a) Área temática: LETRAS – LITERATURA
b) Título da comunicação: A Intertextualidade Bíblica nas Crônicas de Nárnia
de C.S.Lewis – um panorama
c) Nome completo e titulação do autor: Raquel Lima Botelho – Mestre
d) Instituição que representa: Mackenzie
e) Texto:
RESUMO
A partir da análise dos contos das Crônicas de Nárnia de C.S.Lewis, cotejados com referências
críticas e textos bíblicos, este estudo objetivou resumidamente trazer à tona a intertextualidade
bíblica existente nos contos de fada de C.S.Lewis, assim como seu caráter pedagógico contratual
com a ética e a moral cristã. O estudo faz ainda um levantamento do intercâmbio das idéias entre
os autores correlatos a Lewis como J.R.R.Tolkien e J.K.Chesterton.
Temas como mito,
imaginação, educação e fantasia são abordados neste trabalho sob a ótica desses autores. A
importância desta pesquisa se revela por apresentar um autor de grande influência nas literaturas
infanto-juvenil britânica e norte-americana, mas ainda pouco conhecido pelo público brasileiro.
Palavras-chave: Contos de fada. Intertextualidade. Educação Cristã.
ABSTRACT
Through an analysis of the Chronicals of Narnia by C. S. Lewis compared with critical references
and Biblical texts, this study attempts to bring to light the Biblical intertextuality which exists in
Lewis' fairy tales, as well as his pedagogical nature tied to Christian morality and ethics. This
study also outlines the exchange of ideas between Lewis and other contemporary authors such as
J. R. R. Tolkien and J. K. Chesterton. Themes such as myth, education and fantasy are considered
from the viewpoint of these authors. The significance of this study is apparent considering that an
author of such tremendous importance in British and American children's literature is still
relatively unknown by the Brazilian public.
Keywords: Fairy tales. Intertextuality. Christian Education.
1
A Intertextualidade Bíblica nas Crônicas de Nárnia de C.S.Lewis – um
panorama
It certainly is my opinion that
a book worth reading only
in childhood is not worth
reading even then. (C.S.Lewis)
A filosofia pedagógica de Lewis consiste basicamente na construção do sentido das coisas
reais e dos fatos através da ficção. Ao escrever histórias, Lewis aproxima seu leitor do real, do
concreto sem, entretanto, racionalizar ou perder a leveza e o encanto da imaginação. Para o autor,
uma das vantagens dos contos de fada é que eles contam histórias de animais e de seres míticos
que misturam atributos de adultos e crianças. Os animais são como crianças no sentido que não
têm responsabilidades; e como os adultos porque têm a liberdade de irem e virem.
Suas histórias, como se pode constatar na coletânea as Crônicas de Nárnia, são fontes não
apenas de entretenimento, mas também de modelos de vida segundo a ética e a moral cristã.
Lewis utiliza figuras extraídas das obras clássicas pagãs e da mitologia, de um modo geral, para
recontar o evangelho. O aprendizado, de acordo com a filosofia de Lewis, pode acontecer por
diversas maneiras, dentre elas a ‘imaginação’ é abordada como instrumento poderoso de
aprendizagem, pois, por meio desta, a dor e o sofrimento são transformados em sabedoria.
Constata-se ao longo da análise das Crônicas de Nárnia que cada história, cada personagem têm
muito a ensinar, seja por meio de experiências dolorosas, por aventuras fantásticas, por reflexões
profundas ou mesmo por passos de fé. Lewis ainda ressalta a importância de ver a vida, a
realidade com olhos limpos, renovados. Assim como Tolkien, defendia que os contos de fadas
nos devolvem a visão da vida como ela deveria ser percebida.
Um dos pontos de intersecção entre a Bíblia e as Crônicas de Nárnia que se procurou
demonstrar é sua semelhança do ponto de vista pedagógico. As histórias da série, não apenas
entretém o leitor mas, assim como as parábolas da Bíblia, ensinam conceitos morais e éticos.
