GESTÃO SOCIAL E ESFERA PÚBLICA: NOÇÕES E APROPRIAÇÕES
Autor 1: Mariana Pereira Chaves Pimentel
Instituição: Mestranda pela Universidade Federal de Lavras
Autor 2: Thiago Duarte Pimentel
Instituição: Professor do Depto de Turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO: Partindo das observações apontadas no estudo de Pimentel e Pimentel (2010), que
identificam a categoria esfera como uma divergência entre os autores que se dedicam ao
campo de estudos da gestão social, este ensaio teórico tem o objetivo de discutir a relação
entre gestão social e esfera pública, tentando identificar de que modo a noção de esfera
pública é apropriada no campo da gestão social. Para realizar tal intento, buscou-se
inicialmente recapitular a noção de esfera pública utilizando-se principalmente de autores
como Habermas (2003) e Arendt (2007[1958]), entre outros, a fim de compreender como
surgiu tal conceito, qual o seu sentido e de que forma ele se modificou. Na sequência, faz-se
uma retrospectiva acerca de alguns estudos dos principais autores que tratam da gestão social
atualmente – França Filho (2008), Tenório (2008) e Fischer (006) – buscando abordar como a
questão da esfera pública é analisada por cada um deles, a fim de cotejá-las com àquela noção
balizadora previamente apresentada por Habermas (2003) e Arendt (2007[1958]). Como
contribuições parciais deste trabalho, apontamos que a transformação de uma esfera pública
política em uma esfera pública “domestica” ou cooptada pelas questões da reprodutibilidade
da vida parece-nos incorporada e reproduzida no campo da gestão social, que se esforça em
pensar a provisão de mecanismos para a reprodução material em uma forma de economia
alternativa, e menos se dedica à inserção política dos atores (marginalizados) nas outras
formas de economia. Assim, concluímos que a gestão social, apesar de rotineiramente ser
enquadrada no âmbito da esfera pública no sentido grego, está mais próxima do que Arendt
(2007[1958]) chama de esfera social.
Palavras-chave: Gestão Social, esfera pública
ABSTRACT: Starting from the comments made in the study by Pimentel and Pimentel
(2010), which identify the category sphere as discordance among authors who engage in field
studies of social management, this theoretical essay aims to discuss the relationship between
social management and public sphere, trying to identify how the notion of public sphere is
appropriate in the field of social management. To accomplish this purpose, initially sought to
recapitulate the notion of public sphere is used by authors such as Habermas (2003) and
Arendt (2007 [1958]), and others, to understand how this concept came out, what its sense
and how it has changed. Further, it is a retrospective study about some of the main authors
who deal with social management today - França Filho (2008), Tenorio (2008) and Fischer
(2006) - trying to address the issue of the public sphere as analyzed for each one of them, so,
comparing them with marker prior to that notion by Habermas (2003) and Arendt (2007
[1958]). As partial contributions of this work, we point out that the transformation of the
political public sphere into a public sphere "domestic" or coopted by the issues of
reproducibility of life, it seems embedded and reproduced in social management, which
strives to consider the provision of mechanisms for reproduction material in a form of
alternative economy and less engaged in the political integration of the actors (marginalized)
in other forms of economy. Thus, we conclude that the social management, despite routinely
being framed within the public sphere in the greek sense, is closer than Arendt (2007 [1958])
calls the social sphere.
Key-words: Social management, public sphere
1. INTRODUÇÃO
Partindo das observações apontadas no estudo de Pimentel e Pimentel (2010) acerca
da sistematização do conhecimento no campo da gestão social, os autores observaram um
conjunto de categorias que perpassam a discussão deste campo de conhecimento apontando,
ao final convergências e divergências dos diferentes autores que abordam o tema.
Especificamente, foram apontadas como questões não resolvidas a discussão sobre as esfera
de atuação da gestão social e diferentes posicionamento sobre a categoria autonomia e poder.
Visando aprofundar a discussão, este ensaio teórico tem o objetivo de discutir a relação entre
gestão social e esfera pública, tentando identificar a noção de esfera pública e de que modo
ela é apropriada no campo da gestão social, por parte dos autores que abordam esta temática.
Para realizar tal intento, buscou-se inicialmente recapitular a noção de esfera pública
desde a cidade-estado grega até a modernidade, utilizando-se principalmente de autores como
Habermas (2003) e Arendt (2007[1958]), entre outros, a fim de compreender como surgiu tal
conceito, qual o seu sentido, de que forma ele se modificou e como se apresenta atualmente.
Na sequencia, faz-se uma retrospectiva acerca dos principais estudos dos principais autores do
que tratam da gestão social atualmente – França Filho (2008), Tenório (2008) e Fischer (006)
– e o modo como eles posicionam suas idéias sobre o tema, buscando, especificamente,
abordar com ao questão da esfera pública é analisada por cada um deles, a fim de cotejá-las
com àquela noção balizadora previamente apresentada por Habermas (2003) e Arendt
(2007[1958]).
Por fim, num terceiro momento, é apresentado as reflexões de como a noção de esfera
pública é incorporada no campo da gestão social por cada um dos principais autores
abordados, e segundo suas perspectivas de análise, tentando evidenciar os limites e
contribuições de cada uma delas. Como contribuições parciais deste trabalho para levantar
esta discussão, apontamos que a noção de esfera pública, como originalmente abordada, tem
se modificado no sentido de se tornar cada vez mais “domesticada” ou cooptada pelas
questões da reprodutibilidade da vida social e menos envolvidas pela dimensão política, como
originalmente concebida. Esse esvaziamento da dimensão política parece ter sido incorporado
e reproduzido no campo da gestão social que foca mais a questão de prover mecanismos para
a reprodução material em uma forma de economia alternativa e menos dedicados a inserção
política dos atores (marginalizados) nas outras formas de economia. Assim, concluímos que a
gestão social, apesar de rotineiramente ser enquadrada no âmbito da esfera pública no sentido
grego, está mais próxima do que Arendt (2007[1958]) chama de esfera social – inclusive
devido às próprias condições de nosso tempo – o que nos levar a questionar sobre a
possibilidade de se falar em esfera pública, no sentido grego e a nos levar a refletir quais as
possibilidades reais da “esfera social” da contemporaneidade pensando no sentido da
utopística (WALLERSTEIN, 2003).
