UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
VALDECIR DE LIMA SANTOS
COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS?
SALVADOR
2014
VALDECIR DE LIMA SANTOS
COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS?
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Estudo de Linguagens, no âmbito da Linha de Pesquisa I Leituras, Literatura e Identidade, do Departamento de Ciências
Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Estudo
de Linguagens.
Orientador: Professor Drº Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
SALVADOR
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592
Santos, Valdecir de Lima
Com que cor se pinta o negro nas Histórias em Quadrinhos?
Salvador, 2013.
123f.
/ Valdecir de Lima Santos. -
Orientador: Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2013.
Contém referências.
1. Negros na literatura - Brasil. 2. Histórias em Quadrinhos. 3. Negros - Brasil Identidade étnica. 4. Negros - Brasil - Identidade racial. I. Oliveira, Silvio Roberto
Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 809.896
dos
VALDECIR DE LIMA SANTOS
COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS?
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, no
âmbito da Linha de Pesquisa I - Leituras, Literatura e Identidade, do Departamento de
Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens.
Banca Examinadora
_____________________________________________________
Prof° Dr° Sílvio Roberto dos Santos Oliveira
Universidade do Estado da Bahia
Orientador
_____________________________________________________
Profª Drª Sayonara Amaral de Oliveira
Universidade do Estado da Bahia
_____________________________________________________
Profº Dr° Edson Dias Ferreira
Universidade Estadual de Feira de Santana
Dedico este trabalho a minha avó Biziu e a minha mãe Valdete
(in memoriam), primeiro referencial de prática de alteridade em
minha vida. Com elas, aprendi e apreendi o valor da partilha,
do respeito aos “mais velhos” ao solicitar suas bênçãos, a
conviver entre as folhas e a ressignificar as religiões,
principalmente a de matriz africana. Cresci cercada de
narrativas, que não eram as do “boi da cara preta”, mas as de
um “boi multicor”, que almejava intercambiar experiências,
quando elas me recontavam as histórias do nosso povo, vindas
do além mar.
E aos estudantes, que tive o prazer e tenho de trocar
experiências, heróis e heroínas negros que, todas as noites, com
seus superpoderes (suas resistências ou motivações adquiridas
ao longo de suas labutas cotidianas) tem a coragem de sair das
suas residências, enfrentando mocinhos e vilões ao longo do
caminho, para ocupar o espaço a eles e elas devido, e tantas
vezes negado, na sala de Educação de Jovens e Adultos.
AGRADECIMENTOS
Agradecer é reconhecer, que o sabor da conquista vem emanado com a
colaboração de forças visíveis e invisíveis. Por isso, elenco aqui os meus sinceros
agradecimentos a todos, desde as forças cósmicas, às forças oriundas das diferentes
pessoas que me circunscrevem, que se mobilizaram positivamente para que esta vitória
se concretizasse em minha vida.
A Deus, meu supremo criador, que durante esta jornada me fez ver que a vida
se renova a cada instante, e que é sempre tempo de celebrá-la. Eis-me aqui Senhor.
Minha reverência e respeito às religiões de matriz africana que tem preservado nossas
raízes trazidas de África.
Ao meu “painho” Benedito, meu dengo, meu xodó. Companheiro
maravilhoso, que sempre embarcou nos meus sonhos, mesmo sem saber direito aonde
eles iriam me levar, apostando que certamente seriam a lugares possíveis cujos
caminhos seriam os mais frutíferos. Obrigada! Sua presença em minha vida faz meu
coração transbordar de amor.
A meu irmão Luis, meus sobrinhos, afilhados e meus familiares, que sempre
me encorajaram a seguir em frente, e que expressaram a todo instante que a minha
presença nos longos e maravilhosos almoços de domingo estava sendo aguardada.
Quero dizer que estou voltando para partilharmos destes e de tantos outros momentos
maravilhosos.
À Luiza (prima) e Dinalva (tia), minhas parceiras nesta jornada,
incansavelmente me ofereciam seus colos para o meu restabelecimento quando sinais de
cansaço ou desânimo despontavam em mim ao longo desta jornada. Obrigada pelo
apoio que segue pelas vias do fraterno ao materno.
Aos meus amigos, irmãos em Cristo, que os livros me tiraram a ausência
física, mais que sempre se mantiveram presentes em meu coração. E as minhas amigas,
Juçara, Adriana e Jamile, que felizmente não tiveram a paciência dos demais amigos, e
sempre furaram as barreiras impostas pela dissertação. Arbitrariamente elas ligavam,
apareciam, me tiravam de casa. E ai de mim se não fossem tão persistentes, com seus
valiosos conselhos e motivações a me transmitir. Obrigada pela partilha dos risos e do
choro.
Além deste trio, quero lembrar da minha amiga Anália, parceira de uma
longa jornada no processo de construção desta dissertação. Esteve comigo lá onde tudo
começou, nos lugares primeiros onde este sonho de ser mestra foi semeado.
Incentivadora acadêmica, sempre crente nas minhas potencialidades. Sem você este
percurso não teria sido feito com tantas flores e espiritualidade pungente.
À Eliana, querida amiga, pelas conversas, partilhas, chamadas à razão, com
quem tenho agora o prazer de dividir a dor e a delicia de ser PPGEL.
À direção, ao coordenador, aos professores e funcionários da Escola
Municipal Marechal Rondon, que torceram e colaboraram efetivamente para que a
minha pesquisa tivesse êxito.
A todos os Professores que passaram pela minha vida, especialmente aos que
compuseram a minha infância, me ensinando as letras primeiras: Valdete (minha mãe,
in memoriam), Yolanda, Darcy, Eva, Elisabete, Isabel, Vilma, Clarizio. Com suas
formas ímpares de ensinar, cada um ao seu modo, contribuíram para que nascesse em
mim o desejo de também ser educadora.
A Alan Nunes, que fez reacender em mim a crença de que todos os dias sou
agraciada pelas mãos de Deus ao me presentear com anjos humanos das mais diversas
etnias para me iluminar, a seu exemplo. Obrigada pelas conversas, pelo apoio, este
convívio teve grandes repercussões teóricas na minha vida e consequentemente na
escrita da minha dissertação. Com você tudo fez uma grande diferença.
A Josenildo, pelo carinho, solicitude, paciência, deslocando-se comigo ou
para mim aos lugares mais inusitados que esta pesquisa me conduzia.
Ao meu orientador Professor Doutor Sílvio Roberto dos Santos Oliveira por
ter me aceitado e acreditado no potencial da minha pesquisa.
À Professora Doutora Sayonara Amaral de Oliveira e ao Professor Doutor
Edson Dias Ferreira, membros da banca examinadora, obrigada pela delicadeza de ter
aceitado participar deste processo, me apontando sugestões enriquecedoras à pesquisa.
Agradeço também a todos do Programa, professores e funcionários, Camila,
Geisa, e especialmente a Danilo, pela disponibilidade e seriedade com que desenvolvem
os seus respectivos cargos.
Aos meus colegas da turma, especialmente a uma flor linda do sertão
chamada Rosilda, pessoa singular, muito te agradeço pelo incentivo, pelo carinho, pelas
conversas intermináveis. Você, Eliseu e Reinaldo, deram a minha travessia no PPGEL a
leveza necessária para que esta se tornasse mais fluida.
RESUMO
O presente trabalho de investigação – intitulado Com que cor se pinta o negro nas
Histórias em Quadrinhos – tem como objeto de estudo a representação social do negro
nas Histórias em Quadrinhos e como objetivo explorar conteúdos relacionados às lutas
políticas e sociais do povo negro, buscando contribuir para que ideologias arraigadas no
seio da sociedade sejam repensadas e (des)construídas a partir de novos olhares. Para
tanto, procurou-se analisar os conteúdos de sete narrativas quadrinizadas, tendo como
referencial teórico-metodológico, para melhor compreensão do objeto aqui esposado, os
estudos propostos por Cirne (1982), Chinen (2013), Gonçalo Junior (2004), Hall (2011),
Moscovici (1978, 2012), Munanga (1988), Oliveira (2006), Silva (2004, 2001, 2011) e
Souza (2005). Incide na hipótese de que as Histórias em Quadrinhos com heróis e
heroínas negras podem constituir-se em elemento político-pedagógico de resistência e
de libertação e que tais narrativas, ao proporem um discurso estético-ideológico pautado
na história e cultura, influenciam na construção de uma identidade positiva do povo
negro, elevando sua autoafirmação identitária. Foram trazidos para o cerne da reflexão
os quadrinhos como elemento histórico, político e cultural, cuja rede de produção e
divulgação contribui para a aquisição de novos e complexos conhecimentos, os quais
permitem apreender o real e intervir diretamente sobre ele. Por meio da pesquisa, foi
possível detectar que o espaço quadrinizado ainda é um território demarcado
ideologicamente para o imaginário branco e suas representações sociais. E, embora essa
realidade venha sofrendo profundas modificações – em decorrência das frentes de lutas
implementadas pelos Movimentos Sociais Negros –, em termos quantitativos ela ainda é
muito baixa. O estudo pretendeu revelar também, por meio da análise dos dados, que
essas narrativas, por incorporarem nas suas páginas elementos da história e da cultura
do negro brasileiro, cuja matriz é de origem africana, são eficazes no combate à
discriminação, ao preconceito e à prática do racismo, sendo igualmente significantes
para a construção da identidade étnico-racial da comunidade negra, no que diz respeito à
sua autoaceitação e à elevação da sua autoestima.
Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Etnia negra; Movimento Negro; Afirmação
identitária.
ABSTRACT
This research work – entitled Which color is painted black on the Comics – has as its
object of study the social representation of black in Comics and aimed to explore
content related to political and social struggles of black people, in order to contribute so
entrenched ideologies in society are reconsidered and (un) built as from new eyes.
Therefore, we attempted to analyze the contents seven narratives in comics, with
theoretical and methodological framework for better understanding of the object
exposed here, the proposed studies by Cirne (1982), Chinen (2013), Gonçalo Junior
(2004), Hall (2011), Moscovici (1978, 2012), Munanga (1988), Oliveira (2006) and
Silva (2004, 2001, 2011), Souza (2005). The choice of this theme focuses on
investigative hypothesis that the Comics with black heroes and heroines may form
themselves into a political-pedagogical element of struggle, resistance and
emancipation, and that such narratives by proposing an esthetic-ideological discourse
grounded in their own history and culture, influence the construction of a positive
identity of black people, raising their self-affirmation of identity. Were brought to the
center of the reflection, the comics as historical, political and cultural element, whose
network of production and distribution contributes to the acquisition of new and
complex knowledge which allows to grasp the real and intervene directly on it. Through
research, it was possible to detect that the space of comics is still an ideologically
demarcated for white people and their social representations. And while this reality
come undergone profound changes – due to the fronts of struggle implemented by Black
Social Movements – in quantitative terms it is still very low. The study also revealed
through the analysis of the data, these narratives, in their pages by incorporating
elements of the history and culture of black Brazilian, whose mother is of African
origin, are effective in combating discrimination, prejudice and practice of racism, and
is also significant for the construction of ethnic and racial identity of the black
community, with regard to their self-acceptance and self-esteem elevation.
Keywords: Comics; Black Ethnicity; Black Movement; Identity affirmation.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - À procura dos negros nos quadrinhos ...................................................... 24
FIGURA 2 - Doze direções em que os quadrinhos podem crescer ............................... 26
FIGURA 3 – As doze direções ...................................................................................... 26
FIGURA 4 - O ilustrador e quadrinista Tiburcio questiona a República ...................... 45
FIGURA 5 - Abdias do Nascimento ............................................................................. 58
FIGURA 6 - Primeira representação gráfica da personagem Jeremias ......................... 61
FIGURA 7- Representação gráfica da personagem Jeremias na contemporaneidade .. 61
FIGURA 8- Jeremias em campanha presidencial .......................................................... 62
FIGURA 9 - Pererê ........................................................................................................ 63
FIGURA 10 – Cabôco Mamadô .................................................................................... 69
FIGURA 11 - O Bode Orelana e a Ave Graúna ............................................................ 70
FIGURA 12 - Rango e sua turma .................................................................................. 71
FIGURA 13 - Jejum em uma pelada de futebol ............................................................ 71
FIGURA 14 - Feijão ...................................................................................................... 72
FIGURA 15 - Ykenga.................................................................................................... 73
FIGURA 16 - Joãozinho Tresitão .................................................................................. 74
FIGURA 17 - Do navio negreiro ao camburão ............................................................. 75
FIGURA 18 - Roberto, sem máscaras nem disfarces .................................................... 76
FIGURA 19 - Suriá, a garota do circo ........................................................................... 86
FIGURA 20 - Suriá em: fadas, princesas e rainhas ....................................................... 86
FIGURA 21 - Luana em: causos da vovó Josefa ........................................................... 87
FIGURA 22 - Luana ...................................................................................................... 88
FIGURA 23 - Aú, o Capoeirista .................................................................................... 91
FIGURA 24 - Tio Alípio e Kauê ................................................................................... 93
FIGURA 25 - Revista Minas de Quilombos ................................................................ 94
FIGURA 26- Revista Afro HQ ...................................................................................... 94
FIGURA 27- Revista Orixás: do orum ao ayê............................................................... 95
FIGURA 28 - Suriá: o vidro em torno de cada um........................................................ 99
FIGURA 29- Luana a favor da natureza e contra a poluição.......................................100
FIGURA 30 - Aú, o capoeirista em: a diferença está na solidariedade........................103
FIGURA 31 - Tio Alípio na roda do diálogo com Kauê..............................................105
FIGURA 32 - Em quadrinhos: a história do Quilombo do Ausente de Cima e Ausente
de Baixo.........................................................................................................................107
FIGURA 33 - O orum e o ayê sem fronteiras...............................................................111
FIGURA 34 - A separação do céu e da terra................................................................111
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 13
1 OS DITOS E OS INTER-DITOS: SOBRE QUADRINHOS E
REPRESENTAÇÕES.......... ........................................................................................ 21
1.1 ESQUADRINHANDO UMA HISTÓRIA. .............................................................. 22
1.2 TEORIA DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: NOS BALÕES CRUZADOS DE UM
CONCEITO.....................................................................................................................32
2 AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS
QUADRINHOS............................................................................................................. 40
2.1 CONTEXTOS INICIAIS DE PRODUÇÃO DE HQS NO BRASIL... .................... 42
2.2 EM BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PARA AS HQS ....................................... 56
2.3 NOVAS TRILHAS, TIRAS E POSSIBILIDADES.................................................65
3 NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS HETEROGÊNEOS DE
CIRCULAÇÃO... .......................................................................................................... 78
3.1 RASURAS NAS FRONTEIRAS DOS REQUADRADOS ..................................... 80
3.2 HQS: PONTES DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E AUTOESTIMA
NEGRO-BRASILEIRA... .............................................................................................. 97
CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO..................................................................113
REFERÊNCIAS...........................................................................................................116
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa investigativa buscou identificar as transformações sociais na
representação das personagens negras nas Histórias em Quadrinhos, ocorridas a partir
da segunda metade do século XIX até o ano de 2012, assim como evidenciar, através de
um recorte temporal historiográfico-cultural, os elementos que oportunizaram tais
mudanças. Para tanto, foram levantados dados empíricos e imagéticos, bem como os
oriundos de fontes bibliográficas, necessários a essa compreensão.
O interesse por essa temática de investigação começou a ser fomentado no
ano de 2000, quando ingressei, como docente, na rede Municipal de Ensino do
Município de Salvador, na área de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Na condição
de mulher, negra, moradora da periferia, constatei que, ao lado dos problemas de
aprendizagem relacionados à educação formal, como a aquisição da escrita e da leitura,
um número significativo de alunos, embora negros, não se autoidentificavam como tal e
que as suas identidades e autoestima encontravam-se bastante abaladas.
Ao longo dos anos, desde então, passei a buscar estratégias educacionais, tão
necessárias ao fazer pedagógico, que contribuíssem para que esse cenário sofresse
modificações. Encaminhei a práxis para o viés educacional pautado na respeito às
diferenças, aos diferentes e à diversidade. Entre os caminhos trilhados, um aporte
metodológico recorrente durante as aulas era o uso de Histórias em Quadrinhos, com
personagens negros no papel de heróis e heroínas. Estava ciente de que as Histórias em
Quadrinhos, ou HQs, ocupam um espaço privilegiado na arte de comunicar, sobretudo
por agregar na sua composição a linguagem sob duas perspectivas: a verbal e a nãoverbal e, assim, contribuiriam para problematizar a realidade e fazer ecoar a matriz
africana que possuímos e que possuía a maioria dos alunos da EJA.
A cada narrativa desenvolvida em aula era possível observar que estas
coadjuvavam para difundir concepções, que ajudavam os educandos a se descobrir, se
expressar e a desenvolver as suas habilidades, inclusive críticas sobre si e sobre o
mundo.
Dois aspectos restritivos, entretanto, foram constatados: o número de
publicações muito limitado e o fato de que, normalmente, as personagens negras
representadas nas páginas das Histórias em Quadrinhos estavam grafadas de forma
estereotipadas, caricaturais e estigmatizadas. A comunidade negra aparecia sempre nas
narrativas como personagens secundárias e desumanizadas.
13
Isso acontecia em função do modelo sociorracial que circulou e circula no
País, historicamente estruturado sobre as bases do poder e da dominação total, em que o
grupo dominante mantém o monopólio dos recursos econômicos e o grupo em situação
de subalternidade, o povo negro e outros povos não-brancos, embora sua base
sustentadora conserve-se em situação de desprestígio. A utilização dessa dinâmica
propiciou a construção de estruturas intelectuais normativas ideológicas destinadas a
manter sentimentos de inferioridade no grupo subalterno e produzir uma impenetrável
imagem de superioridade do setor dominante (MOORE, 2012).
De forma insistente, continuei a garimpar, buscando publicações que nos
contassem outras histórias sobre a comunidade negra, mais proativas e propositivas, que
elevassem a autoestima e construção do autoconhecimento e da identidade negra dos
educandos. Nesse sentido, valeu a pena, sim, continuar a pensar o quadrinho dentro
dessa esfera de arte/política, problematizando-o. Porque, assim, jovens e adultos
puderam assimilar essas histórias, com base na leitura de imagens e do diálogo, e
gradativamente se apropriar da aquisição da leitura e da escrita formal, visto que as
narrativas apresentadas possuíam textos com funcionalidade social, o que resultou em
processos significativos de letramento.
Por intermédio do trabalho desenvolvido em sala de aula senti a necessidade
de um maior aprofundamento teórico sobre a temática aqui enfocada. Afinal,
inquietava-me o fato de que o povo negro brasileiro, que sempre se manteve em luta
pela afirmação da sua identidade, pela valorização da sua formação étnica e cultural,
considerando a possibilidade de coexistência e convivência entre tantos outros atores
sociais, repudiando sempre todas as formas de intolerância, desrespeito e desigualdade
que recaíam sobre si, se mantivesse, mesmo assim, ocupando um espaço de pouca ou
nenhuma relevância no cenário quadrinístico, embora as HQs sejam uma arte muito
propagada e popular de representação social.
Dessa forma, por força das inquietações acima aludidas, busquei compreender
acerca de quais caminhos estão sendo percorridos para que se construam espaços de
representação voltados de fato para as “novas” exigências − tão antigas − do povo
negro, pois, embora maioria no País, encontra-se ainda em número minoritário na
política, nos esportes, na mídia e, especificamente, nas HQs. Igualmente procurei
compreender as mudanças que se operacionalizaram, durante o período supracitado, na
representação dos negros nos quadrinhos, levando em consideração cada um dos
elementos que incidiram diretamente para a ocorrência desse fenômeno social, vez que,
14
durante muito tempo, a arte quadrinista excluiu ou minimizou os direitos de
participação social desses grupos.
E foi com tal propósito que este trabalho de pesquisa se constituiu, elegendo
como objeto de estudo a representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos,
que objetiva explorar os conteúdos relacionados às lutas políticas e sociais do povo
negro, contribuindo para que ideologias arraigadas no seio da sociedade sejam
repensadas e (des)construídas a partir de novos olhares. Olhares que lhe possibilitem a
falar sobre si, sobre suas raízes africanas, sua cultura, seus valores, religiosidade, enfim
sobre o mundo, tornando-se uma alternativa viável para legitimar vozes negras até então
“não autorizadas” (DALCASTAGNÈ, 2012).
Para tanto, foram levantadas algumas questões- problemas as quais nortearam
a presente investigação, a saber:
- Até que ponto as Histórias em Quadrinhos com personagens negras no papel
de protagonistas da narrativa podem se constituir elemento político-pedagógico de
resistência e de libertação para a comunidade negra brasileira?
- Quais aspectos podem ser apontados como influenciadores nas
transformações que ocorreram quanto à representação do negro nas Histórias em
Quadrinhos?
- Até que ponto essas novas representações podem contribuir para a
construção de uma autoestima e de uma identidade negras?
Na tentativa de responder a esses questionamentos e proporcionar uma
reflexão sócio-histórica que possibilitasse uma análise crítica acerca do objeto de estudo
aqui esposado, recorri a uma literatura especializada sobre quadrinhos com personagens
negros. As primeiras buscas aconteceram no cyber espaço, no qual existe um número
considerável de sites de Histórias em Quadrinhos, tais como: UniversoHQ (2011),
ImpulsoHQ (2011), Blog dos Quadrinhos (2011), Omelete (2011), entretanto continham
pouco material envolvendo a temática. Destes, apenas o HQmaniacs (2011)
havia
publicado um ensaio, “O negro nas Histórias em Quadrinhos”(2005), de Cláudio
Roberto Basílio, dividido em cinco partes, sendo a última delas voltada para os
personagens nacionais.
Entre os livros, constatei no de Moacy Cirne (1982), Uma introdução política
aos quadrinhos, a presença de um único capítulo “O negro nas histórias em
quadrinhos”, abordando essa temática. E, na produção de Gonçalo Junior (2004), A
Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a censura aos
15
quadrinhos, 1933-64, que traça a trajetória dos quadrinhos durante o período destacado
no título, deparei-me com informações produtivas para a compreensão da invisibilidade
dos personagens negros durante esta incursão.
Das teses de doutoramento destaquei a intitulada Angelo Agostini ou
impressões de uma viagem da corte à capital federal (1864 - 1910), de Gilberto
Marigoni de Oliveira (2006), que analisa a obra de Angelo Agostini, precursor das
Histórias em Quadrinhos no Brasil, e a forma como este representava a comunidade
negra nas narrativas quadrinizadas durante o regime escravocrata. Também encontrei a
pesquisa O papel do negro e o negro no papel: representação e representatividade dos
afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros, de Nobuyoshi Chinen (2013), que faz um
levantamento histórico desses personagens, tanto em termos quantitativos quanto
qualitativamente, do século XIX ao XXI, para verificar o quanto existe de preconceito
ou de estereótipo em tais representações.
Além desses trabalhos, foi imprescindível o estabelecimento de um diálogo
com outras áreas de estudo, através das seguintes obras: A Representação Social da
Psicanálise (1978) e Representações sociais: investigações em psicologia social (2012),
de Serge Moscovici (1978); A discriminação do negro no livro didático (2004),
Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático (2001), A representação
social do negro no livro didático: o que mudou? Por que mudou? (2011), de Ana Célia
da Silva; Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, de Florentina da
Silva Souza (2005); Da Diáspora: identidades e mediações culturais de Stuart Hall
(2009); Negritude: usos e sentidos (1988), de Kanbelege Munanga.
Os dados levantados por meio dos estudos teóricos indicam que, durante os
dois primeiros séculos no Brasil, as personagens negras representadas nas páginas das
Histórias em Quadrinhos eram grafadas de forma estereotipada, caricatural e
estigmatizada. A comunidade negra aparecia sempre nas narrativas como personagens
secundárias, desumanizadas e ocupando posições de subalternidade, em decorrência da
lógica escravista que regeu o país durante longo tempo e que, de forma eficaz, foi se
disseminando e alimentando o imaginário nacional.
No entanto, por força da emergência de novos contextos histórico-sociais, a
comunidade negra foi propondo a construção de novos paradigmas de mudanças
representacionais, na esperança de instaurá-los nos vários segmentos sociais.
Isso foi um desafio, pois os efeitos das desigualdades étnico-raciais,
projetados pela ideologia do racismo, dificultaram a construção de posicionamentos
16
mais democráticos, fechando os caminhos para a promoção da igualdade e a
possibilidade de se falar sobre as diferenças nas várias instâncias.
Assim, a partir da década de 1970, pressionados pelas mudanças do contexto
social e também sensíveis às mazelas vivenciadas pelo povo negro, alguns artistas
passaram a ilustrar as personagens negras sob novas perspectivas. Inicialmente, essas
icnografias apresentaram-se impregnadas de marcas históricas e culturais negativas
sobre o corpo negro e delas não conseguiam desvencilhar-se. Mas, paulatinamente, essa
realidade foi se transformando e os quadrinhos passaram a assumir uma linha de
produção contestatória, tornando-se de trincheira, propensos a denunciar a condição
subumana na qual se encontrava grande parte da sociedade brasileira, em função das
disparidades socioeconômicas e étnico-raciais vigentes.
No entanto, apesar dessas novas condições de produção, as falas e
representações expostas nas suas páginas, ao lado da crítica e do humor, da autodefesa e
da análise da sociedade, evocavam sentimentos de compaixão e tristeza, pois as
personagens eram grafadas na condição de miserabilidade – pobres, nordestinos,
famintos, moradores da caatinga ou dos lixões, crianças de rua. No decorrer dessa
trajetória, outras narrativas começaram a reverberar, com suas vozes discordantes, tendo
os Movimentos Sociais Negros, uma presença imprescindível à promoção de novas
possibilidades. Leis e projetos de políticas afirmativas foram criados, dentre os quais
podemos citar a Lei 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, a Lei 12.288/2010, do
Estatuto de Igualdade Racial, e a Lei 11.634/2007, que trata do Dia Nacional de
Combate à Intolerância Religiosa, cujo aparato busca corrigir e/ou amenizar essas
disparidades, incidindo também nas páginas dos quadrinhos.
Evidenciados esses dispositivos legais, a partir da década de 1990 e da
entrada no novo milênio, as personagens negras deixaram de ser representadas apenas
como figuras que reafirmavam sua situação de marginalizados, passando a compor as
narrativas como heróis e heroínas, assumindo, assim, a centralidade do discurso como
sujeitos das histórias. Heróis e heroínas comuns, anônimos do cotidiano, que vêm de
muito longe, do murmúrio de outras sociedades, para progredir. Combatentes, tenazes,
resistentes, que vêm desembaraçando-se de uma rede de forças e de representações préestabelecidas, para se inserirem em narrativas que enfocam o social, o político, o étnicoracial (CERTEAU, 1998).
17
Todavia, essas produções ainda são segregadas e controladas pela indústria
cultural – desde os editores, revendedores e distribuidores , que quantificam, classificam
e hierarquizam essas obras em relação a outras cujas personagens principais são
brancos. O que faz com que as publicações com personagens negros continuem a ser
publicadas em número muito escasso por não fazerem parte da lógica da produtividade
e dos modelos tidos como lucrativos. Afinal,
[...] o propósito de um Brasil exclusivamente branco continua sobrepujando
as mentes que comandam a nação nas diversas instâncias do poder. Os
maiores problemas que o país enfrenta hoje foram plantados ontem e seus
cultivadores deixaram uma legião de descendentes e seguidores (CUTI, 2010,
p. 12).
Diante do exposto, e ciente de que as Histórias em Quadrinhos se constituem
um espaço por excelência de representação social (MOSCOVICI, 1987), desde os
cenários, os enredos, e estes se entrecruzando com as personagens e com a sociedade,
procuro centrar nessa arte o objeto do nosso estudo.
A escolha dessas narrativas quadrinizadas procedeu-se por amostragem não
probabilística. Na observância de algumas dessas publicações no espaço onde leciono,
divulgadas através da mídia ou presentes no material teórico-metodológico utilizado, as
selecionei-as por considerá-las excelentes fontes de informação, para representarem o
“bom
julgamento”
da
população/universo
(KAUARK,
F.;
MANHÃES,
F.;
MEDEIROS, C. H. 2010. p. 61). Tal amostragem se insere no campo da pesquisa
qualitativa, a qual “[...] considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o
sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do
sujeito que não pode ser traduzido em números” ((KAUARK, F.; MANHÃES, F.;
MEDEIROS, C. H. 2010. p. 26).
Do ponto de vista dos procedimentos técnicos (GIL, 2007), trata-se de uma
pesquisa qualitativa, não somente porque analisa qualitativamente o conteúdo de
material produzido, mas também porque se utiliza de pesquisa bibliográfica, tendo
como base um acervo relevante de obras publicadas, que auxiliaram na melhor
compreensão crítica acerca do objeto de estudo. Nessa perspectiva, a utilização do
material bibliográfico enseja a exploração mais densa dos conteúdos relacionados às
lutas políticas e sociais do povo negro, o que poderia contribuir para que ideologias
arraigadas no seio da sociedade fossem repensadas e (des)construídas a partir de novos
olhares.
18
Na esteira dessas delimitações e discussões optei pela seleção de apenas sete
publicações para serem analisadas. Isso em função de essas HQs - as representadas a
partir da década de 1990 - apresentarem histórias que desconstroem os ditos de
inferioridade sobre a comunidade negra, assumindo no seu discurso uma posição de
enfrentamento da realidade; também por agregarem-se a outras lógicas que furam as
resistências e nutrem uma memória afetiva (CUTI, 2010) de referência positiva sobre a
comunidade negra, propiciando a valorização da sua história e, consequentemente, da
sua cultura.