Ressaltamos a intertextualidade entre As Crônicas de Nárnia e a Bíblia, ou seja, os temas,
as figuras, as idéias bíblicas retomadas nas Crônicas são apresentadas de maneira a serem
2
reforçadas e não contestadas ou questionadas. Alguns temas teológicos polêmicos, cuja posição
bíblica não é clara, são de fato discutidos, como no caso da eleição dos justos e do gentio
virtuoso1.
Temas como a graça e a colaboração humana estão presentes no livro O Leão, A Feiticeira
e o Guarda-Roupa.
Graça é a ação gratuita de Deus da qual o homem é beneficiário. Assim como no conto de
fadas as coisas “acontecem” (happen2) por acaso às personagens, assim também a graça divina
proporciona uma experiência gratuita. Daí talvez Lewis ter afirmado que: “Eu escrevi contos de
fada, porque o Conto de Fada pareceu a forma ideal para o tipo de coisa que eu tinha para
dizer.” (1982c, p.47)
Em todos os contos da série Crônicas de Nárnia fica claro que Nárnia, assim como a graça
divina, não depende das crianças, mas apenas de Aslam. Nárnia só acontece quando não se está
procurando por ela. O primeiro livro da série, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa termina
com o seguinte aviso: “Não tentem seguir o mesmo caminho duas vezes.” (1987, p. 166). Da
mesma forma, em A Cadeira de Prata, Aslam deixa claro para Gilda que foi Ele quem a
chamou.
A Bíblia fala da graça divina inesperada do Filho do Homem. No evangelho de Lucas
capítulo 12, verso 40 lê-se: “Ficais vós também apercebidos porque a hora em que não cuidais, o
Filho do Homem virá.” E em Mateus 24:50 lê-se “Virá o senhor daquele servo em dia que não
espera e em hora que não sabe.” (A BÍBLIA SAGRADA, 1993)
Quando se fala em cooperação humana e graça, instaura-se a dialética da graça, um dos
temas mais polêmicos da teologia cristã apresentado em O Leão a Feiticeira e o Guarda-Roupa.
A respeito da “cooperação humana”, Lewis aplica a metáfora de um jardim que é belo por
natureza, mas que ainda assim necessita de cuidados para manter sua beleza. Contudo, a beleza
de tal jardim, a graça, é infinitamente superior aos cuidados dispensados pelo jardineiro, a
colaboração humana.
1
Ambos temas levantados em A Última Batalha nas personagens de Susana e Remi, livro que constitui o corpus
deste trabalho.
2
O primeiro livro escrito por Lewis, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa começa justamente com a frase: “Once
there were four children whose names were Peter, Susan, Edmund and Lucy. This story is about something that
happened to them...” (Lewis, 1950, p. 1). “Era uma vez dois meninos e duas meninas: Susana, Lúcia, Pedro e
Edmundo. Esta história nos conta o que lhes aconteceu...” (1987, p. 9)
3
Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Lewis apresenta o tema de maneira sutil e
diluída em personagens de contos de fadas. Em síntese, Nárnia está em perigo e necessita de
ajuda. O leão poderia fazer tudo sozinho, mas escolhe chamar as crianças e ‘deixar’ que elas
colaborem com o resgate daquela terra. Sua colaboração não é essencial, mas é bem-vinda. Ela
não se compara a grandeza do gesto do leão, mas adiciona a ele.
Ainda em O Leão, A Feiticeira e O Guarda-Roupa, está presente a temática da busca da
reconciliação humana ao divino, o que Lewis chama de longing3. Em A Intertextualidade Bíblica
nas Crônicas de Nárnia de C.S.Lewis 4 foi analisada também a forma de tratamento dos narnianos
em relação às crianças Filho de Adão e Filha de Eva que revelam sua natureza humana e sua
separação do divino. A busca pela reconciliação acontece não apenas para resgatar o homem, mas
a natureza também. Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Nárnia sofre um inverno
constante, símbolo da frieza e morte presentes naquele lugar devido o mal que nele entrou. Em A
Última Batalha Nárnia é completamente destruída e os seres que lá vivem têm a chance de se
reconciliarem com Aslam ou dele se afastarem para sempre.