2. A CONSTITUIÇÃO DA ESFERA PÚBLICA
Os múltiplos usos dos termos “público” e “esfera pública” remetem ao
questionamento de suas origens e dos significados que lhes são associados. Originalmente, a
idéia de “coisa pública” ou do que é público é creditada aos filósofos da Grécia Antiga, onde
Platão se destaca como um dos pioneiros a registrar suas idéias sobre o assunto. Habermas
(2003), ao tratar historicamente da mudança estrutural por que vem passando a esfera pública
desde a polis grega até a sociedade moderna, analisa também historicamente as categorias
“público”, “privado” e “esfera pública” e considera que são chamados “públicos” certos
eventos acessíveis a qualquer um, o mesmo ocorre ao referir-se a locais públicos. Quando se
trata de “prédios públicos” o sentido não é de acesso livre, mas que tais prédios abrigam
instituições do Estado, e como tais, são públicos, pois fazem referência à coletividade. “O
Estado é o poder público” e deve este atributo ao intuito de promover o “bem público”, bens
comuns a todos os cidadãos (HABERMAS, 2003, p.14).
Habermas (2003) localiza espaço-temporalmente a constituição e emprego mais
freqüente da categoria “público” como referindo-se a uma opinião pública, ou seja, uma
esfera pública informada (ou indignada). Habermas identifica que em alemão, só no século
XVIII é formado o substantivo publicidade, em analogia a publicité e publicity, a partir do
adjetivo “público”.
Habermas (2003) parte do raciocínio de que se somente neste período (séc.XVIII) a
esfera pública exige seu nome, apenas então é que se constituiu, deste modo, ela pertence à
sociedade burguesa, que se estabelece na época como setor de troca de mercadorias e de um
trabalho social com leis próprias. No entanto, as palavras “público” e “privado” já eram
faladas antes, desde a Grécia antiga, transmitidas ao mundo moderno na sua versão romana.
Como aponta Habermas (2003, p.15):
Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da polis que é comum
aos cidadãos livres (koiné) é rigorosamente separada esfera do oikos,
que é particular a cada indivíduo (idia). A vida pública, bios politikos,
não é, no entanto, restrita a um local: o caráter público constitui-se na
conversação (lexis), que também pode assumir a forma de conselho e
de tribunal, bem como a de práxis comunitária (práxis), seja na guerra,
seja nos jogos guerreiros.
Como a ordenação política da polis obedece a uma economia escravagista em forma
patrimonial, a posição na polis baseia-se na posição do déspota doméstico. Sob o abrigo da
dominação do déspota se dá a reprodução da vida - o trabalho dos escravos, o serviço das
mulheres -, ou seja, é o espaço da necessidade e da sobrevivência. Em contraposição, tem
lugar a esfera pública como o espaço da liberdade, onde tudo é visível a todos. Nas palavras
de Habermas (2003, p.16):
Assim como nos limites do oikos a necessidade de subsistência e a
manutenção do exigido à vida são escondidos com pudor; a pólis
oferece campo livre para a distinção honorífica: ainda que os cidadãos
transitem como iguais entre iguais (homoioi), cada um procura, no
entanto, destacar-se (aristoiein).
Esse modelo ideológico de esfera pública grega partilha de autêntica força normativa,
tendo se mantido ao longo dos séculos, nos termos da história das idéias (HABERMAS,
2003). Segundo Habermas, ao longo de toda a Idade Média foram transmitidas as categorias
de público e de privado nas definições do Direito Romano: a esfera pública como res publica.
Tais categorias passam a ter aplicação jurídica com o surgimento do Estado moderno e de
uma sociedade civil separada dele, o que para Habermas evidencia “a institucionalização
jurídica, em sentido específico, de uma esfera pública burguesa” (HABERMAS, p.17)
Para Hannah Arendt (2007[1958]), existe uma diferença considerável entre a polis dos
gregos como espaço de afirmação da política, através da liberdade e igualdade dos cidadãos, e
a sociedade dos romanos como um espaço de dominação do poder imperial sobre os cidadãos.
Esta diferença, segunda ela, se deve a uma tradução incorreta da expressão animal político,
formulada por Aristóteles, como animal social. O termo social significava para Aristóteles,
assim como para Platão, apenas a vida em comum das espécies animais, contudo, a política
para esses autores, era uma característica essencialmente humana. Mediante a política, o
homem poderia escapar à organização instintiva e biológica da casa e da família (ARENDT,
2007[1958]).
Durante a Idade Média, com o surgimento e as sucessivas renovações das monarquias,
a coisa pública, no sentido grego, foi obscurecida pelo poder real, tendo permanecida em
pequenas vilas, pontos de passagem e em espaços considerados zonas “livres” para a
utilização coletiva pela indulgência real ou por serem zonas de penumbra/sombra com as de
outras monarquias, não havendo interesse na dominação e regulação daqueles espaços (ex.:
pequenas vilas e comunidades nos rincões, onde a distância e ausência de bens materiais a
serem explorados não compensava o exercício do poder real).
