GÊNEROS DISCURSIVOS: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA PARA O ENSINO DE
LEITURA E ESCRITA NA EJA
Profa Esp. Soeli Aparecida Rossi de Arruda (MeEL/IL/UFMT)
E-mail ([email protected])
Profa Dra. Maria Rosa Petroni (Orientadora) - MeEL/IL/UFMT
E-mail ([email protected])
ABSTRACT: the classroom teaching-learning process, in EJA, requests the language and
the language in use. However, due to the notion that this work to be recent and to be
expanding, we realize the need of researches directed to the differentiation among the
genres and for the intervention with the teachers, based on the abilities development for
appropriation of the discursive genres that circulate socially. In this way, we aim to
contemplate on the Portuguese Language teachers´ pedagogic and discursive practice and
to identify the most common difficulties for the reading and written teaching in EJA. In that
context, and seeking to the search of more effective teaching alternatives, this study will
have as foundation the enunciative-discursive bakhtinian (1934-1935; 1952/1953; 19932003) theory, the social-historical of the vygotskynian (1935) theory learning and other
adopted authors' contributions to the theoretical conception of Bakhtin and, Schenewly and
Dolz (2004).
KEY-WORDS: discursive gender, reading, writing.
RESUMO: o processo de ensino-aprendizagem de sala de aula, na EJA, requer a linguagem
e a língua em uso. Entretanto, em virtude de o trabalho com esta noção ser recente e estar se
expandido, verifica-se a necessidade de pesquisas voltadas para a diferenciação entre os
gêneros e para a intervenção junto aos professores, com vistas ao desenvolvimento das
habilidades para apropriação de gêneros discursivos que circulam socialmente. Nesse sentido,
objetivamos refletir sobre a prática pedagógica e discursiva dos professores de Língua
Portuguesa e identificar as dificuldades mais comuns para o ensino de leitura e escrita na
EJA. Nesse contexto, e visando à busca de alternativas de ensino mais eficazes, esse estudo
terá como fundamento a teoria enunciativo-discursiva bakhtiniana (1934-1935; 1952/1953;
1993-2003), a teoria sócio-histórica da aprendizagem vygotskyniana (1935) e contribuições
de outros autores filiados a concepção teórica de Bakhtin e, de Schenewly e Dolz (2004).
PALAVRAS-CHAVE: gênero discursivo, leitura, escrita.
1. Introdução
Foto Alunos do Ceja “Prof. Milton Marques Curvo. ARRUDA, 2009.
O Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) tem o desafio de ensinar o seu
aluno a ler, a compreender textos e a produzir outros em acordo com as experiências sociais
do cotidiano ou do mundo do trabalho. Assim, a prática pedagógica com projetos de leitura e
de produção de gêneros discursivos, que representam as práticas sociais, mostra-se possível
mesmo em escolas com poucos recursos financeiros. “Depende de um professor melhor
informado sobre a fundamentação teórica básica a essa prática e determinado a mobilizar
alguns recursos materiais mínimos para a realização da tarefa” (LOPES-ROSSI, 2006, p. 83).
O ensino de Língua Portuguesa, na Educação de Jovens e Adultos – EJA/EM,
pautado na perspectiva discursiva, requer práticas pedagógicas baseadas no uso da linguagem
em situações reais de comunicação, objetivando-se a leitura e a produção dos gêneros do
discurso. Para isso, se faz necessário uma redefinição do papel do professor em relação à sua
concepção de linguagem no processo de ensino-aprendizagem. Em retomada as orientações
curriculares para o Ensino Médio:
Pode-se salientar que, desse ponto de vista, as atividades humanas são consideradas,
sempre, como medidas simbolicamente. Além disso, tem-se que, se é pelas
atividades de linguagem que o homem se constitui sujeito, só por intermédio delas é
que tem condições de refletir sobre si mesmo. Pode-se ainda dizer que, por meio das
atividades de compreensão e produção de textos, o sujeito desenvolve uma relação
íntima com a leitura – escrita -, fala de si mesmo e do mundo que o rodeia, o que
viabiliza nova significação para seus processos subjetivos (OCEM, 2008, p. 24).
