demente a acreditar-me homem são. Lembro-me mais... VERGÍLIO E ESPÍRITO Meu Deus!, (VERGÍLIO ERGUE-SE E PÕE-SE A OBSERVAR OS VULTOS QUE ENTRAM) 26 ESPÍRITO ...eu disse e me ergui. E repeti VERGÍLIO E ESPÍRITO ESPÍRITO Meu Deus! Ao ver aquela gente Do ventre da noite, triste povo expulso / E em lento curso arrastavam-se à frente. / Os olhos mortos, passo incerto, friorentos / Macilentos, sem revolta e sem vigor. VERGÍLIO Que gente é essa tão sem sangue, seiva, viço? E o olhar mortiço apagou-se por que dor? É gente humana? ESPÍRITO Perguntei volvendo o rosto / E a contragosto fixei neles meu olhar / Tanta miséria, palidez, tristeza tanta / Que tanta pena me deu ver tanto penar. / Por largo tempo eu olhei como cativo / Os vultos vivos como mortos à minha frente. / Depois o susto, o grito, o medo em cada olho. (DANTE ENTRA FURIOSO DIRIGINDO-SE A UM DOS VULTOS.) DANTE Fora, restolho! Fruto mau de má semente! ESPÍRITO Dante, novamente! DANTE Deitem-se, mortos! Enterrem-se (COM VIOLÊNCIA DISPERSA OS VULTOS.) Que a terra lhes cubra e apodreça seus corpos! ESPÍRITO Furioso. DANTE Inutilidade! ESPÍRITO Violento! Demente! DANTE Erro da natureza! Por que soprar vida em tal espécie de gente?! 27 (ESPÍRITO SE AFASTA. VERGÍLIO PERMANECE SEM AÇÃO. OS VULTOS DEBANDAM. UM DELES PERMANECE IMÓVEL, DESAMPARADO. DANTE VOLTA CONTRA ELE SUA VIOLÊNCIA.) Desapareça de minha frente! (O VULTO EMITE UM GEMIDO CHOROSO E ESTENDE A MÃO EM DIREÇÃO A DANTE COMO SE PEDISSE.) Esse um tem coragem, implora! Tem fome? Tem frio? Me assalte! Toma de mim o que precisa E vá embora! Mas não me peça! Não quer? O que mora em suas almas além do medo e covardia? Prá onde lhes leva seu sempre igual dia a dia, (viver de restos, implorar sobras?) Prá onde essa abjeta e lenta agonia Exilou o fogo humano Expulsou a rebeldia? Quem te ensinou tal resignação? Onde aprendeu tanto pasmo? Quem te conduziu a esse mar-marasmo Onde se afoga sem um grito? (VULTO INICIA CHORO. DANTE É TOMADO DE IRA.) Não chores! Teu choro me renova a ira E me retira o resto de complacência Me rompe o laço que me prende à consciência E pede a meu braço Que abrevie tua agonia E, com rápida e caridosa ferida, Te dê morte mais digna do que os dias Que tiveste em vida! VERGÍLIO Dante! DANTE Cala! VERGÍLIO É um homem. 28 DANTE Não mais. Algum dia, talvez, tenha sido. Hoje é só um arremedo. (LIBERTA-O) Vá! (VULTO SE DESLOCA LENTAMENTE) Lá vai um homem caminhando livre Em sua prisão de fome, frio e medo. Que espécie de gente é nossa espécie? Escreve sobre isso um poema inútil, Vergílio. E depois se encante inutilmente Com a beleza sem utilidade de seus versos. (CANSADO) Vá embora, Vergílio. (VERGÍLIO NÃO SE MOVE) Vá embora! VERGÍLIO Por que tudo isso? Porque me trouxe? Porque agora, pela mesma obscura razão de minha vinda, Me manda embora? DANTE Vá! (VERGÍLIO COMEÇA A SAIR) Espera! (VERGÍLIO PÁRA. DANTE SE APROXIMA DE VERGÍLIO QUE O ESPERA TENSO. INESPERADAMENTE O ABRAÇA COM FORÇA. VERGÍLIO APENAS DEIXA-SE ABRAÇAR SEM REAÇÃO, DANTE SE SEPARA.) Já fomos amigos um dia. VERGÍLIO Há mais de vinte anos atrás. DANTE Às vezes me assaltam lembranças, imagens, Frases, fatos, passagens...