CBDCR Confederação Brasileira De Dança em Cadeira de Rodas Organizaodres: Eliana Lucia Ferreira Maria Beatriz Rocha Ferreira Vera Aparecida Madruga Forti Campinas 2002 CBDCR Confederação Brasileira De Dança em Cadeira de Rodas INTERFACES DA DANÇA PARA PESSOAS COM DEFIICÊNCIA Organizaodres: Eliana Lucia Ferreira Maria Beatriz Rocha Ferreira Vera Aparecida Madruga Forti Campinas, 2002 CBDCR - Associação Brasileira de Dança em Cadeira de Rodas, 2002-09-07 ISBN - Supervisão Editorial: Editoração: Gráfica Rvieira Edição: RESERVADOS TODOS OS DIREITOS DE PUBLICAÇÃO PARA CBDCR - Confederação Brasileira de Dança em cadeira de Rodas ORGANIZADORES E COLABORADORES Júlio Romero Doutor em Professora da Unimep/Piracicaba Vera Aparecida Madruga Forti Doutora em Educação Física Professora da FEF/Unicamp Alberto Cliquet Junior Doutor em Medina Prof. FCM/Unicamp Renato Miranda Doutor em educação Física Professor da FAEFID/UFJF Larissa S. Turtelli Mestranda em Educação Física Faculdade Educação Física/Unicamp Maria Consolação Tavares Doutora em Medicina Professora da FEF/Unicamp Maria José Justino Doutora em Estética e Ciências das Artes pela Universidade de Paris (VIII), Crítica de arte e professora na UNESPAR - Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Maria Beatriz Rocha Ferreira Doutora em Educação Física Professora da FEF/Unicamp Eni Pulcinelli Orlandi Doutora em Linguistica Professora do Iel/Unicamp Rosangela Morello Doutora em Línguistica Pesquisadora do Labeurb/Unicamp Eliana Lucia Ferreira Mestre e doutoranda em Educação Física Professora da UFJF Presidente da CBDCR APRESENTAÇÃO Este livro é o resultado de algumas palestras proferidas no II Simpósio Internacional de dança em cadeira de rodas. Quando propusemos a organização deste sabíamos que nós organizadores estávamos em um estado de opção que já é em si um recorte teórico e um compromisso com a interpretação das diretrizes dadas pelo desenvolvimento da dança para as pessoas com deficiência. A interdisciplinaridade deste desloca as práticas como amálgama de diferentes disciplinas em uma só. Nossa proposta teórica foi de reunir diferentes concepções teóricas que desse um esforço conjunto de compreensão, de compartilhamento de um mesmo objeto de análise, no presente caso: “o corpo que dança com uma cadeira de rodas”. As reflexões partiram de profissionais das áreas: Artes Cênicas, Dança, Educação Física, Linguagem e Medicina. Os textos aqui apresentados apontam para 3 direções: 1) buscam compreender como o corpo interpreta, como ele ganha e produz sentidos em sua relação com a ordem social na qual ele se configura, na sua história, na sua cultura; 2) leva-nos a re-pensar “atrás das cenas” as atividades físicas vivenciadas através das danças com pessoas deficientes em seus diferentes espaços; 3) procuram ir além dos discursos sobre o corpo, pensado, por sua vez, em dois espaços: o corpo na/da dança. Corpos aí pensados, além do corpo que fala por si, como suportes de uma estética: o corpo do cotidiano e o corpo cênico. Enfim, acreditamos que este livro trará um ganho para a comunidade acadêmica. E, sobretudo, contribuirá para a compreensão do dançarino portador de deficiência física - sujeito social, através dos sentidos do corpo dentro de uma história. Eliana Lúcia Ferreira Campinas, novembro de 2002. FALANDO DE INCLUSÃO EM TEMPOS DE EXCLUSÃO Júlio Romero Ferreira – UNIMEP/SP Não vivemos em uma sociedade inclusiva, seja qual for o critério que adotarmos para definir inclusão: cerca de 55 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, dos quais mais de 20 milhões abaixo da linha de pobreza absoluta. Nosso país tem a quarta pior distribuição de renda no mundo. Apenas Serra Leoa, República CentroAfricana e Suazilândia apresentam desigualdade maior que a do Brasil. Acresce que 64% dos países têm renda per capita menor do que a brasileira e, em quase todos eles, a concentração de renda é menor que a nossa ( Folha de São Paulo, 21.10.2002). Ou seja, somos um país rico, desigual e injusto. Quando pensamos nos efeitos que a pobreza acarreta na ampliação das condições de deficiência e na redução das possibilidades de trabalho, de reabilitação e educação, a inclusão se torna ainda mais remota. Não vivemos em uma escola inclusiva, se considerarmos os vários níveis e modalidades de ensino, da pré-escola ao ensino superior, da educação especial à de jovens e adultos. Há, sim, uma expansão bastante significativa do acesso à escola na faixa de 7 a 14 anos, com mais de 95% de cobertura. Por outro lado, os alunos com necessidades especiais representam apenas cerca de 0,7% das vagas da educação básica e contam com cerca de 0,6% dos recursos orçamentários da área de educação da União, estados e municípios. Certamente a educação especial não tem sido área prioritária em termos de recursos orçamentários, mas sofreu uma dificuldade adicional para os alunos não vinculados ao ensino fundamental, com o FUNDEF ( Fundo de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Fundamental). De acordo com diagnóstico do Plano Nacional de Educação de 2001, cerca de metade dos municípios brasileiros não possui serviços especializados de educação especial. Nossa escola também não é inclusiva nas suas condições de funcionamento. O salário médio do professor brasileiro em início de carreira é o terceiro mais baixo em um total de 38 países desenvolvidos e em desenvolvimento comparados em estudo da UNESO. Apenas Peru e Indonésia pagam menos. Enquanto o salário anual médio no Brasil é de cerca de 4.800 dólares, o valor é de aproximadamente 9.800 dólares nos vizinhos Argentina e Uruguai ( Folha de São Paulo, 9.10.2002). Se a nossa escola e a nossa organização social não apresentam aquele aspecto fraterno e acolhedor do discurso da inclusão, temos um contexto certamente mais propício para o atendimento dos direitos sociais dos segmentos mais excluídos de nossa população, naquilo que se refere à escola. Nesse sentido, o desafio da inclusão sucede, em parte incorpora e em parte nega, o que se desenvolveu entre nós em nome da integração. Nosso discurso e nossas políticas em educação especial das últimas décadas foram muito marcadas pelas idéias de integração e normalização. Como dizia a saudosa professora Lígia Amaral (1994), a idéia de integração é interessante, mas traz consigo a normalização, entendida na prática como a negação da condição de deficiência, como a obrigação ou o esforço de neutralizar a diferença. A educação especial brasileira traz em sua história marcas muito fortes de uma prática social, dirigida às pessoas com deficiência, construída numa visão medicalizada e caritativa ( v. Mazzotta, 1996). A visão organicista nos acompanha já nos movimentos de eugenia e de saúde pública das primeiras décadas do século passado. O assistencialismo e a caridade caracterizaram os serviços e instituições destinados ao atendimento das demandas de educação, saúde e assistência dessas pessoas. A omissão do poder público é também tradicional em uma área de baixo prestígio político. Sobre essa herança é que se difundiram os discursos sobre normalização e integração, associados à noção de que a educação das pessoas com deficiência, era tarefa de equipes interdisciplinares e de profissionais altamente especializados. Essa tendência, a par de reconhecer a complexidade das múltiplas demandas dessas pessoas, carregou para o interior da escola a percepção de que a educação especial exigia a contribuição de técnicos que não eram dos quadros do sistema de ensino e de que, especificamente quanto ao ensino, cabia aos professores especializados em determinadas áreas de deficiência a responsabilidade pela formação desses alunos. Tanto é assim que, ainda hoje, estudos mostram que mesmo quando o aluno está matriculado nas classes comuns e tem um serviço educacional especializado paralelo, tende a haver a atribuição da responsabilidade educacional para o serviço de apoio. A perspectiva normatizadora e a busca dos grupamentos homogêneos permitiram que se consolidasse uma visão educacional pela qual se tornou possível ao mesmo tempo falar em integração e tratar os alunos com deficiência como se constituíssem um grupo absolutamente distinto dos outros alunos. Haveria os que aprendem na escola que aí está e aqueles que não conseguem. Estes incluiriam as pessoas com deficiência ou com outras espécies de limitações temporárias ou permanentes ( necessidades especiais?). Além disso, a noção de homogeneidade se estendeu também para o interior do grupo com necessidades especiais. Assim é que se naturalizou, por exemplo, a noção de que os portadores de Síndrome de Down são todos iguais ( inclusive quanto ao desenvolvimento cognitivo - leia-se “treináveis”) e de que todos os alunos com deficiência mental devem aprender habilidades básicas de autocuidado ou ser submetidos a programas de prontidão psicomotora. Se os grupos específicos são assim tão semelhantes e, ao mesmo tempo, tão diferentes, devem merecer uma educação comum, mas específica e separada. A noção de valorização da diversidade, nesses termos, é negada justamente pela referência a essa diferença que foi apontada. As propostas de integração, apoiadas no modelo de uma pirâmide de múltiplos serviços hierarquizados de acordo com seu potencial de integração/segregação, indicavam que mais de 90% dos alunos com necessidades especiais poderiam permanecer nas classes comuns das escolas, com ou sem apoio especializado, já que não apresentariam características educacionais fundamentalmente diferentes do restante dos alunos. Para aqueles menos de 10% que apresentassem diferenças significativas de desenvolvimento, eram indicadas as classes especiais ( organizadas por categoria de deficiência e regidas por um docente especializado) e, eventualmente, as escolas especiais ( reservadas para as deficiências consideradas severas, organizadas em serviços multidisciplinares de saúde, educação e assistência). Na realidade, até meados da década de 90, as classes e escolas especiais responderam por 90% do atendimento brasileiro em educação especial. Na prática, nossas escolas públicas priorizaram a abertura de classes especiais para alunos com histórico de fracasso escolar e para os considerados deficientes leves; e sempre houve resistência dos sistemas de ensino para receber alunos com limitações mais evidentes ou para assumir a matrícula nas classes comuns combinada com o apoio especializado. Apenas mais recentemente, o acúmulo das críticas a esse tipo de atendimento – possivelmente associado a uma avaliação burocrática da relação custo/benefício – sinalizou a revisão dessa tendência. Já as escolas especiais sempre constituíram uma modalidade de atendimento de caráter privado e assistencial. Os sistemas públicos de ensino abriram poucas escolas especiais no país. As chamadas instituições especializadas cresceram de forma significativa a partir da década de 70 e ampliaram suas atividades no campo educacional. Elas têm respondido de forma destacada pelo atendimento às pessoas com deficiência, especialmente aquelas de famílias de baixa renda, nas áreas de saúde, assistência e educação. Esse atendimento multidisciplinar é em parte sustentado por algumas linhas de financiamento público, através de subsídios e outros apoios que visam compensar o esforço da instituição para cumprir o papel que caberia ao poder público – e que custaria mais caro para o mesmo, se assumisse o atendimento. Nessa perspectiva, é pouco provável que o discurso da inclusão altere de modo importante o projeto das instituições, a não ser pelo desenvolvimento de programas públicos nas várias áreas sociais aqui envolvidas, um cenário que não parece próximo. Assim como as escolas comuns têm colocado em sua agenda recente a questão da inclusão e das necessidades especiais, de algum modo incorporando esses temas a seus projetos, as instituições especializadas também vivem um momento de transição na área educacional. Seja pelo discurso da inclusão, seja pela revisão das formas de financiamento público nas diferentes políticas sociais, seja pelas mudanças na legislação educacional, as instituições estão se avaliando. A partir da LDB/96 e de outras normas posteriores, elas tiveram que organizar seu espaço de educação escolar de acordo com os requisitos que a lei exige de qualquer escola. É nessa linha, por exemplo, que a FENAPAES desenvolveu com apoio do MEC o projeto da APAE Educadora. Essa tendência de um modo particular de divisão de tarefas entre o público e o privado, na área de educação especial, reflete-se nas estatísticas de atendimento. Enquanto o percentual de matrículas iniciais no ensino público, comparado com o privado, foi de 91% no ensino fundamental e de 75% na educação infantil, no período 2001/2002 ( cabendo ao ensino privado 9 e 25% das vagas nesses níveis, respectivamente), o percentual de matrículas no ensino público, nos diferentes níveis, de alunos com necessidades especiais, foi de 51% e de 53% nos dois anos indicados. Quando à dimensão de maior ou menor segregação, em termos da natureza dos serviços educacionais, ainda predomina o atendimento em escolas e classes especiais ( com 87% das matrículas em 1998, 83% em 1999, 79% em 2000, 80% em 2001 e 75% em 2002), em comparação com as matrículas em classes comuns com e sem apoio. Tem ocorrido nos últimos três anos uma ampliação significativa de matrículas em classes comuns, com e sem apoio, nas redes municipais de ensino, o que poderá transformar em tendência as indicações dos dados de 2002. Naturalmente, também crescem os números do segundo bloco, em termos absolutos e relativos, com a desativação das classes especiais dos sistemas públicos. Vamos recorrer agora ao que nos mostram as pesquisas acadêmicas sobre o que tem acontecido em nossa realidade nos últimos anos, em educação especial. Temos trabalhado desde 1995 em projeto integrado de pesquisa avaliando teses e dissertações sobre educação especial defendidas em programas de pósgraduação em Educação e Psicologia no Brasil ( Nunes, Ferreira e Mendes, 2001). Um dos temas mais destacados foi o de integração/inclusão, referindo-se a trabalhos relacionados a atividades, modelos, programas e políticas de inserção de pessoas com necessidades especiais junto a seus pares não considerados especiais. O tema, identificado pelos autores como integração ou como inclusão, foi abordado em cerca de 15% dos mais de 500 trabalhos até agora analisados. As áreas de deficiência mental e surdez foram as mais contempladas. As de deficiência múltipla e condutas típicas foram muito pouco investigadas, o que se entende pela presença pouco expressiva dessa população nas escolas. A área de deficiência física tem sido mais investigada recentemente ( por exemplo, em trabalhos com a inserção escolar de alunos com paralisia cerebral). Uma das percepções obtidas da análise dos resultados é a da redução da concepção clínica de deficiência, pelos autores das teses, predominando as concepções psico-educacional e social. Alguns resultados e tendências apontados nos estudos serão destacados a seguir. Na educação infantil, os trabalhos reafirmaram a importância da inserção de crianças com necessidades especiais, de 0 a 6 anos, nos programas educacionais regulares. ao lado do contexto positivo de interação criado entre crianças com e sem necessidades especiais nesse nível de ensino. Destacaram-se os ganhos no desenvolvimento dessas crianças e apontou-se a necessidade de promover programas de formação para os professores e outros profissionais. No ensino fundamental, nas séries iniciais, alguns estudos analisaram as percepções ou representações de professores, de pais e de alunos portadores e não portadores de necessidades especiais sobre a inserção escolar de alunos com deficiência. Prevaleceu a idéia de que o discurso da integração ou da inclusão é habitualmente aceito e incorporado pelos diferentes agentes, assim como o é o possível enriquecimento que o convívio de alunos com e sem deficiência pode trazer para as práticas educacionais. Há, contudo, uma série de entraves e processos discriminatórios revelados nos discursos, para as diferentes categorias de necessidades especiais. As concepções tradicionais sobre a deficiência, a referência central às limitações, a falta de conhecimento e de condições de trabalho, a carência de apoios revelamse nos diferentes estudos e parecem apresentar um desafio importante para que a inserção escolar desses alunos seja bem sucedida. essa a tendência predominante nas ambigüidades e contradições dos discursos. Assim como nos trabalhos sobre percepções de profissionais, as pesquisas voltadas para a descrição das práticas pedagógicas nas escolas regulares apontaram a distância entre o discurso politicamente correto e a realidade de uma escola ainda insensível e pouco equipada para lidar com a diversidade de seus alunos. Talvez pelo caráter recente dos processos de inserção escolar, especialmente de alunos com determinadas características, ampliou-se o acesso a uma escola já problematizada com a falta de qualidade e de apoio, a qual tem dificuldade de superar o estágio de simples inserção física dos alunos. Assim é que as práticas integradoras e a formação continuada dos professores e técnicos parece estar se dando de forma reativa aos problemas colocados pelo cotidiano, sem o planejamento e o apoio necessários; como se a inserção desses alunos dependesse de modo quase exclusivo da postura de sacrifício ou da boa vontade dos professores. Outros conjuntos de estudos, em quantidade menos expressiva, relacionam-se com temas também relevantes. Na área de educação física, foram relatadas as dificuldades de alunos com necessidades especiais para a prática de educação física escolar e foram estudadas estratégias para desenvolver atividades integrando alunos com e sem necessidades especiais, nas áreas de deficiência física e mental. Foram poucos os estudos sobre instituições especializadas em educação especial, com destaque para a área de deficiência mental. Ao lado do desenvolvimento de programas educacionais aparentemente significativos, também foram apontadas algumas limitações pedagógicas das propostas institucionais e a falta de clareza das relações estabelecidas entre o trabalho institucional e as demandas do mundo externo ao qual se integrariam futuramente os egressos. Outros trabalhos, também em pequeno número, abordaram aspectos da vida das pessoas com deficiência não presentes de forma imediata no cotidiano dos programas da instituição escolar. São estudos que apontaram para a relevância de temas como o lazer, a participação da família, a percepção das próprias pessoas com necessidades especiais – como parte do processo educacional e como constituintes de uma noção mais ampla de integração ou inclusão, que não se restringe à educação escolar. Analisando ainda os trabalhos sobre políticas públicas, pode-se concluir que, se não há entraves de ordem legal, no plano dessas políticas, os componentes do assistencialismo, da visão terapêutica da educação do aluno com necessidades especiais e do descompromisso das escola pública, têm ainda favorecido práticas educacionais que negam as noções de integração e de inclusão. Retomando os trabalhos em seu conjunto, indica-se a possibilidade e a necessidade de que os projetos político-pedagógicos das escolas valorizam a inserção dos alunos com necessidades especiais. Aqui, destaca-se como crucial a questão dos recursos humanos. A maioria das pesquisas destacou a necessidade de rever os programas de formação inicial e continuada dos profissionais que trabalham em serviços educacionais que incluem pessoas com necessidades especiais; quanto aos professores, enfatiza-se a importância de incluir as necessidades educacionais especiais na formação do professor do ensino comum ( e não na forma de uma disciplina isolada no currículo), bem como de superar a noção e de formação muito distintas e isoladas do professor especializado em educação especial. Outras indicações incluem a necessidade de que os estudos sobre integração ou inclusão saiam dos muros da escola e incluam famílias e comunidade externa, de que se rediscuta o sentido da prática educacional das escolas especiais, de que os apoios especializados eventualmente necessários se façam disponíveis no contexto da educação comum. A despeito da variedade de formas com que os estudos compreenderam o processo de integração ou de inclusão, predominou uma visão crítica dos modos como se constituíram os serviços educacionais especializados em nossa realidade e ao ainda reduzido compromisso do Estado e da escola pública com os alunos com necessidades especiais. Esses resultados e tendências apontados nas pesquisas não revelam e nem implicam um quadro de estabilidade. Têm ocorrido mudanças importantes na legislação e no campo da educação, assim como na sociedade mais ampla. No âmbito da legislação e das políticas públicas, tem se reiterado o discurso do compromisso com uma educação pública e de qualidade para todos. É evidente que não se muda de modo relevante a realidade social pelo registro ou até mesmo pela imposição legal. Como aponta Skliar (2001), o legislar sobre a inclusão e o inserir a pessoa com deficiência na escola comum, sem outras mudanças mais profundas, pode até favorecer uma cultura de tolerância, mas sem compromisso. De todo modo, e a despeito das limitações apontadas na trajetória de nosso atendimento em educação especial, as questões relacionadas à educação das pessoas com deficiência e as próprias pessoas assim consideradas estão mais presentes nos documentos e nos espaços da escola pública. Fora do âmbito da educação escolar, outros registros legais e políticos ganharam destaque a partir da Constituição de 88. Um exemplo é o Decreto No. 3298/99, da Presidência da República, que regulamentou 10 anos depois a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. O decreto prevê uma série de iniciativas integradas do poder público nas áreas de cultura, desporto, turismo e lazer (Brasil, 2001). Deveríamos avaliar se e de que modo essas ações estão ocorrendo. Jannuzzi (1997), comentando sobre o desafio de estabelecer prioridades na área de educação especial, questionava: Como faremos para que sejam assumidas eficientemente pelo poder público sem que os desvios e ineficiência quer públicas quer privadas continuem a ser uma constante? (...) a parceria do poder público deve iniciar-se entre seus próprios setores (...) dada a complexidade da educação especial a parceria deve ser estabelecida também com os outros setores públicos tais como saúde, trabalho, assistência social, cultura, lazer etc.