A Filosofia e sua crise.i
Prof. Dr. Anastácio Borges de Araújo Júnior ii
Quando pensamos nos desafios da atualidade em relação à Filosofia, surgem, de
imediato, os vários temas que nos provocam, os temas que nos inquietam no momento
atual: incertezas, fragmentação, domínio excessiva da técnica, suspeita da democracia,
violência, fundamentalismos, dissolução dos valores, desconfiança do progresso, excesso
de informações entre outros. Ou seja, quando pensamos a Filosofia no momento atual,
geralmente, pensamos, grosso modo, em certa crise na atividade do pensar a qual
estaríamos vivendo. Tudo se passa como se estivéssemos paralisados sem saber em que
direção olhar: falamos de crise da racionalidade, crise da ética, crise de sentido, crise dos
ideais da ilustração, da metafísica, crise dos valores etc. Enfim, parece que a Filosofia
encontrou seus limites ao constatar que não pode estabelecer uma racionalidade exaustiva
e que essa atividade teria que renunciar a sua clássica tendência de produzir um discurso
totalizante. Curiosamente, a razão, depois de destituir o pensamento mito-poético, teria
encontrado a si mesma como uma ilusão, um tipo de sonho irrealizável de estabelecer um
discurso universal capaz de julgar todos os outros.
A Filosofia não tem um objeto determinado. Essa disciplina, essa atitude, esse
gênero cultural, essa atividade pode ser fertilizada por muitas realidades exteriores a ela
mesma. Este trabalho tem como objetivo desenvolver uma breve reflexão sobre o tema da
crise. Nessa reflexão, tentaremos mostrar, por certa perspectiva, tomando como exemplo
o contexto de origem da própria Filosofia, isto é a Grécia do século V a.C., como essa
i
Texto apresentado na Aula Inaugural do Instituto Salesiano de Filosofia no primeiro semestre de 2006 e
publicado na STUDIUM: Revista de Filosofia, Ano 8, Nos. 15 e 16, 2005.
ii
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), foi docente do Instituto
Salesiano de Filosofia em Recife (INSAF) e do Departamento de Filosofia da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP). Atualmente professor adjunto da UFPE.
2
atividade do pensamento não cessou de identificar-se, ela mesma, com a produção
constante dessa crise que, ao contrário, a constitui essencialmente e na qual o desejo de
uma racionalidade universal sempre permaneceu, nestes mais de dois mil anos de
pensamento, como horizonte, tarefa a ser realizada, talvez, infinitamente.
Antes, devemos delimitar o nosso tema: a noção de crise. A palavra crise tem
hoje vários sentidos entre eles o de alteração brusca num curso de uma pessoa saudável
ou doente (por exemplo: crise de asma, crise psicótica); o de ruptura de um equilíbrio
(crise nervosa); o de um estado de dúvidas e incertezas (crise moral); o de tensão e
conflito (crise política); o de complicação (crise diplomática); o de agravamento de uma
situação (crise internacional); o de situação decisiva (crise dramática) e o de perturbação
da ordem (crise social). A palavra, nos seus vários usos, guarda, ainda que de maneira
suave, uma ambivalência que na sua origem é bem mais forte. O termo crise surge do
verbo grego krínoque tem o sentido de separar, triar, distinguir, arbitrar, escolher,
decidir, julgar, apreciar, contestar, explicar e interpretar. Assim, krísis enquanto ato de
separar, distinguir, escolher e interpretar é inerente a toda atividade racional e caracteriza
a ação própria da razão na sua capacidade crítica. Assim, em todo pensamento, cada
formulação racional inaugura uma atividade crítica que estabelece, ela mesma, uma crise:
pensar é separar, julgar, interpretar. O termo crise, na origem, traz a ambivalência
daquela situação limite de julgamento em que representa uma oportunidade, mas também
um certo risco, um perigo eminente, pois na atividade humana não encontramos certezas
absolutas em nosso julgamento. Assim, devemos, no primeiro momento, caracterizar a
crise como matriz de toda reflexão filosófica e no final de nosso trabalho, somente no
final, tentaremos mostrar o risco latente, o perigo que ameaça a atividade filosófica no
momento atual.
