Revista Brasileira de
História da Educação
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Revista Brasileira de História da Educação
Publicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE
Revista
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Educação – SBHE
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fundada em 28 de setembro de 1999, é uma sociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de direito
privado. Tem como objetivos congregar profissionais brasileiros que realizam atividades de pesquisa e/
ou docência em História da Educação e estimular estudos interdisciplinares, promovendo intercâmbios
com entidades congêneres nacionais e internacionais
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janeiro/junho 2005 no 9
H
Revista Brasileira de
ISTÓRIA
da
EDUCAÇÃO
SBHE
Sociedade Brasileira de História da Educação
A publicação deste no 8 da Revista Brasileira de História da Educação
contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de
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Revista Brasileira de História da Educação
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Impressão e Acabamento
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Sumário
EDITORIAL
7
ARTIGOS
Tecnologias de ordenação escolar no século XIX: currículo e método
intuitivo nas escolas primárias norte-americanas (1860-1880)
Rosa Fátima de Souza
9
Arquivos do Instituto de Educação: suporte de memória da educação
nova no Distrito Federal (anos de 1930)
Sonia de Castro Lopes
43
A produção da infância nas operações escriturísticas da administração
da instrução elementar no século XIX
Cynthia Greive Veiga
73
Combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica: a experiência
do professor Manoel José Pereira Frazão na Corte imperial (1870-1880)
Alessandra Frota Martinez de Schueler
109
Vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas
no pensamento educacional de Fernando de Azevedo
José Cláudio Sooma Silva
139
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
António Gomes Ferreira
177
Debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
José Lourenço Rocha
As representações dos professores primários: estratégia política
e habitus professoral
Rosario S. Genta Lugli
199
231
RESENHAS
Os intelectuais na Idade Média
Por Gesuína de Fátima Elias Leclerc
263
Manifesto dos Pioneiros da Educação: um legado educacional em debate
Por Ana Maria de Oliveira Galvão
271
ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES
279
CONTENTS
281
Editorial
O número nove da Revista Brasileira de História da Educação (RBHE)
que agora apresentamos tem um significado importante, pois é o primeiro
número a ser publicado após a realização do III Congresso Brasileiro de
História da Educação. Reafirmando-se como uma publicação consolidada
no campo, vem buscando cada vez mais obter o apoio da nossa comunidade de pesquisadores e também de agências de financiamento a publicações
de caráter científico, no sentido de assegurar a sua periodicidade.
Estamos incluindo neste número um novo procedimento que é o de
explicitar as datas de chegada dos artigos, dossiê, resenhas e notas de
leitura, bem como o do envio desse material aos pareceristas, e no caso
de reformulação a data do envio e do retorno. Com isso pretendemos:
demonstrar o rigor acadêmico a que temos submetido nossos trabalhos;
aprimorar os tempos despendidos para cada uma dessas etapas, assegurando assim uma maior rapidez no fluxo e publicação dos trabalhos propostos à revista; e por último, assegurar de maneira mais tranqüila a
periodicidade sistemática desta publicação.
Aproveitamos ainda para agradecer a todos os colegas pareceristas,
que desde a criação da revista têm realizado um trabalho de fundamental
importância, colaborando na avaliação cuidadosa e séria de todos os trabalhos enviados à Comissão Editorial. Sem esse empenho não conseguiríamos vencer o desafio de fazer circular a revista semestralmente e não
teríamos a qualidade reconhecida de nosso periódico.
Realizamos ainda neste semestre um levantamento e um cadastramento
de todas as bibliotecas de universidades públicas para que possam receber a nossa revista, buscando assim fazer uma maior divulgação e circulação da RBHE. Nosso desejo é que esse engajamento e comprometimento
com o nosso projeto de publicação continuem cada vez maiores, espelhando assim o amadurecimento de um campo de conhecimento.
O Editorial deste número comparece com oito artigos bastante interessantes, significativos e importantes para o nosso campo e acompanham ainda esta edição duas resenhas. Reiteramos ainda o convite para
todos os pesquisadores da historiografia da educação brasileira que continuem encaminhando de maneira contínua e sistemática artigos, propostas de traduções, participando da organização de dossiês temáticos etc.
Por último, a Comissão Editorial apresenta uma retificação referente
ao número anterior (julho/dezembro 2004, n. 8). No dossiê Tempos sociais, tempos escolares, que foi organizado por Maria Cristina Gouveia e
Lucia Martinez Montezuma, lamentavelmente só figurou o nome da primeira, e por isso gostaríamos de nos desculpar e ao mesmo tempo fazer
essa correção.
Comissão Editorial
Tecnologias de ordenação
escolar no século XIX
Currículo e método intuitivo nas escolas
primárias norte-americanas (1860-1880)
Rosa Fátima de Souza*
Este artigo consiste em um estudo sobre a construção do currículo da escola primária
nos Estados Unidos e sobre a adoção do método intuitivo nesse país, no período de 1860
a 1880. Tomando como fontes de pesquisa os primeiros programas de ensino e os principais manuais de lições de coisas em circulação na época, o texto examina a renovação
pedagógica norte-americana que serviu de referência para outros países. A configuração
curricular e o método intuitivo são analisados considerando suas implicações para a
institucionalização da escola primária, particularmente o modelo de escola graduada;
eles também são analisados como tecnologias de governo – práticas racionais de controle de professores e alunos e de controle do ensino e da aprendizagem.
HISTÓRIA DA ESCOLA PRIMÁRIA; HISTÓRIA DO CURRÍCULO; MÉTODO
INTUITIVO; CULTURA ESCOLAR; EDUCAÇÃO NORTE-AMERICANA.
This article consists of a study on the construction of the primary school curriculum in
the United States and on the adoption of the object teaching in this country in the period
between 1860 and 1880. The bases for the source are the first course of studies elaborated
in the country and the mainly manuals of the object lessons in circulation at the time, the
text exams the American pedagogical renovation which served as the reference for other
countries. The curriculum layout and the object teaching are analized taking into account
its implications towards the institutionalization of the elementary school, particularly
the graded school model; both are also analized as government technologies – rational
practices of teacher and students control, control of teaching and learning.
PRIMARY SCHOOL HISTORY; CURRICULUM HISTORY; INTUITIVE METHOD;
SCHOOL CULTURE; NORTH-AMERICAN EDUCATION.
*
Doutora em educação, professora do Departamento de Ciências da Educação e do
Programa de Pós-Graduação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara.
10
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
A partir da segunda metade do século XIX, selecionar conteúdos e
especificar a sua seqüência e como ensinar em cada série passou a constituir-se em uma prática racional de controle do ensino e da aprendizagem nas escolas norte-americanas.
Os primeiros programas de ensino denominados graded course of
instruction ou course of study surgiram em resposta aos problemas
organizacionais da escola moderna, isto é, a escola graduada fundamentada na classificação dos alunos mediante exames, que passou a exigir a
invenção de um sistemático e progressivo plano de estudos. Além da
definição do que ensinar, tornou-se fundamental a prescrição do método de ensino visto pelos profissionais da educação da época como fundamento da renovação pedagógica, base racional do trabalho docente e
condição de eficiência do empreendimento educativo. Em relação à escola primária, a seleção e ordenação do conhecimento escolar e a adoção do método intuitivo estiveram intrinsecamente vinculados à concepção de criança e como ela aprende. Por isso, a história do currículo
da escola elementar está intimamente relacionada à história da construção da criança no discurso educacional.
Dos primeiros esforços de elaboração dos programas para o ensino
primário na década de 1860, aliados às tentativas de adoção do método
intuitivo, até os debates sobre currículo na virada do século XIX para o
século XX, a criança e o currículo foram reinventados na sociedade
norte-americana tornando-se objetos de conhecimento e de intervenção
política.
Este artigo consiste em um estudo sobre a construção do currículo
da escola primária nos Estados Unidos e sobre a adoção do método
intuitivo nesse país no período de 1860 a 1880. Tomando como fontes
de pesquisa os primeiros programas de ensino e os principais manuais
de lições de coisas em circulação na época, o texto examina a renovação
pedagógica norte-americana que serviu de referência para outros países. A configuração curricular e o método intuitivo são analisados considerando suas implicações para a institucionalização da escola elementar, particularmente o modelo de escola graduada; eles também são
analisados como tecnologias de governo – práticas racionais de controle de professores e alunos e de controle do ensino e da aprendizagem.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
11
A propósito, convém um esclarecimento conceitual. Os termos tecnologia de governo, alquimia curricular e tecnologias de ordenação escolar utilizados no texto fundamentam-se no pensamento de Michel
Foucault sobre a relação entre conhecimento e poder (Foucault, 1986,
2000, 2001, 2002). Particularmente, eles são usados aqui com base nos
estudos de Popkewitz sobre currículo. Partindo da concepção produtiva
de poder de Foucault, que busca ressaltar como as pessoas produzem
conhecimento para intervir nas questões sociais, Popkewitz entende o
currículo como uma tecnologia disciplinar, uma vez que direciona como
o indivíduo age, sente, fala e vê o mundo e a si mesmo. Decorre, portanto, o entendimento de currículo como prática de governo – prática de
direcionamento e controle, pois aprender a ler e escrever, assim como
aprender matemática, ciências, história, geografia e outros conteúdos,
implica algo mais além da aprendizagem de conhecimentos, implica
aprender certas capacidades, disposições e sensibilidades sobre o mundo (Popkewitz, 1998; Popkewitz et al. 2001). O termo tecnologia aplica-se, portanto, ao mundo social referindo-se à forma pela qual “idéias
e práticas diferentes asssociam-se para produzir meios que dirigem e
moldam a conduta dos indivíduos” (Popkewitz, 2001, p. 31). No âmbito
educacional, diferentes idéias e práticas contribuem para a constituição
da escola como ela se apresenta em determinado momento histórico. As
tecnologias de ordenação escolar envolvem um conjunto de meios organizados com vistas a regular a instituição educativa e aqueles que
nela estão envolvidos. Por alquimia curricular, Popkewitz quer indicar
“um processo através do qual os campos disciplinares da matemática,
da literatura, da arte e das ciências são transformadas em matérias escolares” (idem, p. 105). Essa alquimia envolve uma mistura de práticas
reguladoras e de instrução e ocorre em três níveis: a) tendo em vista os
conteúdos do currículo, isto é, os fragmentos de informação; b) a ênfase
em determinados recursos textuais, especialmente o uso de livros didáticos; e c) a ligação do conhecimento com a subjetividade dos alunos
garantida por meio de testes e avaliações. Significa dizer que, na transmissão do conhecimento, se encontra sempre subjacente algo mais que
tem a ver com tecnologias de controle social.
12
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Em primeiro lugar, o texto examina o processo de implantação da
escola primária nos Estados Unidos considerando a introdução do modelo de escola graduada. Em seguida, analisa a forma pela qual os programas do ensino primário foram concebidos para atender às necessidades
de racionalização desse modelo de escola. Por último, focaliza a inovação
educacional representada pela adoção do método intuitivo nesse país e
como tal inovação articulou-se com a racionalização curricular em voga.
A institucionalização da escola elementar
nos Estados Unidos da América
Os norte-americanos iniciaram a implantação do sistema público de
ensino nas primeiras décadas do século XIX. Entre 1830 e 1860, desencadearam o movimento em prol das escolas comuns (common school
system). Horace Mann, Henry Barnard e John Philbrick são apontados
pela historiografia da educação norte-americana como os principais líderes da reforma educacional levada a termo no país nesse período. Eles
e outros reformadores defendiam o ensino público e obrigatório, a participação do estado no financiamento da educação, a difusão da escola
para todas as crianças, maior uniformidade no ensino e finalidades políticas amplas para a escola pública (Kaestle, 1999). Os líderes da reforma educacional, especialmente Horace Mann e Henry Barnard, buscaram na Europa o modelo a ser seguido. Esses homens entraram em
contato com os sistemas públicos de ensino europeus mediante viagens
e visitas a escolas de diferentes países e a leitura de obras educacionais
– livros, artigos de revistas e relatórios oficiais sobre o ensino. O sistema educacional prussiano foi o que mais atraiu a atenção de Horace
Mann na viagem que fez à Europa em 1843. O secretário do Conselho
de Educação de Massachusetts surpreendeu-se, especialmente, com a
organização das escolas com base na classificação dos alunos e com os
métodos de ensino empregados.
Adotar a graduação do ensino nos moldes das escolas prussianas foi
um desafio para os educadores norte-americanos e consistiu em um processo lento. Até por volta de 1850, o termo grade (série) não se aplicava
tecnologias de ordenação escolar no século xix
13
a um nível particular dentro da escola, mas sim à prática de coordenar
uma série de escolas de diferentes níveis. De acordo com Kaestle, o
termo escola graduada (graded school) significando escola elementar é
de uso posterior. Até então, dizer que uma cidade ou vilarejo possuía
escolas graduadas significava dizer que o lugar possuía diferentes níveis educacionais, por exemplo, o jardim de infância, a escola primária,
a grammar school1 e as escolas secundárias.
A primeira experiência de instalação de uma escola elementar graduada nos Estados Unidos ocorreu em 1848, na cidade de Boston. Na época,
o educador John Philbrick convenceu o Conselho de Educação de Boston
de que uma adequada classificação dos alunos requeria um novo tipo de
edifício-escola. Em 1848, a nova Quincy School foi instalada e Philbrick
tornou-se o diretor. O edifício foi construído com quatro andares, um auditório para 700 alunos e 12 salas de aula, cada uma destinada a 56 alunos. Cada professor tinha uma sala de aula separada correspondendo a
cada série e cada aluno tinha uma carteira individual. O sistema logo se
expandiu pelas grandes cidades do país (Tyack, 2000, pp. 44-45).
A classificação dos alunos, anunciada pelos primeiros reformadores
como critério de renovação educacional, tornou-se, nas décadas seguintes, um problema institucional. A escola graduada pressupunha o estabelecimento de critérios de promoção e exames minuciosamente elaborados. Isso, por sua vez, significava a exigência de um plano de estudos,
ou seja, a estruturação/sistematização do ensino e da aprendizagem. Essa
racionalização pedagógica implicava ativar tecnologias de controle e de
administração do conhecimento, dos alunos e professores. A partir da
década de 1860, o aparecimento e a multiplicação de um novo tipo de
literatura educacional – os manuais didáticos sobre object teaching e os
programas de ensino – constituem-se em exemplares dessas tecnologias
de controle colocadas em operação para a prescrição da prática educativa. No início dessa década, termos como graded school e course of
instruction ainda careciam de explicação e persuasão. Duas décadas
depois, já eram de uso comum no vocabulário educacional.
1.
Grammar school refere-se ao segundo ciclo da escola primária nos Estados Unidos.
14
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Isso pode ser verificado na forma como os termos classe, série, escola graduada e sistema graduado de ensino foram definidos na primeira enciclopédia de educação publicada nos Estados Unidos em 1877
(Cyclopaedia of education: a dictionary of information for the use of
teachers, school officers, parents, and others)2. Classe foi definido como
“um número de alunos ou estudantes em uma mesma escola ou colégio,
com o mesmo grau de conhecimento, recebendo a mesma instrução e
fazendo os mesmos estudos” (Cyclopaedia, 1877, p. 137). Uma acurada
classificação dos alunos era ressaltada como elemento fundamental para
o trabalho de instrução.
O termo grade (série ou grau) aplicava-se a dois sentidos: o primeiro
referia-se aos níveis de ensino (elementar, secundário e superior) e o segundo às divisões dentro de cada nível considerando o conhecimento e a
classificação do aluno: “Um curso é dividido em séries para conveniência de classificação, e supõe-se que todos os alunos, em cada classe, tenham o mesmo nível de conhecimento” (idem, p. 375). Série (grade)
referia-se às divisões do curso de estudos baseado em várias considerações, enquanto classe aplicava-se às divisões da escola com base na uniformidade de desempenho. A escola graduada (graded school) pressupunha a classificação dos alunos e a graduação do conhecimento em séries:
Escolas graduadas são usualmente definidas como escolas nas quais os
alunos são classificados de acordo com o seu progresso na aprendizagem,
sendo comparado o curso dividido em séries, com alunos de mesmo ou similar grau de conhecimento colocados numa mesma classe. Uma escola não
graduada, por outro lado, é aquela em que os alunos são ensinados indivi-
2.
Essa enciclopédia foi editada pelos superintendentes das escolas públicas da cidade
de New York, Henry Kiddle e Alexander Jacob Schem. De acordo com os editores, a
obra consistia na primeira enciclopédia de educação em língua inglesa e tinha por
finalidade oferecer informações valiosas sobre os assuntos educacionais e estimular
o estudo da pedagogia. A enciclopédia compreende um único volume com cerca de
900 páginas abrangendo os seguintes tópicos: teoria da educação e instrução (pedagogia e didática), economia escolar, administração de escolas e sistemas escolares,
política governamental para a educação, história da educação, estatística, literatura
educacional, index analítico. Ver: Cyclopaedia of education, 1877.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
15
dualmente, cada um avançando tão rapidamente quanto as circunstâncias permitirem, sem considerar o progresso dos outros alunos [idem, ibidem].
Segundo a descrição de Cuban (1984), por volta de 1890, havia vários tipos de escolas públicas primárias nos Estados Unidos. Nas cidades predominavam as escolas graduadas funcionando nove meses por
ano e contando com professores com certo nível de formação para o
magistério. Enquanto isso, na zona rural predominava a escola multiseriada de menor qualidade e parcos recursos, embora as mesmas fossem responsáveis pela matrícula de mais de 70% de todas as crianças
atendidas pelo ensino público no país.
Apesar das múltiplas diferenciações – escolas urbanas e rurais, escolas públicas e privadas, confessionais e laicas, escolas para brancos,
para negros e para imigrantes – no final do século XIX, a institucionalização da escola elementar de oito anos de duração já havia se consolidado nos Estados Unidos.
A alquimia da racionalização curricular
A partir da década de 1860, com a implementação das escolas graduadas urbanas, a questão dos programas de ensino foi totalmente
redefinida nos Estados Unidos.
Muitos profissionais da educação, especialmente os superintendentes de escolas públicas, passaram a dedicar-se à organização metódica e
sistemática do conhecimento a ser transmitido na escola primária. Esse
esforço de elaboração de um plano racional de estudos vinculou a seleção/organização de conteúdos às idéias pedagógicas em voga
consubstanciadas no método intuitivo ou object teaching fundamentado, por sua vez, em uma peculiar concepção sobre a aquisição do conhecimento e o desenvolvimento infantil. Ensinar tornava-se uma atividade mais complexa e difícil que exigia eficiência e controle. Os manuais
elaborados a partir da década de 1860 passaram a oferecer não somente
orientações sobre a conduta do professor, mas tecnologias de ordenação
do conhecimento escolar.
16
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Dessa forma, a concepção de ensino foi redefinida dentro de outra
racionalidade, isto é, a da racionalização, organização e administração
da escola graduada. O foco da discussão recaiu sobre o programa graduado de ensino e o trabalho do professor reconfigurou-se em função da
discussão sobre conteúdo e método. Ensinar passou a envolver novas
práticas e a exigir diferentes atividades e capacidades do professor. Tratava-se de saber selecionar conteúdos, graduá-los de acordo com uma
seqüência apropriada, usar o método adequado, avaliar e classificar adequadamente os alunos e imprimir eficiência ao ensino.
As expressões em uso – graded course of instruction e course of
study – compreendiam todos os elementos de racionalização implicados no termo currículo utilizado na época apenas no ensino superior. A
esse respeito, a definição da Cyclopaedia of education é clara:
Programa de instrução (course of instruction) consiste em uma série de
matérias de instrução ou estudo, organizadas na ordem em que elas devem
ser seguidas e agrupadas ou divididas em séries, cada uma a ser completada
em certo tempo. Tal organização dos estudos é algumas vezes chamada de
curso graduado e, especialmente na instrução superior de curriculum. Quando essas várias matérias são organizadas na forma de uma ordem diária de
exercícios mostrando o tempo ou o número de lições a serem dadas a cada
matéria, isto constitui o horário escolar [1877, pp. 190-191]3.
O manual de W. H. Wells, The graded school. A graded course of
instruction for public schools: with copious practical directions to teachers,
and observations on primary schools, school discipline, school records
etc. (1862), exemplifica uma das primeiras tentativas de implantação de
um curso graduado de estudos nas escolas primárias norte-americanas.
Entre 1856 a 1864, Wells trabalhou como superintendente das escolas públicas de Chicago. Nesse período buscou implantar as escolas pri-
3.
Neste texto optamos por traduzir os termos course of instruction e course of study
por programa de ensino cujo sentido era o mesmo empregado no Brasil no século
XIX e início do século XX. O termo inglês school programme correspondia em
português a horário escolar.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
17
márias graduadas na cidade, defendendo uma adequada classificação
dos alunos a qual deveria, em sua opinião, vir acompanhada, necessariamente, de um programa uniforme de ensino e de exames padronizados. O programa graduado de estudos proposto por Wells no manual era
o mesmo adotado nas escolas públicas de Chicago e seu livro foi amplamente adotado nas cidades do velho nordeste norte-americano como
programa oficial de ensino (Tyack, 2000, p. 46).
Porém, na década de 1860, a escola graduada constituía, ainda, uma
inovação recente. Esse modelo escolar foi concebido nos Estados Unidos para uma escola elementar compreendendo dois ciclos: a primary
school e a grammar school, na qual se destacavam três princípios fundamentais: a classificação dos alunos, o emprego do tempo e o ensino
simultâneo. Não por acaso, nas primeiras páginas do manual The graded
school, Wells buscou definir o novo modelo escolar: “uma escola graduada é uma escola na qual os alunos são divididos em classes de acordo com seus resultados e na qual todos os alunos de cada classe assistem aos mesmos ramos de estudos ao mesmo tempo” (Wells, 1862, p.
7). Em nota de rodapé o autor esclarecia ainda: “todos os alunos em
qualquer classe assistem precisamente às mesmas matérias de estudos e
usam os mesmos livros” (idem, ibidem).
A propósito, nota-se, por exemplo, uma certa imprecisão a respeito
do tempo de duração de cada série e a correspondência entre classe e
sala de aula. Wells propunha para a escola elementar um curso graduado abrangendo 10 séries – seis referentes à primary school e quatro
referentes à grammar school4. Recomendava ainda que as salas de aula
das primeiras séries (9° e 10° graus) fossem divididas em quatro classes; as séries seguintes, 8°, 7°, 6° e 5° graus, em três classes e as salas da
grammar school em duas classes. O termo classe aplicava-se, portanto,
às divisões internas de uma sala de aula e denota a transição do ensino
individual para o ensino efetivamente simultâneo:
4.
Inicialmente, utilizou-se a ordenação invertida, isto é, o 10º grau correspondendo à
primeira série do ensino primário e o 1º grau correspondendo à última série da
grammar school, ou seja, última série do ensino elementar que nos Estados Unidos
compreendia os departamentos da primary e grammar school.
18
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Em cada sala de aula deverá haver uma primeira e segunda classe e é
importante que os mesmos alunos que constituem a primeira classe em uma
matéria constituam a primeira classe em todas as matérias seguidas pela classe.
Por esta organização, enquanto uma classe está recitando, a outra está preparando para a recitação e um processo alternado é mantido durante o dia dando aos alunos amplo tempo para estudarem suas lições e ao professor amplo
tempo para instruir cada classe [...] É isto que se quer dizer por escola graduada e classificada [Wells, 1862, p. 7].
O manual de Wells propunha um curso graduado de estudos abrangendo o ensino elementar (primary e grammar schools) e o ensino secundário (high schools) e constava de inúmeras indicações sobre critérios de classificação e normas para um efetivo ensino simultâneo. Além
da indicação dos conteúdos a serem ministrados em cada série, o autor
oferecia indicações metodológicas para o ensino de cada matéria e orientações acerca da disciplina dos alunos, aquecimento e ventilação dos
edifícios escolares e referências bibliográficas. Dessa forma, The graded
school é representativo de um novo tipo de literatura pedagógica – os
manuais didáticos de orientação propriamente curricular.
A característica principal desses textos consiste na prescrição minuciosa de vários aspectos pertinentes à transmissão dos saberes escolares, associada, quase sempre, às inovações educacionais, isto é, ao pensamento pedagógico de caráter inovador. Dessa forma, esses textos
compreendem ao mesmo tempo recursos de normalização e de inovação do ensino. A análise de alguns desses textos produzidos entre as
décadas de 1860 e 1890 demonstra como eles constituíram-se em apuradas tecnologias de governo de professores e alunos operando não apenas na indicação de conhecimentos legítimos a ensinar, mas, principalmente, estabelecendo as regras sobre como ensinar, incidindo, portanto,
sobre os aspectos meticulosos da conduta de professores e alunos, estabelecendo as finalidades do ensino de cada conteúdo e prescrevendo a
aquisição de habilidades, conceitos, atitudes e sensibilidades.
Mas foi na ordenação minuciosa do emprego do tempo que se fundamentou o curso graduado de estudos. Além de estabelecer as séries –
arquitetura temporal da graduação escolar – Wells dedicou-se à prescri-
tecnologias de ordenação escolar no século xix
19
ção das funções e unidades capilares da atividade escolar, fixando a
duração das lições e a distribuição dos conteúdos no horário. Não era
recomendado, por exemplo, que os alunos estudassem muitos conteúdos ao mesmo tempo: “Não se deve permitir aos alunos estudarem mais
do que três ramos de estudo de uma vez, além de leitura, soletração e
escrita; e é geralmente melhor ter algumas lições previstas para dias
alternados do que ter até seis exercícios num dia” (Wells, 1862, p. 32).
Em relação à duração das lições de recitação:
Em relação ao Departamento de Gramática, as recitações devem ser ministradas compreendendo vinte cinco a quarenta minutos de duração, exceto exercícios em soletração os quais podem ser completados, usualmente, em quinze
a vinte e cinco minutos; nas 5ª, 6ª e 7ª séries o tempo previsto para a recitação
deve ser entre vinte e vinte e cinco minutos, nas 8ª e 9ª séries, de quinze a vinte
minutos; e na 10ª série, de dez a quinze minutos [Wells, 1862, p. 33].
Para cada conteúdo, o autor sugeria uma distribuição do número de
lições por semana. Por exemplo, nas classes de leitura na 1ª série, deveriam ser dadas lições duas ou três vezes por semana; na 2ª e 3ª séries, três
ou quatro vezes por semana; na 4ª série, quatro ou cinco vezes, nas 5ª e 6ª
séries, cinco a oito vezes e nas 7ª e 8ª séries, oito a dez vezes por semana.
De acordo com Wells, a finalidade do manual não era tolher a individualidade e originalidade do professor, mas auxiliá-lo no esforço de
melhorar o padrão de excelência de seus modos de instrução uma vez
que havia princípios válidos que deveriam ser seguidos por todos: “Há,
entretanto, certos princípios que pertencem a todos os bons sistemas de
instrução, e o professor que reivindica o privilégio de rejeitá-los porque
pensa que ele pode ensinar melhor de outra forma é um membro que
não merece sua profissão” (Wells, 1862, p. 10). Dessa maneira, Wells
reafirmava a concepção predominante entre os profissionais do ensino
da época, segundo a qual havia princípios válidos e verdadeiros para
nortear a educação como atividade sistemática. Tais princípios fundamentavam-se, sobretudo, nas idéias de Pestalozzi e nos seus métodos
inovadores de instrução. Wells não se preocupou em apresentar aos professores os princípios do método, mas a indicar os conteúdos e o modo
como o professor deveria proceder no ensino de cada um deles.
20
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Em relação à seleção de conteúdos para a escola elementar (primary e
grammar schools), Wells sugeria um conjunto de atividades mais que
matérias propriamente ditas envolvendo instrução oral, repetição de versos e máximas, leitura e soletração, cálculo, desenho e escrita e exercícios
físicos. A partir da 5ª série (primary department) acrescentava o ensino da
geografia mediante o uso de livro texto e exercício oral, além de declamações, recitações e aritmética mental. A gramática era introduzida na 3ª
série (grammar department) e composição e história na 2ª série.
Nas orientações metodológicas para o ensino das matérias são perceptíveis as novas concepções em voga. Em todas as séries, Wells deu
grande ênfase à instrução oral que na época se contrapunha ao uso do
livro didático e abarcava as lições sobre as coisas comuns. As lições orais
tendo como base as lições de coisas (object lesson) deveriam ser ministradas diariamente, em todas as séries, com duração de 15 minutos. A propósito das lições de coisas, o autor alertava em nota de rodapé a ausência de
um sistemático e progressivo programa de lições, pois muitos professores
conduziam tais exercícios sem terem em vista um objetivo determinado.
Nas lições de leitura, recomendava a observância da compreensão. Na
soletração, dever-se-ia dar especial atenção à silabação em exercícios orais
e escritos. Na escrita, o professor poderia aplicar exercícios simultâneos
para toda a classe utilizando o quadro negro. Os exercícios de composição requeriam cuidados dos professores na hora da recitação para desenvolver hábitos de leitura com precisão no uso da linguagem: “Os professores devem ser claros e precisos em suas próprias expressões e enfatizar
a importância dos alunos selecionarem, todo o tempo, as melhores palavras e frases, para que assim, possam formar o hábito de usar boa linguagem no início de suas vidas” (Wells, 1862, p. 23).
Para o ensino da moral e maneiras o professor deveria utilizar pequenas histórias e exemplos: “Boa moral está intimamente ligada a boas
maneiras e os professores devem aproveitar cada oportunidade para inculcar lições de diligência e cortesia” (idem, ibidem)5.
5.
O gênero indicado por Wells era a anedota (anecdote) que em língua portuguesa
corresponde ao mesmo sentido na língua inglesa, isto é, um relato sucinto de um
fato jocoso ou curioso ou particularidade engraçada de figura histórica ou lendária.
Ver Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
21
O manual de Wells demonstra como foi possível conciliar o modelo
de escola graduada com os princípios do método intuitivo, isto é, com
as idéias de renovação pedagógica fundamentada na educação dos sentidos e na criança como centro do processo educacional. Em realidade,
Wells incorporou apenas aquilo que era compatível com um programa
de ensino baseado na lógica dos conteúdos. No caso, utilizou a instrução oral como espaço curricular para as lições de coisas e acrescentou
nas indicações metodológicas os princípios do ensino ativo e concreto.
O método intuitivo nas escolas primárias
norte-americanas
Nos Estados Unidos, o método intuitivo foi denominado object
teaching6. De acordo com a Cyclopaedia of education, o termo compreendia:
[...] um método de instrução no qual os objetos são empregados como meio
para desenvolver as faculdades dos jovens alunos com um triplo objetivo:
(1) cultivar os sentidos; (2) treinar as faculdades perceptivas de forma que a
mente possa armazenar idéias com clareza e nitidez e, (3) simultaneamente
com isto, cultivar o poder de expressão pela associação com as idéias formadas pela linguagem apropriada [1877, p. 658].
O verbete da Cyclopaedia esclarecia que o mérito pela introdução
do object teaching como um método especial de instrução elementar
podia ser atribuído a Pestalozzi, mas os princípios do método podiam
também ser encontrados em outros autores como Comenius, Locke,
6.
Na Inglaterra, os princípios pedagógicos de Pestalozzi foram vulgarizados pelo
termo object lesson. Os Estados Unidos utilizaram o termo inglês object lesson e
difundiram outra expressão, isto é, object teaching. Na França, de acordo com
Buisson, a expressão leçon de choses foi popularizada por Mme Pape-Carpantier a
partir da Exposição Universal de 1867, mediante a tradução literal das palavras
object teaching, object lessons, oriundas do senso prático dos norte-americanos.
Ver Buisson, 1887.
22
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Rousseau, Basedow, Rochou, entre outros. Afirmava ainda que
Pestalozzi, inspirado pela leitura de Emílio de Rousseau no estudo das
fases do crescimento mental, chegou à conclusão de que o ensino de
seus dias estava totalmente errado, pois violava as leis do desenvolvimento mental. Essas leis, na opinião de Pestalozzi, consistiam em que:
(1) o conhecimento das coisas pudesse preceder o das palavras; (2) para a
aquisição desse conhecimento, o único agente efetivo no primeiro estágio de
desenvolvimento mental era os sentidos, principalmente a visão, (3) os primeiros objetos a serem estudados pelas crianças deveriam ser aqueles que
estivessem no seu entorno e somente em suas formas e relações simples; e
(4) tendo esses objetos como centro, a esfera do conhecimento poderia ser
alargada de forma gradual mediante a observação de objetos distantes
[Cyclopaedia of education, 1877, p. 342].
Nos Estados Unidos, o termo object teaching foi empregado em
vários sentidos: de forma mais ampla para referir-se aos princípios gerais para a educação formulada por Pestalozzi e outros, isto é, um método geral para o ensino e, em sentido mais restrito, como um conteúdo
particular do programa do ensino primário incluído na rubrica instrução
oral ou lições de coisas.
Em realidade, nesse país, a difusão das idéias de Pestalozzi iniciouse nas primeiras décadas do século XIX, mediante a publicação de relatórios oficiais e traduções de artigos e obras do referido educador e de
seus discípulos. Os pioneiros em defesa da implantação do sistema público de ensino, nas décadas de 1840 e 1850, utilizaram politicamente
os princípios do método intuitivo para reforçar o programa da reforma
educacional fundamentado na articulação entre a criação de uma nova
escola e o ideal de formação do cidadão republicano para viver numa
sociedade em processo de modernização (urbanização/industrialização).
Horace Mann, por exemplo, buscou convencer a opinião pública em
relação à superioridade do sistema escolar prussiano pelo fato de utilizar os métodos renovados de ensino7.
7.
Ver, por exemplo, Mann, 1844.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
23
Henry Barnard foi outro entusiasta das idéias de Pestalozzi. Nas páginas de sua monumental revista The American Journal of Education8,
dedicou-se à publicação de traduções de obras de Pestalozzi como Leonard
and Gertrudes e How Gertrudes teach her children; e ainda, publicações
de biografias desse educador, relatórios de contemporâneos e ex-alunos e
debates em relação à aplicação do método nos países europeus e nos Estados Unidos. Boa parte desse material publicado na revista foi posteriormente organizado em três livros editados por Barnard: Pestalozzi and
Pestalozzianism: life, educational principles and methods of John Henry
Pestalozzi; with biographical skeches of several of his assistants and
disciples (1862); Object teaching and oral lessons on social science and
common things, with various illustrations of the principles and practices
of primary education as adopted in the model and training schools of
Great Britain (1860); Pestalozzi and his educational system (1874).
Mas de fato, object teaching tornou-se popular nos Estados Unidos
entre 1860 e 1880. Nesse período, várias iniciativas de adoção do método foram implementadas como a experiência de Edward Sheldon em
Oswego9, a introdução das lições de coisas nos programas de ensino das
8.
9.
De acordo com o próprio editor, a revista destinava-se exclusivamente à história,
discussão e estatística de sistemas, instituições e métodos em educação em diferentes países e especialmente às condições do ensino nos Estados Unidos (Prefácio, v. I, 1855).
Os historiadores da educação norte-americana atestam a pequena circulação dessa
revista, especialmente, entre os professores, contudo, ressaltam a sua importância
na literatura educacional servindo como uma enciclopédia sobre educação. Num
minucioso estudo sobre a revista, Thursfied considera os 31 volumes publicados
entre 1855 e 1881, o mais ambicioso projeto jornalístico empreendido e sustentado
por um norte-americano individualmente no século XIX. Sobre essa revista ver
Thursfield, 1945.
Nas décadas de 1860 e 1870, Oswego foi considerada a meca da renovação do
ensino nos Estados Unidos. A escola normal – Oswego Primary Training School,
dirigida por Edward Sheldon – foi responsável pela formação de alunos vindos de
diferentes regiões do país e até mesmo do exterior. Além disso, serviu de referência
para a criação de outras escolas normais com a mesma organização e currículo fundamentados no object teaching. Profissionais da educação norte-americanos viam
em Oswego a consolidação dos seus ideais de renovação do ensino. Norman A.
Calkins, superintendente das escolas públicas de New York, em comunicação apresentada na reunião da National Teachers’ Association, em 1862, sobre a história do
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
escolas públicas primárias, a publicação de manuais didáticos e a multiplicação de artigos em periódicos educacionais. Ao longo do século XIX,
os princípios de Pestalozzi consubstanciados no método intuitivo foram
apropriados de forma peculiar para a sua adoção na escola primária graduada. Os manuais de lições de coisas tiveram um papel importante
nessa tradução.
Os manuais de lições de coisas produzidos
nos Estados Unidos
Em 1861, Norman Allison Calkins10 publicou Primary object
lessons, for training the senses and developing the faculties of children.
A manual of elementary instruction for parents and teachers, um dos
primeiros e bem-sucedidos manuais de object lessons escrito por um
educador norte-americano. O manual de Calkins teve uma projeção significativa na época. Em 1870 chegou à 15ª edição e dez anos depois à
40ª edição. A obra foi traduzida em outras línguas, duas versões em
espanhol (Montevideo, 1872, 1878), uma em português (Brasil, 1886) e
uma versão japonesa (1877), e foi citada em inúmeros manuais didáticos contemporâneos, especialmente, nos programas do ensino primário
adotados nas escolas públicas de New York em que Calkins trabalhou
como superintendente assistente por mais de três décadas e em programas de outros estados do norte dos Estados Unidos11.
object teaching, ressaltou o sistema de Oswego como o primeiro esforço sistemático de introdução do método nos Estados Unidos e o melhor exemplo da possibilidade de adoção do mesmo (Calkins, 1862, p. 643). Sobre o movimento de Oswego
ver Dearborn, 1925 e Barlow, 1977.
10. Norman Allison Calkins (1822-1895) iniciou sua carreira no magistéiro primário
em 1840 em Castile, New York. Foi assistente superintendente das escolas primárias da cidade de New York entre 1862 e 1895. Concomitante a essa atividade
atuou como professor de princípios e métodos de educação nas classes de sábado
da New York Normal School entre 1864 e 1882. Calkins teve participação ativa na
National Education Association como presidente do departamento de escolas elementares (1873), presidente do departamento de superintendentes escolares (1873)
e tesoureiro (1883-85), presidente (1886) e diretor da mesa curadora (1886-95).
11. Além desse manual, Calkins publicou outras obras, tais como: How to teach phonics:
ear and voice training by means of elementary sounds of language (1889); Prang’s
tecnologias de ordenação escolar no século xix
25
Contudo, na historiografia contemporânea da educação norte-americana, a obra de Calkins tem sido sistematicamente ignorada como, de
resto, tudo o que diz respeito a object teaching e ao movimento de renovação pedagógica de meados do século XIX.
Quando Calkins publicou Primary object lessons, já havia outros
manuais de lições de coisas em circulação naquele país, principalmente,
os manuais de Elizabeth Mayo: Lessons on objects: their origin, nature
and uses for the school and families (1831) e Lesson on shells: as given
in a Pestalozzian school at cheam, survey (1832)12.
Em realidade, esses dois trabalhos de Elizabeth Mayo tornaram-se
obras muito populares entre os professores primários britânicos e norteamericanos. Nesses manuais, o primeiro voltado para o ensino de crianças entre 6 e 8 anos e o segundo para crianças entre 8 e 10 anos, Elizabeth
Mayo desenvolveu uma interpretação própria das idéias de Pestalozzi13.