O tema da redenção é central na Bíblia. O apóstolo Paulo fala em sua carta aos romanos
sobre a necessidade de redenção tanto do homem quanto da natureza que “geme e suporta
angústias até agora” (Romanos 8:22) (A BÍBLIA SAGRADA, 1993). Ele também revela o
propósito reconciliador do Criador em sua carta aos colossenses (Colossenses 1:13-14).
Em síntese, Lewis propõe que a reconciliação da humanidade com Deus, de Nárnia com
Aslam se dê por meio da graça em primeiro lugar, porém sem desprezar a colaboração humana
que, para tal colaboração, faz uso de todo conhecimento da ciência e da arte que o homem
acumulou na Terra.
Quanto à teologia da redenção, como bem assinala Gabriele Greggersen, Lewis está de
acordo com a linha teológica de Tomás de Aquino que afirma a liberdade do agir de Deus.
Ambos afirmam a liberdade divina que se contrapõe a uma teologia racionalista, mas que ao
mesmo tempo não é arbitrária. O filosofo Joseph Pieper discorre sobre esse assunto comentando
a posição equilibrada de Tomás de Aquino cuja afirmação é de que a liberdade de Deus e suas
razões são reservadas a ele mesmo.
3
4
Longing: sf. desejo, ânsia, saudade. (MICHAELIS, 1998)
Dissertação de mestrado (BOTELHO, 2005)
4
Em Nárnia, a redenção se dá por meio de Aslam, denominado “a magia ainda mais
profunda”. Nesse conceito não há razões necessárias, apenas a aceitação do agir sobrenatural.
Em nossa análise em um outro trabalho mais aprofundado5, constatou-se que cada
personagem, seus diálogos e episódios isolados de A Última Batalha se interpretados à luz da
Bíblia são amplamente enriquecidos. A lógica do bem e do mal presente nos contos é uma das
chaves para a compreensão dos mesmos e para estabelecer as pontes com o texto bíblico. Essa
lógica é retratada na obra literária antropológica Cartas de um Diabo a Seu Aprendiz (1996). As
cartas são um manifesto antimaniqueu e refletem a dissimetria entre bem e mal. O mal torna a
vida sem graça e tenta levar o homem ao vício para, dessa maneira, tirar-lhe o prazer.
Na mitologia, a concepção de bem e mal tende ao maniqueísmo, ou seja, são antagônicos e
irredutíveis, porém a visão de Lewis não é maniqueísta. Ainda em Cartas do Diabo a Seu
Aprendiz (1996), Lewis descreve o inferno como uma corporação nada criativa, onde medo e
ignorância são as únicas coisas compartilhadas. Em O problema do sofrimento (1983), o inferno é
descrito como um lugar de privação, de aprisionamento no self e como destruição daquilo que há
de mais humano no homem, até mesmo dos seus prazeres. A chave para entender a grande
distância entre o bem e o mal, não está no que o mal é, e sim no que deixou de ser. O perigo está
na falta de criatividade e não no mal excessivo. Diferentemente do que acontece em muitos mitos,
o mal em Lewis é incapaz de criar a partir do nada, ou seja, ele desvirtua o que já existe .
É importante ressaltar que os heróis de Nárnia, exceto o grande Aslam, não são totalmente
bons. Eles têm virtudes e defeitos. Seu caráter é revelado por meio da história e de suas ações. O
bem e o mal não são conceitos abstratos, estão vinculados às ações das personagens. O bem e o
mal aparecem em inúmeros arquétipos reconhecíveis diluídos nas cenas da vida cotidiana e por
isso mesmo não podem ser consideradas narrativas alegóricas, moralistas ou reducionistas. Por se
tratar de um mito, no sentido primeiro da palavra mythos, o foco está nas ações e acontecimentos
que deixam transparecer, de variadas maneiras no desenrolar dos fatos, a moral.
As virtudes cardeais estão presentes nos contos revelando assim o caráter ético dos
mesmos.