Após muitos séculos de obscurecência, é com o renascimento e no período que se
segue que a filosofia, resgatando os princípios clássicos do pensamento, impulsionou de
maneira claramente pragmática a ação dos indivíduos, contribuindo para a teorização,
justificação, legitimação e formação dos Estados Nacionais, onde a questão da coisa pública é
retomada com um novo vigor e atribuída à responsabilidade dessa nova instituição social,
teoricamente única a ser capaz de dar conta de sua regulação.
No Estado moderno, a representatividade pública dos senhores feudais é reduzida, e
toma lugar a mediatização das autoridades estamentais. Surge a esfera do poder público.
Neste sentido, “público” torna-se sinônimo de estatal;
o atributo não se refere mais à “corte” representativa, como uma
pessoa investida de autoridade, mas antes ao funcionamento
regulamentado, de acordo com competências, de um aparelho munido
do monopólio da utilização legítima da força. O poderio senhorial
transforma-se em “polícia”, as pessoas privadas, submetidas a ela
enquanto destinatárias desse poder, constituem um público
(HABERMAS, 2003, p.32).
Junto com o moderno aparelho do Estado surgiu uma nova camada de “burgueses”,
que segundo Habermas (2003), assume uma posição central no “público”, pois seria um
contrapeso à autoridade. À medida que a troca de mercadorias rebenta com os limites da
economia doméstica, a esfera restrita da família se delimita perante a esfera da reprodução
social, ou seja, à luz da esfera pública. Ao elevar a reprodução da vida acima dos limites do
poder domestico privado, ela se torna algo de interesse público, e exige a crítica de um
público pensante.
Os “burgueses” são pessoas privadas, sendo assim, não “governam”. Suas
reivindicações não se dirigem contra a concentração do poder, mas ao princípio de dominação
vigente. A proposição de um novo princípio de controle, a esfera pública, baseada em
critérios como a “razão” e a “lei”, quer modificar a dominação enquanto tal, sem, contudo,
subtraí-la. Assim, para o autor, o processo de polarização entre Estado e sociedade se
mantém.
Habermas (2003) elabora um esquema de representação da estrutura da esfera pública
burguesa do século XVIII, como segue:
Esfera do Poder Público
Setor Privado
Sociedade civil
(setor da troca de
mercadorias e de
trabalho social
Esfera pública
Estado
(setor da “polícia”)
Esfera pública literária
(clubes, imprensa)
Espaço íntimo da
pequena família
(intelectualidade burguesa)
(mercado de
bens culturais)
Corte
(sociedade da
aristocracia da corte
Fonte: Habermas (2003, p. 45)
Para o autor, o setor público limitava-se ao poder público, onde ainda incluía-se a
corte. No setor privado insere-se a “esfera pública” propriamente dita, pois “é uma esfera
pública de pessoas privadas” (HABERMAS, 2003, p.46). Assim, dentro do setor privado
distingue-se uma esfera privada e uma esfera pública. A primeira seria composta pela
sociedade civil burguesa, o setor da troca de mercadorias e do trabalho social, a família
também se insere nesta esfera. A segunda provém da “literária”, pois intermedeia, através da
opinião pública, o Estado e as necessidades da sociedade.
O poder público concentrado nos Estados nacionais e territoriais eleva-se acima da
sociedade, orientando seu intercâmbio sem, contudo, tocar no caráter privado deste
intercâmbio. Como esfera privada, a sociedade só é colocada em questão quando as próprias
forças sociais conquistam competências de autoridade pública (HABERMAS, 2003).
Originariamente, a economia pertencia ao domínio do chefe da família e a política à
cidadania na polis. Quando a esfera privada da família ultrapassou os limites da casa,
transformou-se num “interesse coletivo”, e, por isso, precisa ser ampliado, induzido e
controlado publicamente, passou a ser controlado pelo Estado. Deste modo, define Habermas
(2003, p.42):
A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a
esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam
esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente
contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da
troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente
relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social.
A economia moderna, assim, reorienta as categorias de público e privado. Ela não se
orienta mais pelo oikos, pois no lugar da casa colocou-se o mercado. Esta situação, para a
autora, anula a dualidade clássica entre esfera pública e privada. Para Arendt (2007[1958],
p.48):
Hoje não nos ocorre, de pronto, esse aspecto de privação quando
empregamos a palavra “privatividade”; e isto, em parte, se deve ao
enorme enriquecimento da esfera privada através do moderno
individualismo. [...] O fato histórico decisivo é que a privatividade
moderna, em sua função mais relevante – proteger aquilo que é íntimo
– foi descoberta não como o oposto da esfera política, mas da esfera
social, com a qual, portanto, tem laços ainda mais estreitos e mais
autênticos.
Quando se constatam conflitos de interesses que se desencadeiam não apenas na esfera
privada, mas também em âmbito político, origina-se o intervencionismo estatal. A esta
ampliação do poder público a setores privados deve-se a substituição de poder público por
poder social. Tem-se a dialética: a socialização do Estado se impõe simultaneamente com a
estatização da sociedade, destruindo, deste modo, a base da esfera pública burguesa, a
separação entre Estado e sociedade. Assim, essa nova esfera social repolitizada
dissolve aquela parte específica do setor privado em que as pessoas
privadas reunidas num público regulam entre si as questões gerais de
seu intercâmbio, ou seja, a esfera pública em sua configuração liberal.
A decomposição da esfera pública, que é demonstrada na alteração de
suas funções públicas, está fundada na mudança estrutural das
relações entre esfera pública e setor privado (HABERMAS, 2003, p.).
