“GRAÇA” EM JOYCE1
Felipe Luis Melo de Souza (mestrado em Letras – UFSJ)
Orientadora: Dra. Madga Velloso Fernandes de Tolentino (UFSJ)
Agência Finaciadora: FAUF / UFSJ
Resumo: Este trabalho busca apontar as relações entre o conto de James Joyce
intitulado Graça, incluído na coletânea de contos, Dublinenses, com a parábola descrita no
evangelho de Lucas, capitulo 16. A palestra proferida por ele em Trieste, em 1907, Isle Of Saints
and Sages, suas cartas e biografia servem de referência para a elucidação do sentido do conto. A
utilização da parábola pelo autor questiona o catolicismo e a identidade irlandesa, a irlandesidade,
de forma satírica.
Palavras-chave: James Joyce, Identidade, Catolicismo, Nação.
G
raça, um conto que foi definido por Joyce como da vida pública, trata de forma
mais especifica a questão religiosa, podendo ser dividido em três partes correspondentes
às da Divina Comédia. Conforme diz Ellmann, “começando com o Inferno de um bar
dublinense, avançando para o Purgatório de convalescença de um beberrão e
terminando no Paraíso de uma igreja de Dublin altamente secularizada” (ELMANN, 1989,
p. 291).
Com vistas a elucidar os três momentos referidos por Ellmann, vamos comentar cada um
deles:
Inferno
Na cena inicial, que transcorre entre 1901 ou 1902, há um homem caído, com a cabeça
voltada para o chão no banheiro de um bar e inconsciente. As pessoas tentam ajudá-lo e
o dono do bar pergunta se conheciam o homem. Ninguém conhecia, mas o garçom que o
tinha servido diz que ele estivera acompanhado por dois homens. Esta deplorável figura,
cuja boca sangra por ter mordido um pedaço da língua ao cair, ao acordar diz que não foi
nada, apenas um pequeno acidente. Quer continuar a beber e lamenta não poder beber
mais.
1
Este artigo foi desenvolvido na Iniciação Científica: Irlandesidade em Joyce: memória, (auto)biografia e
escritos não-ficcionais, (2005/2006) e foi revisado para esta publicação.
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Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008.
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O personagem principal deste conto, Mr. Jack Kernan foi baseado, segundo Ellmann, em
Ned Thornton, um dos vizinhos dos Joyce. No entanto, a queda no bar ocorreu realmente
com John Joyce, o pai de Joyce, que, em seus livros “apareceu mais central do que
qualquer outra pessoa exceto o próprio autor” (ELLMANN, 1989, 39).
Mr. Kernan havia bebido rum no bar em que caiu, e no decorrer do conto a bebida está a
todo o momento presente. Na segunda parte do conto os amigos de Mr. Kernan bebem
uísque ao visitá-lo. Um destes, Mr. Fogorty o presenteia com uma pequena garrafa da
bebida; e Mr. Cunningham é casado com uma alcoólatra.
Segundo o dicionário Houaiss o inglês whisky (escocês) ou whiskey (irlandês) é “uma
bebida alcoólica feita de grãos fermentados de centeio, milho ou cevada, surgiu do
irlandês uisce beathadh e do gaulês escocês uisge beatha literalmente água da vida”.
(Houaiss, 2001).
A importância que o uísque e a bebida têm na identidade e na cultura irlandesa não pode
ser desconsiderada, constituindo-se num dos aspectos característicos da irlandesidade,
da identidade cultural irlandesa. Kiberd, um dos autores críticos que estuda esta questão,
em um de seus textos pergunta “If God invented whiskey to prevent the Irish from ruling
the world, then who invented Ireland?” 2 (KIBERD, 1996, p. 1).
Nessa pergunta irônica está incluído o sentimento de duvida própria e dependência, pois
não são os irlandeses que governam o mundo, mas os seus colonizadores, os ingleses.
A situação seria diferente, no entanto, se Deus não tivesse inventado o uísque que - ao
se constituir na bebida típica e presente no cotidiano daquela nação - os impede de
governar o mundo ou ao menos seus próprios passos.
