Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Vila Velha - ES – 22 a 24/05/2014
O “iPhone” como objeto da sociedade de consumo
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Liliane Aparecida Pellegrini PEREIRA2
Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, SP
RESUMO
O presente artigo explora os conceitos de Baudrillard sobre o sistema dos objetos,
sociedade de consumo e publicidade em relação ao objeto “iPhone”. Apresenta uma
breve análise das peças publicitárias do lançamento do produto com intuito de
compreender seu discurso conotativo no contexto da contemporaneidade, estabelecendo
relações com conceitos de Bauman e Harvey. Foi empregada a pesquisa bibliográfica
como metodologia de análise.
PALAVRAS-CHAVE: comunicação móvel; telefonia celular; sistema dos objetos;
sociedade de consumo; publicidade.
Introdução
Nos últimos anos, o uso de gadgets aumentou vertiginosamente entre a
população mundial, impulsionado especialmente pelo consumo de dispositivos móveis
com conexão de internet, pequenos e portáteis, que rapidamente se tornaram
indispensáveis para a vida cotidiana de milhares de pessoas. Apesar de estar fazendo
parte do dia a dia em uma escala mundial e por um número considerável de usuários
atualmente, a telefonia celular foi desenvolvida para fins comerciais nos anos 1970 e
era, inicialmente, restrita a poucos usuários devido à escassez de estações de
transmissão. Os telefones, além de caros, eram grandes e pesados. A previsão de
consumidores potenciais limitava-se a um público modesto, composto por médicos,
vendedores liberais e indivíduos com difícil acesso a um telefone fixo.
Por volta do ano 2000, os aparelhos celulares ficaram menores e com preço bem
mais acessível. A partir de então, e sempre com a demanda em disparada, pais
começaram a comprar telefones celulares para seus filhos, bem como para uso próprio.
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Trabalho apresentado no DT 6 – Interfaces Comunicacionais do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na
Região Sudeste, realizado de 22 a 24 de maio de 2014.
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Mestranda do Curso de Comunicação Social da Faculdade Cásper Líbero, email: [email protected]
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De repente, tornou-se possível chamar qualquer um de qualquer lugar. Como resultado,
emergiu de forma imprevisível e certamente não planejado, um padrão inteiramente
novo de comportamento social. (Graedel, 2010).
Baumam (2001) define o dispositivo móvel como o objeto cultural da era da
instantaneidade, pois permite aos indivíduos contemporâneos estar em constante contato
uns com os outros. Além de efetuar chamadas telefônicas, os celulares integraram novas
funcionalidades, como mensagem de texto, câmera, música e internet. Mas foi o
lançamento comercial dos telefones com sistema operacional – denominados
smartphones – que, ao ampliarem o uso de funcionalidades para organização pessoal e
entretenimento, conquistaram ainda mais consumidores.
O primeiro modelo de smartphone a conquistar o mercado foi o “iPhone”,
fabricado pela empresa americana Apple em 2007. O dispositivo integra funções de
reprodução audiovisual, câmera digital, internet, mensagens de texto (SMS), visual
voice mail e suporte a vídeochamadas (FaceTime). A interação com o usuário passa a
ocorrer através de uma tela sensível ao toque e por um teclado virtual.
A revista semanal de notícias “Time”, publicada nos Estados Unidos, nomeou o
“iPhone” como a invenção do ano. No discurso de lançamento do produto, a Apple
anunciou que havia reinventado o telefone. Posteriormente, essa frase também foi
adotada como slogan em campanhas publicitárias da empresa. Sete anos depois, em
setembro de 2013, os modelos 5S e 5C atingem recordes de vendas: mais de nove
milhões de aparelhos vendidos em apenas três dias após o lançamento, de acordo com o
site da empresa.
Assim como outros gadgets, o “iPhone” é objeto de desejo e exerce a função de
leal escudeiro em todas as atividades diárias. No entanto, o “iPhone” enquanto marca
cativa um público fiel de consumidores, bem como uma legião de admiradores que
mesmo sem poder real de compra, ratifica a sua áurea de objeto de desejo.