Neles estão ressaltadas, por meio de ações das personagens, a prudência, o
companheirismo, a nobreza e a justiça e, como contraponto, o “antiexemplo” é instaurado
refletindo as propriedades do mal discutidas em Cartas de um Diabo a Seu Aprendiz (1996). Por
antiexemplo, quer-se dizer todas as atitudes condenáveis pela Bíblia e pela ética cristã como:
5
Dissertação de mestrado: A Intertextualidade Bíblica nas Crônicas de Nárnia de C.S.Lewis.
5
autocompaixão, covardia, egoísmo, falta de prudência; enfim, o vício que escraviza e amedronta o
homem.
A visão não dualista do bem e do mal nas Crônicas de Nárnia torna a figura do leão
Aslam ainda mais misteriosa. Assim, ao se fazer a análise do diálogo estabelecido entre os contos
de Lewis e a Bíblia é relevante o fato de que na Bíblia a figura do leão é usada tanto para
descrever Cristo, como em Apocalipse 5:5, quanto para descrever o diabo, como em I Pedro 5:8.
Retomemos a figura do leão em O Cavalo e o Menino, nesse conto ele se mostra em
múltiplas formas. Além do conhecido e reconhecível Aslam, o leão interfere na história de Chasta
quando cuida dele e empurra sua canoa onde estava semimorto quando bebê e o conduz em
segurança até seu novo lar. Novamente o leão entra em cena afugentando os chacais de perto das
tumbas e consola o rapaz ‘na pele de um gato’. Ele também afugenta os cavalos, afim de que
chegassem mais depressa em seu destino.
E finalmente, um ‘novo’ leão ataca Aravis pelas costas quando ela e seus companheiros
estavam atravessando o deserto. É de se estranhar que Aslam confesse ser ele o leão que a
machucou, mas ao se retomar a história, lembra-se da serva de Aravis que foi açoitada porque sua
ama havia fugido. Portanto, tem-se então o leão mostrando um pouco da dor alheia a tarcaína que
sempre se mostrava tão indiferente às pessoas.
O mal é caracterizado por meio de vícios e da corrupção, da ganância, do egoísmo, da ira e
etc., enquanto o bem se revela pela virtude, pela coragem, pela bondade e etc. Nesse sentido, as
personagens de C.S.Lewis se assemelham com as de J.R.R. Tolkien, seu contemporâneo
(Greggersen 2003). As personagens são modelos, ora positivos, a serem seguidos ora negativos, a
serem evitados.
Outra referência intertextual imprescindível a ser considerada nas Crônicas de Nárnia é a
Lei Natural. O comportamento ético das crianças nos contos e suas transgressões refletem a ‘Lei
Natural’ da qual fala Lewis em Cristianismo Puro e Simples e The Abolition of Men. Segundo
Hooper: The point was how the jettisoning of the Tao or the Natural Law can lead to the
‘abolition’ of Man by Nature.6
Segundo Lewis, o homem será extinto pela própria natureza se não desenvolver certo
domínio sobre sua natureza.
Se deixar guiar pelos instintos ou impulsos, ou simplesmente
6
O cerne é o seguinte: como e em que medida a difusão da Lei Natural ou a Tao pode levar à
abolição do homem, através da natureza.
6
reprimi-los, não são condutas aceitáveis. Em Cristianismo Puro e Simples, Lewis argumenta que
há entre os homens um conceito universal sobre bem e mal que rege a lei do bom senso. Talvez
esteja aí a raiz do mal-estar na sociedade atual: a falta do bom senso, ou o não uso do mesmo.
Outro aspecto semelhante entre As Crônicas de Nárnia e a Bíblia é a estrutura narrativa.
Essa semelhança consiste na chamada narrativa em U, ou seja, uma narrativa que se inicia em um
estado eufórico, passa a um estado disfórico e, finalmente retornando ao seu estado positivo
inicial.
Essa estrutura foi amplamente estudada pelo pesquisador Northrop Frye e por nós
abordada e aplicada às Crônicas de Nárnia no capítulo III.
Este formato da narrativa em U dos contos da série em questão é característico de uma
literatura otimista, relativamente simples que oferece um final feliz.
A narrativa em U foi
constatada na Bíblia por Frye que a comparou a uma divina comédia.
