CBDCR
Confederação Brasileira
De Dança em Cadeira de Rodas
Organizaodres:
Eliana Lucia Ferreira
Maria Beatriz Rocha Ferreira
Vera Aparecida Madruga Forti
Campinas
2002
CBDCR
Confederação Brasileira
De Dança em Cadeira de Rodas
INTERFACES DA DANÇA
PARA PESSOAS COM DEFIICÊNCIA
Organizaodres:
Eliana Lucia Ferreira
Maria Beatriz Rocha Ferreira
Vera Aparecida Madruga Forti
Campinas, 2002
CBDCR - Associação Brasileira de Dança em Cadeira de
Rodas, 2002-09-07
ISBN -
Supervisão Editorial:
Editoração:
Gráfica Rvieira
Edição:
RESERVADOS TODOS OS DIREITOS DE PUBLICAÇÃO
PARA
CBDCR - Confederação Brasileira de Dança em cadeira
de Rodas
ORGANIZADORES E COLABORADORES
Júlio Romero
Doutor em
Professora da Unimep/Piracicaba
Vera Aparecida Madruga Forti
Doutora em Educação Física
Professora da FEF/Unicamp
Alberto Cliquet Junior
Doutor em Medina
Prof. FCM/Unicamp
Renato Miranda
Doutor em educação Física
Professor da FAEFID/UFJF
Larissa S. Turtelli
Mestranda em Educação Física
Faculdade Educação Física/Unicamp
Maria Consolação Tavares
Doutora em Medicina
Professora da FEF/Unicamp
Maria José Justino
Doutora em Estética e Ciências das Artes pela Universidade de
Paris (VIII),
Crítica de arte e professora na UNESPAR - Escola de Música e
Belas Artes do Paraná.
Maria Beatriz Rocha Ferreira
Doutora em Educação Física
Professora da FEF/Unicamp
Eni Pulcinelli Orlandi
Doutora em Linguistica
Professora do Iel/Unicamp
Rosangela Morello
Doutora em Línguistica
Pesquisadora do Labeurb/Unicamp
Eliana Lucia Ferreira
Mestre e doutoranda em Educação Física
Professora da UFJF
Presidente da CBDCR
APRESENTAÇÃO
Este livro é o resultado de algumas palestras proferidas no
II Simpósio Internacional de dança em cadeira de rodas. Quando
propusemos a organização deste sabíamos que nós organizadores
estávamos em um estado de opção que já é em si um recorte
teórico e um compromisso com a interpretação das diretrizes
dadas pelo desenvolvimento da dança para as pessoas com
deficiência. A interdisciplinaridade deste desloca as práticas
como amálgama de diferentes disciplinas em uma só. Nossa
proposta teórica foi de reunir diferentes concepções teóricas que
desse um esforço conjunto de compreensão, de
compartilhamento de um mesmo objeto de análise, no presente
caso: “o corpo que dança com uma cadeira de rodas”.
As reflexões partiram de profissionais das áreas: Artes
Cênicas, Dança, Educação Física, Linguagem e Medicina. Os
textos aqui apresentados apontam para 3 direções:
1)
buscam compreender como o corpo interpreta, como ele
ganha e produz sentidos em sua relação com a ordem social na
qual ele se configura, na sua história, na sua cultura;
2)
leva-nos a re-pensar “atrás das cenas” as atividades
físicas vivenciadas através das danças com pessoas deficientes
em seus diferentes espaços;
3)
procuram ir além dos discursos sobre o corpo, pensado,
por sua vez, em dois espaços: o corpo na/da dança. Corpos aí
pensados, além do corpo que fala por si, como suportes de uma
estética: o corpo do cotidiano e o corpo cênico.
Enfim, acreditamos que este livro trará um ganho para a
comunidade acadêmica. E, sobretudo, contribuirá para a
compreensão do dançarino portador de deficiência física - sujeito
social, através dos sentidos do corpo dentro de uma história.
Eliana Lúcia Ferreira
Campinas, novembro de 2002.
FALANDO DE INCLUSÃO EM TEMPOS DE EXCLUSÃO
Júlio Romero Ferreira – UNIMEP/SP
Não vivemos em uma sociedade inclusiva,
seja qual for o critério que adotarmos para definir inclusão:
cerca de 55 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha
da pobreza, dos quais mais de 20 milhões abaixo da linha
de pobreza absoluta.
Nosso país tem a quarta pior distribuição de
renda no mundo. Apenas Serra Leoa, República CentroAfricana e Suazilândia apresentam desigualdade maior
que a do Brasil. Acresce que 64% dos países têm renda
per capita menor do que a brasileira e, em quase todos
eles, a concentração de renda é menor que a nossa (
Folha de São Paulo, 21.10.2002). Ou seja, somos um país
rico, desigual e injusto.
Quando pensamos nos efeitos que a pobreza
acarreta na ampliação das condições de deficiência e na
redução das possibilidades de trabalho, de reabilitação e
educação, a inclusão se torna ainda mais remota.
Não vivemos em uma escola inclusiva, se
considerarmos os vários níveis e modalidades de ensino,
da pré-escola ao ensino superior, da educação especial à
de jovens e adultos. Há, sim, uma expansão bastante
significativa do acesso à escola na faixa de 7 a 14 anos,
com mais de 95% de cobertura. Por outro lado, os alunos
com necessidades especiais representam apenas cerca
de 0,7% das vagas da educação básica e contam com
cerca de 0,6% dos recursos orçamentários da área de
educação da União, estados e municípios. Certamente a
educação especial não tem sido área prioritária em termos
de recursos orçamentários, mas sofreu uma dificuldade
adicional para os alunos não vinculados ao ensino
fundamental, com o FUNDEF ( Fundo de Desenvolvimento
e Manutenção do Ensino Fundamental). De acordo com
diagnóstico do Plano Nacional de Educação de 2001,
cerca de metade dos municípios brasileiros não possui
serviços especializados de educação especial.
Nossa escola também não é inclusiva nas suas
condições de funcionamento. O
salário médio do
professor brasileiro em início de carreira é o terceiro mais
baixo em um total de 38 países desenvolvidos e em
desenvolvimento comparados em estudo da UNESO.
Apenas Peru e Indonésia pagam menos. Enquanto o
salário anual médio no Brasil é de cerca de 4.800 dólares,
o valor é de aproximadamente 9.800 dólares nos vizinhos
Argentina e Uruguai ( Folha de São Paulo, 9.10.2002).
Se a nossa escola e a nossa organização social
não apresentam aquele aspecto fraterno e acolhedor do
discurso da inclusão, temos um contexto certamente mais
propício para o atendimento dos direitos sociais dos
segmentos mais excluídos de nossa população, naquilo
que se refere à escola. Nesse sentido, o desafio da
inclusão sucede, em parte incorpora e em parte nega, o
que se desenvolveu entre nós em nome da integração.
Nosso discurso e nossas políticas em educação
especial das últimas décadas foram muito marcadas pelas
idéias de integração e normalização. Como dizia a
saudosa professora Lígia Amaral (1994), a idéia de
integração é interessante, mas traz consigo a
normalização, entendida na prática como a negação da
condição de deficiência, como a obrigação ou o esforço de
neutralizar a diferença.
A educação especial brasileira traz em sua história
marcas muito fortes de uma prática social, dirigida às
pessoas com deficiência, construída numa visão
medicalizada e caritativa ( v. Mazzotta, 1996). A visão
organicista nos acompanha já nos movimentos de eugenia
e de saúde pública das primeiras décadas do século
passado. O assistencialismo e a caridade caracterizaram
os serviços e instituições destinados ao atendimento das
demandas de educação, saúde e assistência dessas
pessoas. A omissão do poder público é também tradicional
em uma área de baixo prestígio político.
Sobre essa herança é que se difundiram os
discursos sobre normalização e integração, associados à
noção de que a educação das pessoas com deficiência,
era tarefa de equipes interdisciplinares e de profissionais
altamente especializados. Essa tendência, a par de
reconhecer a complexidade das múltiplas demandas
dessas pessoas, carregou para o interior da escola a
percepção de que a educação especial exigia a
contribuição de técnicos que não eram dos quadros do
sistema de ensino e de que, especificamente quanto ao
ensino, cabia aos professores especializados em
determinadas áreas de deficiência a responsabilidade pela
formação desses alunos. Tanto é assim que, ainda hoje,
estudos mostram que mesmo quando o aluno está
matriculado nas classes comuns e tem um serviço
educacional especializado paralelo, tende a haver a
atribuição da responsabilidade educacional para o serviço
de apoio.
A perspectiva normatizadora e a busca dos
grupamentos
homogêneos
permitiram
que
se
consolidasse uma visão educacional pela qual se tornou
possível ao mesmo tempo falar em integração e tratar os
alunos com deficiência como se constituíssem um grupo
absolutamente distinto dos outros alunos. Haveria os que
aprendem na escola que aí está e aqueles que não
conseguem. Estes incluiriam as pessoas com deficiência
ou com outras espécies de limitações temporárias ou
permanentes ( necessidades especiais?). Além disso, a
noção de homogeneidade se estendeu também para o
interior do grupo com necessidades especiais. Assim é
que se naturalizou, por exemplo, a noção de que os
portadores de Síndrome de Down são todos iguais (
inclusive quanto ao desenvolvimento cognitivo - leia-se
“treináveis”) e de que todos os alunos com deficiência
mental devem aprender habilidades básicas de autocuidado ou ser submetidos a programas de prontidão
psicomotora. Se os grupos específicos são assim tão
semelhantes e, ao mesmo tempo, tão diferentes, devem
merecer uma educação comum, mas específica e
separada. A noção de valorização da diversidade, nesses
termos, é negada justamente pela referência a essa
diferença que foi apontada.
As propostas de integração, apoiadas no modelo de
uma pirâmide de múltiplos serviços hierarquizados de
acordo com seu potencial de integração/segregação,
indicavam que mais de 90% dos alunos com necessidades
especiais poderiam permanecer nas classes comuns das
escolas, com ou sem apoio especializado, já que não
apresentariam
características
educacionais
fundamentalmente diferentes do restante dos alunos. Para
aqueles menos de 10% que apresentassem diferenças
significativas de desenvolvimento, eram indicadas as
classes especiais ( organizadas por categoria de
deficiência e regidas por um docente especializado) e,
eventualmente, as escolas especiais ( reservadas para as
deficiências consideradas severas,
organizadas em
serviços multidisciplinares de saúde, educação e
assistência). Na realidade, até meados da década de 90,
as classes e escolas especiais responderam por 90% do
atendimento brasileiro em educação especial.
Na prática, nossas escolas públicas priorizaram a
abertura de classes especiais para alunos com histórico
de fracasso escolar e para os considerados deficientes
leves; e sempre houve resistência dos sistemas de ensino
para receber alunos com limitações mais evidentes ou
para assumir a matrícula nas classes comuns combinada
com o apoio especializado. Apenas mais recentemente, o
acúmulo das críticas a esse tipo de atendimento –
possivelmente associado a uma avaliação burocrática da
relação custo/benefício – sinalizou a revisão dessa
tendência.
Já as escolas especiais sempre constituíram uma
modalidade de atendimento de caráter privado e
assistencial. Os sistemas públicos de ensino abriram
poucas escolas especiais no país. As chamadas
instituições
especializadas
cresceram
de
forma
significativa a partir da década de 70 e ampliaram suas
atividades no campo educacional. Elas têm respondido de
forma destacada pelo atendimento às pessoas com
deficiência, especialmente aquelas de famílias de baixa
renda, nas áreas de saúde, assistência e educação. Esse
atendimento multidisciplinar é em parte sustentado por
algumas linhas de financiamento público, através de
subsídios e outros apoios que visam compensar o esforço
da instituição para cumprir o papel que caberia ao poder
público – e que custaria mais caro para o mesmo, se
assumisse o atendimento. Nessa perspectiva, é pouco
provável que o discurso da inclusão altere de modo
importante o projeto das instituições, a não ser pelo
desenvolvimento de programas públicos nas várias áreas
sociais aqui envolvidas, um cenário que não parece
próximo.
Assim como as escolas comuns têm colocado em
sua agenda recente a questão da inclusão e das
necessidades especiais, de algum modo incorporando
esses temas a seus projetos, as instituições
especializadas também vivem um momento de transição
na área educacional. Seja pelo discurso da inclusão, seja
pela revisão das formas de financiamento público nas
diferentes políticas sociais, seja pelas mudanças na
legislação educacional, as instituições estão se avaliando.
A partir da LDB/96 e de outras normas posteriores, elas
tiveram que organizar seu espaço de educação escolar de
acordo com os requisitos que a lei exige de qualquer
escola. É nessa linha, por exemplo, que a FENAPAES
desenvolveu com apoio do MEC o projeto da APAE
Educadora.
Essa tendência de um modo particular de divisão de
tarefas entre o público e o privado, na área de educação
especial, reflete-se nas estatísticas de atendimento.
Enquanto o percentual de matrículas iniciais no ensino
público, comparado com o privado, foi de 91% no ensino
fundamental e de 75% na educação infantil, no período
2001/2002 ( cabendo ao ensino privado 9 e 25% das
vagas nesses níveis, respectivamente), o percentual de
matrículas no ensino público, nos diferentes níveis, de
alunos com necessidades especiais, foi de 51% e de 53%
nos dois anos indicados.
Quando à dimensão de maior ou menor
segregação, em termos da natureza dos serviços
educacionais, ainda predomina o atendimento em escolas
e classes especiais ( com 87% das matrículas em 1998,
83% em 1999, 79% em 2000, 80% em 2001 e 75% em
2002), em comparação com as matrículas em classes
comuns com e sem apoio. Tem ocorrido nos últimos três
anos uma ampliação significativa de matrículas em
classes comuns, com e sem apoio, nas redes municipais
de ensino, o que poderá transformar em tendência as
indicações dos dados de 2002. Naturalmente, também
crescem os números do segundo bloco, em termos
absolutos e relativos, com a desativação das classes
especiais dos sistemas públicos.
Vamos recorrer agora ao que nos mostram as
pesquisas acadêmicas sobre o que tem acontecido em
nossa realidade nos últimos anos, em educação especial.
Temos trabalhado desde 1995 em projeto integrado
de pesquisa avaliando teses e dissertações sobre
educação especial defendidas em programas de pósgraduação em Educação e Psicologia no Brasil ( Nunes,
Ferreira e Mendes, 2001). Um dos temas mais destacados
foi o de integração/inclusão, referindo-se a trabalhos
relacionados a atividades, modelos, programas e políticas
de inserção de pessoas com necessidades especiais junto
a seus pares não considerados especiais. O tema,
identificado pelos autores como integração ou como
inclusão, foi abordado em cerca de 15% dos mais de 500
trabalhos até agora analisados. As áreas de deficiência
mental e surdez foram as mais contempladas. As de
deficiência múltipla e condutas típicas foram muito pouco
investigadas, o que se entende pela presença pouco
expressiva dessa população nas escolas. A área de
deficiência física tem sido mais investigada recentemente (
por exemplo, em trabalhos com a inserção escolar de
alunos com paralisia cerebral).
Uma das percepções obtidas da análise dos
resultados é a da redução da concepção clínica de
deficiência, pelos autores das teses, predominando as
concepções psico-educacional e social.
Alguns resultados e tendências apontados nos
estudos serão destacados a seguir.
Na educação infantil, os trabalhos reafirmaram a
importância da inserção de crianças com necessidades
especiais, de 0 a 6 anos, nos programas educacionais
regulares. ao lado do contexto positivo de interação criado
entre crianças com e sem necessidades especiais nesse
nível de ensino. Destacaram-se os ganhos no
desenvolvimento dessas crianças e apontou-se a
necessidade de promover programas de formação para os
professores e outros profissionais.
No ensino fundamental, nas séries iniciais, alguns
estudos analisaram as percepções ou representações de
professores, de pais e de alunos portadores e não
portadores de necessidades especiais sobre a inserção
escolar de alunos com deficiência. Prevaleceu a idéia de
que o discurso da integração ou da inclusão é
habitualmente aceito
e incorporado pelos diferentes
agentes, assim como o é o possível enriquecimento que o
convívio de alunos com e sem deficiência pode trazer para
as práticas educacionais. Há, contudo, uma série de
entraves e processos discriminatórios revelados nos
discursos, para as diferentes categorias de necessidades
especiais. As concepções tradicionais sobre a deficiência,
a referência central às limitações, a falta de conhecimento
e de condições de trabalho, a carência de apoios revelamse nos diferentes estudos e parecem apresentar um
desafio importante para que a inserção escolar desses
alunos seja bem sucedida. essa a tendência predominante
nas ambigüidades e contradições dos discursos.
Assim como nos trabalhos sobre percepções de
profissionais, as pesquisas voltadas para a descrição das
práticas pedagógicas nas escolas regulares apontaram a
distância entre o discurso politicamente correto e a
realidade de uma escola ainda insensível e pouco
equipada para lidar com a diversidade de seus alunos.
Talvez pelo caráter recente dos processos de inserção
escolar, especialmente de alunos com determinadas
características, ampliou-se o acesso a uma escola já
problematizada com a falta de qualidade e de apoio, a
qual tem dificuldade de superar o estágio de simples
inserção física dos alunos. Assim é que as práticas
integradoras e a formação continuada dos professores e
técnicos parece estar se dando de forma reativa aos
problemas colocados pelo cotidiano, sem o planejamento
e o apoio necessários; como se a inserção desses alunos
dependesse de modo quase exclusivo da postura de
sacrifício ou da boa vontade dos professores.
Outros conjuntos de estudos, em quantidade menos
expressiva, relacionam-se com temas também relevantes.
Na área de educação física, foram relatadas as
dificuldades de alunos com necessidades especiais para a
prática de educação física escolar e foram estudadas
estratégias para desenvolver atividades integrando alunos
com e sem necessidades especiais, nas áreas de
deficiência física e mental.
Foram poucos os estudos sobre
instituições
especializadas em educação especial, com destaque para
a área de deficiência mental. Ao lado do desenvolvimento
de programas educacionais aparentemente significativos,
também foram apontadas algumas limitações pedagógicas
das propostas institucionais e a falta de clareza das
relações estabelecidas entre o trabalho institucional e as
demandas do mundo externo ao qual se integrariam
futuramente os egressos.
Outros trabalhos, também em pequeno número,
abordaram aspectos da vida das pessoas com deficiência
não presentes de forma imediata no cotidiano dos
programas da instituição escolar. São estudos que
apontaram para a relevância de temas como o lazer, a
participação da família, a percepção das próprias pessoas
com necessidades especiais – como parte do processo
educacional e como constituintes de uma noção mais
ampla de integração ou inclusão, que não se restringe à
educação escolar.
Analisando ainda os trabalhos sobre políticas
públicas, pode-se concluir que, se não há entraves de
ordem legal, no plano dessas políticas, os componentes
do assistencialismo, da visão terapêutica da educação do
aluno com necessidades especiais e do descompromisso
das escola pública, têm ainda favorecido práticas
educacionais que negam as noções de integração e de
inclusão.
Retomando os trabalhos em seu conjunto, indica-se
a possibilidade e a necessidade de que os projetos
político-pedagógicos das escolas valorizam a inserção dos
alunos com necessidades especiais. Aqui, destaca-se
como crucial a questão dos recursos humanos. A maioria
das pesquisas destacou a necessidade de rever os
programas de formação inicial e continuada dos
profissionais que trabalham em serviços educacionais que
incluem pessoas com necessidades especiais; quanto aos
professores, enfatiza-se a importância de incluir as
necessidades educacionais especiais na formação do
professor do ensino comum ( e não na forma de uma
disciplina isolada no currículo), bem como de superar a
noção e de formação muito distintas e isoladas do
professor especializado em educação especial.
Outras indicações incluem a necessidade de que os
estudos sobre integração ou inclusão saiam dos muros da
escola e incluam famílias e comunidade externa, de que
se rediscuta o sentido da prática educacional das escolas
especiais, de que os apoios especializados eventualmente
necessários se façam disponíveis no contexto da
educação comum.
A despeito da variedade de formas com que os
estudos compreenderam o processo de integração ou de
inclusão, predominou uma visão crítica dos modos como
se constituíram os serviços educacionais especializados
em nossa realidade e ao ainda reduzido compromisso do
Estado e da escola pública com os alunos com
necessidades especiais.
Esses resultados e tendências apontados nas
pesquisas não revelam e nem implicam um quadro de
estabilidade. Têm ocorrido mudanças importantes na
legislação e no campo da educação, assim como na
sociedade mais ampla.
No âmbito da legislação e das políticas públicas,
tem se reiterado o discurso do compromisso com uma
educação pública e de qualidade para todos. É evidente
que não se muda de modo relevante a realidade social
pelo registro ou até mesmo pela imposição legal. Como
aponta Skliar (2001), o legislar sobre a inclusão e o inserir
a pessoa com deficiência na escola comum, sem outras
mudanças mais profundas, pode até favorecer uma cultura
de tolerância, mas sem compromisso. De todo modo, e a
despeito das limitações apontadas na trajetória de nosso
atendimento em educação especial, as questões
relacionadas à educação das pessoas com deficiência e
as próprias pessoas assim consideradas estão mais
presentes nos documentos e nos espaços da escola
pública.
Fora do âmbito da educação escolar, outros
registros legais e políticos ganharam destaque a partir da
Constituição de 88. Um exemplo é o Decreto No. 3298/99,
da Presidência da República, que regulamentou 10 anos
depois a Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência. O decreto prevê uma série de
iniciativas integradas do poder público nas áreas de
cultura, desporto, turismo e lazer (Brasil, 2001).