Dessa forma, somente quando novas funções são acrescidas ao Estado é que a barreira
entre ele e a sociedade começa a balançar. Ao lado de funções tradicionais como o poder de
polícia, a justiça e a cobrança de impostos, surgem agora funções de “estruturação”. No
transcorrer do século XX, são tarefas do Estado-social proteger, indenizar e compensar os
grupos mais fracos. Outras tarefas serão prevenir modificações da estrutura social, ou atenuálas, ou até mesmo dirigi-las (HABERMAS, 2003). O controle e equilíbrio dos ciclos
econômicos também se enquadram nas novas funções do Estado. Na base desta
multiplicidade de funções recém-acrescidas ao Estado-social está o entrecruzamento dos
diversos interesses privados coletivamente organizados, como as associações e os sindicatos.
Deste modo, instituições estatais e sociais se sintetizam em um único complexo de
funções que não é mais diferenciável (HABERMAS, 2003). Essa nova interdependência de
esferas expressa a ruptura do sistema clássico do Direito Privado. Os critérios clássicos do
Direito Privado tornam-se caducos, pois a administração pública se utiliza de seus meios, e a
relação contratual clássica de completa independência na definição contratual é limitada.
Surge uma nova esfera, com concentração de capital e intervencionismo.
É neste contexto que é superada a diferença entre a circulação de mercadorias e a
circulação do público. A comercialização da imprensa, instituição por excelência da esfera
pública, irá reestruturar e refuncionalizar a própria esfera pública (HABERMAS, 2003). A
imprensa, que já fora instituição de pessoas privadas enquanto público, tornou-se instituição
de determinados membros do público enquanto pessoas privadas, ou seja, receptora de
privilegiados interesses privados na esfera pública. Em outras palavras, à medida que a esfera
pública é tomada pela publicidade comercial, pessoas privadas passam a atuar enquanto
proprietários privados sobre pessoas privadas enquanto público.
Deste modo, considera Habermas (2003), opiniões não públicas funcionam em grande
número e “a” opinião pública é, de fato, uma ficção. Portanto, para o autor, apesar de ser
ainda um princípio organizacional de nosso ordenamento político, ao passo que a esfera
pública se amplia cada vez mais, a sua função perde força, pois seus fundamentos sociais se
diluem.
Arendt (2007[1958]), ao tratar da questão no período da modernidade, faz uma célere
crítica ao modo como esta esfera foi desenvolvida no século XX. Sua tese é a de que a esfera
pública estaria sendo progressivamente subordinada aos interesses privados dos indivíduos, e,
por isso, o agir comunicacional da esfera política aparece absorvido pelos interesses privados
da intimidade. Arendt (2007[1958]) elabora sua tese a partir de três conceitos fundamentais:
trabalho, produção e ação. O trabalho é necessário à sobrevivência fisiológica e efetiva-se na
atividade do animal laborans, que vive isolado dos outros seres humanos obedecendo aos
ditames biológicos da vida animal. Quanto à produção, é o estágio do homo faber, produtor de
objetos duráveis (técnicas), que partilha seu saber com os outros homens. Já a ação é a matriz
da vida em sociedade, pois os homens agem e interagem entre si no seio de uma vida política
em sociedade. Assim, para a autora, o trabalho (labor) e a produção (work) se enquadram no
domínio da esfera privada, enquanto a ação é exclusiva da esfera pública (política) e nunca é
equivalente a um trabalho necessário à sobrevivência, mas sim, é uma atividade
comunicacional mediada pela linguagem da pluralidade de opiniões no confronto político
(ARENDT, 2007[1958]).
Arendt (2007[1958]) constata que a contraposição da relação entre a esfera pública e a
esfera privada nas sociedades antiga e moderna deve-se a formação do “social”. Segundo
Antunes (s/d), Arendt denuncia a perda da distinção entre a polis (esfera pública) e o
oikos/idion (esfera privada), sendo a sociedade atual uma representante da extensão da esfera
privada doméstica ao espaço público da política.
A esfera social, para Arendt (2007[1958]), é o resultado de um hibridismo entre as
esferas privada e pública e se constitui uma característica específica da modernidade, que foi a
resolução e o empenho dos homens em se desfazerem do constrangimento que a dimensão da
reprodução biológica impõe a todos. Aguiar (2001) considera que o social retirou da esfera
política a dimensão de publicidade e da esfera privada a ocupação com a esfera das
necessidades (AGUIAR, 2004).
A busca por condições de abundância para a reprodução biológica fez com que o
labor, atividade na qual os homens produzem e reproduzem as condições de sobrevivência,
adquirisse grande status na vida social, e, por isso, é a atividade típica do social. Nas palavras
deste autor:
A política, reduzida a governo, passou a restringir em elaborar e
administrar estratégias para o livre desenvolvimento do progresso; o
trabalho como capacidade de oferecer objetos e artefatos que
tornassem o mundo um abrigo em relação à natureza transformou-se
em mera função [...] (AGUIAR, 2004, p.11).
Assim, esfera social se trata das atividades que aproximam o homem da sua dimensão
animal, empenhadas na manutenção da vida, biologicamente, banindo a dimensão da
autarquia humana. O surgimento de uma sociedade massificada indica que os vários grupos
sociais foram absorvidos por uma sociedade única, na qual a força de um único interesse
comum e de uma opinião pública unânime é intensificada: é a uniformização. Disso decorre
que, ao invés de ação, a sociedade espera de cada um de seus membros um certo tipo de
comportamento, normalizador, abolindo-se a ação espontânea ou a reação inusitada, é o
conformismo (ARENDT, 2007[1958]).