A presença implícita da Inglaterra e a participação ativa de Deus no destino da nação na
pergunta de Kiberd reúne os dois elementos mais importantes para a resposta buscada.
Como diz Hobsbawn, “Na Europa, apenas os irlandeses – que não tem outros vizinhos a
não ser os protestantes – são exclusivamente definidos por sua religião”. (HOBSBAWN:
1990, p. 84).
2
Se Deus inventou o uísque para segurar os Irlandeses de governarem o mundo, então quem inventou a
Irlanda? [tradução minha].
2
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Não cabe discutir aqui a questão de que os irlandeses que inventaram a Irlanda, e de que
para tanto tiveram a ajuda dos ingleses, mas perceber como o catolicismo foi presente
para se contrapor à alteridade inglesa, de maioria protestante.
Mr. Kernan - que tinha nascido protestante - era caixeiro-viajante (commercial traveller)
da velha escola. No momento enfrentava uma crise financeira, mas era persistente no
trabalho, iria a um local distante apenas para vender uma pequena conta, to book even a
small order. (JOYCE, 1987, p. 176). A palavra “book” está relacionada com livro contábil,
segundo o dicionário eletrônico Michaelis, e com administração, gerência, contabilidade,
o que é perdido na tradução.
Na visão de sua mulher, com quem é casado há vinte e cinco anos, Mr. Kernan não
parecera um sujeito pouco galante quando namoraram. Romântica, sempre que podia ia
à porta de uma capela para assistir a um matrimônio, para ver o casal de noivos e
lembrar com vivido prazer como havia sido o seu próprio casamento na Igreja. Mrs.
Kernan romantiza o casamento como um momento na cerimônia; mas, três semanas
após casar, já achava tedioso e, quando começou a achar que era insuportável, tivera
filhos. No entanto, acreditava na existência de maridos piores. Na pequena casa onde
moram cuida das crianças mais novas que ainda estão na escola, sendo que dois de
seus filhos, bem sucedidos (que às vezes lhes mandavam dinheiro) moravam em Belfast
e Glasgow.
Mrs. Kernan acredita na Igreja e em deuses pagãos do folclore irlandês como banshee
que, segundo o dicionário eletrônico Michaelis, é uma “fada que prediz a morte de algum
membro da família” (MICHAELIS, 2001). No conto, sua crença não é nada extravagante,
o que dá a dimensão deste convívio pacifico entre as origens religiosas irlandesas e o
cristianismo.
Ao discutir o sincretismo religioso na Irlanda, O‟Faolain aponta para o fato de que “Myth
and magic were ejected from their positions of supremacy by the coming of Christianity,
but the evidence does not indicate that the sphere of operation of either was extensively
diminished”3 (Kenney, apud O‟Faolain: 1947, p. 46).
3
Mito e mágica foram ejetados de suas posições de supremacia pela chegada do Cristianismo, mas
nenhuma evidencia indica que a esfera de atuação de cada um [destes] foi extensivamente diminuída.
[tradução minha]
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Após o incidente no bar, Mr. Kernan é levado para casa pelo policial Mr. Power, que se
encontrava em uma situação financeira melhor e às vezes lhe emprestava dinheiro, além
de ajudar nas situações de brigas familiares. Deste modo, a decadência financeira de Mr.
Kernan era suavizada, pois seus amigos dos tempos em que era bem sucedido ainda o
estimavam. Como diz a esposa ao amigo policial, “I know you‟re a friend of his not like
some of those others he does be with. They‟re all right so long as he has money in his
pocket to keep him out from his wife and family. Nice friends!” 4 (JOYCE, 1987, p. 174).
O fato de Mr. Kernan, na opinião de sua mulher, ter amigos interessados apenas em seu
dinheiro demonstra a importância da amizade, que é ligada ao dinheiro e à divida, tanto
no conto quanto na parábola.
Descrita em Lucas, capítulo 16, a parábola conta a história de um gerente ou
administrador que, após ser acusado de esbanjar o dinheiro de seu senhor, é despedido.