Aprofundemos mais a noção de crise: antes de ser uma atividade do pensamento,
a crise, enquanto separação, delimitação, encontra-se, ela mesma, nas coisas. O mundo,
este mundo que experimentamos e no qual vivemos, é composto de múltiplas realidades
que estão separadas, umas das outras, ao mesmo tempo em que compartilham de um
único espaço e tempo. A unidade de cada coisa, sua singularidade, faz com que cada
realidade limitada por seu próprio ser esteja separada de tudo que não é ela mesma.
Pensemos no nosso nascimento, não é, ele mesmo, uma crise, um separar-se? Em outras
3
palavras, o vir a ser que observamos empiricamente é, ele mesmo, uma crise da qual
temos ampla consciência. A gênese de cada coisa é um processo de crise no qual cada
coisa ao adquirir sua identidade separa-se das demais, se tornando singularidade. Todas
as coisas estão imersas numa crise profunda.
O pensamento mito-poético traz, claramente, estas noções nas suas narrativas. As
narrativas míticas descrevem as origens, quer dizer, como certas realidades vieram a
existir, separando-se de uma realidade unitária inicial. Vejamos, por exemplo, o início de
uma narrativa mítica grega:
“Tudo se passa num tempo em que deuses e homens ainda não se
tinham separado: viviam em conjunto, tinham seus festins em mesas
comuns, partilhavam da mesma felicidade, longe de todos os males,
ignorando os humanos então a necessidade do trabalho, as doenças, a
velhice, as fadigas, a morte e a espécie das mulheres.”1
Os mitos são histórias que descrevem como no tempo primordial as várias
realidades vieram a ser, tiveram origem. Os mitos contam histórias dessa separação.
Descrevem como surgiram os humanos, as plantas, os animais, os deuses, enfim, o
mundo como realidade organizada e inteligível. Porém, as coisas são inteligíveis, no
contexto mítico, por que conhecemos, através das narrativas, sua origem, isto é, os
motivos e o sentido de seu nascimento. Os mitos são narrativas de origem que descrevem,
de maneira muitas vezes dramática, como algo veio à luz. Os ritos são repetições das
ações primordiais e exemplares desses seres ancestrais que visam superar a crise através
da abolição do tempo profano, fazendo-nos tocar o único tempo real: o tempo sagrado.
Presentificando o sagrado, o rito nos religa com a realidade-origem de todas as coisas.
Podemos dizer que as grandes tradições da humanidade, de maneira geral,
apontam a crise fundamental em que estamos imersos, nós e todos os outros entes, os
seres finitos e compostos, e a perspectiva de superação (salvação) dessa crise através da
união com o princípio supremo, aquilo que transcende todos os limites. Existir é
permanecer fora (ek-sistere). Neste sentido, Heidegger dizia que só homem existe no
sentido próprio2. De fato, o homem sabe, desde sempre, de sua condição: um ente finito,
solitário, destinado a viver sua angustia e que compreende sua situação. O homem é um
1
VERNANT, Jean Pierre. O Mito e a Religião na Grécia Antiga. Lisboa: Teorema, 1991, p. 63.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2002, §
4, ver particularmente nota (N2), p.38-41.
2
4
ente diferenciado: da-sein, ser-aí. Neste sentido, a crise não constitui algo novo para o
homem, ao contrário, podemos dizer que o conjunto da cultura é uma produção que
encontra na crise sua matriz e razão de ser. Vejamos, rapidamente, como a Filosofia
surge neste contexto de decadência do mito.