(SORRI CALMO) Vá embora. VERGÍLIO Meninos armados com pedras e fúria, Era o que éramos Maré revolta de cabeças e braços tomando as ruas, lembra? (DISPONDO-SE A SAIR) Que caminho tomo para voltar? DANTE Todos grandiloquentes: falavam aos gritos, amavam-se escandalosamente. Detestavam soldados. 29 Éramos todos meninos...(INDICA CAMINHO) Vá em direção... VERGÍLIO (CORTANDO) Eu era o mais velho. Soldados... tira, milico, samango, guanapo! (RIEM) Meninos! Gritavam "organização" e agiam na mais absoluta desordem. Na batalhas de rua partiam dispostos a beber cerveja no crânio dos inimigos, mas só conseguiam rir e vaiar quando os soldados caiam dos cavalos. (DECIDIDO A IR EMBORA) Eu já vou. Cuide-se bem, Dante! DANTE Modestos, queriam fazer o mundo de novo construir com as mãos a nova utopia. Era divertido exercer a liberdade... Até o dia em que a briga Transformou-se em guerra e você fugiu. VERGÍLIO (QUE SAÍA, VOLTA) Não fugi. Apenas não quis seguir. DANTE (SARCÁSTICO) Foi apagar sua alma, Estancar seu ódio, Domesticar seus modos. VERGÍLIO Fui escrever! DANTE Esconder a pele atrás de versos, Poupá-la das feridas Na escuridão de um quarto, Longe da luz cegante E da fúria cega que palpitava fora, nas ruas; Longe da guerra que você chamava com seus versos. VERGÍLIO Nunca chamei guerra. DANTE "Versos como vozes voem longe levados pelo vento, Como sementes caiam e brotem em corações férteis. Versos como aço cortem 30 Versos como vozes gritem!" São seus. VERGÍLIO Não lembro. DANTE Você nos soprou o hálito quente e bom da luta. Nos ensinou... VERGÍLIO Não ensinei nada. DANTE Mas eu aprendi com você. Por que fugiu como quem se assusta depois de invocar o demônio? VERGÍLIO Não fugi! Não me assustei! DANTE Pior? Perdeu, vendeu sua alma? (VERGÍLIO AFRONTA DANTE, MAS SUA AÇÃO É CONTIDA PELA VIOLÊNCIA DAS PALAVRAS DO OUTRO.) O que leva um homem a trocar a construção do mundo Pela feitura de palavras ocas em folhas de papel? Trocar a vida que pulsa no mundo por uma suave poesia? (RI) Escrever poesia enquanto o fogo irrompe As feras rugem e o aço tine! Olhe em redor, pequena figura. (VERGÍLIO O OLHA COM RAIVA) Decadência, escombros, corrupção Em cada alma um verme roedor Mastiga o coração. E a nossa alma imortal agoniza E brada, num fio de voz, Adeus, Nação! VERGÍLIO Eu sei! Há vinte anos começamos uma caminhada Para, vinte anos depois, Chegar no absolutamente nada! 31 DANTE Eu continuo a andar! Não concluí a caminhada. Lembra Jaques? E Selma? Marisa? Tonhão? Hideko, Arcari, Olga, Taques?... VERGÍLIO Lembro. Estão todos mortos. DANTE Não se esconderam dentro de casa. Foram até o fim na palavra empenhada. VERGÍLIO Em palavras claras: O que você quer de mim? DANTE Alguma espécie de justiça. VERGÍLIO Está louco! Depois de vinte anos... Nada disso tem sentido! O mundo perdeu o sentido. Esta noite não tem sentido. Que é que estamos fazendo aqui? (ENTRA BEATRIZ) Que esta louca faz aqui? BEATRIZ Eu estava em meu barco. VERGÍLIO De onde surgiu este barco? Que lógica tem tudo isso? Onde estamos? (UMA MULHER CARREGANDO UMA VELA DE PROMESSA ACESA ATRAVESSA A CENA AJOELHADA) DANTE (CONFUSO) Eu não sei. (DURANTE A FALA SEGUINTE CRUZAM A CENA, ALHEIOS AOS TRÊS, UM ALEIJADO SE ARRASTANDO EM MULETAS, UMA VELHA PORTANDO UM ÍCONE DE NOSSA SRA. PORTANDO BORDÕES) BEATRIZ APARECIDA, CAMPONESES MEDIEVAIS Eu digo onde