Para a autora, esta igualdade moderna difere-se da igualdade antiga, especialmente na
cidade-estado grega, pois, na polis, pertencer aos iguais (homoioi) era distinguir-se de todos
os outros, ou seja, a esfera pública era reservada à individualidade da inscrição do sujeito que
externa e realiza suas ações. Em benefício dessa possibilidade, cada um deles estava mais ou
menos disposto a compartilhar o ônus da jurisdição, da defesa e da administração públicas.
É possível, segundo Arendt (2007[1958]), identificar uma estreita conexão entre a
ascensão do social e a transformação do conceito de sociedade civil. De origem romana, entre
os contratualistas, indicava a condição política da fala, mas o conceito nas sociedades
modernas foi alterado. Deixou de significar o campo em que a força e a violência naturais
eram limitadas e superadas pela civilidade, e passou a traduzir o reino da sobrevivência.
Ainda hoje a sociedade civil está relacionada à legitimação e limitação do poder, e se expressa
na “opinião pública”. Contudo, ao considerarem-se as análises de Habermas quanto à
ficcionalidade desta opinião pública, percebe-se a clivagem entre poder e legitimação como
controle da política a partir dos interesses privados.
De modo semelhante, Aguiar (2004) aponta que outro conceito transformado foi o de
bem comum, estreitado com a “absolutização” do social. Hoje, está relacionado aos elementos
necessários ao bem-estar da população, passou a ser coisas, “vestuário”, “alimentação”, e não
o mundo comum.
Sendo assim, na sociedade moderna, o fato da dependência mútua em prol da
subsistência, e de nada mais, adquire importância pública, e as atividades que dizem respeito
à mera sobrevivência são admitidas em praça pública. O fato de ocorrer em público, e não
mais em particular, liberou esse processo de recorrência monótona do labor e transformou-o
rapidamente. Assim, a manutenção da vida não só aparece publicamente, como inclusive
poderia determinar a fisionomia do espaço público (ARENDT, 2007[1958]).
Tendo em vista, então, essas considerações sobre a origem, as características e
alterações na esfera pública, como podemos entendê-la no contexto atual, onde a crise do
Estado (de bem estar social, no caso dos países desenvolvidos) se coloca como mola mestra
de alterações da relação Estado-Sociedade? O que constitui a esfera pública contemporânea e
como ela pode ser associada a gestão social?
3. ESFERA PÚBLICA NA GESTÃO SOCIAL: COMO SE APRESENTA?
A gestão social é considerada por França Filho (2008) em dois níveis: (1) como uma
problemática da sociedade e (2) como uma modalidade específica de gestão. Quanto à
problemática da sociedade, o termo diz respeito à gestão das demandas e necessidades do
social, o social, neste sentido, sugere a idéia de política social, confundindo-se com a própria
idéia de gestão pública. Aqui, há sim uma aproximação teleológica da gestão – como se pode
pensar num raciocínio inicial de aproximação ao termo – voltada para um grupo social, mas,
ainda assim, essa finalidade está atrelada à vontade da maioria, essencialmente formada,
conduzida e centrada no interesse do que Habermas (1984) chama de esfera pública do Estado
democrático de direito. Ou seja, a finalidade deve ser coletiva ou societal (PAES DE PAULA,
2008), deve se sobrepor à individual.
Como uma modalidade específica de gestão – 2º nível da problemática – a gestão
social seria uma forma de subordinar as lógicas instrumentais a outras lógicas: sociais,
políticas, culturais ou ecológicas (FRANÇA FILHO, 2003). Dessa forma, o uso do termo
gestão social se constitui num recurso a uma tentativa de contrabalanceamento aos excessos
da lógica individualista pautada na racionalidade instrumental. Porém, não se busca apagar ou
substituir este enclave econômico tradicional (RAMOS, 1989), mas sim o reequilíbrio do
sistema. De fato, esta modalidade específica de gestão fundamenta-se em novas formas de
solidariedade, cujos fundamentos remetem a discussão dos bens públicos e das externalidades
decorrentes das ações individuais e organizacionais, que afetam a coletividade.
França Filho (2003) defende a gestão social como o modo de gestão próprio das
organizações da sociedade civil, da esfera pública não estatal, distinto tanto do modo de
gestão da iniciativa privada quanto do daquele utilizado pelo Estado, pois ambos se
fundamentam na racionalidade instrumental que norteia o cálculo utilitário das
consequências. Na gestão social há, de maneira diferente, o desenvolvimento de formas de
gestão que se fundamentam na racionalidade substantiva, onde os valores sociais, as formas
de solidariedade e espontaneidade, os laços sociais e a própria natureza da organização ou do
bem a ser gerido, bem com a sua escala de abrangência se colocam acima dos procedimentos
instrumentais de cálculo. Assim, os objetivos são, sobretudo, não econômicos, e estes
aparecem como um meio para realização dos fins sociais (políticos, culturais, ecológicos).
Outro autor contemporâneo de destaque no contexto brasileiro acerca do tema é
Tenório (2008), cuja preocupação central reside na construção de um pensamento próprio
sobre gestão social, que se fundamente essencialmente na noção de esfera pública e que possa
ser aplicado a qualquer tipo de organização e em qualquer contexto. Para tanto, o autor
recorre ao arcabouço teórico habermasiano, sobretudo da sua teoria comunicativa, para
fundamentar a questão da esfera pública da racionalidade comunicativa que lhe é subjacente.
Assim, o autor acrescentou à discussão do termo gestão social o conceito
habermasiano de cidadania deliberativa. Por outro lado, Tenório (1998) acrescenta às teorias
de Habermas para seu conceito de gestão social a noção de participação. Esta necessidade de
acréscimo da participação para o conceito refere-se à ênfase que se faz primordial quando se
deseja dizer que a gestão social deve ser praticada como um processo intersubjetivo,
dialógico, onde todos têm direito à fala sem coerção. E este processo deve ocorrer em um
determinado espaço social, na esfera pública.