Sabe-se que essa narrativa icnográfica, pela relação que guarda com os fatos
do cotidiano social, constitui um espaço fértil para a crítica, instrumento que pode
romper barreiras e promover mudanças no contexto social, haja vista que a maioria
dessas narrativas encontra-se ligada aos interesses dos grupos que detêm o poder
político, social e econômico do País, e que por isso mesmo excluem ou minimizam os
direitos de participação social dos grupos minoritários. Essa realidade precisa ser
transformada, pois há espaços para todos serem retratados como sujeitos de direito
nessas composições, inclusive para a comunidade negra, que vem lutando para
assegurar seu lugar de cidadania no universo dos quadrinhos, tendo em vista difundir
sua cultura, sua história, seus saberes e alcançar novos patamares nas suas condições de
vida social.
A estrutura da pesquisa compõe-se de introdução, três seções e da conclusão.
Na primeira seção, OS DITOS E OS INTERDITOS: SOBRE
QUADRINHOS E REPRESENTAÇÕES, apresento o conceito de Histórias em
Quadrinhos, seus precursores em contexto nacional e internacional e suas dificuldades
quanto à produção e divulgação. Abordo, principalmente, as formas diferenciadas como
a comunidade negra vem sendo representada nesse contexto e a sua busca por equidade
de direitos.
Na segunda seção, AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO
DO NEGRO NOS QUADRINHOS, procuro evidenciar como, gradativamente, as
representações da comunidade negra nas HQs foram se modificando. De desumanizadas
a humanizadas, de estereotipadas e caricaturais a positivas, de invisibilizadas a
visibilizadas, constituindo-se mais uma forma de resistência contra o racismo, a
discriminação e o preconceito.
Quanto à terceira seção, NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS
HETEROGÊNEOS
DE
CIRCULAÇÃO,
com
as
personagens
negras
já
19
corporificando, representacionalmente, traços gráficos, próprios da comunidade negra a
que pertencem, analisamos como essas produções podem se constituir em pontes na
construção da identidade e autoestima desse grupo étnico-racial, assim como em
instrumento e/ou mecanismo de seu empoderamento, por distinguir o potencial
comunicativo presente em cada uma dessas narrativas.
20
1 OS DITOS E OS INTER-DITOS: SOBRE QUADRINHOS E
REPRESENTAÇÕES
A Verdade e a Mentira num conto iorubá
Lembro aqui uma lenda africana sobre a criação do mundo. Diz assim: Olofi,
o Senhor que tudo criou – o bem e o mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro,
o grande e o pequeno, o cheio e o vazio, o alto e o baixo - criou também a
Verdade e a Mentira. Fez, no entanto, a Verdade forte, marcante, bela,
luminosa, e fez a mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu a ela
uma foice com a qual pudesse se defender. A Mentira sentiu inveja da
Verdade e queria eliminá-la. Certa ocasião a Mentira se defrontou com a
Verdade e a desacatou. Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um
golpe, degolou a Verdade. Esta, vendo-se sem cabeça, começou a procurá-la
tateando por volta. Apalpa um crânio que supõe ser seu. Com esforço agarrao e o arrancando da onde estava, coloca-o sobre seu pescoço. Mas aquela era
a cabeça da Mentira. Desde então, a Verdade anda por aí enganando toda
gente (cf. CRITELLI, 1984).
A mobilização em torno de se contar novas e outras histórias sobre a
comunidade negra, vem, a cada dia, ganhando maiores espaços. Conforme narra a lenda
africana sobre a criação do mundo, muitas foram as histórias contadas; algumas
ganharam caráter cientifico, outras foram introjetadas no imaginário popular e, mesmo
não sendo verdadeiras, ganharam esse status com base nos confrontos relacionais
estabelecidos. E, assim, o povo negro-africano e seus descendentes sofreram e vêm
sofrendo as conseqüências dessas construções discursivas, desde que a “Mentira”
degolou a “Verdade” e apropriou-se do seu corpo, para sair por ai difundindo suas
ideologias.
Foram longos os anos de enganos e desenganos, liderados pelos grupos
hegemônicos, que criaram e implementaram complexas teias sociais, econômicas e
políticas; nocivas não só à comunidade negra, mas à sociedade de um modo geral. Isso
porque vivemos em rede, e toda e qualquer ação social reverbera em toda a comunidade
global.
No limiar desses processos, os modos de resistência implementados foram os
mais diversos, fazendo-nos inferir, por saber-se que a cabeça da Verdade é a parte mais
21
significativa do corpo humano, que esta não se conectou ao corpo da Mentira, e seguiu
privilegiando caminhos mais lógicos, que buscassem reordenar as relações
segregacionistas e totalitárias, nas quais sujeitos fossem tratados como tal, e não como
objetos ou mercadorias. Pois é na cabeça, segundo a cultura iorubá, que coexistem
[...] o cérebro – a morada da sabedoria e da razão; os olhos – a luz que
ilumina os passos dos homens pelos labirintos da vida; o nariz – que serve
como uma espécie de ventilação para a alma; os ouvidos – com os quais o
homem escuta e reage aos sons, e a boca – com a qual ele come e mantém o
corpo e alma juntos (LAWAL, 1983, p. 46).
Dissociar-se a cabeça do seu corpo e agregar-se a um corpo que não preserva
os cuidados necessários à preservação da vida só ocasionaria maiores desequilíbrios de
ordem ambiental, filosófica, religiosa e societária. Nesse sentido, ancorados na cabeça
da Verdade, e em todo o conto, que possibilita-nos relativizar às verdades absolutas, é
que este capítulo ganha corpo. Não contando novas e outras histórias acerca do povo
negro no universo imagético das HQs, mas reconhecendo que é preciso continuar
buscando os fios da vida que tecem essas narrativas, para que seja possível alterar as
compreensões em torno do mundo e dos diferentes sujeitos que o compõem.
1.1 ESQUADRINHANDO UMA HISTÓRIA
As Histórias em Quadrinhos podem ser definidas como narrativas sequenciais
que se articulam entre a linguagem verbal e a imagética. São consideradas um locus
contextual favorável para comunicar ideias; isso porque, através das HQs, dialogam
aspectos históricos, sociais, étnicos, culturais, econômicos e políticos, sendo essas
relações responsáveis por possibilitar que essas narrativas, devido à sua grande
potencialidade, tornem-se uma arte capaz de expressar conceitos diversos, numa
verdadeira tempestade de ideias, ou brainstorming1 ,ampliando os seus caminhos, sua
produção, sua divulgação e seu consumo.
1
Em 1953, o norte-americano, Alex Faickney Osborn, criou um conjunto de técnicas com vistas a
desenvolver a criatividade. Como empresário e publicitário, observava que as campanhas de propaganda
da sua empresa necessitavam revestir-se de formas mais criativas que dialogassem diretamente com o
consumidor. Assim, em 1939, ele passou a desenvolver procedimentos que potencializassem o
desenvolvimento criativo dos seus funcionários, a fim de atender a demanda. Nas reuniões todos os
participantes eram livres para expressar suas idéias, e estas não deveriam passar por julgamento de valor,
mas sim serem reorganizadas e combinadas a outras ideias, resultando em criações criativas e inovadoras.
A esse jogo de ideias, ele deu o nome de brainstorming; no entanto, essa técnica só veio a ser publicada
22
Revisitando obras, autores, pesquisadores e espaços de significação sobre
Quadrinhos, confrontamo-nos com diversas percepções em torno da origem dessa arte.
Alguns estudiosos creditam a essas narrativas um sentido evolutivo, estabelecendo,
como fonte primeira, os registros encontrados nas cavernas do paleolítico, através das
pinturas rupestres, e toda forma de comunicação sequencial que, ao longo da história da
humanidade, objetivou transmitir suas ideias através de imagens, até ancorar-se nas
páginas digitais na atualidade.
Outros especialistas da área apontam para as primeiras publicações gráficonarrativas, que surgiram no cenário mundial no final do XVIII e inicio do século XIX,
com os artistas Wilhelm Busch (1885), na Alemanha; Angelo Agostini (1869), no
Brasil; Christophe (1889), na França; James Swinnerton (1892); R. F. Outcault (1896) e
Rudolph Dirks (1897) nos Estados Unidos (CIRNE, 1982). Estes, cada um em seu
contexto cultural e cronológico, de acordo, portanto, com as suas especificidades;
viveram os primeiros dilemas que envolveram e envolvem, ainda hoje, esta produção
icnográfica e verbal.
Dilemas próprios de uma linguagem carregada de bens simbólicos e/ou de
elementos gráficos, que por seu turno, já nasceram em função da indústria cultural, pois,
diferentemente do cinema, que assumiu para si um veículo próprio para divulgar-se, o
quadrinho necessitou vincular-se ao jornal, para difundir o seu discurso artístico
(CIRNE, 1982, p. 19). Pois que a proliferação desta arte encontra-se intimamente
relacionada aos processos socioculturais hegemônicos que atravessaram a história da
humanidade, tanto na sua base individual, quanto na sua coletividade.
Podemos dizer que esses quadrinistas, citados anteriormente, (CIRNE, 1982),
marcados pelos encantos e desencantos característicos desse percurso de afirmação,
balizaram o mundo das narrativas sequenciais ao produzirem uma arte com um caráter
diferenciado dos, até então, propostos, apresentando-nos o universo imagético das
Histórias em Quadrinhos. Produções estas que podem “[...] ser curtidas apenas ao nível
do prazer estético, pura e simples orgia formal diante de sensações gráficas, pictóricas,
sonoras, narrativas” (CIRNE, 1982, p. 23), mas que podem de igual modo, ser a
resultante de uma arte instigadora, que possibilite aos diferentes nichos sociais
rearticularem suas formas representacionais no espaço quadrinístico.
no ano de 1953, no livro de sua autoria, intitulado Applied Imagination: Principles and Procedures of
Creative Thinking, encontrado no Brasil sob o título O poder criador da mente.
23
Nesse contexto de revisão crítica sobre a gênese das HQs podemos notar a
criatividade que marcou o estabelecimento dessa arte ao agregar a si, a icnografia e a
escrita pelas vias mais diversas. Contudo, alertamos para uma questão: a invisibilidade,
ou mesmo a ausência dos povos de etnia negra nos seus requadrados2 (fig. 1).
Figura 1 – À procura dos negros nos quadrinhos
Fonte: MOREIRA, Roberto. Tem alguém mentindo no PT. Disponível em:
<http://blogs.diariodonordeste.com.br/robertomoreira/tem-alguem-mentindo-no-pt/interrogacao-5/>.
Acesso em 21 abr. 2013.
Nota-se, no âmbito de produção das HQs, que poucas, ou, às vezes, nenhuma
personagem negra circulava neste espaço de construção de saberes e produção de
discursos, baseada em uma memória marcada pelo estabelecimento de um estereótipo.
Mesmo com as mudanças ao longo do tempo, através das quais a razão e a igualdade
entre os povos são conclamadas, a maioria das personagens continuaram e continuam a
ser de etnia branca, desenhadas e divulgadas por e para este universo, guardando, nas
suas entrelinhas, as forças regulamentadoras das estruturas de poder simbólico que as
constituem.
Essas dinâmicas relacionais, como sistemas simbólicos, organizaram-se
assumindo uma prática de poder estruturante, dimensionada em torno de interesses
particulares. Cotidianamente, construíram uma cultura e a nomearam universal, mas, na
prática, as bases que a solidificam utilizaram apenas, para sua composição, uma
percepção de mundo eurocêntrica, excluindo negros e outros grupos étnicos da sua
representação.
2
Diagramação também conhecida como quadro, cercadura, vinheta, utilizada na arte sequencial, para
dispor os elementos gráficos da narrativa quadrinizada. “[...] Um elemento visual que também pode
revestir-se de uma significação, exercendo uma função metalinguística” (SANTOS, 2002, p. 23). O
traçado reto reflete ações no presente, enquanto o contorno sinuoso ou ondulado, representam o passado.
24
A cultura ocidental que estiliza um modelo sócio-político, econômico e
cultural, acaba por segregar o outro, tido como diferente, postulando-lhe rótulos de
ilegitimidade e inferioridade, assumindo, a partir daí, um duplo discurso: do grupo
majoritário sobre o grupo majoritário e deste sobre os grupos minoritários. Nesse
sentido, essa invisibilidade dos negros nos quadrinhos realiza a sua funcionalidade
política, social e econômica de imposição e de legitimação da dominação através da
prática do poder simbólico, o que se constitui, por conseguinte, também, uma violência
simbólica (BOURDIER, 2001).
Essas violências operam através das formas desiguais com que negros e
brancos são tratados nos quadrinhos. Não existe um interesse mercadológico da
indústria cultural em torno da criação, difusão e divulgação de histórias em quadrinhos
com personagens negros no papel de herói e heroínas. Embora, conforme salienta Scott
McCloud (2006), haja espaço suficiente nos requadrados, além de haver uma grande
necessidade fora deles, para que se faça uma revolução quadrinística.
Para uma melhor compreensão do acima destacado, McCloud propõe nos
seus estudos teóricos, expressos através de narrativas quadrinizadas, “[...] doze rotas
para escapar à apatia, à inércia e ao status quo” 3, pelas quais as HQs vêm passando,
com o objetivo de assegurar o crescimento dessa arte em diversas direções, conforme as
figuras 2 e 3. Embora essas rotas se encontrem interligadas, nos apropriaremos com
maior profundidade da que trata da representação das minorias, grupo no qual a
comunidade étnica negra e seus descendentes, encontram-se inseridos, visto que, ainda
de acordo com as ideias do autor, “[...] os quadrinhos podem ser consumidos e
produzidos não somente por indivíduos brancos, masculinos, heterossexuais e de
classe média” 4.
3
4
MCCLOUD, 2006, p. 23, grifo do autor.
MIbidem, p.11, grifo do autor.
25
Figura 2 – Doze direções em que os quadrinhos podem crescer
Fonte: MCCLOUD, Scott. Reinventando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda,
2006, p.23.
Figura 3 – As doze direções
Fonte: MCCLOUD, Scott. Reinventando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda,
2006, p.22.
26
Nesse sentido, vale destacar que, como bem sabemos, “há silêncios que são
revelações” (BASTIDE, 1973, p.115); isso porque se constituem eficazes em não
divulgar, promover e difundir conhecimentos contraproducentes às suas ideias e a aos
seus discursos. O que nos leva a aferir que os espaços lacunares, pelos quais os negros
transitam nas Histórias em Quadrinhos, se configuram como uma possibilidade de se
negar a sua existência e assim, também, ocultar a sua presença (SILVA, 2004). Tornamse, assim, os quadrinhos um instrumento de dominação e um espaço desfavorável à
comunicabilidade, o que, em grande medida, acaba por gerar uma bipolarização
representacional dos grupos – brancos e não-brancos.
A mídia jornalística exerceu um papel preponderante neste contexto; afinal,
seus instrumentos foram os grandes difusores dessa arte literária, contribuindo,
decisivamente, para veicular uma estética branca aos requadrados, conforme nos alerta
Souza:
É a autoridade da estética branca quem define o belo e sua contraparte, o feio,
nesta nossa sociedade classista, onde os lugares de poder e tomada de
decisões são ocupados hegemonicamente por brancos. Ela é quem afirma: “o
negro é o outro belo”. É esta mesma autoridade quem conquista, de negros e
brancos, o consenso legitimados dos padrões ideológicos que discriminam
uns em detrimento de outros (SOUZA, N., 1983, p.29).
Afinal, as histórias em quadrinhos funcionavam de acordo com a cultura de
cada época, com os modismos, as experiências de vida dos sujeitos que as produziam;
em consonância com as dos sujeitos que as consumiam, viabilizando a lógica simbólica
de dominação que estabelece as normas, os valores, as regras, os habitus.
Ao produzir um modelo que dialoga com o seu público-leitor, as HQs para
além do entretenimento, tornaram-se um bem de consumo cuja finalidade atrelava-se à
produção em grande escala das narrativas e sua divulgação gerava, consequentemente,
um aumento nas vendas e nos lucros. Dentro dessa lógica simbólica, universalizaram-se
através de uma hierarquia que assegura a representação do grupo majoritário, mantendo
os demais grupos, minoritários, à margem da sua produção.
Nos requadrados, os procedimentos de exclusão tornam-se visíveis e, em
consonância a estes, os mecanismos coercitivos de desejo e de poder estabelecem-se,
rapidamente, nas linhas discursivas. Fixa-se o que pode ser dito ou o que pode ser
publicado; como pode ser dito ou como pode ser publicado e em quais circunstâncias,
evidenciando o princípio da interdição ou da palavra proibida (FOUCAULT, 2011).
27
Dessa forma, ao se moldarem as HQs ao princípio da interdição ou da palavra proibida,
a sociedade de consumo nos aponta uma direção: o silenciamento, através do
apagamento da comunidade negra das Histórias em Quadrinhos.
Teoricamente, no campo jurídico, essa realidade é negada, pois foram criadas
leis que reafirmam as condições de igualdade entre os povos, entre a comunidade negra
e a comunidade branca. No entanto, na prática, esses discursos se distanciam, pois as
realidades são, cada vez mais, excludentes e desiguais, evidenciando a existência do
racismo, do preconceito e da discriminação, que possuem raízes históricas. Os
problemas que temos hoje, especificamente no Brasil, representam o agravamento das
dificuldades resultantes das relações de força e dominação, estabelecidas pelos povos
brancos europeus sobre os povos negros africanos, anteriormente ao processo de
colonização pelo qual passou o continente americano.
As ações de dominação se constituíram em graves violações aos direitos
humanos. O controle político-econômico exercido pelas classes dominantes não levava
em consideração o outro nem a biodiversidade encontrada. “Incomodados” (MOORE,
2008, grifo nosso) em África, os povos negros passaram a “incomodar” lutando pela sua
independência territorial e pela liberdade emocional e psicológica em relação ao que
havia sido imposto. Estabeleceram-se, por parte dos povos negros em relação às ações
implementadas pelos povos brancos, desfavoráveis à sua existência, movimentos de
resistência. Estes atravessaram o Atlântico e ocuparam a América.
No Brasil, os caminhos trilhados se encontram em conformidade com essas
lutas, pois, desde o período colonial, passando pelo abolicionismo e Independência
Nacional, até adentrar a República, o povo negro e seus descendentes almejaram o
estabelecimento de políticas públicas afirmativas, posto que, nos diferentes contextos,
suas oportunidades sociais mantiveram-se em situação de inferioridade. A incorporação
histórica, revelada na forma de se gerir o país, encontra-se carregada de um
anacronismo que se evidencia na improbabilidade de tornar possível “a solidariedade
genuína” (BAUMAN, 2001, p. 202). O que acontece é “[...] uma tentativa desesperada
de separar “nós” e “eles”; então os traços cuidadosamente espiados “neles” são tomados
como prova e fonte de uma estranheza que não admite conciliação.” (BAUMAN, 2001,
p. 203).
Assim, conforme Levi-Strauss (1955), os povos de etnia branca organizaramse através da imposição sobre o outro, aqui, especificamente sobre a comunidade negra,
através de uma lógica de dominação, disseminando sua ideologia, para fins de que o
28
outro construísse uma imagem assemelhando-se à sua; o que faria deles negros de “alma
branca”. Nessa dinâmica, o poder “encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos,
vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida
quotidiana” (FOUCAULT, 1979, p. 131). E o outro, o diferente, com sua visão de
mundo pautado nas forças cosmogônicas, foi deixado à margem e expulso das redes de
poder, através da imposição da etnia branca, pelo uso de estratégias discursivas
(FOUCAULT, 1979, p. 131) eficazes em promover sujeição à sua cultura,
enclausuramentos em guetos e a invisibilidade do povo negro.
Esses pressupostos hierárquicos inferiorizantes em torno das minorias
culturais, raciais e religiosas, serviram para estigmatizar as relações sociais e
desencadear toda forma de intolerância e desrespeito ao povo negro, imputando-lhe “um
sistema de dominação de classes de etnocontroles excludentes” (CUNHA JUNIOR,
1998).
Como resultado, podemos observar a legitimação negativa da comunidade
negra, através da sujeição cultural, subalternidade pelo silenciamento, negação de
direitos e de uma impossibilidade de autovalorização, haja vista que tais movimentos
imputam ao povo de etnia negra uma baixa autoestima. Face ao exposto, nota-se que,
progressivamente, os núcleos cêntricos estigmatizaram, rejeitaram e colocaram esse
grupo étnico-racial sob suspeita (SILVA, 2004).
Vitimizados, esses sujeitos acabam por internalizar tais ações a que foram
submetidos e iniciam, desde a mais tenra infância, um processo de autorrejeição,
desprezando, consequentemente, tudo em torno de si, desde os seus fenótipos até a
tradição cultural que os caracteriza, fragmentando, assim, os seus sentimentos de
pertencimento e de ancestralidade, encontrados em África e tão necessários à sua
etnogênese.
Com essa perspectiva, podemos perceber que, no contexto emergente, e
também durante um longo período, a comunidade negra apareceu representada
societariamente e em locus, na arte sequencial, dentro de um continnum conceitual
estruturado dentro de uma lógica de dominação narcísica, grafado com base no reflexo
de um espelho imaginário branco, ou seja, caricaturado ou marcado pela presença de
estereótipos inferiorizantes. Estereótipos, aqui compreendidos, segundo Roger Bastide
(1973) como uma ação que envolve um julgamento de valor que bipolariza o negro em
bom ou ruim, em feio ou belo, submisso ou insurgente. E assim,
29
[...] o povo negro só aparecia nas histórias como coadjuvantes temporários
nas aventuras dos heróis brancos, ou caricaturados, mantendo o estereótipo
de que o negro é inferior, feio, mal, primitivo, menos inteligente, falante de
uma língua não culta. [...] É fácil identificar o racismo nos comics ou nas
bandes dessinées, sobretudo pela lacuna (CIRNE, 1982, p. 54).
Nessas vias, em trânsito, a comunidade negra sempre explicitou sua posição
contrária em partilhar desses discursos. E as relações entre negros e brancos sempre
coexistiram de forma tensionada neste universo fronteiriço, sociocultural, refletindo-se
nas páginas das HQs através de uma visibilidade estereotipada ou de uma invisibilidade,
ocasionando choques de temporalidades. Pois, sob o “manto” da subordinação, ao se
verem retratados de forma inferiorizante, na historiografia nacional e nas Histórias em
Quadrinhos ou ao não se verem representados, esses sujeitos adquiriram e constituíram
mecanismos de resistência, adaptando-se ao meio, por vezes se fundindo e se recriando,
em consonância com a cultura dominante, a fim de resgatar e preservar suas memórias e
tradições (SILVA, 2004). Esses imbricamentos foram imprescindíveis para que as
possibilidades de compreensão acerca dessa problemática ganhassem forma e
estabelecessem uma tomada de consciência acerca dos papéis que os diferentes sujeitos
vêm exercendo nas diferentes esferas sociais, dimensionando o ser negro e o tornar-se
negro.
Mas, como se aprende a ser negro? Como se aprende a tornar-se negro?
Vanda Machado (2010, p.9), de maneira transgressora, nos diz que só se
aprende sendo e tornando-se. E para tanto sugere a descristalização “[...] do modelo
cultural instituído, fechado no assujeitamento de pensamentos lineares”5. Isso requer um
processo de aprendizagem que “[...] inclui atos celebrativos que estimulam e agregam
tudo que dá vida à vida comunitária [...]”6 , possibilitando “[...] compreender o mundo
como algo que se move dentro e fora de nós mesmos [...]” 7 ,
possível de ser
transformado, desde que seja assegurada, na pulsão das culturas e, consequentemente,
na formação do indivíduo, uma posição contrária às ações anticivilizatórias instauradas
e que, hierarquicamente, discriminam continentes, etnias, pessoas e religiões.
E segue a autora a dizer que, entre tantos caminhos, o mais humano para que
essas aprendizagens se deem, está na superação das intolerâncias e afastamentos, na
abertura a descobertas espirituais e filosóficas milenares dentre as tantas epifanias de
5
6
7
MACHADO, 2010, p.9.
Ibidem, p.9.
Ibidem, p.9.
30
Deus no meio de homens e mulheres em todos os tempos. Então, conhecer, promover,
agir, são possibilidades “[...] da cura do mal da nossa própria ignorância [...]”
(MACHADO, 2010, p.9).
Assim, transversalmente, o povo negro, nesse processo de ser e tornar-se
negro, passou, cada vez com maior vigor reivindicatório, a buscar uma condição de
igualdade perante a sociedade. Para tanto, estabeleceu novas lógicas, em detrimento das
impostas, sendo estas pautadas na sua historicidade, na sua ancestralidade e nos seus
registros memorialísticos. Como afirma Cunha Junior:
A marca africana é indiscutível na cultura brasileira. Mas estes povos
africanos e afro-descendentes, nas suas epopéias de busca de liberdade e de
igualdade social, realizaram eixos marcantes da história social do povo
brasileiro. Empreenderam milhares de quilombos, de rebeliões, de
instituições no combate ao escravismo criminoso. Tiveram intensa
participação em todos os movimentos da história nacional. No pós-abolição,
a história de africanos e afro-descendentes se transcreve na organização de
novos movimentos sociais, religiosos e culturais, entre os quais se destaca um
atuante Movimento Negro (CUNHA JUNIOR, 2005, p. 251).
Essas rearticulações, dentro do sistema conjuntural, para fins de reelaboração
dessas realidades, em torno da comunidade negra, tornam possível afirmar que a
incorporação de personagens de etnia negra no papel de heróis e heroínas no espaço
quadrinizado ocorreu anteriormente às suas primeiras manifestações gráficas,
transpostas para as folhas de papel. Elas ecoaram a partir deste sentimento de
pertencimento e deslocamento, constituído nos encontros e nos desencontros: encontros
entre povos diferentes, com culturas próprias e falares diverso; desencontros, por
estarem forçosamente atuando em espaços territoriais, nos quais lhes eram negadas
condições mínimas de existência e sobrevivência.
Neste processo interacional, tornou-se imprescindível a construção de uma
comunidade
cultural,
no
período
colonial,
pós-colonial,
republicano
e
na
contemporaneidade, que primasse pela manutenção dos seus costumes, das suas
tradições, da sua memória e da sua identidade étnico-racial. Algo que só pode ser
pensado a partir do estabelecimento de uma rede de solidariedade e alteridade,
construída entre os diferentes sujeitos e necessária para a manutenção dos processos de
lutas e resistências. A diferença legitimou, de forma positiva, a reconstrução desta
autoidentidade negra e, conforme Zygmunt Bauman (2001, p. 202), esta semelhança foi
decididamente mais significativa que os traços que indicavam uma separação;
31
“significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de tomar
posição”.
E é esta posição histórica que nos impele a transferir aos quadrinhos um
potencial de expansão dos objetivos almejados pelas lutas e resistências do povo negro.
Acreditamos ser este um espaço possível para uma pauta discursiva de temáticas que
coloquem o povo negro no mesmo plano de valorização estético-moral afetiva dos
povos brancos (MOORE, 2012).
No entanto, é necessário que o compromisso com a democracia e a
democratização dos saberes se concretize e que os postulados e ideários de dominação
sejam identificados, apresentados, examinados e erradicados, dando espaço para a
construção de novas lógicas sociais, em detrimento das historicamente impostas.
1.2 TEORIA DA REPRESENTAÇÃO SOCIAL: NOS BALÕES CRUZADOS DE UM
CONCEITO
O conceito de representação social, cunhado pelo estudioso romeno,
naturalizado francês, Serge Moscovici, foi apresentado à sociedade através da obra A
representação social da psicanálise, no ano de 1961. O objetivo do pesquisador era
redefinir as estruturas que alicerçavam os saberes da Psicologia Social, através do
fenômeno das representações sociais, ressaltando sua função simbólica e seu poder de
construção do real (MOSCOVICI, 1978), pois a forma como esta se encontrava
organizada não privilegiava, nos seus embasamentos teóricos, discussões que
abarcassem as contradições sociais.
Moscovici acreditava que a Psicologia social deveria buscar contribuições em
grandes pensadores, como Marx, Freud, Piaget e Durkheim para desenvolver-se. Nestes,
entre outros, seria possível estudar os indivíduos e seus grupos, com base numa
abordagem epistemológica mais do movimento, da mudança, situando-os no mundo, do
que da ordem social, das reações e dos ambientes fixos. Dessa forma, a compreensão de
questões relacionadas às desigualdades étnico-raciais, aos “[...] fenômenos da
linguagem, à força das ideias na construção da sociedade, a realidade social”
(GUARESHI, 2007, p. 26) tornar-se-iam possíveis de ser compreendidas através da
necessidade de se estabelecerem aproximações e distanciamentos dos objetos.
32
Neste contexto, para ir além e assegurar os procedimentos de renovação a
uma ciência que, aos seus olhos, necessitava de uma grande revisão crítica, o
pesquisador debruçou-se sobre o conceito de representação coletiva, desenvolvido por
Émile Durkheim (2007)8. Neste, compreendeu “[...] que a vida social é a condição de
todo pensamento organizado – e, de preferência, que a recíproca também é verdadeira
[...]” (MOSCOVICI, 1978, p. 42). Entretanto, para que essa compreensão se
concretizasse, seria necessário o estabelecimento de uma abordagem explanatória que
desse conta da pluralidade desses modos de organização, pois Durkheim apresentava de
forma muito genérica este locus contextual que é a sociedade.