estamos. Um animal, ereto como homem, Um homem com pés de animal, Fera com expressão humana, 32 Pelos nas faces como animal, Andar e voz como de gente, Mas mandíbulas e dentes de animal, Lábios e língua ternos, de gente, Mãos e violência selvagens. Arranhou-me o corpo como bicho, Me possuiu, entrou em mim. Me encheu de gozo como bicho e como gente. Um sátiro. Reinou sobre mim, Riu e se arrojou do barco ao rio. Então entendi e voltei para contar. Sei o que somos e onde estamos. Somos imagens de sonho, Figuras num pesadelo de Dante. (FIGURAS DESAPARECEM. BEATRIZ ESTENDE UM PANO NO CHÃO COMO SE COBRISSE ALGUÉM QUE DORME. DEBRUÇA-SE E INICIA UMA CANÇÃO DE NINAR. PAUSA.) VERGÍLIO Que é isso? DANTE Está louca. BEATRIZ Dante agora dorme em seu amargo exílio. Coberto de suor revolve-se na cama preso do sono, do sonho e do delírio. Dante sonha conosco. DANTE Que Dante? BEATRIZ Dante Alighieri. O ano é de mil e trezentos. Nós somos imagens do sonho que vai inspirá-lo a escrever as misérias do Inferno, da Divina Comédia. (COMEÇA A RIR. SEM TRANSIÇÃO, CHORA.) DANTE Louca! 33 BEATRIZ Ah, meu Deus! O que nos espera se Dante continua a sonhar?! Talvez melhor fosse que acordasse. E junto com este inferno e com seu sonho, nós nos dissolvessemos. (AS IMAGENS RETOMAM O PALCO. HOMENS PORTAM FOICES E FORCADOS. UM HOMEM EMPUNHA UM ESTANDARTE ROMANO; UMA MULHER COM UM MACACO PENDURADO AO SEIO; MULHER SEMINUA DEBATE-SE SEGURA POR UM SÁTIRO. O CLIMA É CAÓTICO, A MÚSICA ALTA. BEATRIZ REZA.) VERGÍLIO Se não é verdadeira, é a melhor explicação para toda essa loucura. Se somos um sonho de Dante não sei. Mas isto é o inferno. DANTE (LUTANDO, EMBORA PERPLEXO, CONTRA AS IMAGENS, TENTA SOBREPOR-SE A ELAS E AO BARULHO) Se isto é o inferno não sou alma maldita A cumprir pela eternidade a mesma condenação. Antes sou e serei o demônio Que dará sentido ao sofrimento humano. Mas se isto é sonho de Dante E nós apenas imagens, Terá ele sua noite mais tormentosa Porque sonha com homens! Noite plena de luta, morte e sanguinolência Porque sonha com homens! Revolve-te entre lençóis brancos, Alighieri, Suando frio, pleno de medo e calafrios Porque sonhas com homens! Homem é o que luta, Alighieri, Mesmo condenado ao inferno Mesmo sendo figura de sonho, Mesmo andando sobre a terra. Homem é o que aplaina, Vergílio, Dá sentido ao caos, Não o que se resigna como você, Nem se deixa enlouquecer. 34 Homem é o que inventa o fogo, funde o ferro, Doma a natureza, esculpe, dá forma, Nasce gritando, Faz sua história a ferro, Grava em bronze sua trajetória, Desafia o infinito Se revolta até o último gesto E blasfema até o último grito! 9- A MORTE INICIAL (DANTE DORME. UM SILÊNCIO PROFUNDO INDICA UM CLIMA TENSO. O POVO, À ESPREITA, SEMI-ESCONDIDO, OBSERVA.) ESPÍRITO Este é o momento que melhor e mais me lembro / Inda era membro, era parte de um corpo vivo. / Senti a noite operar brutal mudança / Sua substância se tornar algo impreciso. Estranho silêncio, espesso, sem vento / Sem movimento, som, estalo, sem vida / Morto momento, um prenúncio estranho / Uma carta, um arcano, uma escrita não lida. Sei agora o que antes eu não pressentia / Calmaria traz sempre represada fúria. BEATRIZ Ai! Silêncio desesperado como um grito Sem som num sonho de