A Filosofia surge no ambiente Grego que por motivos históricos determinados,
que não iremos detalhar aqui, tornaram possível o aparecimento desse gênero cultural
original. Existiam várias cidades, algumas pequenas outras maiores, cada uma com suas
características próprias e todas elas compartilhavam de alguns traços culturais comuns
como seus deuses e sua língua. Rivalizavam entre si, apesar da ameaça constante de
invasão dos povos chamados bárbaros. A partir do crescimento destas cidades, do
fortalecimento do comércio, do surgimento da moeda, do calendário e da escrita, as
tradições míticas que sustentavam suas relações, contratos e hábitos, pouco a pouco,
foram ruindo, tornaram-se insuficientes. Era preciso um novo planejamento urbano,
constituições para as cidades, novas instituições que pudessem ancorar esta convivência
mais numerosa e complexa. Com a decadência da religiosidade grega, surgem os
primeiros filósofos, tais como Tales, Pitágoras, Heráclito e Parmênides que,
provavelmente, inspirados ainda pelo contexto do pensamento mítico, expressaram suas
intuições acerca do todo, do princípio que o constitui e da possibilidade de conhecermos
esse princípio que forneceria inteligibilidade para experiência humana. A Filosofia nasce,
assim, num ambiente de ruína no qual se fez necessário um posicionamento do homem: a
Filosofia é uma resposta racional diante da desagregação da religiosidade grega. A
Filosofia, o amor à sabedoria, surge num momento de decadência grega, filha de um
parto difícil, é, ela mesma, desejo de algo que não possui. O filósofo quer, através do
esforço racional, superar a crise na qual estamos imersos desde há muito tempo. A
Filosofia é rebento da crise.
Curiosamente, a Filosofia surge, através desses primeiros pensadores gregos,
trazendo consigo uma característica que jamais lhe abandonará: a diafonia. Isto é, a
Filosofia é múltipla e discordante, tensão entre as perspectivas, parcialidade que
caracteriza o humano. Neste sentido, a Filosofia nascente longe de superar a crise da qual
é filha, irá aprofundá-la na formulação múltipla e dissonante de suas várias correntes.
Tomemos como exemplo a clássica e também fundamental tensão entre o pensamento de
5
Heráclito e Parmênides. O primeiro, Heráclito, sensível ao movimento de todas as coisas,
consciente da contradição que caracteriza a multiplicidade, estabelece a identidade
dinâmica dos contrários:
“É uma e a mesma coisa: o vivo e o morto, o acordado e o adormecido,
o jovem e o idoso; pois, pela conversão, isso é aquilo, e aquilo,
convertendo-se por sua vez, é isso.”3.
Heráclito explicita a crise e o seu valor, a discórdia é a condição de possibilidade
da harmonia.
“Pólemos [a guerra] é pai de todas as coisas, rei de tudo; a uns, os
demonstrou como deuses, a outros, como homens; de uns, fez escravos,
de outros, livres”4
O vir a ser é o traço essencial da natureza e da nossa experiência. A relatividade
das coisas é patente. A contradição expressa a lei de todo movimento. Entretanto,
Heráclito não se contenta em desnudar a crise, é necessário superá-la, é necessário buscar
a sabedoria que consiste em compreender o pensamento que, como tal, sabe governar
tudo através de tudo.5 Acolher o logos, eis a possibilidade do saber que a maioria ignora,
mantendo-se na ilusão das coisas vulgares ao atribuir identidade e permanência à todas as
coisas.
Parmênides, ao contrário, estabelece que o pensamento exige permanência,
identidade. Para pensar é preciso encontrar aquilo que é, apartado de todas as mudanças.
“[...] é ou não é -; decidido está então, como necessidade deixar uma
das vias como impensável e inexprimível (pois não é via verdadeira),
enquanto a outra é e é autêntica. Como poderia o ser perecer? Como
poderia gerar-se? Pois se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a
gênese se extingue e da destruição não se fala. Nem é divisível, visto ser
todo homogêneo, [...]”6
Parmênides estabelece que o movimento, a separação e a multiplicidade são
impensáveis, pois exigem um conceito impossível: o não-ser. O não-ser não é; logo só há
o ser na sua plenitude. Não há crise; a crise e sua percepção são ilusões de nossos
sentidos. O ser, o verdadeiro ser, não admite fissuras, não aceita contradições, não admite
3
HERÁCLITO, Frag. 88 In BERGE, Damião. O Logos Heraclítico. Rio de Janeiro: INL, 1969, p. 277.