Para entender melhor a relação do usuário com o “iPhone”, enquanto símbolo,
esse artigo explora os conceitos de Baudrillard sobre a sociedade de consumo, o sistema
de objetos e a publicidade em relação ao objeto escolhido já mencionado. A escolha do
“iPhone” se justifica por ter sido a primeira marca a conquistar o mercado, além de ser
referência ao manter a fidelidade de seus consumidores e por ser considerada como
símbolo de status social.
Telefone celular – objeto da contemporaneidade
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Quando a tecnologia da telefonia celular foi descoberta, a suposição de um
público consumidor inicialmente se restringia aos grupos sem possibilidade de acesso a
um telefone fixo. Atualmente no Brasil, o número de habilitações de celulares supera o
de habitantes. Em algum momento e por alguma razão, essa necessidade, prevista como
restrita, extrapolou para o conjunto da sociedade a ponto de o celular tornar-se um dos
artefatos símbolos da contemporaneidade. Para melhor compreensão desse fenômeno,
este artigo explora a concepção de modernidade em Harvey e Bauman, especialmente
quanto às dimensões de espaço e tempo.
Harvey (1992) concebe a contemporaneidade como pós-modernidade. Ou seja,
uma condição histórica gerada por uma crise de superacumulação iniciada nos anos
1960 e que teve como resultado mudanças profundas nas artes, na arquitetura, na
economia e, principalmente, nas formas de organização social e cultural. Além disso,
considera que a sociedade capitalista provocou mudanças na representação espacial e
temporal, utilizando a expressão “compressão do espaço-tempo” para indicar a
aceleração do ritmo da vida e a superação das barreiras espaciais, como se observa,
À medida que o espaço parece encolher numa “aldeia global” de
telecomunicações e numa “espaçonave terra” de interdependências
ecológicas e econômicas, e que os horizontes temporais se reduzem a um
ponto em que só existe o presente, temos de aprender a lidar com um
avassalador sentido de compressão dos nossos mundos espacial e
temporal (HARVEY, 1992, p. 219).
Outras características da pós-modernidade, decorrentes da compressão do
espaço-tempo são a efemeridade e a fragmentação, bem como o domínio das imagens
sobre as narrativas. A volatilidade exige capacidade de adaptação com rapidez ou o
planejamento deliberado da mudança pela construção contínua de novos sistemas de
signos e imagens.
Bauman (2001) prefere outro termo: a modernidade líquida, indicando que essa
ainda retém as suas características, mas em outro estado. Para o autor, as inúmeras
esferas da sociedade contemporânea (vida pública, vida privada, relacionamentos
humanos) sofreram uma série de transformações que resultaram por esgarçar o tecido
social. Tais alterações implicaram na perda de solidez das instituições sociais, tornandoas amorfas como os líquidos.
Na época pré-moderna, espaço e o tempo eram inseparáveis da experiência
vivida. A modernidade tem início quando o espaço e o tempo são separados da prática
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da vida e entre si e podem ser teorizados como categorias distintas. A modernidade
líquida implica em fluidez, velocidade e dispersão. Tais características podem
desvalorizar a ideia de espaço, no sentido de espaço físico de convivência para trabalho
e reunião. Dessa forma, o poder na modernidade líquida está relacionado com a
capacidade de se liquefazer, ou seja, se tornou extraterritorial e não mais limitado e nem
desacelerado pela resistência do espaço.
O telefone celular constituiu um “golpe de misericórdia" (BAUMAN, 2001) na
dependência em relação ao espaço e na percepção da diferença entre próximo e distante.
Hoje, não é mais necessário acessar um ponto telefônico para que uma ordem seja dada
e cumprida. Também não importa mais onde está quem dá essa ordem.