Com isso, pensa no que fará para sobreviver no futuro: não tem força para plantar e tem
vergonha de mendigar. Até que descobre uma saída para ser bem recebido na casa de
outrem após a demissão. Reúne devedores de seu patrão e desonestamente modifica
suas contas, seus débitos, e lhes dá recibos. Quem devia cem jarras de azeite passa a
dever cinqüenta, quem devia cem sacos de trigo passa a dever oitenta. Deste modo o
gerente garante amigos para seu futuro com o dinheiro iníquo, com atos desonestos. O
capitulo da Bíblia é intitulado “O administrador desonesto: Jesus toma um espertalhão
como exemplo de quem se prepara para o que há de vir”.
Voltando ao conto, nesta primeira parte há ainda a conversa de Mr. Power com Mrs.
Kernan, em que eles conjeturam a respeito da possibilidade de levar Mr. Kernan para um
caminho melhor, através de um retiro. A intenção era fazer dele um devoto da Igreja
Católica, um homem que temesse a Deus. Apesar desta intenção, Mrs. Kernan pensa ser
a religião um hábito, e assim, acreditava que seu marido aos 54, 55 anos, nunca tendo
sido um católico praticante, não mudaria muito antes de morrer.
Neste ponto, ele se diferencia do pai de Joyce, pois este era um homem religioso,
sempre se referindo a Deus. Porém, como partidário de Parnell era anticlerical, e não ia à
Igreja, assim como Mr. Kernan. A respeito do pai de Joyce, Ellmann diz que, “Nas
4
Sei que o senhor é amigo dele; e num é como aqueles outros que andam com ele que num valem nada. Só
prestam mesmo para ficar do lado dele enquanto ele tem dinheiro no bolso e pra separar ele da mulher e da
família. Que amigos! (Joyce: 1993, p. 157).
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manhãs de domingo, John Joyce ocupava-se em apressar o resto da família para irem à
missa, enquanto ele próprio ficava em casa”. (Ellmann: 1989, p. 67).
Purgatório
Em seu purgatório, o segundo momento da estrutura trinaria do conto, Mr. Jack Kernan
está convalescente em sua cama, enquanto seus amigos (Mr. Power, Mr. Cunningham,
Mr. M‟Coy e Mr. Fogarty) o visitam. De forma deliberada eles começam a combinar o
local de encontro para irem ao retiro e respondem entre si monossilabicamente. Mr.
Kernan, que não sabia de nada, pergunta se iriam à opera e Mr. Cunningham nega
dizendo ser apenas um assunto espiritual. Mr. Power finalmente explica que iriam a um
retiro para homens de negócios na Jesuit Church in Gardiner Street, a ser realizado pelo
Padre Purdon. Diz Ellmann, que “O padre Purdon na história baseia-se no padre Bernard
Vaughan, e, como comenta Staninslaus Joyce, o nome lhe foi dado sarcasticamente,
porque a Purdon Street ficava na região do bordel” (ELLMANN, 1989, p. 175).
Ao ser convidado, Mr. Kernan fica silencioso, mas responde que não se importaria de ir e
sorri um pouco nervosamente, percebendo a relação entre o fato de ser convidado e o
incidente no bar. Ele tinha origem protestante e não era, portanto, um católico de
batismo. Convertera-se a esta religião para se casar vinte e cinco anos antes e há vinte
não freqüentava a igreja. “He was fond, moreover, of giving side-thrusts at Catholicism”
5
(JOYCE, 1987, p. 177).
Outro ponto o aproxima - segundo o diário de Stanislaus, irmão mais próximo de Joyce do pai deles; John Joyce combina com seus amigos Matthew Kane, Charles Chance e
Boyd de irem juntos a um retiro espiritual – e diz o mesmo que Mr. Kernan: Eu excluo as
velas.
Esta colocação se reveste de importância, pois é a indicação de que para ele não fazia
sentido ir ao retiro. Não podendo declinar o convite, recusa levar as velas, causando
entre os presentes certo mal-estar, e deixando claro que não aceitaria aquela imposição
religiosa. No conto, Kernan diz: “No, damn it all, said Mr. Kernan sensibly, I draw the line
5
Além disso, gostava de dar umas alfinetadas na Igreja católica (Joyce: 1993, p. 159).