Sabemos que desde a chegada dos PCNEM (1999) E OCEM (2008) há dificuldades
para a transposição dos estudos teóricos para a prática em sala de aula. Os professores
multiplicadores, apesar de todo esforço para coordenar os grupos de estudos, visando atingir
os objetivos contidos nesses documentos oficiais, não tinham, ou ainda não o tem, o
embasamento teórico necessário para ministrar os cursos de formação continuada nas escolas.
Tal dificuldade resultou do desconhecimento da teoria que não considera o enunciado (no
sentido bakhtiniano do termo) como “real unidade de comunicação discursiva” (BAKHTIN,
2003, p. 274).
2. Gêneros Discursivos e Tipologia
Para melhor compreensão das práticas de leitura e produção de textos é preciso
discutir as diferenças entre gêneros discursivos e tipologia, bem como algumas conseqüências
para o processo de ensino-aprendizagem de língua materna. Na educação de jovens e adultos
– EJA por muito tempo o ensino foi centrado na tipologia e, só a partir dos anos 90, com a
discussão proposta pelos parâmetros curriculares nacionais os professores de língua materna e
os pesquisadores passaram a considerar os gêneros discursivos como objetos de ensino.
De maneira geral, os gêneros discursivos se diferem dos tipos de textos: narração,
descrição, dissertação, argumentação que por muito tempo foi conteúdo de ensino nas aulas
de Língua Portuguesa. Para Rojo (1998), a maioria dos professores de língua materna tende a
reduzir a enunciação a seus aspectos formais ou textuais, algo a que já estão mais
familiarizados. Isso impediria uma compreensão mais efetiva dos aspectos propriamente
enunciativos, envolvidos na mudança de enfoque com um trabalho voltado aos gêneros
discursivos. Petroni (2008) diz que são possíveis algumas alternativas que superem a
dificuldade de trabalho com a língua(gem) que não tem levado em consideração o enunciado.
Para ela:
Uma exposição sistemática a diferentes enunciados, ou seja, a gêneros do discurso
socialmente constitutivos é, ou parece ser, uma boa alternativa para aproximar o
aluno das diferentes formas de se relacionar com o texto-discurso, uma vez que o
trabalho com gêneros discursivos torna possível estimular a postura crítica do
aprendiz, ao desvelar as relações de força presentes em diferentes esferas da
atividade humana, condicionantes do processo interlocutivo (PETRONI, 2008, p.
10).
Assim, entendemos que os textos que produzimos, sejam orais ou escritos,
apresentam um conjunto de características relativamente estáveis, tenhamos ou não
consciência delas, elas são configuradas em diferentes gêneros discursivos. Quando estamos
em uma situação de interação, a escolha do gênero não é completamente espontânea, mas o
locutor acaba por fazer uso do gênero mais adequado àquela situação (conversa formal ou
informal: namoro, trabalho, estudo, briga, entrevista, seminário, palestra, entre outras
situações). Ao produzir um texto oral ou escrito levamos em conta um conjunto de coerções
impostas pela própria situação comunicativa que faz com que o locutor se constitua como
sujeito que tem o poder de dizer. Em acordo com Geraldi (2003, p. 160), para assumir-se
como locutor efetivo implica que:
a)
Se tenha o que dizer;
b)
Se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;
c)
Se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;
d)
O locutor se constitui como tal, enquanto sujeito que diz para quem diz (o
que implica responsabilizar-se, no processo, por suas falas);
e)
Se escolhem as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d).
Desta maneira, ninguém se assume como locutor a não ser numa relação
interlocutiva, onde o locutor se assume como sujeito consciente, ou seja, ativo-responsivo
que, no ato da interação humana, leva em conta o outro, o interlocutor (que tem posição
social, cultura, identidade, conhecimento, pensamento, etc.). Da mesma maneira, Bakhtin
(2003, p. 271) considera que “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva”.