Breve histórico da telefonia celular e do “iPhone”
A tecnologia da comunicação móvel era conhecida desde o começo do século
XX. Em 1947, no laboratório Bell, foi desenvolvido um sistema telefônico de alta
capacidade interligado por diversas antenas. Cada uma delas era considerada uma
célula, sendo essa a origem do nome celular.
O primeiro telefone celular foi desenvolvido pela empresa sueca Ericsson em
1956 para ser instalado em porta malas de carros. O aparelho denominado como
“Ericsson MTA” (Mobile Telephony A) pesava cerca de 40 quilos. Nos Estados Unidos,
a empresa Motorola desenvolveu o modelo “Motorola Dynatac 8000X” e no dia 3 de
abril de 1973, em Nova York, foi realizada a primeira ligação de um aparelho celular. O
aparelho tinha 25 cm de comprimento e 7 cm de largura, além de pesar cerca de um
quilo.
Em 1979, a telefonia celular entrou em operação comercial no Japão e na Suécia,
iniciando nos Estados Unidos em 1983, uma década após a realização da primeira
chamada em Nova York (Sanches, 2014).
Inicialmente, a função dos aparelhos celulares era similar a de um telefone fixo:
receber e realizar chamadas, com a diferença de realizá-las em qualquer lugar, ou seja, a
função de mobilidade foi acrescida às demais. Posteriormente, a troca de mensagens de
texto (SMS)3 ampliou os comportamentos sociais relacionados ao uso do dispositivo. O
primeiro SMS foi enviado em 1993 por uma operadora da Finlândia. Nos dias atuais, os
modelos de telefones celulares conhecidos como smartphones se distinguem dos
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Short Message Service (SMS) é um serviço disponível em telefones celulares digitais que permite o
envio de mensagens curtas entre estes equipamentos e outros dispositivos.
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anteriores em virtude de possuírem um sistema operacional, transformando-os em um
computador de bolso.
O modelo “iPhone” foi o primeiro celular do tipo smartphone a conquistar o
mercado, mas não foi o modelo pioneiro. A fabricante IBM, concorrente da Apple,
lançou em 1992 o modelo Simon, considerado como o primeiro smartphone. O aparelho
reunia funções de fax, troca de mensagens, telefone e tocador de música. Além disso,
também contava com uma tela sensível ao toque, câmera e aplicativos. No entanto, o
aparelho foi um fracasso de vendas e não obteve a adesão de consumidores.
O “iPhone” foi anunciado em 9 de janeiro de 2007 por Steve Jobs, fundador da
empresa Apple no evento MacWorld na cidade norte-americana de São Francisco. O
discurso de apresentação gerou grande expectativa no mercado ao propor a ideia de um
produto inovador, que reunia em um único aparelho – um “iPod” (aparelho de
reprodução multimídia da Apple) – um telefone e um dispositivo de internet (Jobs,
2013).
O lançamento oficial ocorreu somente em 29 de junho do mesmo ano em
território americano, enquanto centenas de clientes aguardavam o início das vendas em
filas nas portas das lojas. Abaixo, a tabela lista os modelos (desde o primeiro até o mais
recente, lançado em 2013) e características, bem como o seu ano de lançamento:
Modelos, características e ano de lançamento do “iPhone”
iPhone
2G
Produção
3G
3GS
4S
Descontinuada
Memória
4, 8 e
(GB)
16
8 e 16
5
5S
5C
Atual
8, 16, e
8, 16 e
16 , 32
16 , 32
16 , 32
16 e
32
32
e 64
e 64
e 64
32
2012
2013
2013
Bateria
Ano
4
Lítio, não-removível
2007
2008
2009
2010
2011
O produto foi desenvolvido em parceria com a empresa de telecomunicações
AT&T. A partir de outubro de 2011, com o lançamento do modelo 4S, o telefone
também passou a contar com um dispositivo de assistente de voz, denominado Siri. Em
2013, a Apple também lançou uma versão de baixo custo, classificada como 5C.
A sociedade de consumo e o sistema dos objetos
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Para melhor compreensão do “iPhone” enquanto objeto de desejo da
contemporaneidade, este artigo explora a seguir os conceitos de Baudrillard de sistema
de objetos e sociedade de consumo.