(p. 6) Outras possibilidades concretas, também na educação, revelam-se no crescimento das vagas e das experiências inclusivas junto à educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Surgem condições e programas favorecedores da quebra do preconceito, do apoio concreto às famílias, da promoção de trocas significativas entre todos os alunos. Um dos efeitos potencialmente positivos da LDB está na flexibilização da organização dos currículos e práticas escolares, permitindo a organização de ciclos escolares e a superação do regime seriado e da reprovação frequente. O que nos deve preocupar, contudo, é de que as propostas ditas inclusivas não acompanhem o caráter nitidamente contábil e estatístico que tem marcado muitas das propostas de progressão continuada. As possibilidades existem. Hoje se percebe como as novas tecnologias e o campo da informática ampliam as possibilidades de formação e trabalho das pessoas com deficiências físicas e sensoriais. De outra parte, cresce o desemprego estrutural e se ampliam as exigências de qualificação, sinalizando um desafio ampliado, por exemplo, na área de deficiência mental. No campo social, consolidam-se os movimentos e as conquistas dos grupos e organizações de e para pessoas com deficiência. É assim, nesse quadro de avanços e recuos, de conquistas e resistências, de predomínio da negação sobre a afirmação dos direitos, que o discurso sobre a inclusão se torna hoje hegemônico. Referindo-nos às pessoas com deficiência, assumimos, com Glat (1995), a noção de que ninguém integra ( ou inclui ) o outro. As pessoas se integram de um ou outro modo às atividades do cotidiano e às relações interpessoais dentro das possibilidades colocadas em seu contexto. Isso não significa que devamos nos omitir de criar condições favoráveis para que as pessoas se integrem. Pode significar, como aponta Omote (1994), a necessidade de que se apoiem as pessoas para que definam por si próprias seus planos, quebrando o que o autor chama de privilégio-obrigação da pessoa com deficiência, de ter que se integrar a uma série de situações. Tendemos a decidir por elas o que são experiências mais integradoras ou inclusivas para elas próprias, segundo critérios de cuja definição elas não participam. A decisão é externa a elas e a seus valores e expectativas. Nossos pressupostos teóricos e ideológicos que dão suporte aos discursos sobre integração e sobre inclusão não permitem que entendamos porque um egresso da instituição queira para ela voltar e porque as pessoas com deficiência valorizam a interação com seus pares também com deficiência. Permito-me, contrariando a boa norma acadêmica, concluir com um comentário utilizando a primeira pessoa do singular. Aprendi na UNICAMP, com meus colegas e amigos do DEAFA, a ter a preocupação em não reduzir a vida ao aprendizado acadêmico das escolas e a valorizar experiências desenvolvidas por e para grupos de pessoas com deficiência. Se os objetivos anunciados nos discursos de integração e inclusão têm a ver com a realização da autonomia e da felicidade das pessoas, não é exatamente isso que mobiliza as pessoas para este Simpósio? O reducionismo que “escolariza” as questões relacionadas à pessoa com deficiência, seja em nome da integração, seja em nome da inclusão, impede que se veja os múltiplos espaços, desafios e possibilidades que se colocam para a construção da cidadania dessas pessoas. E, mesmo no âmbito da educação escolar, é importante resistir ao intelectualismo e ao academicismo. Sem descurar das funções sociais básicas da escolarização, é também necessário considerar que um dos pilares do movimento de inclusão veio justamente dos grupos e familiares daquelas pessoas consideradas severamente comprometidas, como os autistas e deficientes múltiplos, que têm lutado pelo acesso à instituição escolar sem a meta preponderante dos ganhos acadêmicos. A cidadania se afirma pela apropriação de bens simbólicos, culturais e sociais ( Severino, 1992), incluindo o acesso irrestrito à educação, saúde e assistência. O trabalho, o lazer, a segurança são também direitos sociais inscritos em nossa Constituição. A educação, como instância mediadora, é ao mesmo tempo o exercício de um direito e a possibilidade de ampliação do acesso a outros direitos fundamentais. No caso das pessoas com deficiência, e não só delas, esses direitos se afirmam no direito à igualdade com respeito à diferença. Referências bibliográficas Amaral, Lígia A . Pensar a diferença/deficiência. Brasília: CORDE, 1994. Brasil. Ministério da Educação. Direito à educação – necessidades educacionais especiais: subsídios para atuação do ministério público brasileiro. Brasília: MEC/SEESP, 2001. Glat, Rosana. A integração social dos portadores de deficiência: uma reflexão. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. Jannuzzi, Gilberta S.M. Educação, escolarização e inclusão. Trabalho apresentado no Seminário da SOBAMA, Uberlândia, MG, 1997. Mazzotta, Marcos J.S. Educação especial no Brasil: história e políticas. São Paulo: Cortez Ed., 1996. Nunes, L.R.; Ferreira, J.R. e Mendes, E. Análise crítica das teses e dissertações sobre educação especial nas áreas de educação e psicologia. Relatório científico para o CNPq, 2001. Omote, Sadao. A integração do deficiente: um pseudoproblema? Trabaho apresentado na XXIV Reunião Anual de Psicologia, Ribeirão Preto, SP, 1994. Severino, Antonio J. A escola e a construção da cidadania. Em A escola e a construção da cidadania. Coleção CBE. Campinas: Papirus, 1992. Skliar, Carlos. Seis perguntas sobre a questão da inclusão ou como acabar de uma vez por todas com as velhas - e novas - fronteiras em educação. Pro-posições, 12, 2-3, 35-42, 2001. MOTIVAÇÃO E FLOW-FEELING: A TEORIA DA EXPERIÊNCIA MÁXIMA PARA A DANÇA EM CADEIRA DE RODAS Maurício G. Bara Filho 2 1 Renato Miranda 1 Doutor em psicologia do esporte; Diretor da Faculdade de Educação Física e Desportos (FAEFID) da UFJF; Vencedor do II Prêmio Brasil Esporte de Literatura (2001) – categoria doutorado. A palavra motivação é freqüentemente utilizada como meio de se atingir o sucesso em qualquer atividade. Em Al Huang e Linch (1992; p.224) não há nenhuma mágica para motivação, sendo preciso apenas seguir o provérbio: "Identifique-se com tudo o que você ama e preencha com isso sua vida". Assim, toda e qualquer atividade bem como as pequenas alegrias do processo serão recompensados por si mesmos e a percepção de otimismo será vivenciada. Mesmo não gostando de certas atividades, o indivíduo pode aprender a gostar delas e de seus benefícios. Não ocorrendo essa ligação, o exercício passa a ser um trabalho, uma obrigação. "A motivação é o resultado do amor pelo que se faz. Sem esse amor, o exercício torna-se difícil" (p.224). Acredita-se que a motivação para se realizar uma atividade como a dança em cadeira de rodas não é inato, como a direção para satisfazer a fome ou a sede, mas deve ser desenvolvido e aprendido. A motivação, enquanto categoria sujeita à investigação, pode ainda ter dois enfoques principais. No primeiro “estão os estudos das razões pelas quais se escolhe uma atividade e não outra. No segundo [grifo dos autores] estão os dados referentes às razões pelas quais se realizam ações com diferentes graus de intensidade, procurando explicá-los.” (Cratty, 1984, p. 36). Al Huang e Linch (Ibid, p. 226.) fazem uma consideração importante a respeito da motivação e a individualidade do prazer ao afirmarem que o “nível de motivação é diretamente proporcional ao prazer obtido nas 2 Doutorando em psicofisiologia do esporte (UGF); Professor da FAEFID (UFJF); Vencedor do II Prêmio Brasil Esporte de Literatura (2001) – categoria mestrado. atividades. Sem este fator, a motivação e o entusiasmo se evaporam rapidamente.” Em outra perspectiva, se uma pesso como os praticante da dança em cadeira de rodas enfrentar alguma adversidade na aprendizagem da atividade sem estar preparada, pode não satisfizer seus objetivos, desmotivar e perder o interesse pela dança. É o caso de praticantes que se submeteram a processos desprazerosos e, por falta de estrutura física, psíquica e/ou moral para suportarem o processo de aprendizagem e treinamentos não atingiram o objetivo idealizado e abandonaram a prática das atividades físicas CONCEITOS DE MOTIVAÇÃO À vista dos pressupostos anteriores, estabeleceu-se como critério de investigação seis conceitos básicos sobre motivação para nortear a tarefa de relacionar cada conceito com aspectos relevantes com a dança em cadeira de rodas. A seguir será exposto cada um desses conceitos e suas relações temáticas. Inicialmente afirma-se que “a motivação é a direção e intensidade de um determinado esforço.” (Sage, 1977, p. 76). Completando esse conceito pode-se dizer que a motivação é “fator interno que dá início, dirige e integra o comportamento de uma pessoa.” (Murray, 1986, p.45). Observando estes dois conceitos nota-se que a motivação é energia psíquica que dinamiza o comportamento a partir de objetivos pessoais, por isso, é difícil compreender atitudes específicas, como subir e descer uma montanha, excluso qualquer conseqüência explícita, sem antes vivenciar alguma experiência semelhante ou diagnosticar os fatores externos e perceber as necessidades pessoais que fazem com que uma pessoa se interesse em eleger essa tarefa como lazer. Auxiliando a discernir esse pensar, entende-se a motivação como um “processo ativo, intencional e dirigido a uma meta, o qual depende da interação de fatores pessoais (intrínsecos) e ambientais (extrínsecos). (Samulski, 1992, p. 55). Este conceito nos remete a avaliar que não há uma causa única determinante do comportamento. Tanto os fatores intrínsecos como os extrínsecos agem como orientadores do comportamento. Como todo comportamento surge no âmbito da satisfação de uma necessidade, a motivação pode ser entendida como “desejo para satisfazer uma necessidade.” (Cox,1994, p.78). A satisfação das necessidades se relaciona com a auto-realização, com isso a motivação é também entendida como “processo de mobilizar necessidades pré-existentes que sejam relacionadas com os tipos de comportamento capazes de satisfazê-las.” (Feijó, 1992, p. 151). Quando uma pessoa consegue estabelecer uma relação de conveniência entre sua necessidade e o objeto capaz de satisfazê-la, um estado ótimo de motivação será verificado. TIPOS DE MOTIVAÇÃO Segundo Miranda (1994; p.44), a motivação está ligada diretamente às necessidades do homem que são o significado para o seu desenvolvimento. Os objetivos básicos do homem são satisfazer suas necessidades universais que são, citando Feijó: "Necessidades de autoexpressão, necessidades de auto-realização, necessidade de afetividade, necessidade de fazer bem feito o que a pessoa considera importante e pertencer ao grupo considerado importante pela própria pessoa". Para Miranda (1994; p.45), necessidades e motivo são coisas iguais e, quando relacionadas com comportamento e movimento, produzem os mesmos efeitos. E, de acordo com Maslow, que concebe cinco necessidades do homem: Necessidades fisiológicas, por exemplo: satisfazer a fome e a sede. Necessidade de segurança, ordem, estabilidade. Necessidade de afeto, aceitação, filiação a grupos. Necessidade de estima, prestígio, sucesso, auto-respeito. Necessidade de plena realização pessoa. Em Feijó (1992), o processo motivacional é função dinamizadora do treinamento, da aprendizagem e exige um bom conhecimento das necessidades humanas, pois sejam estas físicas, espirituais, artísticas ou sociais, estão relacionadas com os movimentos intencionais e funcionais da personalidade. Pressuposto, pode-se projetar o entender da motivação como o elemento energizador da dança em cadeira de rodas. A motivação é caracterizada como um processo ativo intencional e dirigido a uma meta, dependendo da interação de fatores pessoais (intrínsecos) e ambientais (extrínsecos). (Cratty,1984). Não obstante, a motivação intrínseca representa a vontade interior de realizações de determinadas tarefas, não dependendo exclusivamente de fatores motivacionais externos, embora a motivação extrínseca colabore com a manutenção ou modificação do comportamento. A motivação ambiental é representada por fatores externos que podem motivar o comportamento tais como, troféus, dinheiro e elogios. Já a motivação intrínseca é a força psíquica interior para o empenho em uma atividade por vontade própria. No que tange às realizações pessoais significativas, realizadas com a maior eficácia possível, provendo contínuos e novos desafios, a motivação intrínseca é, sobremaneira, mais fundamental do que a extrínseca, pois nas atividades físicas, de uma maneira geral, o vínculo entre realização de tarefas e motivação intrínseca é interdependente. O desafio de vencer obstáculos, criar novas tensões em si mesmo, promover mudanças e obter sucesso, aventam ser algumas das principais motivações em vários esportes; dança em cadeira de rodas, atletismo, esportes coletivos, pára-quedismo e montanhismo. Outra relação que se verifica também cogitada por este autor é entre o nível de motivação e a atratividade e estimulação, isto é, há uma relação linear entre estes dois fatores. Se se aumenta a atratividade da situação ou se apresentam incentivos, aumenta-se a intensidade da motivação. Breve introdução sobre o Flow-feeling A teoria do flow-feeling foi desenvolvida por Csikszentmihalyi principalmente a partir de estudos nas décadas de 70, 80 e início de 90. Conhecido também como fluir, fluidez, fluxo ou experiência máxima, o flowfeeling, ajuda-nos a entender melhor o porquê de pessoas realizarem certas tarefas com o máximo desempenho e em alto grau de motivação. Por exemplo, permite detectar indícios importantes de como os certos praticantes de atividades como a dança em cadeira de rodas, mantêm um alto nível de motivação em uma jornada, que para muitos pode não ter nenhum sentido. É oportuno avaliar que dos diversos conceitos sobre motivação, (SAMULSKI,1992; DUDA,1992; COX,1994; STRATTON e HAYES,1994, FEIJÓ,1998; MIRANDA & BARA FILHO,2002), são encontradas palavras e/ou expressões iguais ou similares referentes ao flow-feeling ou experiência máxima, tais como; alcançar metas pessoais, satisfação, motivação intrínseca, impulsionar, estruturas de atividades e necessidades. Isto se deve pela característica dinâmica da experiência do fluir que se processa em um patamar de envolvimento e complexidade só possível em alto grau de motivação. De modo permitir identificar o fluir (flow-feeling) como um significativo motivador. Fundamentado em CSIKSZENTMIHALYI (1990;1992;1993;1996;1997) o elemento sustentador para o fluir ou experiência máxima, é determinado quando a atividade a ser feita é vivenciada como tendo um fim em si mesma. Além disso, independente de suas razões, esta atividade absorve a pessoa e torna-se intrinsecamente gratificante. O fluir é antes de tudo uma experiência autotélica. Em todas as situações que a pessoa flui, sua atenção é livremente investida para alcançar as metas pessoais. A palavra autotélica originou-se da união de duas palavras gregas, auto que sgnifica por (ou de) si mesmo, e telos que significa finalidade. Daí a idéia de que uma experiência autotélica refere-se à uma atividade autosuficiente, envolvente, realizada sem a expectativa de algum benefício futuro, mas simplesmente porque realizála é a própria recompensa (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p.104). A experiência autotélica, ou o fluir, eleva o curso da vida a um nível diferente. A alienação dá lugar ao envolvimento, a satisfação substitui o tédio, a impotência se transforma numa sensação de controle, e a energia psíquica atua para reforçar a sensação do self, em vez de se perder atendendo a objetivos exteriores. Quando a experiência é intrinsecamente gratificante, a vida se justifica no presente, em vez de ser mantida como refém de um hipotético ganho futuro. (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p.106) Observando os indivíduos praticantes da dança em cadeira de rodas, nota-se ser esta atividade um ótimo exemplo de vivência da sensação do fluir. Ao se inserirem nessa atividade, busca-se atingir objetivos nela própria, absorvendo-os na sua totalidade e vivenciando-na com máxima intensidade. Todavia não é um fenômeno que ocorre simplesmente por acaso. O fluir mesmo sendo uma experiência espontânea, é otimizada por três situações: primeiro, quando a atividade a ser realizada é estruturada; segundo, a habilidade da pessoa é compatível com a tarefa; terceiro, considerando ambas as situações. Estas situações propiciam compreender melhor as características comuns para o fluir. Características do Flow-feeling As características comuns do flow-feeling,( CSIKSZENTMIHALYI, 1992.p.109) independente da atividade são: a) Percepção de que suas aptidões são adequadas para lidar com os desafios imediatos, num sistema de ação limitado por regras e voltado a um objetivo que oferece indícios claros de como está o desempenho individual (retro informação- feedback- imediata); b) Há uma concentração intensa; c) d) e) f) g) h) Autoconsciência desaparece; Perda da noção de tempo e espaço; Percepção de satisfação; Controle absoluto das ações; Experiência autotélica; Alegria espontânea e experiência intrinsecamente compensadora. Neste contexto, as condições básicas para o fluir são: a) Relacionar a estrutura da atividade à habilidade da pessoa; b) Oferecer percepção de descoberta; c) Impulsionar a pessoa para níveis mais elevados de desempenho; d) Conduzi-la a estados de consciência jamais sonhados. Em outras palavras, quando a informação que chega em nossa consciência está de acordo com nossas metas estamos prontos para fluir. Fluindo, a pessoa está apta a desenvolver capacidades e fazer contribuições significativas à humanidade. (Ibid., p.108) ATIVIDADE FÏSICA E FLUIDEZ Como algumas pessoas sentem alegria, mantém um alto nível de concentração e motivação participando de uma atividade física? Nosso desafio é tentar responder essa pergunta, na tentativa de conseguir discriminar como uma atividade favorece e melhora a qualidade de vida das pessoas. A resposta é factível, prioritariamente, porque algumas atividades têm características oportunas de gerar experiências máximas, tal como as características individuais que otimizam determinada pessoa a alcançar o fluir com facilidade. Todas as atividades com alto potencial de motivação intrínseca, quando voltadas para a ludicidade 3 , foram classificadas por CALLOIS (1961) conforme as seguintes características: Alea: classe dos jogos de azar; Mimetismo: grupo de atividades cujo limites pessoais transcendem-se através da fantasia. São representados pela dança, teatro, e artes em geral; Agon: representa todas as formas de disputas que têm como característica principal o confronto de pessoas umas contra as outras, como os jogos coletivos e disputas esportivas; Vertigem ou ilinx: são as atividades que causam a desorganização da percepção normal através da alteração da consciência, como o ski, pára-quedismo e o montanhismo. A dança em cadeira de rodas, a partir dessa teoria revela-se como uma atividade de mimetismo; entretanto o agon e o ilinx também fazem parte da experiência do 3 Entende-se aqui por ludicidade toda e qualquer atividade que atende os prérequisitos de SATISFAÇÃO, ESPONTANEIDADE E FUNCIONALIDADE. praticante de dança em cadeira de rodas. Não obstante, a classificação de CALLOIS (1961) não permite dizer como as atividades emergem para o fluir mas onde e quando este ocorre. Considerando-se a dança em cadeira de rodas como atividade esportiva que facilita a experiência máxima, pois do mesmo modo que a atividade musical, alpinismo, iatismo e demais esportes, a dança tem regras que exigem o aprendizado de habilidades, estabelece metas, dá retorno, facilita a concentração e torna possível o controle em todo o processo da atividade. Tal atividade permite a pessoa deixar de pensar e agir em função do senso comum e direciona toda sua energia psíquica à concentração na realidade específica da própria atividade. (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p.110) Levando-se em conta as características do fluir, CSIKSZENTMIHALYI, a fim de exemplificar melhor o fenômeno da experiência ótima e suas conseqüências positivas para a transformação e o crescimento do self, elaborou um diagrama que ora adaptou-se para o aprendizado e vivência da dança em cadeira de rodas. (Ibid., p. 113) O diagrama a seguir representa a experiência de um iniciante na dança em cadeira de rodas e serve como orientação para a facilitação do fluir. Os desafios da dança e as aptidões do iniciante, estão representados nos eixos do diagrama. A letra I representa um iniciante de dança em cadeira de rodas. O diagrama mostra o iniciante em quatro situações distintas: Quando começa a praticar (I1), tem pouca aptidão, e o único desafio que enfrenta é executar os fundamentos básicos de deslocamento. Não é uma tarefa difícil, mas possivelmente o iniciante tenha satisfação nessa experiência pois a dificuldade está compatível com suas aptidões elementares. Nessa situação ele provavelmente estará fluindo. No entanto, não poderá ficar assim durante muito tempo. Após algum tempo, praticando aprimorará suas aptidões tais como; resistência aeróbia, força muscular, concentração e mobilização psíquica. Continuando apenas nessa tarefa ficará entediado (I2), “porque a complexidade da consciência aumenta em decorrência das experiências do fluir.” (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 113) No entanto, se o iniciante experimenta uma tarefa de grande dificuldade, perceberá que existem desafios muito mais difíceis do que uma pequena série de movimentos coordenativos, resultando um sentimento de ansiedade (I3) em função de seu fraco desempenho. O tédio e a ansiedade são experiências que distanciam as pessoas do fluir, pois são experiências negativas. Então em nosso exemplo, o iniciante sentirá motivado para retornar ao estado que flui. Considerando a situação I2 (tédio) e desejando-se voltar a fluir, o iniciante deve tomar e seguinte atitude: aumentar os desafios que está enfrentando de modo compatível com sua aptidão. Por exemplo, participando de uma série de médio esforço e grau de dificuldade razoável. Caso o iniciante sinta-se ansioso (I3), para que volte a fluir é necessário que aumente suas aptidões. Pode-se também diminuir os desafios que está enfrentando e tornar a fluir (I1), todavia “é difícil ignorar desafios se estamos conscientes de que eles existem.” (Ibid., p. 114) Nas situações (I1) e (I4) estão representados o fluir (canal do fluir). São momentos de satisfação porém; (I4) é uma situação mais complexa do que (I1), pois abrange desafios maiores e exige mais aptidões do iniciante. A situação (I4) também não é definitiva. Este nível em um certo momento será, entediante ou gerar-se-á ansiedade para o iniciante (aptidão incompatível). Então, este sentirá necessidade de voltar a fluir, criando uma motivação para experimentar satisfação novamente. Todavia, ao retornar ao canal do fluir, o nível de complexidade