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there. I‟ll do the right job right enough. I‟ll do the retreat business and confession, and...all
the business. But...no candles No, damn it all, I bar the candles” 6 (JOYCE, 1987, p. 194).
A fala pertence mais ao âmbito financeiro do que ao religioso, pois as palavras escolhidas
pelo autor, ou seja, job, all the business são palavras que trazem à tona o mundo dos
negócios e do trabalho.
Segundo o dicionário Michaelis, job também tem o significado de tarefa ou obra e a
palavra business assunto, ocupação ou ainda negócio. Este último sentido pertence às
duas palavras, com o mesmo duplo sentido em português de assunto a ser resolvido,
pendência e trabalho. No entanto, o significado mais forte tanto de job e de businesses
pertence à área financeira.
As expressões metafóricas contendo as duas palavras poderiam passar despercebidas
em outros contextos, mas não neste em que o retiro é para homens de negócio e no qual
o oficio de Mr. Kernan é relacionado à palavra book, à contabilidade e gerência. Além
disso, outras palavras inglesas como por exemplo, stuff ou thing teriam o mesmo efeito
de significado (com o sentido de pendência ou negócio) mas não trazem o peso de
significância no conto como um todo como as palavras utilizadas pelo autor relacionadas
à área financeira.
A conversa entre Mr. Kernan e seus amigos circula por assuntos religiosos, a Ordem dos
Jesuítas, as principais diferenças entre protestantismo e catolicismo e a infalibilidade do
Papa.
A ordem dos Jesuítas é considerada pelos personagens como uma grande e educada
ordem, cujo superior na hierarquia da Igreja está alocado na posição imediata após o
papa. “It‟s a curious thing, said Mr. Cunningham, about the Jesuit Order. Every other
order of the Church had to be reformed at some time or other but the Jesuit Order was
never once reformed. It never fell away” 7 (JOYCE 1987, p. 185).
6
Ora, que diabo! – disse Kernan, com sensatez. – Assim já é demais. Faço qualquer negócio. Faço o tal
retiro, a confissão e...tudo o mais. Mas...nada de velas! Ora, que diabo! Vela eu não seguro! (Joyce, 1993, p.
173)
7
Há um fato curioso – disse Cunningham – com relação à ordem jesuíta. Todas as outras ordens da Igreja
passaram por algum tipo de reforma, mas a ordem jesuíta nunca precisou de reforma; nunca entrou em
decadência. (Joyce, 1993, p. 166)
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Esta é a opinião permanente de Joyce, formado na tradição dos jesuítas nos dois
colégios que estudou, Conglowes e Belvedere.
No conto, a crença na Virgem Maria e a autoridade do Papa são as principais diferenças
levantadas entre o protestantismo e o catolicismo, que seriam pequenas se comparadas
com a semelhança da fé no Salvador, no Redentor, em Jesus Cristo. Porém Mr.
Cunningham acentua: “...our religion is the religion, the old, original faith”8. (JOYCE:
1987, 188) Anthony Burgess, ao falar de Joyce, comenta: “Joyce‟s attitude to Catholicism
is the familiar love-hate one of most renegades. He has left the Church, but defends it
from protestants” 9 (Burgess: 1965, p. 36).
Ele a defende, na palestra de 1907 em Trieste, Isle of Saints and Sages, apenas na
medida em que a considera um absurdo coerente, e o protestantismo um absurdo
incoerente.
perhaps (…) we shall witness a monk in Ireland throw off his cowl, run
off with a nun, and proclaim aloud the end of the coherent absurdity that
is Catholicism, and the beginning of the incoherent absurdity that is
10
Protestantism (JOYCE, 2000, p. 121).
Há a introdução do tema da infalibilidade do Papa, após haverem eles conversado sobre
o Papa Leão XIII cuja meta, para Mr. Cunningham era a união da Igreja Latina e da Igreja
Grega. Escritor de poesia latina, uma das quais seria sobre a fotografia, este era soubera Mr. Power - o homem mais intelectual da Europa.