A autora buscou a aplicação prática dos princípios educacionais desse
educador preservando a idéia, mas mudando a forma como explica
Charles Mayo:
Profundamente convencido das verdades das concepções de Pestalozzi e prevenido contra seus erros por meio de longas e atualizadas observações de suas
conseqüências, o escritor destas notas introdutórias determinado a tentar intro-
natural history senses for children (1878); First reading: from blackboard to books,
with directions for teachers; to accompany Calkin’s reading cards (1883); Teaching
colors, notes from lectures delivered before primary teachers at the Saturday session
of the New York Manual College (1877); How to Teach: a graded course of
instruction and manual of methods for the use of teachers (publicado juntamente
com Henry Kiddle e Thomas Harrison em 1873).
12. Várias edições dos manuais de Mayo foram publicadas nos Estados Unidos. Lessons
on Objects teve uma edição em Boston pela Carter Hendell Bascock em 1831, duas
em Philadelphia: uma pela Haswell & Barrington em 1839 e outra pela J. B.
Lippincott em 1857, outra em Chicago pela Ivison/ Blackeman em 1863. Lessons
on Shells foi publicado pela Peter Hill & Co, New York em 1834.
13. Charles Mayo passou três anos na escola de Pestalozzi em Yverdon (1819 a 1822)
estudando o seu método. De volta à Inglaterra buscou implantar o método nas
escolas de Epson e Chean. Mayo contou com a colaboração de sua irmã Elizabeth
Mayo que se tornou a principal responsável pela publicação de manuais didáticos
e experimentação prática dos princípios de Pestalozzi (Cf. Brown, 1986).
26
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
duzir seu método na Inglaterra, preservou religiosamente a idéia, mas adaptou a
forma das mesmas às circunstâncias nas quais elas podem ser utilizadas14.
Essa aplicação prática consistia em oferecer aos professores lições
sobre objetos, apresentados na forma de perguntas e respostas, compreendendo séries graduadas tendo em vista o grau de dificuldade e a progressão gradativa do aluno.
As lições sobre objetos diversos – vidro, couro, açúcar, esponja,
água, pão, sementes, leite, arroz, sal, caneta, cadeira, chave, copo, tesoura, maçã, cola, mel, manteiga, ferro, agulha, pimenta, óleo, vinagre,
tinta, vela, lã, chumbo, ouro, prata, cobre, entre outros – eram apresentadas aos professores enfatizando a observação e tendo em vista o desenvolvimento da linguagem, número e forma. Cada passo deveria ser
iniciado e controlado pelo adulto e muitas lições enfatizavam um aspecto moral. Dessa forma, Elizabeth Mayo oferecia aos professores uma
estratégia prática para a adoção do método moderno de ensino. A liçãomodelo compreendia, portanto, num instrumental a ser colocado em execução. Isso, por um lado, explica o sucesso dos manuais uma vez que
podiam ser tomados como um guia da ação. Por outro lado, a ênfase na
orientação e conduta do professor acabou resultando em um formalismo
abstrato, em recitações monótonas de lições sobre objetos (Brown, 1986).
Não obstante, à medida que as idéias de renovação do ensino propagavam-se nos Estados Unidos crescia a demanda pelos manuais de lições de coisas motivando a reimpressão e novas edições ampliadas e
reescritas dos textos em circulação, além do aparecimento de novos
manuais. Os manuais de Elizabeth Mayo e o trabalho desenvolvido pela
Home Colonial Society foram uma referência importante15. No início da
década de 1860, vários educadores norte-americanos dedicaram-se a
esse empreendimento. Em 1860, Henry Barnard organizou em forma de
14. Charles Mayo, no prefácio do livro de Elizabeth Mayo Lessons on objects, edição
de 1843, p. VI.
15. A Home and Colonial Infant School Society iniciou, em 1836, suas atividades destinadas à formação de professores. A atuação de Charles Mayo e James Greeves
contribuiu para que a Sociedade se tornasse um centro de referência e de difusão
das idéias de Pestalozzi na Inglaterra e suas colônias.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
27
livro vários textos sobre object teaching publicados na década anterior
na revista American Journal of Education. O livro foi intitulado: Object
Teaching and oral lessons on social science and common things, with
various illustrations of the principles and practice of primary education
as adopted in the model and training schools of great britain. Em 1861,
Norman A. Calkins publicou Primary object lessons e em 1862, Edward
Sheldon publicou A manual of elementary instruction, for the use of
public and private schools, and normal classes, containing a graduated
course of object lessons for training the senses and developing the
faculties of children. Em 1863, Sheldon publicou uma versão ampliada
da 14ª edição do manual de Elizabeth Mayo que havia sido publicada
em Londres em 1855, intitulada Lessons on objects, graduated series,
designed for children between the ages of six and fourteen years,
containing also, information on common objects.
Na edição norte-americana, Sheldon reordenou as lições e ampliou
o manual: “Um número de lições foram omitidas e outras substituídas,
muitas informações sobre objetos comuns foram acrescentadas. No trabalho original havia apenas poucas Lições Modelo; nesta, um grande
número adicional foi inserido” (Sheldon, 1863, p. 3).
No prefácio da primeira edição de Primary object lessons, Calkins
inseria sua obra entre os esforços dos educadores da época em transformar princípios filosóficos postulados por Comenius e Pestalozzi em atividades de ensino16. Dessa forma, diferenciava princípios de suas formas de aplicação. Enquanto os primeiros eram válidos e imutáveis, as
formas de aplicação poderiam ser modificadas. Segundo o autor, a finalidade de seu manual era contribuir para uma radical mudança no sistema de instrução primária dos Estados Unidos, uma mudança que substituía o exercício da memória pelo desenvolvimento dos poderes de
observação, da educação artificial para o plano natural. Para a preparação
da obra, dizia ter consultado outros trabalhos, tais como o de Wilderspin,
16. Para as considerações feitas na sequência do texto utilizamos a 40ª edição revisada
do manual de Calkins, Primary object lessons for training the senses and developing
the faculties of children: a manual of elementary instruction for parents and teachers.
Nessa edição encontram-se os prefácios escritos pelo autor para a 1ª, 15ª e 40ª
edições.
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Stow e Currie na Europa e o praticado pela Home and Colonial School
Society de Londres, especialmente os manuais de Elizabeth Mayo. Contudo, explicitava em que o seu manual se diferenciava dos demais:
O trabalho difere de outros trabalhos preparados para professores nesta
importante característica: ele ilustra como os professores devem proceder
em cada passo sucessivo no desenvolvimento da mente das crianças. Dizendo o que deveria ser feito, procede a mostrar como fazer por meio de exemplos ilustrativos [Calkins, 1885, grifos do autor].
Assim como outros educadores da época, Calkins acreditava que o
método intuitivo consistia em princípios válidos, verdadeiros e apropriados para a educação das crianças. O desejo de controlar a prática
educativa fazia parte de um mesmo raciocínio e inteligibilidade, isto é,
estabelecida a existência de um método verdadeiro de educação, cabia
aos professores aplicar com acuidade os princípios e regras do método.
Ensinar e aprender eram vistos como processos racionais passíveis de
orientação, direcionamento, regulação e controle: “Quando um professor torna-se familiarizado com um sistema correto de leis da instrução,
todas as dificuldades relacionadas a que método deve ser usado em qualquer caso desaparecerão rapidamente” (Calkins, 1885, p. 23).
No entanto, princípios e métodos eram ressaltados como aspectos
distintos da ordenação do trabalho docente. De acordo com Calkins:
“um princípio de ensino é uma lei baseada nas condições da mente e dos
materiais a serem ensinados. Um método de ensino é simplesmente a
forma ou modo de apresentar as matérias de instrução” (Calkins, 1885,
p. VI). Método de ensino referia-se, portanto, à indicação prática, ao
modo de transmissão de conteúdos mais voltados para os procedimentos e atividades de ensino, concepção bastante difundida na época, aplicada aos conteúdos, isto é, métodos de ensino da leitura, da escrita etc.
Calkins dizia ter devotado o seu trabalho quase inteiramente aos métodos de ensino desenvolvendo no manual uma série de lições graduadas
em diferentes conteúdos objetivando, dessa forma, levar os professores
a entenderem os princípios sobre os quais recaíam corretamente os métodos de instrução.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
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Nas representações dos profissionais do ensino primário norte-americanos na época, o como ensinar compreendia uma questão fundamental. Conhecer as matérias que se vai ensinar era considerado um pressuposto básico do trabalho docente. Porém, a adoção do método correto
de ensino era a garantia do sucesso da atividade educativa. E dessa forma, o método transforma-se numa tecnologia de eficiência escolar.
Em 1886, no discurso proferido na sessão de abertura da reunião
anual da National Education Association, Calkins afirmou mais uma
vez a concepção sobre a renovação do ensino predominante nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX dando ênfase aos processos de aquisição do conhecimento:
A demanda atual na educação não consiste tanto em reivindicar o predomínio de muitas e novas matérias, mas sim o desenvolvimento completo dos
poderes da mente e a formação de hábitos de investigação e pesquisa que
marcam a grande diferença entre aqueles cujas memórias tornaram-se principalmente depósitos para o que outras pessoas dizem ou escrevem e aqueles
que foram ensinados a observar, a pensar, e a descrever e que aprenderam
onde e como obter conhecimento desejado. [...] Hábitos corretos de pensamento, de estudo, de investigação, a possibilidade de obter conhecimento de
objetos que estão no meio, junto com a habilidade de aplicar conhecimentos
proveitosamente nos afazeres da vida, constitui o modelo para a educação de
hoje [Calkins, 1886, p. 75].
Portanto, continuava Calkins, havia duas qualificações necessárias para assegurar o sucesso dos professores: conhecer e conhecer
como fazer: “O conhecimento é uma enorme capacidade que todos
deveriam empenhar-se em obter; saber como fazer é a arte mais elevada que se torna uma garantia permanente para uso de métodos bem
sucedidos de ensino, e para a realização dos resultados mais valiosos
no treino educacional” (Calkins, 1886, p. 75, grifos do autor). Calkins
falava para educadores num contexto social e educacional muito diferente da década de 1860 quando ele escrevera pela primeira vez seu
manual Primary object lessons. Nas décadas finais do século XIX, o
método object teaching ainda ecoava no ensino primário norte-ameri-
30
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
cano em manuais didáticos e artigos em periódicos. Mas já não exercia a atração de outrora.
No início do século XIX, os manuais de lições de coisas inauguraram um novo tipo de literatura pedagógica, isto é, textos didáticos voltados para a orientação de pais e professores na prática de exercícios
para o treino dos sentidos e desenvolvimento das faculdades infantis
(Brown, 1986). Pelas suas próprias características, isto é, o de serem
instrumentos auxiliares do ensino, portadores de estratégias de orientação da prática educativa, esses manuais tornaram-se um dos principais
veículos de difusão do método intuitivo, mesmo que em diferentes
enfoques (Valdemarin, 2004).
O deslocamento do foco da transmissão de conhecimentos para os
processos de aquisição do conhecimento é revelador da emergência de
novas concepções sobre ensinar e aprender vinculadas à novas
tecnologias de governo da criança e do professor. O ensino ativo, concreto e racional fundamentava-se em práticas produtivas de governo,
em técnicas sutis de disciplina do corpo e da mente. Da observação
acurada à formação das idéias claras e distintas pressupunha-se um
intrincado processo de regulação do intelecto e dos sentidos. A educação seguindo as leis da natureza punha em funcionamento uma engenharia de minuciosos controles e relações de poder. O discurso educacional de meados do século XIX compreendia, pois, a instituição dessas
novas práticas racionalizadas de governo.
Posta a distinção entre princípios e métodos, cada vez mais as lições
de coisas foram concebidas como procedimento-atividade restrito às lições sobre os objetos ou lições sobre coisas comuns (lessons on common
things). Os manuais de lições de coisas ingleses foram os primeiros a
associarem object teaching às lições orais e ao ensino dos objetos comuns. Por exemplo, o livro publicado por Henry Barnard Object teaching
(1860), adaptado ao trabalho desenvolvido no Model and training
schoools of great Britain fazia essa associação17.
17. Nesse livro, consta artigo de Thomas Morrison intitulado Oral lessons on common
Things. Nele o autor afirma que a instrução oral poderia ser empregada juntamente
com todos os ramos ordinários da educação escolar. Tal instrução poderia recair
sobre lições orais acidentais sobre história natural e ciência natural.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
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Muitos educadores norte-americanos passaram a associar essas lições com a instrução oral muito em voga na época. A noção de instrução
oral significava a transmissão de conteúdos sem o uso do livro didático:
É um termo técnico em uso nas escolas comuns dos Estados Unidos para
referir-se à instrução, sem o uso de livro-texto, sobre a natureza e uso dos
objetos comuns, e também sobre os elementos das ciências naturais. Em certo
sentido, toda instrução dada pelo professor na sala de aula [...], pode ser declarada como oral. Ela é distinta das lições de coisas porque ela não se restringe a
ensinar mediante objetos sensíveis [Cyclopaedia of education, 1877, p. 668].
Renovar o ensino pelo uso do método object teaching ou object
lesson significava para o professor primário um enorme esforço de
redefinição de suas concepções de educação e de suas práticas de ensino. Os manuais ofereciam modelos de lições ou orientações acerca dos
procedimentos, mas cabia aos professores a tarefa de reorganizar as lições de coisas em planos de estudos seguindo a racionalidade da escola
graduada. Embora os modelos de lições se restringissem à exploração
dos objetos, a configuração das lições pressupõe o ensino em classes
graduadas e a simultaneidade das atividades e exercícios. No modelo de
lições de coisas, o professor apresenta o objeto para a classe e conduz
mediante perguntas a observação e as respostas individualizadas ou coletivas dos alunos. Dessa maneira, as características da escola graduada,
indicadas por Wells em 1862, eram mantidas: os alunos são divididos
em classe de acordo com o grau de adiantamento, todos os alunos de
uma classe assistem à mesma aula, isto é, ao mesmo conteúdo, todos
fazem os mesmos exercícios, observam os objetos ou gravuras e respondem as perguntas propostas pelo professor simultaneamente, todos
utilizam os mesmos livros18.
18. Isso pode ser observado claramente no livro Devoir de Écoliers Américaine, organizado por Ferdinand Buisson e apresentado ao Ministério da Educação francês
como anexo do relatório sobre a Exposição de Filadélfia (1876). O livro reunindo
exemplares de trabalhos de alunos exibidos na Exposição Universal de Filadélfia,
contém tipos ordinários dos principais gêneros de exercícios de todas as séries e
matérias do ensino primário, inclusive de lições de coisas. Ver Buisson, 1881.
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Em que pese a relevância dos manuais de lições de coisas para conformação do campo do magistério primário norte-americano, tudo leva
a crer que os programas de ensino (course of studies) atuaram como
dispositivos de normatização mais eficazes para ordenação da escola
primária tanto para os professores quanto para os órgãos da administração do ensino. Ao prescreverem o que e como ensinar, os programas
estabeleceram uma dada concepção sobre a adoção do método intuitivo
nas escolas norte-americanas, isto é, alguns princípios foram incorporados como indicações metodológicas inovadoras para o ensino das matérias e as lições de coisas passaram a figurar como parte do programa,
uma rubrica entre os demais conteúdos, como se verá a seguir.
Os programas de ensino e a consolidação
de um modelo de racionalização curricular
Em 1873, Norman A. Calkins juntamente com outros dois superintendentes das escolas públicas de Nova York, Henry Kiddle e Thomas
Harrison, publicaram How to teach. A graded course of instruction and
manual of methods for the use of teachers. Em realidade, como afirmam
os autores no prefácio da edição, tal publicação correspondia ao Manual
de instrução e disciplina elaborado anteriormente por eles para orientar o
trabalho dos professores nas primary e grammar schools da cidade.
A análise desse manual consiste em um interessante exemplo de
como os profissionais da educação norte-americanos conciliaram os
princípios do object teaching com a racionalidade do curso graduado de
instrução.
Na década de 1870, o sistema graduado de ensino tornara-se de conhecimento comum e não necessitava mais de esclarecimentos e justificativas acerca de sua funcionalidade e relevância. No entanto, outro
problema permanecia, isto é, a necessidade de sistematização do plano
de estudos. Por isso, a discussão sobre conteúdo e método estava no
centro da discussão do manual How to teach. Questões como seleção,
distribuição e ordenação (seqüência) dos conteúdos mobilizaram a atenção dos três superintendentes:
tecnologias de ordenação escolar no século xix
33
O terreno a ser coberto em um completo plano escolar de educação, embora elementar, é bastante extenso, e portanto necessita ser dividido e subdividido de acordo com certos princípios estabelecidos. Dessa maneira a mente
do instrutor não desviará do que deve ocupar sua atenção imediata, pela necessidade de considerar e escolher o melhor meio para supri-lo [Kiddle et al.,
1873, p. 3].
Para os autores, o sucesso do novo modelo escolar dependia de um
plano de estudos e de uma orientação segura para os professores, um
guia, elaborado por educadores como eles, com grande experiência na
prática de ensino. “Este curso, com suas divisões em graus, constitui,
entretanto, somente a estrutura para uma série de sugestões práticas destinadas a orientar os professores no desempenho de suas obrigações –
ou seja, em certa medida, mostrar a eles o que ensinar, da mesma forma
que como ensinar” (Kiddle et al., 1873, p. 4, grifos dos autores).
Conteúdo e método foram concebidos nesse manual como atividades essenciais do trabalho docente consistindo, também, em questões
centrais da formação dos professores. As considerações que os superintendentes fazem na introdução do manual revelam as concepções em
voga na época em relação à profissionalização do magistério. De acordo com os autores, todo professor deveria conhecer as leis da mente e
seu desenvolvimento. Era importante, pois, que os professores estivessem familiarizados com as idéias gerais da ciência mental. Mas o conhecimento do método não era suficiente, era também preciso que eles
estivessem familiarizados com as matérias a serem ensinadas, o que
significava o conhecimento das disciplinas (conteúdos) e a forma de
ordená-las. A propósito, afirmavam: “a mais importante indagação em
relação à maneira correta de apresentar as matérias deve ser dividí-las
em tópicos, explicar como esses tópicos devem ser organizados e que
ordem devem seguir [...]” (Kiddle et al., 1873, p. 15).
Comparado com o manual de Wells (1862), How to teach compreende um texto mais elaborado e sistematizado. O curso graduado de estudos proposto pelos superintendentes da instrução utiliza técnicas ainda
mais racionais de ordenação do conhecimento. Como em The graded
school, o curso graduado para o ensino elementar foi dividido em dez
34
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
graus ou séries – cinco para a primary school e cinco para a grammar
school19. Nesse manual, o tempo de duração de cada série é variável:
para as cinco séries da primary school os autores sugeriam cinco meses
de duração, para a 5ª e 4ª séries da grammar school cinco meses, para a
3ª série de 8 a 10 meses, para a 2ª série 10 meses e para a 1ª, 12 meses.
A concepção de ano letivo ainda não estava completamente definida
nessa época. Para cada série, é apresentado em primeiro lugar o programa compreendendo o rol de matérias a serem estudadas. Em seguida,
uma seção extensa intitulada “Como ensinar” contendo as orientações
metodológicas. Para as séries iniciais do ensino primário, o curso de
estudos compreendia linguagem envolvendo leitura, fonética e soletração; aritmética, lições de coisas, desenho e escrita. O ensino de geografia era proposto a partir do 7° grau (ou 3ª série) do ensino primário.
Os conteúdos para o ensino elementar são praticamente os mesmos
propostos por Wells, abrangendo basicamente os saberes elementares –
leitura, escrita e cálculo. No entanto, destaca-se a racionalização do programa pela sua forma esquemática apresentando divisões e subdivisões
das matérias. Mais que uma finalidade cultural, o conhecimento escolar
é concebido como meio para o desenvolvimento das faculdades mentais. Por isso, os professores deveriam ter em mente que os hábitos eram
mais importantes que os fatos: “não é a quantidade de conhecimento
adquirido que constitui o critério de avanço mental, mas o modo de
emprego das faculdades mentais – o hábito de pensamento no qual a
mente organiza suas aquisições e as aplica” (Kiddle et al., 1873, p. 15,
grifos dos autores).
A educação como estratégia de governo da criança é claramente
ressaltada pelos autores: “o controle dos alunos – o treino de suas sensibilidades, suas emoções naturais, seus impulsos – instilando princípios
corretos de conduta – tudo isso constitui a maior parte do que pode ser
chamado de boa educação, mais que o ensino dos rudimentos dos saberes” (Kiddle et al., 1873, p. 20).
19. A ordenação das séries segue a ordem decrescente, isto é, o 10º grau corresponde
ao início do ensino primário e o 1º grau à última série da grammar school.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
35
Ainda na introdução do manual, os autores buscam reafirmar os princípios educacionais em voga posicionando-se contra o verbalismo, a
memorização e o uso abusivo do livro-didático, prática usual nas escolas norte-americanas e condenada freqüentemente pelos profissionais
da educação. A esse respeito, assinalavam o lugar de destaque assumido
pelo método intuitivo (object teaching) e a instrução oral (oral
instruction) nos planos racionais de ensino. Ambos os termos excluíam
o uso do livro didático:
Ensinar pelos objetos é meramente treinar a criança a adquirir conhecimento de uma forma sistemática, pela sua própria experiência, isto é, pelo
exercício regular de suas faculdades de observação. Isso pressupõe a apresentação do objeto real durante os primeiros estágios do trabalho, de maneira
que, as percepções podem passar para a mente e assim as idéias sejam obtidas [Kiddle et al., 1873, p. 19].
Em todos os conteúdos indicados – linguagem, aritmética, lições de
coisas, desenho e escrita –, a referência bibliográfica apontada era o
manual de Calkins, New primary object lessons. Vemos dessa forma,
como os três superintendentes das escolas de Nova York, Kidlle, Harrison
e Calkins procuraram conciliar os princípios do método object teaching
com a racionalidade dos programas pela ordenação dos conteúdos. O
método intuitivo era um princípio geral para o ensino, mas convinha
assegurar nos programas um tempo específico para o treino sistemático
dos sentidos, isto é, para as lições de coisas propriamente ditas.
Dos princípios do método à racionalização
dos conteúdos
Uma das portas de entrada para entender a circulação e apropriação
do método intuitivo como modelo pedagógico nas escolas primárias
norte-americanas é verificar de que forma foi possível conciliar os princípios do método com a racionalização curricular estabelecida nos programas graduados de ensino que passaram a ser adotados amplamente
no sistema educacional dos Estados Unidos a partir da década de 1870.
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Enquanto os manuais de lições de coisas buscavam normatizar e regular o treino dos sentidos, os programas constituíram-se em instrumentos mais abrangentes de regulação do ensino. Adotados como orientação
oficial, esses textos prescritivos eram mais diretivos, tinham uma ordenação mais incisiva e facultavam maior uniformidade e padronização.
Isso pode ser percebido na análise de outros três programas de ensino adotados nas cidades de Buffalo (A manual of the graded course of
instruction for the public schools of Buffalo, with direction and
suggestions to teachers, 1872), Indianopolis (Manual of instruction to
teachers and graded course of study of the public school of Indianopolis,
1876) e Milwaukee (Graded course of the Milwaukee public schools. A
manual of matter and method, 1885).
Com exceção do programa de Buffalo (1872) que se restringe à apresentação dos conteúdos por séries seguido de breves indicações
metodológicas e bibliográficas, os programas de Indianópolis (1876) e
de Milwaukee (1885) seguem o estilo do manual How to teach, isto é,
trazem indicações sobre os princípios fundamentais da educação e indicações metodológicas detalhadas para o ensino das matérias.
O programa adotado na cidade de Indianópolis, Manual of instruction
to teachers and graded course of study of the public school of Indianopolis
(1876), compreende duas partes: uma dedicada à discussão dos princípios do trabalho escolar considerados fundamentais a todos os graus de
ensino e a outra contendo indicações detalhadas dos conteúdos a serem
ministrados aos alunos em cada série.
Em relação aos princípios gerais, o programa destaca as características que deveria ter um professor para alcançar bons resultados no ensino: honestidade, justiça, gentileza, simpatia e atitude firme. Algumas
sugestões para a condução do trabalho eram oferecidas, por exemplo, a
manutenção da limpeza e ordem na sala de aula e no quadro de giz,
(cuidado com) aparência pessoal, uso apropriado da linguagem, preparação cuidadosa do trabalho do dia, meticulosidade, eficiência, comportamento moral adequado.
Em relação aos alunos, o programa buscou caracterizar o desenvolvimento infantil concebendo a criança como um ser composto de corpo
e mente. Conseqüentemente, os professores deveriam dar atenção aos
tecnologias de ordenação escolar no século xix
37
exercícios físicos e ao desenvolvimento das faculdades mentais. Essas
faculdades ou poderes da mente seguiam uma ordem de desenvolvimento: primeiro as faculdades perceptivas (sensação, atenção, percepção), depois as faculdades de retenção (memória, associação, sugestão)
e, por último, as faculdades reflexivas (imaginação, razão, julgamento).
O primado da educação do sentido era reafirmado: “A criança adquire o
conhecimento primeiramente através dos sentidos” (Manual of
instruction – Indianópolis, 1876, p. 8).
O desenvolvimento infantil obedecia a uma ordem: primeiro a percepção ou os poderes de obtenção concreta dos fatos, depois a memória,
a imaginação, a razão e o julgamento. As crianças adquiriam as três
primeiras faculdades na idade de 5 a 8 anos. Nessa idade, o mais apropriado, portanto, era o ensino da leitura, escrita, soletração, desenho,
contagem e combinação de números, uso correto da linguagem, lições
sobre formas, cores etc.
A concepção moderna de educação que ressalta a compreensão e o
significado pressupõe, não obstante, a auto-disciplina da criança, a
apreensão de condutas implícitas, que configuram novos dispositivos
de controle da conduta infantil. Por exemplo, no ensino de caligrafia, o
programa destaca a relevância da habilidade de escrever para o trabalho
no comércio. Não importa como a mão fique, se a 52°, 75° ou 90° do
horizontal, importa a legibilidade, a rapidez, a facilidade. Mas a posição
para escrever é fundamental:
A real fundamentação deste trabalho reside na posição correta. A posição
dá poder para mover a mão e o braço em qualquer direção, no comando da
vontade, sem a qual não se pode escrever com facilidade e graça. Todos os
professores, dos mais baixos e elevados graus, devem ensinar do princípio
ao fim posição correta, movimentos e forma. Devem fazer de cada exercício
escrito uma lição de escrita [Manual of instruction – Indianópolis, 1876, p.
34, grifos do autor].
Após as orientações gerais sobre o ensino de história, geografia,
aritmética, desenho, caligrafia e música, nos quais se ressalta mais a
compreensão e o significado que a memorização, o programa traz o rol
de conteúdos para cada série.
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
O programa adotado na cidade de Milwaukee, Graded course of the
Milwaukee public schools. A manual of matter and method (1885), preocupou-se em oferecer orientações metodológicas detalhadas para cada
uma das matérias de cada série. Na introdução da 2ª edição, o superintendente WM. E. Anderson apontava como finalidades do manual discriminar o conteúdo e instruções para cada série desde o kindergarten à
high school; apresentar para cada porção de trabalho referente a cada
conteúdo, poucas e resumidas sugestões sobre o método apropriado a
cada conteúdo e à idade e capacidade dos alunos, e, por último, divulgar
as regras do school board sobre classificação e promoção de alunos,
conservação de arquivos, de documentos e relatórios de alunos.
Os conteúdos estabelecidos para as escolas elementares de
Milwaukee eram os mesmos dos demais programas assinalados anteriormente, ou seja, leitura, soletração, escrita, aritmética, exercícios físicos. A geografia era introduzida na 2ª série e lições orais e object
teaching é indicado apenas na 1ª série.
Os princípios do object teaching são assinalados brevemente e em
seguida o programa apresenta um rol de lições progressivas de instrução
oral e sobre objetos adaptadas para todas as séries. Mais uma vez, o manual de Calkins New primary object lessons é a indicação principal.
A análise dos três programas citados mostra a uniformidade da seleção cultural para as escolas elementares norte-americanas na segunda
metade do século XIX. Essa seleção envolvia basicamente os saberes
elementares: ler, escrever, contar, além de lições morais, exercícios físicos e noções de geografia nas séries finais do ensino primário. O treino
dos sentidos mediante as lições de coisas também se encontra presente
em todos os manuais correspondendo à iniciação ao estudo das ciências
físicas e naturais. Os princípios do método intuitivo são incorporados
nas indicações metodológicas para o ensino das matérias e as lições de
coisas adquirem um sentido mais restrito tornando-se mais uma matéria
do programa. Em realidade, tais lições aproximam-se muito da concepção de instrução oral, um modo de ensinar que privilegia a exposição
oral do professor e o uso de objetos em substituição ao uso do livro
didático.
tecnologias de ordenação escolar no século xix
39
A organização do currículo por disciplinas (matérias) vai se impondo rapidamente no âmbito do ensino elementar e amalgamando práticas de transmissão dos saberes elementares (leitura, escrita e cálculo)
com os rudimentos das ciências sociais, físicas e naturais. O aspecto
lógico sobrepõe-se ao psicológico. Os programas ratificaram o princípio da divisão e fragmentação do conhecimento e esquadrinharam a
ação pedagógica em calendários, horários, séries, unidades, lições. Nesse
processo a renovação pedagógica pelo método intuitivo revela-se como
mais uma face do processo de racionalização e regulação do ensino
primário.
Nas décadas finais do século XIX, o termo object teaching, tão proeminente em décadas anteriores caíra em desuso no discurso educacional
norte-americano. Substituído por concepções consideradas mais científicas, especialmente pela difusão das idéias de Herbart e a constituição
da psicologia como campo de conhecimento, object teaching foi relegado ao passado, considerado uma posição ultrapassada na educação norte-americana, vinculada a concepções educacionais românticas postuladas por pensadores como Pestalozzi, Rousseau, Comenius, entre outros.
O pensamento científico emergente negou, de certa forma, sua
vinculação com essa tradição romântica e buscou instaurar-se como o
novo em educação (new education) opondo-se não ao movimento de
renovação pedagógica prevalecente em meados do século XIX, no qual
object teaching fora uma de suas mais importantes expressões, mas à
educação memorística e verbalista considerada tradicional. O apagamento da memória foi uma estratégia discursiva amplamente utilizada
na disputa pela hegemonia no campo educacional nesse momento. A
relação entre a renovação do ensino pelo método intuitivo no século
XIX e o movimento do progressivismo (Escola Nova) no século XX,
não problematizado pelos educadores norte-americanos na transição do
século XIX para o século XX, é questão importante para se compreender as continuidades e descontinuidades no pensamento educacional. A
questão é também relevante para a investigação da cultura escolar na
discussão sobre apropriação de modelos, instituição e transformação de
práticas.
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
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Recebido: 8 de jun. de 2004
Aprovado: 30 de mar. de 2005
Modificado: 17 de abr. de 2005
Arquivos do Instituto de Educação
Suporte de memória da educação
nova no Distrito Federal (anos de 1930)
Sonia de Castro Lopes*
A Escola de Professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro foi o primeiro curso
superior destinado a formar docentes para a rede escolar “primária” do então Distrito
Federal. Em nosso entender, essa instituição procurou materializar a idéia de que todos
os professores, de todos os graus de ensino, deveriam ter sua formação elevada ao nível
superior, conforme sugestão do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado
na mesma data da criação do Instituto (19 de março de 1932). Este artigo busca compreender aspectos da cultura escolar da nova instituição, por meio do periódico Arquivos do Instituto de Educação. Atribuímos a esse veículo a função de suporte de memória
– produto da estratégia desenvolvida por seus autores com o objetivo de marcar uma
nova cultura pedagógica, legitimando, assim, o movimento renovador do qual o Instituto de Educação seria o locus referencial.
EDUCAÇÃO NOVA; INSTITUTO DE EDUCAÇÃO; ESCOLA DE PROFESSORES;
CULTURA ESCOLAR; MEMÓRIA.
The Education Institute Teacher’s School of Rio de Janeiro was the first superior course
to graduate docents for primary school in Federal District. As we believe, this institution
intended to materialize the idea that every teacher, from every levels of teaching, should
have their formation elevated to the superior level, as suggested in the New Education
Pioneer’s Manifest, published on the same date of the Institute’s foundation (March
19th, 1932). This article intends to understand school culture’s aspects of the new
institution through the journal Arquivos do Instituto de Educação. We impute to this
vehicle the function of memory’s support – product of the strategy developed by their
authors with the purpose of registering a new pedagogic culture, offering legitimacy to
the renovating movement whose reference’s locus would be the Education Institute.
NEW EDUCATION; EDUCATION INSTITUTE; TEACHER’S SCHOOL; SCHOOL
CULTURE; MEMORY.
*
Doutora em Ciências Humanas – (Educação) da Pontifícia Universidade Católica
(PUC-Rio).
44
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Há pouco mais de duas décadas, as pesquisas no campo de história
da educação têm sido revitalizadas em função da ascensão da história
cultural no panorama historiográfico mundial. Por essa ótica, sujeitos,
saberes e práticas escolares têm adquirido centralidade como objetos de
pesquisa, estabelecendo assim as necessárias conexões entre história e
história da educação. Paralelamente a esse alargamento de objetos assistiu-se também a uma diversificação no repertório do corpus documental, permanentemente problematizado e reinterpetado à luz de novos referenciais teóricos.
Tomando como referência a década de 1930 como um momento de
profundas mudanças no cenário político e educacional do país, este artigo procura reconstruir algumas práticas escolares desenvolvidas no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, à luz das inovações pedagógicas
preconizadas pelos educadores ligados ao Movimento da Escola Nova.
Criado em 1932, durante a gestão de Anísio Teixeira à frente da Diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal, o Instituto de Educação
tornou-se uma unidade educacional completa, da qual faziam parte uma
escola secundária nos moldes da reforma implementada pelo ministro
Francisco Campos (decreto n. 19.890/1931) e uma escola de professores, em nível superior, além dos campos de aplicação para as práticas
docentes: a escola primária e a pré-escola.
A nova instituição passaria a ser o centro responsável pela formação
e aperfeiçoamento dos profissionais que deveriam reger as classes de
alunos da rede educacional da cidade e sua escola de professores destacou-se por ser o primeiro curso superior destinado a formar professores
primários no Brasil, ainda que por breve tempo, conforme demonstrado
na tese de doutorado (Lopes, 2003). Esse curso, na verdade, parece ter
sido o ponto de partida para a realização de um projeto mais ambicioso:
a Universidade do Distrito Federal (UDF), cuja criação em 1935 foi
interpretada por Mendonça (2002) como o “ponto culminante de um
processo que se iniciara com a transformação ampliativa da Escola Normal em Instituto de Educação” (p. 30).
Tal acepção permite argumentar que o Instituto não representa uma
simples extensão ou aperfeiçoamento da escola normal, cujas raízes se
encontravam no Império, mas foi criado com o objetivo de fornecer a
arquivos do instituto de educação
45
estrutura de que necessitava a UDF, materializando a idéia veiculada
pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, segundo a qual a formação do magistério em todos os níveis deveria ocorrer em cursos superiores ligados à universidade. Por isso, talvez não seja mera coincidência o decreto de criação do Instituto ter sido assinado na mesma data
em que todos os jornais do país publicavam o referido Manifesto 19 de
março de 1932.
Selecionamos como principal fonte documental para embasar nossa
argumentação o periódico Arquivos do Instituto de Educação, por entender como Catani e Bastos (2002) a imprensa educacional como “um
testemunho vivo dos métodos e concepções pedagógicas de uma época
e da ideologia moral, política e social de um grupo profissional” (p. 5).
A revista, publicada anualmente por iniciativa do diretor geral da instituição, professor Lourenço Filho, destinava-se a divulgar os relatórios
das atividades administrativas e relatos de práticas pedagógicas e culturais, contando com a colaboração de professores dos vários cursos mantidos pelo instituto e alguns alunos da Escola de Professores que se dispunham a narrar experiências e pesquisas ali realizadas.
A hipótese central desta pesquisa baseia-se na idéia de que o referido impresso além da função de objeto cultural (Chartier, 1990), ou seja,
um veículo de práticas escolares e dispositivos normatizadores de saberes destinados a um determinado público, propõe-se também a funcionar como suporte de memória (Nora, 1993), devido à estratégia desenvolvida pelo seu produtor a fim de marcar uma nova cultura pedagógica
entre professores e alunos, com o objetivo de legitimar o movimento
renovador do qual o Instituto de Educação seria o locus referencial.
Vale observar que a revista, sobretudo a publicação de 1934, tem sido,
de forma recorrente, utilizada como referência documental por diversos
trabalhos que elegeram como objeto o Instituto de Educação do Distrito
Federal na década de 1930. Em especial, nos referimos às pesquisas de
Liétte Accácio (1993), que busca realizar uma análise histórica da formação do professor primário no Rio de Janeiro, recuperando a organização e
transformação por que passou o Instituto de Educação desde o projeto
inicial de sua criação com Fernando de Azevedo até a integração à UDF,
e de Diana Vidal (2001), que focaliza fundamentalmente essa escola-la-
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
boratório, na qual realiza uma investigação profunda sobre as práticas de
formação docente, sobretudo as de leitura, inventariando as obras disponíveis na Biblioteca Central de Educação, bem como a freqüência com
que seus usuários a consultavam. Destaca-se ainda o esforço pioneiro de
Léa Viveiros de Castro (1986), que lançou luz sobre as práticas docentes/
discentes desenvolvidas na escola de professores.
Nos limites deste texto, opta-se por dividir a exposição em três momentos: em primeiro lugar, procede-se à análise do periódico, destacando seu papel de lugar de memória material do movimento de renovação
educacional implementado na capital do país; em seguida serão tecidas
considerações acerca de práticas escolares desenvolvidas em algumas
escolas do Instituto de Educação, com destaque para a Escola de Professores e a escola primária, e, finalmente, o relato de fragmentos de algumas dessas práticas por meio das lembranças de antigas alunas-mestras,
que possibilitaram trazer à tona questões nem sempre contempladas nas
páginas dos Arquivos.
Os Arquivos como lugares materiais de memória
A especificidade do título escolhido para o periódico – Arquivos do
Instituto de Educação – demonstra com clareza os objetivos perseguidos por seu criador, pois embora pertencendo ao domínio da materialidade (um arquivo) aparentemente simples registro de dados, esse tipo
de suporte penetra também no terreno do simbólico e do funcional, uma
vez que se propõe a marcar o “seu tempo” como revolucionário, adotando um tipo de linguagem e práticas específicas de um determinado
grupo, autor de um projeto para a nação pela educação renovada. Segundo Nora (1993, p. 22), “a razão fundamental de ser um lugar de
memória é parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar
um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial”.