Deveríamos avaliar se e de que modo essas ações estão
ocorrendo. Jannuzzi (1997), comentando sobre o desafio
de estabelecer prioridades na área de educação especial,
questionava:
Como faremos para que sejam assumidas
eficientemente pelo poder público sem que os
desvios e ineficiência quer públicas quer privadas
continuem a ser uma constante? (...) a parceria do
poder público deve iniciar-se entre seus próprios
setores (...) dada a complexidade da educação
especial a parceria deve ser estabelecida também
com os outros setores públicos tais como saúde,
trabalho, assistência social, cultura, lazer etc.(p. 6)
Outras possibilidades concretas, também na
educação, revelam-se no crescimento das vagas e das
experiências inclusivas junto à educação infantil e nas
séries iniciais do ensino fundamental. Surgem condições e
programas favorecedores da quebra do preconceito, do
apoio concreto às famílias, da promoção de trocas
significativas entre todos os alunos.
Um dos efeitos potencialmente positivos da LDB
está na flexibilização da organização dos currículos e
práticas escolares, permitindo a organização de ciclos
escolares e a superação do regime seriado e da
reprovação frequente. O que nos deve preocupar,
contudo, é de que as propostas ditas inclusivas não
acompanhem o caráter nitidamente contábil e estatístico
que tem marcado muitas das propostas de progressão
continuada.
As possibilidades existem. Hoje se percebe como
as novas tecnologias e o campo da informática ampliam
as possibilidades de formação e trabalho das pessoas
com deficiências físicas e sensoriais. De outra parte,
cresce o desemprego estrutural e se ampliam as
exigências de qualificação, sinalizando um desafio
ampliado, por exemplo, na área de deficiência mental.
No campo social, consolidam-se os movimentos e
as conquistas dos grupos e organizações de e para
pessoas com deficiência.
É assim, nesse quadro de avanços e recuos, de
conquistas e resistências, de predomínio da negação
sobre a afirmação dos direitos, que o discurso sobre a
inclusão se torna hoje hegemônico.
Referindo-nos às pessoas com deficiência,
assumimos, com Glat (1995), a noção de que ninguém
integra ( ou inclui ) o outro. As pessoas se integram de um
ou outro modo às atividades do cotidiano e às relações
interpessoais dentro das possibilidades colocadas em seu
contexto. Isso não significa que devamos nos omitir de
criar condições favoráveis para que as pessoas se
integrem. Pode significar, como aponta Omote (1994), a
necessidade de que se apoiem as pessoas para que
definam por si próprias seus planos, quebrando o que o
autor chama de privilégio-obrigação da pessoa com
deficiência, de ter que se integrar a uma série de
situações.
Tendemos a decidir por elas o que são experiências
mais integradoras ou inclusivas para elas próprias,
segundo critérios de cuja definição elas não participam. A
decisão é externa a elas e a seus valores e expectativas.
Nossos pressupostos teóricos e ideológicos que dão
suporte aos discursos sobre integração e sobre inclusão
não permitem que entendamos porque um egresso da
instituição queira para ela voltar e porque as pessoas com
deficiência valorizam a interação com seus pares também
com deficiência.
Permito-me, contrariando a boa norma acadêmica,
concluir com um comentário utilizando a primeira pessoa
do singular. Aprendi na UNICAMP, com meus colegas e
amigos do DEAFA, a ter a preocupação em não reduzir a
vida ao aprendizado acadêmico das escolas e a valorizar
experiências desenvolvidas por e para grupos de pessoas
com deficiência. Se os objetivos anunciados nos discursos
de integração e inclusão têm a ver com a realização da
autonomia e da felicidade das pessoas, não é exatamente
isso que mobiliza as pessoas para este Simpósio?
O reducionismo que “escolariza” as questões
relacionadas à pessoa com deficiência, seja em nome da
integração, seja em nome da inclusão, impede que se
veja os múltiplos espaços, desafios e possibilidades que
se colocam para a construção da cidadania dessas
pessoas. E, mesmo no âmbito da educação escolar, é
importante resistir ao intelectualismo e ao academicismo.
Sem descurar das funções sociais básicas da
escolarização, é também necessário considerar que um
dos pilares do movimento de inclusão veio justamente dos
grupos e familiares daquelas pessoas consideradas
severamente comprometidas, como os autistas e
deficientes múltiplos, que têm lutado pelo acesso à
instituição escolar sem a meta preponderante dos ganhos
acadêmicos.
A cidadania se afirma pela apropriação de bens
simbólicos, culturais e sociais ( Severino, 1992), incluindo
o acesso irrestrito à educação, saúde e assistência. O
trabalho, o lazer, a segurança são também direitos sociais
inscritos em nossa Constituição. A educação, como
instância mediadora, é ao mesmo tempo o exercício de
um direito e a possibilidade de ampliação do acesso a
outros direitos fundamentais. No caso das pessoas com
deficiência, e não só delas, esses direitos se afirmam no
direito à igualdade com respeito à diferença.
Referências bibliográficas
Amaral, Lígia A . Pensar a diferença/deficiência. Brasília:
CORDE, 1994.
Brasil. Ministério da Educação. Direito à educação –
necessidades educacionais especiais: subsídios para
atuação do ministério público brasileiro. Brasília:
MEC/SEESP, 2001.
Glat, Rosana. A integração social dos portadores de
deficiência: uma reflexão. Rio
de Janeiro: Sette
Letras, 1995.
Jannuzzi, Gilberta S.M. Educação, escolarização e
inclusão. Trabalho apresentado no Seminário da
SOBAMA, Uberlândia, MG, 1997.
Mazzotta, Marcos J.S. Educação especial no Brasil:
história e políticas. São Paulo: Cortez Ed., 1996.
Nunes, L.R.; Ferreira, J.R. e Mendes, E. Análise crítica
das teses e dissertações sobre educação especial nas
áreas de educação e psicologia. Relatório científico para o
CNPq, 2001.
Omote, Sadao. A integração do deficiente: um pseudoproblema? Trabaho apresentado na XXIV Reunião Anual
de Psicologia, Ribeirão Preto, SP, 1994.
Severino, Antonio J. A escola e a construção da cidadania.
Em A escola e a construção da cidadania. Coleção CBE.
Campinas: Papirus, 1992.
Skliar, Carlos. Seis perguntas sobre a questão da inclusão
ou como acabar de uma vez por todas com as velhas - e
novas - fronteiras em educação. Pro-posições, 12, 2-3,
35-42, 2001.
MOTIVAÇÃO E FLOW-FEELING: A TEORIA DA
EXPERIÊNCIA MÁXIMA PARA A DANÇA EM
CADEIRA DE RODAS
Maurício G. Bara Filho 2
1
Renato Miranda 1
Doutor em psicologia do esporte; Diretor da Faculdade de Educação Física e
Desportos (FAEFID) da UFJF; Vencedor do II Prêmio Brasil Esporte de
Literatura (2001) – categoria doutorado.
A palavra motivação é freqüentemente utilizada
como meio de se atingir o sucesso em qualquer atividade.
Em Al Huang e Linch (1992; p.224) não há nenhuma
mágica para motivação, sendo preciso apenas seguir o
provérbio: "Identifique-se com tudo o que você ama e
preencha com isso sua vida". Assim, toda e qualquer
atividade bem como as pequenas alegrias do processo
serão recompensados por si mesmos e a percepção de
otimismo será vivenciada.
Mesmo não gostando de certas atividades, o
indivíduo pode aprender a gostar delas e de seus
benefícios. Não ocorrendo essa ligação, o exercício passa
a ser um trabalho, uma obrigação. "A motivação é o
resultado do amor pelo que se faz. Sem esse amor, o
exercício torna-se difícil" (p.224). Acredita-se que a
motivação para se realizar uma atividade como a dança
em cadeira de rodas não é inato, como a direção para
satisfazer a fome ou a sede, mas deve ser desenvolvido e
aprendido.
A motivação, enquanto categoria sujeita à
investigação, pode ainda ter dois enfoques principais. No
primeiro “estão os estudos das razões pelas quais se
escolhe uma atividade e não outra. No segundo [grifo dos
autores] estão os dados referentes às razões pelas quais
se realizam ações com diferentes graus de intensidade,
procurando explicá-los.” (Cratty, 1984, p. 36).
Al Huang e Linch (Ibid, p. 226.) fazem uma
consideração importante a respeito da motivação e a
individualidade do prazer ao afirmarem que o “nível de
motivação é diretamente proporcional ao prazer obtido nas
2
Doutorando em psicofisiologia do esporte (UGF); Professor da FAEFID
(UFJF); Vencedor do II Prêmio Brasil Esporte de Literatura (2001) –
categoria mestrado.
atividades. Sem este fator, a motivação e o entusiasmo se
evaporam rapidamente.”
Em outra perspectiva, se uma pesso como os
praticante da dança em cadeira de rodas enfrentar alguma
adversidade na aprendizagem da atividade sem estar
preparada, pode não satisfizer seus objetivos, desmotivar
e perder o interesse pela dança. É o caso de praticantes
que se submeteram a processos desprazerosos e, por
falta de estrutura física, psíquica e/ou moral para
suportarem o processo de aprendizagem e treinamentos
não atingiram o objetivo idealizado e abandonaram a
prática das atividades físicas
CONCEITOS DE MOTIVAÇÃO
À vista dos pressupostos anteriores, estabeleceu-se
como critério de investigação seis conceitos básicos sobre
motivação para nortear a tarefa de relacionar cada
conceito com aspectos relevantes com a dança em
cadeira de rodas. A seguir será exposto cada um desses
conceitos e suas relações temáticas.
Inicialmente afirma-se que “a motivação é a direção
e intensidade de um determinado esforço.” (Sage, 1977, p.
76). Completando esse conceito pode-se dizer que a
motivação é “fator interno que dá início, dirige e integra o
comportamento de uma pessoa.” (Murray, 1986, p.45).
Observando estes dois conceitos nota-se que a motivação
é energia psíquica que dinamiza o comportamento a partir
de objetivos pessoais, por isso, é difícil compreender
atitudes específicas, como subir e descer uma montanha,
excluso qualquer conseqüência explícita, sem antes
vivenciar alguma experiência semelhante ou diagnosticar
os fatores externos e perceber as necessidades pessoais
que fazem com que uma pessoa se interesse em eleger
essa tarefa como lazer.
Auxiliando a discernir esse pensar, entende-se a
motivação como um “processo ativo, intencional e dirigido
a uma meta, o qual depende da interação de fatores
pessoais (intrínsecos) e ambientais (extrínsecos).
(Samulski, 1992, p. 55). Este conceito nos remete a
avaliar que não há uma causa única determinante do
comportamento. Tanto os fatores intrínsecos como os
extrínsecos agem como orientadores do comportamento.
Como todo comportamento surge no âmbito da
satisfação de uma necessidade, a motivação pode ser
entendida
como
“desejo
para
satisfazer
uma
necessidade.” (Cox,1994, p.78). A satisfação das
necessidades se relaciona com a auto-realização, com
isso a motivação é também entendida como “processo de
mobilizar necessidades pré-existentes que sejam
relacionadas com os tipos de comportamento capazes de
satisfazê-las.” (Feijó, 1992, p. 151). Quando uma pessoa
consegue estabelecer uma relação de conveniência entre
sua necessidade e o objeto capaz de satisfazê-la, um
estado ótimo de motivação será verificado.
TIPOS DE MOTIVAÇÃO
Segundo Miranda (1994; p.44), a motivação está
ligada diretamente às necessidades do homem que são o
significado para o seu desenvolvimento. Os objetivos
básicos do homem são satisfazer suas necessidades
universais que são, citando Feijó: "Necessidades de autoexpressão, necessidades de auto-realização, necessidade
de afetividade, necessidade de fazer bem feito o que a
pessoa considera importante e pertencer ao grupo
considerado importante pela própria pessoa".
Para Miranda (1994; p.45), necessidades e motivo
são coisas iguais e, quando relacionadas com
comportamento e movimento, produzem os mesmos
efeitos. E, de acordo com Maslow, que concebe cinco
necessidades do homem: Necessidades fisiológicas, por
exemplo: satisfazer a fome e a sede. Necessidade de
segurança, ordem, estabilidade. Necessidade de afeto,
aceitação, filiação a grupos. Necessidade de estima,
prestígio, sucesso, auto-respeito. Necessidade de plena
realização pessoa.
Em Feijó (1992), o processo motivacional é função
dinamizadora do treinamento, da aprendizagem e exige
um bom conhecimento das necessidades humanas, pois
sejam estas físicas, espirituais, artísticas ou sociais, estão
relacionadas com os movimentos intencionais e funcionais
da personalidade. Pressuposto, pode-se projetar o
entender da motivação como o elemento energizador da
dança em cadeira de rodas.
A motivação é caracterizada como um processo
ativo intencional e dirigido a uma meta, dependendo da
interação de fatores pessoais (intrínsecos) e ambientais
(extrínsecos). (Cratty,1984). Não obstante, a motivação
intrínseca representa a vontade interior de realizações de
determinadas tarefas, não dependendo exclusivamente de
fatores motivacionais externos, embora a motivação
extrínseca colabore com a manutenção ou modificação do
comportamento.
A motivação ambiental é representada por fatores
externos que podem motivar o comportamento tais como,
troféus, dinheiro e elogios. Já a motivação intrínseca é a
força psíquica interior para o empenho em uma atividade
por vontade própria.
No que tange às realizações pessoais significativas,
realizadas com a maior eficácia possível, provendo
contínuos e novos desafios, a motivação intrínseca é,
sobremaneira, mais fundamental do que a extrínseca, pois
nas atividades físicas, de uma maneira geral, o vínculo
entre realização de tarefas e motivação intrínseca é
interdependente. O desafio de vencer obstáculos, criar
novas tensões em si mesmo, promover mudanças e obter
sucesso, aventam ser algumas das principais motivações
em vários esportes; dança em cadeira de rodas, atletismo,
esportes coletivos, pára-quedismo e montanhismo.
Outra relação que se verifica também cogitada por
este autor é entre o nível de motivação e a atratividade e
estimulação, isto é, há uma relação linear entre estes dois
fatores. Se se aumenta a atratividade da situação ou se
apresentam incentivos, aumenta-se a intensidade da
motivação.
Breve introdução sobre o Flow-feeling
A teoria do flow-feeling foi desenvolvida por
Csikszentmihalyi principalmente a partir de estudos nas
décadas de 70, 80 e início de 90. Conhecido também
como fluir, fluidez, fluxo ou experiência máxima, o flowfeeling, ajuda-nos a entender melhor o porquê de pessoas
realizarem certas tarefas com o máximo desempenho e
em alto grau de motivação. Por exemplo, permite detectar
indícios importantes de como os certos praticantes de
atividades como a dança em cadeira de rodas, mantêm
um alto nível de motivação em uma jornada, que para
muitos pode não ter nenhum sentido.
É oportuno avaliar que dos diversos conceitos sobre
motivação, (SAMULSKI,1992; DUDA,1992; COX,1994;
STRATTON e HAYES,1994, FEIJÓ,1998; MIRANDA &
BARA FILHO,2002), são encontradas palavras e/ou
expressões iguais ou similares referentes ao flow-feeling
ou experiência máxima, tais como; alcançar metas
pessoais, satisfação, motivação intrínseca, impulsionar,
estruturas de atividades e necessidades. Isto se deve pela
característica dinâmica da experiência do fluir que se
processa em um patamar de envolvimento e complexidade
só possível em alto grau de motivação. De modo permitir
identificar o fluir (flow-feeling) como um significativo
motivador.
Fundamentado
em
CSIKSZENTMIHALYI
(1990;1992;1993;1996;1997) o elemento sustentador para
o fluir ou experiência máxima, é determinado quando a
atividade a ser feita é vivenciada como tendo um fim em si
mesma. Além disso, independente de suas razões, esta
atividade absorve a pessoa e torna-se intrinsecamente
gratificante. O fluir é antes de tudo uma experiência
autotélica. Em todas as situações que a pessoa flui, sua
atenção é livremente investida para alcançar as metas
pessoais.
A palavra autotélica originou-se da união de duas
palavras gregas, auto que sgnifica por (ou de) si mesmo, e
telos que significa finalidade. Daí a idéia de que uma
experiência autotélica refere-se à uma atividade autosuficiente, envolvente, realizada sem a expectativa de
algum benefício futuro, mas simplesmente porque realizála é a própria recompensa (CSIKSZENTMIHALYI, 1992,
p.104).
A experiência autotélica, ou o fluir, eleva o
curso da vida a um nível diferente. A alienação
dá lugar ao envolvimento, a satisfação substitui
o tédio, a impotência se transforma numa
sensação de controle, e a energia psíquica
atua para reforçar a sensação do self, em vez
de se perder atendendo a objetivos exteriores.
Quando a experiência é intrinsecamente
gratificante, a vida se justifica no presente, em
vez de ser mantida como refém de um
hipotético ganho futuro. (CSIKSZENTMIHALYI,
1992, p.106)
Observando os indivíduos praticantes da dança em
cadeira de rodas, nota-se ser esta atividade um ótimo
exemplo de vivência da sensação do fluir. Ao se inserirem
nessa atividade, busca-se atingir objetivos nela própria,
absorvendo-os na sua totalidade e vivenciando-na com
máxima intensidade. Todavia não é um fenômeno que
ocorre simplesmente por acaso. O fluir mesmo sendo uma
experiência espontânea, é otimizada por três situações:
primeiro, quando a atividade a ser realizada é estruturada;
segundo, a habilidade da pessoa é compatível com a
tarefa; terceiro, considerando ambas as situações. Estas
situações
propiciam
compreender
melhor
as
características comuns para o fluir.
Características do Flow-feeling
As características comuns do flow-feeling,(
CSIKSZENTMIHALYI, 1992.p.109) independente da
atividade são:
a) Percepção de que suas aptidões são adequadas para
lidar com os desafios imediatos, num sistema de ação
limitado por regras e voltado a um objetivo que oferece
indícios claros de como está o desempenho individual
(retro informação- feedback- imediata);
b) Há uma concentração intensa;
c)
d)
e)
f)
g)
h)
Autoconsciência desaparece;
Perda da noção de tempo e espaço;
Percepção de satisfação;
Controle absoluto das ações;
Experiência autotélica;
Alegria espontânea e experiência intrinsecamente
compensadora.
Neste contexto, as condições básicas para o fluir são:
a) Relacionar a estrutura da atividade à habilidade da
pessoa;
b) Oferecer percepção de descoberta;
c) Impulsionar a pessoa para níveis mais elevados de
desempenho;
d) Conduzi-la a estados de consciência jamais sonhados.
Em outras palavras, quando a informação que
chega em nossa consciência está de acordo com nossas
metas estamos prontos para fluir. Fluindo, a pessoa está
apta a desenvolver capacidades e fazer contribuições
significativas à humanidade.
(Ibid., p.108)
ATIVIDADE FÏSICA E FLUIDEZ
Como algumas pessoas sentem alegria, mantém
um alto nível de concentração e motivação participando de
uma atividade física? Nosso desafio é tentar responder
essa pergunta, na tentativa de conseguir discriminar como
uma atividade favorece e melhora a qualidade de vida das
pessoas.
A resposta é factível, prioritariamente, porque
algumas atividades têm características oportunas de gerar
experiências máximas, tal como as características
individuais que otimizam determinada pessoa a alcançar o
fluir com facilidade.
Todas as atividades com alto
potencial de motivação intrínseca, quando voltadas para a
ludicidade 3 , foram classificadas por CALLOIS (1961)
conforme as seguintes características:
Alea: classe dos jogos de azar;
Mimetismo: grupo de atividades
cujo limites
pessoais transcendem-se através da fantasia. São
representados pela dança, teatro, e artes em geral;
Agon: representa todas as formas de disputas que
têm como característica principal o confronto de pessoas
umas contra as outras, como os jogos coletivos e disputas
esportivas;
Vertigem ou ilinx: são as atividades que causam a
desorganização da percepção normal através da alteração
da consciência, como o ski, pára-quedismo e o
montanhismo.
A dança em cadeira de rodas, a partir dessa teoria
revela-se como uma atividade de mimetismo; entretanto o
agon e o ilinx também fazem parte da experiência do
3
Entende-se aqui por ludicidade toda e qualquer atividade que atende os prérequisitos de SATISFAÇÃO, ESPONTANEIDADE E FUNCIONALIDADE.
praticante de dança em cadeira de rodas. Não obstante, a
classificação de CALLOIS (1961) não permite dizer como
as atividades emergem para o fluir mas onde e quando
este ocorre.
Considerando-se a dança em cadeira de rodas
como atividade esportiva que facilita a experiência
máxima, pois do mesmo modo que a atividade musical,
alpinismo, iatismo e demais esportes, a dança tem regras
que exigem o aprendizado de habilidades, estabelece
metas, dá retorno, facilita a concentração e torna possível
o controle em todo o processo da atividade. Tal atividade
permite a pessoa deixar de pensar e agir em função do
senso comum e direciona toda sua energia psíquica à
concentração na realidade específica da própria atividade.
(CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p.110)
Levando-se em conta as características do fluir,
CSIKSZENTMIHALYI, a fim de exemplificar melhor o
fenômeno da experiência ótima e suas conseqüências
positivas para a transformação e o crescimento do self,
elaborou um diagrama que ora adaptou-se para o
aprendizado e vivência da dança em cadeira de rodas.
(Ibid., p. 113)
O diagrama a seguir representa a experiência de
um iniciante na dança em cadeira de rodas e serve como
orientação para a facilitação do fluir. Os desafios da dança
e as aptidões do iniciante, estão representados nos eixos
do diagrama. A letra I representa um iniciante de dança
em cadeira de rodas. O diagrama mostra o iniciante em
quatro situações distintas:
Quando começa a praticar (I1), tem pouca
aptidão, e o único desafio que enfrenta é executar os
fundamentos básicos de deslocamento. Não é uma tarefa
difícil, mas possivelmente o iniciante tenha satisfação
nessa experiência pois a dificuldade está compatível com
suas aptidões elementares.
Nessa situação ele provavelmente estará fluindo.
No entanto, não poderá ficar assim durante muito tempo.
Após algum tempo, praticando aprimorará suas aptidões
tais como; resistência aeróbia, força muscular,
concentração e mobilização psíquica.
Continuando apenas nessa tarefa ficará
entediado (I2), “porque a complexidade da consciência
aumenta em decorrência das experiências do fluir.”
(CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 113)
No entanto, se o iniciante experimenta uma tarefa
de grande dificuldade, perceberá que existem desafios
muito mais difíceis do que uma pequena série de
movimentos coordenativos, resultando um sentimento
de ansiedade (I3) em função de seu fraco desempenho.
O tédio e a ansiedade são experiências que
distanciam as pessoas do fluir, pois são experiências
negativas. Então em nosso exemplo, o iniciante sentirá
motivado para retornar ao estado que flui. Considerando a
situação I2 (tédio) e desejando-se voltar a fluir, o iniciante
deve tomar e seguinte atitude: aumentar os desafios que
está enfrentando de modo compatível com sua aptidão.
Por exemplo, participando de uma série de médio esforço
e grau de dificuldade razoável.
Caso o iniciante sinta-se ansioso (I3), para que
volte a fluir é necessário que aumente suas aptidões.
Pode-se também diminuir os desafios que está
enfrentando e tornar a fluir (I1), todavia “é difícil ignorar
desafios se estamos conscientes de que eles existem.”
(Ibid., p. 114)
Nas situações (I1) e (I4) estão representados o fluir
(canal do fluir). São momentos de satisfação porém; (I4) é
uma situação mais complexa do que (I1), pois abrange
desafios maiores e exige mais aptidões do iniciante.
A situação (I4) também não é definitiva. Este nível
em um certo momento será, entediante ou gerar-se-á
ansiedade para o iniciante (aptidão incompatível). Então,
este sentirá necessidade de voltar a fluir, criando uma
motivação para experimentar satisfação novamente.
Todavia, ao retornar ao canal do fluir, o nível de
complexidade será mais elevado do que (I4).
É importante perceber que quando se retorna ao
canal do fluir, diminuindo a dificuldade da tarefa, deve-se
tomar cuidado para encontrar um nível adequado na
relação desafio-tarefa, a fim de favorecer um nível de
complexidade sempre mais elevado, porém de acordo
com os potenciais energéticos da pessoa. Favorecendo o
crescimento e a descoberta.
É essa característica dinâmica que explica
por que as atividades que fluem levam ao
crescimento e à descoberta. Não se pode
gostar de fazer a mesma coisa, no mesmo
nível, durante muito tempo. Ficamos
entediados ou frustados; então, o desejo de
nos sentirmos satisfeitos [grifo do autor]
novamente nos leva a ampliar nossas
aptidões, ou a descobrir novas oportunidades
de utilizá-las. [...] Não são as aptidões que de
fato possuímos que determinam como nos
sentimos, mas sim as que pensamos ter.
(CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 114,115)
DIAGRAMA DAS ATIVIDADES QUE FLUEM
∞
(ALTA)
Ansiedade
Canal do
Fluir
I3
I4
Tédio
(BAIXA)
0
I1
I2
(BAIXA)
(ALTA)
(CSIKSZENTMIHALYI,1992)
Na teoria do flow-feeling é fundamental que se
observe que a consciência é livre para fazer suas próprias
avaliações em relação a qualquer situação. Não há uma
ou outra atividade que garanta de ante mão o estado do
fluir. O que existe são atividades que favorecem o fluir
mas não necessariamente garantindo a fluidez. Uma
pessoa pode aceitar o desafio de participar de uma
competição de dança em cadeira de rodas, e por outro
∞
lado não sentir nenhuma motivação para aprender praticar
tênis em cadeira de rodas. A principal razão da busca do
fluir independente da atividade é o fato da possibilidade de
um evento ou desafio fornecer satisfação.
Dentre as particularidades de qualquer atividade e
a intenção de melhorar a qualidade de vida, deve-se levar
em conta que o fluir favorece as realizações e o
desenvolvimento pessoal. Logo, conclui-se como
importância do Flow-feeling:
a) Torna o momento presente mais agradável;
b) Cria autoconfiança e harmonia;
c) Libera energia psíquica;
d) A alienação dá lugar ao envolvimento;
e) A satisfação substitui o tédio;
f) A impotência se transforma em percepção de controle
e transforma a vida.
MEIO AMBIENTE, CULTURA E FLUIR
O meio ambiente e
cultura são alguns dos
indicadores que orientam as motivações das pessoas de
determinadas regiões para o fluir. A estratégia eleita para
melhor
entendimento de como se procede esse
fenômeno, foi descrever algumas experiências ocorridas
em culturas diferentes e em distintas circunstâncias. Não
preocupou-se em relativizar culturas nem tão pouco fazer
avaliações interculturais. A idéia é simplesmente trazer à
baila deste capítulo alguns exemplos que reforcem o
conceito do fluir na execução de tarefas, seja esportiva
ou não.
De início, um bom exemplo é verificado em KOLL
(apud, CSIKSEZENTMIHALYI,1992) ao descrever uma
tribo indígena da Colúmbia Britânica, Koll retrata como
uma cultura pode ter um estilo de vida que flui:
A região de Shushwap foi e é considerada
pelos índios como um lugar rico: rico em
salmão e caça, rico em recursos alimentares
como tubérculos e raízes - uma terra de
abundância. Nesta região, as pessoas viviam
em aldeias permanentes e exploravam os
arredores em busca daquilo de que
necessitavam.
Possuíam
tecnologias
sofisticadas desenvolvidas para o uso
eficiente dos recursos do meio ambiente e
consideravam sua vida boa e rica. Contudo,
diziam os mais velhos, às vezes o mundo
tornava-se muito previsível, e o desafio
começava a sumir de suas vidas. Sem
desafios, esta não tinha sentido.
Assim, os mais velhos, em sua sabedoria,
decidiram que toda a aldeia deveria mudarse a cada vinte e cinco ou trinta anos. A
população inteira se transferia para outra
parte do território Shushwap e lá encontrava
desafios. Havia novas correntes de água
para procurar, novas trilhas de caça para
conhecer, novas áreas abundantes em raízes
balsâmicas. A vida recuperaria o significado
e valeria a pena ser vivida. A propósito, isso
também permitiu que os recursos explorados
em determinada área se recuperassem
depois de anos e anos de colheitas...(KOOL,
apud, CSIKSZENTMIHALYI,1992, p.121)
Uma outra ilustração oportuna é a existência de
culturas que por um motivo ou por outro, conseguiram
gerar uma realidade na qual o fluir é relativamente fácil de
ser atingido. TURNBULL (Ibid., p.120) descreve os
pigmeus da floresta Ituri, como modelo de harmonia entre
si com o meio ambiente, enriquecendo a vida com
atividades úteis e desafiadoras. Ora estão caçando, ora
promovendo benfeitorias em suas aldeias. Além disso,
cantam, dançam, tocam instrumentos musicais ou contam
histórias. “Como em muitas culturas ditas ‘primitivas’,
nesta sociedade pigméia espera-se que cada adulto seja
um pouco cantor, ator, artista e contador de histórias, além
de artesão habilidoso. Sua cultura não receberia uma
classificação elevada quanto a realizações materiais, mas
quanto a oferecer experiências máximas, seu estilo de
vida parece muito bem-sucedido.” (Ibid., p.120)
Uma outra situação, é a espontaneidade com que
certos grupos de pessoas –praticantes de trekking 4 - da
região da Zona da Mata Mineira (Minas Gerais, Brasil)
caminham por longas distâncias nas trilhas montanhosas
com certa facilidade e experimentam as experiências do
fluir. Fazendo do caminhar a fonte principal de lazer.
No vilarejo de Conceição do Ibitipoca onde existe
um parque estadual 5 , em qualquer época do ano é comum
encontrar em suas montanhas grupos de pessoas que em
um único dia caminham de 4 a 6 horas em um terreno
acidentado e cheio de aclives, onde a motivação presente
é vivenciar as sensações da própria caminhada (trekking)
e usufruir da natureza.
Esta experiência é relevante para referendar a idéia
de que - no esporte especificamente, para ter satisfação
não é indispensável avançada tecnologia ou tarefas
sofisticadas. É fundamental antes de tudo, possuir
4
Trekking: categoria de modalidade esportiva do montanhismo.
Parque Estadual do Ibitipoca. Controlado e administado pelo IEF (Instituto
Estadual de Floresta)
5
aptidões necessárias para o aproveitamento das horas de
lazer e reestruturar a consciência para possibilitar o fluir.
A satisfação para alguns é experimentada em
qualquer lugar, outros não conseguem usufruir desta
experiência mesmo tendo possibilidades fascinantes.
Atualmente, as pessoas dispõem de uma grande
variedade de recursos e engenhocas destinadas à
recreação e de opções de lazer, todavia a maioria
continua entediada e vagamente frustrada. (Ibid., p.124)
Em qualquer um dos exemplos acima verifica-se
que independente da atividade ou lugar, o Flow-feeling é
possível
quando
toda
nossa
energia
psíquica
representada pela atenção é destinada aos objetivos
intrínsecos encontrados na realização da própria tarefa,
sem a preocupação de benefícios futuros e ou
extrínsecos. A orientação para vivenciar a satisfação e a
alegria - restruturadores de nossa entropia natural, reside
em avaliar a estrutura das atividades que favoreçam o fluir
e todas as aptidões pessoais capazes de possibilitá-las.
CONCLUSÃO
Os estudos a respeito do flow-feeling e sua
contribuição para uma vida potencialmente mais dinâmica,
envolvente, significativa e recheada de alegria, não se
esgotam aqui nem tão pouco são panacéias de sucesso
ou satisfação absoluta. No entanto, através de conceitos,
condições, características e exemplos de diversas
situações de Flow-feeling e sua interface com a prática da
dança em cadeira de rodas, pressupõem-se que é
construtivo o envolvimento em atividades que têm uma
finalidade em si mesma(autotélica).
A tarefa primordial de professores, técnicos e
estudiosos de educação física no que tange o Flowfeeling ou experiência ótima e a dança em cadeira de
rodas, reside em aumentar suas possibilidades de ações
nos mais variados tipos de intervenção, favorecendo, às
pessoas, caminhos distintos para o fluir.
As atividades que proporcionam a conquista dos
objetivos que geram satisfação às pessoas nem sempre
são encontrados por acaso. Grande parte daquilo que
favorece o fluir é influenciado preliminarmente por pessoas
mais experientes e que promovem conhecimentos
universais. A escolha, a orientação e as condições
pessoais básicas para a realização de atividades,
principalmente às voltadas para o esporte, podem ser
otimizadas pelo profissional que consegue mobilizar toda
sua atenção para a detecção de como tal experiência
poderá satisfazer as necessidades intrínsecas e contribuir
para a melhoria da qualidade de vida de uma pessoa.
Em muitas situações, crianças, jovens e adultos,
necessitam de incentivos e modelos externos para iniciar e
concluir uma atividade que requer uma transformação da
atenção em energia organizada e construtiva.
Nem sempre as tarefas que temos de realizar têm o
mesmo significado de uma experiência autotélica. Muitas
vezes fazemos coisas que não têm valor em si, mas
realizamos por questões fundamentais de sobrevivência
ou porque esperamos um benefício futuro. Pode-se então
oferecer condições para que muitas das ações realizadas
não tenham um desgaste de energia psíquica
desnecessário.
Em perspectiva de um esporte que evidencie a
absorção de informações de maneira ativa, utilizando
aptidões pessoais cada vez mais elevadas e observando
novas e mais complexas oportunidades de ação,
consegue-se fazer com que a vida transcorra de forma
menos entendiante ou ansiosa.
A busca da experiência máxima ou fluir para
praticantes da dança em cadeira de rodas deve ser um
dos objetivos macro dos profissionais envolvidos nesta
prática (professores da Educação Física, Pedagogos,
Psicólogos, médicos) no intuito de favorecer a melhor
experiência possível a seus praticantes. A partir dessa
experiência, inúmeros benefícios fisiológicos, psicológicos
e sociais serão proporcionados aos praticantes da dança
em cadeira de rodas auxiliando diretamente a inserção
desses indivíduos na sociedade.
É compatível ao homem desenvolver sua
capacidade de controlar a consciência para que possa
usufruir ao máximo sua energia de maneira positiva. Para
tanto é preciso criar condições favoráveis de
oportunidades e auxiliar na expansão de características
pessoais para vivenciar o fluir.
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STRATTON, P. e HAYES, N. (1994). Dicionário de
psicologia. São Paulo: Pioneira.
A SINGULARIDADE DAS IMAGENS MENTAIS NO
CONTEXTO DA DANÇA
Larissa S. Turtelli
M. da Consolação G. Cunha F. Tavares
A criação de imagens mentais é um processo que
funciona como mediador das relações do ser humano com
o mundo e consigo mesmo. É um fenômeno
extremamente individualizado, cada pessoa experiencia as
imagens de uma forma própria, e é um processo que
integra aspectos fisiológicos, afetivos e mentais.
Ao pensarmos na palavra "imagem" provavelmente
uma das primeiras significações que nos vêm em mente é
a de imagem visual, isto é, imagem no sentido de
desenho, foto, pintura, visualização de algo. No entanto,
as imagens não são apenas visuais.
Segundo Achterberg (1996), imaginação é "o
processo de pensamento que invoca e usa os sentidos:
visão, audição, olfato, paladar, sentidos do movimento,
posição e tato. É o mecanismo de comunicação entre
percepção, emoção e mudança corporal" (p.9).
As imagens não ocorrem necessariamente como
memórias ou imaginações de situações, são também
representações de sensações e processos de pensamento
que estamos tendo no presente. Segundo Damásio
(1996), é principalmente através de imagens que
constantemente apreendemos informações sobre o meio e
sobre o corpo. Formamos imagens visuais, imagens
sonoras, imagens olfativas, imagens de palavras, de
ações,
de
esquemas
relacionais,
imagens
somatossensoriais, imagens de equações matemáticas e
assim por diante.
Geralmente combinamos diversos tipos de imagem
ao fazermos uma representação. Quando comemos algo,
por exemplo, existe a representação visual da comida, sua
cor, forma, tamanho, o cheiro da comida, sua consistência
quando a mordemos ou cortamos, o som da comida se
desfazendo quando mastigamos, o gosto da comida, e
poderíamos ainda acrescentar outras imagens que nos
seriam dadas nesse aparentemente simples ato de comer.
Essas imagens que formamos a partir de
informações sensoriais vindas do meio externo ou do
interior do corpo são chamadas por Damásio de "imagens
perceptivas". Mesmo surgindo a partir de informações que
estamos recebendo do meio externo ou do corpo "no
presente", existe também uma participação de nossa
memória do passado na formação destas imagens. Uma
segunda categoria de imagens é a das "imagens
evocadas". Estas se formam quando recordamos algo do
passado, fazemos planos para o futuro ou simplesmente
fantasiamos uma situação.
Segundo Damásio, desempenham papel importante
na formação das imagens as áreas sensitivas primárias do
córtex cerebral que são as áreas somestésica, visual,
auditiva, vestibular, olfatória e gustativa. O autor destaca
que cada uma destas áreas é um conjunto de pequenas
"sub-áreas" que se relacionam entre si e com outras áreas
intimamente relacionadas a elas. Estes setores
intimamente relacionados atuam de maneira sincrônica e
coordenada formando representações topograficamente
organizadas que são a base para nossas imagens
mentais.
Quando vemos um objeto, por exemplo, sinais
emitidos pelos receptores da visão localizados na retina,
são transportados pelos neurônios ao longo de seus
axônios até chegarem ao cérebro, aos córtices visuais
primários localizados na parte posterior do cérebro, no
lobo occipital. No caso de sentirmos uma dor em uma
articulação, os sinais partem de receptores localizados nos
ligamentos e cápsula articular e chegam até os córtices
sensoriais primários, localizados nas regiões parietal e
insular. Em cada um desses casos temos um conjunto de
áreas envolvidas. Cada área é complexa em si e as
conexões que fazem umas com as outras são ainda mais
complexas. É a partir da ação coordenada das várias
áreas que formamos as imagens do que vemos, sentimos
e assim por diante.
Damásio ressalta que as representações neurais
topograficamente organizadas não são suficientes por si
só para a ocorrência de imagens na consciência. Elas
precisam estar correlacionadas com aquelas que
constituem a base neural para o "eu", do contrário, não
poderíamos estar conscientes da existência destas
imagens, não saberíamos que elas são "nossas" imagens.
Assim, na formação das nossas imagens perceptivas,
também têm um papel importante nossas vivências
anteriores e nosso estado emocional do momento.
Sobre o armazenamento das imagens, o autor
deixa claro que as imagens não são armazenadas em
forma de "fotos", "fitas de música" ou "filmes" de cenas de
nossas vidas. As imagens são reconstruídas a cada vez
que nos lembramos de algo.
Damásio acredita que as imagens que formamos
através da evocação de recordações (imagens evocadas)
são tentativas de réplica que fazemos dos padrões neurais
que ocorreram nos córtices sensoriais primários quando
experienciamos a imagem a primeira vez. Estes padrões
são aprendidos e passam a existir como padrões
potenciais de atividade neural, formando representações
dispositivas. Estas representações dispositivas existem
em pequenos núcleos de neurônios chamados de zonas
de convergência e localizam-se em várias partes das
áreas de associação de alto nível (nas regiões frontal,
temporal, parietal e occipital) e nos gânglios basais e
estruturas límbicas.
A imagem se forma quando essas representações
dispositivas disparam "para trás", voltando em direção aos
córtices sensoriais primários, fazendo com que os
disparos neurais ocorram basicamente nos mesmos
córtices sensoriais primários onde os padrões de disparo
correspondentes às imagens perceptivas ocorreram
outrora, desta forma, experienciamos novamente, no
presente, sensação semelhante a que tivemos quando
ocorreu o fato original.
No entanto, uma imagem evocada dificilmente tem
a vivacidade de uma imagem perceptiva. Isto depende das
circunstâncias em que as imagens foram assimiladas e
das circunstâncias nas quais elas estão sendo lembradas.
Além disso, quando vamos reconstruir uma imagem,
dificilmente conseguimos trazer de uma vez todos os
componentes que estavam presentes na imagem
perceptiva: cor, claridade, temperatura, cheiro, som e
outros. Estes elementos não existem todos armazenados
em nosso cérebro em um único lugar.
Conseguimos ter uma imagem "completa" de algo
quando sincronizamos o funcionamento de todos estes
córtices sensoriais primários de forma a ativá-los
conjuntamente em uma única "janela de tempo". Por outro
lado, como já vimos, existe um papel importante da nossa
subjetividade. A cada vez que criamos uma imagem, seja
perceptiva ou evocada, fará parte de sua construção o
significado que esta imagem tem para nós, faz parte nossa
memória, nossa emoção e nossa cognição. Assim, a cada
vez que imaginamos algo, criamos a imagem no presente,
dando-lhe a nossa interpretação atual do fato que ocorreu.
Nossas lembranças vão se modificando junto com o nosso
desenvolvimento.
Tanto as imagens que formamos quanto os
movimentos que fazemos, são avaliados e modelados
pelas partes do nosso sistema nervoso que têm como
objetivo manter a sobrevivência do organismo. Não
podemos produzir imagens se as partes do nosso cérebro
relacionadas à manutenção da homeostase não estiverem
intactas e cooperativas.
Existe uma troca constante de informações entre as
estruturas corticais e as subcorticais. Estas últimas, de
acordo com as informações que recebem das estruturas
corticais, desencadeiam reações que irão agir no corpo e
no próprio córtex.
Desta forma, a imagem de algo perigoso no meio
exterior irá excitar alguns padrões involuntários de
alterações do corpo. Estes padrões podem fazer surgir
uma emoção, como o medo, e irão influenciar nossa
reação (fugir? nos esconder?) e nosso próprio modo de
raciocinar. Também podemos desencadear estas reações
através de imagens evocadas, por exemplo ao passarmos
por um lugar onde outrora fomos assaltados, podemos
sentir medo, ter nosso batimento cardíaco acelerado e
"apressar o passo", pelo lugar nos trazer a imagem do
assalto.
As alterações corporais são inerentes ao processo
de formação das imagens. Quando imaginamos uma
ação, ou uma situação, quer seja ela uma recordação ou
uma fantasia, tendemos a ter as reações corporais que se
associam a essa situação. Ocorre, em maior ou menor
grau, um envolvimento de todo o corpo. Mesmo que
muitas vezes não se tornem facilmente observáveis
externamente, nosso corpo todo já está em movimento.
Quando decidimos realizar uma ação imaginada, esta
ação será executada de uma forma específica,
relacionada ao que imaginamos e às alterações corporais
que ocorreram devido a esta imagem.
Penna (1990), aborda este assunto dizendo que
existe uma "ação preparatória" nos músculos antes de ter
a contração muscular em si, que irá fazer com que a
contração possa ser mais forte ou mais fraca.
Transparecerá no nosso movimento o significado que
aquela ação tem para nós. Um movimento pode ser feito
de diferentes maneiras de acordo com a intenção da
pessoa ao realizá-lo.
O uso de imagens faz parte das práticas de dança,
esportes, trabalhos de consciência corporal e outros.
Dependendo da imagem que criamos, produzimos
movimentos com diferentes qualidades. Encontramos
estudos onde foram abordados os usos de imagens em
trabalhos de dança (Franklin, 1996a e 1996b; Overby,
1990), Feldenkrais (Ginsburg, 1999; Wright, 2000),
dança/movimento terapia (Ambra, 1999; Fairweather,
1994) e ideokinetic, que é uma prática que enfoca o uso
de imagens para produzir movimento (Franklin, 1996a e
1996b; Fairweather e Sidaway, 1993). Além destes,
existem estudos que abordam o potencial do uso de
imagens para produzir alterações em nosso organismo,
inclusive envolvendo o sistema nervoso autônomo
(Achterberg, 1996; Schilder, 1999; Damásio, 1996).