Mr. Kernan, provando que gostava de dar alfinetadas na Igreja, tenta lembrar de algum
ponto controverso com relação àquela infalibilidade, de acordo com a teologia
protestante: “weren‟t some of the popes – of course, not our present man, or his
predecessor, but some of the old popes – not exactly...you know...up to the knocker?”
11
(Joyce: 1987, p. 190).
8
Nossa religião é A religião, a fé antiga, a fé original (JOYCE, 1993, p. 168).
A atitude de Joyce em relação ao Catolicismo é o típico amor-ódio da maioria dos renegados. Ele deixou a
Igreja, mas a defende dos protestantes [tradução minha].
10
talvez (...) possamos presenciar um monge na Irlanda jogar fora seu hábito, fugir com uma freira, e
proclamar em bom tom o fim do absurdo coerente que é o Catolicismo, e o começo do absurdo incoerente
que é o protestantismo [tradução minha].
11
Não é verdade que alguns papas, não o atual, é claro, nem o último, mas alguns dos antigos, não eram
lá...você sabe...flor que se cheirasse? (Joyce, 1993, p. 170).
9
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Mr. Cunningham responde que nenhum deles tinha ensinado uma única palavra de falsa
doutrina. E conta a história na qual dois homens se posicionaram contra a infalibilidade
no Sagrado Colégio (the Sacred College) dos cardeais e bispos sendo um deles um
irlandês chamado John MacHale, mais conhecido como John de Tuam e o outro um
cardeal alemão. Então o Papa, ele mesmo, levantou e declarou a infalibilidade como
dogma, e no mesmo momento John de Tuam, que estivera argumentando contra, se
levantou e gritou “Credo!”. Mas o cardeal alemão não concordou e saiu da Igreja.
Quando morava em Roma, em 1905, Joyce pesquisou o tema da infalibilidade e do
dogma correspondente na Biblioteca Vittorio Emanuele e escreveu ao seu irmão
Stanislaus:
Antes da proclamação quando o dogma [da infalibilidade papal] foi lido
em voz alta o Papa disse „Tudo isso está correto, cavalheiros?‟ Todos os
cavalheiros disseram „Placet‟ mas dois disseram „Non Placet‟. Mas o
Papa: „Sejam malditos! Vão tomar no cú! Sou infalível!‟. (ELMANN, 1989,
p. 291).
O Concílio Vaticano de 1870 promulgou a constituição do Pastor aeternus em 18 de julho
de 1870, de modo que foi definido que o Papa possui primazia jurisdicional sobre a Igreja
Católica Apostólica Romana, além de, em certas situações, Deus lhe conceder a
infalibilidade em assuntos de fé e moral.
De acordo com Ellmann toda este tema da infalibilidade no conto teria sido
intencionalmente modificado por Joyce para que os detalhes se mantivessem confusos e
mais divertidos.
Apenas duas pessoas haviam votado contra a infalibilidade enquanto dogma, o Bispo
Aloisio Riccio de Caiazzo e o Bispo Edward Fitzgerald de Arkansas, até o ultimo
momento. Porém John de Tuam, na Irlanda, citado no conto, se pronunciara contra o
estabelecimento do dogma em um momento anterior, mas havia concordado com o voto
majoritário antes do voto final.
Paraíso
O terceiro momento do conto, correspondente ao paraíso na obra de Dante, é o ambiente
de uma Igreja - bastante secularizada. O retiro é descrito através do número de pessoas
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presentes na Igreja e da importância dessas pessoas na cidade, seja por sua influência
política ou econômica.
O Padre Purdon diz que seu sermão trata do livro ou passagem da Bíblia mais difícil de
ser interpretado, pois une duas posições consideradas opostas no dogma, que são Deus
e Mamon, Deus e o dinheiro. Diz ele que nem todos os homens estão destinados à vida
religiosa, e que por isso Jesus, em sua imensa sabedoria, considerou tal situação nesta
parábola.