Para o historiador francês, os lugares de memória surgem a partir do
esquecimento das tradições, dando ensejo à criação de uma memória
voluntária que começa a ser construída em função da inevitável perda
da própria memória. Percebendo a importância de seu cargo e a instabi-
arquivos do instituto de educação
47
lidade do momento em que vivia, Lourenço Filho provavelmente cultivou essa memória como um dever, com um sentido de pertencimento,
segredo da própria identidade individual e coletiva. Incomodava-o o
fato de alguém referir-se ao Instituto pelo nome da instituição que o
precedera. Escola normal era uma expressão que condenava. “Pois não
se estava realizando uma verdadeira revolução? Métodos e nomes antigos indicam uma resistência ao progresso” (Brito, 1959, p. 72).
Durante sua gestão frente ao Instituto, foi publicado o primeiro volume dos Arquivos, composto por três números: 1934 (vol. 1, n. 1),
1936 (vol. 1, n. 2) e 1937 (vol. 1, n. 3). O cuidado com essas edições
revela a estratégia do produtor no sentido de legitimar o projeto de reconstrução do país pela educação, dar-lhe maior visibilidade, tomando
por base a experiência desenvolvida no Instituto de Educação do Distrito Federal, escola laboratório e referencial para todo o país.
O conjunto dos três primeiros volumes apresenta-se em formato
brochura, com dimensões padronizadas (0,17 x 0,22 cm), capa marrom,
com título centralizado em letras pretas, caixa alta, trazendo abaixo, em
letras menores, a referência ao órgão responsável pela publicação: Instituto de Educação do Distrito Federal – Rio de Janeiro – Brasil. O número referente ao ano de 1935 é inexistente, sendo eliminada da publicação de 1936 qualquer referência ao conflito político que resultou na
demissão de Anísio Teixeira da Secretaria de Educação do Distrito Federal, em conseqüência das supostas “afinidades” do educador com o
levante comunista deflagrado em novembro de 1935. Aliás, a sugestão
de continuidade da obra educacional torna-se a característica marcante
do primeiro volume desse periódico, a começar pela numeração contínua de páginas entre os três números e pela temática abordada.
Na ausência de um editorial, os Arquivos trazem impressos no verso da folha de sumário, a seguinte inscrição:
Estes Arquivos têm por fim registrar e divulgar trabalhos e investigações
sobre ensino e organização escolar, realizados no Instituto de Educação, do
Rio de Janeiro, Brasil. Toda correspondência deve ser remetida ao Prof. Lourenço Filho, Diretor do Instituto de Educação, Rua Mariz e Barros, 227, Rio
de Janeiro, Brasil.
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Evidenciava-se assim o caráter modelar da escola-laboratório e a
função de suporte de memória conferida aos Arquivos. Produzido na
gráfica da Secretaria de Educação do Distrito Federal, o periódico possuía divulgação e circulação garantidas em todo o país, pois era enviado
gratuitamente a toda rede escolar do Distrito Federal, bem como às secretarias estaduais de educação. Na verdade, a circulação do periódico
ultrapassava mesmo os limites nacionais, sendo divulgado também no
exterior, como é o caso, por exemplo, da Universidade de Harvard, nos
Estados Unidos, em cuja biblioteca se encontram alguns exemplares,
em bom estado de conservação (Almeida, 1998, p. 224).
Os Arquivos de 1934, que particularmente nos interessam como fonte
documental para elucidar a estrutura e o funcionamento da Escola de
Professores nos dois primeiros anos de existência, contêm duas formas
de suporte: registros escritos e fotográficos. Ambos revelam a intenção
não só de dar publicidade à obra de educação renovada que era
implementada no Instituto de Educação, mas sobretudo registrá-la, perpetuando-a para a posteridade.
A preocupação com a unidade da obra que se estava erigindo pode
ser sentida pela amostra significativa de textos produzidos por representantes dos vários segmentos que compunham o Instituto. Em relação
aos cursos com maior representatividade nesses Arquivos, há uma visível supremacia de artigos produzidos por docentes e alunos da escola de
professores (seis artigos) enquanto a escola secundária se encontra representada em três artigos, a escola primária em dois e o jardim-deinfância em um artigo. Essa amostra é reveladora da missão incorporada pelo instituto – formar mestres através de sua Escola de Professores
em nível superior. A inclusão de experiências desenvolvidas nos demais
segmentos revela a dimensão integradora que se queria imprimir à instituição, uma vez que o papel da escola secundária era absolutamente
relevante, no sentido de selecionar e desenvolver as aptidões dos futuros mestres. Da mesma forma, as escolas de aplicação para o professorado primário – escola primária e jardim-de-infância – consagravam-se
como campos de aplicação e laboratórios para as novas experiências
educacionais que se desejava irradiar para toda a rede escolar do Distrito Federal.
arquivos do instituto de educação
49
Acentua-se, pelo texto dos Arquivos, a idéia de um sistema educacional completo, com oportunidade de educação em todos os graus, em
que o mesmo aluno poderia passar dezesseis anos seguidos (três no jardim-de-infância, cinco na escola primária, seis na escola secundária e
dois ou mais na Escola de Professores). Essa circunstância permitiria
não só a observação contínua da criança e do adolescente, nas fases de
maior interesse para a educação escolar, a conseqüente experimentação
com rigoroso controle dos resultados dos processos didáticos preconizados pela Escola Nova, bem como facilitaria o armazenamento de dados objetivos para o estudo da educação brasileira – um verdadeiro laboratório de práticas e pesquisas educacionais. Além disso, possuía
caráter seletivo, uma vez que o acesso à instituição se dava por concurso de admissão à escola secundária.
Do ponto de vista metodológico, os Arquivos configuram-se como
uma produção textual composta por uma série de aspectos inter-relacionados que dizem respeito às escolhas temáticas, ao tipo de linguagem
utilizada, aos autores (de onde falam e em que contexto histórico), aos
interesses em jogo, objetivos a serem alcançados e, sobretudo, a quem
se dirigem. A esse respeito, Chartier (1990) nos previne que as diferentes maneiras de agir e pensar se articulam aos “laços de interdependência que regulam as relações entre os indivíduos e que são moldados, de
diferentes maneiras em diferentes situações, pelas estruturas do poder”
(p. 25). Portanto, a leitura não se configura como uma relação transparente e direta entre o texto e o leitor, mas é mediada por apropriações
variáveis, construídas pela prática histórica e social.
Tomando como referência a reflexão de Chauí (1982), podemos
qualificar o discurso presente nos Arquivos discurso competente, não
só porque utilizava uma linguagem institucionalmente permitida ou autorizada para legitimar-se, mas sobretudo por sustentar uma ideologia.
De acordo com a autora, “o campo da ideologia é o campo do imaginário, não no sentido de irrealidade ou fantasia, mas no sentido do conjunto coerente e sistemático de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar a realidade concreta” (p. 19).
Assim, a grande virtude do discurso ideológico consiste em transmitir credibilidade exatamente por não dizer tudo o que pretende. Sua
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
força origina-se a partir de uma lógica que Chauí nomeia “lógica da
lacuna”. “Se disser tudo o que pretende, se preencher todas as lacunas,
ele se auto-destrói como ideologia” (p. 22). É exatamente por essa ótica
que o texto dos Arquivos deve ser analisado.
Registro de práticas escolares: a Escola de
Professores
A estrutura e o funcionamento da Escola de Professores talvez seja a
peça central do primeiro número da revista, como sugere o subtítulo do
artigo de Lourenço Filho: “A Escola de Professores do Instituto de Educação – notícia histórica” (Lourenço Filho, 1934).
Nesse artigo, o organizador do Instituto de Educação expõe a estrutura curricular do curso de formação de professores, caracterizado por
disciplinas agrupadas em seções de ensino: biologia educacional e higiene, educação, matérias de ensino, desenho e artes, música, educação
física, recreação e jogos, prática de ensino.
Pelas informações colhidas no periódico, no primeiro ano da Escola
de Professores, estudavam-se, prioritariamente, os fundamentos da educação e no segundo, a aplicação. Compreendendo o último trimestre do
1º ano e parte do 2º ano, para unir a parte teórica à parte essencialmente
prática do ensino, encontravam-se os estudos de caráter intermediário,
pelos quais os princípios da teoria e os problemas da prática eram confrontados.
Como cada ano letivo se dividia em três períodos, no 1º ano cursava-se intensivamente, nos três períodos: a) biologia educacional, b) psicologia educacional; c) sociologia educacional. Paralelamente, por todos os períodos, estendia-se o curso de história da educação, além dos
cursos de artes, música e educação física. Era ministrada, ainda no 1º
ano, uma disciplina denominada introdução ao ensino, apresentando um
panorama geral das questões a serem estudadas, nas quais se destacavam as funções da escola e as competências do professor.
O 2º ano, de aplicação, tinha como ponto alto a prática de ensino,
desenvolvida em três fases: observação, participação e direção de clas-
arquivos do instituto de educação
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se. Mais da metade da carga horária semanal era dedicada à prática e
todas as demais matérias a ela se articulavam. Os estudos intermediários, iniciados no ano anterior, tornam-se intensivos no 1º trimestre do
2º ano e, ao final, os alunos eram levados aos debates das questões propostas pelo curso de filosofia da educação.
Os chamados estudos intermediários compreendiam a seção de matérias de ensino. Tratava-se, na prática, de uma adaptação dos “conhecimentos vistos do ponto de vista do ensino”, peculiar aos Teachers
Colleges norte-americanos e que não se confundiam com didática ou
metodologia. Estudava-se individualmente e com professores especializados: cálculo, leitura e linguagem, literatura infantil, ciências naturais e estudos sociais.
A importância dispensada às matérias de ensino na grade curricular
do curso da escola de professores traduzia-se como produto das reflexões
de Anísio Teixeira à luz do pensamento de John Dewey, para quem o
material básico de estudo não poderia ser colhido de maneira acidental e
desordenada e sim da experiência atual do aluno, em que residem as fontes dos problemas a serem investigados (Dewey, 1971, p. 80). Partindo
desse princípio, Anísio justificava a inclusão dessas matérias no currículo
da Escola de Professores:
As matérias, nas escolas normais, não devem ser ensinadas com o caráter do ensino de nível secundário, nem com o caráter especializado do ensino de nível superior ou universitário. São ensinados do ponto de vista da
profissão do magistério. Se o grau do magistério é o primário, os cursos de
matérias serão cursos especiais em que se ministre o conhecimento da matéria apropriada às crianças da escola primária, e o conhecimento das dificuldades dessas crianças em aprendê-la, dos métodos especiais de organizála, dosá-la e distribui-la para o ensino, e sempre que possível, da história
do seu desenvolvimento e da sua função na educação da infância [Teixeira,
1934, p. 7].
Era fundamental para Anísio que as matérias de ensino partissem de
questões propostas pelos programas da escola primária, que por sua vez
deveriam ser construídos tendo em vista o crescimento da criança e a
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
realidade da vida social1. Essas sugestões do educador serviam para todas as escolas do Instituto e pautavam-se nos pressupostos de Dewey e
Kilpatrick, apropriados por Anísio em um pequeno texto que seria mais
tarde desenvolvido na sua Educação progressiva: uma introdução à Filosofia da Educação2.
Anísio acreditava que “a aprendizagem é intrínseca à vida, funcionando no seu lugar real, no próprio processo de viver”3, enquanto a
aprendizagem escolar é geralmente extrínseca à vida, sem relação com
ela. A escola seria a instituição pela qual a sociedade transmite à criança
a experiência adulta, e para que os resultados educacionais sejam seguros e completos é preciso que haja, por parte do aluno, interesse para
aprender a fim de que a nova atividade seja articulada à sua personalidade que, por sua vez, induzirá e orientará seus esforços para desenvolver
novas atividades. A aprendizagem reside, portanto, na reconstrução da
experiência que se opera por meio desse processo. “O saber acumulado
da espécie humana estimula, pois, a aprendizagem e fornece os meios e
os modelos pelos quais se pode vir a adquiri-la”4.
Em seu entender, a nova pedagogia deveria privilegiar a organização psicológica da criança, de caráter generalista, contrapondo-se à organização lógica do especialista. Por essas novas bases, o ensino deveria ser ministrado através de projetos, em vez de lições. Os projetos não
acompanhariam a seqüência lógica em que a matéria normalmente é
apresentada ao aluno, mas seriam organizados em harmonia com os interesses, tendências e capacidades das crianças. As matérias fluiriam
naturalmente, à medida que fossem necessárias, na seqüência de cada
projeto. Dessa forma, concluía:
1.
2.
3.
4.
Orientação aos professores do Instituto de Educação para o preparo de programas. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC/FGV. AT pi 1932.00.00.
A obra pela primeira vez publicada em 1934 encontra-se na 6ª edição (2000) com o
título: Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola.
Alguns aspectos da teoria de Dewey. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. AT
pi 27/36.00.00/3
Alguns aspectos da teoria de Dewey. Arquivo Anísio Teixeira. CPDOC / FGV. AT
pi 27/36.00.00/3
arquivos do instituto de educação
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A escola deve ter por centro a criança e não os interesses e a ciência do adulto;
o programa escolar deve ser organizado em atividades, unidades de trabalho ou
projetos; o ensino deve ser feito em torno da intenção de aprender da criança e
não da intenção de ensinar do professor; a criança, na escola, é um ser que age
com toda a sua personalidade e não uma inteligência pura, interessada em estudar matemática ou gramática; essas atividades devem ser reais, semelhantes à
vida prática, e reconhecidas pelas crianças como próprias [p. 90].
Passamos a entender a razão de inserir no currículo da Escola de
Professores o que Lourenço chamou de estudos intermediários que, na
verdade, se traduziam nas matérias de ensino, já desenvolvidas no
Teachers College, e que se constituíam na grande inovação implementada
na matriz curricular dos estudos superiores do magistério primário. Tais
matérias, estudadas à luz da ciência articulavam o saber científico da
seção de educação com a prática docente. Não se tratava apenas de transmitir conhecimentos básicos, entretanto não se resumiam a simples métodos, mas um processo global pelo qual o conteúdo e a metodologia
apresentavam-se inseparáveis, rompendo as fronteiras disciplinares, desenvolvidos na forma de projetos, a partir dos interesses do aluno.
De acordo com os Arquivos, inferimos que três características fundamentais informavam a estrutura interna da Escola de Professores: a
feição profissional que se procurou imprimir ao curso, a integração entre os níveis de ensino e a flexibilização – não só das matérias entre si,
mas das seções de matérias em relação umas às outras e da escola em
relação aos demais segmentos em que se dividia o Instituto.
A idéia de unidade – integração entre as várias partes em que se
compunha o Instituto – materializava-se em dois níveis: no critério de
admissão à escola de professores, só permitida aos alunos que ingressassem no 1º ano da escola secundária do próprio Instituto, e na verdadeira articulação que a Escola de Professores operava com a escola elementar – as classes primárias e o jardim-de-infância – verdadeiros
laboratórios em que os professorandos observavam, pesquisavam e praticavam a fundamentação teórica obtida no curso superior. A relação
teoria/prática ali se efetivava, seja pela participação das professoras primárias na prática de ensino, cujo desenrolar acompanhavam meticulo-
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
samente, seja por meio da seção das matérias de ensino, em que as alunas estudavam a fundo os conteúdos a serem ensinados nas classes da
escola primária. Era por essas matérias que a teoria aprendida no núcleo
dos fundamentos da educação se articulava à prática docente.
Os Arquivos nos revelam que na escola de professores os futuros
mestres se instrumentalizavam para abraçar o ofício escolhido, seja pelo
aprofundamento nas disciplinas de fundamentos, seja na prática de ensino. A impressão que se tem, pela leitura do periódico, é a de que nessa
escola não se encontrava a estrutura habitual dos cursos superiores com
uma divisão clássica de disciplinas, isoladas umas das outras, mas um
grande agrupamento de matérias, numa perspectiva interdisciplinar, reproduzindo o que naturalmente se realiza nas escolas primárias. Percebia-se o conhecimento como um todo, mas um todo articulado, cujas
partes se relacionavam, se interpenetravam de tal forma que era impossível separá-las numa visão disciplinar e estanque de especialistas. Se
pensarmos que o ensino primário possui um caráter generalista, pois a
criança apreende o conjunto, muito mais do que as partes; assim também os mestres primários deveriam ser generalistas quanto ao conteúdo, porém especialistas no que se refere aos processos de ensino.
Para Anísio Teixeira, a formação de professores assim concebida
seria de tal forma prática que o eixo central da escola seria os estabelecimentos anexos de ensino primário e a pré-escola, verdadeiros laboratórios de observação, experimentação e aplicação do ensino. Dessa
maneira, projetava-se uma escola que fosse realmente um instituto para
a formação profissional do mestre e que, elevado a nível universitário,
pudesse mais tarde consagrar-se como centro de pesquisas e de cultura
superior na área educacional.
Relatos de experiências na Escola Primária
Exemplos de apropriação, muitas vezes de forma reducionista, dos
princípios da Escola Nova por parte dos agentes envolvidos em sua
implementação podem ser encontrados nos diversos artigos que compõem a revista, revelando uma certa urgência em demonstrar a utilidade
arquivos do instituto de educação
55
dos novos métodos, que deveriam atender às transformações por que
vinha passando a sociedade. Nesse sentido, são relevantes os artigos
das professoras Ondina e Orminda Marques, ambas assistentes de prática de ensino da Escola de Professores que se propõem a relatar pesquisas implementadas na escola primária do Instituto de Educação.
A freqüência insatisfatória dos alunos levou a professora Ondina
Marques a realizar sua experiência, tendo em vista os dados estatísticos
publicados pelo Departamento de Educação em 1932, segundo os quais
a rede pública da cidade atendia apenas a 45% de crianças em idade
escolar. Uma providencial nota de pé de página atualiza a informação,
assegurando que a situação se modificou sensivelmente no ano de 1934,
momento em que o relatório foi redigido (Marques, 1934).
Segundo a professora, em razão da dificuldade de absorção de todas
as crianças em idade escolar pela rede pública, seria inadmissível o descompromisso dos alunos matriculados com a freqüência às aulas. Após
uma preleção sobre o valor educativo da freqüência do ponto de vista
moral, tendo em vista a “necessidade da formação de caracteres morais
muito fortes pelas tentações da vida moderna” (p. 92), a professora afirma que, antes de tudo, “é preciso que a criança sinta a necessidade de
freqüentar a escola, e tenha nisso interesse vivo” (p. 93).
Para educar a criança, a escola precisa oferecer os aspectos da própria vida,
fazendo-a perceber como as faltas e impontualidades repercutem negativamente
no trabalho do grupo. [...] Toda a habilidade do educador está em trabalhar,
discretamente, apenas sugerindo, indicando, mas nunca impondo atividades.
Deixar à criança o prazer de investigar, de concluir, é dar vida à escola [p. 94].
Pelas observações realizadas diariamente nessa escola, concluiu-se
que apenas 40% dos faltosos o faziam por motivos de doença, enquanto
a maioria por motivos comuns: compras, visitas a parentes, consultas
médicas, questões religiosas5. Aqui se evidenciava, segundo opinião da
5.
As questões religiosas a que se refere o relatório da professora diziam respeito a
alguns alunos judeus que, habitualmente faltavam as aulas de sábado, tendo em
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
autora, a falta de compreensão das famílias, que deveriam ser sensibilizadas pelas próprias crianças para que colaborassem com a escola. Os
alunos construíram então um gráfico da percentagem diária e, em cada
turma, um aluno ficava encarregado de registrar a percentagem do dia.
Com base nos interesses das crianças, como afirma a professora, nas
turmas de 3ª e 4ª séries surgiram dúvidas sobre cálculo de percentagem,
ocasião em que se introduziram exercícios dessa natureza, assim como a
necessidade de saberem os motivos pelos quais os colegas faltavam, resultou numa regular correspondência que trouxe vantagens para o ensino
de linguagem. A campanha, ao que parece, surtiu efeito, aumentando o
índice de freqüência às aulas e, em seu entender, dois fatores foram conclusivos para explicar o seu êxito: a compreensão dos alunos sobre as
vantagens de uma boa freqüência às aulas e o fato de se assinalar no gráfico geral, semanalmente, a turma menos faltosa, distinguindo-a das outras com uma bandeira nacional, colocada na sala da turma vitoriosa.
[...] Foi, portanto, a emulação que concorreu de uma forma decisiva para o
bom resultado de nosso trabalho, mas emulação que não deve ser condenada,
por não ser individual e em torno dela desenvolveu-se um produtivo trabalho, não sendo verificado nenhum sentimento de rivalidade entre elas. Houve sim, sadia emulação entre as classes, de que resultou maior freqüência
para a escola [p. 97].
Se alguns princípios da escola renovada encontram-se presentes no
discurso da professora – o compromisso social com o grupo, o interesse
vivo da criança pelas atividades desenvolvidas, o entrelaçamento dos conteúdos disciplinares com a questão real vivenciada pelos alunos, a atitude
discreta do mestre, sugerindo, sem impor as atividades aos alunos – contraditoriamente, parece que outros valores subjazem a essa prática. Métodos ativos coexistem com processos tradicionais de ensino, seja pela for-
vista seus hábitos religiosos. Curiosamente, Ondina parece desvalorizar esse traço
cultural de seus alunos, uma vez que engloba as faltas por motivos religiosos no rol
dos motivos comuns, como visita a parentes, compras etc.
arquivos do instituto de educação
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mação de caracteres morais diante das tentações da vida moderna ou o
recurso da emulação como estímulo ao trabalho dos alunos. Tratava-se,
portanto de inovar os métodos de ensino sem alterar a realidade social,
confirmando-se o sentido da escola como legitimadora da ordem vigente.
Em outra pesquisa experimental, Orminda Marques (1934), orientada pelo professor Lourenço Filho, defende o uso de uma didática racional da escrita, a partir do uso da caligrafia como forma de obter uma
escrita clara, legível e mais rápida para atender às exigências da vida
moderna (p. 58). Apropriando-se dos pressupostos teóricos de Lister,
Palmer, Thorndike e Freeman, autores americanos preocupados com a
importância do ensino da caligrafia nas escolas primárias dos Estados
Unidos, a professora expunha argumentos que justificavam a utilização
do novo método:
[...] A escrita, como meio de comunicação exige legibilidade, clareza, uniformidade na inclinação, nas ligações e nos espaçamentos, permitindo leitura
fácil e rápida;
[...] A escrita exige rapidez, velocidade, para que possa atender às exigências
da vida moderna, em que o fator tempo é capital;
[...] Pela disposição elegante, e certa liberdade de execução, a escrita concorre
para a educação artística, e como tal, deve ser encarada na escola [pp. 59-60].
A pesquisa baseava-se nas teorias que defendiam a escrita por tração, em que o lápis ou a caneta deslizam sobre o papel, tornando a escrita mais clara e legível, em detrimento da escrita por pressão, a caligrafia
vertical, tradicionalmente utilizada. Segundo Lister, defensor da técnica
de caligrafia muscular baseada na inclinação, o bom desempenho dependeria dos movimentos desembaraçados do antebraço, conferindo mais
rapidez e legibilidade à escrita. A experiência de treino do sistema de
caligrafia muscular, ao que parece, foi introduzida na escola primária
do Instituto, tal como era utilizado nas escolas de Nova Iorque.
Passaram a ser realizados exercícios caligráficos diários nas turmas
da escola primária do Instituto, sendo de 15 minutos para as turmas de 1º
e 2º anos e trinta minutos para as turmas mais adiantadas. Na experiência,
a professora dispensou especial atenção à posição correta do corpo, do
58
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
papel, da caneta e aos exercícios preparatórios que deveriam anteceder o
uso do lápis ou da caneta que envolviam movimentos do antebraço, das
mãos e dos dedos. A aprendizagem previa dois momentos: no primeiro,
haveria a preocupação com a qualidade da letra, a escrita clara e legível;
no segundo, em intensificar os exercícios de treino, no sentido de conseguir aumentar a velocidade da escrita. Entretanto, segundo suas próprias
conclusões, “na medida em que se observava o progresso dos alunos em
relação à qualidade da escrita, também se observavam progressos na velocidade, que se desenvolvia naturalmente” (p. 74).
Com base nessa experiência, Diana Vidal (2000, 2001) analisa as
práticas de escrita e leitura na escola-laboratório do Instituto de Educação do Rio de Janeiro na década de 1930, pela inspiração dos princípios
da escola renovada, orientadas pelo professor Lourenço Filho. Sobre a
prática da escrita baseada na caligrafia muscular nos diz a autora:
A velocidade acelerada das transformações sociais e a preocupação com a
otimização das tarefas levaram os educadores renovados a considerar maneiras de “racionalizar” a técnica da escrita. Apesar de não hegemônica a proposta da “caligrafia muscular”, que associava à disciplinarização corporal do
aluno um controle mais minucioso do tempo individual, permitia compreender os novos desafios da escrita [Vidal, 2000, p. 500].
De acordo com o relatório da professora-pesquisadora, na escola
primária do Instituto, a experiência foi bem recebida pela quase totalidade de professoras e alunos e a caligrafia muscular trouxe melhores
condições quanto à higiene da escrita, bem como à sua rapidez. Entretanto, submetido à apreciação das professoras da rede escolar do Distrito Federal, a proposta da caligrafia muscular não foi bem aceita, levando em conta que das 83 professoras consultadas, apenas 9,64%
declararam que seus alunos melhoraram em clareza e objetividade, após
oito meses letivos de treino. Cerca de 78,32% declararam preferir o tipo
vertical porque é mais fácil de ensinar, embora a pesquisadora revele
que dessas, cerca de 70% utilizavam habitualmente a letra inclinada.
Vale observar que a principal razão da resistência apresentada pelas professoras da rede em relação ao treinamento da caligrafia muscular resu-
arquivos do instituto de educação
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mia-se ao argumento de que “não deve haver sistematização em relação
à escrita “ ou “as crianças devem escrever com a máxima liberdade”
(p. 81).
Na conclusão final de sua experiência, Orminda observa que “Escola renovada não significa abandono das técnicas fundamentais da escola primária e a escrita tem nela uma importância tanto no valor estético,
hábitos de ordem e asseio, educação social e disciplina mental” (p. 86).
A inculcação de hábitos, tais como a necessidade de ser pontual aos
compromissos ante as demandas da organização do novo mundo do trabalho ou o treino de caligrafia para tornar a escrita mais clara e rápida,
adequando-a às novas exigências da vida moderna, forneceram argumentação a alguns críticos da Escola Nova, que aproximaram o treino
de caligrafia de um projeto mais técnico e racional, comprometido com
a consolidação de uma ordem capitalista, beneficiando sobretudo a burguesia, classe em ascensão6.
É possível notar por meio do texto uma resistência expressiva em
relação à racionalidade dos novos métodos empregados, bem como à
disciplinarização dos hábitos impostos pelas experiências implementadas
na escola-laboratório, sobretudo por parte de professoras de outras escolas da rede. Infere-se pelo relato dessas práticas, como observa Julia
(2001), que a cultura escolar7 não pode ser compreendida sem o exame
das relações que a mesma mantém com o conjunto das culturas que lhe
são contemporâneas – realidades sociais, políticas, econômicas, religiosas – e como, muitas vezes, essa relação encontra-se carregada de conflitos e resistências.
6.
7.
Refere-se especificamente à obra de Saviani, 1999. Ver ainda Brandão, 1999, no
trabalho em que discute as diversas tendências historiográficas sobre a obra dos
Pioneiros da Educação.
Na concepção de Julia (2001), entende-se por cultura escolar “um conjunto de
normas que definem conhecimentos a ensinar, condutas a inculcar e um conjunto
de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos” (p. 9).
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Para além dos Arquivos: fragmentos
de memórias e práticas escolares
Convém examinar o funcionamento interno da escola para que se
perceba como as lutas, concorrências e mecanismos de apropriação e/
ou resistência se estabelecem dentro dela, relativizando a ilusão de poder absoluto que se costuma conferir a esse tipo de instituição (Julia,
2001). Cruzando as informações obtidas no anuário Arquivos do Instituto de Educação com vestígios das práticas escolares e a memória de
antigas alunas, talvez seja possível traçar um quadro aproximado da
cultura escolar que ali se desenvolvia, desvendando um pouco do que
não interessava aos Arquivos divulgar.
As lembranças de ex-alunas nos fornecem uma idéia aproximada de
como se processavam as práticas escolares no interior da instituição
durante a década em que por lá passaram. Vejamos o que elas nos dizem
sobre os novos métodos de ensino ali implementados:
Os novos métodos eram empolgantes, eu gostava. Foi uma evolução, o
pessoal se dedicava, aceitávamos com muito prazer. A Escola Nova foi uma
coisa formidável, havia uma contradição muito grande com o sistema antigo,
nem há comparação. A criança era respeitada na sua individualidade [...] Trabalhei com método de projetos na Escola Sarmiento e na Escola Uruguai. Na
Escola Argentina tive uma turma muito boa que alfabetizei com o método
fônico. Havia três métodos: a palavração, a sentenciação e o método fônico.
O método da sentenciação era o mais empregado. Introduzia-se uma sentença, depois destacam-se as palavras, chegando até às letras. O fônico era um
pouco mais difícil, mas era aplicado a turmas de crianças mais apuradas,
hoje não, se mistura tudo, botam todas as crianças juntas, um aprende rápido,
depois fica sendo um elemento de conduta difícil, porque não há aquela
homogeneidade. Eu acho que grupo é tudo [Alda, turma de 1934].
A nossa situação não nos permitia analisar se aquilo era bom ou ruim. Era
prestar atenção e fazer as coisas direitinho [...] Mas hoje eu acho que a Escola Nova era tão boa que chega às raias da fantasia, ou melhor, da utopia[...] A
gente, sempre que podia, tentava fazer [...] [Baptistina, turma de 1936].
arquivos do instituto de educação
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Só se trabalhava com método de projetos, não havia outro jeito...Eu tinha
uma turma de segundo ano, muito boa. Isso era resolvido com as crianças,
não era imposto. Ficou resolvido fazer uma casa de bonecas, compramos
madeira e fizemos. Então todo o trabalho era em redor da casa de boneca,
tudo o que você precisava dar tinha que ser encaixado naquele projeto. Partia
do interesse da criança. Em parte era a pedagogia da Escola Nova, mas graças a Deus, ainda tinha muito da tradicional [...] Em outras escolas em que
trabalhei era difícil aplicar esses métodos. Era tudo muito bonito, mas na
prática, a realidade era outra [Marília, turma de 1937].
As entrevistadas concluíram o curso na década de 1930. Alda e
Baptistina pertenceram às primeiras turmas, que tiveram o sistema de estudos adaptados por força do decreto 3.810, Marília cursou seis anos de
escola secundária e dois da Escola de Professores que a partir de 1935
passou a chamar-se Escola de Educação com a criação da Universidade
do Distrito Federal. Porém, apenas as duas últimas, formadas respectivamente em 1936 e 1937, puderam exibir, com certo orgulho, o diploma
expedido pela UDF, visto que um ano depois a universidade seria extinta.
A maneira como as antigas alunas qualificavam as inovações operadas na cultura escolar refletem, de certa forma, diferentes visões de
mundo. Apesar de inseridas na mesma década e partilharem uma memória comum sobre o período, vivenciaram conjunturas políticas distintas no interior da instituição. O fato de Alda tecer elogios aos novos
métodos, bem como a facilidade que dizia ter em empregá-los, qualquer
que fosse a escola ou categoria socioeconômica de seus alunos, evidencia não apenas a internalização da ideologia contida no discurso do poder, mas também uma percepção do momento peculiar pelo qual não só
a instituição, mas o país passava até 1935. Se a legitimidade do movimento dos Pioneiros e, sobretudo de Anísio Teixeira, nesse primeiro
momento era reconhecida, o mesmo não aconteceu na fase posterior, na
qual essa imagem foi maculada pelos acontecimentos políticos que resultaram em seu afastamento da administração do Distrito Federal e
que, obrigatoriamente, repercutiram junto à opinião pública.
De qualquer forma, apenas esse fato não é suficiente para explicar a
resistência de Marília aos métodos impostos pelo novo sistema de ensi-
62
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
no. A prática era realmente bem diversa da teoria, como ela nos diz, ou
“utópica”, como assinala Baptistina. Professores intransigentes, sistema de avaliação rígido, disciplina vigiada pela temível inspetora-chefe,
dona Palmira que as impedia de falar alto, deslizar pelos corredores
encerados, limitando seus gestos e espaços, mesmo no recreio ou à saída das aulas. “Havia muito da escola tradicional, graças a Deus!”. Observa Marília, aos 85 anos, que se orgulha de não sorrir muito para seus
alunos, exigindo-lhes disciplina e respeito, ao mesmo tempo que reconhece ter aprendido a respeitar a individualidade de cada um, identificando problemas, seja de ordem física ou emocional.
Estudávamos muita psicologia, justamente para entender a criança, seus problemas, suas limitações e seus interesses. Eu tinha uma turma indisciplinada
de 3ª série [...] Pois bem: consegui disciplinar a turma com um esqueleto que
nós estudávamos todos os dias nos últimos quinze minutos da aula. Aprenderam o nome de todos os ossos, para que serviam as articulações [...] O esqueleto me serviu muito. Quando deixei a turma, as crianças choraram [...].
Marília driblava a agitação de seus alunos utilizando uma atividade
que lhes despertava o interesse: “Criança só aprende quando se interessa pelo assunto” repete ainda hoje, naturalizando um dos princípios da
Escola Nova, ainda que a apropriação desses métodos tenha ocorrido
pela via utilitária.
Ao revelar que estudava muita psicologia e que se utilizava de um
esqueleto humano para prender a atenção da turma, Marília, sem o saber, referia-se à privilegiada carga horária que os fundamentos biopsicológicos da educação desfrutavam na matriz curricular da Escola de
Professores: biologia (7h) e psicologia (12h) em detrimento das outras
disciplinas, como história da educação (4h), sociologia (6h) e filosofia
(4h)8. Na verdade, psicologia era oferecida nos três trimestres do 1º ano
8.
A carga horária referente às disciplinas constantes da grade curricular da Escola de
Professores encontra-se no documento Estrutura do Instituto de Educação localizado no Arquivo de Lourenço Filho. CPDOC / FGV. Série Temática. LF/Instituto
de Educação, pasta II.
arquivos do instituto de educação
63
dividida em psicologia da criança (4h/a no 1º trimestre) e psicologia educacional (6h/a no 2º trimestre e 2 h/a no 3º trimestre).
Revelou-nos ainda a entrevistada que “seus professores eram quase
todos médicos” e que muitos levavam os alunos para assistir às aulas
práticas no Hospital Gafrée Guinle. O relato sobre a utilização do esqueleto para conseguir a atenção das crianças para sua aula e o orgulho com
que argumenta saber diagnosticar várias enfermidades e perturbações nas
crianças pequenas que qualifica como “fatores dificultadores da aprendizagem” revelam, em larga medida, uma realidade que a matriz curricular,
como instrumento material das práticas pedagógicas, de fato, confirmam.
Tomando por base os trabalhos de Apple (1982, 1989) entendemos
que o currículo não se configura como um corpus neutro de conhecimento, inocente e desinteressado, ou seja, o conhecimento presente no currículo é selecionado e resulta de um processo que reflete interesses de determinados grupos. Esses conhecimentos, tidos como legítimos, são sempre
considerados verdadeiros em detrimento de outros. Na perspectiva do autor,
para quem o currículo é sempre um espaço de lutas e resistências, logo
um espaço de poder, faz-se necessário indagar que interesses mobilizam a
seleção desses conhecimentos e quais as relações de poder envolvidas no
processo de escolha de um currículo específico.
Se nos reportarmos aos núcleos institucionalizados de saber existentes no Brasil até as duas primeiras décadas do século XX, como o faz
Mariza Corrêa (1998), é possível constatar a presença de diversos higienistas, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, antropólogos,
criminólogos egressos do campo do saber médico, atuando no processo
de “medicalização” da sociedade. A fé que esses homens, partidários do
evolucionismo, tinham no progresso do país pela modernização era a
mesma que tinham no progresso da raça humana pela higiene; assim,
propunham “medicamentar” todas as áreas do conhecimento, sobretudo
a educação, utilizando-se de leis eugênicas como instrumentos de
profilaxia e correção para desvios morais e comportamentais. A
frenologia, ciência emergente, defendia a predisposição biológica da
“natureza criminosa”, afirmando que essa inclinação poderia ser determinada e “corrigida” pelo exame preventino, com base em características físicas peculiares. Mesmo recebendo críticas de seus contemporâ-
64
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
neos por seu reducionismo, essa teoria informou as práticas da medicina, higiene, direito e educação durante a primeira metade do século XX.
Propostas de higienização do social, associadas à eugenia, circularam
intensamente no Brasil dos anos de 1920-1930, sobretudo na capital federal, dispondo-se a disciplinarizar a cidade, vítima dos vícios e flagelos
decorrentes do alto grau de miscigenação étnico-cultural a que era submetida, especialmente por encarnar a missão de “vitrine do Brasil”.
Entretanto, é preciso considerar que, a partir dos anos de 1920, ocorrem mudanças no discurso pedagógico, em direção a uma visão mais
otimista da criança e de sua natureza, quanto ao seu poder de ação, e
sem tantas limitações deterministas. Uma nova compreensão da vida
como mundo da indústria e da técnica subsidiava algumas interpretações da pedagogia da Escola Nova, definida como progressista e renovadora. A biologia e a higiene tiveram um papel central para fundamentar essa nova pedagogia, por um lado, oferecendo meios de desenvolver
a “base biológica” por meio da defesa da saúde individual, por outro,
dotando o professor de uma sólida base científica. A fundamentação
biológica que justificava a importância das individualidades e dos processos de adaptação social, bem como a fisiologia da aprendizagem,
foi, de certa forma, encampada pela área de conhecimentos psicológicos, que tomou a biologia como fonte científica.
Visto que os estudos de caráter objetivo da psicologia tiveram início
no campo da medicina, ou mais precisamente, no campo da psiquiatria
e medicina social, foi neste último que os esforços dos médicos se articularam aos dos educadores, fundamentando princípios de higiene mental
e possibilitando a prática de diagnósticos, por meio da introdução dos
testes mentais9.
9.
No capítulo sobre psicologia, parte da obra organizada por Azevedo – As ciências
sociais no Brasil (1955) – Lourenço Filho comenta a dificuldade encontrada pela
psicologia para tornar-se um campo autônomo da medicina, fazendo menção à
reação negativa diante da proposta de se estabelecer o 1º laboratório de psicologia
experimental no Rio de Janeiro em 1897, uma vez que, na opinião dos opositores,
“seria ridículo pretender levar as faculdades da alma à análise de aparelhos”. Também Farias Brito, em 1912, teria sentenciado a falência dos estudos da psicologia
empírica, enquanto Almáquio Diniz defendia que a psicologia nada mais era “do
que a extensão da Fisiologia” (vol. 2, p. 267).
arquivos do instituto de educação
65
No início do século XX, em 1905, foram criados os testes de Binet
que foram usados para mensurar a inteligência e para, de certa forma,
justificar as diferenças sociais como diferenças individuais. Foram muito utilizados pela sociedade norte-americana e serviram como legitimadores e perpetuadores das diferenças sociais e do racismo, pois os sujeitos sociais marginalizados (prostitutas, latinos, hispânicos, negros,
presidiários etc.), ao serem testados, apresentavam sempre um coeficiente intelectual abaixo do normal. Ou seja, os testes anteriormente
mencionados foram construídos para a cultura dominante, sem levar em
conta as demais variantes culturais, afastando da escola os alunos que
possuíam o coeficiente abaixo da média, exercendo, portanto, uma função de controle e seleção.