Segundo Baudrillard (2005), a sociedade de consumo é caracterizada por uma
espécie de abundância criada pela multiplicação dos objetos, de forma que o homem já
não se encontra rodeado por outros homens, mas cercado pela profusão de objetos. A
própria existência humana é regulada segundo o ritmo e em conformidade com a
sucessão permanente dos objetos. Em civilizações anteriores, os objetos sobreviviam às
gerações humanas. No entanto, apesar de testemunhar o seu nascimento e ocaso, o
homem encontra-se unido ao objeto de forma visceral, extraindo de tal conluio uma
densidade que pode ser considerada como uma presença. O objeto não é somente
antropomórfico, mas também uma espécie de escravo psicológico e confidente.
(Baudrillard, 1993).
No caso dos gadgets, especialmente os telefones celulares, a relação
antropomórfica pode ser evidenciada pelas capas utilizadas não somente como proteção,
mas também como uma espécie de vestuário ou forma de personalização do aparelho,
por meio de fotos ou ilustrações que combinam com o estilo do proprietário ou o
identificam.
O autor destaca ainda que objeto algum é oferecido ao consumo em um único
tipo. A sociedade industrial oferece a priori, como graça coletiva e como signo de
liberdade formal, a disponibilidade de escolha dos objetos mesmo diante da
impossibilidade material de comprá-los.
O consumidor, por sua vez, ultrapassa a estrita necessidade de compra de um
objeto em função de seu valor de uso e a liberdade de escolha o insere na ordem
econômica. Entretanto, a escolha, experimentada como liberdade, não é percebida como
imposição do sistema cultural e econômico vigente na sociedade global.
A liberdade da sociedade de consumo significa que o cidadão é livre para
possuir e projetar seus desejos nos bens de consumo, adotando padrões irracionais e
regressivos para adaptar-se a uma ordem social de produção.
Sendo assim, a compra é uma troca coercitiva, uma forma de confronto entre
dois sistemas: indivíduo e produtos. O primeiro é móvel, incoerente, repleto de
necessidades e conflitos, além de negatividade. O segundo é codificado, classificado,
descontínuo, relativamente coerente e positivo.
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No estágio de produção artesanal, os objetos refletem as necessidades
contingentes, ocorrendo uma adaptação entre os dois sistemas. No entanto, não existe
progresso técnico objetivo. Na era industrial, a coerência dos objetos fabricados provém
da ordem técnica e das estruturas econômicas, impondo o seu poder a ponto de modelar
uma civilização.
O consumo é uma modalidade característica da sociedade industrial,
constituindo um modo ativo de relação com os objetos e o mundo. É uma atividade
sistemática e de resposta global no qual se funda o sistema cultural vigente,
fundamentado na relação personalizada com os objetos por meio do processo de
compra. Os desejos e relações são abstraídos e materializados em signos para serem
comprados e consumidos.
Os objetos não têm mais valor próprio, e sim, uma função universal de signos.
No entanto, com a conversão do objeto em signo, as relações humanas passam
obrigatoriamente a serem mediadas pelos objetos e seu signo substitutivo, denominado
álibi.
Desta forma, de acordo com Baudrillard (2005), o processo de consumo pode ser
analisado por dois aspectos. O primeiro como um processo de significação e de
comunicação, permeado por códigos e signos. Já o segundo como um processo de
classificação e de diferenciação social, em que o ato de consumir corresponde a um
determinado estatuto social (standing).
Na sociedade de consumo, o critério de determinação do ser social tende a se
tornar mais simples e coincidir com o código de estatuto social. O standing é um código
moral sancionado pelo grupo, sendo qualquer infração considerada como culposa. Além
disso, é um código totalitário e mesmo que alguém em caráter privado consiga se evadir
de segui-lo, não consegue fazê-lo no sentido coletivo. Até mesmo as condutas
refratárias são determinadas em função da conformidade social ao código.