um sono maldito! (DESESPERADA) Arfa! Gritem! Andem! Saltem! Barulho, ruído mexam-se, façam alarido, um pouco de vida! VERGÍLIO Se acalme! BEATRIZ Se agitem! Quebrem o silêncio com risos, gemidos! Troe, estronde, ecoe voz, Rompa o silêncio! Senhor, Tende piedade de nós! 35 VERGÍLIO (SACUDINDO-A) Calma! BEATRIZ (LÚCIDA E CALMA) Louco! Conheço essa noite sem brisa, Essa luz sem brilho, Esse silêncio morto. Olhe a lua vermelha, sanguínea. É um aviso. Esta noite a terra vai se sacudir E, após contrações, Seu ventre vai se abrir E dar à noite Os mortos saídos das sepulturas. E eles sentarão à cabeceira das mesas, Subirão aos púlpitos e aos tronos E dali darão ordens aos vivos. Vai embora, Vergílio. VERGÍLIO No escuro não saberei o caminho. BEATRIZ De manhã será tarde demais. (CARINHOSA BEIJA A FRONTE DE DANTE QUE DORME.) Dorme. Repousa belo Como um recém-nascido, Como fruto colhido, maduro. Se eu pudesse trazê-lo em meu ventre, Fazê-lo nascer Dar-lhe meu leite... (TIRA O PUNHAL DA CINTURA DE DANTE) Ajude-me, Vergílio. VERGÍLIO Que vai fazer? BEATRIZ Sozinha não posso. Ordene que o mate Ou me infunda coragem. 36 VERGÍLIO Está louca? BEATRIZ Dorme nele o que dorme na noite: a fúria! Empurre minha mão, Vergílio. VERGÍLIO Não! (TOMA-LHE O PUNHAL. BEATRIZ NÃO REAGE.) BEATRIZ Você então, cumpra! VERGÍLIO Assassinato? BEATRIZ Justiça! Por mais que me doa Em nome dos que morreram antes E dos que morrerão amanhã pela mão de Dante Rápido, não pense! VERGÍLIO Não posso! BEATRIZ No entanto, deve! MULHER Faça! Livrai-nos dele, Do seu punhal, Do mal, do medo diário de sua voz, Da violência que voa sobre nossas cabeças. Fácil! Um golpe certeiro (APONTA O PESCOÇO) Que rompa a represa da vida. HOMEM A melhor medida É um golpe seco sob o braço Em busca do coração. OUTRO Não mate. Amarre E o dê a nós. MULHER Paus nas mãos! OUTRO Que o fogo o consuma! Que ele morra de vez! 37 BEATRIZ Cobras! Corvos! Carneiros! É o que são vocês conforme a ocasião. Pedi um gesto ligeiro De uma mão dura E de um sereno coração Que desse a Dante morte e paz Quase indolor. Não carnificina nem tortura! Nem o desaguar de vossa loucura. HOMEM Dêem-nos Dante! (TURBA SE APROXIMA ÁVIDA, EM GRITARIA CONFUSA. DANTE LEVANTA-SE. A TURBA GRITA E SE AFASTA ASSUSTADA.) DANTE Eu vos serei dado! (A VERGÍLIO) O punhal! Para que eles cortem E comam minha carne Se conseguirem arrancá-lo de minha mão. VERGÍLIO Não! DANTE Não peço uma segunda vez. VERGÍLIO Se pedisse, pela segunda vez, diria não! DANTE Se tiver que tomá-lo, tomarei sua vida junto. VERGÍLIO Se eu não tomar a sua primeiro. (A TURVA SE APROXIMA VIVAMENTE INTERESSADA.) Não permiti sua morte Não permitirei a de nenhum deles. (A TURBA OVACIONA COM GRITOS E PALMAS.) DANTE Mortes são diferentes. Morte que dou é com regra. 38 VERGÍLIO Não. DANTE Minha ação não é cega, Escolho. O olho vê e mede. A mão desce fria, brutal, mas lógica. VERGÍLIO Loucura! DANTE A deles: violência sem freio, Sem padrão, O linchamento, o incêndio, Ação insana! Há que se domar a fera humana! VERGÍLIO Dome sua fera! DANTE Está domada. Ameaço, firo, dou morte, grito. E com isso moldo homens Como o escultor com martelo e cinzel Molda o granito. (DANTE ARREBATA O PUNHAL DE VERGÍLIO. TURBA CORRE APAVORADA. DANTE AVANÇA CONTRA VERGÍLIO. BEATRIZ SE INTERPÕE.) BEATRIZ Não, Dante! DANTE Sai! BEATRIZ Como sempre não sei porque mas é preciso que ele viva. VERGÍLIO (SARCÁSTICO) Sus! Rápido! Mire o peito! Risque o ar a mão armada Alcance meu peito E está feito! 