PROCESSAMENTO SEMÂNTICO VERBAL EM CRIANÇAS: ASPECTOS COMPORTAMENTAIS Autores: TÂMARA DE ANDRADE LINDAU, CÉLIA MARIA GIACHETI, DEISY DAS GRAÇAS DE SOUZA, Palavras-chave: Linguagem; Semântica; Avaliação. INTRODUÇÃO A aquisição da linguagem falada, tanto receptiva quanto expressiva, é um marco importante no desenvolvimento da criança(1). Essa aquisição em crianças com desenvolvimento típico geralmente ocorre de forma linear e contínua em seus diferentes subsistemas (i.e., fonológico, morfossintático, semântico e pragmático) e resulta da interação entre fatores neurobiológicos e sociais(1-3). O desenvolvimento atípico de linguagem, denominado de transtorno da linguagem, por sua vez, é considerado uma subclassificação diagnóstica dos Transtornos da Comunicação, em que as crianças com transtorno de linguagem falada frequentemente falham em adquirir habilidades receptivas e expressivas na idade apropriada(4-6), o que tem despertado atenção da comunidade científica que busca elucidar o processo desviante e a natureza dos diferentes quadros clínicos(7-9). Contudo, são escassos os estudos que buscam entender o processo complexo que envolve a linguagem e os seus transtornos e possíveis resultados em tarefas que envolvem o processamento semântico. O processamento semântico é o mecanismo essencial para a compreensão da linguagem falada, que abrange desde processos neuronais simples como a detecção, até complexos como a recepção, identificação, análise e compreensão de enunciados falados(10,11). Com o intuito de investigar esse processamento em crianças com e sem transtornos de linguagem, têm sido utilizados diferentes tipos de tarefas que englobam o julgamento semântico, como a apresentação de frases congruentes e incongruentes para que a criança indique se são falsas ou verdadeiras. A eletroencefalografia (EEG) é uma técnica neurofisiológica atualmente considerada importante para investigar os mecanismos relacionados ao processamento da linguagem(12-14). Alguns estudos internacionais investigaram a acurácia e a latência das respostas em crianças com e sem transtornos de linguagem por meio de estímulos de diferentes modalidades sensoriais (e.g., visuais ou auditivos)(15-18). Em um dos estudos os dados comportamentais de crianças com desenvolvimento típico e distúrbio específico de linguagem, utilizando uma tarefa de julgamento semântico contrastando imagem e som, mostraram que as crianças responderam com maior acurácia aos sons ambientais, porém sem diferença estatística entre os grupos. Para a latência das respostas, ambos os grupos responderam de forma semelhante aos estímulos, no entanto, quando solicitado o julgamento de congruência entre os estímulos, a latência foi menor para ensaios incongruentes(17). Outro estudo avaliou um grupo de crianças com desenvolvimento típico de linguagem (GT) e um grupo com Síndrome de Williams (SW), por meio de uma tarefa de julgamento semântico com frases congruentes e incongruentes. Esse estudo registrou alta taxa de respostas corretas para os dois grupos, ocorrendo, no entanto, maior acurácia no grupo GT em relação ao SW(18). Neste sentido, a interface entre estudos de linguagem e a utilização do EEG tem subsidiado a investigação de diferenças sutis no processamento das informações(17). Porém, essa técnica em pesquisas, no Brasil, é ainda escassa, o que justifica a realização de estudos nessa área. OBJETIVO Neste estudo, a proposta é utilizar uma tarefa comportamental de julgamento semântico para investigar a acurácia e a latência de respostas, extraídos do software EPrime Professional 2.0 associado ao equipamento Geodesic EEG System 300, de crianças sem transtornos de linguagem. MATERIAL E MÉTODOS O presente estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição onde foi desenvolvido, e é parte da tese de doutorado em andamento da primeira autora. Participantes Participaram 4 crianças com desenvolvimento típico de linguagem, duas do gênero feminino e duas do gênero masculino, com 11 anos de idade, que frequentam o Ensino Fundamental. A participação das crianças no estudo foi condicional à: (a) autorização por parte dos pais ou responsáveis; (b) concordância em participar, por parte da criança; (c) história negativa de alteração sensorial (visual e auditiva), alteração psicomotora e de desenvolvimento de linguagem; (d) ausência de transtornos de linguagem, confirmada por avaliação fonoaudiológica clínica; (e) níveis mínimos de respostas auditivas dentro dos padrões de normalidade(19); (f) falantes do Português Brasileiro. Procedimentos Para a avaliação da acurácia e latência das respostas (avaliação comportamental) foi utilizado um conjunto de 90 frases faladas(20,21), sendo 45 com congruência semântica (e.g., O macaco come a banana) e outras 45 com incongruência (e.g., O macaco come a porta), as quais foram pseudo-randomizadas(22). Desse total foram selecionadas 10 frases (5 congruentes e 5 incongruentes) para compor a fase de treinamento da tarefa. As frases foram gravadas por falante nativo do Português Brasileiro, do gênero feminino, com entonação neutra, em uma sala tratada acusticamente, utilizando o gravador de voz Marantz PMD661 – 24bits/ 96kHz com microfone unidirecional Shure. A tarefa foi programada para apresentação e registro utilizando-se o software EPrime Professional 2.0 associado ao equipamento Geodesic EEG System 300, em que todos os estímulos eram apresentados de forma binaural e a avaliação foi realizada em uma sala tratada acusticamente. As crianças eram instruídas a decidir, para cada frase, se a última palavra estava ou não adequada para o contexto da frase apresentada, pressionando