O sermão do padre é a única referência à parábola de Lucas – capitulo 16 – e uma das
raras citações por inteiro que Joyce faz em Dublinenses. Ao remeter o leitor diretamente
àquele outro texto ele deixa claro a inter-relação entre os dois, e ao trazer à tona aquela
passagem bíblica especificamente coloca-a no centro do conto como um todo.
A passagem citada pelo padre é a seguinte
For the children of this world are wiser in their generation than the
children of light. Wherefore make unto yourselves friends out of the
mammon of iniquity so that when you die they may receive you into
12
everlasting dwellings (JOYCE, 1987, p. 197).
Esta passagem da Bíblia é realmente controversa. Segundo comentário presente na
Bíblia “Esta parábola traz muitas vezes dificuldades, porque parece propor o exemplo de
um espertalhão”. Na verdade, o que é proposto é que, quando se tem dinheiro, mesmo
advindo de fontes desonestas, se deve fazer amigos, para que na falta do dinheiro estes
possam ajudar.
De acordo com a interpretação cristã da passagem realizada por L‟Eplattenier (1993),
que se utiliza de outros capítulos de Lucas para tanto, ao fazer a distinção entre aqueles
que seguem Deus e aqueles que seguem Mamon, Jesus coloca o dinheiro, iníquo ou
não, honesto ou desonesto, como algo que poderia atrapalhar a devoção verdadeira de
seus discípulos. Mesmo se utilizando do exemplo de um gerente desonesto, ele não seria
no caso um ladrão: ele pega o dinheiro que tinha em mãos (e que era de seu patrão) e o
12
...Pois os filhos deste século são mais prudentes com sua geração do que os filhos da luz. E eu vos digo:
fazei amigos com o Dinheiro da iniqüidade a fim de que, no dia em que faltar, eles vos recebam nos
tabernáculo eternos (JOYCE: 1993, p. 175).
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distribui entre aqueles que futuramente o receberiam em suas casas. Portanto, sendo o
dinheiro próprio ou não, o importante é se desvencilhar de suas amarras.
A falência atual de Mr. Kernan era suavizada pelo fato dele ter amigos. Ele pode ser
identificado ao gerente da parábola na medida em que seu arco social está em declínio,
assim como o gerente será despedido. Seus amigos o estimam, são recebidos em sua
casa do mesmo modo que ele seria recebido na deles; e este era o objetivo do gerente
desonesto, ser recebido na casa dos devedores de seu patrão, seus amigos, mesmo sem
ter dinheiro.
Outra relação encontrada entre os dois textos se dá quando Mrs. Kernan afirma que os
supostos amigos de seu marido, não são realmente amigos, já que só pensam no
dinheiro dele, ou seja, só o consideram amigo quando ele tem dinheiro. Um dos homens
que abandonara Mr. Kernan no bar era Mr. Harford, um irlandês agiota e analfabeto que,
que era chamado de judeu, mas se limitava a seguir o código de ética judaico. (O modo
como o texto é escrito nesta definição atesta a ironia de Joyce, ao insinuar que aquele
código seria idêntico à agiotagem).
Outro ponto que permite identificar Mr. Kernan (Mr. Power, Mr. Cunningham, Mr. M‟Coy)
assim como todos os seus amigos com o gerente da parábola, é a confissão feita por
todos (own up) de que são salafrários, desonestos. (JOYCE, 1987, p. 184).
O Padre Purdon, desenvolvendo o seu sermão, diz que se colocará como um contador
espiritual das pessoas ali presentes, se lhe for permitido. Ou seja, também poderia
assumir o mesmo ofício do personagem da parábola, que desonestamente cuida das
contas de seu patrão. Além disso, o Padre Purdon é definido por Cunningham como dos
nossos (JOYCE, 1987, p. 166).
He was there as (…) a man of the world speaking to his fellow-men. He
came to speak to business men and he would speak to them in a
business-like way (…)he wished each and every one of his hearers to
open his books, the books of his spiritual life, and see if they tallied
accurately with conscience.(…) But one thing only, he said, he would
ask of his hearers. And that was: to be straight and manly with God. If
their accounts tallied in every point to say: - “Well, I have verified my
accounts. I find all well.”But if, as might happen, there were some
discrepancies, to admit the truth, to be frank and say like a man: - “Well,
I have looked into my accounts. I find this wrong and this wrong. But,
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with God‟s grace, I will rectify this and this. I will set right my accounts
13
(JOYCE, 1987, p. 197).
