I
O problema
Tratamos da neurose de Flaubert, tentando compreendê-la por
dentro, ou seja, reconstituir sua gênese proto-histórica e depois a
história e descobrir nesta as intenções teleológicas subjetivas que se
constituem por meio dela e acabam por estruturá-la. Quando chamo
de subjetivas essas intenções estruturantes, evidentemente pretendo
fazer uma seleção e só designar aquelas que, surgindo de sua situação
particular – ou seja, originalmente familiar –, não têm outra significação senão a de visar seu caso singular e, aplicando-se a uma anomalia
“indizível”, mas vivenciada com mal-estar, integrá-lo naquilo que
ele mesmo chama de “sistema particular” e “feito para uma única
pessoa”. Em suma, vimos a neurose desenvolver-se num terreno
bem definido que a condicionava: a atividade passiva; discernimos
dois elementos distintos, mas inseparáveis pelo menos pelo discurso: o transtorno primitivo e o stress, reação autodefensiva que tenta
envolver o transtorno para dissolvê-lo ou pelo menos neutralizá-lo e
que, com essa tentativa (ou seja, com a mobilização geral da vivência que ela exige e com suas relações dialéticas com esse mal-estar
palpitante que ela inclui em si, digere mal e sofre, em contrapartida,
como sua determinação móvel e imprevisível), acaba por produzir as
perturbações mais amplas no âmbito do habitus e dos comportamentos. Assim, a neurose intencional e padecida mostrou-se como uma
adaptação ao mal, provocando mais distúrbios que o próprio mal. No
entanto, apesar de termos recenseado esses distúrbios de acordo com
os testemunhos de Gustave, não procuramos avaliá-los: em outros
termos, vimos perfeitamente que, ao invés de eliminar a anomalia,
eles a haviam reforçado e até, de certo modo, constituído, tornando
Gustave um homem profundamente diferente dos outros. Mas, na
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falta de um sistema de valores, não pudemos decidir de um ponto de
vista objetivo, até agora, se a neurose prejudicara Flaubert e em que
medida, ou se, ao contrário, tinha sido útil para ele.
Evidentemente, não faltam estruturas objetivas, e delas partimos:
há o conjunto institucional, produto e expressão das infraestruturas;
há a conjuntura histórica que, condicionada por esse conjunto, o supera na exata medida em que o conserva, avivando suas contradições
internas; há a família Flaubert, resultado metaestável das estruturas
e da história, cujo desequilíbrio comum à época dá testemunho ao
mesmo tempo das persistências do passado e do difícil advento de
uma ordem nova; há o pai, enfim, rural e citadino, feudal e burguês,
cientista, portanto agnóstico, naquele tempo em que a Fé, assassinada
pelo jacobinismo, tenta renascer sem grande sucesso e, de todo modo,
manifesta-se na nova geração como perda, como diminuição do ser
sem contrapartida. Mas essas determinações abstratas e gerais já estão
muito particularizadas na intersubjetividade familiar dos Flaubert:
aquele pai glorioso, nervoso até as lágrimas, aquele melindrado,
tirano, bonachão ou terrível, aquela mãe, acabrunhada para sempre
pela morte da própria mãe, exagerando a subserviência de esposa,
adorando o marido como esposo e, mais ainda, como substituto do pai;
a atmosfera lúgubre do Hospital Central, tudo, enfim, contribui para
enriquecer as determinações institucionais e superá-las em direção à
história concreta de um micro-organismo irredutível que não pode fugir
à conjuntura histórica, mas que a padece e a totaliza à sua maneira.