As ideias daquele autor, embora inovadoras para a época em que foram
debatidas, abarcavam uma cadeia de formas intelectuais - ideologia, mito, opinião,
atitudes, imagens, modalidades de tempo, espaço, ciência, entre outros - muito ampla,
necessitando passar por uma profunda análise na sua estrutura e/ou na sua dinâmica
interna. Mas, como isso não ocorria, acresciam-se os problemas em torno da sua análise,
porque, quanto mais se incluíam essas formas intelectuais, esses conhecimentos e
crenças reguladoras das sociedades, mais lacunares tornavam-se os mecanismos para
que se estabelecessem a sua compreensão (MOSCOVICI, 2012).
Durkheim não levava em consideração que toda representação - no campo da
ciência, da técnica, da filosofia, das artes – foi constituída sob forte influência dos
referenciais conceituais internos e externos; que cada sujeito traz consigo em interação
com o grupo a que pertence; tampouco que cada uma dessas representações foi definida
de forma muito específica por esses mesmos sujeitos e grupos que a compuseram
(MOSCOVICI, 1978).
Procurando afastar-se das concepções de sentido estático inadequados aos
processos psicossociais, que estabeleciam divisões do tipo indivíduo/subjetivo/objetivo,
o Moscovici (1978) permitiu-se diferenciar representação social de modalidades
conceituais, como os mitos, a ciência, a ideologia etc, embora ciente de que cada uma
8
Segundo o sociólogo Émile Durkheim (2007) as representações coletivas nascem das interações sociais,
fruto das crenças e sentimentos de cada indivíduo, que, agregados, lhe dão vida própria. Sem essas
crenças e sentimentos a sociedade não existiria. No seu processo de difusão, essas representações acabam
por sobrepujar a esfera individual, formando propriedade e condições de existência próprios, que, devido
a sua força, se estabelecem, se solidificam e jamais passam, diferentemente dos indivíduos, embora
tenham se originado deles. E, assim, o social, em função do seu poder coercitivo, impõe-se através das
regras e normas, cabendo ao indivíduo viver de acordo com cada uma dessas, ou seja, agir em
determinação, não em função de um sistema de pensamento individual e particular, mas em função de um
sistema maior que é a consciência ou a representação coletiva.
33
destas encontrava-se mediada por representações cognitivas e sociais. E assim as
sistematizou:
As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam,
cruzam-se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto,
um encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais
estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações
trocadas, delas estão impregnados. Sabemos que as representações
correspondem, por um lado, à substância simbólica que entra na elaboração e,
por outro, à prática que produz a dita substância, tal como a ciência, ou os
mitos correspondem a uma prática científica e mítica (MOSCOVICI, 1978, p.
41).”
Nessa encruzilhada “mista”, marcada por uma série de conceitos sociológicos
e de uma série de conceitos psicológicos, Moscovici (1978) segue afirmando que a
representação social se constitui através de um conjunto de proposições, reações e
avaliações, estruturando-se de modos diversificados entre as classes sociais, entre as
diferentes culturas e os grupos, normalmente em acordo aos coros coletivos de opinião
pública que os compõem. E, nessa composição, esses universos representacionais
acabam por englobar três dimensões de natureza social: a informação, o campo de
representação e a atitude.
A informação refere-se aos níveis diferenciados de conhecimento que um
sujeito ou grupo possui acerca de um determinado saber ou objeto social. Tais
conhecimentos são elaborados por meio das estruturas intelectuais de cada sujeito - seus
sentidos, suas percepções, seu raciocínio, sua linguagem etc. – e por meio das relações
de interação que ele estabelece com outros sujeitos sociais. De maneira geral, podemos
dizer que, nessas trocas, novas e diferentes, visões do mundo despontam, algumas numa
dimensão mais elaborada e outras menos, de acordo com o número de informação que o
sujeito possui sobre o assunto em questão.
O campo de representação compreende a ideia de imagem, de modelo social,
englobando também o conteúdo concreto e limitado das proposições que se referem a
um aspecto preciso do objeto representado. Esta dimensão pressupõe que existe uma
unidade hierarquizada de elementos dentro da sociedade, uma imagem representada em
uma tela seletiva, que varia e abrange juízos formulados e afirmações sobre uma dada
realidade.
A atitude, por sua vez, remete-nos à avaliação. Há uma tendência incomum
nos diferentes sujeitos, voltada para os objetos, para as pessoas ou para as atividades, de
impor escalas valorativas, classificatórias e somativas para determinar o grau de
34
importância de um problema. Tal feito, em contexto social, tende a apresentar sobre o
objeto representado uma orientação global, que pode ser positiva ou negativa, favorável
ou desfavorável, resultante da maneira como uma dada informação chegou e foi
apreendida e incorporada às práticas de vida do sujeito.
A atitude gravita sobre pontos de vista muito específicos, tendendo a ser
instável, com uma propensão à formação de estereótipos. Normalmente, quando assume
essa forma, a dimensão da atitude tende a olhar o objeto investigado sempre de fora,
sem levar em consideração seus atores sociais, suas intenções e propensões, ou seja,
sem levar em consideração o ser humano com seus questionamentos e busca por
respostas. (MOSCOVICI, 1978).
Observando as três dimensões acima aludidas, concluímos que o sujeito só
representa e informa alguma coisa à medida que se posiciona, assumindo uma atitude
acerca de e em função do objeto, embora nem sempre essas localizações se estruturem
de forma coerente (MOSCOVICI, 1978).
De certo, os contextos histórico, político e social permitem que o sujeito, em
sua atividade representativa, articule-se com o objeto concreto, não de forma passiva,
mas ativa, no imbricamento entre o universo social e material, tornando visíveis as
relações entre o universo simbólico e a realidade social. Nesse sentido, a representação
social torna-se
[...] uma “preparação para a ação”, ela não o é somente na medida em que
guia o comportamento, mas, sobretudo, na medida em que remodela e
reconstitui os elementos do meio ambiente em que o comportamento deve ter
lugar (MOSCOVICI, 1978, p. 49).
Assim,
o
fenômeno
da
representação
social
constitui
formas
de
conhecimentos concretos que se realizam em si mesmas, dentro de um contexto
dinâmico, ativo, em que o indivíduo e grupo, devido ao seu poder criador, os
reelaboram através de atividades representativas combinatórias. Ao mesmo tempo em
que seguem em direção a si mesmos, seguem em direção aos diferentes outros, o que
torna possível definir as relações estabelecidas, que podem ser ou não socialmente
valorizadas e representadas através das ausências ou das presenças.
Na sua prática, na sua diversidade de conteúdos e na sua estruturação, a
representação social sempre leva em consideração os conhecimentos populares, a
cultura, os valores e as crenças, esse senso comum que circula na nossa sociedade.
35
Nesse sentido, a vida cotidiana e a ciência servem de ancoragem para que os modos de
compreensão sobre o mundo se concretizem, visto que são indissociáveis. Esses
permitem que as representações sejam agarradas ao vivo, compreendendo como elas são
geradas, comunicadas e colocadas em ação no dia a dia.
Na perspectiva acima, “[...] os conceitos ganham cor ou se concretizam (ou,
como é costume dizer, objetivam-se), enriquecendo a tessitura do que é, para cada um
de nós, a realidade” (MOSCOVICI, 1978, p. 51). Toda esta estrutura torna-se possível,
porque as representações sociais são ao mesmo tempo teorias, ciências coletivas,
designando a compreensão e elaboração do real. Numa perspectiva dialógica, a
representação social torna o que não é familiar em algo familiar. O não familiar, nesse
processo psicossocial, acaba por encarregar-se de compor o universo familiar.
Sob tal prisma, a teoria da representação social tornou-se fundamental para o
desenvolvimento desta temática de investigação, por permitir que fossem visualizados,
por meio dos processos simbólicos formulados em seu entorno, os fios que lhe tecem e
lhe servem de sustentação. Através da manipulação do simbólico, poderemos observar
as mudanças e permanências que se operacionalizaram na representação social do negro
nas Histórias em Quadrinhos.
Nas palavras de Sá e Arruda (2000, p.16), a pesquisa poderá escapar da
rigidez proposta por outras teorias e absorver a diversidade de fenômenos que
contribuam para explicar os problemas na tentativa de resolvê-los, vez que o campo das
representações sociais é um espaço de indagações, reflexões, embates, de produção
científica, de encontros, trocas e solidariedade. Assim, a cada elaboração e reelaboração
das produções quadrinistas, poderemos constatar que somos, a todo instante,
interpelados por palavras, imagens e ideias, que nos penetram através dos nossos olhos,
nossos ouvidos e nossa mente, sem que, muitas vezes, nos apercebamos, e acabam por
orientar as nossas condutas.
Neste sentido, é oportuno poder integrar as HQs a esse quadro do real,
imbuindo-lhe a tarefa de compreender as construções e reconstruções das ideias que a
permeiam. Assim, será possível “preencher lacunas, suprir a distância entre o que se
sabe, por um lado, e o que se observa, por outro, completar as „divisórias vazias‟ de um
saber pelas „divisórias cheias‟ de um outro saber [...]” (MOSCOVICI, 1978, p.5), uma
vez que se busca superar um invisível, que nos fora transposto através de canais de
comunicação considerados legitimados, como a educação, os meios de comunicação e
as instituições.
36
Durante esse processo de interlocução, cada um desses fenômenos,
difundidos em ambientes naturais e/ou sociais, assume, na sua composição, a função de
convencionalizar e prescrever o mundo (MOSCOVICI, 2011). Tudo isso, com uma
certa dose
de autonomia e de
condicionamento, que pode ou não interferir nas
atividades cognitivas de cada indivíduo.
As representações convencionalizam os objetos, as pessoas ou os
acontecimentos, na medida em que estabelecem modelos para serem compartilhados
entre os grupos. Ao mesmo tempo, tornam-se prescritivas, porque conseguem se impor
a cada um desses sujeitos de forma e com uma força considerada irresistível.
No processo de condicionamento, as representações buscam reconhecer os
objetos, as direções que estes assumiram, o rumo que tomaram ou se mudaram. Ajudam
a identificar as mensagens significativas daquelas não significativas, que interligam as
partes de um todo, colocando cada sujeito em uma categoria distinta. Ninguém se
encontra imune aos condicionamentos, visto que estes são determinados e se
configuram através da linguagem e da cultura. Isso não implica dizer que não podemos
escapar deles, principalmente daqueles forjados por determinados grupos hegemônicos,
que veem no outro uma não familiaridade porque dele diferem. Esse não tornar o outro
familiar, porque seus traços físicos, suas tradições e experiências são diferentes, pode
ocasionar medos, incertezas, incongruências.
Quanto às representações prescritivas, estas nos são transmitidas ao longo do
tempo, sendo a resultante de sucessivas elaborações e transformações que aconteceram
em diferentes gerações. Através da tradição, nos ditam o que deve ser pensado, e esses
pensamentos são compartilhados por cada indivíduo, por cada grupo, numa relação
interpessoal, não como construções novas do pensamento, mas como construções repensadas, re-citadas e re-presentadas.
E assim, “essas criaturas do pensamento” que
são as representações sociais, as ideias, acabam por se constituir em um ambiente real,
concreto, nos confrontando a todo instante (MOSCOVICI, 2011).
Portanto, é necessário que a nossa percepção não se encontre obscurecida,
para que percebamos os mecanismos de controle sociopolíticos existentes, que, com
suas lógicas, limitam e alienam as relações sociais. Compreendendo-as, por mais
intricadas que elas estejam, será possível extrapolar muros e construir uma nova
realidade material com modelos sociais mais participativos, criativos e solidários,
quebrando as amarras das informações presentes.
37
Em relação à representação social do negro nas Histórias em Quadrinhos, no
papel de herói e heroína, podemos, de acordo com a investigação que realizamos,
observar a presença do convencionalismo e da prescrição nas suas construções
imagéticas. As narrativas quadrinizadas, embora tenham sofrido transformações, ao
longo da sua trajetória, na sua consistência e estabilidade, resultando em novas formas
de representação, mais elaboradas em acordo aos avanços tecnológicos e sociais, ainda
experimentam as influências comunicativas impostas em decorrência dos sistemas de
investigações evidenciados através da ausência do negro nas narrativas ou de uma
presença cuja centralidade discursiva abordava conteúdos que envolviam recalques,
situação de violência, conflitos políticos, doença, fome, miséria. Poucas são as revistas
que representam a comunidade negra a partir de uma correlação positiva.
Como a comunidade brasileira é “[...] muito sensível às aparências [...]”
(D‟ADESKY, 2009 p. 88), essa proliferação de ideias dicotomizadas em relação ao
negro nas publicações, por sua carga persuasiva em acordo a sua linguagem, pode
contribuir para a manutenção desses pensamentos e crenças. Isso não implica dizer que
essas representações constituam um componente determinante e próprio desse grupo
étnico, mas necessitam ser analisadas como produto mercantilizado, que, ao ser
vendido, apresenta componentes que rotulam o outro por meio de uma forte carga de
inferiorização.
Nesse processo dialético, o construído acaba por assumir um significado
maior na situação, em particular, negativa, motivada por um discurso que vem sendo
difundido, sem que seja colocado na centralidade de fala o sujeito que o ocupa. Assim
sendo, nesse mundo de representações, o que a sociedade necessita é de informações, de
palavras, de comunicação e de noções para entender o outro e, assim, revelar o que fora
encoberto, escondido. Nas palavras de Moscovici, tornar o estranho familiar,
transformando o mundo sem deixar que ele seja o mundo de e para todos (1978).
No entanto, no mundo em construção, seja por medo ou por acomodação,
sempre o que prepondera é a busca por segurança; o novo causa-nos um efeito de
estranhamento, por isso o indivíduo tende a excluir o que lhe é desconhecido. Sobre isso
observam os autores a seguir:
Procuramos sempre nos unir a algo com que nos identificamos, a algo que
seja familiar para nós, mas quando não há essa identificação na relação entre
“iguais”, ou seja, quando o “outro” não é uma cópia de mim, quando ele não
se encaixa nos meus padrões, quando ele foge das minhas convicções, então
há uma redução do outro ao mesmo, constituindo-se em práticas de exclusão
38
e supressão de toda forma de diferença/alteridade e, ao mesmo tempo,
assemelhando-se às estratégias políticas nacionalistas, xenófobas,
chauvinistas e racistas (ABRAMOWICZ, OLIVEIRA, 2006, p. 58).
“[...] O racismo é o caso extremo em que cada pessoa é julgada, percebida,
vivida, como representante de uma sequencia de outras pessoas ou de uma coletividade”
(MOSCOVICI, p. 1978, p. 64). Sendo assim, é imprescindível que, sobre essas práticas
de inferiorização, estereótipos, estigmas e exclusão, novos discursos sejam incorporados
quanto à representação dos negros na HQs. É necessário que a comunidade negra
mantenha-se em constante processo de inscrição nos espaços públicos, reclamando
igualdade de direitos e de razão, afirmando sua identidade negra de forma positiva e um
tratamento legislativo e judiciário regulamentados.
Uma das estratégias de enfrentamento que pode ser assumida pela
comunidade negra é manter em pauta, discursiva e reflexiva, essas “invisibilidades”. No
caso específico da temática em estudo, é imprescindível saber: Quem produziu essas
HQs? Em quais condições? Por quê? Compreendendo também: O que mudou? O que
não mudou? Por que mudou? E porque não mudou?
Assim, poderemos nos interpelar a todo instante, sobre como esse passado foi
construído, como ele se reflete sobre o presente, almejando avanços quanto ao futuro.
Através do ato de representar, poderemos trazer para a realidade os fatos conhecidos
e/ou desconhecidos, para analisarmos como estes últimos, no imaginário dos diferentes
sujeitos, é enunciado. Nessa busca, o que parecia tão ausente, distante, pensado como
inatingível, tão não familiar, tornar-se-á mais tangível, mais familiar, nesta relação euoutro-sociedade, ou diríamos, quadrinho e sociedade.
Vale ressaltar, que é transitando neste mapa das relações e dos interesses
sociais através da imagem, da informação e da linguagem que objetivaremos este
estudo. Entre avanços e recuos, tentaremos compreender como a comunidade negra
vem, gradativamente, influenciando e mudando sua forma de ser representada nas
Histórias em Quadrinhos.
39
2 AVANÇOS E DESAFIOS NA REPRESENTAÇÃO DO NEGRO
NOS QUADRINHOS
“No meio do caminho tinha uma pedra”,
mas a ousada esperança
de quem marcha cordilheiras
triturando todas as pedras
da primeira à derradeira
de quem banha a vida toda
no unguento da coragem
e da luta cotidiana
faz do sumo beberragem
topa a pedra-pesadelo
é ali que faz parada
para o salto e não o recuo
não estanca os seus sonhos
lá no fundo da memória,
pedra, pau, espinho e grade
são da vida um desafio
e se cai, nunca se perdem
os seus sonhos esparramados
adubam a vida, multiplicam
são motivos de viagem (EVARISTO, 1992, p. 21).
Conceição Evaristo, ou Maria da Conceição Evaristo Brito, autora dos versos
da epígrafe que abre este capítulo, nasceu na cidade de Belo Horizonte, no ano de 1946.
Conforme nos relata em seu blogspot “Nossa escrevivência”, a sua vida, desde a mais
tenra infância, foi marcada por palavras, pela presença da oralidade, da prosa e da
poesia.
Ao crescer, ela apropriou-se dessas suas vivencias, religou-as a outras e
adentrou o universo literário brasileiro para fins de subverter os conceitos criados acerca
do povo negro. Assim, através da sua produção literária se dizia mulher-negra,
produtora de uma literatura-negra, que almejava alcançar um número elevado de leitores
negros para reafirmar que o lugar do negro na sociedade são todos os lugares e estes só
precisam ser assegurados. O poema “Pedra, pau, espinho e grade” inspirado no verso
“no meio do caminho tinha uma pedra”, de Carlos Drummond de Andrade, amplia e
difere os obstáculos ao longo do caminho, nos oferecendo um estilo e uma estética
poética de possibilidades de superação.
O sentido de negação e repúdio aos conceitos discriminatórios contra a raça
negra e a conclamação à adoção de novos valores de respeito aos direitos desse povo
contido na poesia de Evaristo espelha o momento de intensificação dos sentidos
discursivos criados em torno das diferenças e desigualdades que vem marcando as
últimas décadas. No contexto interno da sociedade global, os diversos atores sociais,
40
através de movimentos protagonizados por negros e também por não-negros, vêm
promovendo ações de reapropriação dos recursos materiais e simbólicos, através do
estabelecimento de relações de poder entre si. Tais relações comunicam, informando
sobre novas e complexas possibilidades, de “utopias de globalização” (SCHWAREZ,
1998, p. 67), da construção de uma sociedade que se beneficia com a convivência entre
os diferentes.
No bojo dessas transformações, podemos afirmar que passamos a assistir e
também a participar, de um novo panorama social, composto por diversos “mundos”,
mobilizados, por sua vez, dentro de um só mundo, que, marcados pela sua
subjetividade, anseiam por rasurar as fronteiras e reafirmar os sentimentos de pertença,
resultantes de uma autoidentificação fixada por meio da integração com os grupos
sociais constituintes. Esse caráter aglutinador, a serviço da diversidade, evidencia um
conjunto de possibilidades e modalidades promotoras da igualdade. No entanto, em
sentido inverso, ainda nos deparamos com pedras, paus, espinhos e grades, ao longo do
caminho (EVARISTO, 2008), nos apontando outras realidades, nas quais se pode notar
a manutenção de forças centrífugas, violando o que fora legalmente conquistado, num
processo contínuo de rejeição das diferenças.
O modo como podemos averiguar essas resultantes é através das demandas
existentes. De maneira geral, podemos afirmar que os povos de etnia negra continuam a
ser os menos escolarizados; os que menos ocupam cargos políticos considerados de
prestígio; os que recebem os mais baixos salários e não habitam as áreas tidas como
nobres da cidade. No entanto, os esforços para a inserção da população negra brasileira
nesses espaços mantêm-se articulados, embora instáveis, pois são muitas as pedraspesadelos encontradas nas suas labutas diárias (EVARISTO, 2008).
As lutas da comunidade negra para transpor essas pedras, que se chamam
racismo, discriminação e preconceito, são muitas. Por melhores condições de vida os
negros seguem em luta, tentando triturá-las, construindo, divulgando e reivindicando
ações antirracistas e antidiscriminatórias, tais como a produção de Histórias em
Quadrinhos, com personagens negros, no papel de heróis e heroínas, em suas narrativas.
Acreditamos que criações como essas possam contribuir, junto a tantas outras,
a exemplo do cinema, da literatura, da televisão, que também são canais poderosos de
comunicação, para transformar ideias em dispositivos estruturais de formação e
informação, e, para tanto, há que se considerar a tríade que as compõe: história,
sociedade e quadrinho. É neste sentido que nos lançamos a salto (EVARISTO, 2008)
41
com o propósito de revelar e discutir essa presença do negro nos quadrinhos no Brasil,
desde as suas produções iniciais, com Angelo Agostini, à atualidade.
Através de caminhos teóricos, considerados coerentes e produtivos, nos
estruturamos elencando alguns períodos históricos, em que podemos perceber,
gradativamente, que, de vítima do racismo, do preconceito, da discriminação e da
situação de escravizadas, mero coadjuvante social, a comunidade negra passou, no
espaço quadrinizado, a uma posição contestatória e de reivindicação da correção desses
valores e premissas. Uma longa caminhada, principalmente se considerarmos que, nos
requadrados, essa mudança começou na segunda metade do século XIX e seguiu
banhando a vida no unguento da coragem (EVARISTO, 2008), incentivada por uma
irrevogável necessidade de se desconstruírem as complexas organizações sociais, que
promoveram, ao longo do tempo, sistemas de opressão consubstanciados na exploração
do outro e no seu apagamento.
Embora o Brasil, junto a outros países, possa ser considerado um país de
vanguarda na publicação de Histórias em Quadrinhos, essa produção permanece sendo
pouco divulgada entre as classes populares, principalmente quando se trata de ilustrar a
realidade, o lugar e a vida do negro. Tendo isso em vista e cientes do quanto o “[...]
discurso canônico „naturaliza‟ os desenhos dos afro-brasileiros e reforça as imagens que
os descrevem como seres passivos, submissos, incapazes de atuar fora do estereotípico”
(SOUZA, 2005, p. 120), buscaremos discutir caminhos alternativos, que apostam na
possibilidade de resistir e superar estas barreiras, transformando-as “[...] em estímulo
para o enfrentamento vitorioso dos desafios e dificuldades (SOUZA, 2005, p. 120).
2.1 CONTEXTOS INICIAIS DE PRODUÇÃO DE HQS NO BRASIL
Na segunda metade do século XVIII, o Brasil passava por um processo de
reordenação social. A estrutura organizativa colonial entrava pari passu em declínio
pressionada pelas mobilizações político-econômicas externas e internas, que almejavam
incorporar ao país um novo regime, o republicano. Esse processo de transitoriedade
continha em si suas contradições, motivada por ideais e anseios peculiares a cada grupo
social, que se dividia, por um lado, entre as camadas da população em situação de
42
marginalização
social
e,
por
outro,
entre
a
elite
responsável
por
gerir
administrativamente o país.
A sociedade em vigor era díspar, não reconhecendo como cidadãos de iguais
direitos uma parte de seus membros. Interessa-nos aqui, especificamente, abordar os
negros-africanos e seus descendentes, que, tampouco, garantiam seu espaço de
contribuição nos processos de mudanças instaurados, validados como relevantes, por
não serem considerados parte integrante do meio nem responsáveis diretos pela
dinâmica econômica instaurada no país, assim como pelo seu desenvolvimento ao longo
dos séculos.
Assim, as medidas aplicadas pelo governo convergiam para as elites
dominantes as riquezas materiais, excluindo a comunidade negra dos seus benefícios.
No entanto, ainda que tais riquezas tenham sido aí concentradas, através dos jogos de
poder, estes foram ineficazes na debilitação das riquezas imateriais do povo negro. Pois,
mesmos submetidos a rígido controle, este manteve vivos seus saberes e conhecimentos.
É durante esse pêndulo estrutural e ideológico que, em 1859, chegou ao
Brasil o imigrante italiano Angelo Agostini, que vivera muito pouco em seu país de
origem, e que muito jovem fora morar em Paris, onde permaneceu cerca de 10 anos
alicerçando as bases para sua formação artística. Jornalista, intelectual, político e
precursor das Histórias em Quadrinhos no Brasil, consagrou a sua vida à carreira de
caricaturista. O viés político, crítico, satírico é marca circundante nas suas obras,
certamente florescido em consequência dos múltiplos contatos culturais vividos pelo
artista nos seus processos de deslocamento. Tendo esse autor produzido significativas
ilustrações contrárias às práticas escravistas, seus trabalhos assumiam um caráter de
crítica político-social, contrária às crenças e valores monárquicos, almejando colocar o
país em um plano de horizontalidade junto às nações europeias, consideradas
civilizadas.
No entanto, conforme nos aponta Gilberto Marigoni Oliveira (2006a), na sua
tese intitulada Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da corte à capital federal
(1864 - 1910), e em entrevista ao Blog dos Quadrinhos, o artista, durante sua carreira,
manifestou ideias paradoxais. No período da monarquia, seus discursos, de cunho
pedagógico e civilizacional, eram proferidos defendendo o fim da escravidão. No
entanto, após a instauração da República, mudou radicalmente de posição, sucumbindo
às complexas teias sociais, políticas e econômicas da época. Seus trabalhos passaram a
assumir o discurso elitista de inconformismo com as consequências que essas mudanças
43
ocasionaram à sociedade, tais como: aumento da violência, acumulo de lixo nas ruas da
cidade, número excessivo de vendedores ambulantes (negros libertos), formação do
movimento jacobino, e, principalmente, a falta de cultura do povo, entre outros
aspectos. E assim, Agostini,
[...] embora seja um dos mais destacados ativistas pelo abolicionismo,
acompanhou o projeto que a minoria branca - na feliz expressão cunhada pelo
governador Cláudio Lembo - tinha para o país: uma sociedade baseada no
liberalismo, no trabalho assalariado, que relegou os negros à própria sorte
(OLIVEIRA, 2006b).
Havia uma confluência de pensamento da sociedade da época monárquica no
sentido de dar aos negros a condição de libertos; mas garantir-lhes, por outro lado,
situações de igualdade fragmentaria o poder simbólico das superestruturas, risco que os
governantes e a elite não gostariam de correr. As concepções em torno da liberdade
sempre se constituíram em ações perigosas; assim, deram-lhes a liberdade, mas novas
práticas de controle foram sendo delineadas. Livres, sim, mas permanentemente
vigiados, punidos e ocupando cargos que dialogassem com a sua situação de exescravizados, ou de descendentes destes, e cujas vidas atestavam ausência de melhorias
nas condições materiais de sobrevivência.
Do escravismo às sociedades de classes, a mentalidade do povo branco
refletia-se no cenário urbano instaurado: os negros continuavam a compor o quadro de
empregados domésticos, viviam do comércio informal, na clandestinidade, nas fábricas
exerciam somente trabalhos braçais e, normalmente, quando se encontravam em algum
ponto fixo comercial, este pertencia a um individuo de etnia branca. Esse cenário levou
o povo negro a manter-se em situação de marginalização.
Embora fosse produtivo preconizar uma fala em torno de mudanças,
denunciando os sofrimentos do povo negro, havia um distanciamento social entre o
discurso e colocar-se inteiramente a dispor dessa causa, como podemos observar na
figura 4, que embora seja uma tira produzida no ano de 2012, sobre a República, ilustra
que, apesar de assegurada a liberdade na forma da lei, caracterizada pelo fim da
escravidão, em 1888, e pela Proclamação da República, em 1889, aos negros não lhes
foram, de fato, assegurados seus direitos.
E assim, em mão única e numa mesma direção, assumindo um tom
paternalista, os discursos da comunidade branca eram difundidos. Como um pai
centralizador, tendo uma visão monolítica sobre o outro, essa comunidade impunha suas
44
leis, suas ideias e seus preceitos. Esperava, por outro lado, da comunidade negra uma
posição de tutelada, de filho obediente e complacente, submisso e respeitoso, sem poder
opinar quanto às decisões políticas e sociais que afetavam diretamente sua vida.
Figura 4 – O ilustrador e quadrinista Tiburcio questiona a República
Fonte: TIBÚRCIO. Meu monarca favorito. Disponível em:
<http://meumonarcafavorito.blogspot.com.br/search?updated-min=2010-0101T00:00:00-02:00&updated-max=2011-01-01T00:00:00-02:00&max-results=50>. Acesso
em 10 jan. 2012.
Há que se considerar que Agostini tem um papel relevante “[...] na implantação
de uma imprensa ilustrada e de agitação em nosso país. Além disso, seus painéis sobre a
escravidão são o melhor retrato visual da barbárie social dos anos 1880 [...]”
(OLIVEIRA, 2006b). Assim, vale a pena destacar que suas primeiras ilustrações nos
chegam através dos cartuns, publicados nas páginas do periódico Diabo Coxo, em 1864,
em São Paulo, onde desenvolveu sua arte ao lado de Luis Gonzaga Pinto da Gama 9.
Comungando, ideologicamente, dos mesmos ideais, mesmo em face do que já fora
explanado, artista e poeta difundiam, através da imprensa, manifestações estratégicas de
9
Luis Gonzaga Pinto da Gama, conhecido comumente como Luis Gama, foi uma figura de grande
representatividade para a comunidade negra durante naquele período. Era mestiço, filho de Luísa Mahin,
ativista negra sempre envolvida nos movimentos de insurreições e suscetível a sua prática, e pai branco,
logo, biologicamente e / ou etnicamente pertencente a dois grupos sociais. Após a última fuga da sua mãe
fora vendido por seu pai como escravo. A condição de escravizado lhe retirou, nos planos social, político
e ideológico, a ambivalência do ser ou não ser negro. Diante desta realidade decidiu assumir um
posicionamento de conflito, adotando para si uma identidade negra (MUNANGA, 2002 apud REIS, 2002,
p. 19) Assim, tornou-se negro, ex-escravo, poeta, abolicionista, jornalista, advogado e responsável pela
redação da revista.