39 BEATRIZ (ENFURECIDA, Á VERGÍLIO) Cala! (A DANTE) Pare, Dante! Amanse, aquiete suas águas Reflua ao fundo o que surgiu à tona Ao fundo da alma o ódio Que no peito flutua. Inverta a direção do rio. VERGÍLIO Desta vez não haverá surpresa. Estou à espera. Antes de seu punhal desferir contra, Afronta responderei com afronta A fera rugirá com a fera! BEATRIZ (DESESPERADA) Não! DANTE (IRÔNICO) O velho Vergílio de novo? VERGÍLIO Não, é um Vergílio novo Que custou a entender Que guerrear não é questão de escolher. Inimigo há, guerra há E guerra havendo Não existe abrigo! DANTE Descoberta tardia, amigo! VERGÍLIO Nada é tarde se estamos vivos! E estando vivo o sangue flui E bate com violência em meu pulso E me leva ao topo da mais alta vertigem E de lá, cego, com irado impulso, Eu mergulho e grito: Ao golpe, contragolpe! Ao corte, o talho! À fúria, contrafúria! DANTE A queda! 40 VERGÍLIO A morte! DANTE (TOMADO DE FÚRIA) Rasga, quebra, rompa, entorte!!! (OS DOIS HOMENS CHEGARAM AO PAROXISMO. BEATRIZ GRITA MAIS ALTO COM FÚRIA ANIMAL) BEATRIZ Cala!!! (À DANTE, DOMINADORA) Basta! (DANTE COM ESFORÇO DOMINA-SE. A VERGÍLIO, AUTORITÁRIA) Vire-se e sai! DANTE Não vacile, não fale, não volte! BEATRIZ (À VERGÍLIO) Vá! (VERGÍLIO VIRA-SE E LENTAMENTE SAI. DANTE VOLTA-SE E VAI EM DIREÇÃO A VERGÍLIO. BEATRIZ TENTA IMPEDI-LO. DANTE A EMPURRA. ELA CAI. A TURBA GRITA E CORRE ATRÁS DE DANTE. BEATRIZ FICA SOZINHA.) Agora nada mais tem sentido. (A TURBA URRA QUANDO VÊ DANTE DESFERIR UMA PUNHALADA. O GOLPE SÓ É ENTREVISTO PELO PÚBLICO CUJA VISÃO É IMPEDIDA PELA TURBA.) 10 - UM RIO NÃO VOLTA ESPÍRITO O punhal. O punhal num vôo impreciso Ganhou altura como parte do braço Como ave de aço pousada na mão de Dante Não obstante a ferrugem, Refletiu a pouca luz da lua como um olho. Como um olho de ave mediu o espaço Entre a própria garra de aço E o ser vivo abaixo. Como ser vivo esperou, Escolheu momento preciso, 41 Desceu, desfechou, mergulhou Numa trajetória geométrica Que seria até estética Se não me trouxesse tanta dor. Na passagem, o punhal rasgou-me a mão, decepou-me um dedo, Separou meus braços - instintiva defesa E o aço visou sua presa: O coração. E no caminho do mergulho mais fundo A violência do golpe lacerou-me o osso do peito, Rompeu nervo, cortou músculo, Rebentou artéria. E aterrorizou meus olhos o inesperado, A dor, o desespero Do princípio do fim. O POVO ABRE ESPAÇO PARA DANTE QUE VOLTA. VERGÍLIO CAMBALEIA TAMBÉM DE VOLTA. VERGÍLIO CAI. TURBA SE FECHA EM VOLTA DELE.) HOMEM Direto no coração! MULHER Você viu a ferida? HOMEM 2 De que vale o aço sem a precisão do braço? HOMEM 1 E o braço sem a habilidade da mão? MULHER E a mão sem o olho que vê e calcula? OUTRO Tudo isso de que vale sem bravura? HOMEM Não obstante, onde ela perdura se não num homem como Dante? VERGÍLIO (ERGUENDO-SE) Dante. 