será mais elevado do que (I4). É importante perceber que quando se retorna ao canal do fluir, diminuindo a dificuldade da tarefa, deve-se tomar cuidado para encontrar um nível adequado na relação desafio-tarefa, a fim de favorecer um nível de complexidade sempre mais elevado, porém de acordo com os potenciais energéticos da pessoa. Favorecendo o crescimento e a descoberta. É essa característica dinâmica que explica por que as atividades que fluem levam ao crescimento e à descoberta. Não se pode gostar de fazer a mesma coisa, no mesmo nível, durante muito tempo. Ficamos entediados ou frustados; então, o desejo de nos sentirmos satisfeitos [grifo do autor] novamente nos leva a ampliar nossas aptidões, ou a descobrir novas oportunidades de utilizá-las. [...] Não são as aptidões que de fato possuímos que determinam como nos sentimos, mas sim as que pensamos ter. (CSIKSZENTMIHALYI, 1992, p. 114,115) DIAGRAMA DAS ATIVIDADES QUE FLUEM ∞ (ALTA) Ansiedade Canal do Fluir I3 I4 Tédio (BAIXA) 0 I1 I2 (BAIXA) (ALTA) (CSIKSZENTMIHALYI,1992) Na teoria do flow-feeling é fundamental que se observe que a consciência é livre para fazer suas próprias avaliações em relação a qualquer situação. Não há uma ou outra atividade que garanta de ante mão o estado do fluir. O que existe são atividades que favorecem o fluir mas não necessariamente garantindo a fluidez. Uma pessoa pode aceitar o desafio de participar de uma competição de dança em cadeira de rodas, e por outro ∞ lado não sentir nenhuma motivação para aprender praticar tênis em cadeira de rodas. A principal razão da busca do fluir independente da atividade é o fato da possibilidade de um evento ou desafio fornecer satisfação. Dentre as particularidades de qualquer atividade e a intenção de melhorar a qualidade de vida, deve-se levar em conta que o fluir favorece as realizações e o desenvolvimento pessoal. Logo, conclui-se como importância do Flow-feeling: a) Torna o momento presente mais agradável; b) Cria autoconfiança e harmonia; c) Libera energia psíquica; d) A alienação dá lugar ao envolvimento; e) A satisfação substitui o tédio; f) A impotência se transforma em percepção de controle e transforma a vida. MEIO AMBIENTE, CULTURA E FLUIR O meio ambiente e cultura são alguns dos indicadores que orientam as motivações das pessoas de determinadas regiões para o fluir. A estratégia eleita para melhor entendimento de como se procede esse fenômeno, foi descrever algumas experiências ocorridas em culturas diferentes e em distintas circunstâncias. Não preocupou-se em relativizar culturas nem tão pouco fazer avaliações interculturais. A idéia é simplesmente trazer à baila deste capítulo alguns exemplos que reforcem o conceito do fluir na execução de tarefas, seja esportiva ou não. De início, um bom exemplo é verificado em KOLL (apud, CSIKSEZENTMIHALYI,1992) ao descrever uma tribo indígena da Colúmbia Britânica, Koll retrata como uma cultura pode ter um estilo de vida que flui: A região de Shushwap foi e é considerada pelos índios como um lugar rico: rico em salmão e caça, rico em recursos alimentares como tubérculos e raízes - uma terra de abundância. Nesta região, as pessoas viviam em aldeias permanentes e exploravam os arredores em busca daquilo de que necessitavam. Possuíam tecnologias sofisticadas desenvolvidas para o uso eficiente dos recursos do meio ambiente e consideravam sua vida boa e rica. Contudo, diziam os mais velhos, às vezes o mundo tornava-se muito previsível, e o desafio começava a sumir de suas vidas. Sem desafios, esta não tinha sentido. Assim, os mais velhos, em sua sabedoria, decidiram que toda a aldeia deveria mudarse a cada vinte e cinco ou trinta anos. A população inteira se transferia para outra parte do território Shushwap e lá encontrava desafios. Havia novas correntes de água para procurar, novas trilhas de caça para conhecer, novas áreas abundantes em raízes balsâmicas. A vida recuperaria o significado e valeria a pena ser vivida. A propósito, isso também permitiu que os recursos explorados em determinada área se recuperassem depois de anos e anos de colheitas...(KOOL, apud, CSIKSZENTMIHALYI,1992, p.121) Uma outra ilustração oportuna é a existência de culturas que por um motivo ou por outro, conseguiram gerar uma realidade na qual o fluir é relativamente fácil de ser atingido. TURNBULL (Ibid., p.120) descreve os pigmeus da floresta Ituri, como modelo de harmonia entre si com o meio ambiente, enriquecendo a vida com atividades úteis e desafiadoras. Ora estão caçando, ora promovendo benfeitorias em suas aldeias. Além disso, cantam, dançam, tocam instrumentos musicais ou contam histórias. “Como em muitas culturas ditas ‘primitivas’, nesta sociedade pigméia espera-se que cada adulto seja um pouco cantor, ator, artista e contador de histórias, além de artesão habilidoso. Sua cultura não receberia uma classificação elevada quanto a realizações materiais, mas quanto a oferecer experiências máximas, seu estilo de vida parece muito bem-sucedido.” (Ibid., p.120) Uma outra situação, é a espontaneidade com que certos grupos de pessoas –praticantes de trekking 4 - da região da Zona da Mata Mineira (Minas Gerais, Brasil) caminham por longas distâncias nas trilhas montanhosas com certa facilidade e experimentam as experiências do fluir. Fazendo do caminhar a fonte principal de lazer. No vilarejo de Conceição do Ibitipoca onde existe um parque estadual 5 , em qualquer época do ano é comum encontrar em suas montanhas grupos de pessoas que em um único dia caminham de 4 a 6 horas em um terreno acidentado e cheio de aclives, onde a motivação presente é vivenciar as sensações da própria caminhada (trekking) e usufruir da natureza. Esta experiência é relevante para referendar a idéia de que - no esporte especificamente, para ter satisfação não é indispensável avançada tecnologia ou tarefas sofisticadas. É fundamental antes de tudo, possuir 4 Trekking: categoria de modalidade esportiva do montanhismo. Parque Estadual do Ibitipoca. Controlado e administado pelo IEF (Instituto Estadual de Floresta) 5 aptidões necessárias para o aproveitamento das horas de lazer e reestruturar a consciência para possibilitar o fluir. A satisfação para alguns é experimentada em qualquer lugar, outros não conseguem usufruir desta experiência mesmo tendo possibilidades fascinantes. Atualmente, as pessoas dispõem de uma grande variedade de recursos e engenhocas destinadas à recreação e de opções de lazer, todavia a maioria continua entediada e vagamente frustrada. (Ibid., p.124) Em qualquer um dos exemplos acima verifica-se que independente da atividade ou lugar, o Flow-feeling é possível quando toda nossa energia psíquica representada pela atenção é destinada aos objetivos intrínsecos encontrados na realização da própria tarefa, sem a preocupação de benefícios futuros e ou extrínsecos. A orientação para vivenciar a satisfação e a alegria - restruturadores de nossa entropia natural, reside em avaliar a estrutura das atividades que favoreçam o fluir e todas as aptidões pessoais capazes de possibilitá-las. CONCLUSÃO Os estudos a respeito do flow-feeling e sua contribuição para uma vida potencialmente mais dinâmica, envolvente, significativa e recheada de alegria, não se esgotam aqui nem tão pouco são panacéias de sucesso ou satisfação absoluta. No entanto, através de conceitos, condições, características e exemplos de diversas situações de Flow-feeling e sua interface com a prática da dança em cadeira de rodas, pressupõem-se que é construtivo o envolvimento em atividades que têm uma finalidade em si mesma(autotélica). A tarefa primordial de professores, técnicos e estudiosos de educação física no que tange o Flowfeeling ou experiência ótima e a dança em cadeira de rodas, reside em aumentar suas possibilidades de ações nos mais variados tipos de intervenção, favorecendo, às pessoas, caminhos distintos para o fluir. As atividades que proporcionam a conquista dos objetivos que geram satisfação às pessoas nem sempre são encontrados por acaso. Grande parte daquilo que favorece o fluir é influenciado preliminarmente por pessoas mais experientes e que promovem conhecimentos universais. A escolha, a orientação e as condições pessoais básicas para a realização de atividades, principalmente às voltadas para o esporte, podem ser otimizadas pelo profissional que consegue mobilizar toda sua atenção para a detecção de como tal experiência poderá satisfazer as necessidades intrínsecas e contribuir para a melhoria da qualidade de vida de uma pessoa. Em muitas situações, crianças, jovens e adultos, necessitam de incentivos e modelos externos para iniciar e concluir uma atividade que requer uma transformação da atenção em energia organizada e construtiva. Nem sempre as tarefas que temos de realizar têm o mesmo significado de uma experiência autotélica. Muitas vezes fazemos coisas que não têm valor em si, mas realizamos por questões fundamentais de sobrevivência ou porque esperamos um benefício futuro. Pode-se então oferecer condições para que muitas das ações realizadas não tenham um desgaste de energia psíquica desnecessário. Em perspectiva de um esporte que evidencie a absorção de informações de maneira ativa, utilizando aptidões pessoais cada vez mais elevadas e observando novas e mais complexas oportunidades de ação, consegue-se fazer com que a vida transcorra de forma menos entendiante ou ansiosa. A busca da experiência máxima ou fluir para praticantes da dança em cadeira de rodas deve ser um dos objetivos macro dos profissionais envolvidos nesta prática (professores da Educação Física, Pedagogos, Psicólogos, médicos) no intuito de favorecer a melhor experiência possível a seus praticantes. A partir dessa experiência, inúmeros benefícios fisiológicos, psicológicos e sociais serão proporcionados aos praticantes da dança em cadeira de rodas auxiliando diretamente a inserção desses indivíduos na sociedade. É compatível ao homem desenvolver sua capacidade de controlar a consciência para que possa usufruir ao máximo sua energia de maneira positiva. Para tanto é preciso criar condições favoráveis de oportunidades e auxiliar na expansão de características pessoais para vivenciar o fluir. Referências Bibliográficas: L HUANG, G. E LINCH, J. (1992) . O tao do esporte. São Paulo: Best Seller. CAILLOIS, R. (1961) . Man, play and games. New York: The Free press. COX, R. H. (1994). Sport Psychology: concepts and applications. Dubuque: Brown and Bench-Mark. CRATTY, B. J. (1984). Psicologia no esporte. Rio de Janeiro: Prentice Halll do Brasil. CSIKSZENTMIHALYI, M.. (1990). Flow: The psychology of optimal experience. New York: Harper & Row. CSIKSZENTMIHALYI, M. (1992). A psicologia da felicidade. São Paulo: Saraiva. _____ . (1993). The envolving self. New York: Harper Collins Publishers. _____. (1996). Creativity. New York: Harper CollIns Publishers. _____. (1997). Finding flow. New York: Harper CollIns Publishers. DUDA, J. L. (1992). Motivation in sport settings: a goal perspective analysis. In: ROBERTS, G. (ed.). Motivation in sport and exercice. Human Kinetics. p. 57-91. FEIJÓ, O. G. (1992, 1998). Corpo e movimento – uma psicologia para o esporte.(2ª ed.) Rio de Janeiro: Shape. MIRANDA, R. (1994). Motivação: energia da aprendizagem. Revista Mineira de Educação Física. 2(1): 43-47. MIRANDA, R. (2000). Motivação no trekking: um caminhar nas montanhas. (Tese de doutorado). Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho. _____ . (2002). Esporte e meio ambiente: motivação para a aventura. Revista mineira de educação física. 10(1): 7-20. MIRANDA, R. & BARA FILHO, M. G. (2002). Motivação no esporte. Revista Scape. 1(1): 53-63. MURRAY, E. J. (1986). Motivação e emoção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. SAGE, G. H. (1977). Introduction to motor behavior: A neuropsychological approach. (2ª ed.). Reading: Addison-Wesley. SAMULSKI, D. M. (1992). Psicologia do esporte. Belo Horizonte: Imprensa Universitária/UFMG. STRATTON, P. e HAYES, N. (1994). Dicionário de psicologia. São Paulo: Pioneira. A SINGULARIDADE DAS IMAGENS MENTAIS NO CONTEXTO DA DANÇA Larissa S. Turtelli M. da Consolação G. Cunha F. Tavares A criação de imagens mentais é um processo que funciona como mediador das relações do ser humano com o mundo e consigo mesmo. É um fenômeno extremamente individualizado, cada pessoa experiencia as imagens de uma forma própria, e é um processo que integra aspectos fisiológicos, afetivos e mentais. Ao pensarmos na palavra "imagem" provavelmente uma das primeiras significações que nos vêm em mente é a de imagem visual, isto é, imagem no sentido de desenho, foto, pintura, visualização de algo. No entanto, as imagens não são apenas visuais. Segundo Achterberg (1996), imaginação é "o processo de pensamento que invoca e usa os sentidos: visão, audição, olfato, paladar, sentidos do movimento, posição e tato. É o mecanismo de comunicação entre percepção, emoção e mudança corporal" (p.9). As imagens não ocorrem necessariamente como memórias ou imaginações de situações, são também representações de sensações e processos de pensamento que estamos tendo no presente. Segundo Damásio (1996), é principalmente através de imagens que constantemente apreendemos informações sobre o meio e sobre o corpo. Formamos imagens visuais, imagens sonoras, imagens olfativas, imagens de palavras, de ações, de esquemas relacionais, imagens somatossensoriais, imagens de equações matemáticas e assim por diante. Geralmente combinamos diversos tipos de imagem ao fazermos uma representação. Quando comemos algo, por exemplo, existe a representação visual da comida, sua cor, forma, tamanho, o cheiro da comida, sua consistência quando a mordemos ou cortamos, o som da comida se desfazendo quando mastigamos, o gosto da comida, e poderíamos ainda acrescentar outras imagens que nos seriam dadas nesse aparentemente simples ato de comer. Essas imagens que formamos a partir de informações sensoriais vindas do meio externo ou do interior do corpo são chamadas por Damásio de "imagens perceptivas". Mesmo surgindo a partir de informações que estamos recebendo do meio externo ou do corpo "no presente", existe também uma participação de nossa memória do passado na formação destas imagens. Uma segunda categoria de imagens é a das "imagens evocadas". Estas se formam quando recordamos algo do passado, fazemos planos para o futuro ou simplesmente fantasiamos uma situação. Segundo Damásio, desempenham papel importante na formação das imagens as áreas sensitivas primárias do córtex cerebral que são as áreas somestésica, visual, auditiva, vestibular, olfatória e gustativa. O autor destaca que cada uma destas áreas é um conjunto de pequenas "sub-áreas" que se relacionam entre si e com outras áreas intimamente relacionadas a elas. Estes setores intimamente relacionados atuam de maneira sincrônica e coordenada formando representações topograficamente organizadas que são a base para nossas imagens mentais. Quando vemos um objeto, por exemplo, sinais emitidos pelos receptores da visão localizados na retina, são transportados pelos neurônios ao longo de seus axônios até chegarem ao cérebro, aos córtices visuais primários localizados na parte posterior do cérebro, no lobo occipital. No caso de sentirmos uma dor em uma articulação, os sinais partem de receptores localizados nos ligamentos e cápsula articular e chegam até os córtices sensoriais primários, localizados nas regiões parietal e insular. Em cada um desses casos temos um conjunto de áreas envolvidas. Cada área é complexa em si e as conexões que fazem umas com as outras são ainda mais complexas. É a partir da ação coordenada das várias áreas que formamos as imagens do que vemos, sentimos e assim por diante. Damásio ressalta que as representações neurais topograficamente organizadas não são suficientes por si só para a ocorrência de imagens na consciência. Elas precisam estar correlacionadas com aquelas que constituem a base neural para o "eu", do contrário, não poderíamos estar conscientes da existência destas imagens, não saberíamos que elas são "nossas" imagens. Assim, na formação das nossas imagens perceptivas, também têm um papel importante nossas vivências anteriores e nosso estado emocional do momento. Sobre o armazenamento das imagens, o autor deixa claro que as imagens não são armazenadas em forma de "fotos", "fitas de música" ou "filmes" de cenas de nossas vidas. As imagens são reconstruídas a cada vez que nos lembramos de algo. Damásio acredita que as imagens que formamos através da evocação de recordações (imagens evocadas) são tentativas de réplica que fazemos dos padrões neurais que ocorreram nos córtices sensoriais primários quando experienciamos a imagem a primeira vez. Estes padrões são aprendidos e passam a existir como padrões potenciais de atividade neural, formando representações dispositivas. Estas representações dispositivas existem em pequenos núcleos de neurônios chamados de zonas de convergência e localizam-se em várias partes das áreas de associação de alto nível (nas regiões frontal, temporal, parietal e occipital) e nos gânglios basais e estruturas límbicas. A imagem se forma quando essas representações dispositivas disparam "para trás", voltando em direção aos córtices sensoriais primários, fazendo com que os disparos neurais ocorram basicamente nos mesmos córtices sensoriais primários onde os padrões de disparo correspondentes às imagens perceptivas ocorreram outrora, desta forma, experienciamos novamente, no presente, sensação semelhante a que tivemos quando ocorreu o fato original. No entanto, uma imagem evocada dificilmente tem a vivacidade de uma imagem perceptiva. Isto depende das circunstâncias em que as imagens foram assimiladas e das circunstâncias nas quais elas estão sendo lembradas. Além disso, quando vamos reconstruir uma imagem, dificilmente conseguimos trazer de uma vez todos os componentes que estavam presentes na imagem perceptiva: cor, claridade, temperatura, cheiro, som e outros. Estes elementos não existem todos armazenados em nosso cérebro em um único lugar. Conseguimos ter uma imagem "completa" de algo quando sincronizamos o funcionamento de todos estes córtices sensoriais primários de forma a ativá-los conjuntamente em uma única "janela de tempo". Por outro lado, como já vimos, existe um papel importante da nossa subjetividade. A cada vez que criamos uma imagem, seja perceptiva ou evocada, fará parte de sua construção o significado que esta imagem tem para nós, faz parte nossa memória, nossa emoção e nossa cognição. Assim, a cada vez que imaginamos algo, criamos a imagem no presente, dando-lhe a nossa interpretação atual do fato que ocorreu. Nossas lembranças vão se modificando junto com o nosso desenvolvimento. Tanto as imagens que formamos quanto os movimentos que fazemos, são avaliados e modelados pelas partes do nosso sistema nervoso que têm como objetivo manter a sobrevivência do organismo. Não podemos produzir imagens se as partes do nosso cérebro relacionadas à manutenção da homeostase não estiverem intactas e cooperativas. Existe uma troca constante de informações entre as estruturas corticais e as subcorticais. Estas últimas, de acordo com as informações que recebem das estruturas corticais, desencadeiam reações que irão agir no corpo e no próprio córtex. Desta forma, a imagem de algo perigoso no meio exterior irá excitar alguns padrões involuntários de alterações do corpo. Estes padrões podem fazer surgir uma emoção, como o medo, e irão influenciar nossa reação (fugir? nos esconder?) e nosso próprio modo de raciocinar. Também podemos desencadear estas reações através de imagens evocadas, por exemplo ao passarmos por um lugar onde outrora fomos assaltados, podemos sentir medo, ter nosso batimento cardíaco acelerado e "apressar o passo", pelo lugar nos trazer a imagem do assalto. As alterações corporais são inerentes ao processo de formação das imagens. Quando imaginamos uma ação, ou uma situação, quer seja ela uma recordação ou uma fantasia, tendemos a ter as reações corporais que se associam a essa situação. Ocorre, em maior ou menor grau, um envolvimento de todo o corpo. Mesmo que muitas vezes não se tornem facilmente observáveis externamente, nosso corpo todo já está em movimento. Quando decidimos realizar uma ação imaginada, esta ação será executada de uma forma específica, relacionada ao que imaginamos e às alterações corporais que ocorreram devido a esta imagem. Penna (1990), aborda este assunto dizendo que existe uma "ação preparatória" nos músculos antes de ter a contração muscular em si, que irá fazer com que a contração possa ser mais forte ou mais fraca. Transparecerá no nosso movimento o significado que aquela ação tem para nós. Um movimento pode ser feito de diferentes maneiras de acordo com a intenção da pessoa ao realizá-lo. O uso de imagens faz parte das práticas de dança, esportes, trabalhos de consciência corporal e outros. Dependendo da imagem que criamos, produzimos movimentos com diferentes qualidades. Encontramos estudos onde foram abordados os usos de imagens em trabalhos de dança (Franklin, 1996a e 1996b; Overby, 1990), Feldenkrais (Ginsburg, 1999; Wright, 2000), dança/movimento terapia (Ambra, 1999; Fairweather, 1994) e ideokinetic, que é uma prática que enfoca o uso de imagens para produzir movimento (Franklin, 1996a e 1996b; Fairweather e Sidaway, 1993). Além destes, existem estudos que abordam o potencial do uso de imagens para produzir alterações em nosso organismo, inclusive envolvendo o sistema nervoso autônomo (Achterberg, 1996; Schilder, 1999; Damásio, 1996). Achterberg (1996) enfoca a utilização de imagens para auxiliar nos processos de cura. A autora enfatiza o fato das imagens poderem provocar alterações no sistema nervoso autônomo: "A imagem mental ou matéria-prima da imaginação afeta intimamente o corpo. [...] O experimento mental [...] de uma corrida, em competição, evoca alteração muscular, e mais ainda: a pressão sangüínea sobe, as ondas cerebrais se modificam e as glândulas sudoríparas se ativam" (p.9). Achterberg coloca a imaginação como tendo um papel importante no estabelecimento de um vínculo entre pensamentos e alterações físicas. Ela fala que através da criação consciente de imagens (pensamento), podemos provocar alterações no funcionamento do corpo. Em suas palavras: [...] as imagens afetam direta e indiretamente as reações físicas e, por sua vez, são afetadas por essas reações. As imagens podem envolver qualquer sistema sensorial, mas também podem ocorrer na ausência de estímulo externo apropriado (isto é, ondas de luz, ondas sonoras, moléculas de odor). Acredita-se que as imagens gerem estados de reação interna, semelhantes aos estímulos reais, mas não necessariamente idênticos. Por exemplo, durante experiências de visualização, normalmente, o córtex visual é ativado, mas as vias visuais periféricas como a pupila podem ou não estar envolvidas (p.116). Achterberg (1996) ressalta que "as imagens têm um efeito direto sobre o corpo. O efeito da imagem foi notado não apenas no sistema musculo-esquelético, mas também no sistema nervoso autônomo ou involuntário" (p.117). As reações corporais decorrentes de imagens podem ocorrer em diferentes amplitudes. Quando há um maior envolvimento emocional, aumentam as possibilidades de que ocorram modificações corporais mais intensas. Algumas imagens nos remetem a determinadas emoções e assim desencadeiam os processos de reação corporal que lhes são característicos. Schilder (1999) coloca que "quando há uma figuração criada por um impulso emocional, esta influencia o sistema vegetativo do corpo" (p.195). Ele fala que "alguns músculos que geralmente se encontram fora do alcance da inervação voluntária podem ser exercitados [...]