A palavra grace, (graça em português) aparece no conto em dois outros momentos, ao
serem apresentados Mr. Kernan e Mr. Fogorty. Nestas poucas vezes em que aparece
está mais ligada à área financeira e ao dinheiro, ou melhor, à profissão e o modo de se
conduzir com elegância nesta, do que à sua significação religiosa mais característica. As
palavras do padre, “com a graça de Deus” significam com a ajuda de Deus, mas a ajuda
concedida os permitirá arrumar as contas.
A definição dos personagens no que concerne especificamente à religião é bastante
ampla e plural. A mulher de Mr. Kernan é uma dona de casa, que considera a religião um
hábito, acredita no Sagrado Coração e nos deuses celtas pagãos. Os amigos de Mr.
Kernan são católicos que conversam de modo mais ou menos ignorante sobre assuntos
espirituais Além disso, há um judeu, que apesar de ser assim tachado, apenas se limitava
a seguir o código de ética judeu (uma brincadeira sobre o seu oficio de agiota).
O beberrão de uísque, que não pode governar o mundo ou os seus próprios passos, é
uma figura típica da Irlanda que ao lado da religião - tema central do conto - e da
colonização inglesa traz elementos característicos da irlandesidade.
De modo que o conto como um todo e em seus elementos particulares deixa
transparecer as posições de Joyce com relação à Irlanda, seu país natal do qual se exilou
(e ao qual voltou poucas vezes), mas que apresentou ao mundo através de suas obras,
nas quais o catolicismo é sempre uma temática e nas quais elementos biográficos e
autobiográficos estão constantemente presentes.
O trecho bíblico que indica a parábola utilizada para a construção do conto é inserido na
vida de Dublin, considerada por Joyce, à época em que escrevia uma cidade paralisada.
A parábola permite uma visão mais ampla do conto - com seu linguajar econômico e
13
Estava ali (...) como um homem do mundo falando a seus pares. Viera falar a homens de negócios e falaria
à maneira empresarial. (...) Desejava que cada um dos ouvintes abrisse o seu livro-razão, o livro-razão de
sua vida espiritual, e verificasse se os registros conferiam com as contas da consciência. (...) Se as contas
conferirem, digam: - Pois bem, examinei as minhas contas. Tudo está certo. (...) Porém, como costuma
ocorrer, se houver discrepâncias, admitam a verdade, sejam honestos e digam como homens: - Pois bem,
examinei minhas contas. Encontrei este e este erro. Mas com a graça de Deus farei as devidas correções,
acertarei as minhas contas (Joyce:1993, p. 175).
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contábil, seus personagens identificados ao gerente desonesto - e traz comicidade e
sátira para Graça.
Referências Bibliográficas:
BÍBLIA: Ed. Loyola, São Paulo, Brasil, 1995
BURGESS, A. Rejoyce. Ballantine Books, New York, 1965.
DICIONARIO ELETRONICO MICHAELIS SOFT INGLÊS-PORTUGUÊS, Ed. Melhoramentos,
2001
ELLMANN, R. James Joyce. Tradução Lya Luft. São Paulo, Globo, 1989.
HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Hoauiss da Língua Portuguesa, Editora Objetiva, 2001.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. Trad. M.C. Paoli e A. M. Quirino. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990.
JOYCE, J. Dubliners. London: Grafton Books, 1987.
JOYCE, J. Dublinenses. Tradução: José Roberto O‟Shea. Editora Siciliano, 1993.
KIBERD, Declan. Inventing Ireland. London: Vintage, 1996.
O‟FAOLAIN, S. The Irish. Penguin Books, 1947.
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“Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da
Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano IV - Número IV – janeiro a dezembro de 2008.
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“GRAÇA” EM JOYCE - Felipe Luis Melo de Souza