Não que não haja
elementos trágicos nas histórias bíblicas, pelo contrário, mas elas tendem a um final feliz. Assim
também os contos de fada e em especial os contos de Nárnia. Em síntese, todos ou quase todos os
conflitos são resolvidos no final.
Quando Frye afirma que a Bíblia é uma divina comédia ao estudar sua estrutura, em última
análise podemos dizer o mesmo sobre as Crônicas de Nárnia, pois, se considerada em sua
seqüência cronológica, nela também está presente a grande saga do cristianismo. ‘A criação e a
queda’ em Os Anéis Mágicos, ‘a redenção’ em O Leão a Feiticeira e o Guarda-Roupa, o ‘êxodo’
em O Cavalo e O Menino, a missão e ‘a busca da Terra Prometida’ em Navio da Alvorada, A
Cadeira de Prata e, finalmente, ‘o apocalipse’ em A Última Batalha.
Trechos das Crônicas de Nárnia, ao serem analisados, comprovam a hipótese de que os
contos de Lewis são carregados de teologia e que fazem referência direta a Bíblia. Quando os
textos-origem são retomados, Êxodo 2:11 e Atos 6:10, atestam a teoria de Lewis apresentada em
Out of the Silent Planet: a literatura é um canal poderoso para levar as pessoas a se acostumarem
com idéias, personagens e comportamentos e acontecimentos. Uma criança, ou qualquer pessoa
que tenha lido A Última Batalha, reconhecerá o episódio bíblico em que Moisés mata o egípcio e
foge. Esse episódio para o leitor já não parecerá tão estranho ou desconhecido. Assim também
acontece com todos os outros textos que retomam temas e acontecimentos bíblicos.
Encontramos no conto A Última Batalha vários elementos simbólicos que representam o
fim de um mundo concreto e o início de um mundo espiritual muito superior e infinitamente
melhor: o país de Aslam.
7
Quando enfim, as criaturas de Nárnia entram no país de Aslam com seus visitantes
humanos, Lewis reverte o estereótipo de céu de um estado de eterno torpor. Contrastando
conceitos pós Newtonianos cuja descrição do cosmos era escura e solitária, Lewis oferece, além
das portas do estábulo, um lugar aconchegante e vivo onde todos diziam em coro “Para frente,
para cima”.
Lewis, firmado na tradição neo-platônica cristã, intitula o último capítulo de ‘Adeus às
terras das sombras’. Esse capítulo reflete sua teoria de que vivemos no mundo das sombras, ou
seja, o que temos aqui não passa de uma cópia mal feita (ou talvez que foi depredada pelo próprio
homem e pelo pecado) do mundo verdadeiro onde é realmente o nosso lar, e por isso nunca
seremos plenamente felizes longe dele. Essa concepção parece ser construída no mito da caverna,
por meio da qual o filósofo Platão descreveu o mundo inteligível e o mundo sensível.
De acordo com Lewis, nossa busca pela felicidade, nossa ‘saudade’ (longing) só será
realmente satisfeita nesse novo lugar, onde finalmente encontraremos ‘alegria’ (joy – sehnsucht)
inspirado no romantismo alemão e, segundo Lewis e Tolkien, justamente por nos reunirmos
novamente ao nosso Criador.
Para os que foram com o leão, a ‘verdadeira Nárnia’ é o destino final. Para aqueles que
tomaram outro rumo, esse permanece, na narrativa, incerto. Lewis não diz o que há no lado
escuro, nem o que acontece com os que vão para lá, somente descreve o destino dos que o seguem
em direção à Nova Nárnia. Esse ritual foi por nós interpretado como um julgamento cujo juiz é o
leão Aslam. A porta do estábulo é a passagem para uma nova etapa, uma nova era.
O estábulo é um elemento essencial no cenário bíblico, pois foi em um estábulo que o
salvador, o Rei dos reis, o Cristo prometido nasceu. O paradoxo do lugar indigno e sujo que
acolheu o Filho de Deus está presente em A Última Batalha. Atravessando a porta do estábulo é
que as criaturas acessarão seu novo status, seu novo lar.