Achterberg (1996) enfoca a utilização de imagens
para auxiliar nos processos de cura. A autora enfatiza o
fato das imagens poderem provocar alterações no sistema
nervoso autônomo: "A imagem mental ou matéria-prima da
imaginação afeta intimamente o corpo. [...] O experimento
mental [...] de uma corrida, em competição, evoca
alteração muscular, e mais ainda: a pressão sangüínea
sobe, as ondas cerebrais se modificam e as glândulas
sudoríparas se ativam" (p.9).
Achterberg coloca a imaginação como tendo um
papel importante no estabelecimento de um vínculo entre
pensamentos e alterações físicas. Ela fala que através da
criação consciente de imagens (pensamento), podemos
provocar alterações no funcionamento do corpo. Em suas
palavras:
[...] as imagens afetam direta e indiretamente as
reações físicas e, por sua vez, são afetadas por essas
reações. As imagens podem envolver qualquer sistema
sensorial, mas também podem ocorrer na ausência de
estímulo externo apropriado (isto é, ondas de luz, ondas
sonoras, moléculas de odor). Acredita-se que as imagens
gerem estados de reação interna, semelhantes aos
estímulos reais, mas não necessariamente idênticos. Por
exemplo,
durante
experiências
de
visualização,
normalmente, o córtex visual é ativado, mas as vias
visuais periféricas como a pupila podem ou não estar
envolvidas (p.116).
Achterberg (1996) ressalta que "as imagens têm um
efeito direto sobre o corpo. O efeito da imagem foi notado
não apenas no sistema musculo-esquelético, mas também
no sistema nervoso autônomo ou involuntário" (p.117).
As reações corporais decorrentes de imagens
podem ocorrer em diferentes amplitudes. Quando há um
maior
envolvimento
emocional,
aumentam
as
possibilidades de que ocorram modificações corporais
mais intensas. Algumas imagens nos remetem a
determinadas emoções e assim desencadeiam os
processos de reação corporal que lhes são característicos.
Schilder (1999) coloca que "quando há uma
figuração criada por um impulso emocional, esta influencia
o sistema vegetativo do corpo" (p.195). Ele fala que
"alguns músculos que geralmente se encontram fora do
alcance da inervação voluntária podem ser exercitados
[...]. Também podemos exercitar até certo ponto as
funções vegetativas, reforçando as figurações conectadas
com determinada função" (p.199). Ele chama as imagens
que fazem com que consigamos influenciar indiretamente
as partes internas do corpo de "representações-chave".
Exemplifica:
Não podemos decidir aumentar os batimentos do pulso,
mas podemos imaginar que estamos numa situação
ameaçadora e, assim, alterar a pulsação. A representação
de uma situação assustadora é a representação-chave
para o coração e, também para a dilatação da pupila. A
representação de alimentos desagradáveis é a
representação-chave para alguns tipos de salivação,
náusea, vômitos e, provavelmente, para uma alteração do
suco gástrico (p.203).
Estas representações-chave são individuais, ligadas
à história de vida de cada pessoa. Um alimento pode
representar algo indigesto para uma pessoa e para outra
não. Uma situação pode ser ameaçadora para uma
pessoa e para outra não.
Na prática diária das atividades corporais,
freqüentemente são usadas imagens para ajudar os
alunos a perceberem seu corpo e a se colocarem em um
alinhamento adequado. Estas imagens geralmente são
visuais, podemos por exemplo dar a imagem de um eixo
vertical que atravessa o corpo de cima a baixo, ou
somatossensoriais, tanto através do toque, quanto através
de incentivar o aluno a perceber a imagem de seu próprio
corpo na postura adequada.
Através das imagens podemos influenciar todo o
nosso corpo, podemos influenciar o sistema nervoso
visceral e o sistema nervoso somático. Elas permitem
termos ações integradas do corpo, ao invés de estarmos
tentando comandar isoladamente cada uma de nossas
partes.
Uma prática que usa largamente a produção de
imagens como ferramenta para o movimento é a
ideokinetic. A ideokinetic é uma técnica de realinhamento
postural que se baseia no princípio de que através das
imagens podemos acessar controles subcorticais do
movimento, geralmente de difícil acesso consciente
(Fairweather & Sidaway, 1993).
Esta técnica foi sistematizada por Sweigard entre
1929 e 1931 (Franklin, 1996a). Segundo Fairweather &
Sidaway (1993), o objetivo deste método é o de melhorar
o alinhamento e o equilíbrio das estruturas do esqueleto
através de técnicas de visualização. Ainda segundo estes
autores, o método de visualização usado na ideokinetic
requer dos sujeitos que formem imagens que provocam
sensações e movimentos e acabam por "aumentar" a
"consciência" do corpo dentro do sistema subcortical.
Franklin (1996b), aborda os princípios da
ideokinetic, relacionando-os com o alinhamento postural e
também com a dança. Ele sistematizou diversos tipos de
imagens geralmente trabalhados nas aulas de dança e
defende uma prática regular de visualizações para ajudar
em diversos processos relacionados ao movimento. O
autor categoriza as imagens em quatro grandes grupos,
salientando, no entanto, que estes quatro grupos
geralmente se combinam. São eles: imagens sensoriais,
imagens diretas e indiretas, imagens abstratas e
concretas, imagens internas e externas.
Imagens sensoriais
São as imagens visuais, cinestésicas, táteis,
proprioceptivas, olfativas, auditivas e gustativas. O autor
ressalta a relação entre as imagens cinéstesicas e táteis.
Muitas vezes as imagens táteis são necessárias para que
possamos formar as imagens cinestésicas, pois
precisamos primeiro ter as experiências em nosso corpo
para depois podermos imaginá-las e combiná-las de
diferentes maneiras criando novas imagens. A
propriocepção geralmente não é considerada uma
categoria separada de imagens, mas o autor prefere
distinguí-la da cinestesia, atribuindo à propriocepção
imagens relativas à posição do corpo e à cinestesia
imagens relativas à sensação física dos movimentos.
Imagens diretas e indiretas
As imagens diretas são as representações não
verbais que fazemos de nossos movimentos durante
nossa ação. As imagens indiretas são metafóricas,
projetamos uma imagem externa no movimento para
clarearmos seu processo de funcionamento (por exemplo
a imagem do eixo que citamos anteriormente).
Imagens abstratas e concretas
O autor classifica as imagens abstratas como
aquelas que não são totalmente delimitadas, isto é,
permitem que surjam imagens do interior da pessoa para
completá-las. Por exemplo, podemos imaginar que há algo
nos atraindo para determinado ponto do espaço. Cada
pessoa irá projetar neste ponto o que tiver significado de
atração para ela naquele momento. Já nas imagens
concretas, existe um acordo consensual de que todos irão
ver algo semelhante, por exemplo, imaginamos que
estamos esticando um elástico de borracha.
Imagens internas e externas
As imagens podem ser categorizadas pelo local
onde elas estão situadas em relação ao corpo. Podemos
situar a imagem dentro do corpo, na superfície do corpo,
no espaço bem próximo de nós, num espaço um pouco
maior, mas ainda a uma distância pessoal, ou envolvendo
todo o meio externo, por exemplo, se imaginamos
estarmos em uma praia.
O autor ressalta que para utilizarmos de maneira
sistemática as imagens, precisamos primeiramente nos
colocar em um estado mental de concentração, isto é,
focalizarmos todo o nosso pensamento em um único
ponto, uma única idéia. Isto envolve primeiramente
tentarmos não fixar nosso pensamento em nada,
deixarmos nosso pensamento vazio. Segundo Franklin
(1996b), "a mente intelectual e analítica precisa ser
acalmada para que ela possa se tornar receptiva às
imagens" (p.56; tradução nossa). O autor sugere que
prestarmos atenção em nossa respiração é algo que ajuda
a conseguirmos nos concentrar.
Franklin ressalta a importância das imagens que
iremos utilizar terem ligação conosco. Por um lado, é
necessária uma "ligação vivencial". Como vimos
anteriormente, as imagens são baseadas em experiências.
Uma criança, por exemplo, não consegue imaginar um
objeto se ainda não tiver experienciado este objeto.
Depois de ter vivenciado uma série de percepções
sensoriais relacionadas ao objeto ela será capaz de
imaginá-lo e, se quiser, de imaginar a si própria como
sendo o objeto.
De forma semelhante, se não tivermos o
conhecimento prático de fatores envolvidos em
determinada imagem, não seremos capazes de
experienciá-la. Talvez tenhamos apenas um "filme" em
nossa mente, mas não conseguiremos nos sentir estando
"dentro" deste "filme". Isso acontece muito relacionado às
partes do corpo. Pessoas não habituadas a ter contato
com o próprio corpo podem não conseguir, por exemplo,
imaginar que "suas costas estão derretendo como
manteiga" (p.61; tradução nossa). Talvez elas visualizem
isto mas não sintam isto em seus corpos. Elas podem
precisar do toque para terem a percepção destas partes
de seus corpos e da direção descendente em seus corpos.
Por isso, muitas vezes o trabalho com imagens é feito
junto com um trabalho de percepção cinestésica, que
favorece que a pessoa consiga de fato vivenciar as
imagens em seu corpo.
Por outro lado, Franklin observa que a relação da
pessoa com a imagem também precisa ser emocional
para que haja movimento. Se a pessoa não se identificar
com a imagem, não se sentir motivada por determinada
imagem, provavelmente ela não irá responder fisicamente.
De alguma forma, a imagem precisa ter relação com a
própria história de vida da pessoa e com suas
necessidades atuais. O autor acrescenta ainda que a
imagem precisa ser clara, tendo localização e direção
precisas no corpo, pois é preciso que a pessoa possa
compreendê-la claramente para assim ser capaz de
construí-la para si.
A partir dos estudos de Franklin (1996a e 1996b),
podemos destacar diferentes formas de usar imagens na
dança:
y imagens para ajudar no alinhamento postural e no
relaxamento;
y imagens para ajudar na performance física;
y imagens para a memorização de movimentos;
y imagens como "inspiração", "ponto de partida", para
movimentos e coreografias;
y imagens para dar diferentes qualidades expressivas aos
movimentos: intenções, emoções.
Overby (1990) também enfoca o uso de imagens na
dança. De maneira semelhante a Franklin ela destaca que
as imagens são usadas freqüentemente no ensino da
dança para:
y ajudar no alinhamento postural;
y aumentar a percepção cinestésica;
y encorajar a exploração criativa dos movimentos.
Segundo a autora, o alinhamento correto é
enfatizado constantemente em todos os níveis do
treinamento em dança. As imagens são utilizadas para
treinar os bailarinos a moverem segmentos do corpo e o
corpo todo a partir de uma imagem interna ao invés de
imporem uma imagem externa arbitrária (menciona Hays 6 ,
Sweigard 7 , Todd 8 ).
Outra área que utiliza as imagens é o aprendizado
de passos. A dança moderna algumas vezes é ensinada
com o uso de imagens para aumentar a consciência
cinestésica dos movimentos dos estudantes (menciona
Hawkins 9 , Hayes 10 , Hays 11 , Sherbon 12 ).
6
HAYS, J.F. Modern dance, a biomechanical approach to teaching. St.
Louis: C.V. Mosby Company, 1981.
7
SWEIGARD, L. Human movement potential: Its ideokinetic facilitation.
USA: Dodd, Mead and Company, 1974.
8
TODD, M.E. The thinking body. USA: Paul Hoeber, Inc, 1937.
9
HAWKINS, A.M. Creating through dance. Englewood Cliff, NJ: PrenticeHall, 1964.
10
HAYES, E.R. An introduction to the teaching of dance. New York: The
Ronald Press Company, 1964.
11
HAYS, J.F. Modern dance, a biomechanical approach to teaching. St.
Louis: C.V. Mosby Company, 1981.
12
SHERBON, E. On the count of one: Modern dance methods. Palo Alto,
CA: Mayfield Publishing Co, 1975.
Uma terceira área do envolvimento entre as
imagens e a dança é na coreografia. A autora acredita que
é
onde
a
imagem
tem
um
papel
maior,
independentemente do estilo de dança. Segundo a autora
os elementos da dança são "embelezados" através do uso
de sugestões que provocam imagens (menciona Ellfeldt 13 ,
Humphrey 14 ).
Vemos no uso de imagens na dança a vantagem de
permitir que cada pessoa expresse o seu movimento de
maneira individualizada. A formação de imagens é algo
extremamente individual, envolve experiências passadas,
estados emocionais, desejos. Mesmo que uma única
imagem seja sugerida para várias pessoas, cada uma irá
formá-la de acordo com sua própria experiência, seu
próprio modo de ser e de se mover.
Cada ser humano possui uma forma única de
vivenciar o mundo. "Essas diversas imagens [...] são
construções do cérebro. Tudo o que se pode saber ao
certo é que são reais para nós próprios e que há outros
seres que constroem imagens do mesmo tipo. [...] Não
sabemos, e é improvável que alguma vez venhamos a
saber, o que é a realidade 'absoluta'" (Damásio, 1996,
p.124).
Assim, quando usada em relação ao movimento, a
imagem mental torna-se um modelo que não dá uma
forma, mas um estímulo, uma intenção, que irá sugerir um
caminho para que a pessoa possa chegar à sua própria
forma. No entanto, como já salientamos, há a necessidade
do envolvimento afetivo da pessoa com a imagem para
que esta possa ser efetiva na relação com o movimento.
13
ELLFELDT, L. A primer for choreography. Palo Alto, CA: National
Press Books, 1971.
14
HUMPHREY, D. The art of making dances. New York: Holt, Rinehart &
Wintson, 1959.
Observamos em alguns estudos que são sugeridas
imagens que ajudam a produzir movimentos com
qualidades específicas, de acordo com diferentes
objetivos, como relaxamento, melhora de performance,
criação coreográfica, alinhamento postural. No entanto, é
pouco ressaltada a produção de imagens que surge da
pessoa a partir de seus movimentos.
Segundo Schilder (1999), podemos criar imagens
de situações que relacionamos a determinados
movimentos e determinadas emoções:
A inter-relação entre seqüência muscular e atitude
psíquica é tão íntima que, não só a atitude psíquica se
conecta com os estados musculares, como também toda
seqüência de tensão e relaxamento provoca uma atitude
específica. Uma seqüência motora específica altera a
situação interna e as atitudes, provocando até uma
situação fantasiada que se adapta à seqüência muscular
(p.230).
Ele relata uma experiência na qual foi pedido a uma
mulher que fizesse um gesto de súplica. A mulher em seu
relato fala das suas sensações corporais e fala que havia
uma pessoa imaginária a quem ela suplicava, fala ainda
que quanto mais ia chegando perto desta pessoa
imaginária, mais iam se intensificando seus movimentos.
Cada movimento que realizamos tem um significado
para nós. Se dermos atenção às imagens que produzimos
a partir do movimento, poderemos ter um contato com
nossa própria experiência corporal em uma dimensão
mais ampla. Poderemos obter dados sobre as correlações
de nossos movimentos com outros aspectos de nossas
vidas.
Muitas vezes acontece uma dissociação entre o
movimento e seu sentido (sentido este representado nas
imagens individuais produzidas pela própria pessoa no
movimento). Surgem assim os movimentos "abstratos"
referidos por Gonçalves (1994, p.149). São aqueles
movimentos que não têm significado para a pessoa que os
realiza, são aqueles movimentos efetuados de forma
mecânica e repetitiva. A execução de movimentos com
estas qualidades tem implicações no tipo de engajamento
da pessoa com o mundo que estará sendo estabelecido.
A prática de atividades físicas, realizada de forma
mecânica, simplesmente reativa, sem criatividade e
participação do aluno e sem seu conhecimento das
transformações ocorridas em seu corpo, está cooperando
para a formação de um indivíduo apático, que deixa de
interpretar o mundo por si próprio, para se abandonar à
interpretação dos outros, um indivíduo que se adapta a
este mundo, sem questionar seus absurdos e que não se
sente engajado em uma ação transformadora (Gonçalves,
1994, p.149).
Na prática da dança, enquanto arte, a importância
dos sentidos do movimento adquire ainda outras
dimensões. A dança trata de comunicação de significados
que são sentidos no corpo de quem dança e de quem
assiste. As imagens são criadas nos corpos dos bailarinos,
no palco e nos corpos da platéia.
A dança precisa ter conexão com a experiência
individual e única do bailarino e com o contexto maior,
sócio-cultural, do momento específico que vivenciamos.
Através do movimento sensível, e sentido, do bailarino
iremos renovar nosso olhar da realidade na qual nos
encontramos inseridos. A arte desperta reflexões e
"sentires".
A dança, de acordo com Garrett (1993), é uma arte
e uma forma de comunicação que leva as pessoas à
reflexão sobre elas mesmas, seus modos de viver e sua
cultura. É uma atividade que unifica os processos
intelectuais, emocionais e físicos, provendo um meio de
atingir a autoconsciência, o autodesenvolvimento e a autosatisfação. É uma experiência que permite aos indivíduos
estruturarem sua experiência de si mesmos no mundo
através do movimento.
Segundo Albright (1997) a dança não pode ser vista
como
"imagens
de
movimento"
que
ocorrem
independentemente da pessoa que está no palco
dançando. A dança contemporânea focaliza "nas
experiências físicas, emocionais e culturais específicas do
bailarino no momento da dança" (p.xxvi).
Por outro lado, vemos que muitas vezes são
reproduzidos na dança "modelos de perfeição". São
enfatizadas capacidades técnicas de performance que
nada têm a ver com as individualidades das experiências
vividas dos bailarinos. O movimento se torna uma forma
vazia e a dança perde sua característica de arte.
Albright ressalta que a dança, baseada no corpo
vivo, não diz respeito apenas à graça, leveza, virtuosismo
e formas perfeitas definidas pela cultura, diz respeito a
limitações, suor, respiração ofegante e "erros" técnicos, diz
respeito a uma identidade que está no palco, e cuja
presença é carregada de significados (p.74).
Não somos todos iguais. A dança precisa ser criada
em cada corpo que a recebe e nela se expressa.
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M. Consolação G. Cunha F. Tavares
A imagem corporal inclui aspectos conscientes e
inconscientes que são interrelacionados e interagem com
o mundo externo a todo instante, conferindo à imagem
corporal um caráter variável e dinâmico, já reconhecido e
apontado por Paul Schilder nas primeiras décadas do
século XX. Nessa perspectiva, a consciência do corpo, o
esquema corporal, o auto-conceito, a auto-estima e muitas
outras questões relacionadas a variados aspectos (
sociais, fisiológicos, ambientais ou afetivos) se conectam
de forma integrada em experiências de percepção de
nosso corpo como um todo, ou seja, formam a nossa
imagem corporal.
Quando nascemos, somos um corpo mas temos
pouco conhecimento disso. No entanto, nesta época,
estamos imersos no processo de construção de nossa
identidade corporal a partir de experiências corporais
conferidas, em grande parte pelas nossas primeiras
relações com o mundo externo. Esse processo de
desenvolvimento ocorre durante toda a existência do ser
humano, mas de forma mais intensa nos primeiros meses
e anos de vida. Nessa época, o volume, a forma e as
funções fisiológicas de nosso corpo estão passando por
rápidas e visíveis transformações. E nos planos sociais e
afetivos ocorre situação similar. As memórias corporais
registradas neste período são fundamentais para a
organização de nossa identidade e consequentemente de
nossa imagem corporal.
A
imagem
corporal
é
uma
experiência
essencialmente particular. A partir dela, cada indivíduo
dimensiona o sentido de suas ações, de suas percepções
e o fluir de seus impulsos. Esta imagem refere-se à
representação da identidade corporal que é construída a
partir da integração de experiências de percepção ligadas
ao corpo de cada indivíduo. Nossos movimentos nos
posicionam em um universo de percepções o que nos
define como um ser humano em um mundo de relações.
Desta forma, os movimentos são repletos de significados
para quem se movimenta e para as outras pessoas ao
redor, são resultantes das relações do indivíduo consigo
mesmo e com o mundo
e são decisivos para o
delineamento das experiências corporais.
A possibilidade do indivíduo reconhecer pela vida a
fora sua presença real e sentir que é reconhecido e
valorizado pela sua singularidade é ponto chave para o
desenvolvimento de uma imagem corporal integrada e
positiva. Garante a manifestação da subjetividade da
pessoa em um contexto saudável, produtivo e prazeroso,
onde a energia vital das pulsões flui nas atividades do
cotidiano.
O fenômeno da percepção corporal está no cerne
das questões relacionadas ao desenvolvimento da
imagem corporal. Toda experiência corporal é fonte de
percepções. A dança é uma experiência humana universal
intimamente ligada ao corpo e ao movimento. Desta
forma, quando olhamos para o corpo e o movimento como
fenômenos complexos, reconhecemos na dança uma
imensa fonte de experiências corporais repletas de
significados humanos.
Shontz
(1990)
identificou
sete
desempenhadas pela experiência corporal:
funções
1- Registro sensorial e processador de informações
sensoriais
2- Instrumento para ação
3- Fonte de necessidades, impulsos e reflexos
4- Espaço para um mundo privado, compartilhado
apenas em condições de máxima intimidade
5- Estímulo essencial para o “eu”.
6- Estímulo social
7- Instrumento expressivo
Estas funções não ocorrem de forma discreta ou
isolada, mas ocorrem de forma integrada em cada
experiência. Ou seja, cada experiência corporal apresenta
múltiplas funções. Observamos que em um primeiro
momento, cada uma delas apresenta um aspecto mais
evidente. Assim, a função três ( fonte de necessidades,
impulsos e reflexos) parece mais vinculada a questões
fisiológicas do corpo; a função seis ( estímulo social) se
refere ao impacto que o corpo e os movimentos causam
no outro; e a função sete ( instrumento expressivo ) aponta
uma ligação mais íntima com a questão simbólica. No
entanto, nenhuma destas funções faz sentido, fora do
plano existencial onde “cada parte” não se sustenta fora
do contexto universal. Ao mesmo tempo que causamos
impacto no outro, entramos em contato conosco e
deixamos fluir nossos impulsos, mantendo uma postura
corporal onde os reflexos são imprescindíveis como
pontos de sustentação.