E, sobretudo, foi preciso encarar esse conjunto concreto – ascensão
da burguesia refratada numa vida cotidiana – como algo vivenciado
em meio à ignorância e à agitação por uma criança, ou seja, por um
produto constituído dessa célula social, um filho do homem, predestinado antes mesmo de ser concebido, a superar às cegas, no escuro,
esses condicionamentos em direção a seus próprios fins e, assim, a
chocar-se com os objetivos estranhos que uma vontade outra lhe impusera, objetivos que ele interiorizava, a despeito de si mesmo, como
se fossem também seus. A ignorância e a constituição passiva, a frieza
devotada da mãe e aquele segundo desmame, a brusca desafeição do
pai – ou o que foi sentido como tal –, o ciúme e a exasperação de um
guri preso entre as incapacidades que lhe haviam sido dadas e a ambição familiar que ele já interiorizara: esse nó de víboras não podia ser
desatado; era preciso vivenciá-lo, ou seja, constituí-lo obscuramente
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como uma determinação subjetiva. E a subjetividade de Gustave
manifesta-se justamente no fato de que os únicos instrumentos de
que ele dispõe para se compreender e compreender seu entorno são
símbolos (maldição de Adão, maldição paterna), mitos (fatalidade,
ultramaniqueísmo que consagra a vitória do Mal sobre o Bem), construtos falsos (Achille concebido como usurpador, Achille-Cléophas às
vezes identificado com o Diabo) e fantasias de ressentimento (ligadas
à crueldade que ele chama de “maldade” na juventude, e que Sainte-Beuve chamará de sadismo em sua crítica de Salambô, mas que,
como vimos, é principalmente uma variedade de sadomasoquismo
ligado ao problema da ficção e da encarnação). Por mais que tenhamos
mostrado nas instituições e na existência histórica do grupo Flaubert
as condições objetivas da neurose, somos forçados a constatar que,
bem antes da crise de 1844, já na primeira infância, afinal, e em toda
aquela adolescência que chamarei de pré-neurótica – pois nela vimos
os distúrbios futuros prenunciarem-se e constituírem-se aos poucos –,
Gustave não reage às agressões objetivas explicadas por sua situação
real, mas sim às interpretações cifradas que ele lhes dá, e que têm
como origem os esquemas pré-fabricados de sua subjetividade. Uma
atenção de Achille-Cléophas para Achille aparecerá bem cedo como
uma frustração diabolicamente premeditada pelo pai simbólico, aquele
Senhor Negro, e a resposta de Gustave será o ódio literário que o faz
escrever Um perfume por sentir ou Peste em Florença. No colégio, as
conversas inocentes ou os sorrisos inoportunos dos colegas manifestam, a seus olhos, a crueldade assassina da multidão, escandalizada
com sua anomalia. Contra esse ostracismo rigoroso – mas sonhado:
ao contrário, ele parece ter gozado de popularidade real e até de certo
prestígio – ele se defende com o êxtase passivo; em outras palavras,
esse comportamento pré-neurótico (que em última análise poderia até
ser qualificado de neurótico) e perfeitamente subjetivo – porque, por
meio do alheamento, busca uma compensação no imaginário puro e
apreendido como tal – é uma reação de defesa diante de uma interpretação errônea, hiperbólica, da situação real, cujo aspecto resolutamente
simbólico é ditado por esquemas pré-constituídos. Assim, não só o
comportamento induzido é uma modificação da subjetividade, como
também, embora se apresente como simples percepção do acontecimento objetivo, a determinação indutora é uma apreciação subjetiva
deste. Alguém dirá que somos todos assim, e é verdade: perceber é
situar-se; há, portanto, em todo caso, uma dialética de interiorização
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e exteriorização. Mas o que conta aqui é a proporção: enquanto uma
parte do objeto se revela tal qual é, revelando-nos o que somos (ou
seja, nossa relação com ele e nossa ancoragem), pode-se esperar, ao
cabo de longo esforço, chegar à reciprocidade de posição (o objeto a
nos definir à medida que definimos o objeto) que é a verdade humana. No caso de Gustave, a subjetividade corrói o objetivo e deixa-lhe
tão somente a exterioridade justa para que ele transmita seu poder
indutor às fantasias que o digeriram. Seu esforço é inteiramente o de
se dessituar.1
Em consequência disso, acompanhamos sua vida pré-neurótica
até a explosão da neurose, abstendo-nos de apreciar objetivamente
seus comportamentos. Preferimos compreendê-lo, ou seja, estudar
os comportamentos a partir de seus fins e considerá-los como respostas a situações vivenciadas, em vez de declará-los aberrantes ao
compará-los aos estímulos “reais” ou aos comportamentos dos outros.
De fato, tomando-se as coisas pelo princípio, nessas esferas é impossível decidir o que é realidade sem dispor de um sistema de valores.
Porque quem, afinal, está mais adaptado à realidade: Gustave, que
tenta por todos os meios interromper os estudos de direito por saber,
profundamente, que eles o levarão a abraçar uma carreira, portanto a
tornar-se aquele “burguês” que ele abomina, ou Ernest, que também
foi romântico e desprezou os “filisteus” à saciedade, mas nem por isso
alimentou a intenção de isentar-se de sua classe, que ascendeu com
habilidade e flexibilidade todos os degraus da carreira, começando
como procurador na Córsega e terminando parlamentar, Ernest cuja
primeira preocupação, quando lhe pediram as cartas do amigo morto
para serem publicadas, foi a de expurgá-las? Para um psiquiatra,
para um analista burguês – todos eles são –, Ernest é o protótipo do
adulto: social, sociável, adaptado à sua tarefa e até mesmo à evolução
da sociedade francesa. Gustave, em cuja personalidade excepcional
esses facultativos estão perfeitamente preparados para negar, continua sendo alguém digno de tratamento. Até concordo, mas de quê?