Para Bunzen (2006), quando os professores assumem, em sua prática de sala de aula,
os gêneros discursivos, eles possibilitam aos alunos aproximar-se dos usos de linguagem
extra-escolares e na EJA não seria diferente. Consideramos que o ensino que privilegia a
redação é autoritário e implica em conceber a língua como um sistema fixo. Assim, na EJA,
deveria ser assumido um ensino de leitura e escrita muito mais reflexivo (e menos
transmissivo), que considere o próprio processo de produção de textos, assim como as esferas
da comunicação humana, como lugar de interação verbal. Nesse sentido, é necessário
considerar que:
A palavra dirige-se a um interlocutor. Ela é função da pessoa desse interlocutor:
variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior
ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais
ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato;
não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio, nem
no figurado (BAKHTIN/VOLOCHINOV, [1929], 1999, p. 112).
Em acordo com as colocações de Bakhtin, sabemos que existe uma questão didática
relevante em relação à transposição de um gênero de sua instituição de origem para a sala de
aula. Portanto, é preciso considerar que, mesmo uma década depois da chegada dos PCN
(1998), seguido dos PCNEM (1999), PCN+ (2002) e OCEM (2008) nas escolas, a leitura e a
produção de texto ocorre de maneira inadequada, porque se cobra do aluno a produção de
textos escritos de forma idealizada, para um único leitor – o professor. Portanto, há falta de
um leitor real e, na maioria das vezes, a falta de um planejamento voltado para o ensino da
leitura e da escrita com textos que circulam nas práticas sociais, ou que não seja através de
textos que tenham como suporte apenas o livro didático.
Quando se pensa no trabalho com textos, outro conceito indissociável diz respeito
aos gêneros em que eles se materializam, tomando-se como pilares seus aspectos
temático, composicional e estilístico. Deve-se lembrar, portanto, que o trabalho com
textos aqui proposto considera que:
• alguns temas podem ser mais bem desenvolvidos a partir de determinados gêneros;
• gêneros consagrados pela tradição costumam ter uma estrutura composicional mais
definida;
• as escolhas que o autor opera na língua determinam o estilo do texto (PCNEM,
1999, p. 74).
Em acordo com as colocações dos PCNEM (1999), o gênero discursivo é
responsável pelas características composicionais entre os diferentes grupos de enunciados. Ele
precisa compor-se de tema, estilo e forma composicional. Os gêneros são reconhecidos por
suas características distintas que parecem nos dizer muito sobre sua função, com base no
nosso conhecimento de mundo, ou porque fazem parte das situações comunicativas presentes
nas práticas sociais: uma carta, um cartaz, um artigo de opinião, uma charge, reportagem,
entre outros. Portanto, fica claro, que parte do texto apresentado no PCNEM se pauta na
reflexão bakhtiniana:
[...] Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada
referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou
seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas,
acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o
conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente
ligados ao todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de
um determinado campo da comunicação (BAKHTIN, 2003, pp. 261-262).
Para Bakhtin (2003, p. 263) os gêneros do discurso apresentam três dimensões
indissoluvelmente ligadas no todo do enunciado e ligadas pele especificidade de um campo da
comunicação. Entendidas [fig. 01] por Rojo (2005, p. 196) como:
 os temas – conteúdos ideologicamente conformados – que se tornam
comunicáveis (dizíveis) através do gênero;
 os elementos das estruturas comunicativas e semióticas
compartilhadas pelos textos pertencentes ao gênero (forma
composicional);
 as configurações específicas das unidades de linguagem, traços da
posição enunciativa do locutor e da forma composicional do
gênero (marcas lingüísticas ou estilo) (grifos da autora).