As experiências corporais ocorrem naturalmente de
forma integrada. A forma como o corpo se apresenta para
nós mesmos em um dado instante, nossa imagem
corporal, reflete a função em destaque de nossa
experiência corporal naquele momento. Isto acontece de
forma dinâmica, muito flexível.
A ênfase exagerada e repetitiva sobre uma função
da experiência corporal pode abrir espaço para a
fragmentação das relações humanas e o estresse
corporal. Reflete uma imagem corporal rígida, pouco
dinâmica. Restringe possibilidades de novos contatos e
vivências.
As funções corporais apresentam nuanças entre as
pessoa com deficiência física. Por exemplo, a aparência
pode ser o estigma que fecha as oportunidades que são
abertas rotineiramente para os outros. A cadeira de rodas
no palco, por exemplo, pode ocupar o espaço de atenção
do público de forma a prejudicar a comunicação da
originalidade da arte através da dança. Esta barreira
evidencia uma fragmentação das experiências corporais
próprias do processo da dança e pode ocorrer tanto
naquele que dança como naquele que assiste a dança.
Se o que busco é mostrar ao outro e a mim mesmo
que posso dançar, estarei compromissado com a imagem
do que deveria ser para ser reconhecido como sujeito que
dança e esta imagem não traz nada de novo, apenas uma
pintura do que já foi estruturado em valores sociais. Minha
experiência corporal assim fragmentada restringe o
espaço de comunicação artística.
Para quem assiste um espetáculo de dança e só vê
o desempenho, o figurino, a cadeira de rodas, todo o
impacto que sentirá estará no quanto de extraordinário são
as cores, o custo do figurino ou a agilidade no manuseio
da cadeira de rodas. O aspecto simbólico do movimento
expressivo fica sem evidência neste contexto.
A comunicação da dança em cadeira de rodas pode
assim ocorrer em várias direções. No entanto podemos
diferenciar duas vertentes distintas: a primeira nos
comunica o quanto é diferente esta experiência corporal e
nos convida a reconhecer e aceitar as diferenças; a
segunda nos leva de encontro à linguagem simbólica, ao
nosso corpo como elemento expressivo e nesta
perspectiva estamos falando de uma dança universal que
comunica e une profundamente cada pessoa naquilo que
possui de mais profundo que é sua condição humana.
Comunicar a potencialidade de cada indivíduo,
observando seus avanços no desempenho motor,
descobrir e ampliar o repertório de movimento, apreciar
outras formas de interação com a cadeira de rodas são
algumas formas concretas de comunicação onde a
evidência se faz em valores e crenças e as óbvias
diferenças fisiológicas e anatômicas do corpo se
apresentam com significados diversos para cada
dançarino e cada espectador. A despeito dos méritos
desta atividade tanto nos planos políticos, de promoção de
saúde e integração social, acredito que a arte em sua
plenitude transcende estes caminhos, enveredando para o
plano do movimento expressivo, uma linguagem simbólica
essencialmente inconsciente.
Laban (1978) considera o movimento um processo
ligado ao pensamento, ao sentimento e a toda uma
estrutura interior. Ele aponta para cada movimento
aspectos tangíveis e intangíveis. O aspecto tangível seria
o gesto com seu significado utilitário. O significado tangível
de mover a cadeira de rodas tem a função de locomoção.
O intangível contém todo o significado especial de quem
pratica a ação de se locomover na cadeira de rodas. Neste
sentido cada movimento de dança em cadeira de rodas é
original pela sua relação com o dançarino. Os aspectos
intangíveis se referem às nossas singularidades e
transcendem a um plano de concretude pertencendo ao
plano do simbólico.
Alcançar alto rendimento nos movimentos sem dar
atenção aos aspectos intangíveis do movimento e sem ter
consciência do contexto como um todo é um caminho
perigoso que pode conduzir o dançarino a uma posição de
subordinação a valores externos com perigo de
escravização do próprio corpo. De outra forma resgatar e
assumir a essência da subjetividade nos movimentos de
dança em cadeira de rodas, amplia o espaço de
comunicação do simbólico.
Dolto (2001) considera a imagem corporal
totalmente inconsciente. Para ela, o esquema corporal
caracteriza o sujeito como representante de sua espécie.
De maneira diferente , a imagem corporal é distinta para
cada indivíduo, sendo a “encarnação simbólica do sujeito
desejante”. Nossa compreensão da imagem corporal não
contempla esta distinção. No entanto, as idéias de Dolto
(2001) poderão nos ajudar aqui a colocar em evidência
nossa singularidade, sendo esta a nossa maior
semelhança enquanto criaturas humanas no campo do
simbólico. Para ela, uma pessoa que tem uma lesão no
esquema corporal pode perfeitamente ter a sua imagem
corporal totalmente preservada.
Dolto (2001) distingue três modalidades de uma
mesma imagem corporal: imagem de base , imagem
funcional e imagem erógena. A imagem de base refere-se
“ a uma intuição vivenciada de estar no mundo”,
desprovido de qualquer meio expressivo; é o que permite
a “mesmice de ser”, a noção de existência. A imagem
funcional visa a realização do desejo; a partir dela as
pulsões após subjetivadas no desejo, tendem a
manifestar-se para alcançar prazer. Com a imagem
funcional
temos
assim
um
enriquecimento
de
possibilidades relacionais com o outro. O terceiro
componente, a imagem erógena, está associada a
determinada imagem funcional do corpo e apresenta
caráter eminentemente simbólico: refere-se a círculos,
bolas, buracos, traços, formas ovais e ponteagudas,
dotados de significados de projeção e introjeção com fins
agradáveis ou desagradáveis. As pulsões de vida mantêm
estas três modalidades de imagem corporal coesas numa
imagem dinâmica que se caracteriza assim como “o trajeto
do desejo dotado de sentido, indo em direção a um
objetivo .
A comunicação no contexto da dança nos leva a
refletir sobre o corpo no cerne das relações humanas.
Imagens da dança em cadeira de rodas ampliam reflexões
sobre o sentido da dança e a emergência de forma
universal do movimento expressivo como necessidade
humana. Consideramos a imagem corporal o elemento
que define a direção e dimensiona o sentido dos
movimentos e percepções de cada indivíduo. Imagem
corporal não é apenas uma representação do nosso corpo
no espaço. Não se trata de uma pintura com tonalidades
definidas e circunscritas. Inclui experiências emocionais,
aprendizagens, vivências de nossas fantasias e de nossas
relações sociais. A comunicação através do movimento
expressivo engloba esta dimensão humana complexa da
imagem corporal.
Dançar tem sido descrita e analisada de várias
formas. Conforme a circunstância, um determinado
aspecto se destaca e passa a ser o foco de nossa
atenção. Estudamos a técnica de dança buscando
alcançar melhor desempenho e ao mesmo tempo
preservar a saúde do bailarino. Observamos
os
movimentos da dança de várias culturas acreditando ser
esse um caminho de compreender a gestualidade inerente
aos vários povos. A direção de todas essas investigações
se remetem à forma como percebemos o movimento e
estamos aptos a assumi-lo no contexto de nossa
existência.
O corpo do dançarino desempenha funções
múltiplas quando dança na cadeira de rodas. A aparência
do corpo tem grande relação com valores e crenças. A
dança em cadeira de rodas comunica a presença do ser
humano no mundo e nos convida a um olhar para além
das aparências. Danos físicos causam particularidades na
experiência corporal mas não dano na imagem corporal se
a considerarmos no sentido de uma representação da
identidade do sujeito. O significado de uma experiência
corporal não pode ser limitado apenas às características
observáveis, à aparência.
Dança em cadeira de rodas tem criado um espaço
importante de comunicação entre corpos aparentemente
bastante diferentes. Mas na verdade, a comunicação mais
profunda entre os corpos que dançam reside no simbólico
que transcende às aparências e aponta a essência
humana. Nosso corpo encarna nossos impulsos e desejos
que se refletem em nossos movimentos. Assim, o espaço
de comunicação criado a partir da dança em cadeira de
rodas, emerge da necessidade que todos nós temos de
assumirmos a questão simbólica do corpo e dos
movimentos no contexto de nossas percepções
A dança em cadeira de rodas aparece assim como
uma manifestação humana que tem sido vista e
reconhecida de várias formas como caminho para a
superação e descoberta de potencialidades ou espaço
para a revisão de valores éticos e estéticos. No entanto, é
sua função como instrumento expressivo que garante de
forma mais profunda uma comunicação que privilegia
nossa condição humana e nossa individualidade. Dano no
corpo pode alterar a experiência corporal mas a imagem
corporal pode permanecer coesa, integrada e inteira.
Modificação nas experiências corporais não implica
necessariamente em mudança na identidade corporal.
Usamos a linguagem corporal de forma constante.
Nossas experiências corporais têm entre outras funções,
aquela de instrumento expressivo. O movimento
expressivo tem suas raízes na questão simbólica. Nossa
imagem corporal integra o aspecto simbólico que nos
coloca em profundo contato com as outras pessoas. A
dança em cadeira de rodas é um espaço muito especial
para ampliarmos nosso contato interno e expandirmos
nossa comunicação com nossos semelhantes na
dimensão do simbólico.
Referências bibliográficas
Dolto, F. A Imagem Inconsciente do corpo. São Paulo,
Perspectiva, 2001.
LABAN, R. “ O Domínio do Movimento” Apud: AGUIRRE,
Ana Maria de Barros. O Corpo transformador: Trabalho
Corporal em Psicologia Clínica. São Paulo, 1986, 150p.
Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo.
Schilder, P. A Imagem do Corpo – As energias
Construtivas da Psique. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
Shontz, F. C.” Body Image and Physical Disability” In :
Cash, T. F. & Pruzinsky, T. Body Images – Development,
Deviance and Change. New York, The Guilford Press,
1990.
Entre a contemplação e a praxis:
a dimensão estética pela Arte
Maria José Justino*
Apregoava um artista, Jean Dubbuffet, ser o papel
do artista o de embaralhar as categorias habituais,
deslocá-las e, desse modo, restituir à visão e ao espírito
sua ingenuidade, seu frescor. Tinha profunda razão. Ao
nos debruçarmos na história, vemos que a arte vem
desempenhando papéis diferentes em nossa vida, nunca
perdendo sua função principal: a de ser uma forma de
relacionamento com o mundo, percepção e conhecimento.
Desse modo, é ela responsável pela dimensão estética
em nossa educação, certamente, aparecendo sempre com
vestiduras e valores diferentes, mas com uma existência
própria que exige ser percebida.
Na linha da fenomenologia, o valor ou desvalor
estético não reside na condição real de um objeto, mas
em sua condição de fenômeno. Quem se ocupa da
reflexão dessa dimensão no homem, com o estatuto de
disciplina filosófica, é a Estética, que procura ser objetiva e
experimental, fazendo uso
das outras áreas de
conhecimento: psicologia, sociologia, história etc.
Comungo com aqueles que a entendem não como parte
da filosofia, mas como toda a filosofia concentrada nos
problemas da arte. A sua principal tarefa é o estudo do
objeto estético na sua singularidade. A Estética é uma
reflexão sobre as artes do mesmo modo como a
epistemologia é uma reflexão sobre as ciências. Ela faz
gnoseologia, ontologia, fenomenologia, teoria do sentido.
Filosofia que é, a Estética recorre a métodos de reflexão
e análise que lhe possibilitem um retorno do pensamento
sobre suas intuições espontâneas e vivências, para que
possa traduzi-las em conceitos. No entanto, o seu objeto
difere dos objetos naturais. O objeto estético é o que é
artisticamente criado e
percebido. Portanto, há uma
característica
predominante
na
abordagem
fenomenológica: o objeto estético é uma criação que
inclui em si o criador e o espectador.
Embora seja possível uma experiência da beleza
na natureza ou na ciência, é na arte que o homem
experimenta essa dimensão de forma mais intensa e
completa. A arte sempre desempenhou papéis na vida
do homem, mas só o faz em sua plenitude quando
exercitada com liberdade, quando a entendemos como
autônoma. Autonomia é o entendimento de que a arte
significa e vale em si mesma, o que não mostra
independência em relação à sociedade e à cultura. A arte
é constituída exatamente no interior desta ambigüidade:
possui uma existência autônoma e está imbricada em
uma cultura, é fato social. Portanto não podemos reduzi-la
a produto: a arte é organizadora (Benjamin), ela constrói,
ela é uma das faces da cultura.
Sendo assim, o objeto artístico não carrega, a priori,
uma aptidão estética. Trata-se de uma questão de valor
que emprestamos a ele. Por exemplo, as vênus
paleolíticas adquirem uma função estética com o homem
moderno. É possível que na ocasião em que foram feitas
ocupassem
outras funções, mágicas certamente. Na
história da arte, inúmeros são os exemplos de mudanças
de função dos objetos. Desse modo, os limites entre a
função estética e funções não-estéticas são oscilantes.
Para que a arte ganhe o estatuto de fenômeno estético,
ela depende, como já dissemos, da cultura e dos
respectivos registros de valores. Todavia, é exatamente a
sua qualidade estética que pode ser atravessada por
outras funções.
Ao longo da história, encontramos a arte
desempenhando diferentes funções, das quais se ocupam
os pensadores: religiosa, ideológica (Hauser, Lukács) –,
educativa (Platão, Schiller), cognitive (Hegel, Benjamin,
Foucault, Heidegger). Mas todas essas funções são
secundárias ou derivadas. O
teatro de Brecht, por
exemplo, não deixa de ser educativo, mas essa não é a
sua função primeira, senão deixaria de ser arte. O mesmo
pode ser dito da obra de Bosch,
carregada de
religiosidade. O problema das significações deve estar
voltado às estruturas das ideologias. O escopo da arte é o
resultado estético, marcado ontologicamente por uma
ausência de função no sentido pragmático. Interessa o
que o objeto tem de informação, não semântica, mas
sintática, o objeto estético não é um em-si, é um signo e
fait social (Adorno). Nos objetos não-estéticos, a própria
finalidade pragmática é determinante de sua existência.
Sem dúvida, há um traço romântico no entendimento da
autonomia da arte.
Mas se não se resume a uma função pragmática, o
estético não é um em-si, uma essência, uma substância
acabada, cheia, antes é um vazio (ou como diria Sartre,
um para-si) que permite novas relações. É um ‘lugar’ que
nos remete à gratuidade, ao prazer, ao erótico, à criação.
Aparentemente inútil, ele é essencial na vida humana.
Claro que o estético
não pertence apenas à arte,
podendo ser experimentado em quaisquer outras esferas
(na ciência, na religião, na natureza, etc.). Ele não está
nas coisas: é muito mais uma relação, uma valoração, um
fenômeno. As coisas tanto podem gozar dessa função
estética como podem deixar de possuí-la. Depende dos
indivíduos
e da cultura. Podemos falar de uma
experiência estética da natureza (Kant, Dufrenne) ou da
experiência estética de um cientista quando, no ato de
descoberta, experimenta prazer (Moles). Mas é na arte
que essa dimensão melhor se revela.
É impossível estabelecer as fronteiras entre o que é
ou não é arte,
particularmente no tempo da pósmodernidade. Investigar a dimensão estética no homem é
repassar sua elaboração e vivência da arte. De certo
modo, Formaggio tinha razão ao dizer: Arte é tudo aquilo a
que os homens chamam arte (p. 9). A arte tem sido vista
como imitação da natureza,
representação de idéias,
beleza,
auto-expressão,
revelação,
conhecimento.
Revisitemos as culturas
através do tempo antes de
retornamos à asserção do italiano acima referida.
Da mimese à catarse
A cultura grega nos oferece um momento especial da
arte, na figura de um poeta. Homero, expressão maior
da arte grega, é o representante do ideal ético da
aristocracia. Para os gregos, aspirar à beleza é conquistar
a arete, isto é, a altivez e magnanimidade. A
beleza
significava nobreza e eleição, e seus heróis eram os
arautos da arete (Jaeger, p. 81). Jaeger,
que não vê
Homero como naturalista nem como moralista, critica
Platão e a escolástica de serem responsáveis por uma
visão árida desse poeta, que deve ser tomado "não como
um simples objeto da história formal da literatura, mas
como o primeiro e maior criador e modelador da
humanidade grega" (p. 44). É o Emílio educado no seio
da Natureza, como dirá Nietzsche (p. 34). Cabe a
Homero, ou seja, à arte, a educação e formação do povo.
Platão, outro grego ilustre, para quem arte não se
identifica com beleza, é autor do reconhecimento do
poder da arte enquanto fortalecedora ou destruidora do
caráter. Para esse
filósofo, a arte livre conduz à
desobediência, por isso mesmo é necessário censurá-la.
Platão não se furta em fazê-lo, mesmo sendo obrigado a
expulsar Homero de seu Estado Ideal. Na sua visão, o
artista está condenado à imitação da aparência de
verdade, imitando o físico, o sensível e não a essência,
estando, assim, duplamente afastado da verdade objetiva,
distante do real. O conhecimento difere da imitação, da
mesma maneira como a virtude se separa do vício. A
poesia e a arte são reduzidas à mimese das coisas
inferiores e só têm lugar em uma cidade bem policiada
(p. 238), que possua seu antídoto. A verdadeira arte,
exatamente pela sua maior qualidade – a liberdade –,
não tem lugar no projeto de Estado Ideal de Platão.
Aristóteles, discípulo de Platão, eleva a imitação a
um outro nível, e, do mesmo modo, a arte. Há nele uma
reabilitação da imitação como a primeira forma de
conhecimento.
Encontramos na Poética a seguinte
passagem: "A tendência para a imitação é instintiva no
homem, desde a infância (…) Pela imitação adquire seus
primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam
prazer” (p. 275). Nessa mesma obra, imitar é representar
uma ação ou um sentimento; é muito mais seguir um
modelo do que reproduzi-lo. A arte já aparece como
mediação entre o real e o ideal, como verossimilhança.
Mas a grande contribuição de Aristóteles, creio eu, reside
na definição da catarse, espécie de purificação por meio
da qual a arte – pelo terror, medo ou pela piedade –
acalma as paixões, equilibra a alma (Poética, p. 279).
Aristóteles estava pensando sobretudo no teatro e na
música. A arte é tomada aqui em sua função de
educadora, pela capacidade de
fazer o indíviduo
vivenciar especialmente no teatro (por identificação com
os personagens) experiências que o auxiliam a expulsar
os excedentes.
Da imitação à representação
A compreensão da arte como mimese estende-se ao
Renascimento, mas agora "o pintor imita a Natureza e
rivaliza com ela (Da Vinci, p. 30). Encontro e diferença: ao
mesmo tempo em que a natureza é um modelo a ser
imitado, a arte é vista como um campo separado. Isso
não impede de encontrarmos um crescente naturalismo
renascentista, particularmente na arte italiana, mas de
forma diferenciada do naturalismo grego. A arte ainda é a
imitação da natureza, enquanto similitude, visto estar
presente no Renascimento uma identificação entre
hermenêutica e semiologia, pois “procurar o sentido é
trazer à luz o que se assemelha” (Foucault, p. 50).
Contudo, essa mimesis caminha para uma forma de
representação mais sofisticada: à medida que muda a
compreensão
de natureza e de
realidade, esses
conceitos serão enriquecidos. Com o desenvolvimento das
ciências e do pensamento crítico, “as coisas e as palavras
vão separar-se” (Foucault, p. 68).
Esse debate alarga-se com Immanuel Kant, que
buscou resolver a dicotomia entre a natureza e a arte,
enfrentando o desafio de mediar a sensibilidade e o
entendimento, preocupado mais com o ser da arte do
que propriamente com a sua função, fundando a
peculiaridade e autonomia do gosto estético. O Belo,
agora passando a ser a categoria fundamental da arte,
reclama objetividade e universalidade e não se reduz a
agradável. A contemplação desinteressada da beleza não
é um conhecimento, pois não se submete à regra de um
conceito, do mesmo modo que o prazer estético não traz
nenhum conhecimento do objeto, uma vez que, para o
filósofo, uma
coisa bela revela uma ordem que não
significa nada, uma organização sem conceito: "Não pode
haver nenhuma regra de gosto objetiva que determine
por conceitos o que seja o belo, posto que todo juízo
desta fonte é estético, i. é., que seu motivo determinante
é o sentimento do sujeito e não um conceito do objeto"
(Kant, p. 71). Em Kant, a arte se distingue tanto da
natureza como da
ciência e do artesanato. A grande contribuição kantiana,
além de inaugurador das belas-artes, é a compreensão
de que a obra de arte não existe ontologicamente se não
é percebida numa intuição, favorecendo a fenomenologia.
Outro filósofo vem se somar a esse instigante
debate. Trata-se de Schiller,
que, de certo modo,
empresta concretude à abstração kantiana. Schiller vai
elevar a arte ao propor resolver, pela via estética, a
oposição entre espírito intuitivo e espírito especulativo,
entre natureza e cultura, desenvolvendo a teoria do jogo
estético (ou impulso lúdico). Nela, o homem assume a
sua natureza sensível sem negar a sua espiritualidade.
Para Schiller, a arte é filha da liberdade e quer ser
legislada
pela necessidade do espírito e não pela
carência da matéria: “Para resolver na prática o problema
político é necessário caminhar através do estético, pois é
pela beleza que se vai à liberdade” (p. 36). O homem só
atinge sua plenitude no estágio estético, no qual tudo é
cidadania: "O homem joga somente quando é homem em
pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno
quando joga" (p.
83). É essa capacidade de gratuidade, de poder fazer ou
sonhar sem diretamente estar atrelado à necessidade ou
ao utilitário, que separa o homem da barbárie. Creio
encontrar-se na visão schilleriana o momento áureo da
arte, pois ela não é uma representação que se confunde
com outras, mas a forma mais completa de expressão da
natureza humana. Schiller
acredita ser possível
modificar o homem pela via estética, elevando-o à cultura.
Essa elevação da arte encontra espaço na reflexão
hegeliana, embora não goze
do mesmo entusiasmo
schilleriano. A partir de Hegel, há um rompimento definitivo
com a harmonia renascentista entre homem e natureza.