. Também podemos exercitar até certo ponto as funções vegetativas, reforçando as figurações conectadas com determinada função" (p.199). Ele chama as imagens que fazem com que consigamos influenciar indiretamente as partes internas do corpo de "representações-chave". Exemplifica: Não podemos decidir aumentar os batimentos do pulso, mas podemos imaginar que estamos numa situação ameaçadora e, assim, alterar a pulsação. A representação de uma situação assustadora é a representação-chave para o coração e, também para a dilatação da pupila. A representação de alimentos desagradáveis é a representação-chave para alguns tipos de salivação, náusea, vômitos e, provavelmente, para uma alteração do suco gástrico (p.203). Estas representações-chave são individuais, ligadas à história de vida de cada pessoa. Um alimento pode representar algo indigesto para uma pessoa e para outra não. Uma situação pode ser ameaçadora para uma pessoa e para outra não. Na prática diária das atividades corporais, freqüentemente são usadas imagens para ajudar os alunos a perceberem seu corpo e a se colocarem em um alinhamento adequado. Estas imagens geralmente são visuais, podemos por exemplo dar a imagem de um eixo vertical que atravessa o corpo de cima a baixo, ou somatossensoriais, tanto através do toque, quanto através de incentivar o aluno a perceber a imagem de seu próprio corpo na postura adequada. Através das imagens podemos influenciar todo o nosso corpo, podemos influenciar o sistema nervoso visceral e o sistema nervoso somático. Elas permitem termos ações integradas do corpo, ao invés de estarmos tentando comandar isoladamente cada uma de nossas partes. Uma prática que usa largamente a produção de imagens como ferramenta para o movimento é a ideokinetic. A ideokinetic é uma técnica de realinhamento postural que se baseia no princípio de que através das imagens podemos acessar controles subcorticais do movimento, geralmente de difícil acesso consciente (Fairweather & Sidaway, 1993). Esta técnica foi sistematizada por Sweigard entre 1929 e 1931 (Franklin, 1996a). Segundo Fairweather & Sidaway (1993), o objetivo deste método é o de melhorar o alinhamento e o equilíbrio das estruturas do esqueleto através de técnicas de visualização. Ainda segundo estes autores, o método de visualização usado na ideokinetic requer dos sujeitos que formem imagens que provocam sensações e movimentos e acabam por "aumentar" a "consciência" do corpo dentro do sistema subcortical. Franklin (1996b), aborda os princípios da ideokinetic, relacionando-os com o alinhamento postural e também com a dança. Ele sistematizou diversos tipos de imagens geralmente trabalhados nas aulas de dança e defende uma prática regular de visualizações para ajudar em diversos processos relacionados ao movimento. O autor categoriza as imagens em quatro grandes grupos, salientando, no entanto, que estes quatro grupos geralmente se combinam. São eles: imagens sensoriais, imagens diretas e indiretas, imagens abstratas e concretas, imagens internas e externas. Imagens sensoriais São as imagens visuais, cinestésicas, táteis, proprioceptivas, olfativas, auditivas e gustativas. O autor ressalta a relação entre as imagens cinéstesicas e táteis. Muitas vezes as imagens táteis são necessárias para que possamos formar as imagens cinestésicas, pois precisamos primeiro ter as experiências em nosso corpo para depois podermos imaginá-las e combiná-las de diferentes maneiras criando novas imagens. A propriocepção geralmente não é considerada uma categoria separada de imagens, mas o autor prefere distinguí-la da cinestesia, atribuindo à propriocepção imagens relativas à posição do corpo e à cinestesia imagens relativas à sensação física dos movimentos. Imagens diretas e indiretas As imagens diretas são as representações não verbais que fazemos de nossos movimentos durante nossa ação. As imagens indiretas são metafóricas, projetamos uma imagem externa no movimento para clarearmos seu processo de funcionamento (por exemplo a imagem do eixo que citamos anteriormente). Imagens abstratas e concretas O autor classifica as imagens abstratas como aquelas que não são totalmente delimitadas, isto é, permitem que surjam imagens do interior da pessoa para completá-las. Por exemplo, podemos imaginar que há algo nos atraindo para determinado ponto do espaço. Cada pessoa irá projetar neste ponto o que tiver significado de atração para ela naquele momento. Já nas imagens concretas, existe um acordo consensual de que todos irão ver algo semelhante, por exemplo, imaginamos que estamos esticando um elástico de borracha. Imagens internas e externas As imagens podem ser categorizadas pelo local onde elas estão situadas em relação ao corpo. Podemos situar a imagem dentro do corpo, na superfície do corpo, no espaço bem próximo de nós, num espaço um pouco maior, mas ainda a uma distância pessoal, ou envolvendo todo o meio externo, por exemplo, se imaginamos estarmos em uma praia. O autor ressalta que para utilizarmos de maneira sistemática as imagens, precisamos primeiramente nos colocar em um estado mental de concentração, isto é, focalizarmos todo o nosso pensamento em um único ponto, uma única idéia. Isto envolve primeiramente tentarmos não fixar nosso pensamento em nada, deixarmos nosso pensamento vazio. Segundo Franklin (1996b), "a mente intelectual e analítica precisa ser acalmada para que ela possa se tornar receptiva às imagens" (p.56; tradução nossa). O autor sugere que prestarmos atenção em nossa respiração é algo que ajuda a conseguirmos nos concentrar. Franklin ressalta a importância das imagens que iremos utilizar terem ligação conosco. Por um lado, é necessária uma "ligação vivencial". Como vimos anteriormente, as imagens são baseadas em experiências. Uma criança, por exemplo, não consegue imaginar um objeto se ainda não tiver experienciado este objeto. Depois de ter vivenciado uma série de percepções sensoriais relacionadas ao objeto ela será capaz de imaginá-lo e, se quiser, de imaginar a si própria como sendo o objeto. De forma semelhante, se não tivermos o conhecimento prático de fatores envolvidos em determinada imagem, não seremos capazes de experienciá-la. Talvez tenhamos apenas um "filme" em nossa mente, mas não conseguiremos nos sentir estando "dentro" deste "filme". Isso acontece muito relacionado às partes do corpo. Pessoas não habituadas a ter contato com o próprio corpo podem não conseguir, por exemplo, imaginar que "suas costas estão derretendo como manteiga" (p.61; tradução nossa). Talvez elas visualizem isto mas não sintam isto em seus corpos. Elas podem precisar do toque para terem a percepção destas partes de seus corpos e da direção descendente em seus corpos. Por isso, muitas vezes o trabalho com imagens é feito junto com um trabalho de percepção cinestésica, que favorece que a pessoa consiga de fato vivenciar as imagens em seu corpo. Por outro lado, Franklin observa que a relação da pessoa com a imagem também precisa ser emocional para que haja movimento. Se a pessoa não se identificar com a imagem, não se sentir motivada por determinada imagem, provavelmente ela não irá responder fisicamente. De alguma forma, a imagem precisa ter relação com a própria história de vida da pessoa e com suas necessidades atuais. O autor acrescenta ainda que a imagem precisa ser clara, tendo localização e direção precisas no corpo, pois é preciso que a pessoa possa compreendê-la claramente para assim ser capaz de construí-la para si. A partir dos estudos de Franklin (1996a e 1996b), podemos destacar diferentes formas de usar imagens na dança: y imagens para ajudar no alinhamento postural e no relaxamento; y imagens para ajudar na performance física; y imagens para a memorização de movimentos; y imagens como "inspiração", "ponto de partida", para movimentos e coreografias; y imagens para dar diferentes qualidades expressivas aos movimentos: intenções, emoções. Overby (1990) também enfoca o uso de imagens na dança. De maneira semelhante a Franklin ela destaca que as imagens são usadas freqüentemente no ensino da dança para: y ajudar no alinhamento postural; y aumentar a percepção cinestésica; y encorajar a exploração criativa dos movimentos. Segundo a autora, o alinhamento correto é enfatizado constantemente em todos os níveis do treinamento em dança. As imagens são utilizadas para treinar os bailarinos a moverem segmentos do corpo e o corpo todo a partir de uma imagem interna ao invés de imporem uma imagem externa arbitrária (menciona Hays 6 , Sweigard 7 , Todd 8 ). Outra área que utiliza as imagens é o aprendizado de passos. A dança moderna algumas vezes é ensinada com o uso de imagens para aumentar a consciência cinestésica dos movimentos dos estudantes (menciona Hawkins 9 , Hayes 10 , Hays 11 , Sherbon 12 ). 6 HAYS, J.F. Modern dance, a biomechanical approach to teaching. St. Louis: C.V. Mosby Company, 1981. 7 SWEIGARD, L. Human movement potential: Its ideokinetic facilitation. USA: Dodd, Mead and Company, 1974. 8 TODD, M.E. The thinking body. USA: Paul Hoeber, Inc, 1937. 9 HAWKINS, A.M. Creating through dance. Englewood Cliff, NJ: PrenticeHall, 1964. 10 HAYES, E.R. An introduction to the teaching of dance. New York: The Ronald Press Company, 1964. 11 HAYS, J.F. Modern dance, a biomechanical approach to teaching. St. Louis: C.V. Mosby Company, 1981. 12 SHERBON, E. On the count of one: Modern dance methods. Palo Alto, CA: Mayfield Publishing Co, 1975. Uma terceira área do envolvimento entre as imagens e a dança é na coreografia. A autora acredita que é onde a imagem tem um papel maior, independentemente do estilo de dança. Segundo a autora os elementos da dança são "embelezados" através do uso de sugestões que provocam imagens (menciona Ellfeldt 13 , Humphrey 14 ). Vemos no uso de imagens na dança a vantagem de permitir que cada pessoa expresse o seu movimento de maneira individualizada. A formação de imagens é algo extremamente individual, envolve experiências passadas, estados emocionais, desejos. Mesmo que uma única imagem seja sugerida para várias pessoas, cada uma irá formá-la de acordo com sua própria experiência, seu próprio modo de ser e de se mover. Cada ser humano possui uma forma única de vivenciar o mundo. "Essas diversas imagens [...] são construções do cérebro. Tudo o que se pode saber ao certo é que são reais para nós próprios e que há outros seres que constroem imagens do mesmo tipo. [...] Não sabemos, e é improvável que alguma vez venhamos a saber, o que é a realidade 'absoluta'" (Damásio, 1996, p.124). Assim, quando usada em relação ao movimento, a imagem mental torna-se um modelo que não dá uma forma, mas um estímulo, uma intenção, que irá sugerir um caminho para que a pessoa possa chegar à sua própria forma. No entanto, como já salientamos, há a necessidade do envolvimento afetivo da pessoa com a imagem para que esta possa ser efetiva na relação com o movimento. 13 ELLFELDT, L. A primer for choreography. Palo Alto, CA: National Press Books, 1971. 14 HUMPHREY, D. The art of making dances. New York: Holt, Rinehart & Wintson, 1959. Observamos em alguns estudos que são sugeridas imagens que ajudam a produzir movimentos com qualidades específicas, de acordo com diferentes objetivos, como relaxamento, melhora de performance, criação coreográfica, alinhamento postural. No entanto, é pouco ressaltada a produção de imagens que surge da pessoa a partir de seus movimentos. Segundo Schilder (1999), podemos criar imagens de situações que relacionamos a determinados movimentos e determinadas emoções: A inter-relação entre seqüência muscular e atitude psíquica é tão íntima que, não só a atitude psíquica se conecta com os estados musculares, como também toda seqüência de tensão e relaxamento provoca uma atitude específica. Uma seqüência motora específica altera a situação interna e as atitudes, provocando até uma situação fantasiada que se adapta à seqüência muscular (p.230). Ele relata uma experiência na qual foi pedido a uma mulher que fizesse um gesto de súplica. A mulher em seu relato fala das suas sensações corporais e fala que havia uma pessoa imaginária a quem ela suplicava, fala ainda que quanto mais ia chegando perto desta pessoa imaginária, mais iam se intensificando seus movimentos. Cada movimento que realizamos tem um significado para nós. Se dermos atenção às imagens que produzimos a partir do movimento, poderemos ter um contato com nossa própria experiência corporal em uma dimensão mais ampla. Poderemos obter dados sobre as correlações de nossos movimentos com outros aspectos de nossas vidas. Muitas vezes acontece uma dissociação entre o movimento e seu sentido (sentido este representado nas imagens individuais produzidas pela própria pessoa no movimento). Surgem assim os movimentos "abstratos" referidos por Gonçalves (1994, p.149). São aqueles movimentos que não têm significado para a pessoa que os realiza, são aqueles movimentos efetuados de forma mecânica e repetitiva. A execução de movimentos com estas qualidades tem implicações no tipo de engajamento da pessoa com o mundo que estará sendo estabelecido. A prática de atividades físicas, realizada de forma mecânica, simplesmente reativa, sem criatividade e participação do aluno e sem seu conhecimento das transformações ocorridas em seu corpo, está cooperando para a formação de um indivíduo apático, que deixa de interpretar o mundo por si próprio, para se abandonar à interpretação dos outros, um indivíduo que se adapta a este mundo, sem questionar seus absurdos e que não se sente engajado em uma ação transformadora (Gonçalves, 1994, p.149). Na prática da dança, enquanto arte, a importância dos sentidos do movimento adquire ainda outras dimensões. A dança trata de comunicação de significados que são sentidos no corpo de quem dança e de quem assiste. As imagens são criadas nos corpos dos bailarinos, no palco e nos corpos da platéia. A dança precisa ter conexão com a experiência individual e única do bailarino e com o contexto maior, sócio-cultural, do momento específico que vivenciamos. Através do movimento sensível, e sentido, do bailarino iremos renovar nosso olhar da realidade na qual nos encontramos inseridos. A arte desperta reflexões e "sentires". A dança, de acordo com Garrett (1993), é uma arte e uma forma de comunicação que leva as pessoas à reflexão sobre elas mesmas, seus modos de viver e sua cultura. É uma atividade que unifica os processos intelectuais, emocionais e físicos, provendo um meio de atingir a autoconsciência, o autodesenvolvimento e a autosatisfação. É uma experiência que permite aos indivíduos estruturarem sua experiência de si mesmos no mundo através do movimento. Segundo Albright (1997) a dança não pode ser vista como "imagens de movimento" que ocorrem independentemente da pessoa que está no palco dançando. A dança contemporânea focaliza "nas experiências físicas, emocionais e culturais específicas do bailarino no momento da dança" (p.xxvi). Por outro lado, vemos que muitas vezes são reproduzidos na dança "modelos de perfeição". São enfatizadas capacidades técnicas de performance que nada têm a ver com as individualidades das experiências vividas dos bailarinos. O movimento se torna uma forma vazia e a dança perde sua característica de arte. Albright ressalta que a dança, baseada no corpo vivo, não diz respeito apenas à graça, leveza, virtuosismo e formas perfeitas definidas pela cultura, diz respeito a limitações, suor, respiração ofegante e "erros" técnicos, diz respeito a uma identidade que está no palco, e cuja presença é carregada de significados (p.74). Não somos todos iguais. A dança precisa ser criada em cada corpo que a recebe e nela se expressa. Referências bibliográficas ACHTERBERG, J. A imaginação na cura. São Paulo: Summus, 1996. ALBRIGHT, A. C. Choreographing Difference: The Body and Identity in Contemporary Dance. Hanover: University Press of New England, 1997. AMBRA, L. N. Approaches used in dance/movement therapy with adult women incest survivors. American journal of dance therapy. v.17, n.1, p.15-24, 1995. DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. FAIRWEATHER, M. M.; SIDAWAY, B. Ideokinetic imagery as a postural development technique. Research quarterly for exercise and sport. v.64, n.4, p.38592, 1993. FAIRWEATHER, P. An Interview with Dosamantes, Irma. American journal of dance therapy. v.16, n.1, p.13-19, 1994. FRANKLIN, E. N. Dance imagery for technique and performance. Champaign, IL: Human Kinetics, 1996(a). FRANKLIN, E. N. Dynamic alignment through imagery. Illinois: Human Kinetics, 1996(b). GARRET, R. The influence of an educational dance program on female adolescent self esteem, body image and physical fitness. In: INTERNATIONAL ASSOCIATION OF PHYSICAL EDUCATION AND SPORT FOR GIRLS AND WOMEN CONGRESS, 12th, Melbourne, Australia, 1993. GINSBURG, C. Body-image, movement and consciousness: Examples from a somatic practice in the Feldenkrais Method. Journal of consciousness studies. v.6, n.2-3, p.79-91, 1999. GONÇALVES, M.A.S., Sentir, Pensar, Agir – Corporeidade e Educação. Campinas: Papirus, 1994. OVERBY, L. Y. A comparison of novice and experienced dancers' imagery ability. Journal of mental imagery. v.14, n.3-4, p.173-184, 1990. PENNA, L. Imagem corporal: uma revisão seletiva da literatura. Psicologia USP. v.1, n.2, p.167-174, 1990. SCHILDER, P., A Imagem do corpo: as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes, 1999. WRIGHT, J. Bodies, meanings and movement: a comparison of the language of a physical education lesson and a Feldenkrais movement class. Sport, education and society (Abingdon, England). v.5, n.1, p.35-49, 2000. Imagem corporal, comunicação e a dança em cadeira de rodas M. Consolação G. Cunha F. Tavares A imagem corporal inclui aspectos conscientes e inconscientes que são interrelacionados e interagem com o mundo externo a todo instante, conferindo à imagem corporal um caráter variável e dinâmico, já reconhecido e apontado por Paul Schilder nas primeiras décadas do século XX. Nessa perspectiva, a consciência do corpo, o esquema corporal, o auto-conceito, a auto-estima e muitas outras questões relacionadas a variados aspectos ( sociais, fisiológicos, ambientais ou afetivos) se conectam de forma integrada em experiências de percepção de nosso corpo como um todo, ou seja, formam a nossa imagem corporal. Quando nascemos, somos um corpo mas temos pouco conhecimento disso. No entanto, nesta época, estamos imersos no processo de construção de nossa identidade corporal a partir de experiências corporais conferidas, em grande parte pelas nossas primeiras relações com o mundo externo. Esse processo de desenvolvimento ocorre durante toda a existência do ser humano, mas de forma mais intensa nos primeiros meses e anos de vida. Nessa época, o volume, a forma e as funções fisiológicas de nosso corpo estão passando por rápidas e visíveis transformações. E nos planos sociais e afetivos ocorre situação similar. As memórias corporais registradas neste período são fundamentais para a organização de nossa identidade e consequentemente de nossa imagem corporal. A imagem corporal é uma experiência essencialmente particular. A partir dela, cada indivíduo dimensiona o sentido de suas ações, de suas percepções e o fluir de seus impulsos. Esta imagem refere-se à representação da identidade corporal que é construída a partir da integração de experiências de percepção ligadas ao corpo de cada indivíduo. Nossos movimentos nos posicionam em um universo de percepções o que nos define como um ser humano em um mundo de relações. Desta forma, os movimentos são repletos de significados para quem se movimenta e para as outras pessoas ao redor, são resultantes das relações do indivíduo consigo mesmo e com o mundo e são decisivos para o delineamento das experiências corporais. A possibilidade do indivíduo reconhecer pela vida a fora sua presença real e sentir que é reconhecido e valorizado pela sua singularidade é ponto chave para o desenvolvimento de uma imagem corporal integrada e positiva. Garante a manifestação da subjetividade da pessoa em um contexto saudável, produtivo e prazeroso, onde a energia vital das pulsões flui nas atividades do cotidiano. O fenômeno da percepção corporal está no cerne das questões relacionadas ao desenvolvimento da imagem corporal. Toda experiência corporal é fonte de percepções. A dança é uma experiência humana universal intimamente ligada ao corpo e ao movimento. Desta forma, quando olhamos para o corpo e o movimento como fenômenos complexos, reconhecemos na dança uma imensa fonte de experiências corporais repletas de significados humanos. Shontz (1990) identificou sete desempenhadas pela experiência corporal: funções 1- Registro sensorial e processador de informações sensoriais 2- Instrumento para ação 3- Fonte de necessidades, impulsos e reflexos 4- Espaço para um mundo privado, compartilhado apenas em condições de máxima intimidade 5- Estímulo essencial para o “eu”. 