45
luta política, visando a consolidar os processos de respeito e tolerância para com os
diferentes outros (negros e índios). Dessa forma, através do teor das ilustrações e dos
textos, aventurava-se em criticar os costumes do segundo império e deixar entrever a
instauração e a efetividade de um regime contrário aos posicionamentos intramuros
estabelecidos pela existência evolucionista etnocêntrica.
As publicações eram irregulares e logo no ano subsequente extinguiram-se. O
caminho alternativo encontrado por Agostini para a manutenção dos seus ideais, mesmo
enfrentando as disposições hierárquicas vigentes, foi criar um novo periódico. Assim,
em 1866, com Américo de Campos e Antônio Manuel Reis, lançam O Cabrião, porém a
revista vivencia os mesmos problemas da supracitada, tendo uma curta trajetória. Parece
seguro dizermos que a extinção dessas publicações foi basilar para o seu nãosilenciamento, dando-lhe impulso de continuidade em defesa da dissolução da
escravidão. Além do que, ele almejava manter-se ligado à imprensa ilustrativa.
Em busca de espaço na imprensa, Agostini mudou-se para o Rio de Janeiro em
1867, onde passou a integrar o quadro de O Arlequim, periódico que encontrou como
estratégia de sobrevivência tornar-se o próprio produto de venda. Nas crises financeiras
a revista era vendida e o novo proprietário injetava capital de giro necessário à sua
manutenção, trocando-lhe o nome e relançando-a. Ao longo do tempo, várias foram as
nomenclaturas adotadas, até que, em 30 de janeiro de 1868, sob o nome de Vida
Fluminense, a revista apresentou à sociedade brasileira a primeira História em
Quadrinhos nacional, intitulada “Nhô-Quim” ou “Impressões de uma Viagem à Corte”,
produzida pelo artista com o mesmo rigor artístico/político, crítico/reflexivo adotado em
suas reportagens e nos seus cartuns, agregando à imagem e à palavra escrita. Assim,
[...] no âmbito do enquadramento, os fatores semânticos articulam-se numa
série de relações entre palavra e imagem: tem-se, assim, o nível minimal e
uma complementaridade por deficiência (a palavra exprime uma atitude que
o desenho é inábil para representar em todas as suas implicações) (ECO,
2011, p.146).
Nessa fusão icônica/verbal, suas narrativas foram desenrolando- se sob forte
influência folhetinesca10. As histórias eram apresentadas aos leitores com planos de
continuidade e anticlímax; havia sempre uma expectativa em torno do que seria
apresentado no dia seguinte, o que assegurava, consequentemente, o aumento nas
vendas e a divulgação do produto. Quanto ao conteúdo, embora as histórias tivessem o
10
Gênero literário em ascensão na época, apresentado ao público em capítulos.
46
mesmo objetivo, de estabelecer uma relação de comunicabilidade com o leitor, a
linguagem quadrinística, mesmo no seus momentos de gestação, possuía suas próprias
especificidades - falas mais curtas, mais próximas da linguagem coloquial.
Umberto Eco (2011) faz-nos refletir acerca da efetividade em torno desse tipo
de criação sequencial: será que as Histórias em Quadrinhos organizadas nesse formato,
tiras diárias ou em páginas semanais, não determinariam, profundamente, a estrutura do
enredo? Desenvolver histórias nesse formato não comprometeria a validade, a
maturidade estética e ideológica da obra? Apenas o uso das tiras não seria mais eficaz
ao comunicar ideias na sua completude?
Pensando os quadrinhos com base nos estudos desenvolvidos pelo quadrinista
Scoot McCloud (2006), que se considera um “lealista dos quadrinhos”, encontramos
respostas a esses questionamentos, ao aferirmos que não existe um único caminho de
leitura e de representação nos quadrinhos, porque estes se abrem a universos múltiplos.
Imagens e letras se fundem, se amalgamam, produzem experiências e narram as
relações sociais, posicionando-se como espaço privilegiado e articulador das narrativas.
Parecem, pois, nesse sentido, possíveis e válidos os encaminhamentos dados à narrativa
gráfica no formato empreendido pelo quadrinista ítalo-brasileiro. Ler quadrinhos na
condição de folhetim não retira deste a maturidade estética, ideológica; e delimitar,
qualificar ou quantificar este formato, ou aquele, como melhor ou menor, significaria
um campo perigoso e escorregadio de enclausuramento da obra e da liberdade de
expressão do artista.
No ano de 1876, Ângelo Agostini funda a Revista Ilustrada, mas somente em
1883 cria “As aventuras de Zé Caipora”, título que passa a fazer parte da referida
publicação, seguindo a mesma estilística da revista anterior, Vida Fluminense, até o ano
de 1906. Dessa forma, o autor vai desenvolvendo a sua obra, colaborando ativamente
com a revista O Malho (1904) e participando do processo de fundação e
desenvolvimento da revista O Tico-Tico (1905), produção direcionada ao público
infantil.
No ano de 1910, Angelo Agostini veio a falecer. Conseguira ver a escravidão
ser abolida e a república, instaurada. Bem sabia, também, que os caminhos das letras,
das ilustrações e dos quadrinhos possuíam o potencial de, se não de transformar o meio,
dispor de elementos, que ao menos poderiam abalar as suas estruturas, de modo a fazer
seus indivíduos refletirem acerca das suas ações. E assim o fez, embora lhe faltasse uma
consciência prática, um discurso identitário biossocial (CUTI, 2010), a exemplo de Luis
47
Gama pois, nas suas narrativas quadrinizadas, a comunidade negra aparecia sempre
através da percepção de um outro que a olhava, mais não a enxergava.
Agostini era esse outro, um sujeito étnico branco, que quadrinizava “[...]
sobre o „preto‟, para um outro branco, formando com este último um nós branco”
(CUTI, 2010, p. 20). Tornava, assim, o negro objeto de autocrítica, porque é a respeito
dele que se escrevia. No entanto, não é “[...] o negro que dirige a palavra nem é a ele
que a palavra é dirigida” (CUTI, 2010, p. 20). E, assim, suas ilustrações criaram uma
desidentidade, transformando o negro em um objeto representacional distante, abstrato,
impossível de ser representado nas suas particularidades. Isso apesar de que Agostini se
reconhecia republicano, contrário as práticas escravistas. Porém identificar o problema,
e não apontar e intervir no processo de mudanças, torna-o apenas um ente
fantasmagórico de difícil resolução, já que abstrato.
As tiras de sua autoria não contemplam as marcas dos lugares de fala da
comunidade negra, em que o biológico e o social realizam-se de forma indissociável e,
dessa forma, não podemos ver transpostas para suas páginas representacionalmente
“[...] a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se
operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os
sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam, os vestígios
que nele se exibem, a educação de seus gestos... enfim, é um sem limite de
possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas (GOELLNER,
2007, p. 29).
Afinal,
uma
História
em
Quadrinhos
(utilizando-me
de
recursos
quadrinísticos mais contemporâneos) não são apenas seus planos – a forma como as
personagens encontram-se representadas no espaço; seus formatos – as linhas
demarcatórias que configuram o enquadramento no papel; seus ângulos de visão dos
planos – ângulo do qual é observada a ação; tampouco apenas os balões – lugares de
fala; legendas, letreiros e sons; ou discursos de um outro que fala por nós. Pode ser um
espaço onde sejam construídos o discurso do “nós”, atravessados pelos critérios de um
autorreconhecimento que desemboca na formação de um sujeito que também é ethos, e
cuja organização social respeita o diverso e à natureza, numa visão sagrada de mundo
que se recria e se reforça através dos vínculos e alianças comunitárias. Afinal, todas as
coisas na visão da cosmogonia africana se regem mutuamente (LUZ, 2002), e isso não
se encontra expresso nos quadrinhos de Agostini.
48
É preciso sublinhar que, quando alguém escreve , não escreve apenas para si
mesmo; o leitor ideal vai ganhando forma na mente do escritor. Nesse sentido, como
neste período de colonialismo e pós-colonialismo o país não dispunha de um número
significativo de sujeitos negros letrados, com acesso aos textos e suas ilustrações,
inferimos que essa aquisição de saber e poder era voltada aos povos de etnia branca.
Mas, mesmo em face dessas circunstâncias históricas, que abrigavam concepções
profundamente distorcidas, Agostini deixa-nos um testemunho material desse período,
através da sua arte, ao evidenciar as mazelas infligidas ao povo negro e a necessidade
irrevogável do estabelecimento de igualdade social.
Após Agostini, a partir do século XX, as Histórias em Quadrinhos passaram
por um processo estanque na sua produção e divulgação. A imprensa tornou-se,
“gradativamente um empreendimento capitalista e de massas” (OLIVEIRA, 2006a, p.
317), mas não houve uma organização empresarial que pudesse manter tal arte
quadrinística dentro de uma linha de produtividade em destaque. Nesse momento inicial
de gestação do novo regime, as preocupações que vigoravam encontravam-se ancoradas
nas novas divisões do trabalho e na implantação de um mercado expansionista
internacional, que propiciasse um crescimento econômico, tecnológico e urbano
industrial ao país. Só em 1930, agora sob o olhar atento e inovador do jornalista Adolfo
Aizen, judeu que ingressou no Brasil em 1910, é que essa arte volta a fervilhar em solo
nacional, mas com características similares e diferentes das até então propostas.
Com Agostini, o negro aparecia, nos enquadramentos, representados dentro
do imaginário escravista, como personagem vítima da violência, atrelados às relações de
subordinação e dominação impostas; o que reafirmava sua condição de inferioridade.
Agora, a partir das primeiras décadas do século XX, mesmo a realidade sendo outra, a
situação dos quadrinhos se torna cada vez mais complexa, pois, ao invés de avançarmos
nas reflexões em torno daquela problemática, ao menos nas narrativas quadrinizadas,
passamos por um processo de retrocesso, ao “americanizarmos” nossas HQs, mantendo
o negro fora dos requadrados.
Adolfo Aizen sempre possuiu uma veia empreendedora. Assim, em 1931,
criou a Adersen Editoras, em parceria com Oliveira Hersen. Esse era um
empreendimento pequeno, e a ideia surgiu com base em cartas enviadas pelos leitores
de O Malho, solicitando informações práticas sobre como eles poderiam comprar livros.
Pensando ser um negócio rentável, decidiram investir: os leitores comprariam seus
49
livros através do reembolso postal e eles seriam responsáveis pelo seu envio através do
correio (GONÇALO JUNIOR, 2004)11. A editora durou até 1932.
Em 1933, Aizen começou a trabalhar como repórter colaborador no jornal O
Globo, pertencente a Roberto Marinho, mas seus anseios continuavam mais vívidos do
que nunca. Ele almejava uma ascensão jornalística e empresarial, queria fundar uma
revista de grandes proporções, o que, até 14 de julho de 1934, tornou-se impossível,
pois, de acordo com decreto de nº 24.776, implementado pelo governo Vargas, ficara
estabelecido que estrangeiros não poderiam ser proprietários, diretores e acionistas de
empresas jornalísticas. Assim, diferentemente de Agostini, que conseguira naturalizarse brasileiro, Aizen teve que forjar para si uma identidade nacional e, dessa forma, pôde
desfrutar os benefícios daí decorrentes.
Agregado a esse desejo de crescimento e impulsionado pelo imaginário
representacional que estava sendo propagado em torno dos Estados Unidos 12 , Aizen
decidiu descobrir, para si e para o Brasil, esse “novo mundo”, sem, no entanto, abordar
as contradições nele existentes, principalmente as relacionadas aos problemas vividos
pelos grupos de etnia negra.
Ao tomar conhecimento de que uma comitiva estava sendo organizada pelo
Touring Club 13 para ir aos Estados Unidos, com todos os custos pagos, decidiu entrar
em ação. Assim, contatou um dos membros do grupo responsável pelo evento, Berilo
Neves, e conseguiu inserir-se na viagem. Em 17 de agosto de 1933, Aizen embarcou
para os Estados Unidos, dividindo-se entre assistente do grupo participante durante o
voo e assessor de imprensa. Os diferentes eventos que cobriu eram reportados ao Brasil.
Quando o período acabou, o jornalista encontrava-se tão fascinado por esse “novo
mundo” que, enquanto os demais retornavam após as seis semanas asseguradas, ele
decidiu ficar mais cinco meses, só voltando ao Brasil em janeiro de 1934.
Essa viagem foi imprescindível para o encaminhamento dado às Histórias em
Quadrinhos no Brasil, pois foi em solo norte-americano que Adolfo Aizen conheceu o
mercado editorial estadunidense, com inovadoras tecnologias de impressão, contando
com suplementos variados contos policiais, esporte, histórias em quadrinhos.
11
A maior parte das informações fornecidas a partir deste parágrafo envolvendo Adolfo Aizen foram
retiradas da obra de Gonçalo Junior ( 2004)..
12
Imaginário representado, por exemplo, nesta citação: “[...] a terra da liberdade e do pensamento, das
grandes oportunidades individuais e do desenvolvimento econômico, do progresso tecnológico que nem a
recessão conseguiria abalar” (GONÇALO JUNIOR, 2004, p. 21).
13
O Touring Club era um grupo nacional de promoção do turismo, que, junto ao governo Roosevelt,
promovia políticas expansionistas de cunho comercial às nações vizinhas para que estas estabelecessem
negócios com as empresas norte-americanas e permanecessem vinculadas a longo prazo.
50
De posse desses novos conhecimentos e das HQs de aventura, Aizen retornou
ao Brasil. As inovações tecnológicas trazidas dos Estados Unidos permitiram aumentar
o número de vendas dos seus jornais e revistas, além de sua editora contar, para sua
manutenção, com injeção de dinheiro por parte dos anunciantes. Aizen conseguiu, além
disso, delinear o espaço das HQs de aventura para os quadrinhos no Brasil utilizando as
páginas do suplemento, pertencente a um diário partidário da poderosa lógica estadista
instituída pelo governo e administrado por João Alberto, chamado A Nação (1934).
Durante cinco dias da semana, as narrativas eram publicadas com temas diversificados.
O diário comprava textos e desenhos americanos das “[...] agências conhecidas nos
Estados Unidos, como syndicates, distribuidoras de features (ilustrações, artigos e
reportagens)”. Personagens como Buck Rogers, Agente Secreto X-9, Flash Gordon, Jim
das Selvas chegavam às mãos dos leitores, além de algumas narrativas quadrinizadas
criadas por artistas brasileiros, mas que não tinham a mesma expressividade em vendas
das importadas. Após cinco meses de intensa publicação, o jornal passou a receber
críticas severas quanto aos suplementos, pois, acreditava-se que um jornal “sério” não
deveria enveredar-se pelo universo infantil, dissociando-se do seu cunho político, ainda
que não publicasse fatos relacionados aos desmandos do governo, ao movimento negro,
às greves e às lutas dos operários por melhores condições de vida. Assim, o jornal
decidiu deixar de publicar os suplementos.
Nos Estados Unidos essas publicações funcionavam “[...] como ponta-delança ideológica contra o nazismo” (PATATI; BRAGA, 2006, p. 19), e aqui, embora
Vargas fosse simpatizante do regime fascista e do regime nazista, elas não constituíam
um problema, pois a Imprensa que a divulgava optara por não problematizar e/ou
discutir questões que fossem de encontro ao regime. Assim, embora durante o Estado
Novo toda e qualquer produção, das mais variadas ordens, sofresse um rigoroso
controle e não pudesse expressar livremente os pensamentos do autor, sem antes passar
pelo crivo da censura14, quando associadas ao governo circulavam sem muitos entraves.
Apesar
de
as
HQs
nesse
período
encontrarem-se
totalmente
descompromissadas com a representação dos negros, havia uma Imprensa Negra nos
dois países, com pautas reivindicatórias de acordo com as suas demandas políticas e
econômicas, propagando a necessidade de emancipação do povo negro. No Brasil,
14
Inicialmente foi criado o Departamento Oficial de Publicidade (DOP- 1931), que, posteriormente,
tornara-se Departamento Nacional de Propaganda e Difusão cultural (DNPD) e, finalmente, o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP - 1939).
51
especificamente, já circulava, desde 1833, o jornal O Homem de Côr, fundado pelo
jornalista e tipógrafo negro Francisco de Paula Brito (1809 – 1861). Desse período até a
década de 1930, muitos outros foram sendo constituídos.
Os discursos proferidos pela Imprensa Negra, que almejavam mais que
liberdade, igualdade de direitos e práticas antirracistas, possibilitaram a formação de
movimentos negros organizados, a exemplo da Frente Negra Brasileira, fundada em
1931. O objetivo do movimento era superar e desmistificar valores organizacionais até
então impostos, o que, algumas vezes, lhes renderam o rótulo de “afrocêntricos”, ou
seja, estarem desenvolvendo em seu interior uma formação que levasse a uma prática
avessa ao racismo instituído pelos brancos aos negros. Quando o negro se colocava na
posição de agente reflexivo, logo era questionado quanto à sua legitimidade. Mas, na
maioria das vezes, o movimento era visto com muita credibilidade, devido à sua
organização social. Mediante esse fato, de movimento passaram a ser partido político
em 1936. Infelizmente, no ano seguinte, 1937, o movimento e o partido, assim como
tantos outros no país, foram extintos ao irromper o golpe do Estado Novo através de
Getúlio Vargas.
A postura reacionária dos dirigentes infligiu ao país uma situação drástica: os
excluídos mantiveram-se assim aos lhes serem imposta uma política de base repressiva
e punitiva, utilizando-se dos mecanismos de censura, que, em nenhuma instância,
poderia ser violada.
Quanto às escolhas de Aizen, podemos aferir que os seus encaminhamentos
conectam-se aos da maioria do mass media, ou seja, favoráveis ao governo. Se,
anteriormente a essas crises, o jornalista nunca se envolvera em manifestações
contrárias ao governo, não seria após a implementação do novo governo que mudaria a
sua postura. Dessa forma, Aizen manteve-se articulado aos interesses de uma sociedade
branca, sem voltar seus interesses nem o seu olhar aos homens negros e as mulheres
negras. Nesse entorno, as Histórias em Quadrinhos disseminadas assumiam uma cor e
uma tessitura de uma cultura dita homogênea, que não leva em consideração as
especificidades dos diferentes grupos étnicos que a compõem (ECO, 2011), como se
fosse possível separar as discussões de ordem cultural das de ordem relacionadas ao
poder.
Essa prática cultural propiciava a manutenção das desigualdades sociais,
porque não se preocupava com as particularidades vigentes na sociedade,
principalmente no que diz respeito à situação do negro. O mundo em que Aizen
52
transitava era branco e para brancos, logo, as narrativas quadrinizadas não denotavam a
existência de outros mundos. O mais preocupante era que esse modelo escolhido e
construído veiculava as crenças, os símbolos, os interesses e as necessidades de quem
estava no poder, assegurando a funcionalidade da sociedade instituída (SOUZA, 2005,
p. 38).
Por causa desse hiato, entre sonhos e utopias, advieram pensamentos
reflexivos de como teriam sido configurados os quadrinhos, caso fossem produzidos por
“homens de cor” e nos chegado por essas mesmas mãos, por essa Imprensa Negra.
Quais seriam as suas narrativas? Seus personagens? Seu público-leitor?
Com o fim das publicações das Histórias em Quadrinhos no diário A Nação,
Aizen assumiu para si a responsabilidade de gerir essas HQs e criou, em 27 de junho de
1934, o Grande Consórcio de Suplemento Nacionais. Durante três anos, o
empreendimento desenvolveu-se em larga escala. De Suplemento Infantil tornou-se
Suplemento Juvenil, dialogando não só com o público infantil, mas com o jovem. Ele
montou a Livraria Juvenil, o Clube Juvenilista e a oficina gráfica foi inovada. Seu
sucesso fora estrondoso e despertara nos concorrentes o desejo de alcançá-lo ou
suplantá-lo. Os êxitos alcançados fizeram com que Roberto Marinho buscasse
experienciar o mesmo boom, visto que ele tinha todas as ferramentas necessárias para
entrar nessa linha de produção, e assim o fez ao publicar o suplemento O Globo Juvenil,
em 13 de junho de 1937, com Histórias em Quadrinhos de Ferdinando, Brucutu, Zé
Malumbo, Robin Hood, Az Smith, Dick Dare, Marquês de Tereré, As aventuras de
Patsy, O rei da sorte e O Capitão e os meninos. Em 1938, outro suplemento, A
Gazetinha, também entrou no negócio, publicando histórias do Fantasma, todas em
formato de tabloides.
Nesse ínterim, Aizen publicou, em 1938, um jornal que não contém narrativas
icnográficas, intitulado Folha do Brasil. No mesmo ano viajou para os Estados Unidos e
tomou conhecimento de que os tabloides foram dobrados ao meio e tornaram-se Comics
Books, cujas histórias continham narrativas completas – inicio, meio e fim.
Definitivamente, Aizen era um homem de vanguarda, pois, ao voltar para o Brasil, ele
não só inovou o maquinário que adquiriu na viagem para a produção das histórias, como
também nos apresentou a esse novo formato, deixando para trás o formato antigo dos
tabloides. Assim, em 16 de maio de 1939, lançou o primeiro Comics Book brasileiro,
buscando suplantar a concorrência; uma revista mais compacta e de dimensão menor
que as divulgadas até então, que foi intitulada Mirim. O êxito alcançado o fez lançar,
53
posteriormente, O Lobinho, em formato utilizado pelos jornais diários, o standard,
criando pela primeira vez no país um jornal em quadrinhos, e o primeiro livro da série
de quadrinhos Grandes Figuras do Brasil, que teria o seu segundo volume lançado no
ano subsequente.
Mas, publicar no Brasil, desde os seus períodos mais tenros, se constitui um
problema, em virtude do alto custo gráfico, da falta de investimento, aliados a um
sistema de transporte frágil, condições vivenciadas por Aizen, além da inexistência de
um contrato legal entre ele e os representantes que lhe subsidiavam as histórias
americanas, deixando-os abertos às leis da oferta e da procura de outros produtores. Isso
ocasionou-lhe não só a queda de O Lobinho, em 1940, como também
poder
experienciar momentos de crise dentro do Consórcio. Além disso, nesse contexto, a
Segunda Guerra Mundial, que já despontara, vinha afetando economicamente o país, e,
consequentemente, as HQs.
A sociedade vivenciava as tensões e os desequilíbrios financeiros visíveis no
aumento do custo de vida, refletidos em todos os setores. Mesmo que Aizen estivesse
mantendo a sua produção quadrinística, esta não poderia desenvolver-se em maior
escala em função de
[...] um possível racionamento do papel pelo governo, uma vez que toda a
imprensa era abastecida com papel importado e havia o risco de ocorrerem
ataques nazistas aos navios que traziam o produto do Canadá (GONÇALO
JUNIOR, 2004, p. 95).
Além desses problemas, a década de 1940 foi marcada por uma acirrada
campanha católica contrária à produção quadrinística. Difundia-se, através do Papa Pio
XII, que as narrativas possuíam um discurso subliminar de apologia ao comunismo,
contrário aos bons e velhos costumes cristãos.
Imerso nessa realidade, descapitalizado financeiramente e incapacitado de
resistir às demandas do mercado, no ano de 1942, Aizen decidiu vender o Grande
Consórcio ao governo, utilizando, como intermediário nas negociações, o seu sócio e
amigo, o coronel João Alberto. Essa foi a jogada de mestre de Adolfo Aizen, pois, além
de ter todas as suas dividas quitadas e seus funcionários com os empregos mantidos, foi
convidado a participar da direção, assumindo a coordenação das revistas em quadrinhos
do jornal A Noite, com uma excelente renumeração. Com o dinheiro dos cofres públicos
ele rearticulou-se e, em 1944, para comemorar os dez anos de lançamento do
54
Suplemento Juvenil produziu um álbum que contava, em quadrinhos, a história da
fundação do tablóide. Em 1945 decidiu deixar o emprego e fundar uma nova empresa,
a Ebal – Editora Brasil-América que passa a publicar quadrinhos e passatempos Disney,
entre outras publicações. Em 1947, a Ebal produzia a sua primeira revista em
quadrinhos.
Em meio a essa trajetória, os heróis negros continuavam não-representados
nas páginas das Historias em Quadrinhos importadas por Adolfo Aizen, ou nas
produzidas por ele no Brasil. Seu silêncio em relação ao povo negro foi eficaz em vetar
qualquer movimento de integração destes às páginas dos quadrinhos, além de alicerçar
nossa relação de dependência dos Estados Unidos, no que tange a essa arte. Além do
que não existiam revistas internacionais com tal temática para ser importada, e o único
étnico negro produzido no mercado, a revista All Negro Comics, em 1947, pelo
jornalista Orrin Cromwell Evans, membro negro da Associação Nacional pelo
Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), entre outros cartunistas, circulou uma única
vez.
Em lugar de atuar como um espaço representativo para todos, a produção dos
quadrinhos no Brasil, funcionou como mais uma forma de colonização, pois o que
realmente importava era introduzir as HQs como um bem de consumo, que ostentasse
força e poder e vantagem financeira. Assim, alguns empresários nacionais tornaram-se
cosmopolitas, desnacionalizaram-se
15
– e saíram em defesa do expansionismo
capitalista.
Embora existam estudiosos que apontam a necessidade de se levar em
consideração a formação ideológica-material do período, tentando justificar os fatos,
isso não apaga as escolhas “inapropriadas” ou “insuficientes” de cada um em relação
aos demais. Nos quadrinhos poder-se-ia ter criado caminhos alternativos, tácitos, cuja
representação também agregasse personagens de etnia negra, mas optou-se por seguir
um modelo capitalista, estereotipado, preconceituoso e racista. Essas apropriações de
fórmulas prontas para o sucesso têm se mostrado calamitosas para os que se encontram
nas áreas periféricas: alcança-se a industrialização, no caso da imprensa e da produção
de quadrinhos, mas se continua a reforçar as desigualdades sociais mantendo perenes as
relações etno-excludentes.
15
Conforme Cuti (2010), os estrangeiros imigrantes que aqui chegaram mantiveram uma forte ligação
com suas origens étnicas. Podemos ver esses traços identitários na comunidade negra, mas tal identidade,
no caso dos brancos, “[...] exerce sua força contrária à identificação com os segmentos de povos que eles
consideram inferiores” (CUTI, 2010, p. 23).
55
2.2 EM BUSCA DE UM NOVO SENTIDO PARA AS HQS
Em constante processo de transitoriedade e atreladas a um mercado que crescia
de forma significativa, as HQs pari passu inovaram-se. Com uma elasticidade plástica
tão singular e ao mesmo tempo tão dialógica, novos traços gráficos, formas e conteúdos
foram sendo adicionados e reorganizados nos requadrados, estabelecendo uma relação
simbiótica entre imagem e texto.
Neste entrelaçamento verbal e icônico, os quadrinistas não pararam de jogar.
Jogaram com seus heróis, códigos e leitores (QUELLA-GUYOT, 1990). Montaram,
desmontaram, combinaram e numa transgressão jubilatória construíram narrativas
genuinamente nacionais, através de quadrinistas fantásticos, como Jayme Cortez,
Miguel Penteado, Reinaldo de Oliveira, Silas Roberg e Álvaro de Moya, entre outros.
Com histórias incríveis estes quadrinistas revelavam e transmitiam o clima da
época - anos 50, que não era dos mais favoráveis a produção de quadrinhos nacionais
devido
ao esquema instituído
para a distribuição de HQs
internacionais.
Economicamente, era mais rentável investir em produções internacionais, pois estas
chegavam ao país a baixos custos, cabendo às editoras a responsabilidade apenas de
traduzi-las, reproduzi-las e distribuí-las. Curiosamente, as revistas ou os suplementos
que divulgavam essas histórias eram quem primeiro ficava famosa no Brasil e não as
personagens (BIBE-LUYTEN, 1985).
Como exemplo, podemos citar a revista Gibi, editada pela Editora Globo, sob
a administração de Roberto Marinho, no ano de 1939. Essa revista ficou tão popular
entre os seus leitores, entabulando uma identidade visual tão significativa - desde a
capa, ao seu interior, apresentando atrativos, como passatempos, anedotas e Histórias
em Quadrinhos, estimulando o imaginário daqueles -, que o seu nome e logomarca
tornaram-se a forma como as HQs passaram a ser conhecidas durante muito tempo no
país. A palavra Gibi, que significa moleque, menino negro, e que possuía um sentido
pejorativo ancorada no conceito de inferiorização, construído em torno da comunidade
negra, passou a intitular revista de HQs (BIBE-LUYTEN, 1985).
Apesar de a experiência ter sido bem sucedida, pela força do uso da imagem e
da palavra, tanto na sua produção quanto no consumo, em contexto prático, para os
quadrinistas nacionais, assim como para a comunidade negra, não foram
disponibilizados espaços nas suas páginas. A revista manteve-se publicando Histórias
em Quadrinhos com personagens estrangeiros e jamais personificou o seu mascote - a
56
personagem negra que dava nome a revista e aparecia na capa-, dando-lhe o papel de
personagem em uma das suas narrativas ( BASÍLIO, 2005).