Do mesmo modo que Kant, Hegel
identifica arte com
idéia e com beleza, mas o belo não é mais um julgamento
subjetivo, antes, é uma idéia no interior da realidade.
Hegel eleva a arte a uma forma de conhecimento: ela é
crítica,
mas não é senão uma revelação confusa da
verdade, visto ser uma manifestação sensível da verdade.
A arte, na visão hegeliana, é um conhecimento que não
está na representação, mas no ser. É o conceito se
realizando na forma sensível. Por possuir uma natureza
histórica, ela é
mortal: "A arte é, pois, incapaz de
satisfazer nossa última exigência de Absoluto. Já, nos
nossos
dias, não se veneram as obras de arte, e a
nossa atitude perante as criações artísticas é fria e
refletida. (…) A arte é para nós coisa do passado" (p. 47–
48).
Da sublimação à auto-expressão
Outras duas abordagens vêm se somar à reflexão
idealista: a freudiana e a croceana. Freud, embora não
possa ser considerado um esteta (ele mesmo se
considerava um profano na arte), ocupou-se também da
arte, mais atraído pelos conteúdos do que pela forma,
criando uma nova categoria: a sublimação. Leonardo da
Vinci é o bom exemplo para fundamentar essa tese de
Freud, que vê nele uma capacidade extraordinária para
superar os instintos primitivos (p. 73), na substituição da
vida
sexual pela arte e pela investigação (p. 23).
Sublimação vem do latim
sublimatio: ação de elevar,
remetendo também a sublime. É uma espécie de estado
de suspensão. Para
Freud, a realidade social impõe
obstáculos e censuras. A sexualidade joga um jogo
considerável
na vida do homem, mas ela pode ser
desviada de seu fim e orientada para fins superiores do
ponto de vista social. A arte seria uma dessas formas de
orientação. Substitutiva das tensões,
sublimadora da
libido, ela possibilita a realização dos fantasmas, tanto do
artista como do fruidor. No artista, a sublimação ocorre
pelo jogo de forças psicológicas, com a atuação do
inconsciente, não
resultando, pois, de uma decisão
voluntária. Convém não confundir sublimação com catarse
– trata-se de dois conceitos distintos.
O universo da arte continua instigando filósofos,
críticos e historiadores, de cuja provocação não escapa
Benedetto Croce. Continuador da estética hegeliana,
Croce entende a arte como sendo fundamentalmente
intuição ou expressão, embora nem toda expressão seja
artística: "O espírito não intui, senão fazendo, formando,
expressando” (p. 92). Para o pensador italiano, a vontade
de expressar reclama a vontade de ser compreendido,
remetendo, desse modo, ao desejo de comunicação. Não
obstante, há aqui um cuidado a ser tomado: nem sempre a
qualidade da expressão artística pode ser medida pelo
grau de comunicação (Van Gogh e tantos outros ilustram
bem essa situação). Do mesmo modo, não se pode
reduzir expressão a emoção. Expressão é um conceito
muito mais amplo e rico. Nem sempre o artista
experimenta a emoção
que a sua obra é capaz de
expressar e despertar no espectador, mesmo porque, em
determinadas linguagens, como o teatro, se o artista
experimentasse toda a dor do Rei Lear, de Shakespeare,
quando o interpreta, certamente não sobreviveria à
temporada de exibição da peça. Não existe expressão
sem linguagem, sem forma. Dese modo, a expressão só é
artística quando o artista alcança o nível da criação, o
nível do simbólico. A expressão pode ser de emoções, de
sensações ou de idéias. No entanto, qualquer que seja,
e Croce desenvolveu muito bem isso, requer aparecer
como forma artística, reclama ser posta em linguagem de
arte, que exige o novo. Arte é
o lugar da emoção
representada.
Revelação ou Manifestação do Ser?
O filósofo alemão Heidegger dá um passo que impulsiona
a arte a outros patamares: a arte participaria da natureza
da coisa, ela seria um acontecer da verdade. Esse modo
de acontecer da verdade distancia-se de Hegel, pois
agora não se trata de uma verdade inferiorizada, ao
contrário, a arte é uma das formas mais perfeitas do ser.
Ela é a instauração do próprio ser, estabelecimento de
mundo. "A obra de arte é em verdade uma coisa
confecionada, diz mais do que a mera coisa (…). A obra
faz conhecer abertamente o outro, revela o outro; é
alegoria (…).
Alegoria e símbolo são o marco de
representações dentro do qual se move há muito tempo a
caracterização da arte". (p. 40-41). O ser alegórico não é
um simples signo destinado a evocar uma idéia: é ele
próprio uma idéia revestida de um aspecto material que a
figura. A obra de arte tem por finalidade a apresentação
de um mundo e a produção da terra (natureza). Heidegger
entende
a criação como uma produção: no jogo
recíproco do mundo com a natureza, a arte desoculta. Ela
é abertura ou um
estabelecimento-manifestação de
mundo: verdade que não se reduz a exatidão;
é
desocultação do ente como tal: "A Verdade só acontece
quando se instala no campo de luta patente pela ação
dela mesma. Posto que a verdade é a oposição entre
alumbramento e ocultação, pertence a ela o que aqui se
chama instalação (p. 97). A instalação da verdade na obra
de arte é a produção de um ente tal que antes não era e
posteriormente nunca voltará a ser" (p. 98), ou
seja,
instalação de um mundo novo. Instalar aqui significa
ofertar, fundar, principiar e exige a contemplação.
Certa feita, disse Merleau-Ponty que a nossa
relação com a verdade passa pelos outros (Elogio, p.
47). Sem dúvida, o entendimento que temos da arte vem
sendo construido durante toda a nossa história. Walter
Benjamin soma-se a essa construção quando trabalha
com as interferências da sociedade industrial e, de certo
modo, antecipa, com uma percepção extraordinária, os
problemas advindos com a pós-modernidade, sendo o
principal deles a decadência da
função social de
determinadas formas artísticas. Esse extraordinário crítico
da cultura mostra como a reprodutibilidade técnica da
obra de arte modifica a relação da massa com a arte:
“Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista
diante de um Chaplin. O comportamento progressista se
caracteriza pela ligação direta e interna entre o prazer de
ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por
outro. Esse vínculo constitui um valioso indício social.
Quanto mais se reduz a significação social de uma arte,
maior fica a distância, no público, entre a
atitude de
fruição e a atitude crítica”(Benjamin, p. 187/8, grifo
nosso). Com o cinema, a arte volta a ser uma criação
coletiva. O que julgo fundamental na reflexão
benjaminiana é o passo adiante que ele oferece em
relação à estética romântica: o prazer da arte e a sua
gratuidade convivem
com o conhecimento. Não é
preciso optar por um lado, a arte é um lugar privilegiado
dessa convivência.
O mundo moderno acrescenta outras dificuldades.
Além da representação não se reduzir a similitude, das
palavras não marcarem mais as coisas (Foucault, p. 72),
do representar exigir trabalhar com as diferenças, sair da
natureza para o pensamento, o capitalismo do século XX
profissionalizou a mercantilização da arte. Tirando partido
da sacralização, uma forma quanto mais fetichizada e
distante do homem passa a ser mais valorizada enquanto
mercadoria. Criou-se mesmo um profissional para lidar
com essa nova mercadoria, o marchand – comerciante de
arte. A arte, embora seja também um produto, não pode
ser reduzida a mercadoria. Cinema não é creme dental.
Essa distinção entre a arte e outros objetos pode conduzir
a um novo equívoco, o da sua superioridade: querer que
a arte esteja acima de todos os outros valores. O reverso
da medalha também é um problema: atrelar a arte a uma
função ideológica ou didática pode anulá-la. Hitler, com o
nacional socialismo, ou Stalin, com o realismo socialista,
são bons exemplos do que não é arte. Hitler, defensor da
arte pela arte, aceitava matar homens, mas não destruir
obras de arte. É um equívoco colocar a arte em um
pedestal, valendo mais do que o próprio homem.
Stalin, por sua vez, reduziu a arte a um estafeta, menino
de recados da revolução.
Certamente, a arte é uma
produção humana e deve estar a “serviço” do homem.
Mas é somente enquanto “um exercício experimental da
liberdade” (Pedrosa, p. 110) que a arte cumpre seu papel
libertador, cognitivo, prazeroso e passa a ter sentido.
Não podemos esquecer que as formas artísticas
também são mortais – Hegel refletiu bem sobre essa
questão: uma forma artística pode nascer em determinada
sociedade e desaparecer ou perder sua importância em
outra. Os artistas modernos, particularmente os da
Bauhaus e os abstratos, reforçaram a autonomia da arte,
buscando alcançar a arte total, a arte
coletiva,
combatendo o individualismo e a arte pela arte. A
Bauhaus fez um esforço pela arte integrada à vida, à nova
sociedade, tomando-a mais como processo do que como
produto. Não deixa de ser uma bela utopia o desejo de
transformar a sociedade a partir do estético, mas é
necessário uma dose de
realidade ao utopismo
romântico. A arte é uma das faces de nossa vida, não a
única nem a exclusiva, convive com outras esferas: a
política, a econômica, a religiosa, a científica etc. Ainda
assim, ela desempenha um importante papel em nossa
formação.
Essa conquista da contemplação estética (sem o
desprezo pela vida prática) fica comprometida com a
experiência da arte levada ao extremo pelos artistas
conceituais, interessados no processo e não na forma,
para quem a idéia do artista vale mais do que o produto
acabado. Do raciocínio de
Rosenberg – "Para ser
verdadeiramente destrutiva em relação à estética, (a arte)
deveria renunciar à ação artística em benefício da ação
política" (Rosenberg, p. 216) – ao radicalismo de Kaprow
– "Todos os gestos, pensamentos e atos podem ser
transformados em arte, ao sabor dos caprichos do
mundo da arte. Mesmo assassinato poderia ser uma
proposição artística
concebível, embora impraticável"
(Kaprow, p. 34) – ainda tem sentido fazer arte? E o que é
essa arte? Para ambos, a arte é tudo – política,
antropologia, sociologia, história de vida –, menos
estética. Como lidar com as experiências radicais de
Lygia Clark, Hélio Oiticica ou Joseph Beuys, pensando,
respectivamente, nas obras Objetos Relacionais,
Parangolés e I like America and America likes me.
Processo sem produto? Fim da arte? Esgotamento da
dimensão estética? Abdicação da contemplação? Creio
que não. Os conceituais também são relativos. Embora
uma
experiência
importante, até mesmo pela
desmistificação que efetuam sobre a arte e a
negação do esteticismo, são apenas um momento da
arte e não o exclusivo. Tanto é verdade que os próprios
conceituais
retornam à preocupação com a forma,
particularmente Kosuth. Outros caminhos estão surgindo
e, certamente, novas formas virão. Mas é impossível
negar que a experimentação levada ao limite vem sendo
o carro-chefe da arte contemporânea.
Mas esse experimentalismo crescente não pode
autorizar tudo e matar a própria arte. Creio que a arte
não pode ser reduzida a ciência, embora dialogue com
ela; também não é filosofia, na medida em que não tem a
obrigação de labutar conceitos, nem de justificar nada; não
é técnica nem mero produto: a arte é uma das formas de
manifestação do ser. É uma experiência singular da
liberdade que nos ensina rigor mas também nos permite
desobedecer, transgredir; nos capacita a dizer não. Em
um mundo sufocado pela obediência, saber dizer não é
uma grande conquista.
A arte é essa forma sagrada de desobediêcia. Por
isso mesmo, é preciso
impedir o congelamento da
linguagem. O medo da arte, porque uma linguagem livre,
tem conduzido
parte da sociedade a
afastá-la, como defesa.
Certamente, vivenciar essa dimensão estética pode levar
a atingir pontos vulneráveis. A arte pode revelar o que
não queremos ver, pode dar prazer quando o negócio
não é o ócio, mas o trabalho controlado. A arte está
interessada no homem, mas na acepção mais larga
desse termo: no homem enquanto ser livre, educado para
a vida, que não teme riscos.
Voltemos agora ao início de nosso texto: Arte é tudo
aquilo a que os homens chamam arte. Sem dúvida, todas
essas concepções de arte envolvendo mimesis, catarse,
beleza,
verdade, conhecimento, sublimação, forma,
expressão, revelação do ser são sempre históricas, uma
vez que estão ligadas a um universo de valores culturais.
Cada cultura acaba criando a sua concepção de arte.
Parece-nos impossível uma definição geral e única que dê
conta da
própria universalidade da arte e de toda a
experiência artística em todos os tempos. Toda definição
exige uma situação no espaço e no tempo, e definir é
indicar os limites. Cada cultura tem o seu conceito de
arte, e, no interior dessa cultura, ele é verdadeiro e
absoluto. Quando comparado às outras culturas, torna-se
verdadeiro e transitório. Todas as definições são
constituintes da verdade da arte. Toda definição de arte
está, pois, ligada ao tempo vivido por determinado
homem, herdeiro e
criador de cultura. Arte é uma
constelação de momentos: imitação, expressão,
conhecimento, transgressão, devaneio, prazer. Mas de
todas essas funções, a mais importante talvez seja a mais
simples: a lúdica. Arte é essencialmente prazer. É claro
que o prazer artístico difere de saciar a fome, a sede, o
sexo. O prazer da arte é a afirmação de Eros contra
Thanatos. O cinema (sem dúvida, a forma artística mais
valorizada do século XX, ocupando o lugar que o teatro
teve na antiga
Grécia) favoreceu uma mudança no
comportamento do espectador, recuperando o prazer da
arte: ao ver um filme, o espectador se diverte sem deixar
de ser crítico. O cinema é uma forma
artística que
conjuga divertimento e pensamento. Como bem percebeu
Walter Benjamin, no cinema, o público pensa com a
imagem. Enquanto pensa, diverte-se, sente prazer. As
outras formas artísticas devem mirar-se nessa conquista
do cinema: conhecimento, trabalho e prazer podem
andar juntos.
Finalmente, toda força criadora escapa a uma
determinação absoluta: a arte segue sendo um enigma –
a capacidade simbólica do homem é que o impulsiona a
todo tipo de conhecimento e invenção. Aproximar-se da
arte, sem necessidade de refazer-lhe a gênese, nos
possibilita uma experiência estética única. E é o estético
que nos devolve à nossa humanidade, pelos gestos de
generosidade, de gratuidade, por nos permitir o prazer e
provocar a nossa inteligência. É
preciso indicar a
ilegitimidade
da
separação
entre
a
dimensão
contemplativa e a praxis, somar
ao praticismo da
globalização o Jardim de Epicuro, pois é na “alegria e não
no trabalho que o homem descobriu o seu espírito. A
conquista do supérfluo dá uma excitação espiritual maior
do que a conquista do necessário. O homem é uma
criação do desejo, não uma criação do necessário"
(Bachelard, p. 36-37).
Quanto à questão para nós dirigida em relação à
arte e educação, a melhor forma de tirar partido da arte
é praticá-la na sua liberdade: o que liberta, ensina.
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Reflexões sobre Dança em cadeira de rodas
MARIA BEATRIZ ROCHA FERREIRA
LAB. ANTROPO. BIOCULTURAL/DEAFAFEF/UNICAMP
Pesquisador CNPq - UNICENTRO
Introdução
A dança em cadeira de rodas faz parte da cultura
corporal da civilização contemporânea. Esta atividade
enquanto arte, recreação ou esporte, é uma atividade
complexa representativa da vida contemporânea
sofisticada e que traz em si a técnica e a criatividade. Ela
requer um conhecimento interdisciplinar advindo das áreas
da Educação Física, Educação Física Adaptada, Dança,
Antropologia, Medicina, Fisioterapia e Educação. Neste
trabalho, a dança em cadeira de rodas será tratada na
inter-relação destas áreas e mais especificamente da
Educação Física/Esporte e Antropologia.
A dança em cadeira de rodas artística/recreativa ou
esporte vem crescendo e tornado-se cada vez mais
visível, sua ação está inserida numa conjuntura maior de
mudanças na sociedade, uma maior conscientização dos
direitos de cidadão do deficiente, maior abertura de
setores da sociedade como os clubes, criação de ONGs
para fins específicos, apoios governamentais, programas
na mídia, etc.
Como atividade artística ou recreativa (termo
usado como sinônimo da primeira) ela já tem uma história,
que se inicia no final dos anos 60 na Europa. E como
esporte, o processo passa a ser mais institucionalizado e
burocrático. Nesta modalidade é uma atividade mais
recente, foi reconhecida em diferentes instâncias, tais
como 15 : Organização de Esporte Internacional para
Deficientes em 1989, Comitê Paraolímpico Europeu em
1993, Comitê Paraolímpico Internacional – CPI como
Esporte Paraolímpico dos Jogos de Inverno em 1997 e
como Esporte Paraolímpico em 1998. Entretanto desde os
últimos Jogos de Inverno em Salt Lake City (março de
2002) o CPI fez modificações no estatuto e entendeu que
para a DCR continuar a ser esporte paraolímpico deverá
ter maior representatividade, o que implica um número
maior de países praticantes e ser mais desenvolvida
globalmente. Caso contrário, ela participará de
campeonatos mundiais, nacionais e regionais.
A construção deste caminho, especialmente num país
da dimensão do Brasil, é demorada e custará a atingir a
população de base. O caminho é árduo, superar
preconceitos,
conseguir
apoios,
patrocínios
e
espectadores. E mesmo nas academias, ela ainda sofre
resistência, não foi inserida nos programas regulares das
universidades, em específico as Faculdades/Institutos de
Arte e Dança e Faculdades de Educação Física
(FERREIRA, 1988). Ela, enquanto atividade artística
começa a aparecer em programas de extensão das
universidades e associações de deficientes. A sua
característica complexa, por evocar a arte, o corpo em
movimento, o esporte e a recuperação, necessita de
estudos interdisciplinares, de conhecimento advindo de
diferentes áreas do conhecimento. Existem atualmente no
Brasil profissionais trabalhando de maneira integrada com
dança em cadeira de rodas, como professores de
educação física e de dança, fisioterapeutas e áreas
correlatas, visto a exigência do conhecimento
interdisciplinar. E diria mais, pelo seu caráter complexo,
15
http://www.paralympic.org/sports/sections/dance/general.htm
abrange diferentes aspectos do ser humano, o biológico, o
filosófico, o antropológico, o histórico e o sociológico.
O presente trabalho pretende abordar notas
fundamentais conceituais para se compreender a dança
em cadeira de rodas, quer como dança-artística, quer
como dança-esporte.
O reconhecimento da alteridade das diferenças e
diversidades bio- psico-sócio-culturais são condições
fundamentais para se compreender melhor a dança em
cadeira de rodas.
Como se conhecer e reconhecer algo que há tantos
anos ficou desapercebido por todos nós, excluído do
“conhecimento dito científico” das diferentes áreas de
conhecimento, dos palcos, das arenas, do radio, da
televisão, dos jornais, dos livros, das revistas?
Pergunto, como se pode compreender a dança em
cadeira de rodas como elemento da cultura corporal
contemporânea?
Como toda atividade humana, um dia ela começou a
ser desenvolvida, advinda das inter-relações de vários
fatores. E para a sua compreensão deve se levar em
consideração à pesquisa científica, o conhecimento
popular, a participação ou o silêncio da mídia, dos eventos
culturais, enfim do movimento em que ela está inserida. A
construção deste conhecimento é um processo dinâmico,
de reconhecimento, de identificação, de reflexão, de
retomada de valores. E só pode ser feita na interlocução
de diferentes áreas do conhecimento e com os deficientes
e não deficientes.
Digo mais, a construção deste conhecimento exige
esforços
de
todos
nós,
pessoas,
instituições
governamentais e não governamentais e mídia. É
importante retomarmos o passado, refletirmos sobre ele,
dimensionarmos o presente e avançarmos para o futuro.
Recorrendo a Norbet Elias (1994) diria que este processo
é demorado e interdependente de outros fatores da
sociedade, requerem mudanças na balança de poder, o
que pode gerar inseguranças, conflitos. E, portanto,
sociedades complexas geram um maior nível de incerteza
e mais criatividade é necessária nos processos de
mudanças sociais.
No caso da Dança em Cadeira de Rodas, onde
quase nada foi feito em termos acadêmicos, na mídia ou
na sociedade de maneira geral, pergunto, qual será o
caminho para o desenvolvimento desta atividade artística
ou esportiva?
Eu não tenho a resposta. Posso dizer que nos últimos
anos tomamos algumas medidas para proporcionar o
desenvolvimento desta atividade: a organização do I e o II
Simpósio Brasileiro da Dança em Cadeira de Rodas na
Faculdade de Educação Física da UNICAMP, produção de
Anais do Congresso e Publicações na Revista Conexões e
a criação da Confederação Brasileira de Cadeira de
Rodas. As reflexões de pessoas de diferentes setores, os
apoios institucionais, a participação do público muito já
contribuíram para se começar a pensar na dança em
cadeira de rodas.
Cultura corporal
Neste ponto do trabalho, esclareço que o termo
cultura corporal está sendo utilizado para realçarmos o
objeto de estudo - o corpo em movimento, num viés da
Educação Física e Esporte.
Cultura e cultura corporal não existem em separado,
a não ser por um recorte metodológico. Neste sentido,
cultura corporal está sendo entendida como um sistema
complexo de significados, com mecanismos de controles planos,
normas,
instruções
para
governar
o
comportamento no que tange ao movimento corporal. Esta
definição denota uma série de idéias interligadas como
sistemas complexos, valores, convivência em sociedade e
relações de poder, um corpo em movimento advindo do
processo adaptativo filo-ontogenéticos (Rocha Ferreira,
2001 a b).