Todas as dimensões dos gêneros discursivos se configuram em enunciados sóciohistóricos, relativamente estáveis e normativos, que estão vinculados as situações sociais de
interação humana. No dizer de Rojo (2006, p. 196) o tema, a forma composicional e o estilo
não podem ser compreendidos, produzidos ou conhecidos sem referência aos elementos da
sua situação de produção. Assim, visualizados pela autora:
GÊNEROS DO DISCURSO
Temas
forma composicional
marcas lingüística (estilo)
Fig. 01: Dimensões dos Gêneros Discursivos (ROJO, 2006, p. 191)
Bakhtin (1999, p. 128) nos orienta de que “o tema da enunciação é individual e não
reiterável, e se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu
origem à enunciação. O tema é o sentido completo, correspondente ao a uma enunciação
ligada a uma situação concreta, dialógica que, “além se ser algo unitário, é também algo
único e irrepetível, como conseqüência de sua relação com uma interação comunicativa
especial” (PONCE, 2008, p. 91).
O objeto do discurso, assumido como tema, recebe um acabamento em função de
uma abordagem específica do problema, do material, do contexto comunicativo e do intuito
do autor. Para Brait (2000, p. 21), “o tema não pode ser confundido com “conteúdo”, na
medida em que resulta das especificidades da enunciação, ligando-se às coerções constitutivas
do discurso”. O conteúdo determina o nível de profundidade e os processos de seleção na
abordagem da realidade, já o tema constitui a visão de mundo próprio do gênero.
O estilo constitui-se em uma relação dialógica, visto que é influenciado pelo discurso
do outro, seja com o intuito de reproduzi-lo ou de negá-lo. Além de o estilo ser determinado
pelas unidades temáticas e composicionais, a relação do locutor com seus parceiros é
fundamental para a sua constituição.
A forma composicional responde pela organização e pela estruturação do gênero e
funciona como uma fôrma que deve levar em conta os modelos da esfera e também as
possibilidades de comunicação. Assim, a forma composicional permite não só o
reconhecimento do gênero, mas também, segundo Bakhtin (2003, p. 261), a assimilação das
condições e da finalidade de cada campo da atividade humana.
3. Gêneros Primários e Secundários
Outra diferenciação que encontramos em Bakhtin (2003) são os gêneros do
discurso primários e secundários. Os gêneros primários nascem da troca verbal espontânea.
Os gêneros secundários não são tão espontâneos, precisam de uma elaboração, de
interdiscursividade. No entanto, hoje, as diferenças são mais complexas já que os gêneros
primários (característicos da oralidade – presentes nas situações da vida cotidiana) se
mesclam aos secundários (característicos da escrita - de circunstâncias de uma comunicação
cultural mais complexa e relativamente mais evoluída). Por exemplo, um seminário, uma
tribuna, ou uma entrevista formal que é proveniente de atividades lingüísticas humanas
relacionadas com os discursos da oralidade e, que exigem uma comunicação verbal mais
elaborada, ou mesclada. Com efeito: “o enunciado, em sua singularidade, apesar de sua
individualidade e de sua criatividade, não pode ser considerado como uma combinação
absolutamente livre das formas da língua” (BAKHTIN, 1992, p.304). A seguir apresentamos
as diferenças entre as duas grandes categorias de gêneros:
GÊNEROS PRIMÁRIOS
Simples
Presentes nas trocas verbais cotidianas
GÊNEROS SECUNDÁRIOS
Complexos
Presentes nos domínios:
- culturalmente evoluídos
- complexos (artes, ciências, política, etc.)
Freqüentemente orais
Freqüentemente escritos
Tornam-se componentes dos gêneros Formados por absorção e transmutação dos
secundários
gêneros primários
- estão em relação com o real;
- estão em relação com o real;
- estão em relação com os enunciados - estão em relação diferente com os
do outro.
enunciados do outro;
- os gêneros primários integrados perderam
sua autonomia por estar submisso aos
gêneros secundários.