HERÁCLITO, Frag. 53 In Ibid, p.261.
5
HERÁCLITO, Frag. 41 In Ibid, p.255.
6
PARMÊNIDES, Frag, 8 16-22 In PARMÊNIDES. Da Natureza. Tradução, notas e comentários José
Trindade Santos. São Paulo: Loyola, 2002, p.16.
4
6
crise. Fica, então, extinta qualquer noção de devir, gênese e destruição. Na ontologia do
eleata, o ser é uno, perfeito, compacto, igual a si mesmo, nunca foi nem será, mas é,
sempre, numa espécie de eterno presente no qual não há qualquer perturbação.
Eis assim, na nascente da Filosofia, uma tensão fundamental estabelecida por
duas perspectivas tão fortes e profundas que exigem uma conciliação que desafia todo
pensar. Tais formulações exigem uma superação, pois elas mesmas consolidam e
aprofundam a crise. Se Heráclito tem razão, estamos imersos na relatividade e na
ambivalência: cada coisa é ela mesma e seu contrário, isto é contraditório e impensável.
A verdade é uma perpétua contradição que reflete os seres em mudança contínua. Se
Parmênides estiver certo, a experiência humana é da ordem do impensável, o mundo não
é inteligível, vivemos na ilusão. Somos forçados a calar e admitir o ser uno que é na sua
perfeição. Coloca-se, assim, nas formulações desses dois pensadores originários uma
aporia fundamental que desafiou toda a Filosofia grega posterior.
Porém, a Filosofia não acaba nesse momento. Antes ela é incrementada por duas
instituições que irão modificá-la radicalmente. Quase simultaneamente, surgem o teatro e
a democracia ateniense. Com o teatro, os homens se tornarão espectadores de sua
condição, com a democracia, baseados na noção de que todos são iguais, os homens se
tornarão atores de seu próprio destino, atuantes pelo poder da palavra. Para desenvolver,
ainda que sinteticamente estes dois fenômenos que irão transformar a cena filosófica
grega, tomemos o exemplo da Tragédia e dos Sofistas.
A tragédia é uma arte eminentemente cívica que traz de modo renovado os temas
da tradição grega. Nela ressurgem a força do oráculo a da arte advinhatória, o tema dos
heróis, do destino, da escolha, das leis humanas e divinas. A tragédia explicita aos
cidadãos de Atenas a condição trágica do ser humano: um ser finito que não possui
certezas, a não ser de sua própria morte e do risco que ele corre a cada momento, e que
mesmo assim tem que decidir e agir a cada instante. Lembremos de Antígona que coloca
sua vida em risco e, em seguida, morre na defesa de suas crenças, as leis divinas que para
ela estavam acima de todas as coisas. Lembremos da descrição que o coro faz, nessa
mesma tragédia, do ser humano:
“De tantas coisas incríveis,
a mais incrível de todas é o homem.
7
O espumante mar nos ímpetos dos ventos austrais
navega, bramantes
ondas fende,
e cultiva a dos deuses mãe, a Terra
imortal, incansável,
revolvendo-a ano após ano
com arados movidos
por força eqüina.
A linhagem das leves aves
leva capturadas
e as raças das feras agrestes,
peixes em penca prende
nas malhas das redes
o homem perspicaz;
engenhoso persegue a fera
fauna dos montes,
doma corcéis,
ao duro jugo
sujeita touros temíveis.
A voz, o pensar
volátil e as urbanas leis
das assembléias ele as ensinou
a si mesmo, fugiu
da áspera agressão do frio
e dos dardos das tempestades.
Aparelhado, desaparelhado não acata nada
do que lhe advém; só da morte
fuga não lhe acena,
ainda que de indômita moléstias
alcance escape.