Isto se deu porque as sociedades, de um modo geral, são autoritárias. E
embora busquem ser libertárias estão presas aos seus paradigmas, e não conseguem
reconhecer-se na condição do outro, o sujeito ali explicito. Baseando-se na ignorância
que é o colonialismo, vê o outro como objeto. É muito complexo desconstruir os
princípios de ordem estabelecidos sobre as coisas e sobre os outros, fundados em bases
individualistas e centralizadoras, o que nos dificulta implementar
formas de
conhecimento que funcionem dentro do principio da solidariedade. Essas disparidades
inquietavam a comunidade negra e os quadrinistas da época, que, na contramão do
processo, buscavam elaborar práticas exitosas que rompessem com os paradigmas préestabelecidos pelo grupo hegemônico.
Na busca por esse objetivo nas páginas dos quadrinhos, Jayme Cortez, Miguel
Penteado, Reinaldo de Oliveira, Silas Roberg e Álvaro de Moya organizaram a Primeira
Exposição Didática Internacional de História em Quadrinhos, em São Paulo, em 1951,
com o propósito de dar visibilidade às narrativas, ao mesmo tempo em que propunham
essa arte. Não uma arte pensada na esfera da autenticidade, na qual se valoram tradição,
originalidade e testemunho histórico, todos dentro de um complexo sistema hierárquico
de valores. Essa nouvelle art, o quadrinho, expresso em seus próprios moldes, imagem e
texto, seria uma forma de profanar o sagrado e destruir as auréolas construídas em torno
deste conceito. Em nenhuma instância destituindo o valor das artes primeiras, mas
fragmentando a autoridade e o peso tradicional das coisas, modernizando-as 16
(BENJAMIN, 1985).
Um evento de tamanha magnitude acabou por despertar o interesse da
imprensa e dos críticos pelas HQs e estimulou os quadrinistas a criarem a Associação de
Desenhistas de São Paulo – ADESP (CAGNIN, 1975; GONÇALO JUNIOR, 2004). Na
associação,
temas
como
baixos
salários,
ausência
de
vinculo
trabalhista,
profissionalização da categoria e supremacia dos quadrinhos internacionais norteamericanos sobre os nacionais encontravam-se sempre em pauta. Realidade que já
16
Segundo Benjamin, a aura “[...] é uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a
aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de
verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa
respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais
específicos que condicionam o declínio atual da aura. Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente
ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ‟ficarem mais
próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter
único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade.” (BENJAMIN, 1985, p. 170).
57
ocorria no Rio de Janeiro desde 1949, através da Associação Brasileira do Desenho ABD. Juntas, ADESP e ABD interligaram-se para solicitar do Presidente da República
em vigor, Getúlio Vargas, a criação de uma lei que nacionalizasse as HQs e que
obrigasse as editoras a disponibilizar um espaço para a produção dos quadrinistas
nacionais. Os proprietários das editoras contestaram, afirmando que o preço cobrado
pelos profissionais não era condizente com o que poderiam pagar. Porém, antes que as
negociações se concretizassem no ano de 1954, Vargas cometeu suicídio (GONÇALO
JUNIOR, 2004, p. 176). E como alguns paradigmas fortes tendem a permanecer muito
tempo, essas discussões e contestações chegaram ao século XXI.
Enquanto os quadrinistas seguem na direção acima destacada, a comunidade
negra se manteve envolta na busca de equidade de direitos socioeconômicos, políticos e
étnicos. Embora estivesse à margem desse processo político ligado à produção de HQs,
suas lutas e as de tantos outros brasileiros, cada vez mais evidenciadas, começaram a se
refletir nos requadrados, através dos novos discursos adotados pelos quadrinistas, que as
HQs passam a assumir.
De um lado quadrinhos libertários, do outro, quadrinhos “enlatados” com
editoras que almejavam manter seus formatos, porque estes lhes propiciavam excelentes
margens de lucros. Em resumo, enquanto as HQs travavam a “guerra dos gibis”
(GONÇALO JUNIOR, 2004, grifos nossos), a comunidade negra travava outras
guerras, buscando desenvolver ações que contribuíssem para a afirmação da sua
cidadania. Como, por exemplo, a realização do I Congresso do Negro Brasileiro, que
ocorreu em 1950, ano anterior ao da exposição, sob a responsabilidade do Teatro
Experimental do Negro, liderado pelo ativista negro Abdias do Nascimento (foto na fig.
5) entre outros.
Figura 5 – Abdias do Nascimento
Fonte: INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS – INESC. Disponível em:
<http://www.inesc.org.br/notícias-gerais/2011/m1io/morre-abdias-do-nascimento-militante-domovimento-negro/image>. Acesso em 10 jan. 2013.
58
O Congresso teve como objetivo pensar estratégias de intervenção que
melhorassem a situação do povo negro brasileiro elevando sua qualidade de vida, seu
nível educacional, sua posição social e seus salários. Essas conquistas, na medida em
que fossem se estabelecendo, ocasionariam, gradativamente, a inserção da comunidade
negra em outros contextos sociais, inferindo-se também que poderiam ser aplicadas
também às HQs. Era o pensamento que vigorava entre sonhos e utopias na década de
1950.
Alguns anos depois, mais especificamente na década de 1980, Abdias do
Nascimento, lançou-se a fazer uma análise acerca dessa década e do evento em questão.
Este, afirmou que nesse período a comunidade negra encontrava-se motivada por uma
consciência política crescente, mas, por outro lado, guardava dentro de si um espírito
apaziguador. Isso levou-os a
esquecer que, durante todo e qualquer processo de
negociação e de reconhecimento, fazem-se necessários o estabelecimento de limites e a
previsão de normas de contenção, quando ocorram situações que as
excedam. Assim,
o Congresso fora aberto para pesquisadores brancos “[...] que se autointitulavam
„homens da ciência‟[...]” (NASCIMENTO, 1982, p. 59), sem que fossem pensadas as
consequências de tal ação. Na verdade, acreditava-se que essa abertura incentivaria o
estabelecimento de novas redes de comunicação e modificaria as fronteiras do saber e
do poder, redefinindo as formas de funcionamento na organização social.
No entanto, nada disso, naquele dado momento, aconteceu, pois foi cometido
o equivoco de se homenagear, um cientista - Nina Rodrigues -, que “[...] considerava o
negro como fator de inferioridade do povo brasileiro [...]” (NASCIMENTO, 1982, p.
10), além de se ter dado tamanho poder aos pesquisadores, que estes, ao final do evento,
tomaram para si a responsabilidade de redigir e assinar o documento final do evento,
representando o povo negro. Felizmente, a assembleia, por saber-se apta a se autodirigir
e contrária ao paternalismo oferecido, rejeitou a ideia (NASCIMENTO, 1982).
Os pesquisadores haviam participado do Congresso atrelados às concepções
colonialistas e não conseguiram reconhecer no outro o sujeito ali explicito. Mas, ao
lado desse binômio saber e poder, oscilava o binômio acomodação e resistência, e o
povo negro continuou a resistir.
Na década subsequente, um novo modelo de grilhão instaurado na sociedade
brasileira, a ditadura militar, no ano de 1964. E, assim, povo e quadrinho - aqueles que
assumiam um contradiscurso -, que já vinham sofrendo as resistências e as dificuldades
de sua inserção social, passam a sofrer todo o tipo de repressão: fechamento de
59
organizações políticas, do Congresso Nacional, de instituições voltadas para a educação
popular, delimitando-se o que poderia ser estudado nas escolas e nas universidades;
censura, discriminação, preconceito; militantes da esquerda presos, torturados, exilados
e mortos. Nessa perspectiva, falar de questões étnico-raciais tornou-se tabu.
No entanto, parte da sociedade mantinha ativos movimentos de resistência ao
militarismo, seja por meio das narrativas quadrinizadas ou
da imprensa alternativa,
seja através dos bons frutos dado pelo Cinema Novo, com Glauber Rocha, que
propunha uma estética da fome. Além disso, através da poesia concreta; da formação
dos grupos da esquerda; das organizações políticas ou dos protestos públicos que foram
às ruas, solicitando a instauração de um sistema de governo democrático no país
(CIRNE, 1983). Todos os participantes desses movimentos desejavam libertar-se do
regime, que obstruía ou os impedia de movimentar-se, para poderem sentir-se livres.
Convém ressaltar, em meio a todo esse complexo processo social, dois
quadrinistas: Maurício de Sousa e Ziraldo. O primeiro ingressou no universo
quadrinístico no ano de 1959, com a personagem Bidu, um cachorro que pertencia ao
personagem Franjinha, porém sua grande notoriedade aconteceu a partir da década de
1960. Nessa revista, além de Franjinha, havia outras personagens - meninos, todos sem
identidade, inclusive um de etnia negra que, supostamente, afirma-se ser o Jeremias, o
mesmo que, na atualidade, participa das narrativas quadrinizadas que consagrou o
universo da Turma da Mônica (CHINEN, 2013).
Nesse período Jeremias “[...] era representado basicamente como uma elipse
com duas bolas brancas menores servindo de olhos” (CHINEN, 2013, p. 148) (fig. 6).
Ao longo dos anos ele foi gradativamente se tornando marrom, e mantendo nas
narrativas o seu posicionamento de personagem coadjuvante (fig. 7). Convém lembrar
que Mauricio de Sousa sempre construiu personagens planos, com temas universais,
sem qualquer posicionamento político. As revistas mantêm “[...] uma neutralidade
política com exceção de uma ou outra crítica [...]” (CHINEN, 2013, p. 149). Segundo
Ana Célia da Silva (2001), construções de narrativas e de personagens como esses, em
posição de subordinação, contribuem para a fragmentação da identidade e autoestima do
povo negro.
60
Figura 6 - Primeira representação gráfica da personagem Jeremias
Fonte: SOUSA, Maurício de. Bidu. São Paulo: Editora Continental, 1960. (capa).
Figura 7 - Representação gráfica da personagem Jeremias na contemporaneidade
Fonte: SOUSA, Maurício de. Bidu 50 anos. São Paulo: Panini, 2009 (capa).
61
Uma das raras exceções cometidas por Maurício de Souza ocorreu muitos
anos depois, em 2009, na revista Cebolinha, edição de número 30, quando ele deu uma
voz de identidade negra ao personagem Jeremias (fig. 8). Maurício de Souza, a partir
dos pronunciamentos do atual presidente da República Barack Obama, que sempre
citava o líder negro Martin Luther King durante sua campanha presidencial, se
apropriou desta temática para criar uma narrativa icnográfica. E assim, os Estados
Unidos da América tornou-se a Vila do Limoeiro, onde funcionava o clube dos
meninos, que, no momento atual, encontrava-se sem presidente. As personagens
Cebolinha e Jeremias, tomando conhecimento da necessidade de preenchimento dessa
vaga, decidem candidatar-se à presidência do clube. Durante os discursos em defesa do
cargo, Jeremias cita o discurso de Luther King “eu tenho um sonho!” e vence a eleição.
Figura 8 – Jeremias em campanha presidencial
Fonte: SOUSA, Mauricio de. Cebolinha. São Paulo: Panini, nº30, jun 2009, p. 59.
Quanto a Ziraldo, mesmo imerso entre as tensões sociais e a repressão,
produzia um quadrinho adverso à ditadura militar. Sua personagem Pererê (fig. 9),
62
lançada na revista do mesmo nome, pela Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A. em 1960,
obteve grande sucesso.
Figura 9 – Pererê
Fonte: ZIRALDO. Pererê. São Paulo: Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A., 1960 (Capa).
As histórias fizeram realmente tanto sucesso, que, na edição de dois anos, o
artista decidiu apresentar ao público-leitor o mito originário da personagem, totalmente
configurado nos moldes das ideias nacionalistas difundidas. Ziraldo (1962, p. 34)
afirmava que, entre as suas narrativas com seus respectivos personagens que
circulavam, Pererê era muito diferente; primeiro porque havia nascido anteriormente ao
seu projeto gráfico e segundo porque nele víamos, em termos nacionais, a representação
da história do Brasil. surge
O Saci Pererê17foi criado pelo imaginário popular, marcado pelos três povos
que aqui circularam: negros, índios e brancos. No principio, ele era um índio de uma
17
A figura do Saci Pererê, antes de configurar as páginas das Histórias em Quadrinhos, assumindo uma
representatividade nacional, através de Ziraldo, se fez presente no livro de escritor brasileiro Monteiro
Lobato, O Saci-Pererê: resultado de um inquérito, publicado em 1918, onde o autor afirma que a criação
desta figura folclórica é a resultante bem sucedida da união entre os três grupos étnicos raciais que
compunha o país: índios, negros e brancos. Essa produção nasce em oposição ao europeísmo vigente em
solo nacional, objetivando resgatar o imaginário popular. No entanto, esta tentativa de resgate da-se de
maneira contundente, pois o Saci que circula possui características negativas. Dois anos posteriores,
1920, o autor, lança a obra O Saci. Nesta obra o Saci já aparece como uma figura ambígua, que diverte-se
exercendo atos infratores, que vão de encontro às regras e às normas. Aclamado por um lado, contestado
em outros, o Saci Pererê ganhou grande repercussão nacional ao fazer parte das narrativas da obra O Sítio
63
perna só, com cabelos da cor do fogo e chamava-se Yaci Yatererê (ZIRALDO, 1962).
Quando os negros chegaram do continente africano, escravizados, esse cuidador das
florestas foi enegrecendo na medida em que homens e mulheres negros se apropriavam
do mito indígena, dando-lhes novos significados (ZIRALDO, 1962).
Segundo Vieira (2009), o Saci Pererê refugiava-se nas florestas, nos
quilombos para protegê-los. E seus poderes, que eram muitos, possibilitavam-lhe fugir
das armadilhas criadas para o seu aprisionamento. Assim, ele nunca foi capturado e
levado a cativeiro. Ao povo branco, retomando a narrativa de Ziraldo, coube colocarlhe o gorro vermelho, ou barrete vermelho. E assim, o Yaci Yatererê tornou-se o Saci
Pererê e passou a habitar as nossas terras. “O saci é alegre, ágil, inteligente, sonhador, e
sagaz, matreiro, simpático, corajoso, sabe dar sempre um jeito para tudo. É o Brasil. O
saci está em cada um de nós, da favela aos cafezais [...]” (ZIRALDO, 1962, p. 34).
Ziraldo apropriou-se de um mito folclórico brasileiro para criar o Saci Pererê, uma
entidade mágica, lendária, despossuída de humanidade. Sendo assim,
[...] o mais bem sucedido personagem negro das Histórias em Quadrinhos,
não é um ser humano ou animal, mas uma entidade mitológica, pertencente
ao folclore brasileiro. Ou seja, o negro mais famoso dos quadrinhos
brasileiros é alguém que não existe, que não serve de modelo ou ideal ao
leitor negro. (CHINEN, 2013, p. 104).
Observamos em Maurício de Souza e Ziraldo que a assimilação e a
reprodução do imaginário brasileiro sintonizam-se ainda com o projeto colonial, mesmo
quando estes reatualizam suas obras. Decerto isso se dá porque, neste período, pensar
quadrinhos no contexto das relações étnico-raciais era algo muito difuso. Sabia-se que a
população negra não era inferior a outros grupos sociais, mas não se sabia ainda como
mediar
tal
conhecimento,
principalmente
porque
as
visões
societais
eram
homogeneizadas na tentativa de simular uma igualdade inexistente entre os cidadãos
que compunham a sociedade. Assim, essas representações acabaram por materializar o
discurso hegemônico, mesmo que sem uma intencionalidade, embora Moacy Cirne
(1983) conteste essa ideia ao afirmar que não existem quadrinhos inocentes, posto que
todos são políticos.
do Pica-Pau-Amarelo de autoria de Lobato, lançado em 1920, cuja função ao lado do entretenimento,
agregou elementos responsáveis em criar uma identidade nacional da qual bebeu Ziraldo fortalecendo a
tradição.
64
Diante do exposto, mais uma vez, as análises de Abdias do Nascimento nos
incitam a
[...] virar esse conhecimento eurocentrista de cabeça para baixo, sacudí-lo até
remover o lixo e construir no vazio uma nova epistemologia. Incorporar-lhe a
experiência e o saber dos povos afro-descendentes em suas várias dimensões,
vistos da sua ótica e expressos na sua própria voz, possibilitando a
reconstrução da civilização e da soberania dos nossos antepassados no
Continente e o redimensionamento das culturas e histórias de luta forjadas
por nós, seus descendentes, na diáspora. [...] Para isso, não adianta fingir
„esquecer‟ o legado racista ou fazer de conta que ele perdeu sua influência. É
preciso examiná-lo, identificá-lo nas suas novas sutilezas, e sobretudo
desvelá-lo no silêncio que reforça a exclusão discriminatória.
(NASCIMENTO, 2000, p.1).
Entender esse processo difuso é crucial para a implementação de uma prática
quadrinística voltada para o desenvolvimento pessoal, social, com preocupações
formativas, além de informativas e econômicas. A década de 1960, mesmo
apresentando essas problemáticas, destacou-se das demais porque nela vimos uma
fagulha de esperança de ruptura dos conteúdos ideológicos presentes nas narrativas
quadrinizadas, resultante das pressões que foram articuladas em torno das
reivindicações propostas pela comunidade negra.
Havia um mundo cheio de possibilidades impondo seus desafios, e, para
superá-los, mais e mais indivíduos precisavam aderir à causa, contrapondo-se às
concepções e aos discursos oficiais. É isso que o momento pedia: ação, transformação,
comprometimento com as mudanças.
2. 3. NOVAS TRILHAS, TIRAS E POSSIBILIDADES
No decorrer das décadas de 1970 e 1980 o Movimento Social Negro se
intensificou através de ações políticas, culturais, literárias, artísticas, entre outras. Esses
movimentos promoveram frentes de luta, tentando modificar o quadro de injustiças e
desigualdades impostas à comunidade negra brasileira. Entre as estratégias, adotaram
um discurso estético-étnico de afirmação e valoração positiva dos fenótipos negros, na
tentativa de desbancar a ideologia do branqueamento, que, de forma eficaz, vinha
alienando os processos identitários negros.
Assim, sob forte influência dos movimentos civis que vinham acontecendo
nos países que apresentavam uma multiplicidade de povos descendentes de uma África
negra, a comunidade negra brasileira começou a delinear novos rumos para si, bem
como a pensar em suas condições de existência, com vistas a conquistar a sua
65
emancipação. Para tanto foi imprescindível o estabelecimento de uma rede de
cooperação entre a sociedade civil africana e as comunidades diaspóricas em luta por
justiça social.
Todos esses espaços em movimentos de insurgência reavivaram, no Brasil,
não só as lutas sociais da classe operária, que, articulada politicamente, lutava contra a
ditadura e a exploração da força do trabalho, através de constantes greves nas áreas
industriais, como também contribuíram para o avanço na luta contra o racismo. Fatos
como esses, somados a tantos outros, com seus desdobramentos, provocaram uma
revisão crítica acerca do papel da comunidade negra na sociedade brasileira,
desencadeando a criação do Movimento Negro Unificado – MNU, em 07 de junho de
1978.
Esse movimento acreditava ser possível desestabilizar a ideologia do
branqueamento, que fora incutida de forma eficaz na comunidade negra através da
alienação dos seus processos identitários. Alienação instaurada por meio do discurso
Estatal, que preconizava ser o país um espaço de igualdade para todos, onde inexistiam
a prática do racismo e da discriminação racial. A comunidade negra, ao ver-se inserida
nesse contexto dito de oportunidades igualitárias, sem, no entanto, conseguir ascender
socialmente, internalizava que ela própria era responsável pelos fracassos que
vivenciava. A construção dessas representações aumentava seu sentimento de
inferioridade e diminuía o seu poder argumentativo contestatório. De forma perversa ia
associando pertencimento étnico-racial a êxitos financeiros satisfatórios e inferindo que,
para ascender socialmente, era necessário assumir para si as normas e padrões
comportamentais da cultura branca.
No entender de Munanga (2008) esses princípios norteadores, não
democráticos, erigidos pelo grupo hegemônico, através de coerções políticas e
psicológicas, possuem um cunho assimilacionista. Sendo necessário um contíguo
esforço de luta e rejeição assim como intermitentes mobilizações em diferentes setores,
para desestabilizá-los; em especial nos setores de base popular, que precisam ser
convencidos, através da ação, reflexão, sedução e paixão, acerca da importância da sua
efetiva participação política para que essas mudanças se concretizem. Uma proposta de
difícil execução, pois, como bem sabemos, não existem respostas prontas para a
resolução de tantos problemas, tampouco fórmulas mágicas que venham a satisfazer
essas inquietações/reflexões.
66
As inferências básicas decorrentes dessa realidade é que o processo fora
deflagrado e necessitava contar com a solidariedade e o apoio de todos os segmentos de
comunicação e formação: televisão, cinema, teatro, imprensa, educação etc.
Há múltiplos espaços que nos ensinam e/ou contribuem para o
reconhecimento da identidade étnico-racial, e as HQs alternativas entram nesse
empreendimento através da sua arte gráfica discordante, ao propor, mesmo que em
número bastante reduzido de publicações, a engrenagem de uma sociedade em reais
condições de democracia, verdadeiramente plurirracial e pluriétnica (MUNANGA,
2008).
No entanto, mesmo esses quadrinistas que almejam fazer emergir um
discurso não subalterno, segundo Chinen (2013), adotavam o uso de traços
desproporcionais e caricaturização ao representar o negro no papel, a exemplo de
Henfil, fazendo-nos pensar sobre a legitimidade dessas obras: nelas há ou não há a
presença do preconceito, do racismo e da discriminação? Necessita-se de uma
estilização, que sugira inferioridade, sob a justificativa de tornar o entendimento mais
imediato ao leitor? O autor afirma, ainda, que não há uma intencionalidade, por parte
dessas obras, de manutenção desses velhos paradigmas e que, ao longo do processo
histórico, esses pensamentos foram desconstruídos, através do conteúdo e narrativas
propostas. Para Chinen, não existe uma intencionalidade de ofender os negros, mas sim
de denunciar as mazelas e as situações de miserabilidade em que vivem e de condenar
essas práticas (CHINEN, 2013).
No entanto, os traços nos incitam outras ideias. Em Henfil ainda podemos
ver espelhadas as representações sociais das relações étnico-raciais no país, ainda que
não fossem pretendidas pelo autor. Tais imagens, neste período e na atualidade, têm
sido contestadas em favor de uma representação positiva, na qual a comunidade negra
possa se ver e se reconhecer.
Com Henfil, Edgar Vasques, Arnaldo Angeli Filho, Luscar, Edmar Viana,
entre outros quadrinistas, em meio às dificuldades e à repressão, ascende um discurso
dos excluídos. Nas suas tiras, passado e presentes históricos escamoteados pelo mundo
branco, são denunciados. Esses autores, mesmo não sendo negros, assumem o discurso
do ser cidadão18.
18
Vale a pena reforçar, consoante Bauman (2001, p.45), que o cidadão “é uma pessoa que tende a buscar
seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade”; é aquele que pensa em coletividade, com um
nítido objetivo, que é a promoção da igualdade.
67
Para além dos essencialismos, esses quadrinistas apoiaram, concreta ou
graficamente, a comunidade negra, ao disporem seus traços diferenciais e sua
irreverência a favor da construção de um futuro mais solidário e justo, abordando um
tema considerado tabu pelos censores, como condição imposta pela ditadura, e
financeiramente desinteressante para o mercado.
Nessa sociedade de desigualdades e imposições, surge Henfil, com seus dois
Fradins (Frades), o Baixinho e Cumprido, denunciando a hipocrisia e o falso moralismo
nacional, este de forma mais comedida, aquele de forma mais revolucionária, utópica e
anárquica. Inicialmente, essas personagens foram publicadas na revista Alterosa, em
1964, posteriormente, pelo Pasquim, até que, em 1971, apareceram numa revista própria
chamada Fradim.
Nessa publicação havia personagens negros memoráveis e polêmicos, como o
Preto que Ri, que possuía todos os traços de Baixim, com exceção da sua cor. Ele ria
sem controle diante das situações adversas que enfrentava, destoando das normas
comportamentais consideradas politicamente corretas, ocasionando situações inusitadas
e conflituosas (CHINEM, 2013, p. 159).
Mesmo tendo revista própria, Henfil não deixou de publicar no Pasquim, e,
em 1972, lançou as tiras do Cabôco Mamadô (fig.10), que era proprietário do Cemitério
dos mortos-vivos, local onde enterrava pessoas que, de forma direta ou indireta,
contribuíam para alicerçar o regime ditatorial ou se omitiam politicamente dos
problemas que assolavam o país (CHINEM, 2005, p.159).
68
Figura 10 – Cabôco Mamadô
Fonte: HENFIL. Cabôco Mamadô. O Pasquim. Rio de Janeiro, n. 147, p. 7, 25 mar. 1972.
Essa publicação ocasionou inúmeros protestos contra os sepultamentos
simbólicos, pois eram considerados, por alguns, como extremamente radicais, do que
Henfil discordava, visto que seu alvo eram as atitudes, não as pessoas. Sendo assim,
seguia afirmando que cobrava das pessoas apenas atitudes coerentes em favor de uma
coletividade, não de uma individualidade. Cantores, como Elis Regina, Roberto Carlos,
além do jogador Pelé, fizeram parte desse fúnebre-humorístico-crítico sepultamento.
Portanto, era através de personagens como esse e de outros não-negros que o artista
dava voz aos problemas sociais que atravessavam o país (MORAES, 1996).
Ainda nas controversas tiras de Henfil, podemos ver, através da ave Graúna
(fig. 11), “mediante simbolismo de fuga” (MUNANGA, 2008, p. 113), esta zona
flutuante na qual se encontra um número significativo de sujeitos negros em busca de
ascensão social, seja através do ingresso na universidade, seja de mudança financeira ou
do estilo de vida. Dessa forma, o artista denunciava os discursos racistas velados
69
propagados, como, por exemplo, de que os negros só poderiam ser bem sucedidos
financeiramente se praticassem algumas mobilidades esportivas ou artísticas.
Figura 11 – O Bode Orelana e a Ave Graúna
Fonte:HENFIL. O Bode Orelana e a Ave Graúna. Arte, HQ, Interdisciplinaridade. Disponível em: <
http://arte-hq-interdisciplinar.blogspot.com.br>. Acesso em: 04 jan. 2012.
Essa mesma direção, com um quadrinho de crítica social, segue o artista
Edgar Vasques, produzindo a série Rango (fig.12), publicada, inicialmente, na revista
Grillus, em 1970, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. A partir de 1973, a personagem passa a ser publicada no
jornal Folha da Manhã. As narrativas quadrinizadas tinham como pano de fundo a
situação de miséria em que vivia uma parcela da sociedade brasileira. Parafraseando
Glauber Rocha19, as imagens traçadas pelo artista assumem uma estética da fome, mas,
“A “Estética da fome” é uma das mais conhecidas referências quando se discute o Cinema Novo
brasileiro, bem como o seu autor, Glauber Rocha, que pode ser visto como representante-símbolo desse
movimento cinematográfico, que consolida o cinema nacional como manifestação artística nos anos 1960.
Trata-se de um manifesto para justificar política e esteticamente os primeiros filmes cinemanovistas,
dirigidos originalmente a uma plateia de críticos e cineastas reunidos na Europa para debater o cinema
latino-americano” (CARVALHO, 2012, p. 902). É na fome do povo brasileiro em situação de
19
70
em linhas diferenciais, utilizam a linguagem do humor. As personagens Rango, seu
filho e um idoso, ambos sem nomes na narrativa, Jejum (fig.13) e Prévio; os dois
últimos, uma criança e um adulto negros, entre outros, são magras, sujas, esfomeadas e
suas ações giram em torno de um único objetivo, comer.
Figura 12– Rango e sua turma
Fonte: VASQUES, Edgar. Rango. In CHINEN, Nobuyoshi. O papel do negro e o negro no papel:
representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros. São Paulo.
Doutorado (Tese). Escola de Comunicação da USP, 2013, p. 161.
Seus nomes aludiam a uma condição humana que a população brasileira
relutava em aceitar como verdadeira ou real. Essas personagens, ainda hoje, fazem
sentido, pois encontram eco em nossa sociedade, caracterizando uma das faces sociais e
econômicas do país.
Figura 13 – Jejum em uma pelada de futebol
Fonte: VASQUES, Edgar. Rango. Disponível em:
<http://3.bp.blogspot.com/_SjBUFj3jDSY/RvkqWyUorPI/AAAAAAAABow/tkEjeHoOgmM/s400/rango
_jejum.jpg>. Acesso em: 12 mar. 2013.
miserabilidade que o cineasta ancora o seu trabalho. Essa fome quer ser escamoteada pelos governantes,
mas, pela impossibilidade de escondê-la, torna-se mola propulsora para o processo de descolonização
cultural e cinematográfica.
71
Foi também na década de 1970 que outro quadrinista, Arnaldo Angeli Filho,
lançou-se no mercado como colaborador do jornal Folha de São. Paulo. Seu primeiro
trabalho nesse jornal, lançado em 1974, no suplemento infantil Folhinha, sob o formato
de painéis de página inteira, intitulava-se Feijão (fig. 14), um menino negro que não
falava, mas que circulava sozinho pelas ruas da cidade. Os três painéis de páginas
inteiras, produzidos pelo artista, só circularam três vezes durante o ano em questão,
levando-nos a supor que tal ocorrência deveu-se ao espaço reservado de forma severa,
restrita e excludente a temas sobre a comunidade negra.