Assim, Tenório (2008a, p.54) entende gestão social como o “processo gerencial
decisório deliberativo que procura atender às necessidades de uma dada sociedade, região,
território ou sistema social específico”.
Para Tenório (2008a), o conceito de gestão social tem sido objeto de estudo e prática
muito mais associado à gestão de políticas sociais, de organizações do terceiro setor, de
combate à pobreza e até ambiental, do que à discussão e possibilidade de uma gestão
democrática, participativa, quer na formulação de políticas públicas, quer naquelas relações
de caráter produtivo. Tentando especificar mais o conceito, Tenório (2008a, p. 39 – grifo
nosso) propõe que gestão social seja entendida como:
[um] processo gerencial dialógico onde a autoridade decisória é
compartilhada entre os participantes da ação (ação que possa ocorrer
em qualquer tipo de sistema social – público, privado ou de
organizações não-governamentais). O adjetivo social qualificando o
substantivo gestão será entendido como o espaço privilegiado de
relações sociais onde todos têm o direito a fala, sem nenhum tipo de
coação.
Para o autor todos são capazes de pensar sua experiência, ou seja, capazes de produzir
conhecimento, “[...] participar é repensar o seu saber em confronto com outros saberes.
Participar é fazer “com” e não “para”, [...] é uma prática social” (TENÓRIO, 2008, p.49).
Assim, a participação seria um processo constante de vir a ser, trata-se, em essência, de uma
conquista processual. A participação integra o cotidiano de todos os indivíduos já que
atuamos sob relações sociais.
Por isso, seria necessária a associação na busca por objetivos que dificilmente
atingiríamos individualmente. Para fazer jus à multiplicidade das formas de participação e
comunicação, esse autor utiliza o conceito de cidadania deliberativa, o qual considera “que a
legitimidade das decisões deve ter origem em processos de discussão, orientados pelos
princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem
comum.” (TENÓRIO, 2008a, p.41). A cidadania deliberativa, argumenta Tenório (2004), é
então, dependente da institucionalização de processos e pressupostos da comunicação, assim
como das relações entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas formadas
informalmente.
Já Fischer (2002) aborda o conceito de gestão social como gestão do desenvolvimento
social, pois para a autora se trata da transição entre modelos passados e novas formas
comprometidas com utopias de desenvolvimento local.
Ao discutirem o modo pelo qual se deve realizar este desenvolvimento, Gondim,
Fischer e Melo (2006) ressaltam a importância da articulação de lideranças e management,
eficácia, eficiência e efetividade social. A gestão social tratar-se-ia, então, de mediações
sociais realizadas por indivíduos (gestores) e suas organizações. Assim, o desafio que
demanda competência do gestor social é conciliar os interesses diversos (GONDIM;
FISCHER; MELO, 2006). Para as autoras, seja em microunidades organizacionais, seja de
organizações com alto grau de hibridização, múltiplas formas de poder são exercidas em
diferentes escalas, na complexa construção de programas e ações de desenvolvimento que
ocorrem em espaços territoriais e virtuais.
Em síntese, essas autoras entendem como sendo gestão social:
um ato relacional capaz de dirigir e regular processos por meio da
mobilização ampla de atores na tomada de decisão, que resulte em
parcerias intra e interorganizacionais, valorizando as estruturas
descentralizadas e participativas, tendo como norte o equilíbrio entre a
racionalidade instrumental e a racionalidade substantiva, para alcançar
enfim um bem coletivamente planejado, viável e sustentável a médio e
longo prazo (GONDIM; FISCHER; MELO, 2006, p.4).
Essa perspectiva é reforçada por Carvalho (2001, p.14) que define gestão social como
“a gestão das demandas e necessidades dos cidadãos”. Para ela a política social não é apenas
um canal dessas necessidades, mas respostas à elas, já que as políticas públicas são
concebidas pelo Estado, mas nascem na sociedade civil.
A autora considera que os movimentos sociais, novos atores que emergiram em
contrapartida ao enfraquecimento do protagonismo da classe trabalhadora frente à
transformação produtiva recente, deslocaram para a sociedade civil um papel central na
definição da agenda política dos Estados, alargando e revitalizando a esfera pública.
Consideradas as resistências e ambigüidades, ressalta Carvalho (2001), as
organizações do terceiro setor possuem características valorizadas pela gestão social, quais
sejam: (1) capacidade de articular múltiplas iniciativas; (2) capacidade de estabelecer parceria
com o Estado na gestão de políticas públicas; e (3) capacidade de estabelecer redes locais,
nacionais ou mundiais.
Assim, para Carvalho (2001), a gestão social deve ser estratégica no sentido de sua
operacionalização. Em concordância com a autora, Perret et al. (2009) e Dowbor (1999)
consideram que as parcerias, as redes e a descentralização são formas para operacionalizar a
gestão social. Para estes autores, as tendências recentes da gestão social, a partir da
descentralização política e a mudança de eixo de desenvolvimento para o local, forçam-nos a
pensar novas formas de organização social, de relação entre o político, o econômico e o
social, a desenvolver pesquisas combinando diversas disciplinas e a ouvir tanto atores estatais
como empresariais e comunitários.
Assim, realmente trata-se de um universo em construção. Além de uma área, composta
de setores como saúde, educação, habitação, etc., o social constitui uma dimensão de todas as
outras atividades, uma forma de fazer indústria, uma forma de pensar desenvolvimento
urbano, uma forma de tratar os rios, uma forma de organizar o comércio (DOWBOR, 1999).