De saber fecundo, move recursos inesperados
ora ao bem, ora ao mal.”7
Eis o homem em toda sua força e fragilidade. Desbravador, agricultor, viajante,
caçador, domador, construtor de seu próprio destino. Capaz de muitas façanhas, seu
pensar é inconstante e sua finitude é certa. Onde o homem poderia encontrar um saber
firme, sólido e mesmo desejável? Prudência é o que ensina a tragédia. Se não temos
certezas, devemos manter a prudência. Prudência é uma espécie de sabedoria prática que
se caracteriza pela cautela, pela moderação daqueles que já perceberam que as certezas
7
SÓFOCLES. Antígona, 333-366. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 28-30. Citação
com algumas modificações nossas.
8
são reservadas aos seres divinos. Excelência prática, dirá Aristóteles, a prudência é aquilo
que é possível e desejável ao gênero dos mortais.
Depois do relativo esgotamento da Filosofia pré-socrática e da revalorização das
noções tradicionais, a experiência democrática se adensa e exige uma nova formação aos
homens, uma excelência política que será desenvolvida pelos sofistas através de suas
técnicas da arte do falar. Os Sofistas serão responsáveis por um deslocamento importante
na história da Filosofia. Esses mestres da linguagem abordarão os problemas do homem,
da cidade e do poder. A vida do homem é breve para se pretender saber algo sobre os
deuses ou sobre a origem de todas as coisas. Urge ao homem viver e defender seus
interesses. Os Sofistas ensinam, então, aos jovens técnicas de eloqüência. Protágoras
defende a relatividade e o caráter convencional de todas produções humanas:
“O homem é medida de todas as coisas, das coisas que são o que são, e
das coisas que não são o que não são.”8
Górgias, o grande retórico capaz de responder a qualquer questão, enaltece o
poder da palavra que tudo pode criar, que modifica o próprio ser:
“O discurso é um grande soberano, que com o menor e mais invisível
corpo, executa as ações mais divinas, pois ele tem o poder de cessar o
medo, retirar a tristeza, inspirar a alegria e aumentar a piedade.” 9
Neste contexto de tensão entre a tradição envelhecida e a força da nova sofística,
surge Sócrates que parece defender um novo projeto para a Filosofia. Sócrates rejeita os
longos discursos retóricos: a Filosofia não deve transformar-se em eloqüência. Este pobre
sacerdote de Apolo deseja uma investigação mais rigorosa, passo a passo, como uma
resolução de uma equação matemática, se propõe a investigar os temas importantes para a
cidade: o que é a excelência? o que é o agir correto? o que é o amor? o que se deve
ensinar aos jovens? Sua investigação quer avançar o mínimo que seja, mas de modo
seguro e coerente. Sócrates constata que a maioria dos homens nada sabe e ignora sua
própria ignorância. A maioria passa o tempo a utilizar discursos pré-fabricados,
fragmentos do que ouviram falar, opiniões sem consistência. Ele mesmo diz nada saber, e
8
PROTÁGORAS, Frag. 1 In GUTHRIE, W.K.C. Os Sofistas. Trad. João Rezende Costa. São Paulo:
Paulus, 1995, p. 173.
9
GÓRGIAS. Elogio de Helena, 8. Trad. Maria Cecília de Miranda N. Coelho. Cadernos de Tradução, 4,
São Paulo: EDUSP, p.17.
9
assim compreende que o oráculo tenha lhe atribuído o título de mais sábio dos homens.
Saber que nada sabe: eis o início da atividade filosófica. Porém, Sócrates incomoda os
homens com seu incessante interrogar e por isso é julgado e condenado pela democracia
ateniense. A sua morte irá fertilizar umas das mais brilhantes mentes da humanidade –
Platão – sobre o qual Diógenes Laércio conta a seguinte história:
“Narra-se que Sócrates viu em seus joelhos num sonho um filhote de
cisne, cuja plumagem cresceu num instante, e que levantou vôo para
emitir um doce canto. No dia seguinte Platão lhe foi apresentado como
discípulo, e imediatamente Sócrates disse que ele era a ave de seu
sonho.”10
Verdade ou não, tal história ilustra como o projeto filosófico de Sócrates foi,
integralmente, abraçado por Platão. Essa pequena/grande ave de Apolo tentará, com todas
as suas forças, através de seus diálogos, restabelecer a Filosofia como ideal de um saber
firme que possa orientar o agir humano. Platão se opõe ao relativismo e ao pragmatismo
sofista que para ele constituía uma ameaça à própria vida comunitária, a polis. Como a
polis poderia estar submetida à retórica? Como pode a arte política ser o lugar de defesa
dos interesses privados? Se tudo é relativo e mutável o que norteará a ação do homem?