Nenhum deles, está claro, pensaria em impedi-lo de escrever. A busca
seria por adaptações, só isso. Mas para quê? Para possibilitar-lhe ir
com mais frequência a Paris? Morar lá? Passar todas as suas noites
na cama da Musa? Fazer outros livros, e não os que fez? Ser – como
o amigo, Maxime, o fotógrafo – eleito algum dia para a Academia?
Será que tentariam levá-lo a reconhecer que é burguês, fizesse ele o
1. Ou seja, de destruir ou ocultar a relação de reciprocidade.
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que fizesse, e que a luta contra sua classe, perdida de antemão, absorve
em vão todas as suas faculdades? É verdade que ele se atormenta. E que
Joséphin Soulary é mais adulto, mais forte, mais reconciliado, e, com um
sorriso divertido, confessa: “Querem o quê? Eu sou burguês”. Lembro-me do seguinte conselho, dado por um psicoterapeuta a um amigo meu,
que gostava de rapazinhos: “Meu caro, você precisa escolher: tornar-se
homossexual passivo ou tentar a heterossexualidade”. Acaso diriam a
Flaubert: “Meu caro, você precisa escolher: seja com conhecimento de
causa o burguês que você tem na pele e torne-se o grande poeta Soulary
ou então se junte ao povo, trabalhe numa fábrica e deteste sua classe
de origem, tornando-se um de seus explorados”? Solução de hoje. Mas
não de anteontem, como sabemos. Em outros termos, é perfeitamente
impossível reviver com simpatia a neurose de Gustave, apreender suas
origens e intenções, constatar com ele que ela lhe permite viver e, portanto, aderir a seus fins profundos e, ao mesmo tempo, apreciá-la a partir
de fora em nome de um conceito duvidoso de normalidade.
Contudo, há neurose: o próprio Flaubert admite. Dez anos de crises “epileptiformes”, alucinações, angústia, um nervosismo tremendo
e um isolamento quase total: é isso o que ele chama de “minha doença
nervosa”. Vimos qual era seu sentido: há aquela escolha sacrificial
de ser um homem-fracasso e, por trás, a teologia negativa do “Quem
perde ganha”, que restabelece a esperança no fundo daquela alma desesperada. Não há dúvida de que, nascida em caso de extrema urgência
(de urgência para ele, do modo como ele fora feito, do modo como
ele se fazia), ela o salvou do pior. Mas afinal a que preço? Pois os
transtornos são incontestáveis. E invasivos. Embora ele sempre tenha
compreendido, obscuramente, “até onde podia ir longe demais”. Mas
como? Esse homem só queria escrever. No fundo, se escrever, que lhe
importa ter de, às vezes, ir agitar-se em seu sofá? Não podemos julgar
seu isolamento como se fosse um homem da sociedade, um político
ou um militar. Se há danos e se precisamos avaliá-los, só dispomos
de uma balança: a que é aceita por ele mesmo. A doença o arrebata
ao curso de direito e lhe garante a liberdade de escrever, ou seja,
simplesmente lhe dá tempo: isso ele diz, e ninguém duvida. Mas sem
ela, talvez mais atormentado, mais infeliz, porém mais adaptado, ele
não teria escrito melhor? Em outros termos, a neurose, a pretexto de
servir a seu fim supremo, a Arte, por acaso não o degradou sutilmente?
Não terá feito dele um artista de segunda ordem, ao passo que, sem
ela, ele podia aspirar à primeira ordem?
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Essa avaliação, que parece usar critérios aceitáveis pelo próprio
Flaubert e nos põe ou acredita nos repor no terreno da objetividade,
ou seja, da obra como objeto apreciável, é a avaliação que Maxime
tentou fazer depois da morte do amigo. Gustave, segundo ele, foi um
escritor de enorme talento. Sem a doença, não há a menor dúvida, ele
teria demonstrado ser um gênio. Apesar dos desentendimentos que
os opuseram de 1850 até a morte de Flaubert, o interesse dessa afirmação decorre do fato de que Du Camp o conheceu antes da crise de
Pont-l’Évêque e de que parece tê-lo sinceramente admirado na época.
Novembro o impressionara: ele se via ali, é de se perguntar por quê.
E, desses dois amigos, era o futuro acadêmico que sofria a influência
do outro. Ele adivinhava uma força retida, um poder explosivo em
Gustave, que não demorariam a manifestar-se. Depois da primeira
crise, foi com frequência a Rouen e acreditou constatar certo déficit.