Não basta reconhecermos que a espécie humana
assim como outras espécies nesta Terra são motrizes e
que o movimento é, portanto fundamental para a
sobrevivência. A definição da atividade física sob a
perspectiva biológica de Caspesen (1985) é reducionista,
pois define atividade física como qualquer movimento
produzido pelos músculos esqueléticos que resulta em um
gasto de energia. A dança em cadeira de rodas não é
somente um tipo de atividade física, mas é fundamental
olharmos sob outro ângulo, numa perspectiva sóciocultural, como uma atividade humana com significados
específicos intra e entre sociedades e civilizações e que
possui diferentes formas de representações e
manifestações. Portanto, numa visão antropológica e da
educação física, pode ser entendida como uma atividade
complexa do ser humano bio/sócio/emocional/espiritual e
inserida numa rede de significados culturais.
Neste sentido, os humanos representaram, ou
melhor, significaram o movimento através de diferentes
formas: atividades diárias, atividade física, exercício físico,
danças, jogos tradicionais, brincadeiras, esportes, artes
marciais, entre outras, com finalidades de trabalho, de
lazer, de recreação, de competição, de rituais religiosos
etc.
A dança em cadeira de rodas é, portanto um dos
elementos da cultura corporal contemporânea, a qual está
inserida numa rede complexa de significados. É importante
lembrarmos que a dança está presente em todas as
civilizações e culturas, desde as primeiras sociedades
hominídeas. E ela, assim como a dança em cadeira de
rodas é parte de uma teia de significados, em épocas e
local determinados, onde ocorrem a produção e
reprodução de valores, habitus, ideologias, identidades,
gênero, etc.
A pessoa portadora de deficiência e dança em
cadeira de rodas
Primeiramente quero abordar o aspecto biológico da
questão. As pessoas portadoras de deficiências
representam uma população que foi e ainda é excluída,
pois traz a marca da diferença. E esta diferença foi tão
forte na visão do outro, que a pessoa, como membro da
espécie, foi marginalizada durante anos. E, no entanto, ela
traz em si, a variação populacional geral da espécie, isto
é, além da deficiência ela tem uma carga genética, o que
explica porquê pessoas com a mesma deficiência têm
respostas diferentes aos fatores positivos ou negativos do
meio ambiente. Estas respostas dependem, portanto da
carga genética de cada um, da fase do crescimento,
maturação e desenvolvimento, idade e tempo de duração
do estímulo, do contexto sócio-cultural.
Nesta visão é importante tirar o foco da deficiência, e
por na pessoa como um todo, inserida na variação
populacional, com sua carga genética, potencial interativo,
capacidade de responder ao meio e construir relações
baseadas nas experiências da vida. É claro que a
deficiência é um fato presente, mas a pessoa é muito mais
do que a deficiência.
Ao tirarmos o foco da deficiência, começamos a
reconhecer a pessoa deficiente de maneira diferente.
Reconhecermos a diversidade bio-sócio-cultural e damos
os primeiros passos para o diálogo com o outro, é o início
do reconhecimento da alteridade, um outro diferente de
mim, mas não com a marca da deficiência. O
reconhecimento deste outro, como ser da mesma espécie,
com um potencial genético e psico-sócio-cultural que o
diferencia dos outros, mas que precisa de cuidados
especiais por ser portador de deficiência.
Rimmer (1999, 2002) mostra que até recentemente a
promoção da saúde para pessoas com deficiência tinha
sido uma área negligente na comunidade de saúde de
maneira geral. Mas que atualmente, pesquisadores,
agências financiadoras, agentes de saúde e pacientes
vêm liderando um esforço para estabelecer programas de
saúde de alta qualidade para milhões de americanos com
deficiências enfocando a atenção em reduzir condições
secundárias de problemas de saúde, tais como obesidade,
hipertensão, diabetes, osteoporose, visando manter a
independência funcional, promover uma oportunidade de
lazer e prazer e promover uma qualidade de vida
reduzindo as barreiras para uma boa saúde.
Historicamente o foco dos programas estava na
prevenção primária da deficiência e atualmente o foco é
na redução das condições secundárias de saúde em
pessoas portadoras de deficiências. Estas pessoas
portadoras, como por exemplo, de paralisia cerebral e
espinha bífida são susceptíveis à osteoporose,
osteoartrite, diminuição do equilíbrio, da força, da
endurance, da flexibilidade e de condições físicas gerais,
assim como problemas de peso, depressão. E é na
prevenção destes problemas secundários da deficiência
que os programas de saúde estão sendo propostos.
Um recente documento de trabalho nos Estados
Unidos sobre Pessoas Saudáveis com Deficiências 2010
(RIMMER, 1999) sugere quatro componentes na definição
da promoção da saúde para pessoas com deficiência: (i)
promoção de estilo de vida saudável e meio ambiente
saudável; (ii) prevenção de complicações de saúde
(condições médicas secundárias) e outras complicações
da deficiência; (iii) preparação da pessoa com a
deficiência para compreender e monitorar a própria saúde
e necessidades de cuidados especiais; (iv) promoção de
oportunidades para participação em atividades diárias
comuns.
RIMMER (1999, 2002) sugere os seguintes aspectos
para a promoção da saúde para ppd: (i) aptidão (mesmos
componentes para a população geral) - endurance
cardiovascular, força, flexibilidade e habilidades para as
necessidades especiais; (ii) nutrição - papel da dieta para
prevenção de doença crônica; (iii) comportamento
saudável - determinantes do estilo de vida, e pergunta-se
porquê algumas pessoas têm um estilo de vida saudável e
outras não? O mesmo se pergunta para as pessoas com
necessidades especiais.
Os benefícios da atividade física regular sugeridos
pelo Centro Nacional de Atividade Física e Defeciência
(The National Center on Physical Actiity and Disability NCPAD, 2000, 2002) são:
o aumento da função
cardiopulmonar, controle do peso, aumento da aptidão
metabólica, melhoria da habilidade de levar as atividades
diárias, sentimento de bem estar, potencial para reduzir a
ansiedade e depressão. Atenção deve ser dada à
intensidade, freqüência, duração e tipo de atividade
estruturadas (como danças, esportes) e não estruturada
(trabalho de casa, andar para o trabalho, jardinagem).
Neste ponto é importante valorizar a importância do
trabalho de dança em cadeira de rodas na melhoria da
qualidade de vida e maximização do potencial para
independência. E buscando a questões de RIMMER (et
al.,1996) pergunto, como a DCR pode promover a
capacidade funcional e reduzir a freqüência de
complicações secundárias em pessoas com deficiência?;
(ii) quais são os resultados a longo termo desta atividade
física para pessoas com deficiência? (iii) quais são os
padrões de atividade física entre pessoas com diferentes
deficiências físicas?; (iv) quais são as percepções de
atividade física entre pessoas com deficiência?
E, pergunto ainda qual é a variação bio-sócio-cultural
da população portadora de deficiência, enquanto espécie?
Dança em Cadeira de Rodas
A dança, a arte, a estética, a ética e a moral são
interligadas na história da humanidade. A estética está
relacionada com a essência e a percepção do belo e do
feio, do belo e sublime, dos tipos de conhecimento
sensorial e sensitivo, a metafísica. E na compreensão
tradicional da estética, a dança em cadeira de rodas pode
ferir os preceitos do belo, dos movimentos perfeitos, da
regularidade e ritmo, do sublime, da dança como “arte da
perfeição”. Para que ela seja aceita como arte, precisa
existir uma mudança na compreensão do belo, do feio, do
sublime, uma mudança que passa pela ética; de se ver a
regularidade no que parece irregular, o ritmo no que não
tem ritmo, no bonito que parece feio etc. É ver a arte de
uma outra maneira.
E este entendimento já vem sendo transformado
paulatinamente, advindo da inter-relação de vários fatores
sociais, tais como: desequilíbrio da balança de poder, a
ética, a estética e política.
Nos filmes e brinquedos infantis já podemos observar
uma mudança de forma e conteúdo, tais como: o filme
Shrek, dirigido por Andrew Adamson e Victoria Jenson,
onde o herói é um ogre feio e temperamental e a princesa
não é o que aparentava ser. Outro filme que quebra os
padrões convencionais é a Formiguinhaz, lançado em
1998. O filme faz uma crítica contra a sociedade atual,
onde as pessoas não possuem o direito de pensar, mas
são conduzidas pela sociedade, para fazer o que é mais
lucrativo na própria sociedade; mostra um herói operário,
aparentemente medroso e fisicamente franzino, que sonha
roubar o coração da princesa. Para isso, convence seu
amigo soldado a trocar de lugar com ele, o que faz com
que tenha que enfrentar o impiedoso General Mandíbula,
que planeja uma grande ofensiva contra o formigueiro.
Esta inversão dos padrões é um sinal de mudança na
sociedade, nos valores, na ética. Ser
Entendo que o aprofundamento de teorias filosófica
sobre estética e ética pode elucidar e auxiliar na
compreensão do comportamento humano em situações
que emergem a questão do belo, do perfeito, do
imperfeito, do sublime, da dança como "arte da perfeição",
da dança para deficientes, dos preconceitos, dos valores,
dos sentimentos de superação das deficiências, tanto pelo
dançarino quanto pelo espectador.
A estética, a ética e política estão interligadas. E,
portanto a mudança de conceitos, na compreensão de
uma influência na compreensão da outra. As re-definições
e compreensão da estética, a ética e a política com
relação ao deficiente tiveram modificações significativas,
da antiguidade até o tempo presente, especialmente a
partir do século XX. Estas mudanças passaram por um
processo longo de transformações, de re-significações de
valores, de se perceber e aceitar a pessoa portadora de
deficiência como dançarino, como artista. Para tanto,
ocorreram mudanças na sociedade, e antes de se pensar
no dançarino, ele foi considerado cidadão, com direitos
numa sociedade que está tentando lidar com a diversidade
e com as diferenças. Em realidade na busca da unidade
na diversidade. E isto não é fácil.
É interessante de se observar que a dança foi o último
esporte olímpico a ser criado, em 1988. Será um acaso?
Ou porquê ela vem de encontro mais intensamente com a
questão da estética.
E como esporte ela exige outras reflexões filosóficas e
educacionais. Se bem desenvolvida, ela poderá ser um
veículo importante de acesso do deficiente a outros
setores da sociedade. Pela complexidade o esporte exige
esforços de diferentes áreas do conhecimento, como
medicina, educação física, fisioterapia, dança etc.
Especificamente enquanto dança esporte, ela
mobiliza e o conhecimento para (i) classificação funcional
da deficiência, (ii) para o desenvolvimento da condição
física (flexibilidade, resistência cardiovascular, força,
equilíbrio, agilidade), (iii) de coreografia (ritmo, tempo,
configurações, espaço, criatividade) e (iv) árbitros
esportivo. Além disso, o esporte exige regras
internacionais, no caso a dupla de dançarinos deve ser
composta por pares compostos de um homem e uma
mulher, sendo que um deles deve ser usuário de cadeira
de rodas. E eles podem optar para por duas categorias: (i)
Dança Standard: Valsa, Tango, Valsa vienense, Foxtrot
lento, Quickstep, e (ii) Danças Latino-americanas: Samba,
Cha-Cha-Cha, Rumba, Paso Doble, Jive (Krombholz.
2001).
Em nível recreativo, a dança em cadeira de
rodas pode ser praticada em diferentes estilos, isto é,
dança de salão, dança folclórica, ballet ou dança moderna.
E existem diferentes formas como dança combinada
(cadeirante com par não deficiente), dança dual (dois
cadeirantes), dança em grupo (só cadeirantes ou
cadeirantes com não deficientes dançam em formações ou
performance livre) e dança individual (somente o
cadeirante).
De acordo com CPI 16 mais de 5000
dançarinos (4.000 cadeirantes e 1500 não deficientes)
praticam a Dança em Cadeira de Rodas em nível
competitivo ou recreacional em mais de 40 países.
Entretanto, este número não indica que ela esteja sendo
praticada extensivamente nos diferentes países, o que
comprometeu o número de participantes de dançarinos na
Paraolimpíada de Inverno em Salt Lake City. E, por esta e
outras razões, este esporte não será disputado na próxima
Paraolímpiada, até que atinja os requisitos exigidos pelo
Comitê. As competições de dança esporte em cadeira de
rodas são organizadas nos mundiais, nacionais e
regionais.
Os objetivos do Comitê de Dança Esporte em
Cadeira de Rodas 17
vêm corroborar com o
desenvolvimento desta modalidade esportiva, os quais
são: (i) motivar organizações esportivas nacionais de
atletas deficientes para incluir a Dança em Cadeira de
Rodas nos seus programas, (ii) melhorar a performance
dos dançarinos por meio de treinamento e troca de
16
17
http://www.paralympic.org/sports/sections/dance/general.htm
http://www.paralympic.org/
informações, promover a Dança Esporte em Cadeira de
Rodas através de eventos demonstrativos, publicações e
exibições e (iii) treinar em nível internacional instrutores,
professores, técnicos e árbitros.
O controle da informação sobre dança
esporte ainda está em poder do comitê e de alguns países
na Europa. A formação de técnicos especializados no
assunto como árbitros, classificadores funcionais,
coreógrafos, treinadores precisam muitas vezes ser feitas
no exterior. E em alguns deles, somente com a anuência
do Comitê Paraolímpico Nacional.
No Brasil ainda temos um caminho a trilhar,
diante da complexidade do país, das diferenças sócioeconômicas, do controle da informação de poucos, da
dificuldade de locomoção do deficiente etc. Deixo aqui o
desafio para que todos, pessoas, organizações não
governamentais, organizações governamentais, mídia
sejam canais facilitadores para o desenvolvimento da
dança em cadeira de rodas. E que as pessoas decidam se
querem praticá-la como dança artística/recreativa ou
esportiva.
Considerações finais
A dança em cadeira de rodas é uma
atividade cultural complexa, construída em meados do
século XX como atividade artística/recreativa e nos últimos
anos
como
esporte.
Ela
exige
conhecimento
interdisciplinar, o que justifica a participação de diferentes
profissionais para o seu desenvolvimento.
O reconhecimento da alteridade, diversidade
e diferenças bio-sócio-culturias devem ser inerentes ao
desenvolvimento da dança em cadeira de rodas, quer
como atividade artística ou esportiva.
Como atividade artística e mesmo esportiva
ela vem transformar o conceito tradicional do belo, do
perfeito, do ritmo. É ver a regularidade no que parece
irregular, o ritmo que parece sem ritmo, no bonito que
parece feio.
A complexidade da atividade enquanto
esporte exige o apoio de outros setores da sociedade,
como comitê paraolímpico nacionais e internacionais,
formação de classificadores, árbitros e campeonatos.
Ela pode ser um importante meio para
reduzir as condições de problemas secundários de saúde
em pessoas portadoras de deficiências, além de facilitar a
maior mobilização sócio-política dos dançarinos na
sociedade.
Referência Bibliográfica
CASPERSEN, C.J., Powell,K.E. and Christenson,G.M.
Physical activity, exercise and physical fitness:
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Mestrado apresentada à Faculdade de Educação
Física/Unicamp, 1998.
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Cadeira de Rodas. Faculdade de Educação Física da
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2000, available from
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RIMMER JH., D. BRADDOCK AND K.H. PILETTI
Research on physical activity and disability: an
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1996, vol. 28,no. 8, pp. 1366-1372 (online) Chicago,
NCPDA, 2000, available from
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RIMMER, J. Achieving a beneficial fitness for persons with
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ROCHA FEREIRA, M.B. O ser ánthropos e a atividade
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Campinas: 4:7-17 2000.
ROCHA FERREIRA, M.B. Criança e saúde: um enfoque
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Estudos da Crianca -SIEC SIEC, Santa Maria, p. 141156, 1999.
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cadeira de rodas: atividade artística ou esportiva na
pesquisa. Revista Conexões. Campinas: 7-13, 2.001a.
ROCHA FEREIRA, M.B. O ser ánthropos: adaptabilidade,
alteridade, diferenças e diálogo. Anais do Congresso
da Sobama, p. 32-34, 2001b.
Coreografar: Inscrever
significativamente o corpo no espaço
Eni Orlandi
Labeurb Nudecri
Introdução
Como pensar a coreografia, discursivamente?
Como tenho proposto, o trabalho simbólico da
interpretação implica em gestos (E. Orlandi, 1966), o que
tenho designado como gestos de interpretação. Parto da
definição de gesto como ato ao nível simbólico - que M.
Pêcheux (1969) reserva somente a atos como assobiar
em uma asssembléia, piscar para um companheiro etc - e
o redefino em termos da interpretação face ao modo como
sujeito
e
sentido
se
conjugam
significando
simultaneamente em cada formulação. Os gestos de
interpretação, então, no modo como os concebo, intervêm
no real do sentido (E. Orlandi, 1996).
Pois é deste modo que quero compreender a
coreografia: face a gestos de interpretação, pensando o
coreógrafo e os dançarinos ligados por gestos que
resultam no que chamo de textualização do discurso.
Diria então que a coreografia se apresenta como a
textualização (formulação, atualização), através do corpo
dos sujeitos, do discurso da dança. Esta por sua vez é,
como defini em outro lugar (E. Orlandi, 2000), “a música
do corpo, é ritmo significado que liga (estrutura)
corpo/espaço/movimento”, enquanto forma particular de
produzir sentidos e de se significar. A dança, insisto, não
expressa algo, ela é a música estruturando o corpo, a
coreografia sendo precisamente o seu modo de
estruturação. Assim, podemos pensar a coreografia em
relação ao que tenho distinguido como “ordem” e como
“organização”. A coreografia balança entre as duas: na
coreografia, há a técnica que é a sua dimensão que
organiza; no entanto, enquanto parte da relação
significante (estrutura e sentido) entre corpo/música/ritmo,
ela é da ordem da arte da dança.
Se procurarmos entendê-la etimologicamente
vamos encontrar que a coreografia (nessa palavra há
grafia) se aplica antes à dança que se acompanha de
canto, mais específicamente ao canto em coro e
finalmente à anotação da dança. Retomaremos isto mais à
frente.
Alguns pressupostos Discursivos
Retomando alguns pressupostos que apresentei em
uma Conferência em Belo Horizonte (“Corpo e Silêncio”,
1999) em que se tratava de pensar o corpo em relação à
saúde e ao segredo, começaria por dizer que formular é
dar corpo aos sentidos (E. Orlandi, 2001 entre outros). Por
ser um ser simbólico, o homem, constituindo-se em sujeito
pela linguagem e na linguagem que se inscreve na história
para significar, tem seu corpo atado ao corpo dos
sentidos. Isso quer dizer que o sujeito e os sentidos,
constituindo-se simultaneamente, têm sua corporalidade
articulada no encontro da materialidade da língua com a
materialidade da história. Assim é que compreendemos a
afirmação de que na análise de discurso trabalha-se no
confronto do simbólico com o político. Entendendo-se aqui
o simbólico pela noção de língua, tal como a concebemos
em análise de discurso, ou seja, um sistema significante
intrinsecamente sujeito a falhas. A noção de político, que
também defino por essa relação de produção de sentidos
– a história existe porque os fatos fazem sentido,
reclamam que se lhes encontrem causas e conseqüências
(P. Henry) – leva-nos a afirmar que, ao fazer sentido,
tomado pela necessidade da língua e da história, o sujeito
sempre dá uma direção ao sentido e não outra. Para nós,
está justamente nessa divisão (E. Orlandi, 1996), nessa
partição do sentido, desde sua constituição, o que define o
que chamamos de político em discurso: os sentidos não
são neutros e se situam em sua historicidade em
determinadas regiões no processo de significação
(formações discursivas). Mais do que isso, a própria língua
tem o político como constitutivo, ou seja, há uma política
do (no) dizer: os sentidos sempre poderiam ser outros. A
língua se abre para a falha, para o equívoco. A
historicidade do discurso declina-se politicamente.
Tudo isso pode ser compreendido na definição do
discurso, como efeito de sentidos entre locutores, como
afirma M. Pêcheux (idem): não é transmissão de
informação só, nem tampouco apenas instrumento de
comunicação, a linguagem serve para comunicar e para
não comunicar. Eis a política do dizer funcionamento.
Dizer que não há sentido sem que a língua se
inscreva na história, significa, para mim, que não há
sentido sem interpretação. Essa inscrição permite que
observemos o processo mesmo de produção de sentidos
e de constituição dos sujeitos em sua materialidade.
Sujeitos e sentidos que dão corpo à linguagem/ que se
dão corpo na linguagem. E existem no mundo, logo,
atravessados pelo real da história. Daí dizermos que, do
ponto de vista discursivo, a linguagem não é transparente
e os sujeitos não são a origem deles mesmos: eles se
constituem na interpelação dos indivíduos em sujeitos pela
ideologia, relações imaginárias que os ligam às suas
condições reais de existência. Os sentidos não são
evidentes pois assim como os sujeitos, se constituem pela
relação do real da língua com o real da história. Tudo isso
resulta na opacidade da linguagem, passível de mostrarse quando tomamos o discurso como lugar de
observação. Trazendo essas afirmações para nossa
reflexão presente: os corpos, pensando-se a significação,
não são evidentes.
Quando nos situamos nesse lugar, teoricamente,
somos levados a pensar que não há sentidos em si e que
os sujeitos não são a sua própria origem, embora
acreditem sê-lo. Os sentidos se formam em processos
muito mais amplos, em que entra o que chamamos
“interdiscurso”, em minhas palavras, a memória do dizer, o
saber discursivo que se estrutura pelo esquecimento.
Tudo o que é dito e que constitui “nossos” sentidos e que
equecemos como se formaram em nós, tendo a impressão
de que é “o” sentido lá. Acreditamos assim que os
sentidos “nascem” em nós quando, na realidade,
retomamos sentidos pre-existentes. As palavras nos
significam – ou significam para nós – porque já significam.
Isto é, elas significam por esses efeitos de memória nos
sujeitos. Ao retomar sentidos nos identificamos com eles,
fazendo com que eles funcionem como sendo “nossas”
palavras. Mas não sabemos como esses sentidos (e não
outros) se constituíram em nós. Não temos acesso ao
modo como a nossa memória discursiva se constitui
justamente porque ela se estrutura pelo esquecimento.