As três narrativas dos painéis deixam transparecer que a personagem possuía
um espírito solidário, reflexivo, questionador e revolucionário. A escolha pelo painel de
número dois (fig. 14) deu-se em conformidade com a temática em discussão, pois,
através dos quadros, a personagem levou-nos a refletir sobre as estratégias contrahegemônicas que vinham sendo adotadas pela comunidade negra em solo nacional e que
podiam contribuir para que o negro se colocasse em outros lugares. No primeiro quadro,
a personagem encontra-se olhando fixamente para o busto de um homem de fenótipos
brancos. A personagem olha, reflete, mas não consegue estabelecer uma relação
identitária com a imagem. No segundo quadro ela decide sair de cena. Ao retornar, no
terceiro e último quadro, traz consigo as ferramentas necessárias para pintar a estátua na
cor preta, e o faz sorrindo, construindo, assim, seu processo de identificação.
(CHINEM, 2005, p.159).
72
Figura 14 – Feijão
Fonte: ANGELI FILHO, Arnaldo. Feijão. Folha de S. Paulo. Caderno Folhinha. São Paulo, 14 de abril
de 1974.
Nesse painel, Angeli trata de um tema controverso, a ausência de panteões de
heróis negros nacionais homenageados, seja nas Histórias em Quadrinhos ou em outros
contextos. Corpos negros perceptíveis nas malhas sociais, que necessitavam ser
frequentemente citados, ilustrados, para que, constantemente relidos, pudessem ser
transformados em um espaço de significações que permitissem ao povo negro inspirarse em um outro, também negro, dando-lhes as condições necessárias para a construção
de uma identidade baseada na igualdade e no reconhecimento positivo.
Na década de 1980, surgiram outras histórias em quadrinhos, ainda usando
como tema de fundo a situação dos menos favorecidos. Dentre elas, podemos citar:
Pivete, de Edmar Viana, em 1980, no jornal Tribuna do Norte; Dr. Baixada, de Luscar,
em 1982, publicado no Jornal do Brasil; El Negro, de Lor, em 1988, no jornal Estado
de S. Paulo; Zé da Prancha, de Marigonni, em 1988, também no jornal Estado de S.
Paulo.
Durante esse período, destacamos dois outros trabalhos: o primeiro é Casa
Grande sem sala (fig. 16), publicada em 1981, no O Pasquim, criação de Bonifácio
73
Rodrigues de Mattos, também conhecido como Ykenga (fig. 15). Um aspecto inédito,
utilizando-nos das palavras de Jaguar, ditas no jornal O Pasquim há trinta e dois anos, é
que Ykenga é o primeiro quadrinista e cartunista negro a produzir narrativas
icnográficas para e em defesa dos negros.
Figura 15 - Ykenga
Fonte: YKENGA. Blog do Ykenga. Disponível em:
<http://blogdoykenga.blogspot.com.br/2011/12/o-primeiro-cartum-ninguem-esquece.html>. Acesso em:
12 mar. 2012.
A narrativa se passa em uma favela carioca, e entre as personagens principais
encontram-se Joãozinho Tresitão (fig. 16), uma criança, e o Vovô Oba, ambos negros.
Joãozinho, na centralidade da história, contracena com Maria Zinha; os dois são
crianças em situação de abandono, convivendo em um ambiente muito próximo à
marginalidade. Realidade que fere os princípios propostos na Declaração dos Direitos
das Crianças, instituída em 20 de novembro de 1959, durante uma Assembléia Geral
nos Estados Unidos, que afirma ter, toda criança, direito a proteção, cidadania, saúde,
educação e a viver em um ambiente seguro, longe do preconceito
74
FIGURA 16 - Joãozinho Tresitão
Fonte: YKENGA. Joãozinho Tresitão. O Pasquim. In: FUNARTE. Portifólio. Rio de Janeiro: Agência
Funarte, s/d.
E o segundo trabalho é o de Laerte, outro quadrinista, que lançou, em 1988,
na revista Geraldão, em apenas uma edição, a história Ilha Grande & Senzala. Como
Ykenga, Laerte satirizava a obra de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1933). Na
narrativa, o quadrinista abordou a trajetória percorrida pelo povo negro escravizado,
desde as condições sub-humanas vivenciadas nos porões dos navios negreiros às vividas
nos camburões (fig. 17). Na ação da policia, observamos a prática do preconceito
contra o negro, que era sempre visto como um suspeito em potencial. O que nos
remete, no contexto atual, à necessidade de implantação de projetos de conscientização
da juventude negra, e a sociedade na sua totalidade sobre a iminência do combate ao
racismo institucional. Em São Paulo, e em outras partes do país, tem se desenvolvido
campanhas neste sentido, entre as quais “Eu pareço suspeito?”, com o objetivo de
desconstruir o estereotipo, frente às forças policiais, de que equacionam a etnia negra, e
sua situação econômica de pobreza, a marginalização e a criminalidade.
A música, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, composta por
Marcelo Yuka, cantada pelo grupo O Rappa, traduz isso muito bem, como podemos
observar no fragmento a seguir:
É mole de ver
Que em qualquer dura
O tempo passa mais lento pro negão
Quem segurava com força a chibata
Agora usa farda
Engatilha a macaca
Escolhe sempre o primeiro
Negro pra passar na revista
Todo camburão tem um pouco
de navio negreiro[...] (YUKA, Marcelo. In: RAPPA, 1994).
75
Figura 17– Do navio negreiro ao camburão
Fonte: LAERTE. Ilha Grande & Senzala. GERALDÃO. São Paulo: Circo, n/ 7, jun. 1988, pp. 27 - 28.
Em 1987, Laerte mais uma vez surpreendeu o público, lançando na revista
Circo a história A insustentável leveza do ser. O artista adotou em suas tiras uma
estética cross-dressing20. A narrativa abordava a história de uma família constituída fora
dos moldes que se convencionou chamar de “tradicional”, para dar sustentabilidade à
formação e criação do seu filho, a personagem Renato (fig.18).
Considerando que a personagem já adentrara uma fase considerada pela
família de maturidade, o pai decidiu revelar-lhe a “verdade”. Toda a família nunca havia
sido o que deixava transparecer: o pai sempre fora a Tia Zuzú, sua mãe todo o tempo era
o leiteiro, e sua irmã Andréia, uma atriz que recebia um cachê para interpretar o papel
de sua irmã. Por fim, Renato descobriu-se outro. A família, ao longo dos seus 17 anos, o
revestiu com uma “pele” branca; quando retirou-lhe a “pele”, ele soube que era negro.
20
Cross-dressing é uma expressão utilizada para designar pessoas que agregam ao seu universo,
masculino ou feminino, elementos do universo oposto. O artista das tiras, além de produzir narrativas que
enfocam essa realidade, considera-se um cross-dressing e afirma sentir grande prazer em adotar essa
prática, que “[...] se refere menos à atividade sexual e mais à transposição de limites. É uma necessidade
imperiosa de perscrutar e vivenciar os códigos femininos. Há ocidentais que se deleitam em investigar o
Oriente. Experimentam comidas exóticas, fazem ioga, visitam a China. Da mesma maneira, por que um
homem não pode empreender uma viagem radical pelo planeta insondável das mulheres”. Entrevista à
revista Bravo. Disponível http://bravonline.abril.com.br/materia/tenho-vergonha-quase-tudo-desenheilaerte. Acesso em: 12 mar. 2013.
76
Segundo Chinen (2013), Laerte montou um jogo de aparências em que nada ou
ninguém era o que parecia ser. Nem mesmo o mundo.
Figura 18 – Roberto, sem máscaras nem disfarces
Fonte: LAERTE. Piratas do Tietê e outras barbaridades. São Paulo: Ensaio, 1994, p. 104.
Renato, assim como a comunidade negra, foi convidado a enfrentar a vida, a
realidade da época, pois os tempos de fantasias haviam ficado para trás. O momento era
de mudanças, fosse com a Abertura Política, em prol das “Diretas Já”, com a
instauração de um regime político democrático, ou através do estabelecimento da Lei
Caó, de número 7.716/1989, que regulamentava o racismo como um crime inafiançável,
punível com prisão de até cinco anos e multa. Renato, como a comunidade negra, sabia
das suas potencialidades e que a sua cor não o definia, nem ordenava ou sentenciava a
sua capacidade. Ela constituía apenas a sua diferença. Diferença que o possibilitaria,
assim como à comunidade negra, questionar a realidade e problematizá-la, com a
intenção de eliminar quaisquer formas de discriminação e segregação.
77
3 NOS QUADROS DA NONA ARTE: ESPAÇOS HETEROGÊNEOS
DE CIRCULAÇÃO
Aqui estou, Zumbi; aqui vim Zumbi, para me desculpar, para te dizer:
Chegamos tarde, mas chegamos. Demoramos muito a vir resgatar o chão da
nossa história, recuperar o chão da nossa existência livre. Perdão, rei Zumbi,
por termos demorado tanto!
[...]Viemos tarde, Zumbi, mas viemos definitivamente. Para marchar sempre
para frente, levando o teu facho de luta, sonhando o teu sonho de liberdade.
Até que esta raça grandiosa, este povo belo, o mais belo do mundo, o meu
povo, o povo negro, resgate este país que ele construiu, o chão de Palmares,
encharcado pelo teu suor, pelo sangue teu e dos nossos ancestrais. Chão
sacralizado pelo sacrifício, pelo holocausto de toda uma raça.
Nós aqui estamos Zumbi, para jurar o nosso compromisso de restaurar a tua
pátria, retomar o chão da liberdade que tu plantaste nesta terra que é nossa.
Este chão não será mais daqueles latifundiários que te apunhalaram pelas
costas e pelo peito, aqueles latifundiários que te roubaram a vida a ti e a teu
povo; que ainda estão roubando o suor do teu povo, calejado nos porões
infames desta civilização industrial e capitalista. Este suor e este sangue –
patrimônio africano que tu plantaste, nós os recolhemos, Zumbi. Estamos
aqui, de joelhos, unidos de braços erguidos e punhos cerrados para
dizer não à opressão. Dizer não ao racismo. Não à discriminação e à
exploração (NASCIMENTO, 1984) 21.
Luiza Mahin, Francisca Cidade, Luis Gama, Carolina de Jesus, Mestre Bimba,
Leila Gonzaléz, Abdias do Nascimento, Mestre Didi, Mãe Stella, Ana Célia da Silva,
Cuti, Conceição Evaristo. Homens negros e mulheres negras, remanescentes de Zumbi
dos Palmares, que junto a tantos outros, cada um a seu tempo e a seu modo, com suas
vozes enraizadas na luta a favor do povo negro, contribuíram para fixar, transmitir e
preservar as memórias da tradição deste grupo étnico racial.
Esses heróis negros e heroínas negras, anônimos do cotidiano, com seus
saberes, reagiram, contestaram e contrapuseram a opressão existente na sociedade
brasileira que sobrepunha e ainda hoje sobrepõe-se ao exercício da cidadania plena do
povo negro em solo nacional.
Eles sabiam, utilizando-me das palavras do poeta Kibuko (1990, p. 71) que não
mais poderiam manter-se vestidos em fantasias, a cultuar super-heróis - barman, capitão
américa e superman -, com seu superpoderes, para solucionar as mazelas infligidas ao
21
“Trecho do improviso do discurso proferido por Abdias do Nascimento por ocasião das solenidades
cívico-religiosas na Serra da Barriga, inaugurando um marco de tributo a Zumbi dos Palmares,
comemorativo do dia 20 de novembro – aniversário da sua morte – Dia Nacional da Consciência Negra,
programada pelo Memorial Zumbi, em 1983, em União dos Palmares Alagoas, Brasil” (NASCIMENTO,
1984, [informação verbal]). Disponível em: <http://correionago.ning.com/profiles/blogs/morre-abdias-donascimento>. Acesso em: 15 mar. 2012
78
povo negro. E como herdeiros da resistência e da insubmissão do herói negro do século
XVII, assumiram a incumbência de dar continuidade aos objetivos do ancestral famoso
a que se refere Nascimento na epigrafe acima.
Nestes processos de combate emancipatórios, muitas dessas lutas foram vistas
pela sociedade civil e os poderes públicos como batalhas perdidas, ou inconciliáveis,
mas a tônica da soma de tantas lutas tornou-as possíveis. Isto em função do povo negro
está sempre a mostrar a sua sabedoria, nos processos de reconstrução e retomada dos
seus espaços. Sabedoria aqui definida
“[...] como trampolinagem, palavra que um jogo de palavras associa à
acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar do trampolim, e como
trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos
dos contratos sociais (CERTEAU, 1998, 79).
Necessárias, neste processo intermitente em que a comunidade negra vive, a
jogar e a desfazer-se dos jogos dos outros, desembaraçando-se constantemente das redes
de forças e das representações pré-estabelecidas.
Neste contexto, às vezes pairam incógnitas: onde este povo negro, “o povo
mais lindo do mundo” (NASCIMENTO, 1984) encontrou as forças necessárias para
tornar tangível e inteligível as reivindicações e aspirações que o anima, quando imerso
nesta política semântica neocolonialista implementada? Como conseguiram alinhar as
artes de fazer as artes de viver? E como estas adentraram a tantos espaços, a exemplo do
universo quadrinístico?
Partindo da afirmativa de Certeau (1998, p. 35), essas reapropriações dos
espaços, pelo povo negro, se deram em decorrência das suas táticas de resistências, que,
em uso, foram modificando os objetos e os códigos ao seu modo próprio e as suas
necessidades. Assim, gradativamente, a comunidade negra foi inscrevendo “[...] seus
passos, regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno habitado há muito tempo”
(CERTEAU, 1998, p. 35), e conseguiram em meio à convivência problemática com a
cultura dominante traçar novos horizontes emancipatórios.
Estes percursos empreendidos foram marcados por “[...] incríveis labirintos de
sentimentos inconfessos de repulsa automática contra o segmento de origem africana e
de insensibilidade para com seus interesses e anseios” (MOORE, 2012, p. 233). O que
talvez possa ser considerado, entre ouros fatores, uma das razões que impossibilitaram o
exercício da democracia, constituindo-se em entraves para que se desse o resgate do
chão da nossa história e a recuperação do chão da nossa existência livre, conforme
79
Nascimento (1984). Mas o povo negro manteve-se em marcha, com seus medos,
inseguranças e utopias a postos. E de forma definitiva chegaram até aqui, contrariando
as lógicas instituídas.
Neste sentido, embriagando-nos das palavras e feitos de tantos negros e negras
que fizeram e fazem a história, apresentamos esta última seção da dissertação, na qual
poderemos ver, vivas e atuantes, novas formas representacionais das personagens
negros, cujas marcas identitárias ganharam um novo sentido. De certo, as composições
destas narrativas sofreram as influências destes homens negros e dessas mulheres
negras, e isto pode ser evidenciado na maneira honrosa como a memória histórica do
povo negro brasileiro vem sendo grafada nas páginas dos quadrinhos, revivendo os
fatos, os heróis e as histórias de luta e de liberdade deste povo.
Não
existem
garantias
quanto
à
pertinência
dessas
narrativas
no
estabelecimento de um novo discurso identitário, mas elas são válidas, pois forjam “[...]
qualidades e virtudes das quais, o povo, o grupo, ou a nação possam se orgulhar”
(SOUZA, 2005, p. 205). Principalmente, porque assumem em sua composição um
posicionamento de oposição às formas alienadas como a comunidade negra vinha sendo
representada nas suas páginas. O que nos faz pensar que elas estão aí, no espaço
quadrinizado, parafraseando Muniz Sodré (2008, p. 14), a “[...] celebrar a radicalidade
do éthos [...], dizendo-nos que o povo negro encontra-se representados no seu lugar
próprio”.
3.1 RASURAS NAS FRONTEIRAS DOS REQUADRADOS
No Brasil, a produção de quadrinhos sempre esteve desvinculada das temáticas
relativas às questões étnico-raciais. No entanto, a partir de 1990, esse quadro começou a
ganhar novos contornos. Tais transformações não aconteceram por acaso, tampouco por
benignidade, mas foram incentivadas por uma irrevogável necessidade da comunidade
negra de desconstruir as complexas organizações sociais que promoveram, ao longo do
tempo, sistemas de opressão consubstanciados na exploração do outro e no seu
apagamento.
Essas mudanças nesses modos de representação, mais verossímeis à
comunidade negra, só se tornaram possíveis porque o Movimento Negro passou a
adotar, cada vez com mais vigor, projetos antirracistas propositivos. A arena política se
80
configurou como espaço de ação imprescindível para que essas lutas fossem travadas.
Para tanto, foi necessário o alinhamento deste segmento a outros setores sociais para
que pudesse influenciar positivamente nessas mudanças (DOMINGUES, 2007).
O Movimento Negro Unificado, junto a outros movimentos que despontaram
nessa época - tais como os Agentes de Pastoral Negros - APNs, a União de Negros pela
Liberdade - Unegro, o Centro de Estudos de relações de trabalho e desigualdade –
CEERT, a Casa do artista Plástico afro-brasileiro - CAPA, o Congresso Nacional AfroBrasileiro - CNAB, o Fórum Nacional de Mulheres Negras, a Coordenação Nacional
dos Estudantes Negros Universitários- CECUN, a Coordenação Nacional dos
Remanescentes de Quilombos; a Coordenação Nacional de Entidades Negras - CONEN
e o Movimento Nacional pelas Reparações, entre outros- organizaram-se com a
responsabilidade de pensar concretamente em estratégias que modificassem as leis
voltadas para esse grupo. Sistematizando, podemos dizer que o movimento negro, entre
outros aspectos,
articulou os conceitos de raça e classe, identificando a raça como
determinante da classe social no Brasil. [...] Demonstrou, em grande parte, o
mito da democracia racial brasileira e a ideologia do branqueamento. [...]
Ressignificou o conceito biológico de raça para um conceito social de
afirmação política. [...] Desenvolveu uma ação educativa junto a escolas e
universidades, com uma pedagogia paralela à oficial, repondo os conteúdos
históricos/culturais do povo negro, invisibilizados ou minimizados nos
currículos (SILVA, 2011, p. 132 ).
Esses procedimentos delinearam um verdadeiro corte epistemológico
favorecendo, de forma indiscutível, as ações executadas (D‟ADESKY, 2009), dentre as
quais destacamos a que ocorreu em 20 de novembro de 1995, em comemoração ao
tricentenário do líder negro Zumbi dos Palmares, considerado ícone de resistência e luta
contra todas as formas de opressão e exclusão vividas pela comunidade negra.
Irmanadas, as entidades organizaram a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo,
pela Cidadania e a Vida, em que cerca de 20 mil pessoas participaram da manifestação
em Brasília. A finalidade da marcha foi pressionar o governo a assumir uma posição de
intervenção real, mais profunda e, a longo prazo, em face dos problemas enfrentados
pela comunidade negra.
A marcha, em consonância com todas as outras ações que aconteceram com o
mesmo objetivo, obteve um saldo positivo porque conseguiu fazer com que o estado
brasileiro reconhecesse que o racismo era uma realidade no país e que necessitava ser
combatido. Diante de tal reconhecimento, o governo federal organizou grupos de
81
trabalhos interministeriais para formular propostas que respondessem às demandas
apresentadas.
O movimento contou com o apoio de alguns parlamentares nos poderes
legislativo e executivo, entre os quais podemos destacar: o senador Abdias do
Nascimento (1997); o deputado federal Paulo Paim, durante três mandatos consecutivos
(1990, 1994, 1998); deputado federal, estadual e senador Luis Alberto (1990, 1994,
1998) e a deputada federal por dois mandatos e depois senadora Benedita da Silva
(1986, 1990, 1994). Esses parlamentares propiciaram um alargamento considerável nas
discussões relacionadas às questões étnico-raciais no parlamento e, por conseguinte, na
agenda política brasileira, criando as bases necessárias para se pensarem novas leis que
viriam a ganhar corpo no século posterior (BERTÚLIO; SANTOS, J.; SANTOS, S.,
2011).
Tais políticos, no que diz respeito às relações raciais, mobilizaram o Brasil.
Entre os anos de 1995 a 1998, vinte e cinco projetos de lei contra o racismo circularam,
entre a Câmara dos Deputados e o Senado, alguns foram aprovados, outros ficaram em
processo de tramitação (CARDOSO, 1998 apud BERTÚLIO; SANTOS, J.; SANTOS,
S., 2011, p.11).
Ainda que os resultados, em termos qualitativos e quantitativos, não suprissem
as necessidades dessa mobilização, precisamos reconhecer que esses políticos, em
paralelo a outros militantes, acenderam pequenas chamas de esperança. As medidas,
naquele
dado
momento,
necessitavam
ser
mais
universais
e
especificas,
combinadamente, a fim de que outras pontes fossem estabelecidas entre as fissuras
constituídas (DOMINGUES, 2007).
O que se pode observar, portanto, nesse processo, é que as políticas de ação
afirmativa ampliaram-se em outras direções, assegurando a participação do negro em
vários setores. Em alguns deles, para que se fizessem valer, foi necessário que se
implementasse a Lei das Cotas de nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Ato que
contribuiu para que as elites ultraconservadoras perdessem, gradativamente, o seu “[...]
papel de referência moral e cultural que tinham ostentado até então para fazer valer a
sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade” (MOORE, 2005, p. 316).
Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas constituíram “[...] uma barreira
eficaz à progressão do racismo e das desigualdades sociais nele alicerçadas” (MOORE,
2005. p. 316).
Mesmo que minoritariamente, podemos ver em maior número do que
nas décadas anteriores, os negros representados na televisão, no cinema, na propaganda,
82
nos cargos políticos ou nas revistas de grande circulação. Esses números ainda estão
distantes do considerado adequado ou esperado, principalmente quando se leva em
conta o fato de a raça negra constituir a metade da população brasileira, segundo o
IBGE (2013), somando-se pretos e pardos.
Se os índices do Censo, nas últimas pesquisas, apontaram para essa realidade,
urge derrubar os projetos conservadores “[...] de sustentação de um status quo sócioracial, baseado na dominação hegemônica de uma raça sobre outra, e da supremacia
social de uma classe sobre todas as outras” (MOORE, 2005. p. 318). Ao analisarmos
esses dados, podemos inferir que as Histórias em Quadrinhos com personagens negros
no papel de herói e heroína, nesta linha de contradiscurso, constituíram-se, e
constituem-se em mais um elemento que fortalece as lutas por equidade da comunidade
negra, na medida em que suas páginas deixaram de publicar narrativas nas quais os
negros ocupavam lugar de inferioridade.
Mediante essas considerações, apresentaremos algumas dessas personagens
que dialogaram (e dialogam) com a luta contra a discriminação racial e o preconceito.
Cada uma ao seu modo, a partir da década de 1997 até 2012, buscaram rasurar as
fronteiras do racismo, do preconceito e da discriminação, desvinculando-se de
construções estereotipadas e caricaturais – ao menos no que diz respeito a sua
representação.
Essas personagens, com suas novas formas representacionais, reivindicavam
um lugar e um testemunho diferenciados para a comunidade negra, que extrapolassem
“[...] os limites de „correção‟ do sistema representacional, pois as suas pretensões são
mais amplas que a invenção/produção de contra-imagens” (SOUZA, 2005, p. 254). Seus
anseios transitavam na produção de uma arte, cujo discurso assumia um viés político,
que almejava agregar para si sempre novos adeptos.
No entanto, o contexto de produção de narrativas quadrinizadas apresenta um
dilema que pode constituir um obstáculo: o número de artistas negro-brasileiros nessa
área é muito pequeno. E os que se lançam na produção de narrativas quadrinizadas com
personagens negros no papel de herói e heroína é muito menor.
Sobre essa situação Scott McCloud (2006) afirma que é mais vantajoso para
um grupo que ele mesmo assuma a responsabilidade sociopolítica de se retratar no
espaço quadrinizado, pois saberá falar com maior propriedade sobre os seus ideais, sua
condição social ou física, a realidade que experimenta. Caso isso não ocorra, corre-se o
perigo de uma produção gráfica extremamente homogênea, em que os seus artistas
83
pertencem a um outro grupo étnico-social e, por isso, assumem vozes mais parecidas
entre si. Não que, com isso, um determinado grupo não possa falar sobre outro, até
porque “[...] a ficção exige positivamente que nos aventuremos além do mundo de
nossas experiências” (MCCLOUD, 2006, p. 106).
No entanto, tais ponderações nos fazem conscientes de que necessitamos
aumentar o número de “retratos” de quadrinistas negros nas orelhas das produções
icnográficas, para que estas deixem de ser “retratos dos outros”. Esse aumento fará com
que as narrativas quadrinizadas sejam contempladas com as marcas de subjetividade dos
seus autores, assim como também servirá para expressar o lugar sócio-ideológico que as
sustenta (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 9).
São esses procedimentos legítimos que nos remetem ao campo da Literatura
Negra Brasileira, que é uma literatura que agrega no seu discurso literário um euenunciador que se assume como negro. O que implica dizer que os seus escritos não se
caracterizam apenas pela cor da pele do escritor ou apenas porque este fez uso de uma
temática negra para desenvolver suas histórias. De fato, essa literatura encontra-se
associada à
[...] existência, no Brasil, de uma articulação entre textos dada por um modo
negro de ver e de sentir o mundo, transmitido por um discurso caracterizado,
seja no nível da escolha lexical, seja no nível dos símbolos utilizados, pelo
desejo de resgatar uma memória negra esquecida. (BERND, 1988, p. 13)
A literatura negra brasileira é negra porque, com sua presença, tensiona o fazer
literário na sociedade brasileira. É negra porque quer seus escritores como protagonistas
do discurso e protagonistas no discurso, produzindo-o com base nos seus lugares de
direito. É negra porque libertadora, capaz de ocasionar envolvimento e beleza, por seu
caráter político, crítico e legitimador, nas suas incontáveis tentativas de estabelecimento
dos diferentes diálogos. (DALCASTAGNÈ, 2012).
Nesse processo, podemos ver o entrelaçamento entre o escritor e a matériaprima humana de que se serve; presente e permanente nos textos, nos contos, na poesia,
nas crônicas, nos romances, a afirmar: aqui, onde se abriga uma pluralidade de
existências, é o meu lugar (DALCASTAGNÈ, 2012). Tais escrituras foram nascidas da
tradição oral, do fato de que o povo africano, quando aqui chegou, foi obrigado a
desfazer-se da sua identidade original, relacionando-a com uma outra, que se formou
fora da África, nascida da sua própria experiência no Brasil, originando, assim, uma
Literatura Negra Brasileira (CUTI, 2010).
84
Uma literatura construída pelo lado de dentro, com marcas indeléveis do
escritor, que é negro, cuja intenção é dar maior visibilidade às questões que afligem a
comunidade negra brasileira. Por isso, sua voz literária, assume um tom de provocação,
de conscientização e de denúncia, muito próximo do papel que o espaço quadrinístico
quer assumir ao representar a comunidade negra nas suas páginas como protagonistas
das histórias. Ambos, Literatura e Quadrinho, assumem através dos seus ditos, uma
função social que quer dizer-nos, de forma criativa, que necessitamos integrar-nos às
frentes de luta e resistir sempre.
Assim, tiras como a de Joel Madrugada & Nega Maluca, de autoria de Newton
Foot, lançada em 1995, na qual a personagem feminina é negra, aparece com seus lábios
e olhos com proporções exageradas, tornaram-se escassas. E as que passaram a vigorar
foram produções nas quais os papeis e as funções do negro estão cada vez mais
diversificados, assumindo a centralidade do discurso. E são dessas publicações que nos
poremos a falar.
A primeira publicação que destacamos, mais uma vez, é a do artista Laerte, que
foi lançada em 1997, no suplemento infantil do jornal Folha de S. Paulo, a Folhinha,
intitulada Suriá, a menina do circo (fig. 19). Suriá é uma menina negra de oito anos,
que atua, na narrativa quadrinizada, como protagonista da história. Trapezista, mora
com seu pai, que é negro, sua mãe, que é branca, e seus amigos no circo. Sua relação
social com o grupo em que vive é de igualdade, e, como toda criança, tem os seus
momentos de traquinices e indagações.
Seus traços fisionômicos não possuem características próprias do grupo étnicoracial negro assumido pelo autor para a personagem. Esses se assemelham aos das
personagens da narrativa como um todo. Por outro lado, essa pode ser a forma particular
que Laerte encontrou para articular e demarcar para si criações tão próprias, que falam
dele mesmo, ao mesmo tempo em que sugerem uma equalização e/ ou assimilação da
representação social dos negros nesses espaços (SILVA, 2011).
Nessas narrativas, Suriá, conforme figura 20, tem o direito de ser rainha,
princesa, como seus ancestrais africanos o foram. Nos requadrados não existe uma linha
limítrofe, demarcando, como na maioria das histórias, de que a função subalterna, ou
má, tenha que ser necessariamente de alguém de etnia negra.
As histórias de Suriá também foram publicadas em formato de livros pela
editora Devir/Jacaranda. A primeira, Suriá, a menina do circo (2003) e a segunda,
Suriá, contra o dono do circo (2003).
85
Figura 19 – Suriá, a garota do circo
FONTE: LAERTE. Suriá: a garota do circo. São Paulo, Devir – Jacaranda, 2000.
Figura 20 – Suriá em: fadas, princesas e rainhas
FONTE: LAERTE. Suriá. In: Folha de São Paulo. 19 jul.2003. Folhinha, p. F8.
Outra publicação que teve grande repercussão nacional, no ano de 2000, foi a
revista Luana e sua turma (fig.21-22), de autoria de Aroldo Macedo. A ideia de publicar
uma revista cuja protagonista era uma criança negra surgiu quando o autor conheceu
uma menina que, sob forte influência do arquétipo eurocêntrico, disseminado através
dos programas televisivos infantis, cujas apresentadoras eram brancas e louras, queria
para si o modelo ideológico de prestígio difundido (fig.21).