Ao final do julgamento, como dito anteriormente, uma porta é fechada e a velha Nárnia é
aniquilada. Inspirado no Apocalipse e em profecias bíblica, Lewis descreve o julgamento final
usando simbologias bíblicas como a porta, o cordeiro e o leão por nós já analisados em A
Intertextualidade Bíblica nas Crônicas de Nárnia de C.S.Lewis (BOTELHO, 2005).
C.S.Lewis não tinha a intenção de escrever uma coletânea quando começou seu primeiro
livro de contos, mas certamente, ao fazê-lo, nos deixou um legado digno de estudos e análises.
Seu trabalho reflete a importância do mito na linguagem e na literatura que, para o autor, é a
8
expressão da verdade universal no tocante à história. Os mitos, enfim, transcendem qualquer
experiência de vida individual. Seus escritos refletem também sua visão teológica romântica, na
qual os prazeres terrenos são vistos como uma porta para o cristianismo e não como obstáculos a
ele.
Em nosso estudo observamos a relação do mito e da imaginação, sendo esta considerada
por Lewis como o órgão da percepção da verdade. Exercendo sua função de subcriador, Lewis
compartilhou com seu público sua percepção de mundo ao criar suas próprias imagens como o
leão, a feiticeira branca, o macaco maroto dentre tantas outras.
Terminamos essas breves considerações ressaltando a qualidade literária das Crônicas de
Nárnia em seu conjunto. Fazer sua leitura é certamente lúdico e é prazeroso tanto para crianças
quanto para adultos. A coletânea de contos de fadas, a nosso ver, revela sua importância, pois
representa a categoria, dentre outras, da vasta produção literária dos escritores teólogos
românticos do século XX.
As Crônicas de Nárnia, quando lidas tendo-se como referência a Bíblia, ganham uma
dimensão ainda maior. Elas adquirem uma carga semântica e simbólica muito vasta. Tem-se
então o mythos cristão narrado em contos de fada. A ‘divina comédia’ em sua versão de contos.
Desde a criação, passando pela queda, redenção, peregrinação até a ascensão para a morada
definitiva do corpo e da alma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADEY, Lionel. C.S.Lewis, Writer, Dreamer, and Mentor. Grand Rapids: Eerdemans, 1998. 307p.
AESCHLIMAN, Michael D. The Restitution of Man. 2a. ed. Grand Rapids: Eerdmans, 1998.
104p.
A BÍBLIA SAGRADA. 2a. ed. Revista e atualizada no Brasil. Tradução de João Ferreira de
Almeida. [S.l.]: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs). Dialogismo, Polifonia,
Intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 1994.
BRAIT, Beth (org.) Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido. Campinas: UNICAMP, 1997.
CARPENTER, H. Tolkien: A Biography. London: Harper Collins, 1977.
9
CHESTERTON, J.K. Orthodoxy. Disponível em:
<http://www.dur.ac.uk/~dcs0mpw/gkc/books/ortho14.txt>. Acesso em: 10 ago. 2004.
CHEVALIER, Jean; CHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1989.
DICTIONARY OF CONTEMPORARY ENGLISH. Essex: Longman, 1995.
DISCINI, Norma. Intertextualidade e Conto Maravilhoso. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP,
2001.
DITCHFIELD, Christian. A Family Guide To Narnia. Illinois: Crossway Books, 2003.
DURIEZ, Colin. A Field Guide to Narnia. [S.l.]: Intervarsity Press. 2004.
________. The C.S.Lewis Handbook. Grand Rapids: Baker Book, 1990.
________. The C.S. Lewis Encyclopedia. New Jersey: Inspirational Press, 2003.
________. The J. R. R. Tolkien Handbook. Grand Rapids: Baker Book, 2002.
FORD, Paul F. Companion to Narnia. 4a. ed. Prefácio de Madeleine L ´Engle e Ilustração de
Londrina Bryan Cauley. San Francisco: Harper San Francisco, 1994.
FRYE, Northrop. Código dos Códigos: A Bíblia e a Literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São
Paulo: Boitempo, 2004.
GREGGERSEN, Gabrielle. A Antropologia Filosófica de C. S. Lewis. São Paulo: Editora
Mackenzie, 2001.