6- Estímulo social 7- Instrumento expressivo Estas funções não ocorrem de forma discreta ou isolada, mas ocorrem de forma integrada em cada experiência. Ou seja, cada experiência corporal apresenta múltiplas funções. Observamos que em um primeiro momento, cada uma delas apresenta um aspecto mais evidente. Assim, a função três ( fonte de necessidades, impulsos e reflexos) parece mais vinculada a questões fisiológicas do corpo; a função seis ( estímulo social) se refere ao impacto que o corpo e os movimentos causam no outro; e a função sete ( instrumento expressivo ) aponta uma ligação mais íntima com a questão simbólica. No entanto, nenhuma destas funções faz sentido, fora do plano existencial onde “cada parte” não se sustenta fora do contexto universal. Ao mesmo tempo que causamos impacto no outro, entramos em contato conosco e deixamos fluir nossos impulsos, mantendo uma postura corporal onde os reflexos são imprescindíveis como pontos de sustentação. As experiências corporais ocorrem naturalmente de forma integrada. A forma como o corpo se apresenta para nós mesmos em um dado instante, nossa imagem corporal, reflete a função em destaque de nossa experiência corporal naquele momento. Isto acontece de forma dinâmica, muito flexível. A ênfase exagerada e repetitiva sobre uma função da experiência corporal pode abrir espaço para a fragmentação das relações humanas e o estresse corporal. Reflete uma imagem corporal rígida, pouco dinâmica. Restringe possibilidades de novos contatos e vivências. As funções corporais apresentam nuanças entre as pessoa com deficiência física. Por exemplo, a aparência pode ser o estigma que fecha as oportunidades que são abertas rotineiramente para os outros. A cadeira de rodas no palco, por exemplo, pode ocupar o espaço de atenção do público de forma a prejudicar a comunicação da originalidade da arte através da dança. Esta barreira evidencia uma fragmentação das experiências corporais próprias do processo da dança e pode ocorrer tanto naquele que dança como naquele que assiste a dança. Se o que busco é mostrar ao outro e a mim mesmo que posso dançar, estarei compromissado com a imagem do que deveria ser para ser reconhecido como sujeito que dança e esta imagem não traz nada de novo, apenas uma pintura do que já foi estruturado em valores sociais. Minha experiência corporal assim fragmentada restringe o espaço de comunicação artística. Para quem assiste um espetáculo de dança e só vê o desempenho, o figurino, a cadeira de rodas, todo o impacto que sentirá estará no quanto de extraordinário são as cores, o custo do figurino ou a agilidade no manuseio da cadeira de rodas. O aspecto simbólico do movimento expressivo fica sem evidência neste contexto. A comunicação da dança em cadeira de rodas pode assim ocorrer em várias direções. No entanto podemos diferenciar duas vertentes distintas: a primeira nos comunica o quanto é diferente esta experiência corporal e nos convida a reconhecer e aceitar as diferenças; a segunda nos leva de encontro à linguagem simbólica, ao nosso corpo como elemento expressivo e nesta perspectiva estamos falando de uma dança universal que comunica e une profundamente cada pessoa naquilo que possui de mais profundo que é sua condição humana. Comunicar a potencialidade de cada indivíduo, observando seus avanços no desempenho motor, descobrir e ampliar o repertório de movimento, apreciar outras formas de interação com a cadeira de rodas são algumas formas concretas de comunicação onde a evidência se faz em valores e crenças e as óbvias diferenças fisiológicas e anatômicas do corpo se apresentam com significados diversos para cada dançarino e cada espectador. A despeito dos méritos desta atividade tanto nos planos políticos, de promoção de saúde e integração social, acredito que a arte em sua plenitude transcende estes caminhos, enveredando para o plano do movimento expressivo, uma linguagem simbólica essencialmente inconsciente. Laban (1978) considera o movimento um processo ligado ao pensamento, ao sentimento e a toda uma estrutura interior. Ele aponta para cada movimento aspectos tangíveis e intangíveis. O aspecto tangível seria o gesto com seu significado utilitário. O significado tangível de mover a cadeira de rodas tem a função de locomoção. O intangível contém todo o significado especial de quem pratica a ação de se locomover na cadeira de rodas. Neste sentido cada movimento de dança em cadeira de rodas é original pela sua relação com o dançarino. Os aspectos intangíveis se referem às nossas singularidades e transcendem a um plano de concretude pertencendo ao plano do simbólico. Alcançar alto rendimento nos movimentos sem dar atenção aos aspectos intangíveis do movimento e sem ter consciência do contexto como um todo é um caminho perigoso que pode conduzir o dançarino a uma posição de subordinação a valores externos com perigo de escravização do próprio corpo. De outra forma resgatar e assumir a essência da subjetividade nos movimentos de dança em cadeira de rodas, amplia o espaço de comunicação do simbólico. Dolto (2001) considera a imagem corporal totalmente inconsciente. Para ela, o esquema corporal caracteriza o sujeito como representante de sua espécie. De maneira diferente , a imagem corporal é distinta para cada indivíduo, sendo a “encarnação simbólica do sujeito desejante”. Nossa compreensão da imagem corporal não contempla esta distinção. No entanto, as idéias de Dolto (2001) poderão nos ajudar aqui a colocar em evidência nossa singularidade, sendo esta a nossa maior semelhança enquanto criaturas humanas no campo do simbólico. Para ela, uma pessoa que tem uma lesão no esquema corporal pode perfeitamente ter a sua imagem corporal totalmente preservada. Dolto (2001) distingue três modalidades de uma mesma imagem corporal: imagem de base , imagem funcional e imagem erógena. A imagem de base refere-se “ a uma intuição vivenciada de estar no mundo”, desprovido de qualquer meio expressivo; é o que permite a “mesmice de ser”, a noção de existência. A imagem funcional visa a realização do desejo; a partir dela as pulsões após subjetivadas no desejo, tendem a manifestar-se para alcançar prazer. Com a imagem funcional temos assim um enriquecimento de possibilidades relacionais com o outro. O terceiro componente, a imagem erógena, está associada a determinada imagem funcional do corpo e apresenta caráter eminentemente simbólico: refere-se a círculos, bolas, buracos, traços, formas ovais e ponteagudas, dotados de significados de projeção e introjeção com fins agradáveis ou desagradáveis. As pulsões de vida mantêm estas três modalidades de imagem corporal coesas numa imagem dinâmica que se caracteriza assim como “o trajeto do desejo dotado de sentido, indo em direção a um objetivo . A comunicação no contexto da dança nos leva a refletir sobre o corpo no cerne das relações humanas. Imagens da dança em cadeira de rodas ampliam reflexões sobre o sentido da dança e a emergência de forma universal do movimento expressivo como necessidade humana. Consideramos a imagem corporal o elemento que define a direção e dimensiona o sentido dos movimentos e percepções de cada indivíduo. Imagem corporal não é apenas uma representação do nosso corpo no espaço. Não se trata de uma pintura com tonalidades definidas e circunscritas. Inclui experiências emocionais, aprendizagens, vivências de nossas fantasias e de nossas relações sociais. A comunicação através do movimento expressivo engloba esta dimensão humana complexa da imagem corporal. Dançar tem sido descrita e analisada de várias formas. Conforme a circunstância, um determinado aspecto se destaca e passa a ser o foco de nossa atenção. Estudamos a técnica de dança buscando alcançar melhor desempenho e ao mesmo tempo preservar a saúde do bailarino. Observamos os movimentos da dança de várias culturas acreditando ser esse um caminho de compreender a gestualidade inerente aos vários povos. A direção de todas essas investigações se remetem à forma como percebemos o movimento e estamos aptos a assumi-lo no contexto de nossa existência. O corpo do dançarino desempenha funções múltiplas quando dança na cadeira de rodas. A aparência do corpo tem grande relação com valores e crenças. A dança em cadeira de rodas comunica a presença do ser humano no mundo e nos convida a um olhar para além das aparências. Danos físicos causam particularidades na experiência corporal mas não dano na imagem corporal se a considerarmos no sentido de uma representação da identidade do sujeito. O significado de uma experiência corporal não pode ser limitado apenas às características observáveis, à aparência. Dança em cadeira de rodas tem criado um espaço importante de comunicação entre corpos aparentemente bastante diferentes. Mas na verdade, a comunicação mais profunda entre os corpos que dançam reside no simbólico que transcende às aparências e aponta a essência humana. Nosso corpo encarna nossos impulsos e desejos que se refletem em nossos movimentos. Assim, o espaço de comunicação criado a partir da dança em cadeira de rodas, emerge da necessidade que todos nós temos de assumirmos a questão simbólica do corpo e dos movimentos no contexto de nossas percepções A dança em cadeira de rodas aparece assim como uma manifestação humana que tem sido vista e reconhecida de várias formas como caminho para a superação e descoberta de potencialidades ou espaço para a revisão de valores éticos e estéticos. No entanto, é sua função como instrumento expressivo que garante de forma mais profunda uma comunicação que privilegia nossa condição humana e nossa individualidade. Dano no corpo pode alterar a experiência corporal mas a imagem corporal pode permanecer coesa, integrada e inteira. Modificação nas experiências corporais não implica necessariamente em mudança na identidade corporal. Usamos a linguagem corporal de forma constante. Nossas experiências corporais têm entre outras funções, aquela de instrumento expressivo. O movimento expressivo tem suas raízes na questão simbólica. Nossa imagem corporal integra o aspecto simbólico que nos coloca em profundo contato com as outras pessoas. A dança em cadeira de rodas é um espaço muito especial para ampliarmos nosso contato interno e expandirmos nossa comunicação com nossos semelhantes na dimensão do simbólico. Referências bibliográficas Dolto, F. A Imagem Inconsciente do corpo. São Paulo, Perspectiva, 2001. LABAN, R. “ O Domínio do Movimento” Apud: AGUIRRE, Ana Maria de Barros. O Corpo transformador: Trabalho Corporal em Psicologia Clínica. São Paulo, 1986, 150p. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Schilder, P. A Imagem do Corpo – As energias Construtivas da Psique. São Paulo, Martins Fontes, 1994. Shontz, F. C.” Body Image and Physical Disability” In : Cash, T. F. & Pruzinsky, T. Body Images – Development, Deviance and Change. New York, The Guilford Press, 1990. Entre a contemplação e a praxis: a dimensão estética pela Arte Maria José Justino* Apregoava um artista, Jean Dubbuffet, ser o papel do artista o de embaralhar as categorias habituais, deslocá-las e, desse modo, restituir à visão e ao espírito sua ingenuidade, seu frescor. Tinha profunda razão. Ao nos debruçarmos na história, vemos que a arte vem desempenhando papéis diferentes em nossa vida, nunca perdendo sua função principal: a de ser uma forma de relacionamento com o mundo, percepção e conhecimento. Desse modo, é ela responsável pela dimensão estética em nossa educação, certamente, aparecendo sempre com vestiduras e valores diferentes, mas com uma existência própria que exige ser percebida. Na linha da fenomenologia, o valor ou desvalor estético não reside na condição real de um objeto, mas em sua condição de fenômeno. Quem se ocupa da reflexão dessa dimensão no homem, com o estatuto de disciplina filosófica, é a Estética, que procura ser objetiva e experimental, fazendo uso das outras áreas de conhecimento: psicologia, sociologia, história etc. Comungo com aqueles que a entendem não como parte da filosofia, mas como toda a filosofia concentrada nos problemas da arte. A sua principal tarefa é o estudo do objeto estético na sua singularidade. A Estética é uma reflexão sobre as artes do mesmo modo como a epistemologia é uma reflexão sobre as ciências. Ela faz gnoseologia, ontologia, fenomenologia, teoria do sentido. Filosofia que é, a Estética recorre a métodos de reflexão e análise que lhe possibilitem um retorno do pensamento sobre suas intuições espontâneas e vivências, para que possa traduzi-las em conceitos. No entanto, o seu objeto difere dos objetos naturais. O objeto estético é o que é artisticamente criado e percebido. Portanto, há uma característica predominante na abordagem fenomenológica: o objeto estético é uma criação que inclui em si o criador e o espectador. Embora seja possível uma experiência da beleza na natureza ou na ciência, é na arte que o homem experimenta essa dimensão de forma mais intensa e completa. A arte sempre desempenhou papéis na vida do homem, mas só o faz em sua plenitude quando exercitada com liberdade, quando a entendemos como autônoma. Autonomia é o entendimento de que a arte significa e vale em si mesma, o que não mostra independência em relação à sociedade e à cultura. A arte é constituída exatamente no interior desta ambigüidade: possui uma existência autônoma e está imbricada em uma cultura, é fato social. Portanto não podemos reduzi-la a produto: a arte é organizadora (Benjamin), ela constrói, ela é uma das faces da cultura. Sendo assim, o objeto artístico não carrega, a priori, uma aptidão estética. Trata-se de uma questão de valor que emprestamos a ele. Por exemplo, as vênus paleolíticas adquirem uma função estética com o homem moderno. É possível que na ocasião em que foram feitas ocupassem outras funções, mágicas certamente. Na história da arte, inúmeros são os exemplos de mudanças de função dos objetos. Desse modo, os limites entre a função estética e funções não-estéticas são oscilantes. Para que a arte ganhe o estatuto de fenômeno estético, ela depende, como já dissemos, da cultura e dos respectivos registros de valores. Todavia, é exatamente a sua qualidade estética que pode ser atravessada por outras funções. Ao longo da história, encontramos a arte desempenhando diferentes funções, das quais se ocupam os pensadores: religiosa, ideológica (Hauser, Lukács) –, educativa (Platão, Schiller), cognitive (Hegel, Benjamin, Foucault, Heidegger). Mas todas essas funções são secundárias ou derivadas. O teatro de Brecht, por exemplo, não deixa de ser educativo, mas essa não é a sua função primeira, senão deixaria de ser arte. O mesmo pode ser dito da obra de Bosch, carregada de religiosidade. O problema das significações deve estar voltado às estruturas das ideologias. O escopo da arte é o resultado estético, marcado ontologicamente por uma ausência de função no sentido pragmático. Interessa o que o objeto tem de informação, não semântica, mas sintática, o objeto estético não é um em-si, é um signo e fait social (Adorno). Nos objetos não-estéticos, a própria finalidade pragmática é determinante de sua existência. Sem dúvida, há um traço romântico no entendimento da autonomia da arte. Mas se não se resume a uma função pragmática, o estético não é um em-si, uma essência, uma substância acabada, cheia, antes é um vazio (ou como diria Sartre, um para-si) que permite novas relações. É um ‘lugar’ que nos remete à gratuidade, ao prazer, ao erótico, à criação. Aparentemente inútil, ele é essencial na vida humana. Claro que o estético não pertence apenas à arte, podendo ser experimentado em quaisquer outras esferas (na ciência, na religião, na natureza, etc.). Ele não está nas coisas: é muito mais uma relação, uma valoração, um fenômeno. As coisas tanto podem gozar dessa função estética como podem deixar de possuí-la. Depende dos indivíduos e da cultura. Podemos falar de uma experiência estética da natureza (Kant, Dufrenne) ou da experiência estética de um cientista quando, no ato de descoberta, experimenta prazer (Moles). Mas é na arte que essa dimensão melhor se revela. É impossível estabelecer as fronteiras entre o que é ou não é arte, particularmente no tempo da pósmodernidade. Investigar a dimensão estética no homem é repassar sua elaboração e vivência da arte. De certo modo, Formaggio tinha razão ao dizer: Arte é tudo aquilo a que os homens chamam arte (p. 9). A arte tem sido vista como imitação da natureza, representação de idéias, beleza, auto-expressão, revelação, conhecimento. Revisitemos as culturas através do tempo antes de retornamos à asserção do italiano acima referida. Da mimese à catarse A cultura grega nos oferece um momento especial da arte, na figura de um poeta. Homero, expressão maior da arte grega, é o representante do ideal ético da aristocracia. Para os gregos, aspirar à beleza é conquistar a arete, isto é, a altivez e magnanimidade. A beleza significava nobreza e eleição, e seus heróis eram os arautos da arete (Jaeger, p. 81). Jaeger, que não vê Homero como naturalista nem como moralista, critica Platão e a escolástica de serem responsáveis por uma visão árida desse poeta, que deve ser tomado "não como um simples objeto da história formal da literatura, mas como o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega" (p. 44). É o Emílio educado no seio da Natureza, como dirá Nietzsche (p. 34). Cabe a Homero, ou seja, à arte, a educação e formação do povo. Platão, outro grego ilustre, para quem arte não se identifica com beleza, é autor do reconhecimento do poder da arte enquanto fortalecedora ou destruidora do caráter. Para esse filósofo, a arte livre conduz à desobediência, por isso mesmo é necessário censurá-la. Platão não se furta em fazê-lo, mesmo sendo obrigado a expulsar Homero de seu Estado Ideal. Na sua visão, o artista está condenado à imitação da aparência de verdade, imitando o físico, o sensível e não a essência, estando, assim, duplamente afastado da verdade objetiva, distante do real. O conhecimento difere da imitação, da mesma maneira como a virtude se separa do vício. A poesia e a arte são reduzidas à mimese das coisas inferiores e só têm lugar em uma cidade bem policiada (p. 238), que possua seu antídoto. A verdadeira arte, exatamente pela sua maior qualidade – a liberdade –, não tem lugar no projeto de Estado Ideal de Platão. Aristóteles, discípulo de Platão, eleva a imitação a um outro nível, e, do mesmo modo, a arte. Há nele uma reabilitação da imitação como a primeira forma de conhecimento. Encontramos na Poética a seguinte passagem: "A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância (…) Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer” (p. 275). Nessa mesma obra, imitar é representar uma ação ou um sentimento; é muito mais seguir um modelo do que reproduzi-lo. A arte já aparece como mediação entre o real e o ideal, como verossimilhança. Mas a grande contribuição de Aristóteles, creio eu, reside na definição da catarse, espécie de purificação por meio da qual a arte – pelo terror, medo ou pela piedade – acalma as paixões, equilibra a alma (Poética, p. 279). Aristóteles estava pensando sobretudo no teatro e na música. A arte é tomada aqui em sua função de educadora, pela capacidade de fazer o indíviduo vivenciar especialmente no teatro (por identificação com os personagens) experiências que o auxiliam a expulsar os excedentes. Da imitação à representação A compreensão da arte como mimese estende-se ao Renascimento, mas agora "o pintor imita a Natureza e rivaliza com ela (Da Vinci, p. 30). Encontro e diferença: ao mesmo tempo em que a natureza é um modelo a ser imitado, a arte é vista como um campo separado. Isso não impede de encontrarmos um crescente naturalismo renascentista, particularmente na arte italiana, mas de forma diferenciada do naturalismo grego. A arte ainda é a imitação da natureza, enquanto similitude, visto estar presente no Renascimento uma identificação entre hermenêutica e semiologia, pois “procurar o sentido é trazer à luz o que se assemelha” (Foucault, p. 50). Contudo, essa mimesis caminha para uma forma de representação mais sofisticada: à medida que muda a compreensão de natureza e de realidade, esses conceitos serão enriquecidos. Com o desenvolvimento das ciências e do pensamento crítico, “as coisas e as palavras vão separar-se” (Foucault, p. 68). Esse debate alarga-se com Immanuel Kant, que buscou resolver a dicotomia entre a natureza e a arte, enfrentando o desafio de mediar a sensibilidade e o entendimento, preocupado mais com o ser da arte do que propriamente com a sua função, fundando a peculiaridade e autonomia do gosto estético. O Belo, agora passando a ser a categoria fundamental da arte, reclama objetividade e universalidade e não se reduz a agradável. A contemplação desinteressada da beleza não é um conhecimento, pois não se submete à regra de um conceito, do mesmo modo que o prazer estético não traz nenhum conhecimento do objeto, uma vez que, para o filósofo, uma coisa bela revela uma ordem que não significa nada, uma organização sem conceito: "Não pode haver nenhuma regra de gosto objetiva que determine por conceitos o que seja o belo, posto que todo juízo desta fonte é estético, i. é., que seu motivo determinante é o sentimento do sujeito e não um conceito do objeto" (Kant, p. 71). Em Kant, a arte se distingue tanto da natureza como da ciência e do artesanato. A grande contribuição kantiana, além de inaugurador das belas-artes, é a compreensão de que a obra de arte não existe ontologicamente se não é percebida numa intuição, favorecendo a fenomenologia. Outro filósofo vem se somar a esse instigante debate. Trata-se de Schiller, que, de certo modo, empresta concretude à abstração kantiana. Schiller vai elevar a arte ao propor resolver, pela via estética, a oposição entre espírito intuitivo e espírito especulativo, entre natureza e cultura, desenvolvendo a teoria do jogo estético (ou impulso lúdico). Nela, o homem assume a sua natureza sensível sem negar a sua espiritualidade. Para Schiller, a arte é filha da liberdade e quer ser legislada pela necessidade do espírito e não pela carência da matéria: “Para resolver na prática o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade” (p. 36). O homem só atinge sua plenitude no estágio estético, no qual tudo é cidadania: "O homem joga somente quando é homem em pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga" (p. 83). É essa capacidade de gratuidade, de poder fazer ou sonhar sem diretamente estar atrelado à necessidade ou ao utilitário, que separa o homem da barbárie. Creio encontrar-se na visão schilleriana o momento áureo da arte, pois ela não é uma representação que se confunde com outras, mas a forma mais completa de expressão da natureza humana. Schiller acredita ser possível modificar o homem pela via estética, elevando-o à cultura. Essa elevação da arte encontra espaço na reflexão hegeliana, embora não goze do mesmo entusiasmo schilleriano. A partir de Hegel, há um rompimento definitivo com a harmonia renascentista entre homem e natureza. Do mesmo modo que Kant, Hegel identifica arte com idéia e com beleza, mas o belo não é mais um julgamento subjetivo, antes, é uma idéia no interior da realidade. Hegel eleva a arte a uma forma de conhecimento: ela é crítica, mas não é senão uma revelação confusa da verdade, visto ser uma manifestação sensível da verdade. A arte, na visão hegeliana, é um conhecimento que não está na representação, mas no ser. É o conceito se realizando na forma sensível. Por possuir uma natureza histórica, ela é mortal: "A arte é, pois, incapaz de satisfazer nossa última exigência de Absoluto. Já, nos nossos dias, não se veneram as obras de arte, e a nossa atitude perante as criações artísticas é fria e refletida. (…) A arte é para nós coisa do passado" (p. 47– 48). Da sublimação à auto-expressão Outras duas abordagens vêm se somar à reflexão idealista: a freudiana e a croceana. Freud, embora