Fig. 02: Diferenças entre os gêneros primários e os secundários (ARRUDA, 2009)
Portanto, os gêneros do discurso são formas de organização de nossa fala, da mesma
maneira que fazem as formas gramaticais (sintáticas). Falamos por enunciados e não por
orações isoladas. “O locutor recebe além das formas prescritivas da língua comum - ele não as
cria livremente -, os gêneros do discurso, que são “formas não menos prescritivas do
enunciado” (BAKHTIN, 1992, p.304)
No conceito bakhtiniano, os gêneros primários podem ser absolvidos pelos gêneros
secundários, no momento em que estão sendo elaborados por serem mais passiveis de uma
compreensão responsiva-ativa. De certa maneira, o produtor do enunciado, no momento de
elaboração, já está processando as informações e respondendo ao enunciado, mesmo que
silencie a sua resposta. Enquanto que nos gêneros secundários, muitas vezes, é mais comum
se pensar em compreensão responsiva de ação retardada devido à complexidade daquilo que é
lido, ouvido ou assistido. Nesse entrelaçamento, um seminário, embora realizado oralmente,
é um gênero secundário, enquanto que um bilhete ou uma carta pessoal, embora escritos,
sejam gêneros primários. A este respeito Bakhtin acrescenta que:
Os gêneros da complexa comunicação cultural, na maioria dos casos, foram
concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de efeito
retardado. Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente, mutatis mutandis, ao
discurso escrito e ao lido (grifos do autor).
É possível que os gêneros secundários absorvam e reelaborem os gêneros primários,
que se transformariam no interior dos primeiros, perdendo sua relação de imediatez
(implicação e conjunção) com o contexto material de produção. É o que acontece, por
exemplo, com os diálogos ou com uma carta que fazem parte de um romance, pois os gêneros
evoluem, transformam-se, multiplicam-se, surgem, desaparecem, adaptam-se, são absorvidos
por outros. Assim, “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de
outros enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 272).
Diferentemente da maioria dos estudiosos, Bakhtin não se dedica à classificação dos
gêneros em si mesmo nem nas suas propriedades formais, mas em suas funções sócio-verbais
e ideológicas, os aspectos históricos e as fronteiras fluidas dos gêneros. Segundo Marcuschi
(2006, p. 27), “os gêneros desenvolvem-se de maneira dinâmica e novos gêneros surgem
como desdobramentos de outros, de acordo com as necessidades ou as novas tecnologias
como o telefone, o rádio, a televisão e a internet”. Nesse sentido, os gêneros podem ser
aperfeiçoados em conformidade com a evolução dos recursos tecnológicos e um gênero pode
originar outro gênero, a exemplo a carta, com o surgimento da internet, pode ser modificada
para o e-mail. Os gêneros são rotinas no dia-a-dia da comunicação humana, de certa maneira,
envoltos nas práticas sociais.
Na teoria bakhtiniana a língua não é concebida como um produto acabado, transmitido
de geração em geração, como se fosse um objeto a ser herdado. Para o filósofo russo, os
indivíduos não recebem a língua materna pronta para ser usada; “eles penetram na corrente da
comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nesta corrente é que sua
consciência desperta e começa a operar” (Idem, 1999, p.108). É inegável que Bakhtin (1999)
e Vygotsky (1993) vêem a linguagem como um elemento organizador da vida mental e
fundamental na formação do sujeito histórico-social que interage com o outro pela palavra,
escrita ou oral. A compreensão é uma forma de diálogo e:
[...] a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os
interlocutores, isto é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e
responsiva. A significação não está na alma do falante, assim como também não está
na alma do interlocutor. Ela é efeito da interação do locutor e do receptor produzido
através do material de um determinado complexo sonoro (BAKHTIN, 1999, p. 132).
A compreensão de um enunciado, segundo Bakhtin, é dialógica porque implica um
processo de interação social dos sujeitos com outros sujeitos. Para ele “cada palavra do
enunciado que estamos em processo de compreender, propomos, por assim dizer, um conjunto
de palavras nossas como resposta” (Bakhtin, 1999, p.132). Quanto maior o número e o peso
dessas palavras, mais profundo e substancial será nosso entendimento. De maneira
complementar:
O significado das palavras é um fenômeno de pensamento apenas na medida em que
o pensamento ganha corpo por meio da fala, e só é um fenômeno na medida que esta
é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento
verbal, ou da fala significativa – uma união da palavra e do pensamento
(VYGOTSKY, 1993, p. 104).