A hipótese das formas inteligíveis é, simultaneamente, uma construção que se
opõe ao convencionalismo sofistico e uma tentativa de superar a tensão aberta por
Heráclito e Parmênides. Os diálogos sugerem que nós humanos estamos sempre em
contato com duas espécies de realidades de pesos ontológicos distintos. Explico melhor:
Platão parece ter observado, a partir das investigações matemáticas, que há coisas que
não mudam e das quais não temos qualquer experiência sensível. Por exemplo, um
círculo é uma região eqüidistante de um ponto; tal região não é visível nem tangível nas
integralmente compreensível para nossa inteligência. Entretanto, vemos muitos círculos e
todos estes círculos que vemos e tocamos são imperfeitos, quebráveis e sujeitos ao devir.
Logo, Platão notou que Parmênides tinha razão no que se refere às realidades inteligíveis
e que Heráclito tinha razão sobre as coisas sensíveis. As coisas sensíveis são
contraditórias em oposição às realidades inteligíveis sobre as quais podemos ter um
conhecimento mais firme, isto é, episteme. Vejamos outro exemplo extraído da
10
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Trad. Do Grego, Introdução e Notas
de Mário da Gama Kury. Brasília; UNB, 1988. Livro III, 5, p.86.
10
República11: posso identificar e contar, aqui na minha mão, três dedos e todos
compreendem o que quero dizer sem qualquer traço de dúvida. Porém, quando penso nas
noções de grande e pequeno, nosso pensamento já não é tão claro, e um mesmo dedo
pode ser maior e menor, dependendo da referência que utilizo. Para Platão, isto
demonstrava o quanto o múltiplo sensível é contraditório. Era necessário pensar o grande
em si e o pequeno em si, referências estas que deveriam ser aplicadas às coisas sensíveis
de maneira relativa. No entanto, Platão nunca afirmou, nos seus diálogos, que haveria
dois mundos, como muitos propalam. Só há um único mundo que possui tanto coisas
sensíveis quanto realidades inteligíveis, assim, podemos dizer que o sensível é uma
imagem, uma produção, uma mostração das realidades inteligíveis. Entretanto, nosso
trabalho não se propõe a aprofundar a hipótese das formas inteligíveis presente nos
diálogos de Platão, mas antes chamar atenção para o fato de que a Filosofia é construída
sobre os pilares da crise. A Filosofia é uma resposta humana à crise.
Nos diálogos de Platão aprendemos, constantemente, que a investigação é
composta de avanços e recuos. A aporia é inerente à reflexão humana. Talvez por isso, ao
invés de escrever tratados filosóficos, Platão tenha escrito diálogos. O diálogo não é um
simples artifício de retórica, mas um investigar compartilhado. Seja no diálogo da alma
consigo mesma, isto é, no pensamento, seja no diálogo com o outro, na interlocução, o
uso do logos na sua atividade especulativa caracteriza o movimento próprio do pensar na
sua dialética que deseja abarca as contradições resultando numa síntese temporária,
sempre, temporária. A Filosofia platônica é apresentada pela sua melhor forma: o
diálogo. Depois do mito, o logos, a razão, torna-se diálogo.
Se o logos for somente um instrumento de defesa dos nossos interesses não há
verdade a ser buscada, mas convencimento a ser atingido. O diálogo, tal como os sofistas
concebem, seria unicamente uma disputa argumentativa. Parece-me que o logos, nos
diálogos platônicos, está a serviço de uma investigação compartilhada, ou melhor, os
interlocutores se flagram a serviço de um logos que rege todo debate. Neste sentido, esse
logos leva, muitas vezes, seus interlocutores a situações inesperadas: invertem-se as
posições dos interlocutores; abandonam-se teses; retomam-se hipóteses. Em torno de uma
11
PLATÃO. República, 523 a10- e1. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 5ª. Ed. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1987, p. 331-332.