Ao mesmo tempo em que a sociedade de consumo precisa dos seus objetos para
existir, também sente, sobretudo, a necessidade de destruí-los. Sendo assim, a
abundância está associada ao desperdício, pois é no excedente e supérfluo que o
indivíduo e a sociedade se sentem existir e viver. O ato de consumir pode ser definido
como um estágio intermediário entre a produção e destruição, combinando a estratégia
do desejo, predominante no domínio da venda, com a da frustração ocasionada por
práticas deliberadas de obsolescência programada.
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Para atender os imperativos da produção em contínua expansão, pode-se limitar
voluntariamente a duração de um objeto ou torná-lo fora de uso, agindo sobre:
• sua função – quando se rende a um outro objeto tecnologicamente superior
(ideia de progresso);
• sua qualidade – o objeto se quebra ou se gasta após algum tempo;
• sua apresentação –ainda que guarde sua qualidade funcional, o objeto cessa de
agradar em virtude de ter sido posto voluntariamente fora da moda.
Desde o primeiro modelo “iPhone”, anualmente são lançados novos modelos
com ampliação das funções existentes e capacidade de memória. Cada alteração é
veiculada nos discursos publicitários como inovação e superação, incitando os
consumidores a adquirirem o novo modelo para ter acesso às novas tecnologias. A
fabricação dos modelos antigos é descontinuada, dificultando a manutenção e
contribuindo para aquisição de novos aparelhos. A partir dessas considerações, supõe-se
que a obsolescência programada é parte da estratégia comercial do “iPhone”.
É o pensamento mágico que governa o consumo. Uma mentalidade primitiva,
baseada na crença da onipotência dos pensamentos e fomentada pela acumulação dos
signos da felicidade da era da opulência. A felicidade constitui a referência absoluta
para a sociedade de consumo, como um equivalente da salvação no âmbito religioso.
No entanto, neste caso, a felicidade não corresponde à inclinação do indivíduo por
realizar-se a si mesmo, mas ao grau de conforto e intensificação do bem-estar.
A propensão para a felicidade inerente à natureza humana ratifica o discurso das
necessidades, que por sua vez é solidário à mística da igualdade. Perante as
necessidades e o princípio de satisfação, todos os homens são iguais.
E é a publicidade o campo em que a ideia de felicidade e de igualdade se
realizam plenamente. A felicidade é aqui destacada permanentemente como poder de
compra, enquanto a igualdade existe em função da própria mensagem publicitária, pois
em uma sociedade em que tudo se encontra a venda, é o único produto ofertado a todos
sem distinção (Baudrillard, 2005).
A publicidade
A mensagem publicitária é o discurso conotativo sobre os objetos, revelando o
que é consumido através deles. Os signos publicitários não explicam os objetos com
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relação a uma práxis. De fato, são literalmente uma legenda que não remete ao mundo
real e tampouco o substitui completamente. Tem como função específica a leitura, que
se organiza em um sistema de satisfação, no qual atua a determinação de ausência do
real: a frustração. A imagem cria um vazio e por isso tem poder de evocação. É um
subterfúgio que mascara ao mesmo tempo em que revela. Sua função é mostrar e
decepcionar. Assim, a publicidade não oferece nem uma satisfação alucinatória e nem
uma mediação prática para o mundo. (Baudrillard, 1993).
Cada imagem publicitária, ao cumprir sua função de legenda, dissipa a angústia
da polissemia do mundo. Para ser mais legível, se faz pobre e expedita, e ainda que
suscetível a muitas interpretações, o seu sentido é restrito pelo discurso e remete a
outras imagens.
Enquanto discurso desprovido de essência, se torna consumível como objeto
cultural e não se submete à lógica do enunciado e da prova, mas à instância da fábula e
da adesão. O indivíduo resiste ao imperativo publicitário, porém é cada vez mais
sensível ao seu indicativo, ou seja, à sua própria existência enquanto produto de
consumo e manifestação de uma cultura.