O primeiro teste aplicado em grande escala foi o teste Alfa, do Exército dos Estados Unidos, durante a primeira guerra mundial e, por incrível que pareça, esse mesmo teste era aplicado às crianças que se aventuravam a concorrer às poucas vagas existentes para a escola secundária
do Instituto de Educação durante as décadas de 1930-1940. A partir do
teste Alfa muitos outros foram produzidos para serem utilizados na indústria, seleção de pessoal e em todos os níveis do sistema educativo.
Segundo Lourenço Filho (1955), a consolidação da psicologia como
ciência e campo disciplinar foi viabilizada pelos movimentos da renovação escolar e pela racionalização do mundo do trabalho, quando educadores e administradores, interessados nos problemas de formação e
seleção de pessoal, “mais rapidamente estabeleceram liames de entendimento e colaboração” com especialistas médicos10.
Na verdade, bem antes do movimento da renovação educacional,
surgiram, no Rio de Janeiro, tentativas experimentais como a instalação
de um laboratório de psicologia pedagógica no Pedagogium, instituição
criada por Benjamin Constant em 1890, que funcionou como museu
10. Em 1914, especialistas estrangeiros são convidados a vir ao Brasil a fim de instalar
laboratórios de psicologia aplicada à educação em São Paulo, à psiquiatria, no Rio
de Janeiro, em 1922 e à organização do trabalho, em São Paulo, 1929. Ver Lourenço Filho, 1995, p. 268.
66
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
pedagógico – um centro de cultura superior aberto ao público – até o
final dos anos de 1910. Esse laboratório, entregue à supervisão de Manoel
Bonfim, médico e professor da escola normal, funcionou por quinze
anos, produzindo pesquisas, algumas delas publicadas na revista Educação e Pediatria11.
Mas foi no início dos anos de 1930 que dezenas de educadores passaram a receber cursos de especialização em psicologia nas universidades norte-americanas, ao mesmo tempo em que vários especialistas são
contratados para atuar em escolas brasileiras. Consuma-se, então, a autonomização da disciplina, que adquire um peso significativo nos currículos dos primeiros cursos de aperfeiçoamento para professores primários – em Minas Gerais e São Paulo – e nos primeiros cursos de formação
do magistério primário em nível superior – os Institutos de Educação do
Distrito Federal e de São Paulo – ligados, respectivamente, à UDF e à
USP.
No Distrito Federal, ainda na época da reforma Fernando de Azevedo, reformaram-se os programas de Psicologia da Escola Normal, mas
foi na gestão de Anísio Teixeira que se instituiu um Serviço de Testes e
Medidas escolares, confiado ao baiano Isaías Alves, enquanto o ensino
11. Em São Paulo, quase à mesma época do Rio de Janeiro, fortalecia-se o movimento
da psicologia pedagógica, por meio da inauguração de um laboratório experimental na Escola Normal da Praça da República, em setembro de 1914, em que Sampaio
Dória assumira a cátedra de psicologia e pedagogia. Nessa mesma época, Lourenço Filho, que fora aluno de Dória, inicia sua carreira na Escola Normal de Piracicaba, em que, por intermédio de uma fundação norte-americana mantinha contato
com a bibliografia sobre psicologia educacional procedente dos Estados Unidos e
começa a realizar pesquisas utilizando-se dos testes. Em 1922, com a reforma do
estado do Ceará prossegue suas investigações, montando um laboratório na Escola
Normal de Fortaleza para o estudo biológico e psicológico dos alunos. Segundo o
próprio educador, o fato de haver cursado os dois primeiros anos de medicina talvez tenha influenciado essa orientação que viria a se manifestar com mais intensidade quando, em 1925, assume a cátedra de psicologia na Escola Normal de São
Paulo. No laboratório dessa escola utiliza testes de desenvolvimento mental, realiza
inquéritos e desenvolve pesquisas sobre a maturidade necessária à aprendizagem da
leitura e da escrita. Sua ação culmina com a criação de um Serviço de Psicologia
Aplicada, do qual resultaria o Laboratório de Psicologia Educacional do Instituto
Pedagógico, também criação sua. Ver Lourenço Filho, 1955, pp. 275-277.
arquivos do instituto de educação
67
de psicologia na escola de professores ficou sob a responsabilidade de
Lourenço Filho. Esse educador realmente deixou sua marca no Instituto
de Educação, primeiramente através de seus auxiliares diretos, Heloísa
Marinho e Murilo Braga, que lá ingressaram na década de 1930 e, posteriormente, por meio de vários discípulos, dos quais Iva Waisberg talvez tenha sido a mais expressiva devido às suas atividades por mais de
duas décadas como pesquisadora na instituição.
Considerada “brilhante” pelos colegas, Iva formou-se na primeira
turma da escola de professores, tendo depois cursado psicologia na Universidade do Distrito Federal. Em 1943, passou a reger a cadeira de
psicologia educacional no curso normal do instituto de educação, em
que permaneceu até o final dos anos de 1960. Em sua atividade como
pesquisadora, procurou dar continuidade ao trabalho de Lourenço Filho, assegurando à psicologia uma posição privilegiada na área das ciências da educação 12.
Esta constatação, de certa forma, relativiza a concepção de Marcus
Vinicius da Cunha (1995), cujo estudo procura demonstrar a inadequação
do rótulo de psicologismo ao pensamento da Escola Nova no Brasil.
Trabalhando com a documentação normalizadora dos cursos de formação de professores primários no estado de São Paulo e com as matrizes
curriculares, inclusive durante a década de 193013, o autor conclui que
não se pode afirmar o predomínio da psicologia, tanto no pensamento
da Escola Nova quanto nas orientações para a formação de professores.
Talvez suas considerações se restrinjam à realidade paulista, uma vez
que a implementação do Instituto de Educação articulado à Universidade de São Paulo, foi obra de Fernando de Azevedo, enquanto diretor da
instrução naquele estado.
12. Várias professoras em exercício no atual Instituto Superior de Educação do Rio de
Janeiro (ISERJ), ex-alunas de Iva Waisberg lembram-se da organização e até do
certo “luxo” do gabinete de psicologia, o que o distinguia dos demais. Além disso,
todas as pesquisas desenvolvidas no instituto entre as décadas de 1930 e 1970
deveram-se ao esforço e interesse dos professores desse gabinete. Ver a respeito
Villas Boas et al., 1994.
13. Decreto n. 5.846/1933.
68
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
No caso do Rio de Janeiro, a meu ver, não se poderia fazer semelhante
afirmativa. É possível, inclusive, que a matriz biopsicológica tenha marcado, por Lourenço Filho, o curso de professores do Rio de Janeiro, enquanto o caráter sociológico tenha predominado em São Paulo. Vale a
pena uma pesquisa comparativa das matrizes curriculares dos dois cursos, com o objetivo de se tentar realizar uma análise mais profunda sobre
a questão, proposta que não cabe nos limites deste trabalho.
Considerações finais
Como se percebe pelo exame dos Arquivos publicados em 1934, uma
nova cultura pedagógica se construía a partir da escola-modelo e pretendia impor-se à rede escolar da cidade. Evidentemente, essas normas e
práticas estão articuladas a objetivos que variam de acordo com a época e
não podem ser analisadas se não levarmos em conta o grau de apropriação e/ou resistência do corpo de agentes profissionais que são levados a
executar essas ordens, utilizando métodos, processos e dispositivos ditados pela nova concepção pedagógica que se quer estabelecer. Os artigos
demonstrativos de experiências do grupo de professores e alunos que representavam todas as escolas do Instituto de Educação, dos quais extraímos apenas alguns exemplos, nos oferecem pistas para perceber como os
ensinamentos da educação renovada vinham sendo por eles assimilados.
As opiniões a respeito dos novos métodos de ensino, bem como as
táticas desenvolvidas pelos alunos/as e professores/as para driblar ou
resistir à nova ordem que se impunha, revelam faces do trabalho escolar
que escapava aos Arquivos. Como texto legitimador do poder, o anuário
revela-se seletivo e, muitas vezes, omisso em relação a determinadas
idéias e práticas correntes na instituição, em que contradições e conflitos são apagados, oferecendo ao leitor a idéia de harmonia e coesão,
fatores necessários à construção de uma memória vitoriosa.
A supressão do impresso entre 1937 e 1945 é bastante significativa,
na medida em que se pode perceber a manipulação da memória pelo poder, por meio do silêncio deliberado sobre a obra protagonizada pelos
pioneiros no Instituto. A retomada da publicação em 1945, quando um
arquivos do instituto de educação
69
dos signatários do Manifesto, o professor Francisco Venâncio Filho assume temporariamente a direção da casa, traduziu-se numa tentativa de recriar, embora sem êxito, o clima reinante no período da gestão de Lourenço Filho à frente da instituição. Apesar de contar com alguns professores
que procuravam dar continuidade à obra iniciada nos anos de 1930, o
espírito renovador talvez já não fosse sentido coletivamente, o que sugere
a possibilidade de nos referirmos ao instituto como um lugar de memória
da renovação educacional. Para Pierre Nora (1993) uma das características desses lugares seria justamente “a sua derrota em se tornar aquilo que
quiseram seus fundadores, pois se estivéssemos ainda hoje, vivendo sob
seu ritmo, teriam perdido a virtude de lugares de memória” (p. 23).
Encaminhando os alunos pela observação de suas aptidões, valendo-se de instrumentos de controle e padronização, o Instituto de Educação levou a termo, durante a década de 1930, uma experiência de alto
cunho social, selecionando e preparando os mais capazes para a função
de educar. À luz dos paradigmas que transformavam o pensamento educacional da época, pretendeu-se fixar na memória coletiva as imagens
do Instituto de Educação do Rio de Janeiro como centro irradiador de
uma nova ordem, uma nova cultura pedagógica que se expandiria para
o restante do país. Os agentes construtores dessa memória, tendo à frente Lourenço Filho, orgulhavam-se da obra que, estrategicamente, iam
moldando – a obra-síntese da reconstrução educacional14, que por seus
olhos, adquiria formas, contornos mais nítidos, saía do decreto, simples
papel, para ganhar vida.
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ARQUIVO ANÍSIO TEIXEIRA (CPDOC/FGV)
AT pi Instituto de Educação 1932.00.00.
14. A expressão foi criada por Francisco Venâncio Filho, professor do Instituto de
Educação e um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
(Venâncio Filho, 1945, p. 24).
70
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
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Recebido: 27 de jun. de 2004
Aprovado: 5 de abr. de 2005
Modificado: 12 de maio de 2005
A produção da infância nas
operações escriturísticas da
administração da instrução
elementar no século XIX*
Cynthia Greive Veiga**
Este artigo apresenta uma discussão teórico-metodológica das fontes documentais produzidas em pesquisa sobre a história da infância e a presença de crianças pobres, negras
e mestiças no processo de institucionalização da instrução elementar em Minas Gerais
no século XIX.
DOCUMENTOS; ESCOLARIZAÇÃO; INFÂNCIA.
This article has a central objective to present a theoretical and methodological discuss of
source produced in a research about history of childhood and the presence of poor and
afro-american children along the history of institutionalized public education in Minas
Gerais, century XIX.
SOURCE; SCHOOLING; CHILDHOOD.
*
Este texto é uma versão modificada e ampliada de trabalho apresentado no Seminário do Projeto “A infância e sua educação (1820-1850): materiais, práticas e
representações” (convênio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES/ Gabinete de Relações Internacionais das Ciências e do Ensino
Superior – GRICES), realizado na Universidade de Lisboa em abril de 2004.
** Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação
(GEPHE).
74
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
O objetivo deste artigo é fazer uma discussão teórico-metodológica
das fontes documentais produzidas ao longo da pesquisa em andamento
“História social da infância: crianças pobres, negras e mestiças no processo de institucionalização da instrução elementar em Minas Gerais
(1835-1906)”1. Especificamente neste texto será problematizada a produção da infância em um lugar específico, a infância na escola, com
ênfase no contexto da institucionalização da instrução pública em Minas Gerais nos tempos imperiais. Compreende-se a partir das discussões de Certeau (1999) que as transformações políticas processadas no
Brasil na passagem da administração colonial para a monarquia constitucional se inserem em um projeto escriturístico de alcance de toda a
sociedade. Tal operação escriturística ambicionou fazer tábula rasa do
passado e (re)escrever a história na perspectiva do novo e do progresso,
sendo a operação multiplicada nos “campos econômicos, administrativos ou políticos, para que se realize o projeto” (Certeau, 1999, p. 226).
Enfatizarei a produção da infância na escola pela operação escriturística
da administração da instrução pública, produzida aqui como fonte documental para a escrita da história.
Ainda de acordo com Le Goff (1984) e Foucault (1972), a escrita da
história é aquela que transforma os documentos (escolha do historiador)
em monumentos (sinais do passado). Acrescenta-se a isso o entendimento de que os documentos não falam por si, são também monumentos, porque produzidos pela sociedade, sendo ainda produto do historiador que os interroga. Na afirmação de Étiene François, uma das
exigências do ofício de historiador é não esquecer que “as fontes só
começam a falar a partir do momento em que as interrogamos e que a
qualidade das respostas que elas podem dar coincide com a qualidade
das questões que se formulam” (François, 1998, p. 158).
Dessa maneira, também se corrobora com a concepção de que os arquivos não são depositários de uma verdade e que o manuseio dos documentos
exige rigor dos historiadores. Na perspectiva de François (1998) o trabalho
1.
Bolsa de produtividade de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Projeto integrado ao GEPHE e ao convênio
CAPES/GRICES.
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
75
de reconstituição e interpretação das fontes demanda ainda outras três exigências, a saber: a crítica das fontes (processo de sua constituição, condição
de produção, objetivos, o que dizem e não dizem), a consciência de que “as
fontes não dizem tudo” e por fim “a exigência ética”.
Nas palavras de Certeau,
Em História, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova
distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este
gesto consiste em “isolar” um corpo, como se faz em física, e em desfigurar
as coisas para constitui-las como peças que preencham lacunas de um conjunto proposto a priori [Certeau, 1982, p. 103].
A pergunta inicial parte de um pressuposto, qual seja, a infância
como etapa da vida, não é um dado, mas uma construção socioistórica,
“uma categoria de tempo inventada a partir de múltiplas experiências
vivenciadas pelos diferentes grupos sociais” (Veiga, 2004, p. 40). Como
parte dessas experiências esteve o acontecimento da obrigatoriedade
escolar. Nessa perspectiva destaco, como procedimento metodológico
de organização da documentação, esse acontecimento, “suporte hipotético”2 necessário para a ordenação do discurso. Contudo, a escolarização da infância é o fato histórico a ser construído e a infância a categoria
histórica central para interrogação das fontes documentais.
Que relações podem ser produzidas entre a obrigatoriedade escolar,
a escolarização da infância e a infância como tempo geracional a partir
das práticas escriturárias do setor administrativo da instrução pública?
Antes de desenvolvermos a questão, temos que do ponto de vista metodológico essa é uma discussão sobre as relações entre acontecimento,
fato e categoria. Certeau observa que “o acontecimento é aquele que
2.
De acordo com Certeau, o acontecimento é o suposto para a organização dos documentos, não se aplica por si, mas permite uma inteligibilidade. Por isso se configura como um “suporte hipotético” enquanto condição de orientação no tempo.
(Certeau, 1982, p.103.)
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recorta, para que haja inteligibilidade; o fato histórico é aquele que preenche para que haja enunciados de sentidos. O primeiro condiciona a
organização do discurso; o segundo fornece os significantes [...]”
(Certeau, 1982, p. 103). Portanto, o acontecimento propicia uma ordenação no tempo em que o fato histórico será produzido na intenção de
dar significação a um acontecido. Esses significantes se fazem pelo diálogo com modelos, teorias e conceitos necessários à interpretação e produção da diferença, apreendendo assim as especificidades do acontecimento. Dessa maneira, as categorias históricas funcionam como um
recorte semântico na intenção de constituir a intelegibilidade do problema e as interrogações propostas nos documentos, procedendo, portanto,
ao “estabelecimento das fontes” (Certeau, 1982, p. 83).
A obrigatoriedade escolar como acontecimento
favorecedor da distinção geracional, problemática
inicial
A institucionalização da obrigatoriedade escolar foi um componente do processo de produção das civilizações ocidentais, presente em diferentes países, com variações das épocas em que se efetivou ao longo
do século XIX. Tais variações indicam para a existência de tensões para
a sua realização mesmo que tenha sido uma temática que de certa forma
homogeneizava o pensamento das elites. Tornar a freqüência à escola
uma rotina obrigatória para amplas camadas da população fecha o ciclo
das monopolizações constituidoras do Estado Moderno e das repúblicas – a monopolização da força física, a monopolização da tributação e
a monopolização dos saberes elementares. O caminho percorrido entre
o desenvolvimento do Iluminismo e o século XIX indicou para a confirmação do anunciado por Diderot (1713-1748) de que é mais fácil governar um povo instruído que um povo ignorante. Ou ainda nos dizeres
do presidente da província mineira, Limpo D’Abreu, em 1835,
A instrução primária que na forma da Constituição deve proporcionar-se a
todos gratuitamente, é um dos objetos que nesta província tem merecido o
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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maior desvelo e solicitude. Os governos despóticos são os que amam e promovem a ignorância como um dos elementos da sua existência e duração e
por isso no delírio de embrutecer os povos assemelham-se ao louco que pretende arrancar a luz do Astro do dia para cobrir o mundo das trevas, mas os
governos livres que se sustentam sobre a teoria dos direitos e obrigação do
homem social, não receiam, antes protegem os progressos de todos os conhecimentos humanos [...] [Falla, 1835].
Nesse sentido a questão da obrigatoriedade escolar é um acontecimento predominantemente político e esteve relacionado à necessidade
sociocultural de produção da consciência de um pertencimento nacional, sentimento esse radicalmente novo, dado o acúmulo histórico das
experiências anteriores de hierarquias e estratificação social.
As elites políticas e intelectuais, ao estabelecerem a obrigatoriedade
escolar como estratégia de produção da nação, estavam constituindo
um imaginário de sociedade, tendo como pressuposto a existência da
condição de “obrigação do homem social” sendo necessário para sua
efetivação a produção de uma identidade coletiva e coesa. Tal identidade pressupôs, por sua vez, a comunhão de valores, hábitos e atitudes, ou
seja, de gestos e expressões a serem compartilhados por todos e cuja
possibilidade estaria na homogeneização cultural das populações. Na
trilha dos monopólios, a monopolização dos saberes elementares pelo
Estado apresenta-se como condição de normatização social pela criação
de uma rede de racionalidades promovedora da coesão da sociedade
sendo a escola produzida como uma unidade de referência civilizatória.
Isso tornou possível outra organização da sociedade constituída de letrados e não-letrados na perspectiva de civilizados e ignorantes, como
novos adjetivos indicadores de diferenciação social, estabelecendo com
isso novos laços de interdependência entre os sujeitos. No acontecimento da obrigatoriedade escolar esteve a ambição de inscrever o povo
no tempo da civilização.
A escolarização da infância a partir do século XIX foi o objetivo
central dos procedimentos relativos à normatização da instrução pública elementar. É parte de várias outras estratégias desenvolvidas para
produzir a infância como tempo geracional distinto do adulto, condição
78
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
essa necessária para o estabelecimento da civilização. Ou seja, preparar
a criança, criar condições para a vivência de uma infância civilizada, foi
uma idéia recorrente nos meios pedagógicos, médicos e jurídicos para a
existência e consolidação de uma sociedade adulta civilizada (Veiga,
2004). Os diferentes saberes em profusão a partir de meados do século
XIX sistematizaram uma condição de ser criança e de ter infância, e
para isso diferentes normas se inscreveram no corpo da criança: ser bem
comportada, obedecer, brincar, vestir roupas adequadas, freqüentar a
escola, ser um bom aluno etc. Por meio da escola universalizou-se uma
faixa etária atribuída ao tempo da infância, bem como uma nova maneira de as crianças se estabelecerem no mundo: como alunos(as).
Os documentos aqui analisados são parte do projeto escriturístico
da nova sociedade imaginada cuja história estava em processo de registro. Dada a diferenciação dos documentos e para a sua discussão procedeu-se uma distribuição em três tipos: normatização (legislações), relatos (relatórios de delegados literários, de inspetores, de presidentes da
província, ofícios e correspondências diversas) e instrumentos de verificação (mapas da população, mapas de freqüência, listas de crianças
em idades de freqüentar a escola)3.
Processo de normatização da infância escolar
Segundo Certeau a economia escriturística é componente da modernidade e apresenta-se como “um discurso fragmentado que se articula
3.
Todos os documentos investigados estão depositados no Arquivo Público Mineiro
(APM), Fundo Seção Provincial (SP) que estão organizados em séries. Séries não
encadernadas: Presidentes da Província (PP), Secretaria de Governo (SG), Instrução Pública (IP), esses documentos estão guardados em caixas (cx) numeradas
cujos documentos por sua vez estão numerados em pacotilhas (p). As séries encadernadas são localizadas em Códices (C). Para as citações das referências no corpo
do texto serão utilizadas as siglas indicadas. Os relatórios dos presidentes de província estão em microfilme, entretanto grande parte dos aqui pesquisados foram
consultados no endereço: <www.crl.edu/content/provopen.htm>. As leis mineiras
estão publicadas no Livro da Lei Mineira organizado em tomos.
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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sobre as práticas heterogêneas de uma sociedade e que as articula simbolicamente” (Certeau, 1999, p. 224). No conjunto da documentação
analisada, observa-se uma circularidade de informações que teve como
objetivo central o cumprimento da legislação da instrução pública a partir da prescrição constitucional que determinou como garantia dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros a gratuidade da instrução
primária4. Como salienta Faria Filho (1998), as leis em uma sociedade
expressam a dinâmica da realização e da ordenação das suas relações
socioculturais, ou ainda em Thompson (1987) temos que o exercício da
lei é revelador de um campo de tensões e conflitos e não se exprime
unicamente como imposição do poder de uns sobre os outros. No caso
específico aqui da instrução pública, a associação entre gratuidade da
escola primária e garantia de direitos civis e políticos possui uma perspectiva de produzir cidadãos como parte do imaginário político de uma
nação civilizada (Veiga, 2003).
Ainda sobre legislações, outro autor, Norbert Elias (1997), observa
que na estruturação dos Estados-nações, a codificação das normas fazse dual e contraditória. Temos a produção de um código de normas
morais, fundamentados na humanidade e nos princípios igualitários e
de um código nacionalista, fundado no Estado e nos princípios da integridade dos indivíduos. No processo de formação de uma sociedade
civilizada esteve presente a necessidade de assimilação desse duplo sentido das regras, a integração, na perspectiva do coletivo e da humanidade e a desintegração na perspectiva do indivíduo e do Estado. Tais códigos podem ser acionados em diferentes épocas e situações, de forma
isolada ou combinada, sendo que ao Estado cabe administrar o seu
tensionamento como instrumento de equilíbrio de poder, garantindo a
permanência da dualidade dos códigos e normas sociais.
4.
Constituição de 1824, Título VIII, art.179, item 32 (Dantes Junior, 1937). Observase que o estabelecimento das aulas públicas se fez nos tempos do Brasil colonial
por meio do Alvará Régio de 1759. Entretanto, a ênfase a ser dada nesse estudo
refere-se à enunciação da escola como estratégia constitucional de produção de
cidadãos. Destaca-se ainda que apesar da escola gratuita ter sido promulgada na
Constituição de 1824, somente será instituída pela lei de 15 de outubro de 1827.
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
No conjunto da legislação da instrução pública é possível identificar
claramente o que as leis universalizam e o que individualizam na ambígua discussão de direitos e deveres dos cidadãos em prol de um imaginário coletivo. Do ponto de vista da produção da infância foi-lhe conferida
uma identidade peculiar, a de aluno. A lei universalizou as idades
identificadoras dessa etapa da vida em relação a um lugar específico, a
escola, entretanto individualizou a sua condição de realização pela indicação da obrigatoriedade dos pais de família em dar a seus filhos a instrução primária5. Podemos dizer que a infância na escola foi produzida a
partir de um tensionamento entre as prescrições do âmbito mais universalizado, ao enfatizar a idéia recorrente de que lugar da criança é na escola –
essa enquanto processo de produção do cidadão –, bem como no âmbito
privado da esfera doméstica e familiar. Observa-se a interdição na rotina
familiar ao estabelecer que os pais são obrigados a enviar os filhos à escola, com penas previstas no caso do descumprimento da lei.
Nesse sentido, na intenção da produção de uma eficácia das normas,
as leis da instrução regulamentaram uma série de dispositivos relativos
aos processos de escolarização da infância. Isso se deu em duas perspectivas, por meio dos procedimentos que regulam as possibilidades de
tornar a infância escolarizada e pela previsão da produção de um corpus
documental, estabelecendo mesmo uma nova economia escriturística,
capaz de agir sobre o meio e transformá-lo (Certeau, 1994).
Na perspectiva de tornar a infância escolarizada podemos destacar
os seguintes procedimentos: definição do currículo escolar, materiais e
métodos de ensino, estabelecimento da faixa etária escolar6, indicação
das correções disciplinares, diferenciação quanto a organização das escolas de meninos e de meninas, condições para as crianças pobres freqüentarem as aulas públicas e particulares, indicação dos tempos e es-
5.
6.
Trata-se da lei provincial n. 13, artigo 12, 1835 (Livro da Lei Mineira). A descentralização administrativa da instrução pública fez-se a partir do ato adicional à
Constituição de 12 de agosto de 1834. Nele os conselhos gerais foram substituídos
pelas Assembléias Legislativas provinciais, às quais competia, entre outras, legislar sobre a instrução elementar (Dantas Júnior, 1937).
Observa-se uma variação, mesmo que pequena, na fixação da faixa etária.
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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paços escolares e fixação das regras para o exercício da profissão docente. Sobre a criação do corpus documental, a legislação instituiu a
produção de relatos de presidentes da província, delegados literários e
inspetores, bem como previu a escrita de requerimentos, reclamações e
queixas que poderiam ser encaminhados às autoridades, além de promover a produção de instrumentos de verificação tais como censo dos
habitantes livres, mapas da população, mapas de freqüência, listas de
pais omissos etc. Esse corpus documental produzido a partir da legislação nos possibilita maiores condições de dar intelegibilidade ao campo
de conflitos e tensões presentes na lei, indicando para o fato de que as
condições de escolarização da infância se fizeram tensionadas por problemas relativos ao próprio imaginário de sociedade civilizada em constituição na época. Como parte desse contexto esteve uma sociedade que
se pretendia civilizada, mas era escravocrata, que se pretendia branca,
mas era mestiça, acrescidas a isso temos limitações de ordem material,
tais como condições de trabalho da população livre, as condições de
circulação e transporte e a existência de uma cultura política marcada
por relações clientelísticas.
Em relação à prescrição constitucional, o Brasil foi um dos primeiros países, senão o primeiro, a estabelecer a gratuidade escolar em uma
Constituição, mesmo que desde o século XVIII em diferentes Estadosnações já estivesse presente a intenção de propagar a instrução a todos e
de criar órgãos elaboradores de políticas nacionais da instrução. Entretanto, o estabelecimento dos preceitos da gratuidade, laicidade e obrigatoriedade do ensino não se fizeram em bloco7. Para compreender a especificidade brasileira, seriam necessários outros estudos, de qualquer
7.
Na França tem-se a gratuidade em 1881 e obrigatoriedade e laicização em 1882
(Petitat, 1994). Em Portugal, a obrigação da freqüência é da Carta Constitucional
(1822) e a gratuidade está no Regulamento Geral da Instrução Pública de 1853
(Ministério da Educação, 1986). No que diz respeito a estruturação de órgãos administradores da educação nacional (Ministério da Instrução), Lourenço Filho apresenta os seguintes dados, entre 1800 e 1850: Suécia, Noruega, França, Grécia,
Egito, Hungria; em 1857, na Turquia; Romênia, 1864; Japão, 1871; Nova Zelândia,
1877; Bélgica e Bulgária, 1878; Portugal 1890 (Lourenço Filho, 1974, p. 22).
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maneira, se na maioria dos países foram instituídos órgãos administrativos centralizadores de uma política nacional de forma a propiciar o estabelecimento dos preceitos da instrução pública até mesmo antes da
gratuidade escolar, o que ocorre no Brasil é o inverso. O Ministério da
Instrução Pública, Correios e Telégrafos foi criado em 1890, e extinto
em 1891, e somente em 1930 tivemos a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública.
Queremos enfatizar que a cultura política da administração e discussão de uma política da difusão da instrução elementar no Brasil se fez de
forma regionalizada e descentralizada do ponto de vista administrativo.
A centralização restringiu-se ao preceito constitucional da gratuidade e
de uma certa forma da não laicidade, dado que a religião católica era
religião oficial do Império. Em relação a esse último, salienta-se que as
orientações de uma educação fundamentada nos preceitos cristãos estiveram presentes no currículo escolar das crianças ao longo do Império,
mesmo que na legislação provincial mineira de 1859, regulamento 44,
artigo 24, afirmasse que os indivíduos não pertencentes à crença católica
não seriam obrigados a receber o ensino religioso. Entretanto ser católico apostólico romano foi uma das condições para ser professor.
A regulamentação da obrigatoriedade da freqüência escolar foi, portanto, função das legislações provinciais e mais estudos sobre tais legislações em outras províncias brasileiras nos possibilitariam ter um quadro mais amplo de suas variações ou aproximações. No caso de Minas
Gerais a obrigatoriedade foi instituída pela lei n. 13 de 1835 e os requisitos para o seu cumprimento alteraram pouco ao longo do Império,
permanecendo sempre o requisito de as crianças serem livres.
Destaca-se ainda que a legislação somente passa a considerar a escola obrigatória também para as meninas em 1882 por meio da lei 2.892,
regulamento n. 100. Ainda assim nos períodos anteriores, a freqüência
das meninas era estimulada conforme consta nos relatórios e na regulamentação das formas de freqüência (número de alunas necessário para
abrir uma cadeira pública de instrução do sexo feminino) e localização
das aulas.
A freqüência a uma aula pública de instrução elementar (1º e 2º
graus) poderia ser feita por crianças maiores de 5 e menores de 14 anos,
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
83
mas a obrigatoriedade de os pais enviarem seus filhos à escola obedecia
aos quesitos distância, idade e gênero. Quanto à idade para os meninos,
tem-se 8 aos 14 anos (1835); 8 aos 15 anos (1872) e 7 aos 12 anos
(1879); e para as meninas, em 1882, a faixa etária é de 6 a 11 anos.
Quanto à distância, a obrigatoriedade somente se referia aos meninos
que residissem num raio de 1km da escola (1835) e a partir de 1883, um
raio de 2km, e para as meninas, 1km.
Se a legislação prioritariamente normatizou as formas de instituição
da obrigatoriedade escolar e universalizou uma faixa etária que deveria
ser beneficiada por ela, por sua vez, como veremos, os relatos e os instrumentos de verificação nos dão conta de uma tensão permanente entre
a necessidade do cumprimento da lei por parte dos agentes do Estado e
os sujeitos aos quais a lei se refere, a população (pais de alunos) e professores. Destaca-se inclusive que a ação desses sujeitos foi importante
na definição de mudanças na própria legislação ao longo do século XIX,
indicando para conflitos no cumprimento das normas.
Estratégias discursivas para o enfrentamento da lei
No segundo tipo de documentação analisado procurou-se
problematizar, no caso dos relatórios dos presidentes da província e dos
delegados literários, as estratégias discursivas adotadas para o cumprimento da lei e as justificativas de seu não-cumprimento e de que maneira a infância escolar é representada. E também nos ofícios e correspondências, observar de que maneira a população (famílias) se manifestou
em relação ao cumprimento da obrigatoriedade em fazer seus filhos freqüentarem as aulas.
Ao longo do período investigado é possível observar alguns temas
recorrentes, algumas peculiaridades próprias da escrita dos relatos, bem
como o tratamento essencialmente formal e burocrático de registro dos
dados da instrução. De qualquer forma entendemos como Certeau que
“o discurso normativo só anda se já houver um relato [...] Sua fixação
em um relato é o dado pressuposto para que produza ainda relato fazendo-se acreditar” (Certeau, 1994, p. 241, grifos do original).
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Como dissemos, de uma maneira geral, os relatórios acompanham
as mudanças ocorridas na legislação, o objetivo de sua escrita é dar a
ver a execução das leis ou, na sua impossibilidade, produzir argumentos
justificadores. Evidentemente que a questão central se referiu ao cumprimento do dispositivo constitucional da gratuidade do ensino elementar e do dispositivo da obrigatoriedade da freqüência escolar presente
na lei provincial n. 13 de 1835. Observa-se que essas legislações se
referem especialmente às camadas pobres da população, cujos pais em
geral não poderiam pagar um mestre particular, incidindo sobre uma
condição de inserção na sociedade.
Nos relatos estiveram presentes argumentos distintos para lidar com
a perspectiva dual e contraditória da normatização da escola obrigatória. O apelo à difusão da instrução elementar foi parte de uma codificação
fundamentada nos princípios igualitários e humanitários produzidos a
partir de fins do século XVIII, enfatizando-se a associação entre instrução e civilização. O registro desse tipo de concepção é recorrente nos
discursos dos vários relatórios, em geral se apresenta como uma estratégia para demarcar o compromisso das elites administrativas com o emprego público ou com a indicação política do cargo que ocupavam e
afirmar que são, antes de tudo, representantes do pensamento das sociedades civilizadas. Como tantos outros, é o que afirma o presidente João
Crispino Soares em seu relatório de 1863: “O progresso, lei da humanidade, não se pode realizar sem a moralização do povo”, ou ainda
Theophilo Ottoni em 1882,
O ensino obrigatório é o alicerce da civilização, a pedra fundamental do
verdadeiro progresso, banir a ignorância, rejeitar o analfabeto como um leproso, procurar a criança nos esconderijos do lar doméstico e chamá-la à
escola, vencer a indiferença dos pais é sem dúvida a mais gloriosa legenda
do ensino [Falla, 1882].
Mas também tais discursos remetem aos princípios fundadores do
Estado e da integridade dos indivíduos, como podemos observar no relatório de Antônio da Costa Pinto, em 1837,
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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Se por um lado a instrução é indispensável em uma sociedade bem regulada, para que o homem possa apreciar devidamente seus imprescritíveis direitos e os deveres correlativos que tem de cumprir, por outro, não é menos
essencial, refletindo-se que sem ela, impossível é desenvolver-se a indústria
em todos os ramos de que se compõem a alimentar o amor ao trabalho, que,
entre outras coisas, mais eficazmente contribuirão para darem ao País duradoura tranqüilidade, riquezas, estabilidade em suas instituições, em suma, a
felicidade social [Falla, 1837].
O desenvolvimento da instrução tornou-se um elemento discursivo
fundamental para afirmar a soberania, a organização política e a condição de liberdade pública. Assim afirmava Pedro de Alcântara Cerqueira
Leite, em 1865,
Quando o povo por si ou seus comissários é chamado a decidir seus próprios negócios, a zelar seus direitos, e cumprir religiosamente os deveres
severos do cidadão livre, é indispensável que possua alguns conhecimentos,
que saiba avaliar a importância desses direitos, e compreenda as vantagens
que pode encontrar na observância de seus deveres. Povo instruído e governo livre são fatos que tem entre si a relação de causa e efeito. Desde que
existe instrução entre um povo, pouco tardará que ele goze também de liberdade política; se pelo contrário sua instrução desaparece, em breve com ela
desaparecerá também a liberdade [Relatório, 1865].
Assiste-se, pois, a um movimento permanente dos dois códigos, a
ênfase na necessidade de difusão da instrução como causa da civilização e por outro como garantia da legitimidade do Estado e integridade
dos indivíduos.
Entretanto, diferentes problemas concorreram para a não-efetivação da disseminação da instrução elementar, não necessariamente demonstrando a ineficácia da norma, mas talvez pelo fato exatamente de
atuar sobre a “exterioridade social”. No conjunto das questões apresentadas nos relatórios para o problema central do cumprimento da
gratuidade e da obrigatoriedade do ensino destacaram-se problemas relativos às formas de administração das verbas provinciais, estrutura geo-
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
gráfica e meios de comunicação da província (população dispersa, ausência e precariedade de vias de transporte e comunicação), mas também questões relativas à cultura familiar e às condições materiais da
população. Enfim, foram muitos os indicadores produzidos nos relatos
para a infreqüência escolar e para a precariedade do funcionamento das
aulas públicas de instrução elementar.
A escola gratuita estabeleceu-se a partir da vinculação entre criação
de cadeiras de instrução pública e seu provimento por um(a) professor(a),
sendo que ao longo do período imperial foram sendo definidas as condições de seu funcionamento, tal como salas e/ou prédio, materiais escolares e livros. É registro recorrente nos relatórios a limitação material de
funcionamento das aulas bem como a inadequada formação dos professores, ou mesmo a ausência de professores aptos a prover as cadeiras.
Como conseqüência, também a partir dos relatos, foi-se alterando as
leis, instituindo-se fontes de donativos para as aulas pela criação das
caixas escolares, além de toda uma sofisticação na regulamentação do
trabalho docente que, entretanto, pouco alterou a rotina escolar ao longo do século XIX.
Em um dos últimos relatórios do império, o presidente Horta Barbosa afirmava em 1 de junho de 1888 que:
As condições da instrução pública infelizmente não tem melhorado de modo
sensível, apesar de todos os esforços empregados. A multiplicidade de cadeiras de instrução primária infelizmente não basta para que se consiga o desejado efeito de todos os esforços empregados [Falla, 1888].
Como causas principais do estado lastimável da instrução pública
elementar o presidente indica as lacunas e imperfeições na organização
das escolas normais, a ineficácia da inspeção escolar tendo em vista a
disseminação da população e a não-remuneração desses funcionários.
Assinala ainda a deficiência dos prédios, a falta de mobílias, livros e
outros objetos indispensáveis ao ensino. Outro grande problema que se
apresentava para o cumprimento da lei esteve também nas representações elaboradas em torno das relações entre pais (ou responsáveis) e
filhos, além da constatação dos problemas materiais das famílias.
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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A operação escriturística da administração da instrução pública neste período fez-se estabelecendo-se uma rígida demarcação entre um “nós”
e um “eles”. Como representantes da sociedade civilizada, as elites afirmaram que um dos principais obstáculos para a efetivação da instrução
era a ignorância da população e dos pais de família que não compreendiam a importância de enviar os filhos à escola (Veiga, 2004). Para as
elites administrativas era preciso ter paciência, pois o tempo é o melhor
remédio. No relato do delegado literário Modesto Andrade, de 1873, há
uma associação entre a infância e a sociedade brasileira,
Reconheçamos a triste realidade em que vivemos. Nós nascemos ontem e
assim como a infância é a fraqueza do presente e a esperança do futuro,
assim como ela não suporta os exercícios e os cometimentos de que só a
virilidade é capaz, assim também a infância das sociedades tem leis invariáveis, que não podem ser feridas, sem que elas sofram males incalculáveis
[Relatório, 1873].