42 (TURBA ABRE ESPAÇO) MULHER Está vivo! BEATRIZ (SE APROXIMA DE DANTE, OLHA-O COM CARINHO) É só um morto que caminha. Maldito o momento presente Maldita a hora que se aproxima. Que você fez, Dante? (GEME) DANTE Fiz o que devia ser feito E se dor e sombra me comprimem o peito E o sangue bate nas veias De forma bruta É porque o coração reluta E relembra o tempo antigo Em que mais que homem ele foi amigo E se a mente grita: "A sentença é justa!" O coração, com grito igual, refuta. Mas fiz o que devia ser feito! E se meu ser se desagrada E minhas entranhas se indispõem A mente fria contrapõe e brada: Pouco importa! E ordena de novo ao braço: Desce e corta! Faz o que deve ser feito! (A TURBA VIBRA COM O DISCURSO DE DANTE) BEATRIZ (FURIOSA, À TURBA) Carneiros criam garras e pombas cospem veneno! Abutres! (À DANTE) Com essa morte, morre parte de ti. DANTE Morre minha parte mais fraca A que vacila, a que é presa ao passado. 43 VERGÍLIO Agora os demônios estão desacorrentados E logo vão matar a sua última utopia: Sua crença de que a violência possui geometria e não explodirá além de suas linhas. O que se avizinha... DANTE (CORTANDO) Sei o que se avizinha! Multidões desses miseráveis Tomarão as ruas e pisotearão os jardins E estarão certos! Farão das bibliotecas abrigo E queimarão livros para aquecer o frio E estarão certos! Odiarão nossas leis, nossa arte, nossa justiça A que nunca tiveram acesso E estarão certos! Porque toda nossa civilização, Toda sua poesia, Vergílio, Toda nossa Ciência, Arte, Filosofia Não lhes deu uma grama a mais de gordura ao corpo Um dia a mais de esperança à alma. Bem-vindo o fogo que calcina nosso fracasso! VERGÍLIO E você vai portar esse fogo? Ridículo Prometeu às avessas, Que pensa em alastrar o fogo E depois dominar sua fúria! Essa gente... DANTE (CORTANDO) Eu hei de conduzir! VERGÍLIO Toda fúria insana, Reparai bem, Com certeza É fúria humana. DANTE Cala! 44 VERGÍLIO Louco que quer dar ordens ao vento Que pensa orquestrar os raios Em parar o movimento do tufão. Pequeno homem que, com um punhal Grita ameaças aos céus E, na chuva, berra ordens á tempestade! DANTE Puto! (DANTE DESFERE OUTRA PUNHALADA EM VIRGÍLIO. BEATRIZ GEME. TURBA URRA E APLAUDE. ENQUANTO DANTE RETROCEDE PERPLEXO, VERGÍLIO CAMBALEIA TENTANDO FIRMAR-SE.) ESPÍRITO (COMO UM MÉDICO QUE DESCREVE UMA AUTÓPSIA) O segundo golpe da lâmina alcançou-me logo abaixo da omoplata e resvalou na primeira costela, abrindo um sulco de aproximadamente dois centímetros de profundidade por dez centímetros de extensão, secionando os músculos peitorais até à altura da mama esquerda. Após, a lâmina referida afundou-se entre a quarta e quinta costela perfurando o pulmão. Não houve grande sangramento no corpo já escasso de sangue. Tampouco houve grande abalo no homem já escasso de vida. (DANTE SENTA-SE OLHANDO PERPLEXO O PRÓPRIO BRAÇO) 11 - A MORTE FINAL BEATRIZ (COM COMPAIXÃO) Dante! (LEVANTA-SE E APROXIMA-SE) DANTE (SENTADO IMÓVEL) Por favor, fique quieta, Beatriz! BEATRIZ Por que ferir um morto? DANTE Fique distante de mim, Beatriz! 