86
Figura 21 – Luana em: causos da vovó Josefa
FONTE: MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000. Vol. 2, p. 28.
Em face desta realidade, o autor resolveu produzir um quadrinho que
privilegiasse a história e a cultura negra-brasileira, na tentativa de desconstruir as
representações sociais cristalizadas pela mídia televisiva nacional. E, assim, nasceu
Luana e sua turma, buscando dar um sentido diferente às coisas e às palavras fixando
novos elementos a esse universo simbólico tão perverso. Aos oito anos, a personagem
aparece nas narrativas ao lado da sua mãe, Dona Nena; seu pai, Calça Larga; seu irmão,
Luisinho; sua avó, Josefa; seus amigos, Zeca, Pipoquinha, Rebeca, Sato, Amanda; seu
cachorro, Sultão; os terríveis vilões Fumaça Mortal, Magrelo, Pescoço, Bigode e Oscar
Abina, além de outras personagens. Luana vive as aventuras cotidianas de uma heroínacriança em Cafindé, comunidade quilombola remanescente onde vive.
Com sua roupa branca da capoeira, que a transporta a outros tempos e lugares,
e com seus cabelos trançados e enfeitados com miçangas e contas coloridas , que se
agitam ao som dos atabaques e do seu berimbau mágico, Luana deixa-nos transparecer
as “[...] marcas externas de preservação de seus vínculos identitários e das afiliações
míticas [...]”( SOUZA, 2005, p. 169) com o povo africano. A roupa branca remete-nos a
Oxalá e Yemanjá, as contas vermelhas levam-nos a Xangó, as amarelas, a Oxum, as
verdes, a Ossain, “[...] fragmentos da religião dos Orixás, trazida juntamente com os
africanos e recriada no Brasil [...]” (SOUZA, 2005, p. 169).
87
Figura 22 – Luana
MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000, Vol. 2 (capa).
Em Luana, podemos ver sonhos e esperanças semeadas, devido à
requalificação do negro. No entanto, há alguns elementos, neste trabalho de Macedo,
que necessitariam de revisão/aprofundamento. Contudo, interessa-nos, neste momento,
observar os avanços em relação às produções anteriores e suas possíveis repercussões na
comunidade negra. Essa revista circulou no ano de 2000, com seis edições, do número 1
ao 6, em 2005, do número 7 ao 12 e em 2008, do número 13 ao 18, última jornada da
personagem nas páginas das Histórias em Quadrinhos. O autor, ao lado de Oswaldo
Faustino, escreveu três livros com a personagem; são eles: Luana, a menina que viu o
Brasil neném, 2000; Luana e as sementes de Zumbi, 2007 e Luana, capoeira e
liberdade, 2007.
Essa personagem surgiu em um momento de grande efervescência no país, no
qual se discutia incisivamente a implementação de dois grandes marcos legislativos, a
inclusão e obrigatoriedade, no currículo oficial da rede de ensino, da disciplina História
e Cultura Africana e Afro-Brasileira, legitimada em 20 de dezembro de 2000, através da
Lei 10.639; e o Estatuto da Igualdade Racial. Este entrou em vigor na data de 20 de
julho de 2010, através da Lei de número 12.288, que garantiu à comunidade negra
brasileira “[...] a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos
individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de
intolerância étnica” (BRASIL, 2010).
88
Contudo, toda e qualquer lei é um campo movediço, pela existência lacunar
entre a práxis e a teoria. Daí a necessidade da criação da Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, que começou a executar suas atividades a
partir de 21 de março de 2003, na forma da Lei nº 10.678, visando dar condições de
aplicabilidade às leis anteriores em vigor.
Outros trabalhos seguindo essa mesma linha de amparo à lei e contrários aos
discursos estereotipados continuaram sendo publicados. Os autores dessas obras
recorreram “[...] à memória histórica para fixar os elementos que, no passado,
constituíram a vida grupal [...]” (SOUZA, 2005, p. 61) e as utilizaram para compor suas
narrativas quadrinizadas, Luana e sua turma (2000), O Beabá do Berimbau: histórias
de tio Alípio e Kauê, lançado em 2009, de autoria de Márcio Folha, que contou com o
apoio do Programa VAI, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo; e Aú, o
Capoeirista, de Flávio Luiz (2008), acrescem essa lista. Nessas obras,
[...] existe, por parte dos autores, uma forte consciência de missão a cumprir
– um desejo “pedagógico” de contribuir para que outros afro-brasileiros
despertem a atenção para a necessidade de lutar contra o racismo e a
discriminação e de para a necessidade reverter os mecanismos étnicosegregadores utilizados pela sociedade brasileira nas suas práticas e
discursos. Essa espécie de “missão” justifica-se pela urgência de desconstruir
as imagens seculares, negativas e inferiorizantes dispostas pelos sistemas de
representação e que são assimiladas e introjetadas por “brancos” e “negros”.
(SOUZA, 2005, p. 64).
A realidade de tal “missão” vale não somente para as obras quadrinísticas, mas
também para o âmbito da Literatura Negra Brasileira, a exemplo dos Cadernos Negros.
Estes documentam os modos pelos quais escritores negros brasileiros organizaram-se
para produzir e difundir um discurso identitário negro, que busca intervir nos alicerces e
no exercício do poder político-cultural dominante. Um projeto que começou a ganhar
forma ao final da década de 1970, objetivando tornar audíveis as vozes críticas e de
protestos dos escritores negros, contrários aos modelos de representação e organização
das relações raciais no país (SOUZA, 2005).
Conforme salienta Florentina da Silva Souza (2005), em seus estudos, esse
periódico é indispensável para que entendamos o quadro político brasileiro das três
últimas décadas do século XX. E, por que não dizê-lo, do século que o precede; afinal a
publicação reverberou em diferentes espaços, de forma direta e/ou indireta, inclusive no
quadrinístico, favorecendo e fortalecendo o seu processo de compreensão de abertura de
espaços para a representação do negro.
89
No entanto, não podemos esquecer que tanto as obras quadrinísticas quanto as
literárias se mantêm sob forte influência do mercado e dele não podem escapar, pois
encontram-se envoltas nas relações de consumo. O grande perigo é a possibilidade de se
tornarem apenas mais um elemento da indústria do entretenimento, ou apenas
[...] produtos da indústria folclórica de exóticos, aparentemente fomentadores
de princípios para emancipações materiais, culturais e existenciais, mas na
realidade, sem máscaras, significam a continuidade de uma crônica situação
de alienação integral do ser negro (CONCEIÇÃO, 2009, p.51).
Mesmo com os objetivos emancipatórios que as publicações passaram a ter, é
importante ressaltar que a indústria e o comércio do exótico autorizam essas
publicações, dão-lhe o selo de “bom para consumo” e estas tornam-se um negócio
rentável. Assim, a indústria e o comércio do exótico, podem fazer com que as
publicações se constituam, dessa forma, de acordo com Stuart Hall( 2011, p. 320), em
trabalhos que falam da diferença, mas que não fazem diferença .
Em nenhuma instância essas questões querem dizer que nunca são possíveis
modificações e que o sistema, com seus mecanismos de dominação, sempre vença. No
entanto, como essas possibilidades são iminentes, há sempre que se considerá-las, para
que novas xenofobias não adentrem o espaço quadrinizado e o subjuguem.
Principalmente porque, se observarmos o quantitativo desse espaço, vemos que ele é
limitado e disperso e que a sua visibilidade é segregada, por ser cuidadosamente
policiada e regulada e por existir nesses processos de ocupação/negociação sempre um
“valor” a ser negociado, que normalmente beneficia os grupos majoritários (HALL,
2011).
Nesse sentido, as HQs necessitam ser desenvolvidas distanciando-se desse
exotismo, assumindo um discurso politicamente justo e libertador. Afinal, se a
comunidade negra chegou ao espaço político de representação quadrinístico, isso
aconteceu em decorrência das lutas políticas culturais estabelecidas em torno da
diferença, e, para tanto, foi necessário que ela utilizasse o próprio corpo para textualizar
a sua história e a sua memória. Como enfatizou Stuart Hall (2011, p. 324), a
comunidade negra “[...] tem usado o corpo como se ele fosse, e muitas vezes foi, o
único capital cultural [...] que possuíam. Trabalhando em si “[...] mesmos como em
telas de representação”( HALL, 2011, p. 324).
90
Enfatizou, dessa forma, aquela comunidade aspectos relacionados à sua
pertença cultural étnica-racial, linguística, religiosa, local e nacional, o que se percebe
na forma como de estilização do seu corpo, na sua maneira de ocupar os diferentes
espaços sociais, em como estilizou os cabelos, na sua postura, gingado, no seu modo de
falar e conduzir as suas vivências.
Essas representações e símbolos são performáticos e servem de referência para
que a comunidade negra expresse a sua história, seus signos, símbolos e mitos, neste
contexto irreversível de dispersão diaspórica, tornando-se, assim, modelo positivo a ser
posto nas páginas dos quadrinhos.
Essas probabilísticas se colocam ao lado de políticas de inclusão, que visam
preservar e difundir a história e a cultura negras. Afinal, neste mundo globalizado,
mediado pelas novas tecnologias, nas quais as velhas identidades encontram-se em
colapso, sendo inovadas a todo instante, não há como parar os fluxos culturais,
tampouco as informações (HALL, 2002). Embora possamos pensá-los nas suas
condições materiais e imateriais, dando-lhes um caráter menos superficial e uma marca
identitária negra, necessários à sua preservação. Quanto maior for número de projetos
desenvolvidos com esta funcionalidade, mais nos aproximaremos das metas desejadas.
Imersa neste processo encontra-se a narrativa quadrinizada Aú, o Capoeirista
(fig.23), lançado em 2008, sob a autoria de Flávio Luiz, membro fundador do Grupo de
Risco, composto por artistas que se reúnem para criar cartuns e HQ‟s.
FIGURA 23 – Aú, o Capoeirista
Fonte: LUIS, Flávio. Aú, o capoeirista. Salvador: Papel A2, 2008 (capa).
91
Embora tenha sido lançado em formato de álbum, apenas em 2008, a
personagem nasceu no ano de 1992, quando o artista, em conjunto com o grupo do qual
participava e em parceria com a Aliança Francesa, decidiu fazer na cidade de Salvador
uma exposição de Bandes Dessinée franco-belgas. Para compor a exposição, o artista
criou Aú, um menino negro de oito anos, praticante de Capoeira, inspirado nas crianças
que vivem nas ruas de um bairro histórico da cidade de Salvador, chamado Pelourinho.
No ano de 2004, o autor decidiu reinvestir na personagem, produzindo-a como um
adolescente de 14 anos, mas o projeto não obteve a notoriedade desejada e acabou não
sendo publicado. Só em 2008, com o projeto reformulado e Aú já em com 16 anos, a
ideia ganhou forma ao ser aprovada pela Lei Federal Rouanet, de incentivo à cultura,
contando também com o apoio de alguns patrocinadores.
Exímio jogador de capoeira, ao lado de Licuri, seu mico de estimação, da sua
namorada, Bezinha, e de outras personagens, Aú rearticula os ingredientes da cultura
negra brasileira, tão presentes na cultura baiana, ao transitar pelas ruas do Pelourinho,
jogando capoeira, salvando turista estrangeiro, namorando ou em conversas com seu
Nagô, que representa a tradição e a sabedoria. Seu próprio nome é movimento, melodia,
elasticidade e gingado um dos movimentos da capoeira, expressa na capa do álbum (fig.
23).
Segundo Chinen (2013), o padrão adotado por essa linha de produção editorial,
assemelha-se aos editados na França e na Bélgica, lembrando os traços de alguns
desenhistas franceses, assim como remete ao personagem Tintin, criado pelo quadrinista
francês Hergé.
Em 2009 surgiu mais uma produção no mercado O Beabá do Berimbau:
histórias de tio Alípio e Kauê (fig. 24), do artista-educador Mario Folha.
O artista referenda-se em uma temática pouco explorada pela mídia escrita e
televisiva, a Capoeira. Através de Tio Alípio, um idoso de 80 anos que se insere nesse
contexto como um contador de histórias, a exemplo dos griots africanos, assumindo o
papel de arquivo vivo e guardião da memória (SOUZA, 2005), o autor narra e canta as
histórias/canções do povo negro, seja em África ou no Brasil, tendo como fiel
interlocutor seu sobrinho Kauê. Este é um garoto de 12 anos, apaixonado por Capoeira,
que mal pode esperar para possuir seu próprio berimbau, instrumento que o fascina e
que figura na narrativa como mediador dos seus diálogos com o tio.
92
Figura 24 - Tio Alípio e Kauê
Fonte: FOLHA, Márcio. Histórias do Tio Alípio e Kauê: o beabá do berimbau. São Paulo.
Ciclo Contínuo, 2009 (capa).
Márcio Folha resgata a trajetória do negro no Brasil, homenageando os grandes
Mestres da Capoeira e também fomenta noções de solidariedade étnica, ao designar,
assim como em Luana e em Aú, o respeito às lembranças, saberes e longevidade dos
mais velhos, tão presentes na cultura africana. O autor também apresenta no seu blog,
que recebe o mesmo título do livro, outras histórias quadrinizadas de sua autoria, a
exemplo de Quilombo de Ivaporunduva, na qual duas crianças negras, Nina e Kaíque,
narram o cotidiano de uma comunidade quilombola.
Outros materiais foram publicados; alguns adotaram o formato de cartilhas
quadrinizadas, a exemplo da Minas de Quilombos (fig.25), criada em 2008 pela Rede de
Desenvolvimento Humano – REDEH, em parceria com o Ministério de Educação e
Cultura – MEC e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE.
Conforme palavras do grupo idealizador do projeto, este “[...] pretende se somar às
iniciativas de recontar a trajetória dos quilombos, recuperando uma importante parte da
história do Brasil escrita pelos/as nativos/as da África e seus descendentes
brasileiros/as” (CORRÊA; SCHUMAHER, 2008, p. 4). Anterior a esta publicação,
lançaram em 2005, Quilombos, espaço de resistência de crianças, jovens, mulheres e
homens.
93
Figura 25 – Revista Minas de Quilombos
Fonte: Minas de Quilombos. Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH, Ministério de CulturaMEC, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação -FNDE -Brasília-DC, 2008 (capa).
Em uma linha cuja abordagem foca temas religiosos, surgem os álbuns: AfroHQ:
história e cultura afro-brasileira e africana em quadrinhos (fig. 26), com roteiro de
Amaro Braga e arte de Danielle Jaimes e Roberta Cirne, em 2010, e o álbum Orixás, do
Orum ao Ayê, , produzido por Alex Mir, Caio Majado e Omar Viñole em 2011(fig. 27).
Figura 26 – Revista Afro HQ
Fonte: BRAGA, Amaro; JAIMES, Danielle; CIRNE, Roberta. AfroHQ: história e cultura
afro-brasileira e africana em quadrinhos. Recife: N/A, 2010 (capa).
94
Os autores do álbum AfroHQ: história e cultura afro-brasileira e africana em
quadrinhos (fig. 26), utilizam os orixás para narrar a história da presença africana no
Brasil, assumindo, nesse sentido, um redimensionamento dos critérios que, até então,
negaram à comunidade negra seus direitos plenos e totais, de acordo com a sua
herança, impedindo-a do exercício da sua cidadania cultural e, consequentemente,
negando-lhe, em funções das distorções de conhecimento, de ter/ser pleno. Assumindo,
nessa perspectiva, a regulamentação da Lei 10.639, o autor busca reconhecer, garantir e
proteger direitos da comunidade negra, corrigindo alguma dessas distorções e
fortalecendo seus valores, ao propor uma narrativa que garante e assegura a ampliação
do conhecimento, assim como, ao adotar costumes, ideias e práticas cotidianas,
possibilita ao outro ver-se incluído no processo em construção. Além desse trabalho, o
roteirista, com as ilustradoras e estudantes da Universidade Federal de Alagoas,
Mariana Petróvana e Janaína Araújo, já havia ganhado dois prêmios em concursos que
abordavam a temática afro-brasileira envolvendo aspectos relacionados à discriminação
racial praticada no Brasil contra os negros. O primeiro, no Concurso Alagoas de
Quadrinhos, promovido pela Imprensa Oficial do Estado de Alagoas com a história
Preto que nem carvão em 2011, e, em 2013, no Concurso Nacional de Histórias em
Quadrinhos Ireno José Guimarães, com a história Bonita, como eu!
No álbum Orixás, do Orum ao Ayê (fig. 27), os autores recontam como esse
poder central chamado Olodum Maré personificou o axé, que é a força vital em forma
de orixá.
Figura 27 – Revista Orixás: do Orum ao Ayê
Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero,
2011 (capa).
95
Nesses álbuns, as religiões de matriz africana são retratadas de forma positiva,
deixando explícito que a tradição ocidental, com seus pressupostos judaico-cristãos e
uma convivência imposta, não conseguiram apagar a interação ontológica que nela se
configura, ao entrelaçar, de forma indissociável, o orum, que representa o mundo
espiritual, interior, ao ayê, que representa o mundo físico (SOUZA, 2005, p. 63). De
certo, essas representações retratam um grau de politização e mobilização dos povos de
santo por uma visão de mundo inclusivo, no qual não se preconize a intolerância
religiosa, mas sim o respeito ao direito de todos os cultos no Brasil.
Essas publicações alternativas não foram as únicas que circularam no país
buscando representar o negro sob um novo prisma. Existiram outras. No entanto, as
tiragens dessas publicações foram mínimas, limitadas, inclusive sua periodicidade deuse de forma muito instável (D‟ADESKY, 2009). Muitas delas não são mais produzidas,
embora devessem continuar, principalmente pela atuação política que exercem, ao
assumir nos seus inscritos, um posicionamento crítico de reconhecimento da cultura e
da história do povo negro brasileiro como um dos pilares em que se assenta a formação
desta nação.
As narrativas foram construídas num momento e espaço políticos de perspectivas
transformacionais; assim, em nenhuma instância, pretendeu-se derrubar as esferas do
poder, tampouco impor uma verdade única. Diferentemente disso, assumiu-se uma linha
de ação necessária à difusão dos saberes que foram adaptados e rearticulados pela
comunidade negra em sua defesa. Não se trata aqui, apenas, de se fazer com que uma
ideia circule, mas que esta seja percebida nas suas particularidades, de acordo com a
herança cultural dessa comunidade, para que possam ser discutidas.
Um outro aspecto é que esses quadrinhos foram produzidos em resposta aos
questionamentos que a comunidade negra sempre se fez na sua busca por
reconhecimento, logo, constituindo-se em ações afirmativas, ou pela sua
persuasiva, ou por deslocar
carga
da margem para o centro uma discussão de suma
importância, qual seja, a produção de quadrinhos com personagens negras, usando um
viés de referência positiva para a população negra brasileira. Preenchem, dessa forma,
um espaço lacunar sobre a exclusão, vigente na sociedade brasileira - que é racista e
preconceituosa –, a qual perdurava e se manifestava há séculos, também, nas histórias
em quadrinhos. Essa ação, mesmo com suas falhas, representou e representa um salto
qualitativo para a comunidade negra brasileira.
96
Nessa perspectiva, transformar a representação do negro nas Histórias em
Quadrinhos é mais uma forma de dinamizar os espaços de poder. Imagens positivas
podem favorecer na criação de novas ideias e afetar as estruturas sociais impostas,
abrindo espaço para a prática da igualdade em todas as instâncias. Porém, tais medidas,
necessitam estar em consonância com melhorias do ensino e redistribuição de renda,
pois somente ações conjuntas propiciarão o enfrentamento e a superação das
desigualdades vivenciadas por aquela comunidade.
3.2. HQS: PONTES DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E AUTOESTIMA
NEGRO-BRASILEIRA
Quando as diversas vozes africanas chegaram, forçosamente, ao Brasil,
encontraram na voz do colonizador, expressas através do seu legado cultural, formas
perversas de tentativa de apagamento do seu arché, do seu ethos. Não foi fácil para os
povos africanos, oriundos de diferentes localidades daquele continente, com suas
respectivas línguas, verem seus destinos sobredeterminados por princípios tão
divergentes dos seus e, a partir desse instante, terem que começar a compor para si um
novo repertório. Mas, (re)unidos conseguiram, entre as rotas fragmentadas, estabelecer
estratégias de enfrentamento contrárias ao monopólio da fala instituído pelos povos
brancos.
Crentes no poder da palavra, pois esta desloca-nos através do tempo e do
espaço, os povos africanos e seus descendentes entrelaçaram o passado ao presente e
passaram a falar e a agir contra o sistema imposto. Seus substratos culturais foram
imprescindíveis para que conseguissem suportar todo o peso de uma nova civilização
(FANON, 2008).
Para tanto, a comunidade negra foi obrigada, para mudar o percurso histórico
que se abatia sobre si, a assumir e administrar traços da cultura dominante - língua,
escrita, leis, e uma aparente sujeição à sua religiosidade. Tais apropriações, mesmo
divergentes, possibilitaram, em inter-relação com a daquela comunidade, a construção
de uma cultura e de uma identidade negra no país singular, pois quanto mais a
comunidade negra vivia sob o estigma da repressão, que a oprimia e a acossava, mas
resistia e assumia o enraizamento do seu legado cultural, expresso através do seu corpo,
da sua fala, dos seus gestos e da sua forma de conceber o mundo.
97
E assim, de sobredeterminados, os negros passaram a sobredeterminar as
relações sociais, econômicas, políticas e étnico-raciais no país. Com sua dança, música,
literatura, religião, filosofia, ética, entre outros aspectos, abriram fendas no sistema
imposto, imputando dúvidas e abalando as certezas até então cristalizadas, o que os levou a
alçar vários espaços.
Os percursos foram íngremes, e tanto tempo depois, hoje em pleno século XXI, a
comunidade negra, apesar dos avanços, continua enfrentando problemas cujas raízes
encontram-se na sua vinda forçosa ao Brasil. Ainda não aprendemos a lidar, tampouco a
aceitar ontologicamente, “a diferença e a relação com o Outro dissimilar. Aquele Outro
que, no imaginário social, representa a soma total de todas as diferenças (MOORE, 2012, p.
267, grifo do autor)”, o que se constitui um perigo, porque ao invés de avançarmos nesses
processos de negociação e aceitação do outro, podemos recuar, estagnar e nos negar a essas
mudanças.
Em face desses supostos é que a comunidade negra mantém-se em luta, buscando
não cair nas armadilhas retórico-discursivas da “democracia racial”, pois estaria a
retroceder no processo de enfrentamento dos desafios, principalmente, pelas tentativas de
implementação de programas e ações transformadores de abrangência e alcance alargados,
que a colocam no centro das relações de aceitação, tolerância e respeito, seja consigo
mesma e com os diferentes outros.
Assim, esse grupo étnico-racial segue criando espaços discursivos capazes de
externar as suas diferenças, que são singulares e originais, e adentram o universo
quadrinístico, de forma lúdica, encantada, sagrada, para assumir representacionalmente uma
concepção negro-brasileira de ser. Não nos moldes um dia decantados pelo poeta maior da
negritude Aimée Césaire, que acreditava que a palavra teria o poder de mudar o mundo,
removendo o preconceito, o racismo e a discriminação e resgatando a identidade e o
orgulho de ser negro. Pensamento expresso no seu poema intitulado Les armes
miraculeses22, inscrito na década de 1930. Mas, nos moldes da chamada pós-modernidade,
que preceitua que as palavras podem muito pouco em termos de desconstruções dessas
hegemonias, porém compreende que é no uso da palavra, que tem um poder polissêmico,
que poderemos, de se não mudar o mundo, mas semear pequenas sementes de dúvidas, de
alteridade, na consciência dos homens, para que estes se mantenham firmes nas suas
tentativas de transpor as fronteiras instauradas ( BERND, 2006).
Por considerar, entre tantas rotas disseminadas pela comunidade negra, as obras
apresentadas na subseção anterior deste capítulo vias alternativas que podem contribuir para
22
As armas miraculosas
98
que tal comunidade seja vista dentro da sociedade brasileira sob prismas mais éticos,
políticos e humanos (BERND, 2006), capazes, de se não transformar as estruturas,
desestabilizá-las, ao apresentar-nos uma concepção de mundo gestada sob a ótica da
comunicabilidade do povo negro, é que iremos, neste momento, instalar, de forma breve,
um diálogo com essas obras para fins de analise.
Nelas, encontram-se priorizados
aspectos conceituais e práticos da tradição negro-brasileira, postos em discussão com
tiras presentes nas narrativas, que evidenciam a posição de favorabilidade dessas
histórias em relação à afirmação identitária da comunidade negra.
Na obra Suriá, a garota do circo (fig. 19), de autoria de Laerte,
nossas
reflexões se instauram a partir da capa da narrativa. Nela a protagonista aparece
segurando um cartaz informativo contendo sua própria imagem, a nos dizer que um
novo espetáculo erigido por ela está para começar: o da narrativa quadrinizada através
do mundo circense.
De forma singular e diferenciada, Suriá nos leva pelos caminhos labirínticos do
imaginário, seja através do seu traje de malabarista, seja do seu pedalar o seu
monociclo, ou a jogar bolas com as mãos, traduzindo-se tudo isso em movimento,
alegria, fantasia e equilíbrio.
A presença dos jogos com a bola na capa remete-nos, de acordo com o
pesquisador Marco Aurélio Luz (2002) ao lúdico e ao sagrado. O lúdico, porque as
brincadeiras de Suriá nos dizem o quanto ela é uma personagem-criança feliz,
consciente da suas potencialidades e “[...] cheia de idéias trepidantes” (LAERTE, 2000,
p. 3), com uma euforia de viver que equilibra e ameniza a angústia existencial que cada
indivíduo traz consigo.
Quanto ao sagrado, este se revela, quando passamos a pensar que essa formaovular, ventral, presente nas bolas, enfatiza representações deslocadas da maternidade,
que aludem à gestação e envolvem o mistério da gênese, promovendo reflexões sobre a
nossa origem e o nosso devir, o que aqui neste contexto nos reporta à personagem:
Quem é Suriá, esta heroína negra, menina-mulher das histórias em Quadrinhos? Por que
é importante a sua representação? Aonde poderá ajudar a comunidade negra a ir, ao
deslocar-se no tempo e no espaço, buscando satisfazer o desejo de estar-junto, na
origem da vida societária?
Suriá é essa personagem que se encontra nesta narrativa a nos “dar bola”. Ela
poderá ajudar a comunidade negra justamente assumindo esta expressão, “dar bola”,
que no Brasil quer dizer, estar disponível para o outro, dar presença e reconhecimento
99
(LUZ, 2002). Um gesto que se ousa cometer em nome de um desejo social de ver o
negro representado graficamente nesse espaço, sem os estigmas até então propostos,
validados entre o lúdico e o sagrado, para que outros fins sejam alcançados, a título da
afirmação e construção identitária da comunidade negra.
A tira a seguir (fig. 28) explicita bem essa proposta, visto que se encontra numa
“[...] relação de arte/política em toda a sua extensão” (CIRNE, 1982, p. 57).
Figura 28 – Suriá: o vidro em torno de cada um
FONTE: LAERTE. Suriá: a garota do circo. São Paulo, Devir – Jacaranda, 2000, p. 13.
Na narrativa, Suriá e sua família estão visitando um aquário. A protagonista e
o filhote-peixe expressam para suas respectivas mães a mesma preocupação: a
necessidade de uma vivência para além dos vidros.
Podemos identificar nesse questionamento uma preocupação política latente
e que podemos transferir para a situação da sociedade brasileira. As personagens
enfatizam, com suas respectivas falas, que a sociedade se encontra presa a suas amarras
e que, muitas vezes, não se dá conta dessa realidade, sendo necessário o estilhaçamento
dos vidros do “aquário”, que a enclausuram, que obstacularizam suas ações e seus
esforços, em prol da construção de um mundo melhor. Só rompendo essas amarras que
se instauram no mundo, poderá assumir-se como testemunha da sua história e
conscientizar-se de que tem uma missão a cumprir.
Assim, a narrativa Suriá, a garota do circo (fig. 28), não só nessa tira como
nas demais, ressalta os significativos esforços que historicamente vêm sendo envidados
para se representar o negro de forma não alienada, debatendo-se contra as amarras do
autoritarismo, ao nos apresentar histórias que nos fazem pensar sobre outra lógica de
redesenho quanto ao futuro da etnia negra.
100
Essa mesma lógica também nos chega através da obra Luana e sua turma
(fig. 22), de autoria de autoria de Aroldo Macedo, que assume nas suas tiras
componentes culturais tão próprios da vida do povo negro, a exemplo dos seus modos
de perceber, compreender e interpretar o mundo em suas particularidades e
semelhanças.
A narrativa Luana e sua turma (fig. 21 - 22) encontra-se impregnada “[...], no
sentido da linha do tempo (passado, presente e futuro) [...]”e “[...] no interior do espaço
(o sentido do próximo e do distante, do grande e do pequeno, do visível e do invisível)
[..]” (CHAUÍ, 2008, p. 57), dos valores e saberes da cultura africana; desde a forma
como a personagem se apresenta – traços fenótipos- ao local onde ela habita - uma
comunidade quilombola- até sua relação de respeito e escuta para com os mais velhos,
especialmente a sua avó, que com seus Causos da vovó Josefa (fig. 21) salienta que na
África há muitas Áfricas e nelas reside a tradição africana.