não possa ser considerado um esteta (ele mesmo se considerava um profano na arte), ocupou-se também da arte, mais atraído pelos conteúdos do que pela forma, criando uma nova categoria: a sublimação. Leonardo da Vinci é o bom exemplo para fundamentar essa tese de Freud, que vê nele uma capacidade extraordinária para superar os instintos primitivos (p. 73), na substituição da vida sexual pela arte e pela investigação (p. 23). Sublimação vem do latim sublimatio: ação de elevar, remetendo também a sublime. É uma espécie de estado de suspensão. Para Freud, a realidade social impõe obstáculos e censuras. A sexualidade joga um jogo considerável na vida do homem, mas ela pode ser desviada de seu fim e orientada para fins superiores do ponto de vista social. A arte seria uma dessas formas de orientação. Substitutiva das tensões, sublimadora da libido, ela possibilita a realização dos fantasmas, tanto do artista como do fruidor. No artista, a sublimação ocorre pelo jogo de forças psicológicas, com a atuação do inconsciente, não resultando, pois, de uma decisão voluntária. Convém não confundir sublimação com catarse – trata-se de dois conceitos distintos. O universo da arte continua instigando filósofos, críticos e historiadores, de cuja provocação não escapa Benedetto Croce. Continuador da estética hegeliana, Croce entende a arte como sendo fundamentalmente intuição ou expressão, embora nem toda expressão seja artística: "O espírito não intui, senão fazendo, formando, expressando” (p. 92). Para o pensador italiano, a vontade de expressar reclama a vontade de ser compreendido, remetendo, desse modo, ao desejo de comunicação. Não obstante, há aqui um cuidado a ser tomado: nem sempre a qualidade da expressão artística pode ser medida pelo grau de comunicação (Van Gogh e tantos outros ilustram bem essa situação). Do mesmo modo, não se pode reduzir expressão a emoção. Expressão é um conceito muito mais amplo e rico. Nem sempre o artista experimenta a emoção que a sua obra é capaz de expressar e despertar no espectador, mesmo porque, em determinadas linguagens, como o teatro, se o artista experimentasse toda a dor do Rei Lear, de Shakespeare, quando o interpreta, certamente não sobreviveria à temporada de exibição da peça. Não existe expressão sem linguagem, sem forma. Dese modo, a expressão só é artística quando o artista alcança o nível da criação, o nível do simbólico. A expressão pode ser de emoções, de sensações ou de idéias. No entanto, qualquer que seja, e Croce desenvolveu muito bem isso, requer aparecer como forma artística, reclama ser posta em linguagem de arte, que exige o novo. Arte é o lugar da emoção representada. Revelação ou Manifestação do Ser? O filósofo alemão Heidegger dá um passo que impulsiona a arte a outros patamares: a arte participaria da natureza da coisa, ela seria um acontecer da verdade. Esse modo de acontecer da verdade distancia-se de Hegel, pois agora não se trata de uma verdade inferiorizada, ao contrário, a arte é uma das formas mais perfeitas do ser. Ela é a instauração do próprio ser, estabelecimento de mundo. "A obra de arte é em verdade uma coisa confecionada, diz mais do que a mera coisa (…). A obra faz conhecer abertamente o outro, revela o outro; é alegoria (…). Alegoria e símbolo são o marco de representações dentro do qual se move há muito tempo a caracterização da arte". (p. 40-41). O ser alegórico não é um simples signo destinado a evocar uma idéia: é ele próprio uma idéia revestida de um aspecto material que a figura. A obra de arte tem por finalidade a apresentação de um mundo e a produção da terra (natureza). Heidegger entende a criação como uma produção: no jogo recíproco do mundo com a natureza, a arte desoculta. Ela é abertura ou um estabelecimento-manifestação de mundo: verdade que não se reduz a exatidão; é desocultação do ente como tal: "A Verdade só acontece quando se instala no campo de luta patente pela ação dela mesma. Posto que a verdade é a oposição entre alumbramento e ocultação, pertence a ela o que aqui se chama instalação (p. 97). A instalação da verdade na obra de arte é a produção de um ente tal que antes não era e posteriormente nunca voltará a ser" (p. 98), ou seja, instalação de um mundo novo. Instalar aqui significa ofertar, fundar, principiar e exige a contemplação. Certa feita, disse Merleau-Ponty que a nossa relação com a verdade passa pelos outros (Elogio, p. 47). Sem dúvida, o entendimento que temos da arte vem sendo construido durante toda a nossa história. Walter Benjamin soma-se a essa construção quando trabalha com as interferências da sociedade industrial e, de certo modo, antecipa, com uma percepção extraordinária, os problemas advindos com a pós-modernidade, sendo o principal deles a decadência da função social de determinadas formas artísticas. Esse extraordinário crítico da cultura mostra como a reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte: “Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de um Chaplin. O comportamento progressista se caracteriza pela ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por outro. Esse vínculo constitui um valioso indício social. Quanto mais se reduz a significação social de uma arte, maior fica a distância, no público, entre a atitude de fruição e a atitude crítica”(Benjamin, p. 187/8, grifo nosso). Com o cinema, a arte volta a ser uma criação coletiva. O que julgo fundamental na reflexão benjaminiana é o passo adiante que ele oferece em relação à estética romântica: o prazer da arte e a sua gratuidade convivem com o conhecimento. Não é preciso optar por um lado, a arte é um lugar privilegiado dessa convivência. O mundo moderno acrescenta outras dificuldades. Além da representação não se reduzir a similitude, das palavras não marcarem mais as coisas (Foucault, p. 72), do representar exigir trabalhar com as diferenças, sair da natureza para o pensamento, o capitalismo do século XX profissionalizou a mercantilização da arte. Tirando partido da sacralização, uma forma quanto mais fetichizada e distante do homem passa a ser mais valorizada enquanto mercadoria. Criou-se mesmo um profissional para lidar com essa nova mercadoria, o marchand – comerciante de arte. A arte, embora seja também um produto, não pode ser reduzida a mercadoria. Cinema não é creme dental. Essa distinção entre a arte e outros objetos pode conduzir a um novo equívoco, o da sua superioridade: querer que a arte esteja acima de todos os outros valores. O reverso da medalha também é um problema: atrelar a arte a uma função ideológica ou didática pode anulá-la. Hitler, com o nacional socialismo, ou Stalin, com o realismo socialista, são bons exemplos do que não é arte. Hitler, defensor da arte pela arte, aceitava matar homens, mas não destruir obras de arte. É um equívoco colocar a arte em um pedestal, valendo mais do que o próprio homem. Stalin, por sua vez, reduziu a arte a um estafeta, menino de recados da revolução. Certamente, a arte é uma produção humana e deve estar a “serviço” do homem. Mas é somente enquanto “um exercício experimental da liberdade” (Pedrosa, p. 110) que a arte cumpre seu papel libertador, cognitivo, prazeroso e passa a ter sentido. Não podemos esquecer que as formas artísticas também são mortais – Hegel refletiu bem sobre essa questão: uma forma artística pode nascer em determinada sociedade e desaparecer ou perder sua importância em outra. Os artistas modernos, particularmente os da Bauhaus e os abstratos, reforçaram a autonomia da arte, buscando alcançar a arte total, a arte coletiva, combatendo o individualismo e a arte pela arte. A Bauhaus fez um esforço pela arte integrada à vida, à nova sociedade, tomando-a mais como processo do que como produto. Não deixa de ser uma bela utopia o desejo de transformar a sociedade a partir do estético, mas é necessário uma dose de realidade ao utopismo romântico. A arte é uma das faces de nossa vida, não a única nem a exclusiva, convive com outras esferas: a política, a econômica, a religiosa, a científica etc. Ainda assim, ela desempenha um importante papel em nossa formação. Essa conquista da contemplação estética (sem o desprezo pela vida prática) fica comprometida com a experiência da arte levada ao extremo pelos artistas conceituais, interessados no processo e não na forma, para quem a idéia do artista vale mais do que o produto acabado. Do raciocínio de Rosenberg – "Para ser verdadeiramente destrutiva em relação à estética, (a arte) deveria renunciar à ação artística em benefício da ação política" (Rosenberg, p. 216) – ao radicalismo de Kaprow – "Todos os gestos, pensamentos e atos podem ser transformados em arte, ao sabor dos caprichos do mundo da arte. Mesmo assassinato poderia ser uma proposição artística concebível, embora impraticável" (Kaprow, p. 34) – ainda tem sentido fazer arte? E o que é essa arte? Para ambos, a arte é tudo – política, antropologia, sociologia, história de vida –, menos estética. Como lidar com as experiências radicais de Lygia Clark, Hélio Oiticica ou Joseph Beuys, pensando, respectivamente, nas obras Objetos Relacionais, Parangolés e I like America and America likes me. Processo sem produto? Fim da arte? Esgotamento da dimensão estética? Abdicação da contemplação? Creio que não. Os conceituais também são relativos. Embora uma experiência importante, até mesmo pela desmistificação que efetuam sobre a arte e a negação do esteticismo, são apenas um momento da arte e não o exclusivo. Tanto é verdade que os próprios conceituais retornam à preocupação com a forma, particularmente Kosuth. Outros caminhos estão surgindo e, certamente, novas formas virão. Mas é impossível negar que a experimentação levada ao limite vem sendo o carro-chefe da arte contemporânea. Mas esse experimentalismo crescente não pode autorizar tudo e matar a própria arte. Creio que a arte não pode ser reduzida a ciência, embora dialogue com ela; também não é filosofia, na medida em que não tem a obrigação de labutar conceitos, nem de justificar nada; não é técnica nem mero produto: a arte é uma das formas de manifestação do ser. É uma experiência singular da liberdade que nos ensina rigor mas também nos permite desobedecer, transgredir; nos capacita a dizer não. Em um mundo sufocado pela obediência, saber dizer não é uma grande conquista. A arte é essa forma sagrada de desobediêcia. Por isso mesmo, é preciso impedir o congelamento da linguagem. O medo da arte, porque uma linguagem livre, tem conduzido parte da sociedade a afastá-la, como defesa. Certamente, vivenciar essa dimensão estética pode levar a atingir pontos vulneráveis. A arte pode revelar o que não queremos ver, pode dar prazer quando o negócio não é o ócio, mas o trabalho controlado. A arte está interessada no homem, mas na acepção mais larga desse termo: no homem enquanto ser livre, educado para a vida, que não teme riscos. Voltemos agora ao início de nosso texto: Arte é tudo aquilo a que os homens chamam arte. Sem dúvida, todas essas concepções de arte envolvendo mimesis, catarse, beleza, verdade, conhecimento, sublimação, forma, expressão, revelação do ser são sempre históricas, uma vez que estão ligadas a um universo de valores culturais. Cada cultura acaba criando a sua concepção de arte. Parece-nos impossível uma definição geral e única que dê conta da própria universalidade da arte e de toda a experiência artística em todos os tempos. Toda definição exige uma situação no espaço e no tempo, e definir é indicar os limites. Cada cultura tem o seu conceito de arte, e, no interior dessa cultura, ele é verdadeiro e absoluto. Quando comparado às outras culturas, torna-se verdadeiro e transitório. Todas as definições são constituintes da verdade da arte. Toda definição de arte está, pois, ligada ao tempo vivido por determinado homem, herdeiro e criador de cultura. Arte é uma constelação de momentos: imitação, expressão, conhecimento, transgressão, devaneio, prazer. Mas de todas essas funções, a mais importante talvez seja a mais simples: a lúdica. Arte é essencialmente prazer. É claro que o prazer artístico difere de saciar a fome, a sede, o sexo. O prazer da arte é a afirmação de Eros contra Thanatos. O cinema (sem dúvida, a forma artística mais valorizada do século XX, ocupando o lugar que o teatro teve na antiga Grécia) favoreceu uma mudança no comportamento do espectador, recuperando o prazer da arte: ao ver um filme, o espectador se diverte sem deixar de ser crítico. O cinema é uma forma artística que conjuga divertimento e pensamento. Como bem percebeu Walter Benjamin, no cinema, o público pensa com a imagem. Enquanto pensa, diverte-se, sente prazer. As outras formas artísticas devem mirar-se nessa conquista do cinema: conhecimento, trabalho e prazer podem andar juntos. Finalmente, toda força criadora escapa a uma determinação absoluta: a arte segue sendo um enigma – a capacidade simbólica do homem é que o impulsiona a todo tipo de conhecimento e invenção. Aproximar-se da arte, sem necessidade de refazer-lhe a gênese, nos possibilita uma experiência estética única. E é o estético que nos devolve à nossa humanidade, pelos gestos de generosidade, de gratuidade, por nos permitir o prazer e provocar a nossa inteligência. É preciso indicar a ilegitimidade da separação entre a dimensão contemplativa e a praxis, somar ao praticismo da globalização o Jardim de Epicuro, pois é na “alegria e não no trabalho que o homem descobriu o seu espírito. A conquista do supérfluo dá uma excitação espiritual maior do que a conquista do necessário. O homem é uma criação do desejo, não uma criação do necessário" (Bachelard, p. 36-37). Quanto à questão para nós dirigida em relação à arte e educação, a melhor forma de tirar partido da arte é praticá-la na sua liberdade: o que liberta, ensina. REFERENCIAS ADORNO, T. Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982. ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Difel, 1959. BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do fogo. Lisboa: Estudios Cor, 1972. BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985 CROCE, Benedetto. Estética. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1969. DA VINCI, Leonardo. Tratado de la pintura. Madrid: Espasa, 1964. DUBBUFFET, Jean. L’homme du commun à l’ouvrage. Paris: Gallimard, 1973. FORMAGGIO, Dino. Arte. Lisboa: Editorial Presença, 1985. FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. Lisboa: Portugália Editora, 1966. FREUD, Sigmund. Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. In Psicoanalisis del Arte. Madrid: Alianza Editorial, 1971. JUSTINO, M. J. Seja marginal, seja herói – modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticica. Curitiba: Editora UFPR, 1998. HEGEL. A idéia e o ideal. Lisboa: Guimarães Editores, 1959. HEIDEGGER, M. Arte y Poesia. México: Fondo de Cultura Económica, 1958. INGARDEN, R. Estética e Filosofia da Arte. In: Akten des XIV Internationalen Kongresses für Philosophie (1968). Wien, Verlag Herder, p. 214–219. JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo: Martins Fontes/E.U.Brasília, 1989. KANT, I. Critica del juicio. Buenos Aires: Losada, 1961. KAPROW, A. A Educação do A-Artista. Malasartes 3, 1969, p. 34. LACOSTE, Jean. La Philosophie de L'Art. Paris: PUF, 1981. LENOBLE, Robert. História da idéia de natureza. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990. MERLEAU-PONTY, M. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: Os Pensadores, Vol. XLI, São Paulo: Abril Cultural, 1975. MERLEAU-PONTY, M. Elogio da Filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1962. NIETZSCHE, F. El origen de la tragedia. Madrid: Editorial Espasa-Calpe, 1969. PEDROSA, Mário. O bicho-de-seda na produção em massa. In Mundo, Homem, Arte em Crise. São Paulo: Perspectiva, 1975. PLATÃO. A República. São Paulo: Difel, 1965. _____. Hípias Maior. Pará: Globo, 1980. ROSENBERG, Harold. Desestetização. In Battcock, G. A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. SCHILLER. Sobre a Educação Estética. São Paulo : Herder, 1963. WORRINGER, Wilhelm. Abstraction et Einfühlung. Paris: Klincksieck, 1978. Reflexões sobre Dança em cadeira de rodas MARIA BEATRIZ ROCHA FERREIRA LAB. ANTROPO. BIOCULTURAL/DEAFAFEF/UNICAMP Pesquisador CNPq - UNICENTRO Introdução A dança em cadeira de rodas faz parte da cultura corporal da civilização contemporânea. Esta atividade enquanto arte, recreação ou esporte, é uma atividade complexa representativa da vida contemporânea sofisticada e que traz em si a técnica e a criatividade. Ela requer um conhecimento interdisciplinar advindo das áreas da Educação Física, Educação Física Adaptada, Dança, Antropologia, Medicina, Fisioterapia e Educação. Neste trabalho, a dança em cadeira de rodas será tratada na inter-relação destas áreas e mais especificamente da Educação Física/Esporte e Antropologia. A dança em cadeira de rodas artística/recreativa ou esporte vem crescendo e tornado-se cada vez mais visível, sua ação está inserida numa conjuntura maior de mudanças na sociedade, uma maior conscientização dos direitos de cidadão do deficiente, maior abertura de setores da sociedade como os clubes, criação de ONGs para fins específicos, apoios governamentais, programas na mídia, etc. Como atividade artística ou recreativa (termo usado como sinônimo da primeira) ela já tem uma história, que se inicia no final dos anos 60 na Europa. E como esporte, o processo passa a ser mais institucionalizado e burocrático. Nesta modalidade é uma atividade mais recente, foi reconhecida em diferentes instâncias, tais como 15 : Organização de Esporte Internacional para Deficientes em 1989, Comitê Paraolímpico Europeu em 1993, Comitê Paraolímpico Internacional – CPI como Esporte Paraolímpico dos Jogos de Inverno em 1997 e como Esporte Paraolímpico em 1998. Entretanto desde os últimos Jogos de Inverno em Salt Lake City (março de 2002) o CPI fez modificações no estatuto e entendeu que para a DCR continuar a ser esporte paraolímpico deverá ter maior representatividade, o que implica um número maior de países praticantes e ser mais desenvolvida globalmente. Caso contrário, ela participará de campeonatos mundiais, nacionais e regionais. A construção deste caminho, especialmente num país da dimensão do Brasil, é demorada e custará a atingir a população de base. O caminho é árduo, superar preconceitos, conseguir apoios, patrocínios e espectadores. E mesmo nas academias, ela ainda sofre resistência, não foi inserida nos programas regulares das universidades, em específico as Faculdades/Institutos de Arte e Dança e Faculdades de Educação Física (FERREIRA, 1988). Ela, enquanto atividade artística começa a aparecer em programas de extensão das universidades e associações de deficientes. A sua característica complexa, por evocar a arte, o corpo em movimento, o esporte e a recuperação, necessita de estudos interdisciplinares, de conhecimento advindo de diferentes áreas do conhecimento. Existem atualmente no Brasil profissionais trabalhando de maneira integrada com dança em cadeira de rodas, como professores de educação física e de dança, fisioterapeutas e áreas correlatas, visto a exigência do conhecimento interdisciplinar. E diria mais, pelo seu caráter complexo, 15 http://www.paralympic.org/sports/sections/dance/general.htm abrange diferentes aspectos do ser humano, o biológico, o filosófico, o antropológico, o histórico e o sociológico. O presente trabalho pretende abordar notas fundamentais conceituais para se compreender a dança em cadeira de rodas, quer como dança-artística, quer como dança-esporte. O reconhecimento da alteridade das diferenças e diversidades bio- psico-sócio-culturais são condições fundamentais para se compreender melhor a dança em cadeira de rodas. Como se conhecer e reconhecer algo que há tantos anos ficou desapercebido por todos nós, excluído do “conhecimento dito científico” das diferentes áreas de conhecimento, dos palcos, das arenas, do radio, da televisão, dos jornais, dos livros, das revistas? Pergunto, como se pode compreender a dança em cadeira de rodas como elemento da cultura corporal contemporânea? Como toda atividade humana, um dia ela começou a ser desenvolvida, advinda das inter-relações de vários fatores. E para a sua compreensão deve se levar em consideração à pesquisa científica, o conhecimento popular, a participação ou o silêncio da mídia, dos eventos culturais, enfim do movimento em que ela está inserida. A construção deste conhecimento é um processo dinâmico, de reconhecimento, de identificação, de reflexão, de retomada de valores. E só pode ser feita na interlocução de diferentes áreas do conhecimento e com os deficientes e não deficientes. Digo mais, a construção deste conhecimento exige esforços de todos nós, pessoas, instituições governamentais e não governamentais e mídia. É importante retomarmos o passado, refletirmos sobre ele, dimensionarmos o presente e avançarmos para o futuro. Recorrendo a Norbet Elias (1994) diria que este processo é demorado e interdependente de outros fatores da sociedade, requerem mudanças na balança de poder, o que pode gerar inseguranças, conflitos. E, portanto, sociedades complexas geram um maior nível de incerteza e mais criatividade é necessária nos processos de mudanças sociais. No caso da Dança em Cadeira de Rodas, onde quase nada foi feito em termos acadêmicos, na mídia ou na sociedade de maneira geral, pergunto, qual será o caminho para o desenvolvimento desta atividade artística ou esportiva? Eu não tenho a resposta. Posso dizer que nos últimos anos tomamos algumas medidas para proporcionar o desenvolvimento desta atividade: a organização do I e o II Simpósio Brasileiro da Dança em Cadeira de Rodas na Faculdade de Educação Física da UNICAMP, produção de Anais do Congresso e Publicações na Revista Conexões e a criação da Confederação Brasileira de Cadeira de Rodas. As reflexões de pessoas de diferentes setores, os apoios institucionais, a participação do público muito já contribuíram para se começar a pensar na dança em cadeira de rodas. Cultura corporal Neste ponto do trabalho, esclareço que o termo cultura corporal está sendo utilizado para realçarmos o objeto de estudo - o corpo em movimento, num viés da Educação Física e Esporte. Cultura e cultura corporal não existem em separado, a não ser por um recorte metodológico. Neste sentido, cultura corporal está sendo entendida como um sistema complexo de significados, com mecanismos de controles planos, normas, instruções para governar o comportamento no que tange ao movimento corporal. Esta definição denota uma série de idéias interligadas como sistemas complexos, valores, convivência em sociedade e relações de poder, um corpo em movimento advindo do processo adaptativo filo-ontogenéticos (Rocha Ferreira, 2001 a b). Não basta reconhecermos que a espécie humana assim como outras espécies nesta Terra são motrizes e que o movimento