45 BEATRIZ (MATERNAL) Vou te ensinar o que você já esqueceu. DANTE Por favor, não se aproxime! Dentro há a noite Dentro da noite há a tempestade Que desaba Águas que afogam homens Ventos que derrubam casas Raios rasgam o tecido escuro da noite Por momentos. É isso o que tenho por dentro. (À BEATRIZ QUE SE APROXIMA, IMPLORA) Fique onde está, Beatriz. BEATRIZ (ALHEIA, EMOCIONADA) Eu tive um sonho esta noite. DANTE Por dentro há desordem e descontrole. BEATRIZ (LENTAMENTE SE APROXIMANDO) Eu estava no meio da noite No meio da mata No meio do rio. DANTE Uma coisa sem nome Ruge por dentro, Beatriz. (CHAMA) Vergílio. BEATRIZ O ventre inchado novamente, Dos peitos jorrava leite doce. DANTE Descanse braço, aquiete mão, Amanse, animal sem nome! BEATRIZ (FELIZ,CHORA E RI) Eu paria, nas águas mornas do rio, Aves com penugem de seda, Onças com pelame de veludo 46 Paria peixes com escamas de prata E crianças com pele de pêssego. DANTE Parada, Beatriz! BEATRIZ (CONTINUANDO A SE APROXIMAR) E anões espertos e gigantes fortíssimos. E tudo era tão riso Que ao ver meu inesgotável ventre Parindo vida Temi perder o juízo. DANTE (ATERRORIZADO, LUTANDO CONTRA SI) Não se mova, Dante! BEATRIZ E eu vi que tudo aquilo era bom. E era vivo. Eu era o princípio. (INESPERADAMENTE DANTE A APUNHALA. O ROSTO DE DANTE NÃO TEM EXPRESSÃO. TALVEZ REVELE PERPLEXIDADE. BEATRIZ TAMBÉM NÃO GEME. APENAS SE IMOBILIZA. DANTE TENTA, A CUSTO, CONTER O PRÓPRIO BRAÇO. NÃO CONSEGUE E APUNHALA NOVAMENTE BEATRIZ. APÓS UM MOMENTO, BEATRIZ CAI. A TURBA GRITA E FAZ ALGAZARRA. DANTE, SILENCIOSO E SEM EXPRESSÃO DESFERE PUNHALADAS NO MEIO DO POVO QUE GRITA E CORRE. DANTE ARFA CANSADO. NO CHÃO JAZEM OUTROS CORPOS FERIDOS POR DANTE. PERPLEXO, OLHA VERGÍLIO QUE AINDA PERMANECE DE PÉ.) DANTE Vergílio! Eu não quis... VERGÍLIO Agora entendo. Pobre e maldito Dante! DANTE O que tomou conta de mim? Esta mão não é minha! O que dentro de mim gera tal descompasso? Quem contra Beatriz E contra minha vontade Guiou meu braço? 47 VERGÍLIO A fera! DANTE Que fúria é essa, Vergílio, Que me descontrola? E, eu sendo forte, Mais forte ainda Sobre mim impera? VERGÍLIO É a mesma fera Que trago acorrentada na alma E quem me vê, vê apenas minha calma. Há vinte anos cultivávamos O mesmo ódio bruto À brutalidade humana. DANTE Ódio justo! VERGÍLIO É certo. DANTE E então! Alivia o tormento - Beatriz! Que me toma. Como o que agora fiz Ao passado se soma? E à essa dor que me sobe E minha voz não doma? Ai!, Beatriz! VERGÍLIO O punhal está vivo! DANTE Clareia! Eu não entendo O que eu fazia, o que hei de fazer, o que fiz? Não sei mais! Apenas sei que Beatriz está morta E eu não matei Beatriz! VERGÍLIO Anos atrás eu sonhei com a sua certeza: Construir de novo o mundo. E para maior clareza Pensei colocar a certeza 48 No fio de uma espada E sonhei com as cabeças decepadas De todos putos da terra. E quanto mais eu sonhava Com essa justiça final Mais trivial o ato de retalhar homens Se apresentava. E me vi exercer com prazer esse ofício De caçador, juiz e executor. Foi quando ouvi rosnar dentro de mim Um lobo enlouquecido E minha frágil aparência humana Tornou-se um ventre intumescido. E tive medo da fera que, de mim, Eu mesmo começava a parir. DANTE (COM RAIVA) Foi aí que você fugiu, com certeza! VERGÍLIO Fugi? Há vinte anos a fera Uiva dentro de mim. E a custo a mantenho presa. O que doma tua mão O que te mantém cativo O que em ti impera É a mesma fera. Dante, o punhal está vivo! (INESPERADAMENTE, COMO PUXASSE DANTE, O PUNHAL RISCA O AR TENTANDO ATINGIR VERGÍLIO. DANTE, À CUSTO, CONSEGUE CONTÊ-LO.) DANTE Deus! VERGÍLIO Ou o demônio se fundiu ao aço E do punhal guia o teu passo, Dirige tua mão, É teu senhor. O punhal é tua extensão! 