E é assim, atrelados ao seu passado histórico-social, mas sem se opor às
novas demandas transformacionais tecnológicas e informativas, que os discursos
transitam nessa narrativa. Dentre eles, deter-nos-emos no discurso latente que Luana
estabelece com a Natureza. O discurso do saber cuidar e preservar, que dá à narrativa
um sentido agregador de luta e resistência. Afinal, a essência humana reside justamente
no cuidado, conforme Boff:
O cuidado é na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da
inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental humano. Quer
dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que
fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir (BOFF, 1999, p. 1).
E dessa relação “cuidadosa” com a natureza advêm, simultaneamente, valores
de respeito a si mesmo e ao outro, estabelecidos com base numa relação de
reciprocidade, acarretando, assim, equilíbrios entre: homem-homem, homem-natureza e
homem-cosmos. A desintegração desses elos é o obstáculo para o desenvolvimento
integral do indivíduo.
Na narrativa intitulada Luana.com, edição de número 2, ano 2000 (fig. 29),
podemos observar esse chamado ao cuidado. A comunidade quilombola Cafindé, onde a
maioria das histórias circula, é invadida por um vírus, que contamina as crianças que
acessam o site criado por Luana para semear propostas de preservação e conservação do
meio ambiente, com o objetivo de levá-las a assumir uma atitude contrária à proposta.
101
Assim, as crianças passam a poluir o meio ambiente – poluição sonora, pichações, maus
tratos aos animais, lixos no meio das ruas. Ao descobrir o que estava acontecendo,
Luana lança-se na resolução do problema, desmascarando os verdadeiros culpados.
Figura 29 – Luana, a favor da natureza e contra a poluição
FONTE: MACEDO, Aroldo. Luana e sua turma, São Paulo: Toque de Mydas, 2000. Vol. 2, p. 15
Para restaurar o equilíbrio, Luana contou com a solidariedade dos seus
familiares, amigos e da comunidade. Solidariedade pautada na reciprocidade, na
responsabilidade social; pois, para as sociedades africanas, viver isoladamente constituise uma forma de antevir para si a morte. E, assim, Luana mantém-se conectada ao
Sagrado, mantendo afetos e cuidados.
É esse o jeito dela de ser descendente de Zumbi: ativa, capaz de atravessar e
ultrapassar os momentos e as situações mais adversas. Tais feitos exercidos por uma
protagonista negra poderão possibilitar, conforme Nilma Lino Gomes (2003, p.79), “[...]
a construção de um „nós‟, de uma história e de uma identidade” positiva negra.
Afinal, quem nunca desejou, através do seu imaginário, ser um herói ou
uma heroína? Entrar na vida de uma personagem e ser a própria personagem? Ligar-se
ao personagem através desse poder imaginativo e lúdico e deflagrar, através do processo
de reelaboração, uma dimensão transformadora das suas vivências cotidianas,
102
ressignificando o real? E aí está Luana a deflagrar, mesmo que ingenuamente, um
despertar crítico identitário para que o negro assuma a sua identidade negra.
Nesse jogo de interações, chega-nos a obra Aú, o capoeirista (fig. 23), de
autoria de Flávio Luiz, como portadora de uma cultura que irrompe do chão, através da
capoeira, cujo movimento é ação, pensamento, um convite a ver o mundo às avessas,
conforme ele se encontra na capa da narrativa, ou seja, de ponta- cabeça.
Em Aú, reverbera um som, um chamado, uma voz, que remete a comunidade
negra à concretude das suas experiências de mundo. De um lado, ajudando, com seu
grupo de amigos, a personagem Dona do Carmo, moradora e proprietária de um dos
casarões históricos, que vem sendo assediada pelo personagem Amâncio para colocar à
venda o seu imóvel (fig. 30). Também, desmantelando o sequestro da personagem
francesa Nathalie Le Coq, que se insere nessa problemática por tornar-se uma
testemunha ocular da tentativa de desapropriação e reapropriação ilícita do sobrado.
Figura 30- Aú, o capoeirista em: a diferença está na solidariedade
Fonte: LUIS, Flávio. Aú, o capoeirista. Salvador: Papel A2, 2008, p.6.
Nesse jogo de solidariedade, imagens e palavras se fazem ação para reforçar a
viabilidade da narrativa. E a história passa a expressar no contexto, “[...] toda uma
trama de interação emocional [...] que envolve significados mais profundos e trata das
complexidades da experiência humana” (EISNER, 1989, p 16) nesta imbricada relação
de poder.
É nesse cenário, onde Aú sabe-se capaz, apto a agir e transformar o meio em
que se encontra inserido, que as diferenças são assinaladas e os saberes, valores, hábitos
e crenças compartilhados. Todos necessários à construção gradativa da sua identidade
103
negra, ideal que aqui reiteramos, pela sua centralidade na formação e desenvolvimento
do povo negro.
Tal identidade negra aqui compreendida, de acordo com Nilma Lino Gomes
(2002),
[...] como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de
conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo
étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial,
sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando
confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo, pois só o outro
interpela a nossa própria identidade (GOMES, 2002, p.39).
Nessa perspectiva, em solo quadrinizado, pensar em identidade pressupõe
pensar em articulações entre o individual e o social, entre as singularidades e as não
singularidades, entre interesses comuns e interesses diferenciados. Sabemos que, nesse
processo em fluxo, a identidade necessita ser reconhecida, seja de forma autônoma,
pelos outros, em decurso das suas ações, ou por sua existência em si mesma. E as
páginas dos Quadrinhos podem ser, entre tantas janelas, uma fenda de luz que ajudará a
constituir “[...]o individuo livre, consciente de sua individualidade, de sua liberdade, de
sua história e, por último, de sua historicidade” (D‟ADESKY, 2009, p. 75). Mas, para
tanto, é necessário entrar na roda da vida.
E a narrativa que também entrou na roda, a tentativas de equalizações, para
favorecer o reconhecimento e admitir a existência de uma identidade negra foi O Beabá
do Berimbau: histórias de tio Alípio e Kauê (fig. 24), de autoria de Mario Folha. Estas
“[...] traçam uma artimanha iniciativa, sinalizada pelo próprio nome apresentado: O
Beabá” (VALE, 2009, apud FOLHA, 2009, p. 123), como a nos dizer que nas páginas
dos quadrinhos que seguem, adentraremos o mundo mágico da capoeira através dos
acordes sonoros do berimbau.
Os caminhos da iniciação serão construídos por tio Alípio pacientemente de
boca a ouvido, de mestre a discípulo através dos tempos, pois embora esta seja uma
narrativa gráfico-visual, a palavra-mundo, criadora de cultura (FREIRE, 2014),
encontra-se no cerne do processo: o mestre conta o que ouviu e o discípulo, tornado
mestre, reelabora e reconta essas histórias (fig. 31).
104
Figura 31: Tio Alípio na roda do diálogo com Kauê
Fonte: FOLHA, Márcio. Histórias do Tio Alípio e Kauê: o beabá do berimbau. São Paulo.
Ciclo Contínuo, 2009, p.55.
Tio Alípio apreendeu todo esse conhecimento posicionando-se individual e
coletivamente nas rodas de capoeira, conhecimento que se estende à roda “maior”, que é
a vida. Pois a capoeira é infinita, e quando os diferentes atores sociais encontram-se na
roda com o berimbau a tocar, acabam prendendo e apreendendo coisas novas e
começam a ver-se sempre um passo à sua frente. E é nesse contexto, entre as rodas e em
interação com o outro, que se aprende a ser sujeito histórico-social, cônscio de que seu
discurso e sua prática possuem fins políticos e que todo seu conhecimento necessita ser
multiplicado.
Assim foi com tio Alípio, e este está ensinando os saberes apreendidos a Kauê.
O objetivo é que esses conhecimentos sejam disseminados, cheguem a outros
indivíduos, pois temáticas como essas, que deixam entrever, através das personagens
negras, a importância dos atores sociais desenvolverem sua autonomia nas dimensões
social, política, afetiva, econômica e étnico-racial, são eficazes tentativas de afirmação
positiva da comunidade negra.
Para tanto, se faz necessário que essas produções circulem entre escolas,
bibliotecas, salas de leitura, bancas, meios digitais com a devida valorização e
respeitabilidade, para que sejam aceitas e exerçam processos de reflexão, ação e
transformação. Pois, bem o sabemos, que imagens e discursos positivos incidem na
elevação da autoestima, e se constituem eficazes no combate aos conceitos que
incapacitam e inferiorizam a comunidade negra.
Trilhando o mesmo caminho, adentramos a narrativa Minas de Quilombos (fig.
25). O primeiro aspecto que nos chamou a atenção diz respeito à cor da pele das
105
personagens. Estas, diferentes das demais narrativas, aparecem coloridas na cor preto.
As demais, apresentadas anteriormente, apareceram coloridas na cor marrom.
A presença dessas colorações leva-nos a questionar acerca das implicações que
podem
preponderar:
estariam
os
autores
das
obras,
inconscientemente
ou
conscientemente, tentando escamotear o grupo étnico das personagens?
Definir quem é o negro no Brasil é uma tarefa deveras complexa, e em obras
quadrinizadas a escolha dessas cores, a fim de representar as personagens, também se
revela problemática. Isso em decorrência do ideal do branqueamento, conceito que fora
introjetado nas pessoas negras e que faz com que estas acabem por não se considerar
dessa cor (ou etnia), numa dolorosa rejeição do seu fenótipo. Esse ideal do
branqueamento é o que estaria incidindo sobre a escolha da cor marrom para colorir a
pele das personagens?
Por outro lado, bem sabemos, que “os conceitos de negro e de branco têm um
fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico”
(MUNANGA, 2004, p. 52). Assim, politicamente, podemos considerar negro todas as
pessoas que têm uma aparência fenotípica desse grupo étnico. Logo, pardos, mulatos ou
mestiços ou qualquer descendente de negro pode classificar-se como negro. Decerto,
pensando no critério cor da pele como qualificação política, as personagens
apresentadas anteriormente são negras, embora nesse processo de construção de
ferramentas para reafirmação dessa identidade negra, o uso de cor preta, quanto à
escolha da cor da pele, na narrativa Minas de Quilombos é uma escolha estética
positiva, pois faz-nos refletir sobre
as manobras sociais em torno do efeito
branqueamento entre nós e de suas condicionantes.
A narrativa Minas de Quilombos,
apresenta a realidade de meninas e meninos, jovens e homens e mulheres
quilombolas que, espalhados/as pelo país, lutam pela construção da
cidadania, preservação de sua cultura e suas terras e, principalmente, pelo
direito de contar sua história. (CORRÊA; SCHUMAHER, 2008, In Minas de
Quilombos, p. 4).
A ação se passa no Quilombo do Ausente de Cima e Ausente de Baixo,
localizado no estado de Minas Gerais. Na escola, os alunos tomam conhecimento da
existência de uma narrativa quadrinizada, que conta a história de quilombos localizados
no Rio de Janeiro. Daí surge a ideia da construção dessa narrativa. Para tanto, eles vão
contar com o apoio da professora para ser elo com outras fontes vivas informacionais e
106
também para a organização dos processos de deslocamento. O “gibi” será composto de
informações sobre a comunidade, que os alunos trazem consigo, juntamente com essas
informações coletadas em campo durante a pesquisa. E, assim, a história ganhou corpo,
tornando-se esta HQs, em análise (fig. 32).
FIGURA 32: Em quadrinhos a história do Quilombo do Ausente de Cima e Ausente de Baixo
Fonte: Minas de Quilombos. Rede de Desenvolvimento Humano – REDEH, Ministério de CulturaMEC, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação -FNDE -Brasília-DC, 2008, p. 38.
A estratégia adotada pela equipe de produção desta narrativa foi bastante
criativa, uma vez que reforça a ideia da capacidade iminente que a comunidade negra
possui para ser sua própria porta-voz. Esse tipo de produção facilita em muito a
veiculação das informações, a apropriação deste material, numa relação assimétrica com
as falas das personagens, e propicia convencimento recorrente, pois a postura das
personagens nos diz que elas sabem, com propriedade, o que falar.
Com base nesses pontos, chegamos à narrativa AfroHQ: história e cultura
afro-brasileira e africana em quadrinhos (fig. 26), com roteiro de Amaro Braga e arte
de Danielle Jaimes e Roberta Cirne, que apresenta uma capa bastante emblemática,
ilustrada por diferentes orixás, dispostos circularmente. Essa imagem também compõe
o interior da narrativa (pp. 12 – 13), sendo que nelas os orixás encontram-se
identificados por seus respectivos nomes. Com trajes nas cores e indumentárias, que os
definem em suas simbologias, eles são respectivamente posicionados em sentido
horário:
a) Exu, que na língua yorubá significa esfera, é a gênese, a força vital do
processo da criação; é movimento; orixá responsável em estabelecer os canais de
comunicação entre o orum e ayê, por isso é sempre a primeira divindade a ser invocada
durante os cultos religiosos; suas cores são o vermelho, uma cor quente, ligada ao
107
sangue, que gera energia, força, poder, e o preto, que é uma cor que se origina da fusão
das outras cores; é o oculto, o indecifrável, o secreto, tão próprios de Exu (SANTOS,
1996);
b) Em trajes na cor azul, que simboliza a força do fogo, tão necessária à criação
das suas ferramentas, encontra-se Ogum, que é o senhor dos metais;
c) Oxossi, com sua cor verde, representa as matas;
d) Ossaim, que também veste verde, assume a responsabilidade pelos segredos
contidos em cada uma das folhas presentes na natureza;
e) Omulu, que é o orixá que representa a morte, não vem representado com
uma cor, mas apenas com o seu modo de vestir, coberto de palhas, o que nas palavras de
implica dizer que ele cobre-se da cabeça aos pés para que não seja desvendado o
mistério da morte.
f) Oxumaré, que se apresenta com todas as cores do arco-íris, representando os
ciclos intermitentes que se dão entre o céu e a terra.
g) No processo, os Ibeji, orixás duplos, ou gêmeos, protetores das crianças,
utilizam roupas nas cores verde, amarelo e vermelho;
h) Logun-Edé é filho de Oxum e de Oxossi e suas vestes apresentam-se nas
cores amarelo-ouro e azul-turquesa, simbolizando a riqueza, a fartura, o controle sobre
os navegantes;
i) Yansã é a senhora dos ventos e das tempestades, sua cor denota as
tonalidades que despontam no entardecer;
j) Obá é a orixá das guerreiras, ligada às estrelas e às águas;
k) Eujá é senhora da fertilidade, da sensibilidade, das artes, da poesia,
apresenta-se em seu traje rosa;
l) Oxum apresenta-se de amarelo, representando o ouro, as águas dos rios, a
intuição;
m) Yemanjá, de azul, representa as águas;
n) Nanã, de anil, representa a terra, a água e o barro, elementos oferecidos por
ela a Ossaim para a criação do homem;
o) Xangõ apresenta-se de branco, representando a justiça.
Juntos, os orixás formam “[...] a roda da vida. A roda da natureza. A roda dos
acontecimentos que envolvem o próprio homem: a roda do destino” a nos dizer: “sejam
todos bem-vindos ao terreiro!” (BRAGA; CIRNE; JAIMES, 2010, pp. 12 e 13).
108
A capa da narrativa capta o que está, substancialmente, por trás da imagem: a
necessidade de que sejam assumidas, no Brasil, posições críticas, políticas e culturais,
comprometidas em falar desse forte elemento cultural da comunidade negra, que é a sua
religião. Assim, os orixás nos são apresentados de forma icônica, de maneira que se
assemelhem ao seu referente representacional, projetando-nos uma presença que diz da
ligação da comunidade negra com o sagrado; embora, por encontrarem-se na esfera das
artes, não possam ser caracterizados como místicos, nem sacralizados.
Outro aspecto da capa diz respeito à forma como os orixás encontram-se
dispostos, em círculo, o que traz à tona dois elementos constitutivos da cosmovisão
africana: o princípio da integração e o princípio da circularidade.
O princípio da integração funda-se no dogma de que todos os sujeitos,
independentemente de cor, raça, etnia, com suas singularidades, fazem parte do cosmo e
por isso estão intimamente relacionados. O princípio da circularidade evidencia que os
diferentes sujeitos, mesmo ocupando posições e funções diferenciadas dentro desse
cosmo, são chamados a viver em harmonia, numa relação de horizontalidade, em que se
privilegie o bem-estar de todos. A roda, o círculo, a circularidade, como imagens
representacionais do cosmo, são fundamentos, estando permanentemente em fluxo.
E, assim, essa ilustração nos diz que essas narrativas serão cheias de ação, de
saberes que irão circular no grupo, de boca em boca, de mãos em mãos, de corpo a
corpo, pautadas num processo dinâmico de interação, narrando “[...] os principais fatos
que envolvem a história da presença africana no Brasil e suas contribuições para a nossa
formação”. (BRAGA, 2010, p. 7)
Através dos fios que tecem essas reflexões, chegamos, nesta pesquisa, à última
narrativa para análise: Orixás: do orum ao ayê (fig. 27), produzido por Alex Mir, Caio
Majado e Omar Viñole. Essa HQs traz no seu interior a presença de histórias que
abarcam a enigmática interação deste mundo com o além. Ademais, nos incita a pensar
sobre as simbólicas criações de Olorum - Deus-Negro, do povo negro africano e dos
seus descendentes, que sabiamente criou os orixás, a mãe-terra e o homem.
E é com estes elementos - Olorum, os orixás, a mãe-terra, e o homem-, que
emergem do precioso repertório das culturas e tradições africanas, que os artistas dessa
obra a compuseram. Agregando o estético às forças cósmicas que regem o universo,
essa narrativa foi dando sentido ao ato criador de Olorum, que “[...] diferenciou a idéia
de caos da idéia de existir” (LUZ, 2002, p.74). Afinal, “[...] o existir se caracteriza pela
diferença entre forças em constante movimento formando um ciclo vital,” (LUZ, 2002,
109
p. 74) onde todos e tudo, imagens, símbolos e mitos, se relacionam de forma
interdependente.
Nesse sentido, podemos pensar que essa narrativa mística, com todo o seu
simbolismo, nos chega como mapas para nos ajudar a ultrapassar os obstáculos políticoideológicos instaurados na sociedade. Sem determinar normas, nem regras, essa obra,
que fala do imperceptível de forma perceptível, aponta-nos novas possibilidades de
convivência, através das palavras-imagens que nos oferece. Representa os orixás sem os
estigmas, tampouco associados ao mito de demonização, contrapondo-se, assim, aos
padrões religiosos ocidentais cultivados pelas religiões cristãs, que associavam essas
divindades a práticas veiculadas ao mal, acabando por atuar como mais uma fonte de “
[...] afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleos de resistência às variadas
formas de aspirações neocolonialistas” (LUZ, 2011, p.68).
Um desses núcleos de resistência encontra-se presente no capítulo 5 (pp. 5765): A separação do céu e da terra. Podemos ver nessa narrativa as marcas da presença
africana aqui recriadas, revelando a interlocução existente entre o mundo espiritual,
invisível (orum) e a vida cotidiana, ou seja, ao mundo visível (ayê).
Essa história especificamente nos conta que houve um tempo em que não
existia separação, nem fronteiras entre o céu (orum) e a terra (ayê) (fig. 33). Os homens
podiam transitar livremente entre esses dois mundos, desde que as regras e normas
estabelecidas por Olorum, o deus supremo, fossem devidamente cumpridas, conforme
explicitadas por Oxalá na narrativa. Não tanto por desobediência, diríamos, mas por
curiosidade ou necessidade, o acordado fora descumprido e, desde então, o homem só
pode voltar ao orum após a sua morte (fig. 34). No entanto, por generosidade, Olorum
permitiu que o homem utilize-se de cultos e oferendas para manter-se religado ao orum,
e assim tem sido até os dias atuais.
Observando essa narrativa, podemos ver transitando as marcas africanas nas
reminiscências do povo negro brasileiro. Esta comporta vivos conhecimentos, princípios
e valores humanitários que favorecem a convivência e consubstanciam a forma
organizacional da comunidade, dando-lhe um sentido prático.
Neste sentido, é imprescindível que histórias como essa sejam narradas, pois
é olhando e reverenciando o seu passado, que a comunidade negra reafirma os seus
valores de convivência, que só podem ser preservados e reinventados quando colocados
em comum-união.
110
FIGURA 33: O orum e o ayê sem fronteiras
Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero,
2011, p. 57.
FIGURA 34: A separação do céu e da terra
Fonte: MIR, Alex; MAJADO, Caio; VINÕLE, Omar. Orixás: do orum ao ayê. São Paulo: Marco Zero,
2011, p. 64.
111
Desse modo, essa obra, assim como as demais supracitadas, ao assumir nas
suas páginas uma representação discursiva que recria a realidade do povo negro
brasileiro, abordando temáticas que não são muito recorrentes e elegendo como
protagonistas dessas narrativas heróis e heroínas negros, deve ser percebida como mais
um elemento agregador de luta frente às desigualdades enfrentadas.
Nesta nossa análise, conforme salientamos anteriormente, sob nenhuma
hipótese sugerimos que essas narrativas tenham o poder de transformar as estruturas
sociais do país, mas sabemos que elas podem nortear discussões que explicitam quem é
o povo negro brasileiro, sinalizando todo o aporte de conhecimentos que ele traz
consigo, todos indispensáveis à construção e consolidação deste país. Tampouco,
queremos manter a ideia de que elas sejam entrecortadas apenas por elementos gráficos
visuais que incorporam a estética negra; muito pelo contrário, elas são a resultante
dessas várias associações, e por vezes, a exemplo da última, “[...] a anatomia
anabolizada dos heróis aproxima-os mais das formas dos super-heróis americanos do
que do biótipo mais esguio dos africanos” (CHINEN, 2013, p. 254), porém, esta
realidade não descaracteriza a obra nem invalida o seu caráter.
Assim sendo, essas narrativas constituem-se referências de ação porque
rompem com os modelos de narrativas pautados apenas na cultura dos povos brancos.
E, nesse processo de interlocução, podem contribuir para que seja mantido vivo todo um
repertório cultural de base africana, evidenciado representacionalmente nas formas
como as personagens e as narrativas foram compostas, tão próprias de um jeito de ser,
pertencer e de participar da cultura negra brasileira. E, quem sabe, apresentando-se de
forma persistente, essas produções possam tornar-se também tradição dentro do
universo quadrinístico e dentro da sociedade brasileira, face às mobilizações que são
desenvolvidas pelo povo negro em busca de equidade de direitos e oportunidades. Até
lá, entretanto, há muito que se lutar e re-existir.
112
CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO
De acordo com os dados apresentados e analisados nesta pesquisa, foi
possível inferir que a história do negro ainda é marcada pela segregação, exclusão,
sofrimento, por conta do desrespeito aos seus direitos e tradições. Entretanto, foi
igualmente perceptível que, a partir de 1930, houve muitos avanços advindos das suas
conquistas, nos diferentes âmbitos, em função das lutas do povo negro contra a opressão
dos grupos dominantes. Tais mudanças, algumas décadas posteriores, se instalaram,
inclusive, nos conteúdos das Histórias em Quadrinhos, que, até mais da metade do
século XX, ainda continuavam a representar esse grupo étnico-racial com imagens que
denotavam alienação, submissão, inferioridade. Na década de 1960, já se faziam
presentes personagens negros em papeis centrais, manifestando críticas à sociedade.
Vale ressaltar que, desde o final do século XX, essas publicações cresceram
significativamente e, conforme os resultados das narrativas analisadas nos sugeriram,
em suas páginas vêm expressos seus ideais de liberdade e seus anseios de autoafirmação
identitária.
No entanto, o nosso olhar sobre o outro continua a ser estabelecido com base
em pares binários de oposição: bom ou ruim, branco ou preto, grande ou pequeno, feio
ou bonito, alto ou baixo, resistência ou cooptação, autêntico ou inautêntico, oposição ou
homogeneização (HALL, 2011). E, assim, nos posicionamos optando por um único
lado, uma única vertente, um único caminho, como se na vida prática essas relações
estáveis e estáticas fossem possíveis e não transpassadas pelos aspectos políticos,
históricos, sociais, econômicos e étnico-raciais e afetivos.
Os diferentes sujeitos, com suas posturas autocratas, acabam “esquecendo”
que existem posições dentro da sociedade a serem conquistadas, respeitadas e aceitas,
em um verdadeiro exercício de alteridade e que, por trás de cada experiência humana
advêm outras que tornam possível imaginar e representar outras realidades.
Contradizer esse desafio seria mais uma forma de reafirmar que, no Brasil,
não existe preconceito, racismo e discriminação. Principalmente quando os vemos de
forma tão explícita no baixo quantitativo de publicações quadrinísticas, em que as
personagens negras exercem o papel de heróis e heroínas nas produções.
Os espaços
das escrituras, da mídia, da televisão, do cinema, da política, das Histórias em
Quadrinhos ainda se constituem excludentes. Recorrendo às palavras de Walter
Benjamin (1985), o que esses espaços, de fato, necessitam é perpassar um processo de
113
dessacralização. Ou seja, necessitam da “[...] presença do outro [...]”, da “[...] exigência
da democratização do fazer literário” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 195), o que aqui
transpomos à democratização do fazer quadrinístico, que envolve também a
participação oficial do Estado.
Essa foi uma das faces encontradas nesse estudo, mas existem outras que
merecem ser assinaladas e que concorrem positivamente para as mudanças que
ocorreram na representação social do negro nas páginas das Histórias em Quadrinhos.
Em primeira instância reforçamos que a participação dos Movimentos
Sociais Negros na reescrita dessa história foi imprescindível, pois as frentes de luta
organizadas pela comunidade negra, paulatinamente, se não foram conseguindo, na sua
totalidade, desconstruir os discursos de subalternidade e inferioridade implementados ao
longo do tempo, ao menos os abalaram, reposicionando, legalmente, o lugar de
ocupação do povo negro brasileiro, como sujeitos ativos que são, na sociedade
brasileira. O que tornou possível fazer emergir novas formas de pensar e produzir
conhecimento, agora fincadas na história e cultura negro-brasileira.
Em segunda instância, face a essa nova realidade conjuntural, as Histórias
em Quadrinhos passaram a assumir uma abordagem visual que captura os detalhes e a
sutileza da comunidade negra. E as personagens passaram a ser representadas de forma
humanizada, em relação intergrupal de igualdade e em pleno exercício da sua cidadania.
O que extrapola os lugares até então destinados aos personagens negros nessas
narrativas.
Esse tipo de abordagem modelada na valorização do povo negro brasileiro,
garante a manutenção de um ritmo e vitalidade, postulados com base em condições
histórico-culturais concretas, o que pode ajudar as pessoas a aproximarem-se de si
mesmas, da sua identidade negra e do outro. E, assim, essa ressonância emocional, de
acordo com a verossimilhança com as personagens negras, poderá instigar laços de
solidariedade, sentidos de existência e pertença. Parece-nos óbvio, por outro lado, que o
mercado editorial necessita ser fomentado e as produções incentivadas, pois existe, sim,
um público consumidor para essa arte, basta que ela circule.
Diante do exposto e em conformidade com as revistas analisadas, reitera-se
que a inserção da comunidade negra nas páginas das HQ representa uma condição
possível de desenvolvimento de gosto pela sua beleza, sua cor, sua história, sua cultura,
seu legado de matriz africana.
E outros grupos étnicos/raciais poderão também
começar a prática de desenvolver olhares de fora, mas sem estigmas inferiorizantes,
114
reconhecendo que podemos todos viver, sim, as diferenças, sem necessitarmos
estabelecer processos hierarquizantes (SILVA, 2011).
Em síntese, consideramos que produções que representam nas suas capas e no
seu interior essas transformações, com personagens cuja trajetórias de vida denotam
sucesso, que vivem em contato com o sagrado, que expressam suas manifestações
culturais, como a capoeira, entre outros, são essenciais para divulgar, reconhecer e
valorizar os processos históricos, sociais e étnico-raciais da comunidade negra assim
como colaboram na construção de uma autoimagem e de uma autoestima positiva do
povo negro, ao romper com a ideologia do branqueamento, que, com seus hiatos,
manteve, por um longo período, um discurso avesso a essa nova realidade de avanços
que vem se configurando.
Dessa forma, podemos inferir que, por meio das narrativas quadrinizadas com
personagens negras na posição central, ativa, antes que de subalternidade ou alienação,
como antes eram apresentadas, é possível discutir a realidade, (des)organizar as
convivências ditas como fixas e imutáveis e expressar diversos modos de encarar a
vida. Levantando as contradições sociais e emocionais que constituem o entorno das
HQs, poderemos criar possibilidades de apreender o real e torná-lo mais fluído.
Mas, para tanto, será também preciso que a sociedade rompa com os
discursos antidiálogicos implementados e que um maior número de ações políticas seja
levado a efeito no país. Nessa perspectiva, entre sonhos e utopias, contribuímos com as
reflexões deste trabalho, que de nenhum modo, podem ser consideradas como fixas ou
finalizadas, mas em processo de aprofundamento, pois bem sabemos que o segredo de
qualquer ação, em oposição ao silêncio da omissão, é ser inclusive respaldada em dados
(principalmente científicos) que podem interferir para desestabilizar as contexturas tidas
como sólidas.
115
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, Anete; OLIVEIRA, Fabiana. A escola e a construção da identidade
na diversidade. In: ______ et al. (Orgs.). Educação como prática da diferença.
Campinas: Armazém do Ipê, 2006.
ANGELI FILHO, Arnaldo. Feijão. Folha de S. Paulo. Caderno Folhinha. São Paulo, 14
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COM QUE COR SE PINTA O NEGRO NAS - PPGEL