Os conflitos provocados pela necessidade de cumprimento dos códigos da instrução podem ser também problematizados nos ofícios e
correspondências diversas elaborados pelas famílias e autoridades, professores e autoridades, ou mesmo entre as autoridades quando, por exemplo, trocam informações entre si sobre a melhor forma de interpretar a
lei. Os relatos discutem problemas os mais diversos, sendo que no âmbito das autoridades, o tema principal é o problema da infreqüência ou
freqüência irregular das crianças às aulas, seguido de pedidos de material escolar para alunos pobres, relatos sobre a pobreza das famílias,
problemas relativos aos professores “que não cumprem seus deveres” e
ainda a resistência dos pais em enviarem os filhos à escola. Por sua vez,
na correspondência que os professores encaminham às autoridades, as
queixas incidem sobre faltas ou atrasos de pagamento, remoção para
outras localidades sem justificativa, perseguições políticas que os prejudicam, desavenças com pais de família, pedidos de materiais e livros
escolares, mas também fazem sugestões em relação a mudanças dos
períodos de exames e da organização do tempo escolar. No âmbito das
famílias, há queixas em relação aos professores, a ausência de condi-
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ções de enviar seus filhos à escola e também problemas relativos à distância e dificuldades de acesso à aula do mestre.
No conjunto das correspondências destacar-se-á aqui o problema
da pobreza e do trabalho infantil nas diferentes formas de sua apresentação. Em relação ao trabalho infantil, seja doméstico, seja particular é
importante salientar que a lei da obrigatoriedade escolar provocou tensões no mundo do trabalho e na organização do trabalho domiciliar8.
As autoridades ora reconhecem a precariedade material das famílias e
a necessidade do trabalho dos filhos ou da sua ajuda em casa, ora apresentam um discurso moralista e preconceituoso em relação a essa prática.
Em documento de 19 de janeiro de 1839 do delegado literário Joaquim Cicelis para o presidente da província o mesmo alega que a causa da
infrequência nas escolas “[...] provém da rebeldia dos pais e Educadores
em preferirem ao insignificante serviço que recebem de seus filhos a darlhes instrução [...]” (SP/C232). No caso, o delegado sugere penas mais
eficazes para que os pais cumpram a lei e mandem os filhos para a escola.
Em 13 de abril do mesmo ano, outro delegado, Carlos Pereira Moura,
afirma que o motivo da infrequência era devido a “[...] carestia e falta de
víveres, acrescendo a grande pobreza da população [...]” (SP/C233).
Noutra documentação, temos que a professora Raymunda Nonato
Franco, tendo sido questionada pelo delegado a respeito da freqüência
irregular de seus alunos, encaminha correspondência diretamente ao
inspetor geral da instrução pública em 18 de março de 1887. Nesse ofício ela afirma que “...os pais não estão mandando os filhos para a escola
porque os meninos tem que ir para cidade vender leite [...]” (SP/IP 1/1/
cx.58/p. 18). Diz ainda ter gastado seus vencimentos com compra de
papel, tintas e penas e que estava sendo “perseguida” pelo delegado. A
professora anexa a seu ofício depoimentos de pais de alunos
posicionando-se em sua defesa e abaixo-assinado dos pais a seu favor.
8.
Engels (1820-1895) analisa na Inglaterra os incômodos da mesma lei para os capitalistas ingleses e demonstra como do embate surgiram as leis regulamentadoras
do trabalho infantil (Engels, 1985). Também no Brasil, em 1891, ocorreu a mesma
normatização na intenção de delimitar as idades para a inserção no trabalho e regulamentar a jornada de trabalho.
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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Em uma outra situação, num ofício de 28 de março de 1836, o delegado literário consulta o presidente da província a respeito de qual decisão tomar em relação a uma mãe de família, Marta Ribeiro da Costa,
parda, empregada em uma Fazenda de Contendas, que havia sido notificada pelo Juiz de Paz por não encaminhar o filho à escola. Como resultado da consulta, foi expedido em 25 de maio de 1836 o seguinte ofício
para o juiz expondo os motivos da mãe e a dificuldade de fazer com que
ela seja multada por descumprir a lei.
1.º Mora a 6 léguas distante do Arraial, sede da aula, tem a seu cargo, 2
filhas, sem outro meio de subsistência, além da lavoura, se emprega esta
pobre família composta de 04 indivíduos, sendo mais útil o filho, apesar da
tenra idade. 2.º Faltam todos os meios para manter aquele filho em qualquer
aplicação. 3.º Das razões alegadas, a suplicante pelo seu desvalimento não
acha no Arraial quem o admita em casa e zele por suas pueris [...] de que é
suscetível a natureza humana. Entregue o impúbere a descrição do tempo...
as paixões, muito mais depressa se entregaria a corrupção e imoralidade que
as lições ditadas pelo professor que de nada conhece fora da aula. 4º. A suplicante se desencarregou da escola para aquele filho. “por causa de um só filho
vem a perder todos” (não tem como pagar a multa)... São estas as tristes
circunstâncias da desgraçada [SP/IP 1/42/cx. 5/p. 60].
Ainda em relação ao trabalho infantil na correspondência de 15 de
julho de 1877 do inspetor Bernadino Coutinho ao inspetor geral Camilo
da Cunha e Figueiredo em que pede livros escolares para os alunos pobres registra-se:
V.Exª sabe perfeitamente que a classe pobre mais numerosa, cujos meninos não sendo auxiliados em tempo, não podem adquirir instrução proveitosa, pela demanda ao trabalho a que são forçados prematuramente, por que
concorre além de muitas faltas por serem distraídos pelos pais, a necessidade
de deixarem a escola pouco adiantado [...] [SP 1/2/cx. 2/p. 35].
Associado ao trabalho, a situação de pobreza é, pois, também recorrente. No ofício de 26 de janeiro de 1837 do delegado José Rodrigues
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Duarte ao presidente da província, ao abordar a lei constitucional de
gratuidade escolar para discutir a aplicabilidade da lei na sociedade, se
pergunta: “De que vale ao pobre saber que tem a Escola para mandar
seu filho, se ele não pode comprar aquilo de que o mesmo filho necessita para desenvolver seu espírito?” (SP/PP 1/42/cx. 9/p. 3).
Também o delegado Antônio Antunez, em correspondência de 23 de
novembro de 1883 ao presidente, registra a situação da freguesia de Bento Rodrigues: “o lugar é pobre e pequeno” e que com muita dificuldade se
consegue que os pais mandem os filhos a escola, “por isso não pode exigir deles dinheiro para utensílios de aula”. Em visita a uma aula do sexo
feminino afirma que encontrou “umas cosendo por não terem livros e
outras assentadas no chão por não haver bancos” (SP/PP 1/42/cx. 27).
Na data de 14 de janeiro de 1834, em uma correspondência ao presidente da província (SP/PP 2/4/cx. 1/p. 3), o professor Santos Augusto
de Queiroz diz que leciona em sua casa para mais ou menos oitenta
alunos pelo método antigo porque a província não lhe oferece lugar
ideal e utensílios necessários para atender a todos os alunos, afirma ainda que todos os dias vários deles são levados pelos pais por falta de
espaço. Já em outro ofício de 25 de janeiro de 1979, o delegado literário
comunica que “Todas as escolas desta comarca estão em péssimas circunstâncias, por enquanto nem ao menos compêndios suficientes para
os alunos pobres lhes tem sido fornecidos” (SP/IP 1/1/cx. 9/p. 2). O
exercício da lei é revelador do campo de conflitos entre uma norma a
cumprir e as condições concretas de sua efetivação. O conteúdo dos
relatos remete à discussão da simbologia presente na legislação ao prescrever a articulação das práticas sociais em torno do ideário da escolarização e do seu tensionamento com a heterogeneidade das mesmas práticas.
Por sua vez as correspondências dos pais de alunos fizeram-se por
meio de ofícios às autoridades ou de abaixo-assinados. Entre os ofícios
há um, por exemplo, em que o pai justifica que irá tirar seu filho da
escola porque o professor havia castigado o menino com 33 “palmatoadas” em uma só manhã e por esse motivo comunica que irá ensinar seu
filho em casa. Como conseqüência o delegado consulta o presidente
sobre interpretação da lei que fala de castigos moderados (SP/PP 1/42/
cx. 10/p. 39).
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
91
Foi possível localizar vários abaixo-assinados em defesa da conduta de professores, como pedidos de nomeação, mas também reclamando
do seu comportamento. Uma questão importante a observar é que a regulamentação da obrigatoriedade escolar se apresenta como um dever
das famílias, entretanto ao longo do século XIX a prescrição foi aos
poucos assimilada também como um direito. Isso pode ser identificado
mediante as representações encaminhadas pelos habitantes de várias localidades solicitando aberturas de cadeiras de instrução elementar ou
mesmo subvenção para que seus filhos freqüentem professores particulares. Entre outros registros pode-se destacar a correspondência de 26 de
agosto de 1873 entre o inspetor Antonio Miz e o presidente da província
Venâncio Lisboa que apresenta um ofício anexo do delegado literário
Severino Barbosa contendo um abaixo-assinado nos seguintes termos,
Os moradores da povoação de Santo Antônio de Salto Alto, Bahu, Engenho e Dernebada, pertencentes a freguesia de Antonio Dias, termo de Ouro
Preto pedem uma subvenção para o professor particular de Salto, João Marinho Bastos, porque os suplicantes são pobres lavradores que mal tem condições de sustentar a família e portanto não possuem condições de pagar a
mensalidade de mil reis por menino. Além disso a aula pública de primeiras
letras de Lavras Novas ainda que estivesse provida de professor não podia e
nem pode ser útil aos suplicantes porque além de estar distante mais ou menos duas léguas, tem nesse espaço matas e um rio que nem sempre dá trânsito [SP/PP ¼/cx. 16].
Anexo a outra correspondência de 23 de setembro de 1887, os pais
pedem “pela educação das meninas da freguesia”, alegam que a cadeira já
havia sido criada e requerem verba necessária para concurso e provimento da cadeira. Ao final dizem contar com os sentimentos nobres e humanitários do presidente em prol das meninas pobres (SP/PP ¼/cx. 39).
Segundo Certeau “o jogo escriturístico, produção de um sistema,
espaço de formalização, tem como ‘sentido’ remeter à realidade de que
se distinguiu em vista de mudá-la. Tem como alvo uma eficácia social.
Atua sobre sua exterioridade” (Certeau, 1999, p. 226, grifos do original). Ou seja, a formalização das práticas da escrita, no caso leis e nor-
92
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mas, são possíveis pelo fato de se distinguirem das práticas sociais efetivas. Sobre esse procedimento atuam duas estratégias, a transformação da
informação recebida na forma de conservação da norma ou a apropriação
da norma e produção de instrumentos que permitam agir sobre o meio e
transformá-lo. A escrita do abaixo-assinado dos pais de alunos permitenos observar a dupla dimensão da apropriação da norma da obrigatoriedade escolar, como conservação, mas também como transformação.
Entretanto, apesar da expressa intenção dos pais de reivindicar ou
mesmo intervir na aplicabilidade das leis, vários questionamentos se apresentam nas escritas de abaixo-assinados e depoimentos de pais de alunos.
Dado o elevado índice de analfabetismo, não se tem pistas sobre as condições de escrita desses documentos, principalmente dada a cultura política
de redes de clientelismo presentes no Brasil monárquico. Para isso, seria
preciso uma investigação ainda mais amplificada, principalmente porque
em várias correspondências há denúncias de perseguições políticas e desavenças entre políticos locais e/ou professores e/ou pais de família.
Produção de dados sobre as crianças
Apresentaremos agora o terceiro tipo de documentação analisada e
que se refere aos instrumentos de verificação. Sobre os instrumentos
escriturísticos, Certeau afirma que “o instrumento assegura precisamente
a passagem do discurso ao relato por intervenções que encarnam a lei
em lhe conformando corpos, e lhe valem assim o crédito de ser relatada
pelo próprio real” (Certeau, 1999, p. 242). Na perspectiva desse autor
os instrumentos são os operadores da escritura, no caso específico de
que iremos tratar, produção de dados quantitativos e qualitativos, esses
se apresentam como a produção da realidade.
Na legislação imperial são exigidos vários tipos de instrumentos
verificadores inclusive com modelos de preenchimentos tais como: relação de alunos matriculados, tabela de aulas particulares e públicas
existentes, relação de cadeiras de instrução pública e particular e respectivo professor e os mapas de freqüência. Além disso, é recorrente
nos relatórios a reclamação da ausência de dados ou da presença de
dados não confiáveis.
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
93
Em relação aos mapas de freqüência temos que esse instrumento
visava essencialmente à confirmação do exercício do trabalho do professor público, ou melhor, a sua assiduidade e o número de alunos freqüentes à mesma cadeira. Isso ocorria para o cumprimento da lei que
previa para a existência da cadeira pública e o pagamento do professor
uma freqüência mínima de alunos. Em grande parte dos mapas analisados, observamos que não eram feitos mediante preenchimento em papel
impresso, mesmo que isso estivesse previsto desde o regulamento n. 3
de 1835. São mapas confeccionados manualmente, exigindo inclusive
habilidade do professor. Para esses mapas os dados exigidos por lei são:
o nome do menino, filiação, idade, falhas, estando ausente a exigência
do registro da cor do aluno. A condição jurídica, como filho, exposto ou
órfão aparece na coluna filiação.
O modelo proposto em 1835 previa também a escrita de observações e traz os seguintes exemplos: “falência justificada”, “falência sem
causa” e “veio já adiantado em leitura” etc... Embora grande parte dos
mapas apresente registros mínimos, em alguns deles as observações
extrapolam o indicado, como, por exemplo, alguns mapas de 1834 em
que alguns professores registram além do grau de aproveitamento dos
alunos, dados sobre a condição material das famílias (se pobre ou não) e
como os meninos vestiam-se de forma que desse a ver a sua condição de
pobreza.
Em 1860 pelo regulamento 49 da lei 1.064, apresentou-se um outro
modelo de mapa de alunos com diferenciações de registros, um campo
para comportamento (“de boa conduta”, “gênio forte e barulhento”) e
outro para observação (“não tem talento, mas boa conduta”, “talentoso”).
A partir desse período já havia alguns mapas em papel impresso, embora a grande maioria dos professores continue confeccionando-os manualmente. Uma questão a ser problematizada é o significado dessas
observações para a rotina familiar e a criança, que passa a ter parte de
sua identidade produzida por um outro, o Estado e o professor. De qualquer maneira gostaria de ressaltar que os problemas mais enfatizados
pelos delegados e presidentes em seus relatórios referiam-se à freqüência e a infidelidade na confecção dos mapas.
94
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Em 1844, o presidente Francisco José d’Andréa registrava que:
Como pelas leis mineiras devem ser abolidas as escolas que não tiverem
ao menos 24 discípulos, são obrigados os chefes de família a mandarem seus
filhos às escolas; e tem os mestres gratificações além dos ordenados, segundo o número de discípulos que freqüentam: tudo se arranja muito bem. Os
pais matriculam os filhos, e não os mandam à escola; e os mestres enchem as
suas relações de nomes de indivíduos que existem sim, mas que nunca lhes
entram em casa, e põem-lhes os dias de freqüência que bem lhes parece.
Estes mapas vão às mãos dos delegados, que, em não sendo ativos e capazes
de surpreenderem uma ou outra escola para lhes compararem o número de
discípulos dos mapas com os que efetivamente encontrarem, tem de se guiar
por informações, quando outras razões não tenham, só por não perderem o
pobre do mestre de escola, que é pai de família, dão os mapas por exatos, o
governo manda pagar, e a lei fica iludida [Falla, 1844].
Os dados constantes nos mapas nos possibilitam várias análises, restringir-se-á neste texto à discussão relativa à condição jurídica de escravo e à ausência do dado cor. Como já dito, esse dado não é quesito
presente nos modelos de mapas de freqüência que circulam a partir da
lei provincial de 1835. Entretanto, nos mapas localizados anteriormente
a essa lei, relativos as décadas de 1920 e início de 1930, há o registro da
cor (pardo, preto, negro, branco) e da condição jurídica de escravo (Veiga,
2003). A presença desses dados nesse período e não no período pós
1835 nos instigam múltiplos questionamentos.
Em primeiro lugar em relação aos dados sobre a freqüência de meninos escravos a aulas públicas, apesar da proibição constitucional, podese aventar com a hipótese de que talvez essa interdição não era de total
conhecimento dos mestres e em contrapartida pode ser referente a uma
tradição anterior de freqüência dos escravos à instrução9. Entretanto, é
provável que a proibição constitucional de freqüência de escravos às
9.
É o que se pode observar na pesquisa em andamento “Processos e práticas educativas na capitania de Minas Gerais (1750-1822)” (Fonseca, 2003).
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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aulas públicas faça parte da estruturação da monarquia constitucional
na previsão e afirmação da produção do cidadão. Nesse caso à condição
de escravo enquanto mercadoria se agregou um novo valor, o de nãocidadão. Ou seja, a sua interdição à escola esteve associada a uma nova
organização social que reconhecia os direitos da população à escola,
desde que livre, enquanto uma nova postura de gestão do público.
Já os dados relativos à freqüência de meninos escravos a aulas nas
décadas de 1920 e 1930, destaca-se que se encontrou maior registro de
sua freqüência em mapas de aulas particulares que públicas, portanto os
senhores pagavam pelos estudos de seus escravos. Não obstante, na
Constituição e em toda legislação posterior não há nenhuma menção de
proibição de escravos freqüentarem mestres particulares. O que foi reiterado permanentemente é a proibição de sua freqüência a aulas públicas de professores providos pelo Estado. Isso talvez nos possibilite entender a afirmação do vice-diretor da Instrução, Antonio José Ribeiro
Bhering, em seu relatório de 22 de fevereiro de 1852:
Em todas as fazendas há mestres particulares da família. Os próprios escravos têm seus mestres. Não é raro encontrar-se nas tabernas das estradas,
nas lojas de sapateiros e alfaiates 2, 3, 4 e mais meninos aprendendo a ler
[Relatório, 1852].
Excetuando essa menção de Bhering, no período posterior a 1835
não foram localizados outros dados de freqüência de escravos. Isso talvez porque o controle e a exigência da elaboração dos mapas de freqüência foram acentuados para os professores públicos como condição
para o recebimento de seus salários. Inclusive, no caso dos mestres particulares a maior queixa dos presidentes e delegados era a ausência de
notícias sobre o funcionamento dessas aulas. Como não dependiam desse
instrumento para receber salário, a não ser que recebessem subvenção,
desincumbiam-se dessa tarefa, o que pode ser observado nos mapas localizados no período, sendo a maioria de professores públicos. Queremos afirmar com isso que haveria a possibilidade de que as crianças
escravas tenham tido acesso à instrução elementar, desde que de forma
particular ou mesmo no chamado ensino doméstico, sendo que para essa
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
modalidade não havia nenhuma prescrição normativa, na legislação é
denominado ensino livre sem necessidade de inspeção.
Verificou-se o acesso de escravos à instrução também em outro tipo
de fonte, os atestados de batismo. O atestado era parte da documentação
exigida para ingresso nas escolas normais. A partir da década de 1970,
foram localizados pedidos de pessoas com idades em torno de 12 e 13
anos que eram filhos de escravos; infere-se, portanto, que sabiam ler e
escrever antes mesmo da Lei do Ventre Livre, embora ainda não seja
possível conhecer como esse saber foi adquirido (Veiga, 2003).
Sobre o registro da cor, a ausência total desse dado a partir de 1835
nos possibilita pensar numa dimensão oposta à interdição das crianças
escravas às escolas públicas. Ou seja, na produção do imaginário de
uma nação civilizada esteve a necessidade de inserção, via escolarização, de todos na sociedade, independente das cores. Em uma análise
mesmo que parcial sobre a legislação da instrução pública em outras
províncias, constata-se que no Rio de Janeiro houve a proibição de freqüência à escola pública do “preto africano”, no caso o não-brasileiro, e
em São Pedro do Rio Grande do Sul há o registro expresso da proibição
de freqüência de “pretos” (Primitivo, 1940).
Portanto excetuando essa província, é possível afirmar que no processo de institucionalização da instrução elementar no Brasil houve uma distinção entre cor (qualidade) e condição jurídica (ser livre/ser escravo) na
previsão da gratuidade escolar e freqüência obrigatória. Retomando a
questão apresentada anteriormente, o projeto de escolarização ampla foi
um projeto de produção do cidadão, em que a interdição não esteve na cor
das crianças, mas na condição de serem livres. Para ampliarmos essa discussão penso ser necessário trazer a questão relativa ao grau de mestiçagem
da população brasileira, o que não ocorreu em países como os EUA, originando escolas segregadas para brancos e negros.
No caso específico de Minas Gerais, os dados da população indicam para uma significativa mestiçagem (Reis, 1995), dessa maneira a
interdição da população negra e mestiça à instrução elementar se reverteria na própria impossibilidade do estabelecimento da escola. Contudo, se a expansão da escolarização, cujo objetivo esteve associado à
necessidade de desfazer-se da cor pela educação, pressupunha uma
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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homogeneização cultural, essa deve ser refletida no quadro de uma população mestiça, ou seja, dos hábitos e costumes mestiços.
Embora a cor não esteja registrada nos mapas de freqüência, a partir
de dois outros instrumentos de verificação e de seu cruzamento, quando
de uma mesma localidade, identificou-se a presença de crianças de várias
cores como possíveis freqüentadoras das aulas públicas. Trata-se dos mapas
da população e das listas de crianças aptas a freqüentar a escola. É curioso
observar que nos mapas populacionais se manteve o registro das cores na
perspectiva de governamentalidade (Foucault, 1981) e do conhecimento
da população que se governa. Entretanto a estratégia não é a mesma para
o ramo do serviço público da instrução, pois trata-se da educação de crianças, de futuros cidadãos e, por isso mesmo, independente de suas cores.
Para a criação das cadeiras de instrução elementar houve a orientação de que os delegados ou juízes de paz deveriam comunicar ao presidente da província o censo dos habitantes livres. Em uma correspondência de 13 de fevereiro de 1840 temos a seguinte comunicação:
O presidente para poder considerar o que se pede o ofício do delegado em
relação a criação de escolas de 1º grau de primeiras letras em algum curato
do círculo de sua jurisdição, ordene que exija dos respectivos juízes de paz
para enviarem ao governo mapas dos habitantes livres até a distância de ¼ de
légua, a relação de meninos e meninas que de acordo com a lei tiverem na
idade escolar [SP/C 267].
Portanto, a partir do cruzamento entre mapas da população e das
listas de alunos, em idade de freqüentar a escola, de uma mesma localidade e no mesmo ano, constatou-se que inexistiu a interdição da cor dos
alunos. A confecção desses instrumentos atendia ao disposto e exigido
em lei, os pais eram obrigados a enviar à escola os filhos que estavam
em determinada faixa etária. A título de exemplo, ao confrontar o “Mapa
dos habitantes livres de Santo Antônio da Casa Branca” de 1839 com a
“Lista de meninos que há possibilidade de freqüentarem uma escola
pública de instrução primária” de mesma localidade e ano, verificandose ainda o nome dos pais e das crianças numa e noutra lista, tem-se os
seguintes dados:
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Situação no fogo
Cor
Número de crianças
Filho
Crioula
Agregado
4
2
2
Parda
55
53
2
Branca
63
61
2
Fonte: S.P Códice 233 (Veiga, 2003)
Por sua vez, as condições de freqüência das crianças registradas com
outras cores que não a branca estiveram muito associadas ao problema
da pobreza, inclusive as próprias crianças brancas. Embora na análise
da documentação sobre a instituição pública em Minas Gerais ainda
não tenha sido possível detectar registros declarados de preconceito racial, há registros sutis desqualificadores de população escolar, associados à condição material e à sua situação de marginalidade ante o imaginário de sociedade civilizada.
Representações da infância no conjunto
da operação escriturística
Em relação às representações de infância, observam-se algumas
variações ao longo do período. A documentação fabrica a infância relacionada à produção da identidade de aluno, mesmo que outras referências se façam presentes, ou seja, as relações geracionais são fortemente
marcadas por esse novo lugar social: a escola. Para melhor desenvolvimento dessa questão é importante demarcar as formas como tais relações se estruturam, ou melhor, temos que as representações de uma infância escolar se fizeram a partir de múltiplos lugares, cujas
denominações estiveram definidas na dinâmica relacional adulto/criança. De um lado teremos, pois, a variação do lugar do adulto: pai, representante do governo, professor; de outro a variação do lugar da infância: filho, criança, aluno, menino/menina.
Essa variação fez-se a partir da ênfase a ser dada nessa relação; nesse sentido entendemos que as formações sociais se estabeleceram his-
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
99
toricamente pela existência de redes de dependência e interdependência
humanas, individuais e/ou grupos e ou/ societárias. Essas redes desenvolveram-se a partir da interdependência de funções (por exemplo: trabalho, propriedade, instintos, afetos) que não são exteriores aos indivíduos e nem uma soma de vontades, mas de uma dependência funcional.
Compreende-se de acordo com Elias (1994) que a condição da existência humana é relacional, o que ele conceitua como configuração.
Na legislação, a ênfase maior foi dada à produção da infância como
aluno, estabelecendo o seu lugar na burocracia do Estado ao normatizar
a matrícula, os mapas de freqüência, exames, meios disciplinares, e também o lugar do professor da instrução elementar. Com relação a esse
último é interessante observar no regulamento 44 de 1859 uma diferenciação presente nos artigos 48 e 49, qual seja, indivíduos que lecionam
matérias primárias são denominados professores e os que as freqüentam
são denominados alunos ou escolares; aqueles que lecionam no secundário são denominados preceptores ou instituidores da mocidade e o
que freqüentam tais aulas, estudantes ou aulistas, o legislador adverte
que ambos são educandos. Essa questão parece ter sido fruto de algumas discussões; em correspondência do presidente da província com
um professor de instrução elementar da Vila do Curvelo, datada de 24
de fevereiro de 1840, aquele afirma o seguinte:
O governo não concorda com o professor quando o mesmo sugere a palavra Estudante para alunos das escolas de instrução primária e que no caso
contrário oferece poucos inconvenientes. São raros os alunos que freqüentam a escola na idade de 16 anos, salvo aqueles que evitam o recrutamento, o
que não pode convir [SP 267, 1839-1840].
Destaca-se também na produção da criança como aluno, a identificação do aluno pobre, em que tanto na legislação quanto nos relatos a
presença dessa modalidade de infância é recorrente. Sua institucionalização fez-se tendo em vista a precariedade material das famílias em
enviar e/ou manter seus filhos na escola. Essa condição deu visibilidade
à imbricação entre Estado-protetor e Estado-providência, no objetivo
de libertar a sociedade das necessidades de risco, num contexto em que
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se aposta menos em caridade religiosa e mais nas parcerias entre
filantropia individual e intervenção da assistência do Estado. Pierre
Rosanvallon chama-nos atenção para a noção de necessidade como algo
difuso e de difícil determinação, afirmando que o “sistema de necessidades se confunde com a dinâmica social” (Rosanvallon, 1997, p. 28).
Por meio do apelo exercido pelas elites quanto às relações entre escola,
civilização e progresso, não temos dúvida de que atender à condição de
pobreza dos alunos é parte de uma nova dinâmica social. Várias foram
as iniciativas para contornar o problema, como a criação de caixas de
assistência e fornecimento pelo Estado de materiais e livros para alunos
pobres, sem contudo demonstrar real eficácia.
Já a denominação das crianças como filhos foram registradas nos
relatórios e na legislação em referência aos “pais” que não mandam os
seus filhos à “escola”, e a denominação meninos/meninas fez-se na definição da faixa etária cuja freqüência escolar deveria ser obrigatória e
também na organização das salas de aulas por gênero. É muito curioso
que apesar da legislação até 1882 não prever a co-educação, indicando
sempre a organização das cadeiras da instrução elementar por gênero
dos alunos e dos professores, provavelmente pela própria movimentação da população, aos poucos se foram fazendo exceções. O regulamento 41 (lei 791) de 1857 permite que meninos com menos de 7 anos
freqüentem as cadeiras do sexo feminino, em 1860 (regulamento 49, lei
1064), registra que nas casas onde há educação de meninas não seriam
admitidos alunos ou moradores do sexo masculino (exceto o marido da
professora) com mais de 10 anos. No regulamento 62 (lei 1871), 1872,
afirma-se que nas cadeiras do sexo feminino podem ser admitidos meninos até 9 anos, principalmente se forem parentes das meninas e também que, onde não houver escola para o sexo feminino, as meninas
seriam admitidas nas de sexo masculino, desde que o professor fosse
casado, sendo que nesse caso a esposa do professor ministraria os trabalhos de agulha. Em 1883 registra-se a possibilidade da co-educação,
desde que nessas cadeiras meninos ou meninas não ultrapassassem a
idade de 12 anos. Observa-se que nessas denominações a infância é
individualizada sendo sua identidade produzida a partir da faixa etária e
do gênero.
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
101
A denominação criança somente foi encontrada com maior ênfase
nos relatórios. O seu registro fez-se de forma bastante peculiar, seja na
associação com os atributos necessários a um professor da instrução
elementar ou vinculado aos saberes da pedagogia, cuja referência se fez
presente nos relatos a partir da década de 1970.
Portanto, nesse período em diante a expressão criança será mais registrada sempre na perspectiva de “tábula rasa” e em relação a uma
prática docente ineficiente. A referência a elas fez-se muito na discussão da necessidade de uma escola normal na província. Na concepção
dos gestores do ensino, tal instituição seria a propagadora de um “método apropriado para incutir no espírito tenro das crianças os são princípios de educação e instrução elementar”, como expresso em 1865 na
fala dos membros de uma comissão indicada para discutir os problemas
de educação na província mineira (Relatório, 1865).
No relatório do inspetor Antonio de Assis Martins, 1873, encontrase pela primeira vez registrada a idéia de que o magistério é um trabalho
para mulheres, pela garantia de moralidade, de docilidade e paciência
para com crianças. Também em 1875, afirma-se que a província precisa
de professores honrosos:
Os vícios que a criança adquire na escola, provenientes de sua má direção,
tarde ou nunca se consegue corrigir, por que para isso é necessária uma instrução superior, que nem a todos é dado adquirir [Relatório, 1875].
Em 1879, Manoel Rebello Horta ao defender o magistério como
função feminina argumenta que “a [...] experiência tem provado que
são elas mais próprias para educar e dirigir os meninos em idade tenra,
exercendo sobre eles influência maternal pela vocação ao ensino e suavidade da sua disciplina [...]” (Falla, 1879). Em muitos outros relatórios
a associação professora/criança fez-se freqüente.
Gostaria de enfatizar com isso que a progressiva feminização do
magistério10 foi fundamental para afirmar a criança no aluno. Mas des10. Isso pode ser observado a partir do registro de professores nos relatórios dos presidentes de província onde lentamente cresce o número de mulheres nomeadas e efetivadas.
102
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taca-se também que é a criança em negativo, associada ao bárbaro, ao
primitivo e ao perverso, mesmo porque há um destaque muito grande
para a especificidade do ofício de professora: tarefa muito difícil, árdua,
exige abnegação e ainda, não com pouca freqüência, os relatos afirmam
ser este um trabalho que quase ninguém quer. Essas questões precisariam ser mais bem aprofundadas no sentido de discutir no processo de
escolarização da infância os imaginários presentes na produção de um
sujeito-criança em relação aos adultos.
Por fim temos que as representações da infância estiveram presentes nos relatos não somente em associação a uma discussão da pedagogia, mas a partir dos anos de 1980, com o higienismo. Nesse período
foram registradas discussões sobre o espaço escolar, a necessidade de
materiais adequados à curiosidade infantil, à inteligência e aos sentidos
das crianças, bem como a necessidade de rever a organização do tempo
escolar, introduzindo-se o recreio.
Nos relatos dessa década em diante, são por vezes citados autores
em circulação na época, como Pestalozzi e Fröebel na produção de argumentos sobre a necessidade de organização de jardins de infância na
província, concebidos como instituições preventivas contra a inércia dos
pais. Lentamente a criança na condição de aluno conquistaria seu espaço de vivência da infância civilizada na sociedade adulta como representante do futuro da humanidade.
Considerações finais
O projeto escriturístico da monarquia constitucional delineou e instituiu formas distintas das pessoas estabelecerem-se na sociedade, como
escravas ou como cidadãs. Essa diferenciação entre a população, fixada
por lei, pôs à prova o imaginário de nação que se queria civilizada, mas
era escravocrata.
Por sua vez a produção da infância civilizada mediante a institucionalização da obrigatoriedade escolar pretendeu ser um esforço de articulação de práticas heterogêneas em função dos princípios humanitários de produção homogênea dos cidadãos de direitos e deveres, e dos
a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
103
princípios individualizadores da escolarização de crianças. Crianças
pobres, negras, mestiças, meninos, meninas, bem ou mal comportadas,
talentosas ou não talentosas passaram pelos bancos escolares, em que
pese toda a precariedade. Elas povoaram a aula de um mestre (adultos
nem sempre em conformidade com a civilização exigida), ou mesmo
abandonaram-na e foram “vender leite na cidade”. As evidentes contradições presentes na implantação da escola ao longo do século XIX nos
indicam que a operação escriturística da administração pública também
pôs à prova o imaginário de uma educação escolar como moralizadora
do povo e como fator de coesão social.
Podemos afirmar que na escritura da nova nação, o que esteve em
evidência não foi apenas a ineficácia das elites em fazer cumprir as leis
por elas próprias elaboradas. Bem como não foi a ineficácia das famílias pobres em assimilá-las e introduzi-las em suas rotinas. O projeto
escriturístico foi lacunar por opor-se à população, por desqualificar seus
hábitos, valores e tradições e por partir de uma escritura anterior que
diferenciava a condição jurídica de inserção na sociedade. Nesse sentido há que se indagar sobre os pressupostos da escritura: querer moldar a
população a partir do escrito e transformar a sociedade em um texto de
conteúdo único.
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installar-se a 1. Sessão da 24. Legislatura em 1. de agosto de 1882 (1882). Ouro
Preto: Typ. de Carlos Andrade.
FALLA que à Assembléia Provincial de Minas Gerais dirigiu o Exmo. sr. dr. Luiz
Eugenio Horta Barbosa ao installar-se a primeira sessão vigésima sétima legislatura
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RELATÓRIO à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou no
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RELATÓRIO à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou no
acto da abertura da sessão ordinária de 1865, o desembargador Pedro de Alcântara
Cerqueira Luiz, presidente da mesma província (1865). Ouro Preto: Typ. do
“Minas Gerais”.
RELATÓRIO apresentado ao Exmo. actual presidente d’esta província o senhor
doutor Luiz Antônio Barboza, pelo Exmo. sr. dr. José Ricardo de Sá Rego (1852).
Ouro Preto: Typ. social.
RELATÓRIO à Assembléia provincial da província de Minas Gerais apresentou na
Sessão ordinária de 1852, o doutor Luiz Antônio Barbosa, presidente da mesma
província (1852). Ouro Preto: Typ. do Bom Senso.
106
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
RELATÓRIO apresentado ao Exmo. atual presidente d’esta província o senhor doutor
Luiz Antônio Barboza, pelo Exmo. sr. dr. José Ricardo de Sá Rego (1852). Ouro
Preto.
RELATÓRIO com que o Exmo. sr. senador Joaquim Floriano de Godoy no dia 15
de Janeiro de 1873 passou a administração da Província de Minas Gerais ao 2.
vice-presidente Exmo. sr. dr. Francisco Leste da Costa Belém por ocasião de
retirar-se para tomar assento na Câmara Vitalícia (1873). Ouro Preto.
RELATÓRIO que à Assembléia Legislativa provincial de Minas Gerais apresentou
na sessão ordinária de 1873, o presidente da Província Venâncio José de Oliveira Lisboa (1873). Ouro Preto: Typ. de J. F. de Paula Castro.
RELATÓRIO apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais
por ocasião de sua instalação em 9 de setembro de 1875, pelo Illmo. Exmo. sr.
dr. Pedro Vicente de Azevedo, presidente da província (1875). Ouro Preto: Typ.
de J. F. de Paula Castro.
RELATÓRIO ao Illmo. e Exmo. sr. dr. Francisco Leite da Costa Belem, 2. vicepresidente da província de Minas Gerais, apresentou o Exmo. sr. desembargador
João Antônio de Araújo Freitas Henriques, a 6 de março de 1875 (1875). Ouro
Preto: Typ. de J. F. de Paula Castro.
RELATÓRIO com que o Exmo. cônego Joaquim José de Sant’Anna, passou a administração da província ao Exmo. sr. dr. Manoel José Gomes Rebello Horta,
no dia 15 de janeiro de 1879 (1879). Ouro Preto: Typ. da Atualidade.
RELATÓRIO apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais,
na abertura da 2. sessão da 22. Legislatura, a 15 de outubro de 1879, pelo Illmo.
e Exmo. sr. dr. Manoel José Gomes Rebello Horta (1879). Ouro Preto: Typ. da
Atualidade.
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a produção da infância nas operações escriturísticas da administração...
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. (1860). Lei 1064, 1860. Ouro Preto, Secretaria da Presidência:
Typografia Provincial.
. (1860). Regulamento 62 à Lei 1834, 1872. Ouro Preto, Palácio
da Presidência: Typografia de J. F. de Paula Castro.
, (1883). Regulamento 100 à Lei 2892. Ouro Preto: Typografia
do Liberal Mineiro, 1883.
Recebido: 6 de jul. de 2004
Aprovado: 12 de nov. de 2004
Combates pelo ofício em
uma escola moralizada e cívica
A experiência do professor Manoel José
Pereira Frazão na Corte imperial (1870-1880)
Alessandra Frota Martinez de Schueler
O presente trabalho visa a apresentar a experiência profissional e as práticas pedagógicas de um professor público primário na Corte imperial, entre os anos de 1860 e 1890.
Discute-se o sistema disciplinar de moral e cívica proposto e utilizado por Manoel Frazão
nas escolas públicas primárias da cidade em que exerceu o ofício docente. A proposta
desse professor demonstrava o potencial criativo dos agentes do ensino, além da (re)
elaboração e a produção de novas disciplinas e metodologias de ensino, e, finalmente, a
existência de múltiplas idéias e experiências pedagógicas, as quais referiam a coexistência de práticas e de culturas escolares heterogêneas e plurais nos espaços distintos da
cidade.
CULTURA ESCOLAR; HISTÓRIA DE PROFESSORES; HISTÓRIA DE DISCIPLINAS;
RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA.
This research aims to present the professional experience and the pedagogical practices
of a public primary school teacher in the Imperial Court, between the years of 1860 –
1890. The moral and civic system, proposed and used by Manoel Jose Pereira Frazão in
the city’s public primary schools in which he exerted his teaching profession, is discussed.
The proposal of this teacher demonstrated the creative potential of the teaching agents,
apart from the (re)elaboration and the development of new disciplines, and methodologies,
and, finally, the existence of multiple ideas and pedagogical experiences, which concerned
the coexistence of practices and of heterogeneous and plural school cultures in the distinct
areas of the city.