49 DANTE Não! VERGÍLIO E contra a tua vontade corta Corta o ar, corta o cão, o inocente O criminoso, sem distinção o punhal corta! (DANTE LUTA CONTRA O MOVIMENTO DO SEU BRAÇO QUE PORTA O PUNHAL) DANTE Pára, maldito! VERGÍLIO A fera dentro de ti urra e salta Sobre a presa, a sua alma, E destrói toda sua certeza E joga no chão sua utopia Que a violência possui geometria E se mantém numa prevista direção! DANTE Não! (COM IMENSO E DECIDIDO ESFORÇO DANTE CONSEGUE CONTER O MOVIMENTO DE SEU BRAÇO) Minha alma ainda está comigo E Dante ainda é dono de sua vontade! (IMEDIATAMENTE DANTE GEME DE DOR E SEU BRAÇO SE CONTORCE. CONSEGUE IMOBILIZAR O BRAÇO.) VERGÍLIO Você foi longe demais, Dante. DANTE E como não ir longe, como não ir fundo Como não cortar profundo Tantos putos da terra! Como não fazer guerra, Santa guerra aos que, nas noites, Assassinam crianças que dormem Condenam, sem indulto, À miséria, à imbecilidade, ao inferno, A resignação, os adultos E sugam o leite das mães 50 E o sangue e sonhos dos filhos. Olhe ao seu redor, Vergílio! O que me diz? VERGÍLIO Olhe ao seu redor, Dante, E vê os mortos E vê Beatriz! DANTE Ai! VERGÍLIO E, no entanto, Dante, Há vinte anos luto contra minha fera, Luto com palavras e extraio uma poesia Para não ceder à tentação De ir contra minha vontade E seguir tua mesma via. Às vezes, eu te invejo, Invejo sua fé cega, Tão cega que a própria crença nega. A minha crença, Dante, Minha utopia, É olhar essa terra devastada, Esse caos E sonhar com sua geometria, E chorar meu verso, E olhar a decadência e a sangria E gritar o inverso E no meio do inferno reafirmar: Viva a poesia! (SOB O OLHAR DESESPERADO DE DANTE O PUNHAL QUE PARECIA DOMADO FAZ VÁRIOS MOVIMENTOS LARGOS E VIOLENTOS E FAZ DANTE SE APROXIMAR DE VERGÍLIO. DANTE, DESESPERADO TENTA CONTÊ-LO, EM VÃO.) DANTE Nãaaaoooooo!!!!! 51 (O PUNHAL DESFERE VÁRIOS GOLPES EM VERGÍLIO QUE, FINALMENTE, "CAI COMO UM CORPO MORTO CAI". ESPÍRITO E nada mais tendo a dizer Aqui me calo. (LENTAMENTE SAI) 12 - EPÍLOGO DANTE Volte ao meu domínio, meu braço! Feliz Vergílio que é morto, Feliz Beatriz! Mortos não carregam mortos Que eu vivo devo carregar. Ai, Beatriz! (O PUNHAL SE MOVIMENTA) Maldito! Meu braço já não é meu Mas minha vontade ainda impera E minha fúria Vai lutar contra minha fera Porque o homem é Deus de si próprio Um Deus que erra e espera! (CONSEGUE DOMINAR O PUNHAL) Como eu espero Que o fio do punhal se gaste Que sua lâmina quebre E que mais algumas mortes lhe baste E lhe sacie a fúria. Volte ao meu domínio, braço meu! (O BRAÇO DE DANTE SE CONTORCE. DANTE GEME.) O homem é Deus de si próprio! (À TURBA QUE PERPLEXA OBSERVA) Levem Beatriz! (DOIS HOMENS A LEVAM) Feliz de quem dorme, Vergílio! 52 (CARREGA VERGÍLIO NOS BRAÇOS E SAI. A TURBA, ALHEIA, INCONSCIENTE, GRITA E OVACIONA DANTE E O ACOMPANHA, EM TRIUNFO, CANTANDO.) TURBA Dante mostra o seu punhal Metal cromado de aço...(etc.) FIM Ribeirão Pires, 26 de agosto de 1991 Qualquer utilização deste texto, parcial ou total, deve ter a autorização do autor: Luis Alberto de Abreu Rua Rui Barbosa, 33 09400-000 – Ribeirão Pires – SP Telefone: (0xx11) 48287230 e-mail: [email protected] 53