Em relação à comunicação escrita, nas considerações de Vygotsky, “baseia-se no
significado formal das palavras e requer um número muito maior de palavras do que a fala
oral, para transmitir a mesma idéia” (1993, p. 122). Isso porque na comunicação oral os
sujeitos se utilizam de outros recursos de comunicação como gestos, expressões faciais, ou
como diria Bakhtin de “entoação expressiva”. Segundo (BAKHTIN, 1999, p. 132):
A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não
está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor
produzido através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma
faísca elétrica que só se produz quando há contato dos dois pólos opostos.
Desta maneira, compreendemos que as reflexões de Bakhtim ([1929-1930] 1999 e
[1953] 2003) vão consolidar novas particularidades do enunciado ou gênero do discurso que
é delimitado por fronteiras claras: mudanças de locutor e acabamento. O enunciado é acabado
quando é percebida a conclusão do quê “o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer
em dado momento ou dadas condições” (Bakhtin, 2003, p. 280). Essa inteireza acabada do
enunciado é determinada por três fatores intimamente ligados no todo orgânico do enunciado:
“1) exauribilidade do objeto e do sentido; 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do
falante; 3) formas típicas composicionais e de gênero do acabamento” (Ibidem, p. 281).
Segundo Bakhtin (2003), a exauribilidade do objeto e do sentido será sempre
determinada pela “situação social mais imediata”, levando-se em consideração: quem são os
envolvidos na comunicação (o locutor e o interlocutor)? Onde (esfera)? Quando (contexto
imediato)? Para que (finalidade)?
É preciso conhecer os interlocutores envolvidos na
interação, o contexto imediato, a esfera de circulação que o discurso transitará e a intenção
comunicativa para se compreender bem um enunciado, sua natureza de estar “acabado” e
com sentido. Em outras palavras, a exauribilidade semântico-objetal do tema do enunciado se
diversifica na medida em que se diversificam as situações de interação, pois a significação dos
gêneros está investida de ideologias que retomam e reproduzem os valores sociais. Como o
próprio teórico russo diz,
Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se
tivéssemos que criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de
construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação
discursiva seria quase impossível (Ibidem, 2003, p. 283).
Projeto de discurso ou vontade de discurso do falante é uma característica da difusão
dos gêneros utilizados no cotidiano. Para Bakhtin (2003) a vontade discursiva do falante só
pode ser manifestada na escolha de um gênero discursivo (conversa formal ou informal) e
ainda “por cima na sua entonação expressiva” (tom mais seco ou mais respeitoso, mais frio ou
mais caloroso, alegria ou tristeza, etc.). Quando os indivíduos se comunicam, eles não trocam
orações ou palavras, mas enunciados que se materializam, em acordo com a finalidade, em
gêneros discursivos.
Formas típicas composicionais e de gênero do acabamento são diferenciadas da
oração ou da regra gramatical. Para Bakhtin (2003, p. 287), “uma oração enquanto unidade da
língua é desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posição responsiva
do falante”. Só quando ela se transforma em um enunciado pleno é que pode ter
conclusibilidade e suscitar resposta. Da mesma maneira, uma palavra isolada não pode ser
considerada um enunciado, mas quando é pronunciada com entonação expressiva, já não é
uma palavra, mas um enunciado acabado e com sentido concreto. Para Bakhtin (2003, p.
294), “o emprego das palavras
na comunicação
discursiva viva sempre
é de índole
individual e contextual”. Explica que:
Por isso, pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três
aspectos: como palavra da língua neutra e não pertence a ninguém; como
palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último,
como a minha palavra, porque uma vez que opero com ela em uma situação
determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está
compenetrada de minha expressão.