SCHOOL CULTURE; HISTORY OF TEACHERS; HISTORY OF DISCIPLINES; RIO
DE JANEIRO IN THE 1800’S.
110
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
No início da década de 1870, alguns mestres de instrução primária
da Corte reuniram-se para escrever um manifesto (Instrução Pública,
1871) endereçado ao imperador e ao ministro do Império, por intermédio do seu relator, o destacado professor da escola pública de meninos
da freguesia da Glória, Manoel José Pereira Frazão.
Manoel José Pereira Frazão1 nasceu em 13 de julho de 1836, em
Itaipu, Niterói, onde foi batizado, registrado como filho legítimo de
Poluceno Antonio Pereira e Maria Angela de Gusmão. A família de seu
padrinho, Manoel José Fernandes Pinheiro, seria, nos anos de 1870,
proprietária do famoso Colégio Pinheiro, estabelecimento de instrução
primária e secundária da freguesia de Santana, no qual Frazão começou
a lecionar, ao que parece, pelos idos de 1850. No certificado de batismo,
apresentado em 1863 quando da sua nomeação (então com 27 anos de
idade) como professor público da escola de meninos da freguesia do
Sacramento, no centro da cidade do Rio de Janeiro, não havia, infelizmente, nenhuma menção à cor, isto é, à possível origem étnica de Frazão2.
Além da inserção de Manoel Frazão no magistério público, cujos
indícios podem ser encontrados nos arquivos e códices sobre a instrução pública, infelizmente, não pude saber muito sobre a sua vida, suas
origens, suas experiências pessoais e suas relações sociais naquela sociedade, para além da sua atuação professor primário em colégios particulares e nas escolas públicas. No entanto, seguindo os pressupostos de
Antonio Nóvoa, é possível reconstruir as histórias de vida de professores, e mesmo de grupos, articulando-se suas características pessoais às
suas vivências profissionais, sempre fortemente vinculadas, a partir da
compilação das informações que foram produzidas sobre eles (Nóvoa,
1992, p. 114).
Assim, segundo dados encontrados nos dicionários biobibliográficos,
sabe-se que Frazão cursou as primeiras letras no Seminário de São José –
instituição que preparava meninos e jovens, inclusive das camadas po1.
2.
Sobre a trajetória do mestre, ver no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
documentação manuscrita reunida em Códice: 15-3-1. Conferências Pedagógicas.
1875.
Códice 10.4.8. Nomeação de professores públicos. Fl. 213. Certificado de Batismo
de Manoel José Pereira Frazão, apresentado em 1863.
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
111
pulares, para o sacerdócio –, na cidade do Rio de Janeiro, com intenção de se destinar aos serviços eclesiásticos. Porém, faltando apenas
dois anos para sua ordenação, Frazão resolveu tomar um novo rumo, e
matriculou-se na escola militar (transformada em politécnica em 1874),
onde com auxílio dos soldos militares estudou matemática, ciências
naturais e filosofia racional e moral. Essa disciplina, juntamente com a
formação religiosa, decerto foi importante na formação de Frazão, pois,
talvez, tenha sido por essa influência que o professor construiu o sistema de ensino para suas escolas públicas primárias, ao qual ele mesmo
denominava sistema de moral e civismo3.
Em 1863, quando então iniciou a carreira docente no magistério
público da cidade, Manoel Frazão publicou seus primeiros artigos de
crítica à política e às condições salariais e materiais das escolas de instrução primária da cidade4. Em 1865, transferiu-se para a Rua do Catete,
22c, na freguesia da Glória, onde passou a lecionar e residir na casa de
escola, nela permanecendo até 1873 quando, já casado com uma colega
de profissão, a professora pública primária d. Rosalina Frazão, se mudou para a escola de meninos da freguesia da Lagoa, na qual lecionou
até se aposentar no serviço público com 32 anos de magistério, em 1895,
já em tempos de república.
Nessa década de 1870, Manoel Frazão ganhou destaque entre os
professores públicos primários por sua atuação combativa em defesa
dos interesses profissionais da docência, por meio de escritos na imprensa e palestras nas conferências pedagógicas, e também por suas
tentativas de organizar a classe em associação profissional, o idealizado
Instituto Profissional dos Professores. Sobretudo, e principalmente em
função do Manifesto dos Professores Públicos de 1871, o Ministério do
Império estava então de “olhos bem abertos” sobre o professor Frazão.
3.
4.
O bibliógrafo Sacramento Blake informa que Manoel Frazão escreveu e publicou
compêndios de aritmética e geografia, tais como: Aritmética do professor Frazão,
Rio de Janeiro, 1871 e Noções de geografia do Brasil para uso da mocidade brasileira, Rio de Janeiro, 1883, 198 p.
Cartas do professor da roça: artigos relativos à instrução pública na Corte.
Publicadas em O Constitucional, março e abril de 1863.
112
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
No manifesto, assinado por Manoel Frazão (relator), Antonio Moreira
e Candido Matheus de Faria Pardal e enviado aos poderes públicos em
28 de julho de 1871, os professores felicitavam a nova época de reformas sociais que parecia “despontar no horizonte da pátria”, uma era na
qual identificavam a “prosperidade” e a “justiça”. Essa, segundo eles,
manifestava-se na grande novidade do momento que consistia no reconhecimento dos direitos de uma grande parte da “humanidade oprimida”, os escravos, indicando a euforia causada pelas discussões da chamada Lei do Ventre Livre, correntes na Câmara, no Senado e na imprensa,
desde abril de 1871. As referências aos escravos e a aos projetos de
abolição do ventre das mulheres cativas serviam para a estratégia utilizada pelos professores no sentido de efetuar uma comparação entre a
escravidão e o seu próprio lugar social, isto é, entre a condição social
dos escravos e a dos professores primários, ambos “humilhados” e “ludibriados” pelos poderes públicos. Na análise que então realizavam, o
governo lhes parecia um grande feitor que, por meio de seus inspetores,
exercia sobre eles uma vigília constante. Logo eles, os professores, que
representavam a classe “talvez a mais importante dos funcionários públicos”.
As críticas às políticas educacionais colocadas em pauta pelo Ministério do Império no crescente processo de regulamentação, controle
e centralização da instrução pública na Corte, desde meados do século
XIX, é evidente no Manifesto de 1871. Ao se dirigirem ao imperador e
ao ministro do Império, em defesa do ensino público, invocando o modelo das nações civilizadas, os professores públicos da Corte possuíam
um objetivo claro: o de afirmar a essencialidade de sua profissão e de
sua função para a reconstrução da nação brasileira. Desse modo, buscavam, talvez pela primeira vez, se organizarem enquanto categoria profissional, definindo uma posição naquela sociedade:
é só ao professor que compete preparar a nação futura fazendo-a beber um
leite mais puro e mais digno das idéias liberais do século. No Brasil, portanto, o professor é tudo; e é só por força do absurdo que nada vale perante uma
sociedade constituída como nós somos! [Instrução Pública, 1871].
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
113
Mediante seu Manifesto, Frazão, Moreira e Pardal, postulando em
nome dos colegas, demonstravam possuir opiniões próprias a respeito
da instrução pública e de sua função social. Revelavam conhecer a situação do ensino em outros países e as “idéias liberais do século”, a
despeito das repetidas depreciações do governo que os chamavam constantemente de ignorantes. Apresentavam aos dirigentes do Estado, em
contrapartida, algumas críticas, reivindicações, notadamente de melhorias
salariais e materiais para as escolas primárias da cidade, além de sugestões as quais apontavam para idéias e pensamentos nem sempre coincidentes com os dos seus superiores, revelando que o embate em torno
das questões educacionais era muito mais dinâmico e contraditório do
que se poderia prever.
Mesmo antes do envio do documento ao imperador e ao ministro, a
Inspetoria de Instrução Primária e Secundária da Corte tinha conhecimento das reivindicações dos professores que reclamavam, pessoalmente
ou mediante os delegados de distrito, da situação de penúria e miséria
em que se encontravam, devido aos baixos salários e aos descontos dos
aluguéis das casas escolares5. Quando o manifesto chegou às mãos de
Sua Majestade, o rebuliço na cúpula da Inspetoria foi geral, manifesto
no troca-troca de ofícios e cartas em caráter reservado entre o inspetor
geral e o ministro do Império.
Em um desses documentos, o conservador José Bento da Cunha
Figueiredo prometia ao ministro João Alfredo que se empenhara em
obter informações sobre os “procedimentos a que podem estar sujeitos
5.
Arquivo Nacional. Fundo Educação. IE4 14. Ofício Reservado de José Bonifácio
de Azambuja Neves ao Ministro João Alfredo Correia de Oliveira, em 17 de julho
de 1871. O amanuense da Inspetoria alertava para o “clamor geral dos professores
contra os vencimentos”, mal retribuídos e “em dolorosas circunstâncias de não
poderem acudir com as primeiras necessidades da vida”. Informava ainda que os
professores urbanos percebiam 1:200$000 anuais e os suburbanos 1:000$000, com
os descontos de aluguéis das casas os valores caíam, respectivamente, para 950$000
e 820$000. Note-se que os vencimentos dos professores valiam menos do que um
escravo, estimado em 1870 em 1:000$000, ainda que se considere o fato de que
essa “mercadoria” estivesse caríssima devido ao fim do tráfico transatlântico, não
é possível esquecer que esses salários se destinavam à sobrevivência anual dos
professores e suas famílias.
114
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
os professores Frazão, Pardal e Moreira, pelo Manifesto publicado no
Jornal do Commércio, no dia 30 do mês de julho” [sic]. Então, citando
o Regulamento de 1854, informava que esses professores poderiam ser
suspensos do exercício, com perda dos vencimentos, por até três meses.
Mas, havia um porém, um empecilho para a aplicação imediata de qualquer sanção diretamente pelo ministro do Império: o julgamento cabia
ao Conselho Diretor de Instrução Pública, pois a Inspetoria Geral e o
Ministério do Império constituíam-se órgãos executivos, apenas exercendo funções judiciárias em grau de recurso das decisões daquele conselho. Em razão desse impedimento legal, o Inspetor Geral sugeria que
o Ministério do Império fizesse apenas uma repreensão, por escrito, aos
insolentes professores – que, afinal, foram protegidos pelas próprias
brechas existentes nas leis reguladoras de sua conduta profissional6.
Sem dúvida, embora não tenha esbarrado nos arquivos com nenhum
documento oficial dirigido a Manoel Frazão em caráter de repreensão,
não é difícil imaginar que a publicação do Manifesto de 1871 tenha lhe
tornado – e também a seus colegas – ainda mais conhecido das autoridades da Inspetoria de Instrução. Digo mais conhecido não apenas porque
desde 1863 o professor tinha o hábito de fazer publicar artigos de críticas à política de instrução na cidade, mas principalmente devido aos
seus requerimentos à Inspetoria para autorizar a aplicação, em suas escolas de meninos, de um sistema de ensino que inventou, o sistema de
moral e cívica, o qual começou a aplicar na escola pública da Glória, em
1867, com o aval do governo imperial. Anos depois, em 1873, Manoel
Frazão recebia a congratulação e reconhecimento formal da Inspetoria
de Instrução “por ter a escola mais disciplinada da cidade do Rio de
Janeiro”. Um aparente paradoxo, para quem era acusado de insolência
pela “falta gravíssima” de reivindicar melhores salários e condições de
trabalho pelos jornais7.
6.
7.
Arquivo Nacional. Fundo Educação. IE4 14. Ofício Reservado de José Bento da
Cunha Figueiredo ao Ministro João Alfredo. 04 de agosto de 1871.
Na verdade, se o governo tivesse de punir todos os professores que reclamavam
dos vencimentos por meio de ofícios escritos e endereçados ao ministro, aos jornais e outras autoridades, haveria muitas aulas suspensas. Em janeiro de 1871,
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
115
Mas, em que consistia esse sistema de moral e cívica proposto e
utilizado por Manoel Frazão? Em dezembro de 1875, o professor apresentou uma Memória sobre a disciplina escolar, ao Conselho de Instrução Pública da Corte, por ocasião da terceira Conferência Pedagógica8,
na qual explicava com detalhes as idéias que o inspiraram para repensar
as metodologias de ensino em suas escolas, e especificamente, as técnicas disciplinares utilizadas para que os meninos mantivessem a boa ordem nas atividades escolares, ao mesmo tempo em que adquiriam determinados saberes e capacidades, as quais constituíam, para Frazão, os
fins e os objetivos da escola primária.
Ao narrar a trajetória da implementação de seu sistema disciplinar,
Frazão revelava que esse fora concebido em 1861, mas, naquela época,
em função das “agitações” no governo liberal e da guerra contra o
Paraguai, não encontrou meios de propor às autoridades do ensino na
Corte que o autorizassem a experimentar a inovação, quando tomou
posse na freguesia do Sacramento, em 1863. No entanto, confessava
que, mesmo sem autorização oficial, já ensaiava os seus métodos disciplinares na escola pública de meninos da freguesia da Glória.
A região da Glória abrangia o Catete, a Glória até a atual enseada do
Flamengo e era uma região marcada pela presença de famílias abastadas, proprietários de chácaras e casas de luxo, hotéis de alta categoria,
manufaturas e comércio de produtos finos. Tal composição social pode
apontar para o fato de que parte dos meninos que se matricularam na
8.
José Azurara remeteu ofício ao ministro propondo aumento salarial, igualdade de
salários entre professores urbanos e suburbanos e gratuidade do aluguel da casa de
escola, como dizia ocorrer na Província do Rio de Janeiro. Códice 11.3.27. Ofício
de José Azurara. 11 de janeiro de 1871. No dia seguinte, Domitilla de Carvalho,
professora primária de Paquetá, solicitava aumento geral de vencimentos. E, ainda: Códice 11.4.13. Reclamação de Januário dos Santos Sabino, em 24 de janeiro
de 1873. Sem falar nos artigos veiculados pela imprensa pedagógica, que emergiu
na cidade, como A Instrução Pública. 1872-1889; A Verdadeira Instrução Pública.
1872 (dirigida por Manoel Frazão); A Escola.1877-1878.; o Ensino. 1878 e o Ensino Primário. 1884-1889.
AGCRJ. Códice 15.3.11. Memória sobre a disciplina escolar, apresentada ao Conselho de Instrução Pública da Corte, na 1. Sessão da 3. Conferência Pedagógica,
em 21 de dezembro de 1875. Manuscrito
116
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
escola de Manoel Frazão pertenciam aos setores economicamente mais
favorecidos da população urbana. Entretanto, não se pode esquecer que
a freguesia da Glória, para além de sua população privilegiada, era a
segunda colocada em número de habitações coletivas e moradias populares: 107 cortiços, com 2.376 moradores, o que pode indicar a presença
de uma clientela cultural e socialmente heteregônea entre o público escolar da Rua do Catete.
Embora não tenha sido possível saber quem eram os meninos que
freqüentaram a escola pública de Frazão, na exposição que o professor
fez sobre o seu sistema disciplinar, chama atenção à originalidade de
suas idéias pedagógicas, suas concepções sobre as funções sociais da
escola e sobre os processos de ensino e aprendizagem, destacando-se
uma visão das crianças – tornadas alunos – como sujeitos da ação educativa, com deveres e também com direitos no interior das escolas e na
sociedade em que viviam.
Em primeiro lugar, comentando as determinações do Regulamento
da Instrução Primária de 1854, o professor Frazão condenava os meios
disciplinares aplicados por um modelo pedagógico que oscilava entre
as punições e as recompensas, e impunha o silêncio como ideal de boa
conduta do aluno e do bom andamento do ensino. Criticando o silêncio,
o professor ressaltava que a escola primária deveria se transformar, sobretudo, em um lugar de socialização da criança e de educação para a
cidadania:
[...] Educar é preparar a criança para a sociedade, é dirigir, é conduzir o ente
nacional do estado bruto de natura ou de ignorância, de fazê-lo cidadão útil,
capaz de preencher as funções sociais com que lhe competem [...] Tem-se
tornado geral no país a convicção de que o descabalo moral da sociedade
brasileira é devido ao erro dos governos, que tem cuidado muito em fazer
bacharéis, descuidando completamente do dever de formar cidadãos.
Com a defesa de que a educação, a preparação da criança para a
vida em sociedade, deveria consistir em formar cidadãos úteis e cientes
de suas funções sociais, o professor criticava as perspectivas que compreendiam que a tarefa da escola primária se resumiria a instruir, a dotar
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
117
as crianças de saberes e conhecimentos elementares que lhes abrissem
caminho ao secundário e ao bacharelismo. Ao contrário, a escola primária não deveria se furtar de sua tarefa educativa e da formação das crianças, percebidas como seres ignorantes, lapidando o seu estado de natureza para que se transformassem em ciosos cidadãos, educados para a
vida social. Entretanto, a imposição do silêncio às crianças como meio
disciplinar nas escolas públicas primárias da Corte constituía um verdadeiro obstáculo a uma educação preocupada com a dimensão de formar
os indivíduos para o exercício da cidadania. Para Frazão, no Império
brasileiro a instrução primária, tal qual era concebida, produzia perversos efeitos de desigualdade, devido ao descuido com a educação dos
meninos para a vida civil:
[...] ele [o descuido com a formação dos cidadãos] dá em resultado que o
menino, o filho do carpinteiro, por exemplo, deve crescer sobre o influxo das
únicas idéias que lhe são peculiares nas oficinas de seu pai. Sim, só delas,
porque na escola é obrigado a ficar em silêncio. Onde poderá então o menino
adquirir, sem perigo, outras idéias que lhes são necessárias, senão na escola?
Na rua, onde as companhias lhe hão de desviar as virtudes?
Obrigando ao silêncio, a escola primária deixava de cumprir uma
importante função social na educação dos filhos dos trabalhadores e
artesãos, das crianças populares da cidade que, privadas da liberdade de
expressão nas escolas, permaneceriam limitados às idéias e à formação
cultural recebida nas suas famílias de origem, ou, por outro lado, correriam
o risco de terem suas virtudes corrompidas por más companhias, pela má
influência da rua. Nesse ponto, o professor demonstrava acreditar na força
disciplinadora da escola contra os perigos potenciais representados pela
rua, identificada como responsável pelo abandono, pelos crimes e pelo desvio dos indivíduos das regras e normas de conduta social.
A educação, nos estabelecimentos financiados pelo Estado, era ainda mais importante para as crianças oriundas dos meios populares, pois:
Que as famílias destas crianças que freqüentam as escolas públicas, em
sua maior parte, não está no caso de as educar, pela razão que ninguém dá o
118
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
que não tem, forçoso é concluir que o Estado deve dar em suas escolas, a
essa pobre gente uma educação mais completa.. É preciso levar os meninos a
formar conceitos que, amadurecidos pela idade, constituam a base para a sua
vida futura. O menino é uma miniatura da sociedade.
A operação realizada por Frazão para justificar a educação escolar
que propunha – “mais completa”, que servisse de “base para a vida futura da pobre gente” – implicava destituir os saberes e as práticas heterogêneas das famílias populares, deslegitimando não somente as suas
tradições culturais e educativas, mas, sobretudo, o seu próprio papel de
educadoras das suas crianças, posto que foram caracterizadas como incompetentes para essa função, mediante um discurso que representava
a negação da possibilidade de existência de valores e de educação entre
as classes populares (“ninguém dá o que não tem”). O Estado, esse sim,
por meio das escolas públicas primárias e dos professores, deveria assumir a função educativa dos meninos, essas miniaturas da sociedade. A
afirmação da escola primária como lugar essencial de educação da infância – então segregada e representada como o adulto embrionário,
gérmen do cidadão e futuro da sociedade –, constituía um dos pilares (e,
afinal, um dos objetivos de sua memória) do pensamento educacional
de Manoel Frazão.
Para realizar as finalidades da escola que idealizava era preciso,
portanto, para o professor, modificar todo o sistema disciplinar das escolas primárias, extinguindo o deficiente recurso de castigar e recompensar as crianças, e, principalmente, revertendo a idéia de que o menino bem comportado é aquele que fica em silêncio, “mudo e sossegado”.
Segundo Frazão, a criança bem disciplinada não poderia ser confundida
com a criança que foi humilhada pelas punições escolares. Citando Victor
Hugo, dizia que a criança delinqüente era apenas uma pessoa privada de
educação, cabendo então à escola oferecê-la, habituando-a à vida social, mediante não apenas do ensino elementar, mas também de uma
educação moral, do ensino de direitos e deveres civis.
A escola primária, segundo Frazão, era responsável pela socialização das crianças, promovendo sua integração e sua adequação a determinados valores morais, então entendidos como essenciais à vida da
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
119
coletividade e à formação do ente nacional. A sociedade, na sua concepção, deveria ser baseada em princípios de uma “sagrada trindade”:
a moral, a economia e o trabalho. Com uma perspectiva simultaneamente utilitária e civilizadora, o professor Frazão sonhava com uma
escola primária completamente integrada e destinada a formar indivíduos para a vida civil, econômica e social, associando educação escolar e trabalho, moral e civismo. Por essa razão, dizia, a sua proposta
foi considerada polêmica, criticada por muitos colegas de ofício e adversários.
Após expor os objetivos e finalidades gerais do seu sistema disciplinar, que denominava sistema de moral e cívica, o professor Frazão passou a descrever os métodos utilizados para que alcançasse os fins almejados, nos processos práticos de ensino dos meninos em suas escolas.
Pela sua memória, é possível perceber que Manoel Frazão buscava fazer de sua escola uma espécie de “mini-Império”, um microcosmo social – recorde-se que para ele o menino era uma miniatura da sociedade –, um laboratório experimental para que alunos exercitassem e
aprendessem variadas atividades, diversas práticas sociais e funções civis e políticas, para além das atividades propriamente escolares, como a
aprendizagem das matérias do ensino primário.
Segundo suas próprias palavras, a escola pública de meninos da
Glória, e posteriormente a da Lagoa, era um pequeno Estado. A semelhança com o sistema jurídico normativo do Império não era mera coincidência. A idéia de Frazão consistia em formar meninos para a vida
civil e política e, portanto, conhecedores da organização do Estado, das
suas leis e da política institucional imperial. Tal qual o Império, a escola
primária era regida por uma constituição, que ordenava todo o funcionamento das atividades escolares segundo o sistema de moral e cívica.
Havia também um parlamento, formado por alunos divididos e agregados em grupos ou partidos. Juntamente com o professor, esse parlamento era responsável pela formulação das leis ordinárias da escola, como,
por exemplo, dos Códigos Penal e de Processo Penal, os quais determinavam os delitos, as penas e as sanções que deveriam ser impostas aos
alunos, bem como os meios processuais pelos quais seriam julgados no
caso de faltas à ordem escolar.
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O exercício do poder e da autoridade não estava centralizado na
pessoa do professor, mas era diluído pelas instituições formadas simultaneamente pelos alunos, notadamente aqueles que se destacavam nas
matérias de ensino e no comportamento, e pelo mestre, no interior da
escola. Não somente o legislativo, mas também os poderes executivo e
judiciário estavam divididos entre os meninos e Frazão. A administração da escola ficava a cargo do Ministério da Fazenda, responsável pela
gerência dos recursos arrecadados pelo sistema de Caixa Econômica
Escolar e pelas doações das famílias e outros particulares de prêmios e
prendas destinadas aos alunos mais aplicados; do Ministério da Instrução, no qual eram reorganizadas semanalmente, em um sistema rotativo,
as classes de alunos, então divididas em três grupos, de acordo com os
critérios de comportamento e aproveitamento escolar; e o Ministério da
Disciplina, responsável pelo julgamento e aplicação dos meios disciplinares aos alunos que não seguiam as regras de conduta ou àqueles que
precisavam ser repreendidos pelo desempenho insatisfatório da aprendizagem das matérias escolares.
As premiações aos bons alunos deveriam ser pagas, preferencialmente, em meio circulante, moeda corrente, e corresponderiam não
apenas às boas notas ou ao bom comportamento, mas também à atuação dos alunos nos cargos públicos da escola. Evidentemente, com o
sistema da Caixa Econômica Escolar, o professor pretendia incutir nos
meninos capacidades que os levassem a administrar os recursos econômicos, aprendendo a lidar com o dinheiro, e, sobretudo, a valorizar
uma ética meritocrática da recompensa advinda do esforço, da aplicação e do trabalho nas atividades escolares. O seu sistema, criando e
recriando hierarquias entre os alunos – hierarquias sempre móveis e
mutáveis, em função da rotatividade das posições nas classes e das
funções dos meninos na organização escolar ditadas pelo desempenho
individual de cada um –, visava a motivar a aprendizagem pelos mecanismos de competição, no qual vigoravam ainda a pedagogia da punição e da recompensa, embora distanciada dos métodos tradicionais
como, por exemplo, o uso de castigos corporais, a imposição do silêncio ou de humilhações e vexames públicos, comum nas escolas primárias da Corte.
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
121
Ao contrário, o sistema disciplinar de Frazão, objetivando formar
indivíduos moralizados e cívicos, porque integrantes do conjunto de
cidadãos do Império, conhecedores de direitos e deveres e atuantes na
vida econômica, política e social, rompia com concepções que defendiam o monopólio da autoridade e dos saberes nas mãos do professor,
cuja severidade, austeridade e seriedade corresponderiam à submissão,
à subordinação e ao silêncio dos meninos. Frazão acreditava que essa
maneira de conceber a escola, a criança e a relação pedagógica era incapaz de formar cidadãos úteis à pátria, integrados à sociedade e ao sistema político do país. Por essa razão, a sua escola deveria abrir espaço à
participação intensa dos alunos, sujeito nos processos de ensino e aprendizagem e atuantes na própria organização da escola e na condução das
práticas e das atividades escolares. Sem dúvida, os métodos ativos
propugnados por educadores setecentistas europeus como Rousseau,
Froebel e Pestalozzi, estavam presentes nas concepções de Manoel
Frazão sobre a criança, tornada então alunos ativos, e conforme ele
mesmo dizia, um “sujeito que tem direito a queixar-se, a ser ouvido”9.
Frazão foi um dos primeiros mestres da Corte a estabelecer o sistema de Caixa Econômica Escolar, que consistia no depósito de pequenas
quantias doadas pelos alunos e seus pais, as quais eram distribuídas
como prêmios no fim de cada ano. O sistema visava a preparar a criança
para a vida em sociedade, ensinando o funcionamento das instituições
políticas e preparando o cidadão, além de incentivar o sentimento de
poupança entre os alunos. Em suas escolas, o professor realizava também anualmente uma Festa da Caridade, com leilões de prendas (em
geral, objetos e utensílios escolares, como livros, cadernos, calçados e
roupas) que, segundo ele, serviriam para auxiliar as famílias carentes a
manter os seus filhos nas escolas. Era o chamado Cofre dos Pobres.
Também foi um dos primeiros professores a criar a biblioteca escolar,
no que foi seguido pelos seus colegas Antonio Estevam Costa e Cunha
(escola de meninos da freguesia do Sacramento), Guilhermina de
9.
Souza e Valdemarin, 1998; Souza & Vidal, 1999; Gondra, 2001; Faria Filho e
Teixeira, 2000; Villela, 2002; Schueler, 2002.
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Azambuja Neves (escola de meninas em Santa Rita), Januário dos Santos Sabino (escola do sexo masculino da Candelária)10.
Com o seu sistema de moral e cívica – que abrangia desde a aprendizagem prática de leis, exercício de direitos, deveres e funções na administração pelos alunos até a promoção de caixas econômicas, distribuição de prêmios e assistência social às famílias pobres – Manoel Frazão
sonhava em formar um novo homem, um cidadão ativo, participante,
consciente de seus deveres e capaz de reivindicar direitos, sem que isso
implicasse subverter ou perturbar a ordem social. Idealizava a construção de um indivíduo moralizado, integrado às normas sociais e responsável por todos os seus atos públicos e privados. O próprio Frazão expressou claramente essas idéias, ao expor os princípios que regiam o seu
pensamento educacional e a sua prática pedagógica nas escolas de meninos da cidade. Segundo ele, com o seu sistema os alunos adquiririam:
1º. Responsabilidade efetiva de todos os seus atos, noção que falta completamente no país;
2º. Respeito às autoridades constituídas, distinguindo a deferência que lhes é
devida ao sentimento baixo da adulação;
3º. Distinção entre o cidadão zeloso que defende os seus direitos e o insolente, que ofende as autoridades, impedindo-as até de fazer justiça;
4º. Urbanidade para com os inferiores;
5º. Distinção clara entre a lei e o capricho;
6º. Respeito às censuras da opinião pública;
7º. A economia e o valor do trabalho;
8º. O Código Penal e Criminal;
9º. O Código de Processo;
10º. A Caridade, a ‘Irmandade dos Pobres’, na festa anual da caridade.
11º. Pequenas noções da vida prática: emissão de papel moeda, apólices,
leilões etc.;”
10. Ver artigo de Antonio Estevam da Costa e Cunha, “A biblioteca e a caixa escolar”.
A Escola, p. 78. E, de Manoel Frazão, Memória sobre Organização de Bibliotecas,
Museus e Caixas Econômicas Escolares, apresentada no Congresso de Instrução
do Rio de Janeiro, em 1883, publicada em Actas e Pareceres do Congresso de
Instrução. Typografia Nacional (1883, p. 555).
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
123
É surpreendente a originalidade do pensamento de Manoel Frazão
sobre as funções sociais da escola primária, bem como a sua percepção
a respeito da atividade dos alunos na produção das atividades escolares. O seu sistema de moral e cívica, preocupado em formar cidadãos
moralizados, identificados com determinados valores culturais, – entre
os quais as noções de preservação da ordem, de urbanidade nas relações sociais, do respeito às autoridades e às leis constituídas, de aceitação e manutenção das hierarquias, dos lugares e das funções sociais, de
integração e harmonia social, de apego à ética da poupança, da economia e do trabalho, de civismo e amor à pátria – se, por um lado, inegavelmente constituía uma visão utilitária e conservadora da escola como
uma instituição produtora/reprodutora das normas sociais, por outro,
em muito se distanciava de uma concepção simplista do exercício da
cidadania como uma mera submissão às imposições externas da organização político-social do Estado. Ao contrário, os cidadãos idealizados por Manoel Frazão definiam-se pela constante atuação na sociedade, pela consciência das leis e do sistema político, capaz de associar o
respeito à ordem constituída e o cumprimento dos deveres sociais à
defesa necessária de seus direitos, ainda que sob o império da legalidade e da harmonia social.
Assim, embora visasse forjar indivíduos integrados e zelosos da ordem e das hierarquias sociais, o sistema de moral e cívica, e a escola
primária idealizada por Frazão, era bastante diferente daquela idealizada pelas leis e pelo Regulamento da Instrução Primária da Corte, porque, acima de tudo, divergia das práticas pedagógicas de imposição do
silêncio e do monopólio dos saberes e fazeres escolares nas mãos do
mestre, mas previa a participação ativa dos meninos, sujeitos nos processos de aprendizagem e, principalmente, futuros cidadãos, então sujeitos de direitos e deveres sociais e políticos na integrada (e sonhada)
Nação. Sobretudo, a proposta de Frazão demonstrava o potencial criativo dos agentes do ensino, os professores e os alunos, a (re)elaboração e
a produção de novas práticas, novas disciplinas e programas de ensino,
novas idéias e experiências, as quais referiam à coexistência de práticas
e culturas escolares heterogêneas e plurais nos espaços distintos da cidade (Chervel, 1990; Frago, 1996).
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Surpreende ainda a autorização concedida pelo Ministério do Império e pela Inspetoria de Instrução Primária da Corte para que Manoel
Frazão aplicasse o seu sistema disciplinar na sua escola de meninos na
Rua do Catete, tendo ainda premiado o professor com o reconhecimento de sua escola como a “mais disciplinada da cidade do Rio de Janeiro”. Infelizmente, em sua Memória o professor Frazão, intencionando
“vender o peixe” e as vantagens de seu sistema, enfatizando o
brilhantismo e a inovação de seus métodos, não mencionou as práticas
vivenciadas por ele e seus alunos no dia-a-dia da escola, na consecução
dos programas e objetivos idealizados. Não se referiu às prováveis dificuldades, aos possíveis obstáculos, às ações e/ou às reações dos meninos, às derrotas ou às conquistas na implementação do seu sistema nos
processos cotidianos de ensino – ou seja, Frazão não deixou registros
sobre o que André Chervel identificaria como o “corpo a corpo” com suas
classes de alunos (Chervel, 1990, p. 177). Resta-nos apenas, mediante
sua exposição, imaginar, quem sabe, as possibilidades de funcionamento
daquela escola pública de meninos, pelos idos de 1870 e 1880.
Além disso, é impossível também determinar com clareza as leituras, as concepções teóricas, as influências recebidas e reelaboradas na
experiência de Frazão, as quais o auxiliariam a construir e a viabilizar a
criação do seu sistema de moral e cívica. Sabe-se, como já visto, que ele
havia tido uma sólida formação religiosa, no Seminário de São José.
Desistindo de ser padre, adquiriu novos saberes sobre disciplina e hierarquia na antiga escola militar, onde se formou professor de matemática, matéria sobre a qual lecionava e escrevia compêndios para as escolas primárias. Estudou também, nessa escola, filosofia racional e moral,
o que certamente ofereceu-lhe ricos referenciais teóricos, os quais, infelizmente, não se pôde ter acesso. É provável, pela análise de sua Memória, que Frazão tenha sido leitor de obras sobre a organização do Estado
e regimes políticos, como, por exemplo, as do constitucionalista francês
Benjamin Constant, e, talvez, as do positivista Augusto Comte, leituras
freqüentes nas rodas militares, desde 1860.
É possível igualmente que Frazão tenha lido os setecentistas J.
Bentham e Beccaria, cujas obras sobre os sistemas jurídicos foram significativamente difundidas entre os letrados do Império, a julgar pelas
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
125
referências que faz às idéias utilitaristas e às suas concepções de ordem
e justiça, com a clara presença do jusnaturalismo e do liberalismo penais, os quais buscavam limitar e regular os poderes de vigilância e
punição do Estado, reatualizando as concepções sobre os direitos humanos e o tratamento penal aos indivíduos, então entendidos como cidadãos racionais e conscientes dos pactos reguladores e ordenadores do
contrato social. Provavelmente, Frazão tenha tido acesso aos notáveis
da chamada economia política, como Adam Smith, Ricardo e John Stuart
Mill. Pela citação textual que faz, sabe-se que Manoel Frazão era leitor
de Victor Hugo.
É verdade que vários professores primários da cidade, em suas conferências pedagógicas e manuscritos, demonstraram familiaridade com
as idéias sobre a necessidade de construir uma escola primária que servisse à difusão de um determinada moralidade individual, familiar e,
algumas vezes, também de uma moral religiosa católica, à manutenção
da ordem pública e da hierarquia social e à formação de cidadãos úteis,
moralizados e trabalhadores, integrados aos projetos de civilização e
progresso da cidade e do Império brasileiros11. Portanto, a idéia de uma
escola que transformasse as crianças, gérmen dos futuros adultos, em
cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, não era exclusiva ao
professor Manoel Frazão. Mas, seu sistema de moral e cívica, no qual a
escola constituía ela mesma um “mini-Estado” administrado pela participação ativa dos alunos, era, de fato, bastante original, singular entre
os professores primários da cidade, que deixaram escritos sobre os seus
pensamentos educacionais e métodos de trabalho educativo. Por isso, o
seu sistema de moral e cívica, para além de despertar a curiosidade a
respeito de práticas escolares e experiências e concepções docentes heterogêneas, permanece sendo um enigma a decifrar-se. Quais experiências pessoais, quais leituras e/ou influências, e referências socioculturais
teriam auxiliado na construção do sistema Frazão?
11. Sobre as idéias pedagógicas de outros professores públicos sobre a educação moral
e cívica nas escolas públicas primárias da cidade, conferir AGCRJ. 15.3.10. Conferências Pedagógicas de Professores Públicos. Manuscritos, 1874-1875. Algumas
delas foram reunidas e impressas pela tipografia nacional nos anos de 1880, e podem ser encontradas na Biblioteca Nacional.
126
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Mariano Narodowski, ao estudar as permanências e rupturas no interior da pedagogia moderna na conformação da infância como uma
categoria social e psicológica, simultaneamente sujeito e objeto das teorias e das práticas da ciência pedagógica, indicou, talvez, um caminho
para pensar-se em uma hipótese sobre possíveis referências e modelos
teóricos no pensamento educacional de Manoel Frazão. Analisando as
formas variadas adquiridas pelos métodos de ensino mútuo, misto e simultâneo no século XIX europeu, Narodowski fez referência a uma experiência pedagógica singular, a da Halzelwood School, em 1819, na
cidade de Birmingham, na Grã-Bretanha, a qual considerou radical e
inovadora para a época.
É interessante verificar que, guardados os distintos contextos espacial e temporal e as devidas distâncias socioculturais entre as experiências de Halzelwood e a escola de meninos da freguesia da Glória na
Corte imperial, o fato é que há visíveis semelhanças entre ambas as
propostas e práticas pedagógicas. Como na escola do professor Frazão,
em Halzelwood o professor utilizava métodos de ensino e disciplina
que visavam transferir o poder e a autoridade de suas mãos aos alunos,
diluindo-os por entre os diversos atores sociais na instituição escolar,
principalmente os discentes. Os poderes decisórios estavam dispersos e
o sistema funcionava também mediante uma assembléia geral de alunos
e de legislações elaboradas para a organização escolar, como o Código
Penal e o de Processo Penal. O professor de Halzelwood, tal qual Frazão,
abria caminho para que os alunos discutissem e decidissem com relativa
autonomia as questões que diziam respeito às atividades escolares e ao
ensino, e, ainda que ambos perseguissem claramente um ideal utilitário,
possibilitavam aos alunos a aproximação com a ordem social e normativa, o exercício de princípios éticos e a aprendizagem de participação
ativa nas escolas, o que, certamente, poderia levá-los a refletir criticamente sobre o funcionamento das instituições políticas, dos limites e
dos impasses da cidadania em suas sociedades.
A inovação dessa experiência pedagógica britânica, segundo o professor que a colocou em prática, deveu-se às sugestões filosóficas e à
leitura de obras que integravam correntes pedagógicas européias defensoras da escolarização das classes populares pela ótica lancasteriana, a
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
127
qual repousava menos no ideal democrático rousseauniano de universalização dos princípios gerais de direito natural do homem (liberdade,
igualdade e fraternidade), mas, sobretudo, nas posições funcionalistas e
utilitaristas da escola à serviço da moralidade pública e privada, da economia, da ética do trabalho e da ordem sociais, à la Bentham. A proposta de educação moral e cívica de Manoel Frazão, embora adequada à
sua sociedade – hierarquizada, escravista e aristocrática – e aos ideais
de formação de um cidadão integrado à cidade, à pátria e ao Império,
não deixava de conter concepções utilitárias da escola como espaço de
formação de indivíduos moralizados e úteis, portadores de saberes práticos sobre a vida social, a economia e a política, e de uma ética associada ao trabalho.
As diferenças talvez passem pelo radicalismo da autonomia do
alunado em Halzelwood, em que poderiam até mesmo, por ocasião de
faltas graves do professor, votar e determinar a sua expulsão, em uma
subversão total da autoridade pedagógica. O que, de fato, nem de longe
se encontrava na proposta de Manoel Frazão, na qual, ainda que o aluno
fosse elevado à condição de sujeito atuante nos processos de ensino e
nas decisões escolares, permanecia a figura do professor como um diretor, o condutor final da ação educativa.