11
investigação racional são testadas todas as teses. No fundo, Platão aposta que deve haver
algo maior que os interesses particulares e este algo maior é o bem que nunca poderá ser
excessivamente particularizado, mas algo que se pulveriza no bem de todos os seres. O
diálogo, ou melhor, a dialética é a ciência que, talvez, poderá levar o homem ao
conhecimento deste bem. No lugar de um pensador dogmático, como tem divulgado a
tradição filosófica ocidental, vemos em Platão um filósofo dinâmico que não cessou de
investigar mesmo que para isso fosse necessário enfrentar uma crise na sua formulação
central, a hipótese das formas inteligíveis. Este fato pode ser constatado na leitura do seu
diálogo Parmênides que prenuncia uma ontologia mais ampla onde o ser encontra
caminhos misteriosos para se mostrar através das realidades sensíveis.
Não sabemos se a nossa expressão é clara, mas o que estamos tentando mostrar é
que a crise é algo constitutivo da existência humana e da reflexão filosófica. É
impensável o surgimento da Filosofia sem a crise da religiosidade Grega; é impensável a
democracia e a tragédia sem a crise da Filosofia pré-socrática; é impensável Sócrates,
Platão e mesmo Aristóteles, sem os sofistas para desafiá-los. Pode parecer desolador que
estejamos aqui afirmando que as coisas são como são e o que podemos fazer é responder
a este apelo da crise que nos interpela o tempo todo. Porém, as coisas não são tão ruins
assim. A vida do filósofo não é feita só de sofrimentos, angustias e tomada de
consciência de seus limites. O filósofo experimenta o prazer, dentro do possível, sempre
dentro do possível, o prazer da investigação intelectual, o gozo de compreender alguma
coisa. E afinal de contas, as coisas poderiam ser piores. Pois como disse, a sacerdotisa
Diotima, no Banquete de Platão:
“Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio – pois já é – assim como se
alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam
ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está a dificuldade da
ignorância, no pensar que não há beleza, nem bondade e nem ciência de
que ele não seja dotado. Ora, quando não se crê ter falta de algo, nem
mesmo se pode desejá-lo.”12
A Filosofia não é para os sábios nem para os ignorantes. Se nós filosofamos é
porque, pouco a pouco, nos descobrimos homens, solitários, desprovidos de certezas, mas
carentes, desejosos da consolação do saber. O filósofo, tal qual o amor (eros), é um
12
PLATÃO. Banquete, 204 a. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 35.
Citação com algumas modificações nossas.
12
intermediário: encontra-se entre o sábio e o ignorante. Sabe algo, ainda que seja só da sua
própria ignorância, mas deseja a sabedoria, por isso, filosofa. O filósofo é carência,
desejo de sabedoria, mas também sentimentos amigáveis com relação ao saber, a
Filosofia é a expressão mais nobre desse amor. E aqui, concluiremos, pois como
dissemos no início da nossa reflexão, apontaríamos o risco latente à crise a que vivemos
desde há muito, mas que tem suas feições e temas atuais. O perigo eminente que espreita
a cena filosófica atual, nosso maior desafio é, talvez, desistir de procurar novas respostas
frente à tentação de acreditar que os ideais da razão são impossíveis. Em outras palavras,
a maior ameaça da crise atual é, diante da consciência dos limites do saber humano,
acreditar que a melhor alternativa seja não querer saber de mais nada e nos contentar com
a ignorância geral. Isto significa crer que as coisas difíceis são impossíveis, só porque
elas são realmente difíceis e trabalhosas. Acreditaríamos, tal qual os ignorantes, que nos
bastaríamos a nós mesmos e que não há mais nada de belo nem de bom que valha a pena
desejar.
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A Filosofia e sua Crise - Universidade Federal de Pernambuco