Nas considerações de Bakhtin (2003), se olhamos às palavras ou às orações, fora do
contexto de comunicação, não entendemos os seus sentidos plenos. A este respeito, ele
exemplifica com a oração: “O sol saiu”, “é absolutamente compreensível, isto é, nós
compreendemos o seu significado lingüístico, o seu papel possível no enunciado” (p. 287),
porém, não podemos ter uma atitude responsiva se não sabemos tudo o que o falante quis
dizer em relação a uma posição isolada, sem considerar à interação social. Contudo, se esta
oração estiver envolvida pelo contexto comunicativo (se for dia de trabalho, ou um dia de
feriado, o enunciado reflete a situação extra-verbal), ela pode, “por exemplo, ser também
assim: “O sol saiu. É hora de levantar” ou “O sol saiu. Mas ainda é muito cedo. Preciso
dormir mais um pouco” (p. 287). Em cada contexto interacional, o enunciado ganha novo
tema, novo estilo, nova forma composicional, portanto novo sentido e “a atitude responsiva
perante ele são outros” (Idem, 2003, p. 288). Isto quer dizer que, num processo interativo, o
interlocutor é convidado a se levantar, em outro, a continuar descansando. Bakhtin acrescenta
ainda que:
A oração como unidade da língua, à semelhança da palavra, não tem autor.
Ela é de ninguém, como a palavra, e só funcionando como um enunciado
pleno ela se torna expressão da posição do falante individual em uma
situação concreta de comunicação discursiva (Idem, 2003, p. 289).
Bakhtin (1999) afirma que a palavra, de alguma forma, transita como um agente da
memória social e reflete conflitos sociais em diferentes décadas. Na visão do teórico, cada
palavra se apresenta como numa arena onde acontecem lutas e enfrentamentos de valores
sociais. Assim, vemos as palavras como veículo de representação de valores e de mudanças
sociais que não tem sentido fixo, mas atuam como agente de memória social e possibilitam a
intertextualidade e a polifonia. “Os sentidos das palavras mudam com a história em curso, e
cada sentido novo não deixa de ter em si os vários sentidos que esta palavra adquiriu no
decorrer do tempo” (CAMARGO JUNIOR, 2008, p. 53).
Dessa maneira, entendemos que a teoria bakhtiniana não busca adotar critérios
lingüísticos, mas enunciativos. Ela tornou-se referência por introduzir as instâncias reais de
uso da língua, determinada em função e especificidade da esfera em que ocorre, a interação
verbal, às necessidades de uma temática (do objeto de sentido) e do conjunto constituído pelos
participantes da interação verbal.
4. Considerações Finais
Neste artigo foi possível verificar que a prática de sala de aula com os gêneros
discursivos tem se mostrado promissora, mas requer o conhecimento da teoria discutida por
Bakhtin e das aproximações e distanciamentos de algumas correntes teóricas que implicam no
processo ensino-aprendizagem de leitura e escrita. A consecução plena do objetivo maior do
ensino é levar os alunos a superarem as suas dificuldades de ler e escrever, portanto o trabalho
na perspectiva sócio-discursiva de estudo da língua na EJA requer planejamento das aulas;
observação das necessidades de aprendizagem dos alunos jovens e adultos e das
possibilidades
de ensino;
seleção dos gêneros mais apropriados para a turma; tempo
necessário para a seleção e criação de dispositivos didáticos; estudo sobre os gêneros a serem
conhecidos pelos alunos e um período de tempo para a aplicação em sala de aula, já que cada
gênero traz em si muitas possibilidades de ensino.
Segundo Rojo (2006, p. 57), o trabalho com gêneros discursivos possibilita “(...)
iniciar na cultura da escrita todos os alunos, de quaisquer origens culturais, fazendo com que
tomem consciência do valor fundador para suas identidades do mundo dos escritos, para que
esses concordem em aprender”. A crescente preocupação em (re)significar o ensino de língua
materna tem como fio condutor as propostas consolidadas por práticas sócio-discursivas de
linguagem e o reconhecimento de gêneros do discurso enquanto objeto de ensino que ampliam as
capacidades de leitura e escrita no interior de seqüências didáticas.
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gêneros discursivos: uma reflexão necessária para o ensino