é, portanto fundamental para a sobrevivência. A definição da atividade física sob a perspectiva biológica de Caspesen (1985) é reducionista, pois define atividade física como qualquer movimento produzido pelos músculos esqueléticos que resulta em um gasto de energia. A dança em cadeira de rodas não é somente um tipo de atividade física, mas é fundamental olharmos sob outro ângulo, numa perspectiva sóciocultural, como uma atividade humana com significados específicos intra e entre sociedades e civilizações e que possui diferentes formas de representações e manifestações. Portanto, numa visão antropológica e da educação física, pode ser entendida como uma atividade complexa do ser humano bio/sócio/emocional/espiritual e inserida numa rede de significados culturais. Neste sentido, os humanos representaram, ou melhor, significaram o movimento através de diferentes formas: atividades diárias, atividade física, exercício físico, danças, jogos tradicionais, brincadeiras, esportes, artes marciais, entre outras, com finalidades de trabalho, de lazer, de recreação, de competição, de rituais religiosos etc. A dança em cadeira de rodas é, portanto um dos elementos da cultura corporal contemporânea, a qual está inserida numa rede complexa de significados. É importante lembrarmos que a dança está presente em todas as civilizações e culturas, desde as primeiras sociedades hominídeas. E ela, assim como a dança em cadeira de rodas é parte de uma teia de significados, em épocas e local determinados, onde ocorrem a produção e reprodução de valores, habitus, ideologias, identidades, gênero, etc. A pessoa portadora de deficiência e dança em cadeira de rodas Primeiramente quero abordar o aspecto biológico da questão. As pessoas portadoras de deficiências representam uma população que foi e ainda é excluída, pois traz a marca da diferença. E esta diferença foi tão forte na visão do outro, que a pessoa, como membro da espécie, foi marginalizada durante anos. E, no entanto, ela traz em si, a variação populacional geral da espécie, isto é, além da deficiência ela tem uma carga genética, o que explica porquê pessoas com a mesma deficiência têm respostas diferentes aos fatores positivos ou negativos do meio ambiente. Estas respostas dependem, portanto da carga genética de cada um, da fase do crescimento, maturação e desenvolvimento, idade e tempo de duração do estímulo, do contexto sócio-cultural. Nesta visão é importante tirar o foco da deficiência, e por na pessoa como um todo, inserida na variação populacional, com sua carga genética, potencial interativo, capacidade de responder ao meio e construir relações baseadas nas experiências da vida. É claro que a deficiência é um fato presente, mas a pessoa é muito mais do que a deficiência. Ao tirarmos o foco da deficiência, começamos a reconhecer a pessoa deficiente de maneira diferente. Reconhecermos a diversidade bio-sócio-cultural e damos os primeiros passos para o diálogo com o outro, é o início do reconhecimento da alteridade, um outro diferente de mim, mas não com a marca da deficiência. O reconhecimento deste outro, como ser da mesma espécie, com um potencial genético e psico-sócio-cultural que o diferencia dos outros, mas que precisa de cuidados especiais por ser portador de deficiência. Rimmer (1999, 2002) mostra que até recentemente a promoção da saúde para pessoas com deficiência tinha sido uma área negligente na comunidade de saúde de maneira geral. Mas que atualmente, pesquisadores, agências financiadoras, agentes de saúde e pacientes vêm liderando um esforço para estabelecer programas de saúde de alta qualidade para milhões de americanos com deficiências enfocando a atenção em reduzir condições secundárias de problemas de saúde, tais como obesidade, hipertensão, diabetes, osteoporose, visando manter a independência funcional, promover uma oportunidade de lazer e prazer e promover uma qualidade de vida reduzindo as barreiras para uma boa saúde. Historicamente o foco dos programas estava na prevenção primária da deficiência e atualmente o foco é na redução das condições secundárias de saúde em pessoas portadoras de deficiências. Estas pessoas portadoras, como por exemplo, de paralisia cerebral e espinha bífida são susceptíveis à osteoporose, osteoartrite, diminuição do equilíbrio, da força, da endurance, da flexibilidade e de condições físicas gerais, assim como problemas de peso, depressão. E é na prevenção destes problemas secundários da deficiência que os programas de saúde estão sendo propostos. Um recente documento de trabalho nos Estados Unidos sobre Pessoas Saudáveis com Deficiências 2010 (RIMMER, 1999) sugere quatro componentes na definição da promoção da saúde para pessoas com deficiência: (i) promoção de estilo de vida saudável e meio ambiente saudável; (ii) prevenção de complicações de saúde (condições médicas secundárias) e outras complicações da deficiência; (iii) preparação da pessoa com a deficiência para compreender e monitorar a própria saúde e necessidades de cuidados especiais; (iv) promoção de oportunidades para participação em atividades diárias comuns. RIMMER (1999, 2002) sugere os seguintes aspectos para a promoção da saúde para ppd: (i) aptidão (mesmos componentes para a população geral) - endurance cardiovascular, força, flexibilidade e habilidades para as necessidades especiais; (ii) nutrição - papel da dieta para prevenção de doença crônica; (iii) comportamento saudável - determinantes do estilo de vida, e pergunta-se porquê algumas pessoas têm um estilo de vida saudável e outras não? O mesmo se pergunta para as pessoas com necessidades especiais. Os benefícios da atividade física regular sugeridos pelo Centro Nacional de Atividade Física e Defeciência (The National Center on Physical Actiity and Disability NCPAD, 2000, 2002) são: o aumento da função cardiopulmonar, controle do peso, aumento da aptidão metabólica, melhoria da habilidade de levar as atividades diárias, sentimento de bem estar, potencial para reduzir a ansiedade e depressão. Atenção deve ser dada à intensidade, freqüência, duração e tipo de atividade estruturadas (como danças, esportes) e não estruturada (trabalho de casa, andar para o trabalho, jardinagem). Neste ponto é importante valorizar a importância do trabalho de dança em cadeira de rodas na melhoria da qualidade de vida e maximização do potencial para independência. E buscando a questões de RIMMER (et al.,1996) pergunto, como a DCR pode promover a capacidade funcional e reduzir a freqüência de complicações secundárias em pessoas com deficiência?; (ii) quais são os resultados a longo termo desta atividade física para pessoas com deficiência? (iii) quais são os padrões de atividade física entre pessoas com diferentes deficiências físicas?; (iv) quais são as percepções de atividade física entre pessoas com deficiência? E, pergunto ainda qual é a variação bio-sócio-cultural da população portadora de deficiência, enquanto espécie? Dança em Cadeira de Rodas A dança, a arte, a estética, a ética e a moral são interligadas na história da humanidade. A estética está relacionada com a essência e a percepção do belo e do feio, do belo e sublime, dos tipos de conhecimento sensorial e sensitivo, a metafísica. E na compreensão tradicional da estética, a dança em cadeira de rodas pode ferir os preceitos do belo, dos movimentos perfeitos, da regularidade e ritmo, do sublime, da dança como “arte da perfeição”. Para que ela seja aceita como arte, precisa existir uma mudança na compreensão do belo, do feio, do sublime, uma mudança que passa pela ética; de se ver a regularidade no que parece irregular, o ritmo no que não tem ritmo, no bonito que parece feio etc. É ver a arte de uma outra maneira. E este entendimento já vem sendo transformado paulatinamente, advindo da inter-relação de vários fatores sociais, tais como: desequilíbrio da balança de poder, a ética, a estética e política. Nos filmes e brinquedos infantis já podemos observar uma mudança de forma e conteúdo, tais como: o filme Shrek, dirigido por Andrew Adamson e Victoria Jenson, onde o herói é um ogre feio e temperamental e a princesa não é o que aparentava ser. Outro filme que quebra os padrões convencionais é a Formiguinhaz, lançado em 1998. O filme faz uma crítica contra a sociedade atual, onde as pessoas não possuem o direito de pensar, mas são conduzidas pela sociedade, para fazer o que é mais lucrativo na própria sociedade; mostra um herói operário, aparentemente medroso e fisicamente franzino, que sonha roubar o coração da princesa. Para isso, convence seu amigo soldado a trocar de lugar com ele, o que faz com que tenha que enfrentar o impiedoso General Mandíbula, que planeja uma grande ofensiva contra o formigueiro. Esta inversão dos padrões é um sinal de mudança na sociedade, nos valores, na ética. Ser Entendo que o aprofundamento de teorias filosófica sobre estética e ética pode elucidar e auxiliar na compreensão do comportamento humano em situações que emergem a questão do belo, do perfeito, do imperfeito, do sublime, da dança como "arte da perfeição", da dança para deficientes, dos preconceitos, dos valores, dos sentimentos de superação das deficiências, tanto pelo dançarino quanto pelo espectador. A estética, a ética e política estão interligadas. E, portanto a mudança de conceitos, na compreensão de uma influência na compreensão da outra. As re-definições e compreensão da estética, a ética e a política com relação ao deficiente tiveram modificações significativas, da antiguidade até o tempo presente, especialmente a partir do século XX. Estas mudanças passaram por um processo longo de transformações, de re-significações de valores, de se perceber e aceitar a pessoa portadora de deficiência como dançarino, como artista. Para tanto, ocorreram mudanças na sociedade, e antes de se pensar no dançarino, ele foi considerado cidadão, com direitos numa sociedade que está tentando lidar com a diversidade e com as diferenças. Em realidade na busca da unidade na diversidade. E isto não é fácil. É interessante de se observar que a dança foi o último esporte olímpico a ser criado, em 1988. Será um acaso? Ou porquê ela vem de encontro mais intensamente com a questão da estética. E como esporte ela exige outras reflexões filosóficas e educacionais. Se bem desenvolvida, ela poderá ser um veículo importante de acesso do deficiente a outros setores da sociedade. Pela complexidade o esporte exige esforços de diferentes áreas do conhecimento, como medicina, educação física, fisioterapia, dança etc. Especificamente enquanto dança esporte, ela mobiliza e o conhecimento para (i) classificação funcional da deficiência, (ii) para o desenvolvimento da condição física (flexibilidade, resistência cardiovascular, força, equilíbrio, agilidade), (iii) de coreografia (ritmo, tempo, configurações, espaço, criatividade) e (iv) árbitros esportivo. Além disso, o esporte exige regras internacionais, no caso a dupla de dançarinos deve ser composta por pares compostos de um homem e uma mulher, sendo que um deles deve ser usuário de cadeira de rodas. E eles podem optar para por duas categorias: (i) Dança Standard: Valsa, Tango, Valsa vienense, Foxtrot lento, Quickstep, e (ii) Danças Latino-americanas: Samba, Cha-Cha-Cha, Rumba, Paso Doble, Jive (Krombholz. 2001). Em nível recreativo, a dança em cadeira de rodas pode ser praticada em diferentes estilos, isto é, dança de salão, dança folclórica, ballet ou dança moderna. E existem diferentes formas como dança combinada (cadeirante com par não deficiente), dança dual (dois cadeirantes), dança em grupo (só cadeirantes ou cadeirantes com não deficientes dançam em formações ou performance livre) e dança individual (somente o cadeirante). De acordo com CPI 16 mais de 5000 dançarinos (4.000 cadeirantes e 1500 não deficientes) praticam a Dança em Cadeira de Rodas em nível competitivo ou recreacional em mais de 40 países. Entretanto, este número não indica que ela esteja sendo praticada extensivamente nos diferentes países, o que comprometeu o número de participantes de dançarinos na Paraolimpíada de Inverno em Salt Lake City. E, por esta e outras razões, este esporte não será disputado na próxima Paraolímpiada, até que atinja os requisitos exigidos pelo Comitê. As competições de dança esporte em cadeira de rodas são organizadas nos mundiais, nacionais e regionais. Os objetivos do Comitê de Dança Esporte em Cadeira de Rodas 17 vêm corroborar com o desenvolvimento desta modalidade esportiva, os quais são: (i) motivar organizações esportivas nacionais de atletas deficientes para incluir a Dança em Cadeira de Rodas nos seus programas, (ii) melhorar a performance dos dançarinos por meio de treinamento e troca de 16 17 http://www.paralympic.org/sports/sections/dance/general.htm http://www.paralympic.org/ informações, promover a Dança Esporte em Cadeira de Rodas através de eventos demonstrativos, publicações e exibições e (iii) treinar em nível internacional instrutores, professores, técnicos e árbitros. O controle da informação sobre dança esporte ainda está em poder do comitê e de alguns países na Europa. A formação de técnicos especializados no assunto como árbitros, classificadores funcionais, coreógrafos, treinadores precisam muitas vezes ser feitas no exterior. E em alguns deles, somente com a anuência do Comitê Paraolímpico Nacional. No Brasil ainda temos um caminho a trilhar, diante da complexidade do país, das diferenças sócioeconômicas, do controle da informação de poucos, da dificuldade de locomoção do deficiente etc. Deixo aqui o desafio para que todos, pessoas, organizações não governamentais, organizações governamentais, mídia sejam canais facilitadores para o desenvolvimento da dança em cadeira de rodas. E que as pessoas decidam se querem praticá-la como dança artística/recreativa ou esportiva. Considerações finais A dança em cadeira de rodas é uma atividade cultural complexa, construída em meados do século XX como atividade artística/recreativa e nos últimos anos como esporte. Ela exige conhecimento interdisciplinar, o que justifica a participação de diferentes profissionais para o seu desenvolvimento. O reconhecimento da alteridade, diversidade e diferenças bio-sócio-culturias devem ser inerentes ao desenvolvimento da dança em cadeira de rodas, quer como atividade artística ou esportiva. Como atividade artística e mesmo esportiva ela vem transformar o conceito tradicional do belo, do perfeito, do ritmo. É ver a regularidade no que parece irregular, o ritmo que parece sem ritmo, no bonito que parece feio. A complexidade da atividade enquanto esporte exige o apoio de outros setores da sociedade, como comitê paraolímpico nacionais e internacionais, formação de classificadores, árbitros e campeonatos. Ela pode ser um importante meio para reduzir as condições de problemas secundários de saúde em pessoas portadoras de deficiências, além de facilitar a maior mobilização sócio-política dos dançarinos na sociedade. Referência Bibliográfica CASPERSEN, C.J., Powell,K.E. and Christenson,G.M. Physical activity, exercise and physical fitness: definitions and distinctions for health-related research. Publ.Hlth.Rep. , 100:126-131, 1985. ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Jorge Hahar Editor Ltda., 1994. FERREIRA, E. L. Dança em cadeira de rodas: os sentidos da dança como linguagem não verbal. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Educação Física/Unicamp, 1998. KROMBHOLZ, G. Wheelchair dance – wheelchair dance sport. Anais do I Simpósio Internacional de Dança em Cadeira de Rodas. Faculdade de Educação Física da UNICAMP, 2001. NCPAD The National Center on Physical Activity and Disability. General exercises guidelines (online) Chicago, NCPDA, 2000 e 2002, available from http://www.ncpad.com/whtpprs/ RIMMER JH. Health promotion for people with disabilities: the emerging paradigm shift from disability prevention to prevention of secondary conditions. Phys Ther;1999;79:495-502, (online) Chicago, NCPDA, 2000, available from http://www.ncpad.com/whtpprs/healthpropwdshift.htm RIMMER JH., D. BRADDOCK AND K.H. PILETTI Research on physical activity and disability: an emergin national priority. Med. Sci. Sports Exerc. 1996, vol. 28,no. 8, pp. 1366-1372 (online) Chicago, NCPDA, 2000, available from http://www.ncpad.com/whtpprs/pademrgpriority.htm RIMMER, J. Achieving a beneficial fitness for persons with developmental Disabilities. http://www.ncpad.org/whtpprs/DevDisab.htm, 2002. ROCHA FEREIRA, M.B. O ser ánthropos e a atividade física. Revista Conexões: educação, esporte, lazer. Campinas: 4:7-17 2000. ROCHA FERREIRA, M.B. Criança e saúde: um enfoque antropológico. Livro da Sociedade Internacional para Estudos da Crianca -SIEC SIEC, Santa Maria, p. 141156, 1999. ROCHA FERREIRA, M.B. Dança - performance em cadeira de rodas: atividade artística ou esportiva na pesquisa. Revista Conexões. Campinas: 7-13, 2.001a. ROCHA FEREIRA, M.B. O ser ánthropos: adaptabilidade, alteridade, diferenças e diálogo. Anais do Congresso da Sobama, p. 32-34, 2001b. Coreografar: Inscrever significativamente o corpo no espaço Eni Orlandi Labeurb Nudecri Introdução Como pensar a coreografia, discursivamente? Como tenho proposto, o trabalho simbólico da interpretação implica em gestos (E. Orlandi, 1966), o que tenho designado como gestos de interpretação. Parto da definição de gesto como ato ao nível simbólico - que M. Pêcheux (1969) reserva somente a atos como assobiar em uma asssembléia, piscar para um companheiro etc - e o redefino em termos da interpretação face ao modo como sujeito e sentido se conjugam significando simultaneamente em cada formulação. Os gestos de interpretação, então, no modo como os concebo, intervêm no real do sentido (E. Orlandi, 1996). Pois é deste modo que quero compreender a coreografia: face a gestos de interpretação, pensando o coreógrafo e os dançarinos ligados por gestos que resultam no que chamo de textualização do discurso. Diria então que a coreografia se apresenta como a textualização (formulação, atualização), através do corpo dos sujeitos, do discurso da dança. Esta por sua vez é, como defini em outro lugar (E. Orlandi, 2000), “a música do corpo, é ritmo significado que liga (estrutura) corpo/espaço/movimento”, enquanto forma particular de produzir sentidos e de se significar. A dança, insisto, não expressa algo, ela é a música estruturando o corpo, a coreografia sendo precisamente o seu modo de estruturação. Assim, podemos pensar a coreografia em relação ao que tenho distinguido como “ordem” e como “organização”. A coreografia balança entre as duas: na coreografia, há a técnica que é a sua dimensão que organiza; no entanto, enquanto parte da relação significante (estrutura e sentido) entre corpo/música/ritmo, ela é da ordem da arte da dança. Se procurarmos entendê-la etimologicamente vamos encontrar que a coreografia (nessa palavra há grafia) se aplica antes à dança que se acompanha de canto, mais específicamente ao canto em coro e finalmente à anotação da dança. Retomaremos isto mais à frente. Alguns pressupostos Discursivos Retomando alguns pressupostos que apresentei em uma Conferência em Belo Horizonte (“Corpo e Silêncio”, 1999) em que se tratava de pensar o corpo em relação à saúde e ao segredo, começaria por dizer que formular é dar corpo aos sentidos (E. Orlandi, 2001 entre outros). Por ser um ser simbólico, o homem, constituindo-se em sujeito pela linguagem e na linguagem que se inscreve na história para significar, tem seu corpo atado ao corpo dos sentidos. Isso quer dizer que o sujeito e os sentidos, constituindo-se simultaneamente, têm sua corporalidade articulada no encontro da materialidade da língua com a materialidade da história. Assim é que compreendemos a afirmação de que na análise de discurso trabalha-se no confronto do simbólico com o político. Entendendo-se aqui o simbólico pela noção de língua, tal como a concebemos em análise de discurso, ou seja, um sistema significante intrinsecamente sujeito a falhas. A noção de político, que também defino por essa relação de produção de sentidos – a história existe porque os fatos fazem sentido, reclamam que se lhes encontrem causas e conseqüências (P. Henry) – leva-nos a afirmar que, ao fazer sentido, tomado pela necessidade da língua e da história, o sujeito sempre dá uma direção ao sentido e não outra. Para nós, está justamente nessa divisão (E. Orlandi, 1996), nessa partição do sentido, desde sua constituição, o que define o que chamamos de político em discurso: os sentidos não são neutros e se situam em sua historicidade em determinadas regiões no processo de significação (formações discursivas). Mais do que isso, a própria língua tem o político como constitutivo, ou seja, há uma política do (no) dizer: os sentidos sempre poderiam ser outros. A língua se abre para a falha, para o equívoco. A historicidade do discurso declina-se politicamente. Tudo isso pode ser compreendido na definição do discurso, como efeito de sentidos entre locutores, como afirma M. Pêcheux (idem): não é transmissão de informação só, nem tampouco apenas instrumento de comunicação, a linguagem serve para comunicar e para não comunicar. Eis a política do dizer funcionamento. Dizer que não há sentido sem que a língua se inscreva na história, significa, para mim, que não há sentido sem interpretação. Essa inscrição permite que observemos o processo mesmo de produção de sentidos e de constituição dos sujeitos em sua materialidade. Sujeitos e sentidos que dão corpo à linguagem/ que se dão corpo na linguagem. E existem no mundo, logo, atravessados pelo real da história. Daí dizermos que, do ponto de vista discursivo, a linguagem não é transparente e os sujeitos não são a origem deles mesmos: eles se constituem na interpelação dos indivíduos em sujeitos pela ideologia, relações imaginárias que os ligam às suas condições reais de existência. Os sentidos não são evidentes pois assim como os sujeitos, se constituem pela relação do real da língua com o real da história. Tudo isso resulta na opacidade da linguagem, passível de mostrarse quando tomamos o discurso como lugar de observação. Trazendo essas afirmações para nossa reflexão presente: os corpos, pensando-se a significação, não são evidentes. Quando nos situamos nesse lugar, teoricamente, somos levados a pensar que não há sentidos em si e que os sujeitos não são a sua própria origem, embora acreditem sê-lo. Os sentidos se formam em processos muito mais amplos, em que entra o que chamamos “interdiscurso”, em minhas palavras, a memória do dizer, o saber discursivo que se estrutura pelo esquecimento. Tudo o que é dito e que constitui “nossos” sentidos e que equecemos como se formaram em nós, tendo a impressão de que é “o” sentido lá. Acreditamos assim que os sentidos “nascem” em nós quando, na realidade, retomamos sentidos pre-existentes. As palavras nos significam – ou significam