Na tentativa de identificar pontos de encontro e desencontro conceituais entre os
teóricos da gestão social, Pimentel e Pimentel (2010) selecionaram nove categorias de análise,
objetivo, valor, racionalidade, protagonista, comunicação, processo decisório,
operacionalização, esfera e autonomia/poder. A partir da análise empreendida, os autores
sintetizam a discussão elencando sete princípios ou fundamentos teóricos da gestão social:
P1: A gestão social tem como objetivo o interesse coletivo de caráter
público; P2: A orientação de valor da gestão social é o interesse
público bem compreendido; P3: A gestão social deve subordinar a
lógica instrumental a um processo decisório deliberativo, pautando-se
na racionalidade substantiva; P4: A gestão social tem como
protagonista a sociedade civil organizada, mas envolve todos os atores
sociais, organizacionais e institucionais de um dado espaço público;
P5: A gestão social é um processo participativo, dialógico,
consensual; P6: A gestão social se materializa pela deliberação
coletiva alcançada pelo consenso possível gerado pela argumentação
livre; P7: As parcerias e redes intersetoriais, tanto práticas como de
conhecimentos, ao formarem uma esfera pública, são formas de
pensar e operacionalizar a gestão social. ()
As categorias de análise esfera e autonomia/poder apresentaram divergências
conceituais e por isso foram consideradas como limitações do campo. Com relação à esfera de
atuação da gestão social, para França Filho (2008) seria a esfera pública não estatal, mais
exatamente, a gestão social seria própria das organizações da sociedade civil. Para os demais
autores analisados, como Tenório (2008), entretanto, ela pode ocorrer em qualquer tipo de
sistema social, a depender do grau de participação, diálogo e deliberação envolvidos.
Outro ponto de divergência diz respeito ao consenso racional. Tenório considera que o
espaço da gestão social é o espaço das relações sociais onde todos têm direito à fala, sem
coação. Por outro lado, autores como Godim, Fischer e Melo (2006) reconhecem e incluem a
dimensão do poder em suas análises sobre gestão social, considerando essa esfera pública
social de uma maneira mais plural, complexa e difícil de ser trabalhada, uma vez que se deve
tentar levar em conta os interesses, muitas vezes antagônicos, de diversos atores que estão
inscritos num mesmo enclave.
4. CONCLUSÃO: SINTONIZANDO A ESFERA PÚBLICA E A GESTÃO SOCIAL
Para França Filho, a gestão social como gestão das demandas e necessidades do social
tem como esfera de atuação a esfera pública do Estado democrático de direito, sendo assim,
um público mediado pelo poder do Estado. Contudo, entendida como gestão do social,
distingue-se da gestão do público, pois, segundo Arendt, quando a troca de mercadorias
extrapola os limites da economia doméstica a esfera privada transforma-se em interesse
público, e passa a ser controlada pelo Estado. Anula-se, então, a dualidade clássica entre
público e privado e se forma o social. Portanto, entendida como gestão do social, a gestão
social afasta-se da esfera pública.
A gestão social, entendida como alternativa de contrabalanceamento aos excessos da
lógica individualista demonstra que, para França Filho, a busca não é apagar ou substituir o
enclave econômico tradicional, apenas evitar a colonização do mundo da vida (HABERMAS,
2003). Entretanto, a própria esfera pública burguesa, ao buscar afirmar-se como contrapeso à
autoridade da corte, reivindicou a transformação do sistema de dominação vigente, sem,
contudo, desejar eliminar a dominação. Sendo assim, resta a dúvida: a gestão social pretende
ser um modo alternativo de gestão no seio do capitalismo ou ambiciona promover uma
mudança do atual sistema dominante?
Ao se colocar a gestão social como própria da esfera pública não estatal, retira o
mediador do cenário, o Estado, e dá autonomia ao público, as organizações da sociedade civil
(interesses privados de caráter público). Contudo, para Habermas (2003) assim como para
Arendt (2007[1958]), não é mais possível diferenciar as funções das instituições estatais e
sociais, que se sintetizam em um único complexo de funções, essas esferas tornaram-se
interdependentes. Portanto, essa hidridização das esfera pública e privada acaba levando à
formação da esfera social, que segundo Arendt (2007[1958]) se caracteriza pelo preocupação
com a produção social e a reprodutibilidade, do ponto de vista biológico, em detrimento da
expressão e inserção política dos atores sociais no debate público. Sendo assim, é preciso
pensar a gestão social nesse novo contexto, em que os diversos interesses privados
coletivamente organizados entrecruzam-se com as novas múltiplas funções assumidas pelo
Estado moderno.
Quanto à Tenório, como se fundamenta na noção de esfera pública para construção do
seu conceito de gestão social, é necessário identificar o que ele entende por esfera pública. Ao
recorrer à teoria da ação comunicativa habermasiana, percebe-se que o caráter público a que
se dirige constitui-se na conversação (lexis), como na esfera pública da cidade-estado grega
desenvolvida.
Ao acrescentar a noção de participação às teorias de Habermas para construção do seu
conceito e tratar a gestão social como “um processo gerencial dialógico onda a autoridade
decisória é compartilhada entre os participantes da ação”, mais uma vez há um aproximação
da gestão social com a noção de esfera pública grega, pois nesta, os cidadãos transitam como
iguais entre iguais.
Contudo, por um lado, quando Tenório considera a ausência de coação nas relações
sociais estabelecidas, pode-se notar uma distinção da noção grega de esfera pública, uma vez
que, para os gregos, a atividade comunicacional é mediada por um confronto político, isto é, a
esfera pública é o espaço da identidade, da busca por destacar-se, em contraposição à
organização instintiva e biológica da casa, a esfera privada. Deste modo, pensar que este
embate político, o confronto de identidades e interesses, ocorra sem nenhum tipo de coação,
formal ou informal, parece contraditório.