Gustave está impressionado, tem medo da loucura, da morte. Em sua
vida aconchegante, a menor contrariedade o mergulha numa agitação
violenta. Isso não seria nada; mas ele perdeu qualquer interesse pelos
acontecimentos exteriores, já nem sequer lê jornais, vive num devaneio
do qual tem dificuldade para sair e, sobretudo, não muda, como se fosse
um relógio marcando eternamente a hora do acidente que destruiu seu
mecanismo: as mesmas leituras, frequentemente de uma obscenidade
grosseira, os mesmos comportamentos, as mesmas brincadeiras.
Cabe observar, em primeiro lugar, que o julgamento de Maxime
é secretamente ditado pelo nome que ele dá à doença de Flaubert: para
ele, é epilepsia, distúrbio somático, mas com consequências terríveis
para a vida mental. Em outros termos, o diagnóstico do médico amador
já comportava a certeza de um déficit psíquico. Na época ninguém
sequer imaginava a existência de neuroses. Além disso, o sistema
de avaliação proposto por Du Camp quase não é utilizado em nosso
tempo: essa oposição gênio-talento tem um pano de fundo, ao qual
voltaremos, que põe em causa a Providência; na época romântica
abusava-se dela, e a geração de 1830-1840 a herdara, para sua infelicidade. Se não a rejeitamos pura e simplesmente, é porque queremos
fazer a avaliação de acordo com Gustave, e este, como todos os seus
contemporâneos, fazia grande uso dela.
O fato é que esse tipo de avaliação pressupõe julgar as obras
de Flaubert com os critérios estéticos de Maxime. E isso tampouco
é aceitável. Du Camp, claro, tem o direito de aplicá-los. Desde que
se saiba que, julgando, ele se julga, como fazemos todos. Mas, em
Neurose objetiva
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1970, é perfeitamente impossível acatá-los. A obra de Gustave – diz
ele – poderia ter sido melhor do que é. Ela atinge certo nível e nunca
se eleva além dele. Os frutos não cumpriram o prometido pelas flores.
Esse juízo é revogável. Foi e é revogado a cada dia. Em primeiro lugar,
antes mesmo de ter sido formulado já em 1857, pelo estrondoso sucesso de Madame Bovary1; mais tarde, pela geração de Zola, Daudet e
Maupassant. Chegaram outros tempos em que muitos se afastaram de
Flaubert: Valéry não gostava dele, alguns críticos quiseram demonstrar
que ele escrevia mal; isso porque a literatura seguia outros caminhos
e definia o estilo de outro modo; em todo caso, não se tratava de condenar Madame Bovary pelas razões propostas por Maxime. Depois,
essa época também passou: Gustave volta a angariar simpatias, e os
novos romancistas veem nele um precursor, admiram-no por ter, em
meados do século XIX, ido direto ao problema que consideram essencial, pondo em questão o próprio ser da literatura: a linguagem. Juízo
revogável, este também, que um dia será revogado, e essa revogação
também será anulada. Em suma, como todas as grandes obras, esta tem
uma história, que se iniciou durante a vida do autor e não está perto de
terminar. Cada negação de negação o enriquece e o encaminha para
sua verdade vinda-a-ser, totalização ideal que só se pode imaginar
no fim da história, se é que essas palavras têm sentido. E cada uma
dessas negações nada mais é que a situação de Flaubert dada por uma
literatura que redefine seus objetivos e os meios de atingi-los.
Maxime, porém, está fora do jogo. Engolido, com suas ideias com
que ninguém se preocupa. No entanto, não deixa de ser interessante voltar
a ele: só ele formulou a questão dos danos. Ora, em que ele se baseia para
ousar dizer que Gustave, sem a “epilepsia”, poderia ter escrito melhor?
Numa apreciação crítica dos romances? Não: nos comportamentos pessoais.2 O texto é claro: Flaubert vive em estado de distração permanente,
a atualidade não lhe interessa, não lhe diz respeito. Por conseguinte,
ele permanece imutável. Conclusão: ele não tem nada para dizer pela
simples razão de que se recusa a inspirar-se no vivenciado.
1. Romance que Maxime não apreciava muito e não entendia – ao mesmo tempo
que o julgava digno de ser publicado na Revue de Paris.
2. Mas a apreciação das obras está subjacente; é o ponto de partida e o termo final
da avaliação dos comportamentos: trata-se de denegri-las em nome daquilo que
elas poderiam ter sido. Tentativa absurda: como saber o que elas teriam sido sem
a crise? Mas Maxime é esperto demais para mostrar o jogo: ele pretende nos levar
a julgar obras a partir dos comportamentos de seu autor. Como aquele sonhador,
aquele fraco, aquele anormal, enfim, pode ter atingido tais ápices em suas obras?
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