________. Filologia e Literatura: trocando idéias com Tolkien e Lewis. Revista Todas as Letras,
São Paulo, n. 5, p. 65-74, 2003.
________. Vivendo e Aprendendo com C.S.Lewis: Princípios Norteadores da Educação Crista no
Século XXI, Revista Reformata, São Paulo, v. IV, n° 1, 41-56, jan.-jun., 1999.
HOOPER, Walter. Prefácio. In: LEWIS, C.S. On Stories. New York: Harvest, 1982.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. [S.l.]: Objetiva, 2004.
JENNY, Laurent. A Estratégia da forma. In: Poétique, Revue de Theórie et d’Analyse
littéraires, n. 27: Intertextualidades. Tradução de Clara Crabbê Rocha. Coimbra: Livraria
Almedina, 1979.
KRISTEVA, Julia. Semeiotike: Recherchers pour une sémanalyse. [S.l.]: Editions du Seuil, 1969.
Coleção Points Essai.
10
LEWIS, C.S. A Grief Observed. London: Faber & Faber, 1961. Sob o pseudônimo de N. W.
Clerk.
________. An Experiment in Criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1961; Canto
edition 1992.
________. Cartas de um Diabo a seu Aprendiz. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
________. Christian Reflections. Grand Rapids: Eerdemans, 1996.
________. Cristianismo Puro e Simples. 2a ed. São Paulo: ABU Editora, 1985a.
________. Crônicas de Nárnia: A Cadeira de Prata. São Paulo: Editora ABU, 1986.
________. Crônicas de Nárnia: O Cavalo e O Menino. São Paulo: Editora ABU, 1984.
________. Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. São Paulo: Editora
ABU, 1982.
________. Crônicas de Nárnia: O Príncipe e a Ilha Mágica. São Paulo: Editora ABU, 1984.
________. Crônicas de Nárnia: Os Anéis Mágicos. São Paulo: Editora ABU, 1983.
________. Crônicas de Nárnia: O Navio da Alvorada. São Paulo: Editora ABU, 1985b.
________. Crônicas de Nárnia: A Última Batalha. São Paulo: Editora ABU, 1987.
________. God in the Dock: Essays on Theology and Ethics. In: HOOPER, Walter (ed).
Undesceptions. Grand Rapids: Eerdmans, 1970.
________. Letters of C.S. Lewis. Edited, with a memoir, by W.H. Lewis. London: Geoffrey Bles,
1966.
________. Letters to Children. New York, London: Collins, 1985c.
________. On Stories. New York: Harvest, 1982b.
________. Out of the Silent Planet. London: John Lane, 1938.
________. Parelandra. London: John Lane, 1943.
________. Studies in Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1960.
________. That Hideous Strength. London: John Lane, 1945.
________. The Allegory of Love. Oxford: Clarendon Press, 1936.
11
________. The Great Divorce. London: Geoffrey Bles, 1945.
________. The Last Battle. London: Bodley Head, 1956.
________. The World´s Last Night and Other Essays. New York: Harcourt Brace & Co., 1960.
MEILAENDER, Gilbert. The Taste for the Other. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing
Co., 1978.
MYRES, Doris. The Complete Anglican: Spiritual Style in the Chronicles of Narnia. Anglican
Theological Review, LXVI, april, 1984.
ONLINE SYMBOLISM DICTIONARY. Disponível em:
<http://www.umich.edu/%7Eumfandsf/symbolismproject/symbolism.html/>. Acesso em: 11 de
novembro de 2004.
________. Scholastik. Müchen: DTV, 1978.
SANT´ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase e Cia. São Paulo: Ática, 1985.
SCHULTZ D., WEST Jr. John G.
Zondervan, 1998c.
The C.S. Lewis Reader’s Encyclopedia. Grand Rapids:
TOLKIEN, J.R.R. On Stories. [S.l: s.n.], 1966.
________. Tree and Leaf: including The Homecoming of Beorhtnoth and Mythopoeia. London:
HarpersCollins Publisher, 2001.
12
Download

a) Área temática: LETRAS – LITERATURA b) Título da