Assim, não há sentido sem interpretação, embora a
interpretação não nos aparece como interpretação mas
como o sentido “lá”. Isso é o efeito ideológico elementar:
por ele acreditamos sermos sempre já sujeitos e nos
iludimos com o fato de que os sentidos nascem em nós e
que só podem ser esses. Somos, enquanto corpo de
sujeitos, atravessados pelo corpo dos sentidos, isto é, pela
língua inscrevendo-se na história.
Corpo e Significação
Assim, podemos dizer que o corpo do sujeito e o
corpo da linguagem não são transparentes. São
atarvessados de discursividade, isto é, de efeitos de
sentidos constituídos pelo confronto do simbólico com o
político, como dissemos mais acima, em um processo de
memória que tem sua forma própria e que funciona
ideologicamente. Isto quer dizer que assim como nossas
palavras já vêm significando antes mesmo que as
tomemos como nossas palavras, nosso corpo já vem
sendo significado mesmo que não o tenhamos,
conscientemente, significado.
Não há corpo que não esteja investido de sentidos,
e que não seja o corpo de um sujeito que se constitui por
processos de subjetivação nos quais as instituições e suas
práticas são fundamentais para a forma com que ele se
individualiza, assim como o modo pelo qual,
ideologicamente, somos interpelados em sujeitos,
enquanto forma sujeito histórica (em nosso caso,
capitalista).
O corpo do sujeito é um corpo ligado ao corpo
social (E. orlandi, 2001) e também isto não lhe é
transparente, porque as instituições com seus discursos
silenciam isto, tratando o social individualizado. O corpo
do sujeito é, nas condições sócio-históricas em que
vivemos, parte do corpo social tal como ele está
significado na história. Isto significa, entre outras coisas,
que o sujeito relaciona-se com o seu corpo já atravessado
pelo discurso social que o significa, pela maneira como ele
se individualiza. No entanto, sempre há a incompletude, a
falha, o possível. E os sentidos, como tenho repetido,
sempre podem ser outros.
Nosso empenho aqui é o de mostrar que é preciso
estabelecer condições para que estes outros sentidos, os
irrealizados, venham à tona, se pratiquem, tomando forma
social na história da relação dos sujeitos com o discurso
do/sobre seu corpo. Temos como objetivo mais amplo
constituir uma nova escuta do corpo. Criar condições para
a emergência de novas discursividades. Em que o corpo
se signifique no movimento da (sua) história.
Acompanhando assim o que tenho dito da identidade: ela
é um movimento na história.
Figuras: A Arte (Grafia) do Corpo
Para isto, e entrando mais propriamente no
assunto, estabeleço como ponto de partida uma noção
que tenho trabalhado, a partir de Hjelmslev (1968), que é a
noção de figura. Defino figura como a articulação, sob o
efeito metafórico, de forma e sentido. O ponto a ser
realçado é o como funciona aqui o efeito metafórico, a
transferência de sentidos, a tomada de uma figura por
outra. No caso do corpo, e pensando a noção de
coreografia, diria que a coreografia trabalha figuras
corporais em suas relações, em sua materialidade.
Estabeleço um paralelo com o que tenho designado na
análise de discurso como formas materiais. A
materialidade aqui é significada pela natureza da
linguagem, nesse caso, não verbal que é o discurso da
dança. E, é preciso observar, não estamos usando a
noção de “figura” como figura de linguagem (no sentido
literário), nem pensando a imagem não verbal. Estamos
pensando a forma material, ou seja, nem a forma empírica
(o corpo em si), nem a forma abstrata (o cálculo da
relação corpo/movimento/espaço) mas a forma significante
encarnada no mundo, funcionando, produzindo sentidos.
E, neste caso, tendo o corpo como elemento significante
nodal. Produzindo sentidos que se instauram em figuras
postas em relação e em movimento no espaço.
Assim como o discuso se textualiza na formulação
que, a partir da constituição do sentido, o realiza no tempo
e no espaço, permitindo que ele circule, assim também a
coreografia textualiza o discurso da dança, produz
formulações. E quem diz formulação diz versões possíveis
no mesmo sítio de significação. Figuras entrelaçadas.
Dessa forma podemos falar, pensando a ordem do
discurso da dança, em organização desse discurso, em
sua formulação e circulação, através do trabalho da
coreografia. Pensando então a forma material – as figuras
– podemos dizer que a coreografia textualiza o discurso da
dança organizando figuras, relacionando-as em diferentes
disposições que correspondem a diferentes versões,
estabelecendo distintas relações de sentidos.
Faz parte do gesto do coreógrafo – que trabalha
com o portador de deficiência física - na disposição dessa
figuras que, no que é próprio da dança, se entrelaçam, ter
a cadeira de rodas já significada em seu processo de
constituição (da dança). Desnecessário é dizer que este
aparato para ser sifnificado tem de ser metaforizado
nessas condições específicas de significação. As
diferentes coreografias são diferentes modos de
textualizar, pôr em prática, os diferentes gestos de
interpretação que disponibilizam por sua vez diferentes
efeitos leitor (gestos de interpretação), corporificando
assim novas versões do corpo que dança.
Dirigimos uma última observação para o que
designamos como corpo dentro de uma forma de pensar,
que é a nossa, e em termos discursivos. Temos, em vários
de nossos trabalhos que visam a relação corpo e texto,
procurado compreender como o corpo se textualiza e
como os sentidos tomam corpo, ou, dito de outro modo,
temos pensado de forma articulada o corpo do discurso e
o discurso do corpo, em suas relações.
Na textualização do corpo (o corpo que fala),
procuro distinguir – e aqui agradeço a Raquel Fávero a
sua contribuição para esta discussão – o corpo que fala no
equívoco da relação psíquica, digamos, quando ele fala no
lugar da mente (e aí o corpo sofre a significação). Temos
então um sentido que irrompe na carne. Mas o que tenho
trabalhado para compreender não é esta forma, digamos,
viezada, do corpo significar mas aquela em que temos o
corpo que “fala” – e, para mim, dada sua materialidade, o
corpo não fala, ele significa - em seu próprio lugar. E são
várias as suas manifestações. Tenho tratado a tatuagem
como um desses modos de textualização do corpo, em
acordo com a fase pós imprensa, em que a letra que
habitava, no século XIX, as páginas dos livros e folhetos,
passa a habitar massivamente as paredes, as máquinas e
até o corpo dos sujeitos, agora se significando como
escrita do corpo, ou melhor, como grafismo, em seus
outros modos de (se) significar (onde incluo o grafite, a
pichação, o tag etc). A moda, as camisetas com suas
“mensagens” são também maneiras do corpo exibir seu
texto.
E entramos finalmente na dança, em que a
própria matéria da significação é matéria corporal,
fazendo-se em movimento no espaço, em música e ritmo.
Forma e sentido: figurativamente. Mas figuras que se
organizam de acordo com certas regularidades
enunciativas. Que são o discurso da dança que, por sua
vez, se dá uma versão entre as diferentes versões
(atualizações) possíveis. Assim como no texto temos
vírgulas, pontos, hífens, letras maiúsculas e minúsculas, a
organização do discurso da dança em texto põe em
funcionamento mecanismos de produção de sentidos, que
são próprios ao que se chama coreo-grafia.
E, não esqueçamos, se em coreografia há
“grafia”, o “coreo” de coreografia vem de “coro” que
significa não um sujeito isolado mas um grupo. É plural. É
a “voz” do conjunto, no mito, é a voz que move o sentido,
é o “público” (vínculo entre). Em grego significava “dança
executada por vários personagens e habitualmente
acompanhada de canto” e vem pelo latim com esse
sentido, por via erudita, nos diz A. Nascentes. Só depois, a
idéia de canto passou a predominar sobre a de dança.
Então coreografia significa, em grego, dança em côro. Mas
pensando-se já a relação com grafia, chegamos a uma
significação que é a de : arte de compor e ordenar os
movimentos e gestos de danças e balés, e de fazer a
respectiva anotação. A coreografia pode significar o
próprio balé. Ela é assim organização, construção
imaginária de unidade e da ilusão do sujeito como dono de
seus sentidos, inclusive os de seu corpo.
De nossa parte queremos chamar a atenção para o
fato de que a coreografia implica em “anotação”. E
a anotação, em ciência e em arte, é o princípio que
permite destacar a coisa de si mesma e torná-la
deslocável para seres ou objetos semelhantes ou
diferentes. Então é pela coreografia que a arte,
tanto quanto a ciência, coloca-se como tekhné, ou
seja, pode ser ensinada porque pode ser
compreendida
(destacada
de
si
mesma,
desnaturalizada, desautomatizada). Deixa de ser só
um saber para ser conhecimento. E esta
possibilidade é a que tem o coreógrafo em suas
mãos. Praxis. Que tanto pode repetir como deslocar
sentidos, re-significando discursos e também
corpos, em movimento no espaço e na história.
Com conseqüências fortes sobre/para a sociedade.
Além disso, e talvez mais importante, como toda
praxis, ou seja, prática informada de teoria (pela
escrita), pode interferir no mundo, pela sua própria
contradição, atravessando o imaginário em que os
sentidos têm uma duração desgarrada de seu real,
desestabilizando-os, expondo-os ao equívoco.
Tornando possíveis outras versões. Outros gestos
de interpretação. Outros sentidos produzidos por
sujeitos cuja forma histórica e processos de
individualização se deslocam em processos de
subjetivação nos quais faz efeito outra relação com
o (seu) real. São outras formas de atar o corpo do
sujeito ao corpo social, na produção de outros
efeitos de sentido.
Referência Bibliográfica
M. Pêcheux (1969)
AAD, Dunod, Paris; L. Hjelmslev (1968) Prolegomènes
aux Etudes du Langage, Minuit, Paris;
E Orlandi (2ooo) Cidade Atravessada, Pontes, Campinas,
2001,
------Discurso e Texto, Pontes, Campinas.
Dança em cadeira de rodas:
A possibilidade da impossibilidade na dança
Eliana Lucia Ferreira
O processo de desenvolvimento da dança em
cadeira de rodas vem
desestabilizando alguns
significados do que é a dança de um modo geral, e
portanto novos sentidos estão sendo estabilizados.
Uma das marcas
deste
processo de
desenvolvimento, pode ser evidênciado a partir do lugar
da impossibilidade de movimentos gerado inicialmente
pela deficiência, para a possibilidade da materialidade do
movimento corporal, apresentados na dança em cadeira
de rodas.
Então, percebemos na discursividade da dança em
cadeira de rodas em relação à dança de um modo geral,
evidências de contradições e semelhanças aparentes,
onde êstes discursos estão se constituindo num espaço de
segregação e estão ao mesmo tempo mobilizando uma
discursividade de aceitação ambígua.
O desenvolvimento da dança em cadeira de rodas,
não se trata de uma possibilidade capaz de devolver a
normalidade física, mas de intervenção,
capaz de
subsidiar através de um conjunto de técnicas corporais à
re organização social, remetendo-se para a discursividade
da possibilidade de transformação social.
Colocada na fronteira entre a impossibilidade e a
possibilidade, a dança tornou-se um locus de contato com
a sociedade, um espaço através do qual os deficientes
reivindicam participação nesta organização social que
tende a excluí-los. Embora não possamos dizer que a
dança
compreende a totalidade da vivência e dos
processos de identificação das pessoas com deficiência
física, cabe-nos ressaltar que ela é um instrumento para
torná-los visível.
A dança então é um dos lugares que permite
aos deficientes se subjetivarem, pois eles se vêem na
dança, não como pessoas deficientes, à vista. Está aí
presente o irrealizável que pela dança passa a ser visto
como o realizável.
O entendimento dos recursos da dança, não abarca
a totalidade do universo social, tampouco fornece um
esquema estruturador desta relação, mas apresenta
elementos para refletir sobre a sua relevância
na
construção que essas pessoas fazem de representações
sobre si mesma ( identificação/subjetivação), sobre o seu
espaço social e o seu corpo.
Estes sentidos que estão na dança não estão em
outros lugares, ou seja, os sentidos produzidos são
diferentes dos sentidos constitutivos de outras formas de
arte. Na dança a gestualidade é o movimento com o
corpo deficiente ou não.
Esta especificidade 18 da dança 19 surge como um
processo de comunicação, em um processo duplo: 1)
através das atuais políticas sociais 20 voltadas a elas e da
estigmatização social; 2) e a partir dos próprios deficientes
que respondem a esses mecanismos. Nesse processo,
identidades múltiplas e às vezes frágeis, são construídas,
na relação com cada segmento social com o qual interage
A identidade múltipla desses sujeitos, é construída
no limiar das relações entre uma ordem social vigente,
dada pela estigmatização, e pela sua própria necessidade
de expressão corporal. Isto é percebido, pois os
mesmos re-significam a própria dança, e misturam
valores e referências que aparentemente, permanecem
separados e incongruentes.
Ora, as representações sociais da deficiência física
na dança tomam o corpo do deficiente como o problema
fundamental. Êste é o principio sob o qual se constitui as
construções de estigmas, as justificativas da segregação.
A condição corporal é entendida dentro da lógica do
18
Que é manifestada pelo gesto corporal.
E aqui especificamente da dança em cadeira de rodas.
20
Sendo o processo de inclusão, o mais recente.
19
desvio da normalidade, onde existem “eficientes e
deficientes”.
A estigmatização advinda do corpo imperfeito está
presente em todas as relações da pessoas deficientes e é
reproduzida pelas instituições ( família, escola, etc).E
assim, os mesmos passam a se reconhecer e ser
reconhecido, só à partir das suas limitações e não a partir
do que pode, dos seus desejos, das suas emoções.
Reside aqui, uma segregação que ultrapassa as
paredes institucionais. Esta segregação fica, e muitas
vezes passa a fazer parte de sua identidade, fazendo-o
sentir-se impotente perante aos mecanismos sociais.
É neste ponto que a dança para as pessoas
deficientes se opõem, pois uma vez que a mesma
possibilita uma vivência diferenciada, estabelece assim
uma oposição à estrutura social.
O que se percebe é que no processo de
subjetivação destas pessoas, o que é visto como falta,
falha, ou como um corpo torto, certamente são mexidos
pela dança, ou seja, o que aparece visualmente nesta
relação com a dança é o corpo e como as pessoas
deficientes se relacionam com o movimento. O corpo é o
lugar do possível de nos percebermos e de
relacionarmos com nós mesmos 21 .
A experiência com a dança para as pessoas
deficientes é reveladora de uma sociabilidade construída
com base na irregularidade, e, nem por isso é menos
coerente do que uma trajetória de sujeitos que em suas
construções identitárias, delimitam seus espaços sociais.
21
Muitas vezes tentamos esquecê-lo, mas este esquecimento se
dá porque o nosso corpo é muitas vezes a nossa fragilidade.
A não participação ( ou a participação paralela) dos
mesmos nos eventos sociais da dança é indicativo da
dificuldade dos diálogos que estabelecem com os sujeitos
que constituem este universo social, e é igualmente
reveladora do universo de representações que os mesmos
têm sobre o espaço que habitam e sobre o efeito de sua
presença nele, principalmente quando este espaço é
ocupado com uma cadeira de rodas.
Se o espaço físico, mostra um discurso social, o
corpo o expressa. Sendo, sobretudo o elemento que
carrega consigo a propriedade da deficiência, base da
construção do universo dos mesmos, ( de seus eus). O
corpo evidencia as marcas da territorialidade, dos limites,
das contradições e ambigüidades que são fruto do embate
dos significados inerentes à capacidade. Os deficientes
com suas dificuldades de deslocamento tem sobretudo
seus corpos como manifestações de sua experiência
corporal própria e diferenciada e consequentemente uma
experiência social.
A vivência através da dança não impede as
intervenções, mas as relativiza. Ela é sobretudo,
expressão do diálogo com os mecanismos de dominação,
e com outras instâncias sociais, sendo que tais diálogos
muitas vezes indicam resistências e/ou contradições
sociais.
O conflito social corporal cria ambivalências e
contradições nas condutas e representações sociais que
compõem o universo dessas pessoas, expressos de forma
significativa no corpo, tornando-se visível o vazio social
no qual muitas das suas tentativas de singularizar-se
enquanto um sujeito social acabam sendo frustradas. O
corpo que tornou-se através da dança um locus
enunciador das práticas sócio-artísticas, trazem consigo
também,
as marcas que o singularizam, e
que
constantemente
são
mutáveis
dentro
desta
territorialidade física e social.
São mutáveis devido ao deslocamento que se faz
em relação ao político, a história e a ideologia. Este sujeito
que dança, se permite colocar no mundo da dança a partir
de como a dança e o seu corpo são significadas para ele,
provocando aqui uma ruptura com o imaginário social da
concepção do que é a dança.
É importante ressaltar que o imaginário da dança é
calcado principalmente no modelo da Grécia, daí têm-se
na imaginação social coletiva a concepção originadas e
significadas das lendas gregas.
Quando colocamos este imaginário da dança em
relação à dança em cadeira de rodas, existe aí uma
contradição manifestada principalmente pela cadeira de
rodas. Isto ocorre porque já existe também um imaginário,
até certo ponto negativo, que vem por uma cultura onde a
cadeira de rodas já tem seus significados.
A cadeira de rodas entra no imaginário da nossa
cultura, que vai além da dança. Alguns significados que
prevalecem na dança em cadeira de rodas são advindos
dos significados da cadeira de rodas. postos socialmente.
Acreditamos que para muitos a dança em cadeira de
rodas pode ser expressa como uma violência simbólica 22 .
Isto ocorre porque a dança já está significada na
nossa cultura, em todas as suas formas, já existindo uma
unidade imaginária. No entanto, o que se percebe é que a
cadeira de rodas tem deslocado o sentido de movimento
corporal para a dança de modo geral, mostrando assim
que a dança tem uma diversidade concreta, permitindo
que cada um deficiente ou não, dance de um jeito ou de
22
Violência Simbólica é uma noção da (AD), desenvolvida por
Eni Orlandi em 2001.
outro, e é isto que tem permitido cada vez mais o
desenvolvimento da dança em cadeira e rodas.
Mas a dança de um modo geral também tem um
imaginário concreto que é o movimento corporal, o qual é
esperado que todos o façam da mesma maneira, ou seja,
que todos utilizem todas as partes do corpo, como se ela
tivesse uma linguagem de movimento única, fechada e
estabelecida.
Sendo assim, podemos dizer que a constituição
da dança em cadeira de rodas tem mostrado ser um
efeito construído pela história contraditória da própria
dança Esta contradição se dá pelo fato de que as
coreografias apresentadas no decorrer de décadas
não são resultado somente de um conhecimento
técnico, são também parte dos fatos para os quais, ou
a partir dos quais, as coreografias são produzidas,
dançadas, mostradas e aplaudidas.
Assim a dança em cadeira de rodas formulada a
partir de movimentos que tem uma cadeira de rodas
como um ponto referencial na sua criação é a que
identifica,
a pessoa com deficiência na dança.
Portanto a dança em cadeira de rodas , a que não é
camuflada, adaptada 23 , imitada, transferida é a que
permite/ possibilita
a pessoa com deficiência a
exercer a função de dançarino.
Esta modalidade têm suas
particularidades
estruturais
que
devem
ser
respeitadas
e
principalmente valorizadas enquanto movimento
plástico, enquanto possibilidade corporal e enquanto
materialização de sentimentos no movimento ação do
corpo individualizado.
23
O termo aqui de adaptação é no sentido de adequar ajustar, também
utilizado por Carmo (2001).
A partir desse processo, podemos dizer que,
cada vez mais, a diferença de movimento é uma
diferença mais social, e não da relação movimento possibilidades corporais. A partir do momento que o
dançarino deficiente se perceber na unidade, na
permanência dos sentidos de dança, ele se identificará
não só na dança, mas no que a dança proporciona n o
ambiente social, isto quer dizer que o dançarino
deficiente poderá romper com a interdição do dizer
social sobre a deficiência. Daí a separação atualmente
constituída entre dança e dança em cadeira de rodas,
poderá então estabelecer seus diálogos, buscando
uma (re)composição de uma unidade da dança e sues
dançarinos.
Mais uma vez queremos dizer que não são os
aspectos empíricos ou abstratos da dança como tal, que
nos levará a compreender a diferenciação da dança
estabelecida, determinada e a dança em cadeira de rodas,
mas a materialidade do movimento corporal e
a
historicidade que poderá agir sobre este real da dança e
que poderá então ser re-significada e mobilizada no meio
social e cultural.
O que estamos presenciando hoje, é uma dança em
cadeira de rodas que está sendo desenvolvida ainda numa
época em que existem restrições para quem não tem as
condições básicas pré-determinadas para tal. No entanto,
esta modalidade têm se discordado do real da dança e
consequentemente
do
imaginário
social
e
da
opressão/marginalização artística.
Ao dançar sobre uma cadeira de rodas, o dançarino
deficiente está quebrando com o circuito da interdição
social da dança. Esta iniciativa é uma forma de saída do
silêncio corporal, dada pela limitação sócio-econômicacultural na qual eles (nós) vivem imersos.
A dança em cadeira de rodas tem permitido a estes
sujeitos se fazerem autores das suas próprias identidades
enquanto dançarinos sobre uma cadeira de rodas, isto os
têm possibilitado não se perder na dispersão/limitação
sócio-corporal.
Estes sujeitos ao dançarem seus gestos corporais
estão se construindo menos impotente face ao real. Eles
estão se percebendo no próprio processo de identificação
do outro que os oprimem.
Ao dançar, as coreografias se inscrevem no socialartístico além do que está dentro deles mesmos, vira
história e a história passa a ser contada e
seqüencialmente ela pode ser legitimada, legitimando
assim seus precursores e sucessores, dando visibilidade a
uma nova verdade.
E nesta nova verdade preemente, são nestes
novos sentidos que estão se constituindo que as pessoas
deficientes têm se percebido, têm se identificado, têm se
apropriado, têm se colocado, têm se apoiado e têm
constituído a identidade de dançarinos, ainda que sobre
uma cadeira de rodas.
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CBDCR Confederação Brasileira De Dança em Cadeira de Rodas