Assim, a função explícita da publicidade não é a persuasão em si, mas a
concessão de um álibi. Da mesma forma que o sonho exerce uma função reguladora de
fixar e desviar um potencial imaginário, o objeto pode ser um álibi das significações
latentes.
O consumo precede ou ultrapassa os motivos racionais, exercendo papel similar
ao de um Papai Noel, que perpetua a relação de gratificação com os pais, presente na
primeira infância. O indivíduo, sensível à temática latente de proteção e gratificação, se
submete à lógica da crença e da regressão. É a solicitude que o conquista. A publicidade
acrescenta calor aos objetos, de forma que o indivíduo se sente amado e salvo por eles.
Uma das primeiras reivindicações do homem para ter acesso ao bem-estar é a de
que alguém se preocupe com seus desejos, formulando-os e imaginando-os diante de
seus próprios olhos. A publicidade desempenha essa função por meio da litania do
objeto, visando demonstrar que a sociedade adapta o indivíduo aos seus desejos,
tornando razoável a ele integrar-se a essa sociedade (Baudrillard, 1993).
A publicidade do “iPhone”
Para Baudrillard (1993), um objeto nunca é consumido por seu valor de uso.
Sendo assim, perde a ligação com uma função ou necessidade definida para, no campo
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da conotação, corresponder à outra coisa e se converter em um signo. Portanto,
enquanto discurso conotativo, a publicidade revela o que é consumido através dos
objetos. Com intuito de tentar desvendar algumas características do signo “iPhone”, o
artigo examina o discurso das mensagens publicitárias veiculadas no seu lançamento de
forma não exaustiva, buscando correlação com os conceitos teóricos de Baudrillard.
Na época do lançamento do produto, os slogans veiculados foram: "The internet
in your pocket" (tradução livre da autora para “ A internet no seu bolso”), “The life in
your pocket” (tradução livre para: “ A vida no seu bolso”), "Touching is believing"
(tradução livre para: “Tocar é acreditar”), "Hello", “iPhone Apple reinvents the phone"
(tradução livre para: “ iPhone da Apple reinventou o telefone”) e "Say Hello to iPhone"
(tradução livre para: “ Diga alô/olá ao iPhone”). Os slogans foram utilizados em
diferentes peças publicitárias e veículos, como anúncios impressos, internet e televisão.
As mensagens publicitárias ressaltam o produto como reinvenção do telefone.
Uma inovação para qual o consumidor é apresentado e convidado a saudar. Também
são destacadas as múltiplas funções utilitárias do aparelho e a sua mobilidade: “vida” e
“internet” que cabem dentro do bolso. Vida e internet são grandezas incomensuráveis,
mas que o consumidor pode levar consigo sem esforço a qualquer lugar. Outra
característica importante ressaltada é a tela touchscreeen, evocando o toque como
comprovação da realidade diante de algo tão surpreendente quanto mágico (tocar é
acreditar).
A peça publicitária impressa desse slogan (MICHÁN, 2014) evoca o afresco “A
criação de Adão” pintado por Michelangelo no teto da Capela Sistina. A cena representa
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um episódio do Livro do Gênesis no qual Deus cria o primeiro homem. Os dedos de
Adão e de Deus estão separados apenas por uma pequena distância. O consumidor seria
como Deus ao tocar a criatura “iPhone”? Ou seria o “iPhone” tão poderoso e mágico
que ao tocá-lo o consumidor ganharia a vida do Criador?
A legenda ou discurso conotativo das mensagens reforça a ideia de estabelecer
contato com algo novo, recém-criado, evocando atributos divinos: onipresença,
onisciência, poder e criatividade. O anúncio destaca o toque da ponta do dedo na tela,
remetendo à ideia de algo tão fantástico que até se duvida de sua existência real, mas
que se torna crível com o toque. Os atributos de “revolucionário” e “novo”
acompanham o “iPhone” desde a sua primeira edição, mas não corresponde aos fatos
históricos, uma vez que o modelo da fabricante IBM, concorrente da Apple, lançado em
1992 e batizado como Simon, já apresentava as características de um smartphone.