para nós – porque já significam. Isto é, elas significam por esses efeitos de memória nos sujeitos. Ao retomar sentidos nos identificamos com eles, fazendo com que eles funcionem como sendo “nossas” palavras. Mas não sabemos como esses sentidos (e não outros) se constituíram em nós. Não temos acesso ao modo como a nossa memória discursiva se constitui justamente porque ela se estrutura pelo esquecimento. Assim, não há sentido sem interpretação, embora a interpretação não nos aparece como interpretação mas como o sentido “lá”. Isso é o efeito ideológico elementar: por ele acreditamos sermos sempre já sujeitos e nos iludimos com o fato de que os sentidos nascem em nós e que só podem ser esses. Somos, enquanto corpo de sujeitos, atravessados pelo corpo dos sentidos, isto é, pela língua inscrevendo-se na história. Corpo e Significação Assim, podemos dizer que o corpo do sujeito e o corpo da linguagem não são transparentes. São atarvessados de discursividade, isto é, de efeitos de sentidos constituídos pelo confronto do simbólico com o político, como dissemos mais acima, em um processo de memória que tem sua forma própria e que funciona ideologicamente. Isto quer dizer que assim como nossas palavras já vêm significando antes mesmo que as tomemos como nossas palavras, nosso corpo já vem sendo significado mesmo que não o tenhamos, conscientemente, significado. Não há corpo que não esteja investido de sentidos, e que não seja o corpo de um sujeito que se constitui por processos de subjetivação nos quais as instituições e suas práticas são fundamentais para a forma com que ele se individualiza, assim como o modo pelo qual, ideologicamente, somos interpelados em sujeitos, enquanto forma sujeito histórica (em nosso caso, capitalista). O corpo do sujeito é um corpo ligado ao corpo social (E. orlandi, 2001) e também isto não lhe é transparente, porque as instituições com seus discursos silenciam isto, tratando o social individualizado. O corpo do sujeito é, nas condições sócio-históricas em que vivemos, parte do corpo social tal como ele está significado na história. Isto significa, entre outras coisas, que o sujeito relaciona-se com o seu corpo já atravessado pelo discurso social que o significa, pela maneira como ele se individualiza. No entanto, sempre há a incompletude, a falha, o possível. E os sentidos, como tenho repetido, sempre podem ser outros. Nosso empenho aqui é o de mostrar que é preciso estabelecer condições para que estes outros sentidos, os irrealizados, venham à tona, se pratiquem, tomando forma social na história da relação dos sujeitos com o discurso do/sobre seu corpo. Temos como objetivo mais amplo constituir uma nova escuta do corpo. Criar condições para a emergência de novas discursividades. Em que o corpo se signifique no movimento da (sua) história. Acompanhando assim o que tenho dito da identidade: ela é um movimento na história. Figuras: A Arte (Grafia) do Corpo Para isto, e entrando mais propriamente no assunto, estabeleço como ponto de partida uma noção que tenho trabalhado, a partir de Hjelmslev (1968), que é a noção de figura. Defino figura como a articulação, sob o efeito metafórico, de forma e sentido. O ponto a ser realçado é o como funciona aqui o efeito metafórico, a transferência de sentidos, a tomada de uma figura por outra. No caso do corpo, e pensando a noção de coreografia, diria que a coreografia trabalha figuras corporais em suas relações, em sua materialidade. Estabeleço um paralelo com o que tenho designado na análise de discurso como formas materiais. A materialidade aqui é significada pela natureza da linguagem, nesse caso, não verbal que é o discurso da dança. E, é preciso observar, não estamos usando a noção de “figura” como figura de linguagem (no sentido literário), nem pensando a imagem não verbal. Estamos pensando a forma material, ou seja, nem a forma empírica (o corpo em si), nem a forma abstrata (o cálculo da relação corpo/movimento/espaço) mas a forma significante encarnada no mundo, funcionando, produzindo sentidos. E, neste caso, tendo o corpo como elemento significante nodal. Produzindo sentidos que se instauram em figuras postas em relação e em movimento no espaço. Assim como o discuso se textualiza na formulação que, a partir da constituição do sentido, o realiza no tempo e no espaço, permitindo que ele circule, assim também a coreografia textualiza o discurso da dança, produz formulações. E quem diz formulação diz versões possíveis no mesmo sítio de significação. Figuras entrelaçadas. Dessa forma podemos falar, pensando a ordem do discurso da dança, em organização desse discurso, em sua formulação e circulação, através do trabalho da coreografia. Pensando então a forma material – as figuras – podemos dizer que a coreografia textualiza o discurso da dança organizando figuras, relacionando-as em diferentes disposições que correspondem a diferentes versões, estabelecendo distintas relações de sentidos. Faz parte do gesto do coreógrafo – que trabalha com o portador de deficiência física - na disposição dessa figuras que, no que é próprio da dança, se entrelaçam, ter a cadeira de rodas já significada em seu processo de constituição (da dança). Desnecessário é dizer que este aparato para ser sifnificado tem de ser metaforizado nessas condições específicas de significação. As diferentes coreografias são diferentes modos de textualizar, pôr em prática, os diferentes gestos de interpretação que disponibilizam por sua vez diferentes efeitos leitor (gestos de interpretação), corporificando assim novas versões do corpo que dança. Dirigimos uma última observação para o que designamos como corpo dentro de uma forma de pensar, que é a nossa, e em termos discursivos. Temos, em vários de nossos trabalhos que visam a relação corpo e texto, procurado compreender como o corpo se textualiza e como os sentidos tomam corpo, ou, dito de outro modo, temos pensado de forma articulada o corpo do discurso e o discurso do corpo, em suas relações. Na textualização do corpo (o corpo que fala), procuro distinguir – e aqui agradeço a Raquel Fávero a sua contribuição para esta discussão – o corpo que fala no equívoco da relação psíquica, digamos, quando ele fala no lugar da mente (e aí o corpo sofre a significação). Temos então um sentido que irrompe na carne. Mas o que tenho trabalhado para compreender não é esta forma, digamos, viezada, do corpo significar mas aquela em que temos o corpo que “fala” – e, para mim, dada sua materialidade, o corpo não fala, ele significa - em seu próprio lugar. E são várias as suas manifestações. Tenho tratado a tatuagem como um desses modos de textualização do corpo, em acordo com a fase pós imprensa, em que a letra que habitava, no século XIX, as páginas dos livros e folhetos, passa a habitar massivamente as paredes, as máquinas e até o corpo dos sujeitos, agora se significando como escrita do corpo, ou melhor, como grafismo, em seus outros modos de (se) significar (onde incluo o grafite, a pichação, o tag etc). A moda, as camisetas com suas “mensagens” são também maneiras do corpo exibir seu texto. E entramos finalmente na dança, em que a própria matéria da significação é matéria corporal, fazendo-se em movimento no espaço, em música e ritmo. Forma e sentido: figurativamente. Mas figuras que se organizam de acordo com certas regularidades enunciativas. Que são o discurso da dança que, por sua vez, se dá uma versão entre as diferentes versões (atualizações) possíveis. Assim como no texto temos vírgulas, pontos, hífens, letras maiúsculas e minúsculas, a organização do discurso da dança em texto põe em funcionamento mecanismos de produção de sentidos, que são próprios ao que se chama coreo-grafia. E, não esqueçamos, se em coreografia há “grafia”, o “coreo” de coreografia vem de “coro” que significa não um sujeito isolado mas um grupo. É plural. É a “voz” do conjunto, no mito, é a voz que move o sentido, é o “público” (vínculo entre). Em grego significava “dança executada por vários personagens e habitualmente acompanhada de canto” e vem pelo latim com esse sentido, por via erudita, nos diz A. Nascentes. Só depois, a idéia de canto passou a predominar sobre a de dança. Então coreografia significa, em grego, dança em côro. Mas pensando-se já a relação com grafia, chegamos a uma significação que é a de : arte de compor e ordenar os movimentos e gestos de danças e balés, e de fazer a respectiva anotação. A coreografia pode significar o próprio balé. Ela é assim organização, construção imaginária de unidade e da ilusão do sujeito como dono de seus sentidos, inclusive os de seu corpo. De nossa parte queremos chamar a atenção para o fato de que a coreografia implica em “anotação”. E a anotação, em ciência e em arte, é o princípio que permite destacar a coisa de si mesma e torná-la deslocável para seres ou objetos semelhantes ou diferentes. Então é pela coreografia que a arte, tanto quanto a ciência, coloca-se como tekhné, ou seja, pode ser ensinada porque pode ser compreendida (destacada de si mesma, desnaturalizada, desautomatizada). Deixa de ser só um saber para ser conhecimento. E esta possibilidade é a que tem o coreógrafo em suas mãos. Praxis. Que tanto pode repetir como deslocar sentidos, re-significando discursos e também corpos, em movimento no espaço e na história. Com conseqüências fortes sobre/para a sociedade. Além disso, e talvez mais importante, como toda praxis, ou seja, prática informada de teoria (pela escrita), pode interferir no mundo, pela sua própria contradição, atravessando o imaginário em que os sentidos têm uma duração desgarrada de seu real, desestabilizando-os, expondo-os ao equívoco. Tornando possíveis outras versões. Outros gestos de interpretação. Outros sentidos produzidos por sujeitos cuja forma histórica e processos de individualização se deslocam em processos de subjetivação nos quais faz efeito outra relação com o (seu) real. São outras formas de atar o corpo do sujeito ao corpo social, na produção de outros efeitos de sentido. Referência Bibliográfica M. Pêcheux (1969) AAD, Dunod, Paris; L. Hjelmslev (1968) Prolegomènes aux Etudes du Langage, Minuit, Paris; E Orlandi (2ooo) Cidade Atravessada, Pontes, Campinas, 2001, ------Discurso e Texto, Pontes, Campinas. Dança em cadeira de rodas: A possibilidade da impossibilidade na dança Eliana Lucia Ferreira O processo de desenvolvimento da dança em cadeira de rodas vem desestabilizando alguns significados do que é a dança de um modo geral, e portanto novos sentidos estão sendo estabilizados. Uma das marcas deste processo de desenvolvimento, pode ser evidênciado a partir do lugar da impossibilidade de movimentos gerado inicialmente pela deficiência, para a possibilidade da materialidade do movimento corporal, apresentados na dança em cadeira de rodas. Então, percebemos na discursividade da dança em cadeira de rodas em relação à dança de um modo geral, evidências de contradições e semelhanças aparentes, onde êstes discursos estão se constituindo num espaço de segregação e estão ao mesmo tempo mobilizando uma discursividade de aceitação ambígua. O desenvolvimento da dança em cadeira de rodas, não se trata de uma possibilidade capaz de devolver a normalidade física, mas de intervenção, capaz de subsidiar através de um conjunto de técnicas corporais à re organização social, remetendo-se para a discursividade da possibilidade de transformação social. Colocada na fronteira entre a impossibilidade e a possibilidade, a dança tornou-se um locus de contato com a sociedade, um espaço através do qual os deficientes reivindicam participação nesta organização social que tende a excluí-los. Embora não possamos dizer que a dança compreende a totalidade da vivência e dos processos de identificação das pessoas com deficiência física, cabe-nos ressaltar que ela é um instrumento para torná-los visível. A dança então é um dos lugares que permite aos deficientes se subjetivarem, pois eles se vêem na dança, não como pessoas deficientes, à vista. Está aí presente o irrealizável que pela dança passa a ser visto como o realizável. O entendimento dos recursos da dança, não abarca a totalidade do universo social, tampouco fornece um esquema estruturador desta relação, mas apresenta elementos para refletir sobre a sua relevância na construção que essas pessoas fazem de representações sobre si mesma ( identificação/subjetivação), sobre o seu espaço social e o seu corpo. Estes sentidos que estão na dança não estão em outros lugares, ou seja, os sentidos produzidos são diferentes dos sentidos constitutivos de outras formas de arte. Na dança a gestualidade é o movimento com o corpo deficiente ou não. Esta especificidade 18 da dança 19 surge como um processo de comunicação, em um processo duplo: 1) através das atuais políticas sociais 20 voltadas a elas e da estigmatização social; 2) e a partir dos próprios deficientes que respondem a esses mecanismos. Nesse processo, identidades múltiplas e às vezes frágeis, são construídas, na relação com cada segmento social com o qual interage A identidade múltipla desses sujeitos, é construída no limiar das relações entre uma ordem social vigente, dada pela estigmatização, e pela sua própria necessidade de expressão corporal. Isto é percebido, pois os mesmos re-significam a própria dança, e misturam valores e referências que aparentemente, permanecem separados e incongruentes. Ora, as representações sociais da deficiência física na dança tomam o corpo do deficiente como o problema fundamental. Êste é o principio sob o qual se constitui as construções de estigmas, as justificativas da segregação. A condição corporal é entendida dentro da lógica do 18 Que é manifestada pelo gesto corporal. E aqui especificamente da dança em cadeira de rodas. 20 Sendo o processo de inclusão, o mais recente. 19 desvio da normalidade, onde existem “eficientes e deficientes”. A estigmatização advinda do corpo imperfeito está presente em todas as relações da pessoas deficientes e é reproduzida pelas instituições ( família, escola, etc).E assim, os mesmos passam a se reconhecer e ser reconhecido, só à partir das suas limitações e não a partir do que pode, dos seus desejos, das suas emoções. Reside aqui, uma segregação que ultrapassa as paredes institucionais. Esta segregação fica, e muitas vezes passa a fazer parte de sua identidade, fazendo-o sentir-se impotente perante aos mecanismos sociais. É neste ponto que a dança para as pessoas deficientes se opõem, pois uma vez que a mesma possibilita uma vivência diferenciada, estabelece assim uma oposição à estrutura social. O que se percebe é que no processo de subjetivação destas pessoas, o que é visto como falta, falha, ou como um corpo torto, certamente são mexidos pela dança, ou seja, o que aparece visualmente nesta relação com a dança é o corpo e como as pessoas deficientes se relacionam com o movimento. O corpo é o lugar do possível de nos percebermos e de relacionarmos com nós mesmos 21 . A experiência com a dança para as pessoas deficientes é reveladora de uma sociabilidade construída com base na irregularidade, e, nem por isso é menos coerente do que uma trajetória de sujeitos que em suas construções identitárias, delimitam seus espaços sociais. 21 Muitas vezes tentamos esquecê-lo, mas este esquecimento se dá porque o nosso corpo é muitas vezes a nossa fragilidade. A não participação ( ou a participação paralela) dos mesmos nos eventos sociais da dança é indicativo da dificuldade dos diálogos que estabelecem com os sujeitos que constituem este universo social, e é igualmente reveladora do universo de representações que os mesmos têm sobre o espaço que habitam e sobre o efeito de sua presença nele, principalmente quando este espaço é ocupado com uma cadeira de rodas. Se o espaço físico, mostra um discurso social, o corpo o expressa. Sendo, sobretudo o elemento que carrega consigo a propriedade da deficiência, base da construção do universo dos mesmos, ( de seus eus). O corpo evidencia as marcas da territorialidade, dos limites, das contradições e ambigüidades que são fruto do embate dos significados inerentes à capacidade. Os deficientes com suas dificuldades de deslocamento tem sobretudo seus corpos como manifestações de sua experiência corporal própria e diferenciada e consequentemente uma experiência social. A vivência através da dança não impede as intervenções, mas as relativiza. Ela é sobretudo, expressão do diálogo com os mecanismos de dominação, e com outras instâncias sociais, sendo que tais diálogos muitas vezes indicam resistências e/ou contradições sociais. O conflito social corporal cria ambivalências e contradições nas condutas e representações sociais que compõem o universo dessas pessoas, expressos de forma significativa no corpo, tornando-se visível o vazio social no qual muitas das suas tentativas de singularizar-se enquanto um sujeito social acabam sendo frustradas. O corpo que tornou-se através da dança um locus enunciador das práticas sócio-artísticas, trazem consigo também, as marcas que o singularizam, e que constantemente são mutáveis dentro desta territorialidade física e social. São mutáveis devido ao deslocamento que se faz em relação ao político, a história e a ideologia. Este sujeito que dança, se permite colocar no mundo da dança a partir de como a dança e o seu corpo são significadas para ele, provocando aqui uma ruptura com o imaginário social da concepção do que é a dança. É importante ressaltar que o imaginário da dança é calcado principalmente no modelo da Grécia, daí têm-se na imaginação social coletiva a concepção originadas e significadas das lendas gregas. Quando colocamos este imaginário da dança em relação à dança em cadeira de rodas, existe aí uma contradição manifestada principalmente pela cadeira de rodas. Isto ocorre porque já existe também um imaginário, até certo ponto negativo, que vem por uma cultura onde a cadeira de rodas já tem seus significados. A cadeira de rodas entra no imaginário da nossa cultura, que vai além da dança. Alguns significados que prevalecem na dança em cadeira de rodas são advindos dos significados da cadeira de rodas. postos socialmente. Acreditamos que para muitos a dança em cadeira de rodas pode ser expressa como uma violência simbólica 22 . Isto ocorre porque a dança já está significada na nossa cultura, em todas as suas formas, já existindo uma unidade imaginária. No entanto, o que se percebe é que a cadeira de rodas tem deslocado o sentido de movimento corporal para a dança de modo geral, mostrando assim que a dança tem uma diversidade concreta, permitindo que cada um deficiente ou não, dance de um jeito ou de 22 Violência Simbólica é uma noção da (AD), desenvolvida por Eni Orlandi em 2001. outro, e é isto que tem permitido cada vez mais o desenvolvimento da dança em cadeira e rodas. Mas a dança de um modo geral também tem um imaginário concreto que é o movimento corporal, o qual é esperado que todos o façam da mesma maneira, ou seja, que todos utilizem todas as partes do corpo, como se ela tivesse uma linguagem de movimento única, fechada e estabelecida. Sendo assim, podemos dizer que a constituição da dança em cadeira de rodas tem mostrado ser um efeito construído pela história contraditória da própria dança Esta contradição se dá pelo fato de que as coreografias apresentadas no decorrer de décadas não são resultado somente de um conhecimento técnico, são também parte dos fatos para os quais, ou a partir dos quais, as coreografias são produzidas, dançadas, mostradas e aplaudidas. Assim a dança em cadeira de rodas formulada a partir de movimentos que tem uma cadeira de rodas como um ponto referencial na sua criação é a que identifica, a pessoa com deficiência na dança. Portanto a dança em cadeira de rodas , a que não é camuflada, adaptada 23 , imitada, transferida é a que permite/ possibilita a pessoa com deficiência a exercer a função de dançarino. Esta modalidade têm suas particularidades estruturais que devem ser respeitadas e principalmente valorizadas enquanto movimento plástico, enquanto possibilidade corporal e enquanto materialização de sentimentos no movimento ação do corpo individualizado. 23 O termo aqui de adaptação é no sentido de adequar ajustar, também utilizado por Carmo (2001). A partir desse processo, podemos dizer que, cada vez mais, a diferença de movimento é uma diferença mais social, e não da relação movimento possibilidades corporais. A partir do momento que o dançarino deficiente se perceber na unidade, na permanência dos sentidos de dança, ele se identificará não só na dança, mas no que a dança proporciona n o ambiente social, isto quer dizer que o dançarino deficiente poderá romper com a interdição do dizer social sobre a deficiência. Daí a separação atualmente constituída entre dança e dança em cadeira de rodas, poderá então estabelecer seus diálogos, buscando uma (re)composição de uma unidade da dança e sues dançarinos. Mais uma vez queremos dizer que não são os aspectos empíricos ou abstratos da dança como tal, que nos levará a compreender a diferenciação da dança estabelecida, determinada e a dança em cadeira de rodas, mas a materialidade do movimento corporal e a historicidade que poderá agir sobre este real da dança e que poderá então ser re-significada e mobilizada no meio social e cultural. O que estamos presenciando hoje, é uma dança em cadeira de rodas que está sendo desenvolvida ainda numa época em que existem restrições para quem não tem as condições básicas pré-determinadas para tal. No entanto, esta modalidade têm se discordado do real da dança e consequentemente do imaginário social e da opressão/marginalização artística. Ao dançar sobre uma cadeira de rodas, o dançarino deficiente está quebrando com o circuito da interdição social da dança. Esta iniciativa é uma forma de saída do silêncio corporal, dada pela limitação sócio-econômicacultural na qual eles (nós) vivem imersos. A dança em cadeira de rodas tem permitido a estes sujeitos se fazerem autores das suas próprias identidades enquanto dançarinos sobre uma cadeira de rodas, isto os têm possibilitado não se perder na dispersão/limitação sócio-corporal. Estes sujeitos ao dançarem seus gestos corporais estão se construindo menos impotente face ao real. Eles estão se percebendo no próprio processo de identificação do outro que os oprimem. Ao dançar, as coreografias se inscrevem no socialartístico além do que está dentro deles mesmos, vira história e a história passa a ser contada e seqüencialmente ela pode ser legitimada, legitimando assim seus precursores e sucessores, dando visibilidade a uma nova verdade. E nesta nova verdade preemente, são nestes novos sentidos que estão se constituindo que as pessoas deficientes têm se percebido, têm se identificado, têm se apropriado, têm se colocado, têm se apoiado e têm constituído a identidade de dançarinos, ainda que sobre uma cadeira de rodas.