um botão de resposta para "sim" e outro para "não". O esquema seguinte ilustra como foi realizada a tarefa (Figura 1). <FIGURA 1> Análise dos dados Taxas de precisão (acurácia) das respostas foram analisadas para cada participante, assim como a latência, o número acertos, erros e omissões realizados em cada tarefa (congruente x incongruentes). RESULTADOS Esclarece-se, inicialmente, que os dados aqui apresentados foram obtidos a partir das respostas registradas pelo software E-Prime Professional 2.0 e futuramente esses dados serão complementados com as medidas de EEG, captadas simultaneamente pelo equipamento Geodesic EEG System 300. A Tabela 1 apresenta o número de acertos, acertos por tentativa, omissões, erros e o intervalo da latência das respostas para cada conjunto de frases (i.e., congruentes e incongruentes). Pode-se observar alta frequência de acertos para todas as crianças. <TABELA 1> Na Tabela 2, observa-se que, em geral, as crianças apresentaram maior número de acertos para as frases incongruentes quando comparadas às congruentes, assim como responderam com latência maior para frases congruentes. <TABELA 2> No que se refere à latência de respostas no conjunto de frases congruentes e incongruentes, a Tabela 3 apresenta a média para cada tarefa como um todo (i.e., considerando tanto os acertos, quanto as omissões e os erros) e a média para cada participante em cada tarefa e associada. <TABELA 3> DISCUSSÃO Neste estudo propôs-se apresentar dados de acurácia e latência de respostas de crianças com desenvolvimento típico de linguagem em tarefa comportamental de julgamento semântico, composta por frases faladas com finais congruentes e incongruentes. Os resultados mostraram alta frequência de acertos para todas as crianças, indicando que foram capazes de fazer o julgamento de congruência, assim como apresentaram maior número de acertos para as frases incongruentes quando comparadas às congruentes (Tabela 1). Em relação à latência (Média de congruentes: 38,25; Média de incongruentes: 39,25), ocorreu variação entre 340ms e 520ms para obtenção das respostas nos dois conjuntos de frases; no entanto a latência foi maior para respostas a frases congruentes (Tabelas 2 e 3). Tais dados de acurácia e latência confirmaram estudos internacionais que referiram latência menor para ensaios incongruentes e alta taxa de respostas corretas em sujeitos com desenvolvimento típico de linguagem quando comparado à sujeitos com distúrbio de linguagem(17,18). Estudos desenvolvimentais com enfoque no processamento semântico, com crianças entre 5 e 16 anos, apontam que crianças mais velhas apresentam maior acuraria e menor latência quando comparado às crianças mais jovens. No entanto, por volta dos 10 anos de idade essa latência torna-se semelhante à apresentada por adultos, especulando-se que a base neurofisiológica para o processamento semântico em nível de sentença não apresenta mudanças significativas entre o início e o final da infância (2326) . Tais estudo apontam, ainda, que há diferenças no componente N400 (i.e., latência e amplitude aumentadas) de crianças quando comparado ao de adultos. Estudos nessa linha poderiam elucidar a natureza e o processo de especialização lexical, assim como investigar achados eletrofisiológicos, principalmente o N400 na população com desenvolvimento típico e atípico de linguagem. CONCLUSÃO A partir da análise dos resultados, pode-se observar que crianças com desenvolvimento típico de linguagem foram capazes de fazer o julgamento de coerência semântica e apresentaram latência menor para o julgamento de frases com final incongruente, quando comparado com congruente. Ressalta-se que os resultados apresentados são os primeiros achados utilizando a eletroencefalografia associada para investigar os mecanismos relacionados ao processamento da linguagem. Na continuidade do estudo será utilizada esta mesma tarefa na tentativa de elucidar os componentes eletrofisiológicos envolvidos no processamento semântico (e.g., latência e amplitude do N400) de crianças falantes do português brasileiro, com e sem transtorno de linguagem. REFERÊNCIAS 1. American Speech-Language-Hearing Association - ASHA. Language. 1982. Disponível em: < http://www.asha.org/policy/RP1982-00125.htm >. 2. Bishop DVM. 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APOIO: CNPq Figura 1. Desenho experimental da apresentação das frases congruentes e incongruentes. Tabela 1. Desempenho dos participantes na tarefa com as frases congruentes e incongruentes. Frases congruentes e incongruentes Participante Nº acertos Nº acertos/ Tentativa Nº omissões Nº Erros Latência das respostas 1 78 78/80 0 2 66ms - 1833ms 2 79 79/80 1 0 32ms - 1586ms 3 75 75/80 2 3 32ms - 1431ms 4 78 78/ 80 0 2 155ms - 1464ms Média 77,50 - 0,75 1,75 - Legenda: Nº: número; ms: milissegundos. Tabela 2. Acurácia e latência das respostas dos participantes no conjunto de frases congruentes e incongruentes. Frases Participante Congruentes Incongruentes Nº acertos Nº erros Latência acertos Nº acertos Nº erros Latência acertos 1 38 2 556,05ms 40 0 479,35ms 2 39 1 490,25ms 40 0 467,82ms 3 37 3 418,54ms 38 2 459,42ms 4 39 1 319,56ms 39 1 362,3ms Média 38,25 - 446,10ms 39,25 - 442,22ms Legenda: Nº: número; ms: milissegundos. Tabela 3. Média das latências no conjunto de frases congruentes e incongruentes. Participante 1 2 Frases congruentes e incongruentes Méd. de latência Méd. de latência Média congruentes incongruentes 562,25ms 479,35ms 520,80ms 478,00ms 467,82ms 472,91ms 3 429,05ms 444,92ms 436,98ms 4 321,42ms 360,42ms 340,92ms Média 447,68ms 438,12ms - Legenda: Méd.: média; ms: milissegundos.