O primeiro comercial na televisão foi veiculado no intervalo da cerimônia do
Oscar 2007, evento de premiação da indústria cinematográfica americana. O comercial
apresenta uma coletânea de cenas de filmes em que atores atendem ao telefone e dizem
“alô”. Diferentes modelos de aparelhos telefônicos são retratados em mais de trinta
cenas ao som da música "Inside my head" do artista islandês Eberg (Macnamara, 2014).
A sequência de imagens de atores de diversas gerações tem início com um modelo de
telefone analógico preto da década de 1950 e termina com o modelo do “iPhone”. Os
atores na grande maioria das cenas atendem a um aparelho telefônico fixo e dizem
“alô”. O número extenso de cenas em diferentes épocas demonstra que o objeto e o ato
de telefonar estão incorporados ao comportamento social.
Estrelas de cinema personalizam o glamour, a positividade e a festa presente nas
mensagens publicitárias. São objetos de desejos e modelos de vida. A sequência rápida
de cenas termina com um close no “iPhone”. Se o consumidor atender o aparelho, ao
dizer “alô” será como as estrelas de cinema? O discurso conotativo da peça publicitária
do aparelho eleva o consumidor à categoria de estrela?
Conclusão
A combinação entre comunicação e mobilidade resultou no desenvolvimento de
novos padrões de interação social e na disseminação do uso do telefone celular pela
maior parte da população mundial. A característica estrutural de compressão do
espaço/tempo da era contemporânea contribuiu para a popularidade desse aparelho
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móvel, uma vez que o dispositivo apresenta atributos de instantaneidade – o de ser
acessível em qualquer lugar e a qualquer tempo.
Na sociedade de consumo, os desejos do ser humano são abstraídos e
materializados em signos para serem comprados e consumidos. Ao adquirir um telefone
celular, o ser humano visa suprir seu desejo de instantaneidade?
O lançamento comercial do “iPhone” promoveu o consumo dos smartphones –,
uma combinação de celular e computador de bolso –, com funcionalidades pouco
divulgadas até então. Além de obter sucesso comercial, o produto “iPhone” tornou-se
objeto de desejo, rodeado por atributos de inovação.
Desde o seu lançamento, seguidores fiéis aguardam em filas para comprar os
produtos, renovados a cada ano por uma funcionalidade que representa a tecnologia de
ponta, vendida como o ápice da evolução até o momento. No entanto, até que ponto
trata-se de inovação e melhoria contínua do gadget? Até que ponto essa estratégia
atende um círculo vicioso de obsolescência programada, baseada na ideia de progresso e
nova apresentação (tendências de moda)?
As mensagens publicitárias do “iPhone”, enquanto discurso conotativo sobre o
objeto, podem revelar o que é consumido através dele. Na época do seu lançamento, a
publicidade do gadget evocava o pensamento mágico de onipotência e fomentava os
signos da felicidade da sociedade de consumo. O primeiro anúncio televisivo do
produto foi uma “constelação de estrelas”, com atores consagrados do cinema
americano no intervalo da cerimônia de premiação do Oscar. A opulência e glamour do
anúncio são compatíveis com determinado estatuto social (standing) de diferenciação
social, conferindo ao aparelho atributos simbólicos de status na sociedade.
Ao adquirir um “iPhone”, o consumidor busca satisfazer desejos de onipotência
e de adquirir diferenciação social como um ser inovador - criador e à frente de seu
tempo? Ao adquirir um “iPhone”, o indivíduo consome a vontade de ser Deus?
REFERÊNCIAS
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BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1993.
______. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2005.
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HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 5ª edição, 1992.
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SANCHES,
Romanessa.
O primeiro
celular
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Disponível
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‹http://www.techtudo.com.br/curiosidades/noticia/2011/07/o-primeiro-celular-da-historia.html›
Acesso em 02 jan. 2014.
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