No entanto, é preciso reconhecer que a probabilidade de Frazão ter
tido conhecimento e inspiração na experiência de Halzelwood, ou outra
semelhante, não pode ser certificada, ainda que as hipóteses não possam ser de todo descartadas, pois os professores primários da cidade do
Rio de Janeiro freqüentemente citavam e traduziam obras estrangeiras
para a língua portuguesa (especialmente autores como Froebel,
Pestalozzi, Herbart, Victor Cousin, De Gérando, Madame Carpentier,
Hippeau, Horace Mann, entre outros) e demonstravam conhecer os debates pedagógicos sobre as metodologias de ensino mútuo e intuitivo e
as modernas instituições educacionais da Europa e dos Estados Unidos.
O que se pode inferir, por meio do cruzamento das fontes pesquisadas, é que Manoel Frazão conquistou notoriedade com o seu sistema de
ensino, pois recebeu o reconhecimento oficial e também o de outros professores, que não raro citavam o seu sistema de moral e cívica, e a sua
escola, como exemplo de sucesso escolar na cidade. No entanto, Frazão
128
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criou polêmicas e ganhou inimizades entre os seus colegas de magistério
público, recebendo críticas e alfinetadas nas conferências pedagógicas e
na imprensa, as quais talvez tenham contribuído para que o governo imperial voltasse atrás, proibindo a aplicação de seu sistema em 1883.
Um dos seus críticos mais ferozes, o professor Augusto Candido
Xavier Cony, professor público e particular da freguesia do Engenho
Velho, zona suburbana da cidade, verbalizou publicamente suas opiniões negativas sobre o sistema Frazão na Nona Conferência Pedagógica dos Professores Públicos, realizada nos salões da Imprensa Nacional,
em março de 1886.
Na sua exposição, Augusto Cony revelava haver indisposições e
conflitos entre os professores da cidade, os quais se expressavam claramente por ocasião dos debates públicos nas conferências e por meio das
páginas da imprensa pedagógica, então se referindo às revistas Liga do
Ensino, dirigida pelo ilustre Rui Barbosa, e Ensino Primário, sob a responsabilidade do professor primário Luiz Augusto dos Reis.
Segundo o relato de Cony, ainda que de difícil compreensão, a confusão entre os professores teria começado com as críticas que a revista
de Rui Barbosa havia feito aos membros do magistério primário da cidade, segundo as quais esses professores eram incapazes de ensinar as
“lições de cousas” e aplicar os modernos métodos de ensino intuitivo,
devido à sua ignorância e despreparo nos saberes e nas inovações pedagógicas. Diante das severas críticas, surpreenderia a Cony o fato de que
o professor Manoel Frazão, um “constante defensor da classe dos professores públicos”, não teria rebatido e reagido às ofensas publicadas na
Liga do Ensino, no uso da oratória por ocasião de suas últimas palestras
públicas. Ao contrário, Frazão teria concordado com Rui, dizendo que
as lições de coisas poderiam ser aplicadas sem uniformidade pelos professores e, desse modo, prejudicariam os alunos nos exames públicos
anuais promovidos pela Inspetoria de Instrução.
Justificando as motivações iniciais de seu discurso, Cony elaborou
uma estratégia discursiva de crítica à Frazão, a qual começava por uma
elogiosa narrativa histórica sobre a participação daquele professor e a
sua capacidade de agregar os professores públicos em torno de algumas
idéias, incentivando um movimento de reivindicações perante o gover-
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
129
no imperial. Assim, em 1873, por ocasião das respostas às circulares
oficiais que lhes solicitavam opiniões sobre as matérias e a organização
escolar, Frazão enviou um resumo das idéias discutidas por 35 professores e professoras da cidade. No entanto, em que pese o esforço dos
mestres, ao invés de acatar e publicar as opiniões da “prata da casa”, o
governo imperial teria preterido Frazão e seus colegas, preferindo publicar obras traduzidas de pedagogistas estrangeiros.
Em outro sentido, Cony referia-se ao sistema de moral e cívica de
Manoel Frazão, há 11 anos aplicado em suas escolas públicas. Afirmava, então, que na escola de Frazão se pretendia preparar os meninos
para a comunhão geral, porém, essa lhe parecia mais uma “verdadeira
praça de mercado”, onde se venderiam prendas e objetos dados pelos
pais às crianças para garantir prêmios escolares aos alunos, e se formava “usurários capitalistas aos 9 anos”!!! Para Cony, paradoxalmente, o
sistema Frazão visava ainda ensinar os educandos a desenvolver sentimentos de compaixão pelos desgraçados – como a Festa da Caridade – a
despeito das proibições da Inspetoria Geral, que teria vedado quaisquer
coletas nas escolas, em dinheiro ou objetos, sob quaisquer pretextos.
Havendo na escola de Frazão um parlamento, leis constitucionais,
penais e processuais, um tribunal de meninos, perguntava-se Cony como
Frazão encontrava o tempo necessário para aplicar os ensinamentos
morais e cívicos, incluindo a participação dos alunos nas funções públicas (além da música e a ginástica introduzidas no regimento de 1883), e,
ainda por cima, cumprir os programas e as matérias de ensino previstas
pela legislação da instrução primária. Sugerindo, talvez, que Manoel
Frazão não cumpriria os programas oficiais, Cony lembrava ao público
assistente que o seu sistema de moral e cívica tinha sido proibido pelo
Inspetor Geral Antonio Bandeira Filho, em 1883 – o mesmo que havia
vedado a coleta de dinheiro e objetos para a Caixa Econômica Escolar.
Quanto aos assuntos de moral e cívica, o novo Regimento Interno
das Escolas Públicas Primárias, editado pelo Inspetor Geral em 1883,
previa claramente que a moral e o civismo não constituíam uma disciplina em separado, mas que deveriam estar diluídos entre os ensinamentos e as finalidades de “fazer o aluno amar à pátria, respeitar às
autoridade e leis, conhecer as biografias dos grandes homens”, pontos
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que deveriam ser tratados nos exercícios correntes de leituras. Evidentemente, proibindo o ensino de moral e cívica como uma disciplina autônoma, o Inspetor Geral objetivava cortar pela raiz a experiência diversa e inovadora do sistema de ensino de Manoel Frazão, talvez porque
esse pudesse representar um risco não somente à ordem escolar, pelos
usos diferenciados do tempo, dos espaços e dos objetivos de ensino,
mas, sobretudo, pelo ideal de formação de cidadãos cientes dos seus
direitos (além dos deveres) e atuantes nos processos de ensino/aprendizagem, a ponto de subverter os lugares, as hierarquias sociais e a autoridade. E, quem sabe, evitar que pensamentos e propostas pedagógicas
desse tipo transbordassem do interior da mini-sociedade representada
pela escola, ganhando outros espaços sociais, como as ruas da cidade,
nesse contexto bastante tumultuado pelas campanhas republicanas e
abolicionistas.
Em meio a essas críticas de Cony e diante da proibição da Inspetoria
para aplicar o seu sistema de moral e cívica, Manoel Frazão não silenciou. Na mesma sessão da Nona Conferência Pedagógica Professores
Públicos, enunciou um discurso em sua defesa, pelo qual, para além de
responder ao seu colega de ofício, reiterava as explicações sobre os fins
e os objetivos de seu magistério público e as vantagens de seu método
de ensino. Dizia, então, que concordava com as críticas de Rui Barbosa
aos professores primários, mas apenas no tocante à inexistência de uma
formação escolar e pedagógica adequada e à conseqüente ignorância a
respeito de modernos métodos e das chamadas lições de coisas – a escola normal implantada na Corte em 1880 não havia ainda (re)produzido
professores.
Além disso, a respeito de sua escola, do cumprimento dos horários e
programas, alegava que a educação moral e cívica era integral, ou seja,
havia tempo para ensinar as matérias do ensino primário conjuntamente
com a aplicação dos seus princípios educativos, que incluíam a participação e o exercício de funções públicas pelos alunos. Defendia-se das
acusações de incentivar a formação de usurários e capitalistas, afirmando que o sistema de prêmios e recompensas, além da Caixa Econômica
Escolar, era utilizado pelo ilustre professor Menezes Vieira em suas escolas da Corte, as quais eram reconhecidas pela modernidade pedagógi-
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
131
ca na utilização dos modelos intuitivos froebelianos e pestalozzianos.
Afirmava, ainda, que comprar e vender eram práticas cotidianas da vida
civil e que sua escola, reconhecida pelo governo, foi responsável pela
formação de muitos dos professores públicos atuantes na cidade, os quais
igualmente reconheciam os méritos de seu sistema.
Para Frazão, a escola deveria ser locus de uma educação integral das
crianças, a qual denominava sugestivamente como uma “educação a mais
completa”, porque associava a instrução elementar necessária às práticas
da vida futura, à moralidade e ao civismo, responsáveis, segundo ele, pela
formação de homens novos, cidadãos úteis, moralizados, porém não
amorfos e anômicos, mas atuantes no engrandecimento, capazes de contribuir ao progresso e à civilização do Império. Acima de tudo, a sua escola de educação cívica era um aparelho educativo, pois visava:
Formar os meninos da escola em uma sociedade civil e política, misturar
as lições sociais às lições escolares. [...] os exercícios de cargos públicos na
escola fazem os meninos a tratar os outros como iguais, respeitar hierarquias, conhecer as prioridades do serviço público, conhecer a importância do
Código Penal.
Tudo isso era fundamental na opinião do professor porque, na sua
perspectiva, na sociedade das crianças existiam distinções, conflitos,
posições e oposições, hierarquias e desigualdades:
[...] É fácil de compreender que na sociedade das crianças existem já os
mesmos interesses contrários, as mesmas paixões que se agitam, e se chocam no seio da sociedade real; porque as crianças são homens pequenos, ou,
ao contrário, os homens não passam de crianças grandes. [grifos meus].
Esses interesses contrários – as diferenças e as distinções no interior da sociedade – talvez estivessem no pensamento de Frazão relacionados às desigualdades de classe, às distinções entre diversas tradições
culturais e familiares, às experiências heterogêneas dos meninos que
freqüentavam as escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro – e também daqueles que delas permaneciam distantes. Na sua palestra, ao fa-
132
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lar dos alunos das escolas, e argumentando em defesa de sua escola e de
seu aparelho educativo de moral e cívica, o professor reproduzia representações negativas sobre as famílias das crianças populares, os pais
dos alunos de suas escolas, que eram retratados como indivíduos “promíscuos”, destituídos de uma “clara noção de família”, e diferentemente dos pais de família em países ditos desenvolvidos, “não possuíam
competência para bem educar” os filhos:
[...] Diz-se vulgarmente que a educação é obra familiar, com efeito nos países em que as crianças tem família; porém, entre nós, em que até nas classes
elevadas, só por exceção existe noção clara de família, onde as crianças de
classe baixa são deseducadas na rua, pelos tristes exemplos de pessoas conspícuas, meninos da maior parte destituídos da mais sucinta noção de educação, e que por isso constituem a mais perigosa classe de vagabundos.
Representações negativas das famílias e das crianças populares –
uma “classe de vagabundos destituída de educação” – cruzavam-se com
representações sobre as ruas e a cidade como palcos de perigos e desvios, males contra os quais apenas uma educação primária completa nas
escolas públicas, pautada sobre os princípios de moral e civismo, o aparelho educativo de Frazão, poderia remediar:
[...] Quem percorre a nossa cidade em certas horas do dia, quem mora, nas
proximidades das escolas, sabe quantas irregularidades são cometidas, já por
meninos que se furtam à vigilância e deixam de comparecer na escola. Tais
meninos, ou não tem quem os acompanhe [...] ou se tem portadores são, em
geral, pessoas destituídas de força moral, algum preto velho, ou alguma rapariga... Ficam, pois, as crianças na idade escolar, que é a a mais perigosa, à
mercê das influências deletérias de um meio sumamente irregular, como é o
da nossa cidade, freqüentada por inúmeros vagabundos de toda a espécie... A
missão do mestre é uma verdadeira Teia de Penélope [...]
A convivência dos meninos em idade escolar com indivíduos e grupos sociais heterogêneos – pretos velhos e raparigas, vagabundos de
toda a espécie –, crianças, homens e mulheres de diferentes origens e
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
133
condições sociais, representantes da diversidade étnica, social e cultural
das classes populares urbanas, era interpretada por Manoel Frazão como
um “perigo”, pois, na sua perspectiva determinista, o meio corrompido
e deletério, expresso pela irregularidade das práticas sociais nas ruas,
influenciaria negativamente a sua educação, nessa fase da vida em que
se formava o caráter moral e a personalidade dos meninos, futuros cidadãos. De fato, reafirmando e reiterando a “missão social” do professor
público na educação das crianças populares – essa verdadeira “Teia de
Penélope” – Frazão produzia representações da escola primária como
um lugar fundamental de educação, essencial à manutenção da ordem
na cidade, da civilização e do progresso do Império, prevenindo e remediando a vadiagem12. Então, como educar? – perguntava, concluindo a
sua conferência. E, respondia: com escolas e com uma “educação completa”, o seu sistema de educação moral e cívica!
Sem dúvida, os métodos de ensino e a forma de organização escolar
proposta e aplicada nos anos de 1870 e 1880 – pelo professor das escolas de meninos das freguesias do Sacramento, da Glória e da Lagoa – na
Corte imperial, surpreendem não apenas por sua originalidade, mas principalmente pelas idéias sobre as crianças, a escola, a educação, a pedagogia (notadamente a sua ênfase na formação moral e civil dos meninos) e aos objetivos de formar cidadãos úteis e moralizados, porém ativos
na sociedade e na política imperiais, obedientes a seus deveres, mas
também conhecedores e potencialmente reivindicativos de seus direitos
sociais e políticos.
O sistema de Frazão, ainda que não se adequasse às diretrizes impostas pelo Regulamento de 1854 – tendo até mesmo sido proibido pelo
12. Representações negativas sobre a cidade e as crianças populares, associadas à desordem, à vadiagem e à capoeiragem eram comuns entre os professores. Ainda que
sejam evidentes os preconceitos e as representações pejorativas sobre os meninos,
sobre as ruas e suas manifestações políticas e culturais, não se pode deixar de
considerar que a reprodução das maltas de capoeiras na cidade do Rio de Janeiro se
fazia a partir de um sistema de aprendizagem, no qual os meninos aprendiam a
lutar e a dançar desde pequenos, abarcando desde afro-descendentes – escravos,
livres e libertos – até meninos brancos e pobres, incluindo estrangeiros, como os
portugueses e italianos. Ver, Soares, 1994.
134
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Regimento das escolas em 1883 –, foi autorizado pelo Ministério do
Império, na gestão política dos conservadores Paulino Soares de Souza,
João Alfredo Correia de Oliveira e de José Bento da Cunha Figueiredo.
Evidentemente, a direção conservadora na Corte imperial há muito havia erigido a escola primária como uma instituição pública fundamental, dotada de uma centralidade e de uma função política de estender a
intervenção dos poderes públicos – por meio de múltiplas Teias de Penélope – sobre a heterogeneidade de formas e práticas culturais de educação/instrução privadas, visando criar nexos e estreitar os laços entre o
público e o privado (o governo e a casa) (Mattos, 1987), ao mesmo
tempo em que sonhava controlar e homogeneizar aquilo que era diverso
e não raro considerado um perigo, uma ameaça à ordem e às hierarquias – as classes populares da cidade do Rio de Janeiro.
Talvez por essas razões – pela proposta de formar um cidadão moralizado e cívico, embora atuante – o sistema de Frazão pôde ter sido visto
com “bons olhos” pela Inspetoria de Instrução, ainda que freqüentemente o seu mentor estivesse na mira repressora da Inspetoria, devido
aos seus movimentos políticos no sentido de reivindicar melhores salários e melhores condições de trabalho docente na cidade, buscando, apesar das dificuldades e das divergências entre grupos de professores, agregar e formar associações e institutos de classe, de que foi exemplo o
Instituto Profissional dos Professores Públicos, do qual nos fala Heloísa
Villela (2000), para além da publicação de artigos críticos na imprensa e
nos jornais pedagógicos que surgiram nos anos de 1870.
Em contrapartida, sabe-se também que Manoel Frazão prezava muito
figuras proeminentes do Partido Conservador e abalizava algumas ações
políticas e educativas de sua administração na cidade, pois em seus escritos e palestras eram freqüentes os elogios ao saquarema Eusébio de
Queiroz, um dos mentores do Regulamento de 1854, e Inspetor Geral
de Instrução na pasta de Couto Ferraz (1855-1857) – para quem, aliás, o
professor dedicou uma memória apresentada em conferência pública
(Frazão, 1871)13 – e ao Ministério de João Alfredo (1871-1875), cujo
13. Para a hipótese da aproximação de Manoel Frazão com os saquaremas e a política
educacional do partido conservador conferir: Gondra, 2002, pp. 17-33.
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
135
incentivo à instrução primária pública e profissional, com o Asilo dos
Meninos Desvalidos e a subvenção de vários cursos noturnos na cidade,
teria sido responsável pelo avanço do ensino na Corte.
Porém, considerar a existência de uma certa afinidade de Manoel
Frazão e a política educacional conservadora, ou mesmo de relações
pessoais com alguns de seus integrantes, não me permite afirmar que
esse professor fosse correligionário, filiado ou militante do Partido Conservador. Não encontrei nenhuma referência explícita sobre a sua participação nos quadros formais de qualquer agremiação partidária, ainda
que seja visível que as suas propostas educativas tivessem similitudes
com as diretrizes da política saquarema, posto que tinha em mira a formação de um cidadão perfeitamente adequado à monarquia constitucional e ao regime político adotado no Império. Basta lembrar suas idéias
sobre os meninos, futuros cidadãos ativos e participantes, porém ciosos
das autoridades, das hierarquias e da ordem social e política constituída.
Seria, então, Manoel Frazão afinado com a política conservadora? É
uma hipótese verossímil, ainda mais se levarmos em conta o elogio à
administração saquarema explicitado na memória sobre o ex-Inspetor
Geral de Instrução, Eusébio de Queiroz, ou ainda a sua amizade, nos
anos de 1870, com o deputado Luiz Joaquim Duque-Estrada Teixeira,
político conservador com considerável prestígio na freguesia da Glória.
Probabilidade que parece mais evidente quando se pensa em possíveis explicações, nos motivos e nas razões plausíveis, pelas quais a sua
escola, e a sua ação educativa, fosse tão polêmica e criticada, chegando
mesmo a ser cortada pela direção liberal do Ministério do Império, entre
1879 e 1886 (o ministro de 1883, ano do novo Regimento das Escolas e
do decreto proibitivo ao sistema Frazão, era membro do Partido Liberal,
o luzia Manoel de Souza Dantas, pai de Rodolfo Dantas, seu sucessor, e
o Inspetor Geral de Instrução era Antonio Bandeira Filho).
É possível que, com o acirramento das tensões sociais e dos conflitos políticos nos meetings nas ruas da cidade, desencadeadas, por um
lado, pela radicalização do movimento abolicionista e, por outro, pelo
crescimento das adesões ao movimento republicano, tivesse se tornado
muito pouco adequado se falar em uma escola primária formadora de
cidadãos ativos e cívicos, participantes e potencialmente reivindicativos
136
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
de direitos sociais e políticos. Pois, quaisquer que fossem as tendências
e as escolhas políticas, como seria possível controlar a multiplicidade das
ações educativas e, mais ainda, como prever e evitar as diversas interpretações e reaproriações, as recriações das práticas culturais e pedagógicas,
e, as conseqüências de uma proposta de educação para o exercício da
cidadania – tão imprecisa, indefinida e ambígua, porque objeto de lutas e
disputas políticas e culturais –, como a de Manoel Frazão?
Afinal, não foi à toa que, ao proibir o sistema de moral e cívica
desse professor, o Inspetor Geral tenha intencionado destituir a legitimidade de uma disciplina que, anteriormente inexistente nos programas
de ensino oficiais, foi criada e produzida no interior das práticas e da(s)
cultura(s) escolares da cidade, pela experiência relativamente autônoma e pelo pensamento social e pedagógico de um professor público. O
sistema de moral e cívica de Frazão foi, então, condenado pela política
liberal oficial no poder, que determinava que nas escolas primárias se
reforçassem ensinamentos de respeito às autoridades – às biografias dos
grandes homens, dos políticos e estadistas – e às hierarquias sociais, de
amor e submissão à pátria, em um modelo de cidadania significativamente distinto daquele idealizado pelo professor público de escolas primárias isoladas da cidade.
Teria o professor primário acatado os decretos oficiais e deixado, a
partir de 1883, de aplicar o seu sistema disciplinar de ensino de moral e
cívica aos seus meninos? É impossível ter certezas, pois perderam-se as
pistas e os indícios, os “fios da meada” da trajetória e das experiências
sociais e pedagógicas de Manoel Frazão em suas escolas.
O que se pôde investigar sobre esse professor indica que, em 1895,
com 32 anos de magistério primário na cidade e 59 anos de idade, estava aposentado do serviço público, tendo sido nomeado para o Conselho
de Instrução Primária e Secundária da então capital da República brasileira. Antes de tornar-se conselheiro de ensino, porém, Frazão fez uma
viagem à Europa, visitando instituições e estabelecimentos diversos de
educação, em vários países ditos civilizados, cuja experiência relatou
ao novo governo republicano (Frazão, 1895).
Mas, esses, foram outros tempos...Tempos de outros projetos políticos e educativos...
combates pelo ofício em uma escola moralizada e cívica
137
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
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FILHO, Luciano (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autentica.
Recebido: 24 de ago. de 2004
Aprovado: 11 de maio de 2005
Vestígios das influências da cultura
e pedagogia norte-americanas
no pensamento educacional
de Fernando de Azevedo
José Cláudio Sooma Silva*
A partir do entrelaçamento de fontes primárias guardadas no Arquivo Pessoal de Fernando
de Azevedo/IEB-USP com outras fontes secundárias, o texto discute os vestígios das
influências da pedagogia e cultura norte-americanas no pensamento educacional de
Fernando de Azevedo. Pretende-se, assim, contribuir para as investigações em história e
história da educação relacionadas ao desenrolar do movimento escolanovista em terras
brasileiras.
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; ESCOLANOVISMO; PRAGMATISMO PEDAGÓGICO;
MÉTODOS DE ENSINO.
From the interlacement of primary sources kept in the Personal Archive of Fernando de
Azevedo/IEB-USP with other secondary sources, the text discusses the traces of the
influences of American culture and pedagogy on Fernando de Azevedos’ educational
thought. It is intended contribute to the investigation of the history and the history of
education related to the development of the newschool movement in Brazil.
HISTORY OF EDUCATION; NEWSCHOOL; PEDAGOGIC PRAGMATISM;
METHODS OF EDUCATION.
*
Mestre em história da educação e historiografia pela Faculdade de Educação da da
Universidade de São Paulo (FEUSP); Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHE) da FEUSP; professor orientador do
Programa de Educação Continuada (PEC)/Fundo de Apoio à Faculdade de Educação
(FAFE)/USP e Professor de história do Colégio São Judas Tadeu.
140
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Para realizar a proposta de iluminar possíveis pontos de congruência
entre algumas das concepções defendidas pelo educador Fernando de
Azevedo e os aspectos da cultura e pedagogia norte-americanas, optouse pela seleção de certas formas de entrada à temática. Nesse sentido, o
esclarecimento delas constitui-se como passo fundamental para explicitar
os limites do que pôde ser abarcado com a reflexão.
Dessa perspectiva, inicialmente, é necessário sublinhar quais os aspectos da cultura e pedagogia norte-americanas que foram tomados para
a análise. Dentro do recorte conferido, a ênfase recaiu sobre as questões
relacionadas ao individualismo, aos ideais de liberdade e ao pragmatismo
pedagógico inspirado, principalmente, em John Dewey.
Em seguida, cabe desnudar as fontes utilizadas para o estudo. Por
certo, a longa trajetória político-educacional e a numerosa produção intelectual azevedianas não puderam ser enfocadas integralmente por este
artigo. Nessa direção, para o desenvolvimento do texto foram analisadas 115 correspondências trocadas entre Manoel Bergström Lourenço
Filho e Fernando de Azevedo1, 2 cartas de Anísio Teixeira para Azevedo2, manuscritos de conferências redigidos por Azevedo e algumas fontes secundárias.
Em vista das considerações, o artigo encontra-se dividido em duas
partes. A primeira, contando com dois tópicos, apresenta questões que
foram construídas, principalmente, a partir do diálogo estabelecido com a
documentação do Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP. A
segunda, escrita à guisa de conclusão, consiste em uma reflexão acerca de
1.
2.
Desse total de 115 documentos, 65 são de Lourenço Filho para Azevedo, cobrindo
um período que vai de 17 jun. 1927 a 30 jun. 1963 (cartas doadas por Ruy Lourenço Filho, em 1998, para o Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP). Os outros
50 documentos são de Azevedo para Lourenço Filho, cobrindo um período que vai
de 27 set. 1927 a 23 jun. 1963 (cartas doadas por Fernando de Azevedo, em 1970,
junto com o seu arquivo pessoal).
Por conta, principalmente, da afinidade de pensamentos, da disposição para se
engajarem no movimento de reestruturação educacional brasileiro e da
contemporaneidade de cargos exercidos, optei, também, por trazer ao texto as 2
cartas de Anísio Teixeira. Essa aproximação entre esses três educadores (Azevedo,
Lourenço Filho e Teixeira) já foi desenvolvida por outros pesquisadores. Ver Vidal
(2001) e Nunes (2000).
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
141
algumas das preocupações que devem preceder a utilização de correspondências salvaguardadas em arquivos pessoais nos trabalhos históricos.
1. Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e,
também, Anísio Teixeira: integrantes de uma
“vanguarda da educação brasileira”?
Meu caro Lourenço Filho,
Acabo de ler sua admirável Introdução ao estudo da Escola Nova [Lourenço Filho, 1930]. Você fez a obra indispensável, no momento, para orientar
os educadores brasileiros na interpretação da filosofia e na crítica dos métodos da educação moderna.
Creio que não há na bibliografia contemporânea nenhum livro tão oportuno sobre a matéria, tão claro e equilibrado. Dentro da selva intrincada dos
conceitos, das doutrinas e das experiências de tantos inovadores, V. foi um
pensador ponderado, um crítico meticuloso e avisado, um didata experimentado e um artista encantador pela perícia com que desbravou o campo e removeu o material inútil e nocivo à perfeita compreensão do problema.
Sinto-me feliz por encontrar a cada passo com você nas idéias principais da
obra e sobretudo na afirmação da supremacia do sistema criado por Dewey,
que, certamente mais por intuição que por estudo profundo, sempre reputei o
mais lógico, racional e despido de qualquer artifício. [...]
Você, Lourenço, é um dos poucos homens talhados, nesta ocasião, para dirigir
o departamento da educação do Distrito Federal, ou para ser Ministro da Educação Nacional, mas com Fernando de Azevedo como Prefeito, ou como Presidente da República (não seria preciso fazê-lo ditador como ele mais gostaria).
Vocês dois se completam, mas não poderiam substituir reciprocamente.
Para uma grande reforma nacional de educação (ou qualquer outro gênero),
o Fernando de Azevedo é o homem oportuno, ajustado e talvez o único. Moldado em aço, mas, aqui e ali, com felizes falhas na tempera, obstinado e
explosivo, intrinsecamente probo em atos e intenções, ardendo em uma chama perene de idealismo, sentimental e duro ao mesmo tempo, abstrato e
dispersivo in modo, objetivo, retilíneo e fulminante in re, ele possui as virtudes clássicas e também as heterodoxas (a que chamamos defeitos), indispen-
142
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
sáveis a um criador de realidades cósmicas, harmoniosas e fecundas. Poucos
o amam, muitos o detestam, e quase todos o temem. E entre os que lhe querem e admiram, não sei quantos, como eu, o compreenderão e aceitarão integralmente.
Agora você não será homem para temporais (vá com restrições). Poderia
naturalmente, em calma e ambiente pacífico, formular um magnífico código de educação, mas não o imporia a força, não jogaria por ele a sua vida,
não se agarraria a ele como um desesperado, afrontando tudo para salvá-lo
íntegro e ileso.
Todavia para executá-lo, tanto em suas linhas mestras, como em seus detalhes, para coordenar todos os seus elementos vivos e realizar a obra imposta
ao ambiente e aceita pelas consciências, aí onde o Fernando de Azevedo
poderia talvez esmorecer e fraquear, V. me parece incomparável e quase solitário atualmente no Brasil.
Quando estou em despedidas da minha vida pública, fico a sonhar a esse
sonho de ainda ver vocês dois unidos, talhando neste formidável Brasil, uma
obra de construção nacional que o redima de meio século de erros e de experiências fúteis.
(a) Frota Pessoa
[Anexo de carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 15 ago. 1930,
FA-Cp Cx. 19, 22, ARQFA/IEB-USP; grifos do autor]3.
Embora extensa acredito que as palavras de José Getúlio da Frota
Pessoa, comentando aspectos das características pessoais e profissionais de Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, sirvam como uma excelente epígrafe para as idéias que serão trabalhadas a seguir. Afinal, era
3.
Por ser essa a primeira citação do conteúdo registrado na correspondência entre
Azevedo e Lourenço Filho, cabe alguns esclarecimentos. O primeiro deles, objetivando facilitar a leitura do texto, refere-se à atualização que empreendi à grafia das
palavras. O segundo relaciona-se à codificação adotada pelo Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB-USP) e que será utilizada nesse texto: FA (Fernando de Azevedo);
Cp (Correspondência Passiva); Ca (Correspondência Ativa); Cx. (Caixa); “22” (localização do documento em sua respectiva Caixa) e ARQFA/IEB-USP (Arquivo
Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP).
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
143
Frota Pessoa que afirmava, em carta ao primeiro, que Lourenço Filho e
Azevedo “[...] se completa[vam], mas não poderiam substituir reciprocamente”.
Pelo olhar de Frota Pessoa, o relacionamento entre os dois educadores não se poderia desenvolver em outro modo que não unir esforços.
Duas personagens que, por suas aptidões, preferências e formações, dedicaram grande parte de suas vidas ao problema educacional brasileiro.
Colegas de trabalho, em 1920, na Escola Normal da Praça em São Paulo4 e juntos desde a juventude pelo ideal de reestruturação da educação
do país, Azevedo e Lourenço Filho em suas cartas deixavam transparecer
o respeito e admiração que cultivavam um pelo outro:
Fernando,
desde ontem, recebida sua carta, achei-me num estado de espírito que V.
facilmente avaliará. O meu desejo sincero, franco e decidido é o de servir,
nesta emergência, a uma causa comum, por que V. tão brilhantemente se
empenha. E, mais: o de atender à sua boa amizade – o que em aspecto diverso da mesma questão, em virtude dela ter nascido e se ter cimentado exatamente no trato de idéias e sentimentos comuns sobre questões de educação
[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, [?] jan. 1928, FA-Cp
Cx. 19, 12, ARQFA/IEB-USP].
Meu caro Lourenço,
[...] V. sabe que estamos unidos desde nossa mocidade, pela devoção ao ideal
de servir à educação no Brasil e pela dedicação sem reservas a essa obra de
suma importância para a vida nacional. Nenhum educador que tenha o sentimento do essencial, do eficaz, da força do que une e edifica, pode furtar-se ao
dever de levar a qualquer trabalho útil, nesse terreno, a melhor contribuição
de seus esforços [...]
[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 26 jul. 1945, FA-Ca
Cx. 10A, 35, ARQFA/IEB-USP].
4.
Em 1920 Lourenço Filho era professor substituto de pedagogia e educação cívica e
Fernando de Azevedo era professor da cadeira de latim e literatura.
144
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
As iniciativas educacionais, políticas, editoriais e administrativas
dos dois educadores eram sempre recebidas com palavras de estímulo
em suas missivas. Ultrapassando os laços de amizade que os uniam, o
contato com a documentação possibilitou o descortinar de um elemento
que, paulatinamente, se constituiu como um traço comum a todas as 115
cartas. Azevedo e Lourenço Filho, juntos com alguns outros educadores, enxergavam-se como integrantes de uma “vanguarda de reformadores educacionais brasileiros”.
Nesse caminhar, mais do que congratulações e comentários por livros lançados, cargos ocupados, conferências pronunciadas, as impressões elogiosas trocadas entre os correspondentes deixam transparecer
um forte sentimento de que estavam eles, os “vanguardistas”, travando
uma “batalha” pela reestruturação educacional do Brasil. Assim, as realizações e expectativas de ambos educadores assemelhavam-se, em suas
impressões, a algo igual – ou muito próximo – às peças de um intrincado
quebra-cabeças. Azevedo e Lourenço Filho delegavam, então, a cada
uma de suas atitudes, reformas, publicações, conquistas, conferências e
iniciativas o caráter de peças fundamentais; e como um intrincado quebra-cabeças consideravam a situação do sistema educacional brasileiro.
Não é preciso que lhe diga de minha alegria íntima [...] não apenas como amigo, mas como modesto cultor de idéias semelhantes e, mais que tudo, como
brasileiro. Quando se escrever um dia, mais tarde, a história do ensino, no
Brasil dois períodos serão assinalados: antes dessa reforma5 e depois dela. Não
é exagero, nem vontade de agradá-lo, pois bem me conhece. É o que é [...]
[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, [?] jan. 1928, FA-Cp
Cx. 19, 13, ARQFA/IEB-USP].
Lourenço
Passei os olhos pelo seu livro [Lourenço Filho, 1930]. Excelente, a todos
os respeitos. Ele tem um grande destino: contribuir para a formação de uma
“nova mentalidade” de educadores. Exposição límpida, seriamente docu-
5.
Fernando de Azevedo foi o idealizador da Reforma da Instrução Pública do Distrito Federal/RJ (1927-1930).
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
145
mentada, nutrida de idéias e rica de sugestões. E, – que o caracteriza, –
apresenta o problema, por todas as suas faces, substituindo por uma visão
global, larga e penetrante, as visões estreitas e precárias, tão freqüentes, da
grande questão [...].
Livro de Mestre. Não há obra que o substitua, na literatura pedagógica. Lêdeo, se quiserdes ter uma visão de conjunto, larga e profunda, da escola nova. A
clareza tirou nele desforra sobre a confusão
[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 11 jul. 1930, FA-Ca Cx.
10A, 3, ARQFA/IEB-USP].
Pelas palavras percebe-se o quão em sintonia parecia pulsar o anseio de reestruturação do sistema educacional brasileiro dos dois educadores. Para Lourenço Filho, tamanha seria a contribuição e o grau de
inovação da Reforma da Instrução Pública do, então, Distrito Federal
(1927-1930) idealizada por Azevedo que, quando “se escreve[sse] um
dia, mais tarde, a história do ensino, no Brasil dois períodos ser[iam]
assinalados: antes dessa reforma e depois dela”. Para Azevedo, o recém-lançado livro de Lourenço Filho que versava, justamente, sobre a
introdução de novos métodos e saberes escolares pautados no ideário
escolanovista contribuiria “para a formação de uma ‘nova mentalidade’
de educadores” brasileiros. Perpassando as impressões dos dois educadores a certeza de que ambos, juntos, prestavam um inestimável auxílio
ao desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema escolar do país. Mais
dois excertos das missivas trocadas entre Azevedo e Lourenço Filho
reafirmam o caráter de “vanguarda da educação” que os dois educadores conotavam às suas atuações político-administrativas.
Fernando,
[...] Bem pode V. imaginar o meu contentamento íntimo, em vê-lo ali, no
lugar que sempre imaginei devia competir-lhe no Governo de Washington6.
Contentamento mais que de camarada, e admirador que o sou de V., sinceramente, contentamento de “Quixote” das mesmas idéias de renovação científica do ensino [...]
6.
Por meio de indicações de Renato Jardim (ex-diretor da Instrução Pública do Distrito Federal/RJ), Washington Luis (presidente do Brasil) e Alarico Silveira (secre-
146
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 17 jan. 1927, FA-Cp
Cx. 19, 1, ARQFA/IEB-USP].
Meu caro Lourenço,
[...] Acredite que lamentei profundamente não poder tê-lo, no Rio, nas reuniões da Conferência e nos trabalhos do concurso. Via você e sentia, de certo,
o vivo interesse que manifestei pela sua presença nestes dias, em que se congregam no Rio diretores e delegados [?] dos Estados e da União. Afastei-me
um pouco dessas reuniões. Dos que vieram (isto entre nós) não vi lá um “homem”. Uma lástima, a educação pública no Brasil
[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 24 set. 1930, FA-Ca Cx.
10A, 4, ARQFA/IEB-USP].
Volta aqui, novamente, a maneira particular como os dois educadores concebiam o movimento de reestruturação educacional do país. Segundo Lourenço Filho, a nomeação de Azevedo para o cargo de Diretor
Geral da Instrução Pública do Distrito Federal contribuiu para que fosse
tomado por um “contentamento de ‘Quixote’”, já que ambos compartilhavam “das mesmas idéias de renovação científica do ensino”. Para
Azevedo, o fato de Lourenço Filho não ter podido deslocar-se até a
cidade do Rio de Janeiro para participar das reuniões da conferência,
bem como dos trabalhos de concurso, concorreu para que buscasse um
afastamento desses acontecimentos, uma vez que dentre os participantes não enxergara “lá um homem”, concluindo que era “Uma lástima, a
educação pública no Brasil”.
Remeto-me, neste ponto, a mais três excertos de documentos. Dois
deles foram levantados junto à correspondência partilhada entre Lourenço Filho e Azevedo. O último foi extraído de uma carta enviada por
um outro educador – Anísio Teixeira – a Azevedo. Por desenvolverem
tário do presidente) a Antônio Prado Júnior (prefeito da cidade do Rio de Janeiro),
Fernando de Azevedo recebeu o convite para integrar o governo da, então, capital
do país. Após algumas reuniões, discussões e conversas, o educador acabou por
aceitar o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública do Distrito Federal/RJ, tomando posse em 17 jan. 1927.
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
147
suas considerações a partir de um núcleo comum de idéias, acredito que
as três passagens possam ser relacionadas.
Meu caro Fernando,
Agradeço a V. a remessa, que me fez, do volume do inquérito [Azevedo, 1987].
Acho que V. prestou mais um serviço à educação nacional com a publicação
desse interessante material. Onze anos passados, não mudamos muito, quase
nada. É um documento que fica ao lado do “Manifesto” [Azevedo et al., 1932],
como expressão de uma época de evolução de idéias pedagógicas brasileiras
[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 09 dez. 1937, FA-Cp
Cx. 19, 41, ARQFA/IEB-USP].
[...] Tive a satisfação de verificar mais uma vez, na minha visita a Curitiba,
que ainda não conhecia, quão profunda tem sido a repercussão, no Brasil, da
campanha e da obra de renovação educacional de que temos tido a iniciativa
e a responsabilidade
[Carta de Fernando de Azevedo para Lourenço Filho, 19 set. 1935, FA-Ca
Cx. 10A, 12, ARQFA/IEB-USP].