Por outro lado, segundo Habermas (2003) e Arendt (2007[1958]), na sociedade
moderna perdeu-se a distinção entre a esfera pública e a esfera privada, pois pessoas privadas
passaram a atuar enquanto proprietários privados sobre pessoas privadas enquanto público.
Assim sendo, a esfera pública tornou-se receptora de interesses privados privilegiados. Arendt
(2007[1958]) nota, nessa nova esfera, híbrida, não só a coação, mas a submissão do público
ao privado.
Portanto, Tenório parte da noção de esfera pública grega, mas a ela acrescenta um
novo critério, a ausência de coação, critério este alheio tanto à noção de esfera pública antiga
como à noção moderna.
Ao tratar da noção de participação, Tenório utiliza-se do conceito de cidadania
deliberativa, de Habermas (2003), cujos princípios incluem a discussão, a inclusão, a
igualdade, a autonomia e o bem comum. Afirma que a cidadania deliberativa é dependente da
comunicação e de uma opinião pública informal. Porém, Habermas (2003) e Arendt
(2007[1958]) defendem que alguns desses princípios foram banidos ou transformados na
modernidade.
Arendt (2007[1958]) afirma que, a nova esfera social aproxima o homem de sua
dimensão animal, pois trata-se de atividades empenhadas na manutenção da vida, por isso,
nesta esfera social não há mais espaço para a autonomia. Segundo a mesma autora, a
igualdade moderna difere-se da igualdade antiga, pois, na polis, pertencer aos iguais era
distinguir-se de todos os outros, enquanto que na modernidade, o surgimento de uma
sociedade massificada, uniformizada e conformada, indica a absorção dos diversos grupos
sociais por uma sociedade única, com uma opinião pública unânime. Esta opinião pública,
para Habermas (2003), é uma ficção, pois as opiniões privadas tomaram a esfera pública. O
bem público, de modo semelhante, foi transformado, e hoje está relacionado aos elementos
necessários ao bem estar da população, e não o mundo comum.
Gondim, Fischer e Melo (2006), ao considerarem a gestão social como “um ato
relacional capaz de dirigir e regular processos por meio da mobilização ampla de atores na
tomada de decisão” retomam a noção de esfera pública da cidade-estado grega, pois as autoras
associam a ação e a interação dos homens entre si no seio de uma vida política em sociedade.
Ao valorizarem estruturas descentralizadas e participativas, resgatam a possibilidade de
liberdade e de igualdade dos cidadãos da polis grega, mas resgatam também o confronto
político entre os cidadãos na polis, ao buscarem o equilíbrio entre a racionalidade
instrumental e a racionalidade substantiva. Confronto este, que neste caso do cenário atual
torna-se complexamente amplificado devido à multiplicidade e diferença de atores em jogo,
na arena pública, a diversidade de opiniões públicas que se forma e, sobretudo, o modo como
se formam estas opiniões.
Desta maneira, as autoras conseguem associar à gestão social a noção de esfera
pública grega, sem desconsiderar as especificidades da sociedade moderna, o que se percebe
quando as autoras ressaltam a importância da articulação de lideranças capazes de atuar como
mediadores de interesses diversos e quando tratam de organizações híbridas, onde múltiplas
formas de poder são exercidas em diferentes escalas.
Aqui também não parece necessária a substituição do enclave econômico tradicional,
apenas seu reequilíbrio, o que sugere uma tendência a manutenção da gestão social como
modo alternativo de gestão no seio do capitalismo.
Em Carvalho (2001), volta a gestão do social, como a problemática da sociedade de
França Filho, mas não apenas como canal de satisfação de necessidades sociais, mas como
resposta a esta necessidades. Para Habermas, esta função estatal, de proteger, indenizar e
compensar os grupos mais fracos é baseada em interesses privados coletivamente
organizados, e, por meio deste entrecruzamento de diversos interesses, as instituições estatais
e sociais se sintetizam. Têm se a dialética: essa nova interdependência de esferas faz surgir
uma nova esfera, com concentração de capital, responsável pelo enfraquecimento da classe
trabalhadora, e intervencionismo, responsável por proteger os grupos fracos. O alargamento e
revitalização da esfera pública, mencionados por Carvalho como resultantes da emergência de
movimentos sociais, ocorrem de fato, mas a referida esfera pública, à medida que se amplia e
assume os mais diversos atores públicos e privados, segundo Habermas, perde força, pois
passa a ser cada vez mais regulamentada pela autoridade do poder público.
Em síntese, Como contribuições parciais deste trabalho para levantar esta discussão,
apontamos que a noção de esfera pública, como originalmente abordada, tem se modificado
no sentido de se tornar cada vez mais “domesticada” ou cooptada pelas questões da
reprodutibilidade da vida social e menos envolvidas pela dimensão política, como
originalmente concebida. Esse esvaziamento da dimensão política parece ter sido incorporado
e reproduzido no campo da gestão social que foca mais a questão de prover mecanismos para
a reprodução material em uma forma de economia alternativa e menos dedicados a inserção
política dos atores (marginalizados) nas outras formas de economia. Assim, concluímos que a
gestão social, apesar de rotineiramente ser enquadrada no âmbito da esfera pública no sentido
grego, está mais próxima do que Arendt (2007[1958]) chama de esfera social – inclusive
devido às próprias condições de nosso tempo – o que nos levar a questionar sobre a
possibilidade de se falar em esfera pública, no sentido grego e a nos levar a refletir quais as
possibilidades reais da “esfera social” da contemporaneidade pensando no sentido da
utopística (WALLERSTEIN, 2003).
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