Meu querido Fernando:
Se não lhe tenho escrito, não é porque não tenha o pensamento em V. e em
sua obra, antes porque o tenho quase que obsessivamente. Desde que de
longe notei a possibilidade de que o tivéssemos por aqui, tenho vivido com a
preocupação de achar ou criar uma oportunidade. Creio já lhe haver dito que
é minha impressão não ser possível travar, no Brasil, a batalha educacional,
antes de vencermos a peleja do Distrito Federal. E de tudo temos já feito para
isso, sinto constantemente a necessidade de consolidação e amadurecimento
da obra ainda muito exposta a acidentes e tempestades.
A sua vinda para o Rio, parece-me, viria a ser uma ponte de apoio para a
cristalização de toda a obra. Dada, porém, a significação do seu nome, V. só
deveria vir para o Ministério, ou para a direção do Departamento Nacional, ou
para este que se acha entregue ao meu devotamento humilde sem prestígio.
Como sei, entretanto, que o que V. vê é a obra e não o cargo, tenho procurado encaminhar uma solução que não é do meu gosto, mas que poderá ser
início de outras melhores.
Trata-se da remodelação do governo da cidade, que se cogita de constituir
em Secretarias de Estado.[...]
148
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
O meu desejo, não precisaria dizê-lo, era que V. fosse o Secretário. Não
sendo isso possível: diretor-geral de Educação e Cultura Popular, diretoria
em que se enquadrariam todos os serviços de educação, exclusiva ou de orientação e formação técnicas. [...]
Os diretores deveriam ser: Lourenço Filho, Delgado de Carvalho, J.C. Vital e Fernando de Azevedo – Quatro homens que manteriam, sob a sua liderança, a obra educacional do Rio. Essa liderança estaria assegurada por lhe
estar confiada a execução dos serviços
[Carta de Anísio Teixeira para Fernando de Azevedo, 11 jan. 1934, FA-Cp
Cx. 32, 8, ARQFA/IEB-USP].
Apesar das circunstâncias específicas registradas nas três cartas, em
um contexto reflexivo mais amplo, pode-se estabelecer um pano de fundo comum a todas. Refiro-me ao fato de que tanto nas palavras de Azevedo quanto nas de Lourenço Filho e, por fim, nas entrelinhas das de
Anísio Teixeira nota-se, mais uma vez, a maneira pela qual se percebiam no movimento de reestruturação educacional brasileiro: componentes de uma “vanguarda reformadora”.
Identificando-se como os “combatentes da escola renovada”, Lourenço
Filho, Azevedo e Teixeira procuravam inscrever uma linha divisória que,
de uma forma, se opunha ao que denominavam tradicionalismo do ensino
bacharelesco brasileiro. E, de outra, afastava-se dos erros e iniciativas equivocadas de alguns outros grupos de educadores do país que, acerca do movimento de renovação escolar, nada mais tinham do que senão uma visão
“estreita e precária, tão freqüentes, da grande questão”.
1.1. Das concepções educacionais: ação,
desempenho e pragmatismo
A oposição entre o ensino tradicional bacharelesco e os métodos
advindos dos preceitos escolanovistas foi uma constante no discurso de
Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira a partir, principalmente, de
meados da década de 1920. Defendendo uma renovação das práticas e
saberes escolares, os alunos deviam, segundo os novos educadores, ocupar uma posição ativa no processo de aprendizagem. Dessa feita, seria
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
149
da valorização das perguntas, curiosidades, olhares, experiências, questionamentos infantis que os professores deveriam estabelecer as suas
práticas de aula.
E porque ativo, o conhecimento produzido por professores e alunos
devia ultrapassar os muros e portões dos estabelecimentos escolares para
instalar-se mesmo no coração do meio social brasileiro. Exploradores,
crianças, enfermeiras, professores, diretores, serventes, inspetores, deviam encarar as cidades como um núcleo gerador de novas e diferentes
descobertas. Excursões, desfiles, passeios, visitas monitoradas pelos
espaços citadinos constituir-se-iam, dessa forma, como uma constante.
A mística da renovação e da modernização das práticas e saberes escolares inscrevia-se, com essa apropriação do ambiente urbano, nos corpos daqueles portadores intrínsecos do futuro – as crianças e jovens – e
dos responsáveis pela concretização desses promissores futuros – seus
mestres e professores.
Percebe-se, então, que diferentes códigos de vivência deviam ser
produzidos pela sociedade brasileira que, necessariamente, tentava
impingir em suas estruturas conturbadas – reflexo ainda de um recémabolido passado escravocrata – um caráter de organização e funcionalidade. À escola primária, segundo os escolanovistas do período, caberia,
dentre outros, o papel de interpretar e adequar as crianças, familiares,
conhecidos, professores, diretores, inspetores, serventes, enfermeiras,
dentistas, enfim a população brasileira para as novas exigências sociais.
Segundo Fernando de Azevedo:
A escola primária, com as suas oficinas de pequenas indústrias, na zona
urbana [...] vai assim ao encontro do que deveria ser, ao mesmo tempo que a
instrução, o seu fim principal: enraizar o operário às oficinas, [..] fazendo-os
compreender e amar, com o trabalho produtivo, a vida intensa das fábricas
[...]. Assim, a escola do trabalho, que se destina, como um vestíbulo do meio
social, à formação do indivíduo pela comunidade e para ela, além de criar o
espírito de disciplina e solidariedade social, constitui, com o trabalho realizado no interesse cultural da comunidade, uma fonte de forças vivas e a
única educação popular capaz de nos dar a posse completa de nós [Azevedo,
1929, p. 43].
150
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Parágrafo singular no tocante à maneira enfática escolhida por Azevedo para referir-se ao modo pelo qual suas concepções educacionais
jogavam com as vidas dos “futuros cidadãos modernos” (as crianças e
os jovens). Explicitando que o ideal de educação renovada não objetivava
reduzir o ritmo acelerado oriundo de uma sociedade que procurava se
conformar aos moldes capitalistas de desenvolvimento e modernização,
mas sim disciplinar e canalizar tal velocidade na direção das cadências
(também aceleradas) advindas do pulsar das fábricas e maquinarias,
Azevedo acreditava ser possível não só educar e adequar as crianças aos
tempos fabris, mas como, também, fazê-las “compreender e amar, com
o trabalho produtivo, a vida intensa das fábricas”.
Higienizados, civilizados e extremamente disciplinados, encontrava-se nas coreografias sincronizadas dos exercícios físicos das crianças,
nos perfilamentos dos Pelotões de Saúde, nos modos bem-educados dos
escolares e das enfermeiras escolares, o objetivo máximo a ser alcançado por toda a população: a modernidade. Educar era prevenir. Prevenir
era disciplinar, higienizar e civilizar. Disciplinar, higienizar e civilizar
era modernizar.
Esse curso de profundas mudanças indicia a utilização de diferentes
repertórios teóricos a partir dos quais passavam a ser pensados os métodos e saberes escolares do período. Ao envolver e concentrar suas proposições em função da tentativa de pontuar-se um distanciamento entre
os métodos e práticas da “velha escola tradicionalista”, os discursos dos
novos educadores aproximavam-se das concepções advindas do
pragmatismo pedagógico. Afinal, as práticas e saberes apreendidos e
materializados nos bancos escolares deviam, necessariamente, constituir-se como instrumentos a serviço da ação e do desempenho.
Acerca das influências do pragmatismo pedagógico no pensamento
de Anísio Teixeira, os dizeres registrados de próprio punho em carta a
Fernando de Azevedo parecem ser reveladores. Externando a seu remetente as particularidades que marcaram as circunstâncias em que os dois
se conheceram, assim escrevia Anísio:
Meu querido Fernando:
[...] Telefonei ao Agostini para me valer da sua memória, a fim de recordar o
dia do nosso primeiro encontro – recém-vindo eu dos Estados Unidos e da
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
151
Columbia University e V. em pleno vôo da reforma educacional do D. F. –
para, como diz, e eu confirmo de todo coração, o ‘começo de uma amizade
que não teve nem sofrerá desfalecimentos’. Não conseguimos localizar o dia
– mas, quanto ao mês, deve ter sido em fins de junho ou começo de julho e o
ano foi o de 1929 e não 1928, como V. julgava. Fiz no T. C. da Col. Univ. o
ano regular de 28/29, graduando-me nos últimos dias de maio. Viajei para o
Rio, pouco depois. Esse foi um período extraordinariamente significativo
em minha vida [...]. Tenho a impressão que foi nesse ano que me encontrei
comigo mesmo. O ano de estudos na Col. Univ., a descoberta de J. Dewey, a
revisão (ou conversão?) filosófica, e as grandes amizades intelectuais –
Lobato, Fernando, Lourenço, [...]
[Carta de Anísio Teixeira para Fernando de Azevedo, 15 fev. 1960, FA-Cp
Cx. 32A, 101, ARQFA/IEB-USP].
Já os vestígios do aludido pragmatismo pedagógico nas concepções
de Lourenço Filho, também, podem ser perscrutados em carta enviada
para Azevedo. Afirmo isso, em razão, principalmente, das duas conferências que o educador teve oportunidade de proferir em Buenos Aires:
a primeira, tecendo considerações acerca do “Sentido Americano de Educação” e a segunda concentrando-se nas “Tendências da Educação Brasileira”. Tanto em uma quanto em outra, a forte influência do
pragmatismo pedagógico norte-americano, via principalmente os trabalhos de John Dewey, nas maneiras de ele articular os seus ideais de
reestruturação educacional no país:
Deslocado do campo de ação o nosso querido Anísio, pelos mal-entendidos
que ainda subsistem, restamos ambos como os combatentes da escola renovada, não renovada apenas em método, mas em política. Minhas conferências em
Buenos Aires abordaram justamente também aspectos gerais de educação, sobretudo duas, que tiveram por tema “Sentido Americano de Educação” e “Tendências da Educação Brasileira”
[Carta de Lourenço Filho para Fernando de Azevedo, 12 nov. 1936, FA-Cp
Cx. 19, 39, ARQFA/IEB-USP].
Ainda no tocante às influências do pragmatismo pedagógico de John
Dewey na obra de Lourenço Filho, torna-se interessante referir-se às
152
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seguintes afirmações do educador brasileiro, firmadas em uma Conferência proferida, em 1939, na Escola do Estado Maior do Exército:
Como tão nitidamente escreveu John Dewey, a educação é uma regulação
do processo de participação na consciência social. E a acomodação da atividade individual, sobre a base desta consciência social, é o único método seguro
de reconstrução dos costumes. Esta concepção leva na devida conta os ideais
individuais e sociais. É acertadamente individual, porque reconhece que a formação do caráter é a única base legítima de uma vida digna. É social, porque
reconhece que esse caráter reto não se forma tão só por preceitos ou exortações, mas sim pela influência da vida coletiva sobre o indivíduo [...].
Toda a moderna pedagogia procura por isso, refletindo as inquietações da política contemporânea, um mais equilibrado ajustamento dos
interesses do indivíduo com os interesses e os fins do Estado. É, por
isso, uma pedagogia de fundo social. Despojá-la de seu conteúdo coletivo seria fazê-la perder todo e qualquer sentido. Justifica uma política
de educação, e aproxima estadistas e educadores, revivendo a máxima
de Marco Aurélio: “o que não é útil ao enxame não é útil à abelha”
(Lourenço Filho, s.d., pp. 105-106).
Ou, ainda, as considerações colocadas por Alceu de Amoroso Lima
em um livro jubilar organizado pela Associação Brasileira de Educação
em homenagem a Lourenço Filho. Afirmava o autor em finais da década de 1950:
A obra teórica que vinha revelar ao Brasil o pragmatismo pedagógico,
inspirado acima de tudo em Dewey, [...] foi sem dúvida o livro famoso de
Lourenço Filho – “Introdução ao Estudo da Escola Nova” [Lourenço Filho,
1930], que é de 1929 e constitui um dos livros-chaves da nossa cultura contemporânea [Amoroso Lima em Associação Brasileira de Educação, 1957/
1958, pp. 176-177].
De posse das considerações dos dois educadores que se enxergavam como integrantes da “vanguarda reformadora”, no que se atine aos
aspectos educacionais brasileiros, acredito ser possível chegar até o ponto
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
153
que pretendia sublinhar. Como Anísio Teixeira e Lourenço Filho reconhecem e Amoroso Lima reafirma, a influência da pedagogia e cultura
norte-americanas em seus ideais educacionais constituiu-se como uma
constante a partir, principalmente, de meados da década de 1920.
Dialogando, incessantemente, com o pragmatismo pedagógico de
Dewey, os escolanovistas defendiam um afastamento da concepção do,
por assim dizer, pensar e aprender pelo simples fato de pensar e aprender (principal característica da escola-bacharelesca que, segundo os
escolanovistas, contribuiu para que o processo de ensino e aprendizagem se tornasse, cada vez mais, desinteressante, obsoleto e enfadonho).
Ao contrário, os novos educadores apregoavam que a educação devia,
impreterivelmente, se balizar no pensar e aprender conjungadamente
ao fazer e experimentar (escola ativa). É a partir desse quadro de interpretações que, acredito, também, se possa buscar um sentido para as
seguintes formulações de Fernando de Azevedo:
O ideal que a lei do ensino confia ao professorado para ser transmitido às
novas gerações e para o qual converge todo o plano da organização escolar é
o ideal de ação: o espírito de iniciativa a consciência da necessidade do esforço para se afirmar na vida, o gosto, o hábito e a técnica do trabalho e o
respeito à personalidade alheia pelo sentimento e pelo hábito do trabalho em
cooperação. É o ideal da Escola Nova, que, segundo a concepção social que
a inspira, se pode encarar pelos seus três aspectos: 1o. Escola Única; 2o. Escola de Trabalho; 3o. Escola da Comunidade. Todo indivíduo numa democracia social deve ter uma base de educação comum para diversificações materiais, que serão operadas nas escolas profissionais, rigorosamente articuladas
na escola primária. Entre uma e a outra, atuarão como cursos ocasionais os
complementares e anexos, destinados a completar a educação fundamental,
indicando o melhor indivíduo para cada ocupação e a melhor ocupação para
cada indivíduo.
A escola primária prepara pelo trabalho e para o trabalho em geral; a escola vocacional experimenta e seleciona; a escola profissional especializa, completando a doutrina de ação e dando a cada aluno a técnica, a arte e a higiene
dum ofício determinado ou dum grupo de ofícios correlatos [...] [Azevedo
apud Bernárdez, 27 mar. 1930].
154
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Pelos dizeres, parece ser clara a conotação pressuposta por Fernando
de Azevedo de que a escola tinha que funcionar primeiramente para o
corpo docente e discente – mas tendo em vistas também o meio social –
como um laboratório de preparação para a vida moderna. E era justamente a partir dessa relação que se articulavam, também, as preocupações por parte dos responsáveis pelo movimento de renovação escolar,
referentes à modelação e adequação dos novos trabalhadores, já que
para a superação do atraso econômico e industrial da nação – entraves à
modernidade e ao desenvolvimento – era necessário um processo de
(re)significação do trabalho. Isto é, mais do que a tentativa de estabelecer nos trabalhadores, em relação aos seus ofícios, vínculos de moralidade
e dependências, o pretendido, agora, era acrescentar a estas duas iniciativas o fator produtividade. Em outros termos, se o objetivo a ser alcançado era o de se aperfeiçoar e qualificar, cada vez mais, o mercado de
trabalho brasileiro, nada mais coerente do que a busca por um investimento naqueles que seriam os futuros integrantes desse mercado: as
crianças e os jovens.
[A Reforma] marcou, nos domínios da educação, um período revolucionário, não só pelas idéias francamente renovadoras que a inspiraram e que, por
ela, entraram em circulação, como pela fermentação de idéias que provocou
e pelo estado social que estabeleceu, de trepidação dos espíritos, de sôfregas
impaciências e de aspirações ardentes. Nenhuma outra, de fato, até 1930,
imprimiu ao nosso sistema de educação uma direção social, tanto quanto
nacionalista, mais vigorosa, nem levou mais em conta, no conjunto como
nos seus detalhes, a função social da escola; nenhuma outra atendeu mais ao
enriquecimento interno da escola e ao alargamento de seu raio de ação; nenhuma outra procurou articular mais estreitamente as atividades escolares
com a família, com os meios profissionais interessados, com a vida nacional
e as necessidades e condições do mundo moderno [Azevedo, 1964, 4. ed.,
p. 656].
Dessa panorâmica, assim como em Anísio Teixeira e Lourenço Filho, pode-se indiciar influências da pedagogia e cultura norte-americanas nas concepções reformistas e educacionais de Fernando de Azeve-
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
155
do. Afinal, uma vez que atrelado ao fazer e experimentar, o conhecimento escolar acabaria por reafirmar e introduzir na população ideais
de desempenho, individualismo, liberalismo. Por outros termos, devia
ao conhecimento escolar renovado o encarregar-se pela introjeção de
uma perspectiva pragmática nas necessidades, possibilidades e urgências sociais do período.
Fazendo uso de um outro tipo de documentação do IEB-USP – a
série “Manuscritos de discursos e conferências” – que, também, privilegiei para desenvolver a análise, remeto-me, agora a dois outros conjuntos de idéias de Azevedo que, espero, possam melhor apresentar a aludida interferência da pedagogia e cultura norte-americanas no seu
pensamento educacional. Desde já, cabe um esclarecimento: não foi
possível identificar em minhas pesquisas o local e data da primeira conferência. Todavia, embora ciente de que tais referências se constituam
como imprescindíveis para precisar o “momento intelectual” de Azevedo, quando de seu pronunciamento, creio que as impressões contidas na
citação que se segue sejam dignas de maiores reflexões.
Em sua “Oração da Mestra”, Gabriela Mistral, grande poetisa do Chile e
uma das maiores da América, Prêmio Nobel de Literatura, começou com essas
admiráveis palavras: “Senhor: Tu que ensinaste, perdoa que eu ensine e que
tenha o nome de mestre, que tiveste na terra. Dá-me o amor exclusivo de minha escola: que mesmo a ânsia de beleza não seja capaz de roubar-lhe a minha
ternura de todos os instantes. Mestre, faze perdurável em mim o entusiasmo e
passageiro o desencanto”. A oração é longa e vale a pena ser lida, relida e
meditada por todos os que aspiram a alta missão de educadores. Mas bastam
estas palavras, pelas quais a iniciou, para compreendermos e apreciarmos o
sentido profundo dessa missão. É sempre com esse espírito – o espírito que
elas contém, que penso quando falo a alunos e professores [Azevedo. “O mestre popular e seu papel”, MFA-DC, Cx. 1, 12 ARQFA/IEB-USP].
A única informação que consegui levantar, em termos de identificação desse documento, foi uma inscrição – anotada por Azevedo – na
parte superior do papel: “Colégio Adventista”. Nesse caminhar pode-se
considerar que, muito provavelmente, Azevedo tenha dirigido essas pa-
156
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
lavras para um grupo de professores e/ou alunos em um estabelecimento de ensino edificado/influenciado pelo movimento protestante
adventista. E, justamente por esse motivo, cautela devem ter aqueles
que, de uma maneira ou de outra, se dispõem a perscrutar as idéias do
documento. Já que não se pode perder de vista certa preocupação de
Azevedo em, talvez, adequar a sua fala de acordo com as características
do público/ambiente onde proferiria o seu discurso.
No entanto, em que se pesem as ressalvas, as considerações firmadas por Azevedo no discurso, em um contexto analítico mais abrangente, ultrapassam as possíveis preocupações advindas da oratória. Afinal,
como o educador sublinhava, a oração apresentada como introdução
para a sua fala valia “ser lida, relida e meditada por todos os que aspiram a alta missão de educadores”.
Conforme destaques de Azevedo, a responsável pela composição da
“Oração da Mestra” – Gabriela Mistral – era já uma pessoa amplamente
reconhecida e premiada por sua obra: “grande poetisa do Chile e uma
das maiores da América, Prêmio Nobel de Literatura”. Contudo, haveria mais. Não obstante os reconhecimentos e premiações, alguns outros
dados biográficos de Mistral adquirem uma importância singular dentro
da linha reflexiva privilegiada por este texto. Refiro-me, de início, ao
fato de ela ter sido professora rural durante, aproximadamente, 15 anos
e colaboradora em reformas educacionais no México. Os particulares
da vida de Mistral tornam ainda mais significativa a introdução da conferência de Azevedo. Afinal, não só as preocupações de ordens rítmicas,
simbólicas, metafóricas, lingüísticas e poéticas se estabeleceram como
uma constante em sua vida, mas também as inquietações relacionadas a
um aperfeiçoamento dos métodos e saberes escolares tomaram muitos
anos de sua existência.
Em seguida, ainda no tocante a alguns dados biográficos de Gabriela
Mistral, faz-se necessário que um outro aspecto seja frisado: o profundo
sentimento religioso evangélico que a acompanhou, como fonte de inspiração e referência para a sua poesia, até a sua morte em Hempstead
(localidade próxima à Nova Iorque/EUA) em 1957. Volta com intensidade, nesse ponto, as ressalvas feitas acerca das possíveis preocupações
e regras da oratória que, talvez, permeassem o pensamento de Azevedo,
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
157
quando da preparação do discurso. Como já se falou, tudo leva a crer
que o seu pronunciamento se daria em um colégio edificado/influenciado pelo movimento protestante adventista. Destarte, cabe insistir que
estabelecer, aqui, um nexo causal simples entre os dizeres do discurso
com o pensamento educacional de Azevedo – dando o primeiro como
prova cabal da total adesão do educador à pedagogia e cultura norteamericanas – constitui uma simplificação extremada, para não dizer grosseira.
Entretanto, e isso que me estimulou a trazer esse discurso para o
texto, acredito que os dados biográficos pontuais concernentes à Mistral
– especificamente o fato de ela ter sido, além de poetisa, uma educadora
e a sua forte crença evangélica – possam apontar alguns elementos dignos de relevância. Já que, segundo o próprio Azevedo, seria “sempre
com esse espírito – o espírito que elas [as palavras contidas na “Oração
da Mestra”] contém, que penso quando falo a alunos e professores”. No
lugar de uma prova cabal, denoto um caráter de mais alguns vestígios
das interferências da cultura e pedagogia norte-americanas no pensar e
fazer de Fernando de Azevedo.
Isso posto, passarei para um outro, e por hora último, documento do
Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP que utilizei para a
elaboração do texto. Diferentemente do acontecido com o anterior, desse discurso foi possível não só precisar a data, mas também, o local e
motivo de seu pronunciamento. Trata-se de uma conferência proferida
por Azevedo, em dezembro de 1960, no Mackenzie em razão dos comemorativos de 90 anos de fundação do instituto7.
Os mesmos cuidados analíticos, que precederam as considerações
tecidas acerca do documento anterior, devem ser evocados para que se
torne passível de compreensão os pontos iluminados por esse discurso
de Azevedo. Isso em razão de que, tanto o ambiente quanto o público/
7.
Vale esclarecer que trabalhei diretamente com os originais da conferência que,
ainda, não se encontram organizados e seriados no Arquivo Pessoal de Fernando
de Azevedo/IEB-USP, estando apenas acondicionados em uma Caixa-Arquivo com
a seguinte etiqueta: “Em processo de organização”. Todavia, essa conferência foi
publicada na íntegra em Azevedo (1960).
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participantes do evento acabariam, juntos, talvez, por interferir nas maneiras privilegiadas pelo educador de concatenar as impressões para a
sua explanação de idéias.
Nesse movimento, assim Azevedo iniciava a sua fala:
Quando, em 1870, a senhora George Chamberlain abriu em uma sala de
sua casa, em S. Paulo, pequena escola para crianças a que a intolerância
religiosa fechava as portas das escolas públicas, e seu marido, também norteamericano, a instalou num ponto central da cidade, já animado do impulso
que tomou a iniciativa, empreendiam ambos uma obra, cujas origens vinham
marcadas tanto pela pureza do desejo quanto pela incerteza dos resultados de
sua ação. Nenhum deles, nenhum dos dois que constituíam o lar dos
Chamberlain, imaginou, nas suas esperanças e inquietações, nem podia suspeitar que a pequenina escola, logo batizada com o nome de Escola Americana, viesse a transformar-se em modelo e fonte de inspiração de uma nova
política educacional, para ser, em menos de um século, o núcleo de uma
radiosa constelação de instituições escolares [Azevedo. “Uma interpretação
do Instituto Mackenzie”, p. 1, MFA-DC, Cx. “Em processo de organização”
ARQFA/IEB-USP].
Discorrendo acerca de pontos condizentes às circunstâncias que estiveram envolvidas no momento da fundação do Mackenzie, Azevedo
nessa passagem já sublinhava alguns elementos que se constituíram, no
transcurso de sua conferência, como a linha central de sua leitura e interpretação da história do instituto. Objetivando pontuar as contribuições e inovações que o colégio americano trouxe ao sistema educacional brasileiro, o educador afirmava que o colégio acabou por
“transformar-se em modelo e fonte de inspiração de uma nova política
educacional, para ser, em menos de um século, o núcleo de uma radiosa
constelação de instituições escolares”.
Mais alguns parágrafos bastaram para que Azevedo explicitasse as
pinceladas e combinações de cores privilegiadas para apresentar o seu
quadro de interpretações da trajetória do Mackenzie em terras brasileiras. Por meio de um incessante jogo de luzes e sombras – as primeiras
dispostas no sentido de realçar momentos e as segundas colocadas de
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
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maneira a tornar coerente a sua fala – o educador, a contar dos últimos
anos do século XIX, voltava a insistir na grande contribuição prestada
pelo instituto (no período denominado Escola Americana), no tocante a
um sopro de renovação dos métodos e saberes das escolas primárias
brasileiras. De acordo com os seus dizeres:
[...] as bases da educação primária [...], por mais de trinta anos, gravitou [...]
à volta da Escola Americana e de seus ideais. Foi uma atmosfera de vibração,
de entusiasmo e de fé, a que se criou na última década do século XIX, e tão
vigoroso o impulso inicial dado pelos criadores do sistema que em 1920,
quando irrompeu um novo movimento de renovação educacional, ainda ressoavam os ecos dessas influências e a educação primária, já em decadência,
ainda palpitava das últimas vibrações do movimento renovador, que se desencadeara, com o advento da República, e então já se distanciava de nós, de
mais de um quarto de século [idem, p. 2, ARQFA].
Dando prosseguimento à sua articulação de idéias, Azevedo acabou, dessa vez, por melhor precisar algumas das especificidades dos
métodos e maneiras de trabalhar-se o conhecimento privilegiados pelo
Mackenzie. Vale dizer que se deva, acredito, conferir destaque especial
às considerações que se seguem, uma vez que nas suas entrelinhas podese perceber algumas das concepções educativas entendidas, por Azevedo, como fundamentais para a articulação de um sistema educacional:
Mas todo esse sucesso e prestígio crescente da instituição que foi sendo
pacientemente construída e em cujo desenvolvimento não se encontra ruptura de continuidade, tem sua origem e por causa principal a novidade da mensagem e a eficácia dos métodos que trouxeram seus fundadores. Entre essas
idéias e técnicas importadas e as que orientavam a nossa precária organização escolar, o contraste era vivo demais para não ser percebido de todos. Elas
provocaram um choque em nosso mundo pedagógico por implicarem uma
ruptura com a tradição escolar do país. Onde imperava a intolerância religiosa, ergueu-se o princípio de liberdade de consciência: as escolas estariam
abertas a todos sem discriminação de crenças e de culto. Em lugar da separação de meninos e meninas por classes, quando não por escolas diferentes, o
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que se procurou estabelecer, foi o regime de co-educação. Métodos que faziam mais apelo à inteligência do que à memória tomavam o lugar às práticas
habituais do estudo em voz alta e da decoração que convidavam ao sono nas
escolas. Em oposição ao dogmatismo reinante, ao espírito de rotina e à cristalização de processos, instalados nas escolas públicas, passaram à ordem do
dia a busca, a análise e a experimentação de novas técnicas de ensino. Em
vez de uma organização rígida baseada na autoridade e na disciplina, uma
organização fundada no princípio de liberdade, de compreensão mútua e de
colaboração [idem, p. 5, ARQFA].
Ensino laico, regime de co-educação, métodos e saberes escolares
pautados na valorização da experimentação em detrimento à
memorização, no lugar da rigidez “baseada na disciplina e na autoridade” a organização escolar devia balizar-se em “princípios de liberdade,
de compreensão mútua e de colaboração”, enfim o tradicional e ultrapassado ensino bacharelesco substituído pelo ensino renovado e moderno.
Aqui estão resumidas, no olhar de Azevedo, as inovações implementadas
pelo Instituto Mackenzie ao sistema educacional primário brasileiro. E
como se nota, pode-se perceber nos aspectos destacados pelo educador,
também, muitos dos princípios do movimento escolanovista.
Tais considerações tornam-se mais relevantes se levar-se em conta
aquilo que, por enquanto, não foi explicitado. Afinal, até esse momento
do discurso, Azevedo não havia operado o entrelaçamento das inovações introduzidas pelo Mackenzie – aspectos pedagógicos – com as características do modo de vida dos Estados Unidos – aspectos sociais e
culturais. De tal modo que uma indagação surge, aqui, com grande intensidade: poder-se-ia entender as impressões favoráveis que Azevedo
teceu, acerca das inovações nos métodos e saberes escolares empreendidos pelo Mackenzie, como indícios das interferências existentes da pedagogia e cultura norte-americanas em seu pensamento educacional? Para
responder tal indagação, remeto-me, outra vez, ao discurso de Azevedo:
Quando, pois, os republicanos de S. Paulo [...] bateram às portas da primeira escola de vosso Instituto, sabiam muito bem o que estavam fazendo: à
mudança de regime devia seguir-se uma nova política de educação, e era
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
aqui certamente que tinham de inspirar-se para darem forma e vida à educação popular, ajustando-a às idéias e técnicas pedagógicas mais consentâneas
com as idéias e instituições democráticas.
Essas idéias que correspondiam ao tipo de vida e de educação na América,
vinham marcadas do espírito protestante no que tem de essencial, e um de
cujos traços característicos é um sentimento muito vivo da liberdade, – livre
exame, liberdade de consciência, de crítica e discussão. Se a esse traço fundamental se acrescentar o individualismo que lhe está intimamente ligado (e
o protestantismo representa a concepção individualista do cristianismo), poder-se-á compreender melhor a força com que esses princípios lhes penetraram suas concepções políticas e educacionais, dando-lhes o tom, o estilo e a
direção que lhe são peculiares. Daí, a tendência de sua pedagogia, imbuída
do espírito experimental, atenta aos indivíduos e às suas diferenças e sempre
em busca, através de tentativas, malogros e sucessos, de técnicas novas para
ajustar a educação às necessidades e aptidões individuais. O segundo traço
do protestantismo é, ao mesmo tempo, um gosto muito marcado da ordem,
da força e da hierarquia, mas uma ordem que não se mantém senão com uma
moral solidamente estabelecida. [...] Atentai para o terceiro traço, donde vem
o seu realismo e senso prático, e que é a superação [...] do dualismo de pensamento e ação, e tereis uma outra tendência de sua concepção de vida e de
educação, em que teoria e prática, o fazer e o pensar “se complementam, se
inspiram e mutuamente se enriquecem”, impelindo-os a passar da prática à
teoria e, mais rapidamente, do pensamento à ação. Daí, o seu gosto acentuado das experiências, com que se põem à prova as teorias, e o caráter de seu
ensino, utilitário, prático, positivo.
Foi por protestantes que esta grande instituição se fundou, mas não foi
somente ou sobretudo a alunos protestantes que ela se destinou e procurou
servir, desde suas origens já distantes. Aberta a todos, sem distinção, ela
constitui uma das malhas mais firmes dessa vasta rede de instituições escolares com que os protestantes vêm trazendo notável contribuição ao desenvolvimento da educação nacional. [...]
Não se afastou muito de suas fontes primitivas o sistema de idéias que
resultou do movimento renovador, iniciado nos Estados Unidos por William
James, Parker, Stanley Hall e que teve em John Dewey, filósofo da educação,
a sua figura dominante. Longe de ter estabelecido, na América, uma ruptura
161
162
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com o passado, esse movimento, favorecido e fecundado pelo progresso das
ciências, retomou algumas das idéias principais da pedagogia protestante,
deu-lhes fundamentos mais sólidos e mais alto grau de precisão, no seu conjunto teórico e em seus detalhes [idem, pp. 5-7, ARQFA].
A longa citação descortina alguns elementos que contribuem para
que se possa chegar até uma resposta à pergunta firmada. Na avaliação
realizada por Azevedo o espírito protestante com seus ideais de liberdade, individualismo, pragmatismo pedagógico, o pensar atrelado ao fazer e ao experimentar deixara marcas tanto no tipo de vida quanto na
educação americana. E, fora, justamente, a retomada do espírito da pedagogia protestante, bem como a fundamentação mais sólida e precisa
do “conjunto teórico em seus detalhes” que funcionara como balizas
para a consubstanciação do movimento de renovação educacional que,
ainda segundo Azevedo, encontrara em “John Dewey, filósofo da educação, a sua figura dominante”.
Os trabalhos e estudos desenvolvidos por Dewey constituíram-se
como constantes referências teóricas no discurso dos escolanovistas a
partir, principalmente, de meados da década de 1920. As influências do
filósofo da educação norte-americana nos pensamentos educacionais
de Anísio Teixeira e Lourenço Filho – integrantes da “vanguarda educacional” – já foram, espero, indiciadas. Resta, então, buscar vestígios da
aludida influência no pensamento de Fernando de Azevedo.
Nesse sentido, o discurso em comemoração aos noventa anos de
fundação do Mackenzie torna-se significativo. Mas não só ele. As seguintes reflexões do educador, tecidas nos capítulos dedicados à educação nacional da obra A cultura brasileira (Azevedo, 1964, 4. ed.), acrescentam alguns outros vestígios que contribuem para uma melhor
compreensão dessa questão. Comentando acerca das diretrizes da Reforma da Instrução/RJ (1927-1930), Azevedo assim destacava:
O que, por essa reforma, baseada numa concepção democrática da existência e no respeito da pessoa humana, se pretendeu alcançar, na capital do país,
era aquela “educação universal” a que se refere J. Dewey e que põe ao alcance
de todos as suas vantagens e satisfaz à imensa variedade das exigências sociais
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
163
e das necessidades e aptidões individuais, ou, para empregar as suas palavras,
“o panorama de uma vida mais ampla e rica para o homem, em geral, uma vida
de maior liberdade e de iguais oportunidades para todos, a fim de que cada um
possa desenvolver-se e alcançar tudo o que possa chegar a ser” [idem, p. 657].
Pela leitura, nota-se que o pensamento educacional de Azevedo sofrera as interferências do pragmatismo pedagógico de Dewey. Como o
educador sublinha, a reforma da instrução/RJ teve como meta a ser
alcançada um dos conceitos elaborados pelo filósofo norte-americano,
qual seja: “a educação universal”.
O reconhecimento, por parte de Azevedo, do diálogo estabelecido
com Dewey para a elaboração da Reforma da Instrução assume uma
maior importância, se se buscar um esquadrinhamento da maneira particular que redigira, nessa obra, suas impressões acerca da educação brasileira. A partir de um olhar panorâmico retrospectivo, Azevedo parecia,
a todo o momento, preocupado em apontar as falhas, incoerências e
tradicionalismos que caracterizavam o sistema educacional brasileiro
desde a proclamação da República. Velho e novo, tradicional e moderno, espírito literário/livresco e motivação científica, por fim, escola bacharelesca e escola nova. Foram esses os pares de oposição empregados
por Azevedo objetivando realçar o ideário escolanovista. E, mais precisamente, o movimento de reformas educacionais de finais da década de
1920. Sendo que o destaque especial, dentro do movimento, devia ser
conferido “pelas formidáveis forças morais que mobilizou, pelo movimento de idéias e de opinião que desencadeou, pela rapidez com que se
difundiu e, pela extensão do campo que abrangeu”, à reforma do ensino
do Distrito Federal (1927-1930) (idem, p. 648).
Em função dessa possível leitura dos capítulos dedicados à educação brasileira do livro de Azevedo (Carvalho, 1989; 1998), pode-se interpretar o reconhecimento da importância dos trabalhos de Dewey em
suas concepções reformadoras a partir de um enfoque principal. De posse
dos indícios que puderam ser levantados do conjunto de correspondências, do artigo de jornal, dos manuscritos de discursos e conferências e
das fontes secundárias, tal enfoque se relaciona às interferências da pedagogia e cultura norte-americanas no movimento escolanovista; e, mais
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precisamente, no pensamento desse educador Fernando de Azevedo que
se enxergava enquanto componente da “vanguarda de reformadores
educacionais” do país.
Isso porque mesmo construindo uma argumentação de maneira que
destacasse a importância do escolanovismo e o papel que coube à Reforma da Instrução de 1927-1930 dentro desse movimento, Azevedo
acabou se referindo, por mais de uma vez, aos trabalhos do filósofo
norte-americano. Vestígios de que por mais, por assim dizer, “tendenciosa e parcial” que objetivasse ser sua narrativa, certos créditos não puderam deixar de ser prestados às contribuições de outros pensadores
educacionais, como foi o caso de John Dewey.
Dessa perspectiva, mais algumas questões podem ser perscrutadas
nas seguintes colocações de Azevedo, pontuadas, também, n’A cultura
brasileira. Externando suas impressões concernentes às influências da
pedagogia norte-americana no momento educacional brasileiro de finais
dos anos de 1920 e início dos de 1930, Azevedo assim se expressava:
No Rio de Janeiro, Anísio Teixeira, chegado ainda recentemente da América
do Norte e, em São Paulo, o autor desta obra procuravam, em grandes planos
de reformas, orgânicas e robustas, injetar na realidade tudo o que, naquele
momento, já pudesse suportar de sua doutrina e de seus princípios. Foi pela
ação vigorosa de Anísio Teixeira que se acentuaram, na política escolar do
Distrito Federal, as influências das idéias e técnicas pedagógicas norte-americanas, já enunciadas na reforma de 1928 [...] [Azevedo, 1964, 4. ed., p. 673].
Se, na passagem, mais uma vez, Azevedo ressaltava que “as influências das idéias e técnicas pedagógicas norte-americanas” já se encontravam enunciadas na Reforma da Instrução que promovera no, então, Distrito Federal, a “nota de rodapé” elaborada para complementar esses
comentários seria, ainda mais, esclarecedora. Assim, dada a relevância
das idéias para uma maior apreciação de aspectos do pensamento de
Azevedo, opto por reproduzi-la na íntegra:
As influências do pragmatismo e das idéias norte-americanas sobre a corrente mais avançada do pensamento educacional foram tão preponderantes
vestígios das influências da cultura e pedagogia norte-americanas...
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que a muitos pareceu a “educação nova” um caso especificamente americano ou um produto da civilização que se vem formando nos Estados Unidos.
Entretanto, como pondera P. Fauconnet, “não seria acertado fazer-se da educação nova um caso puramente americano, nem mesmo anglo-saxônico, visto que a Alemanha se coloca à testa da lista (refere-se o autor citado à 2ª
Conferência de Locarno) e a Suíça românica oferece à Liga (Liga Internacional de Educação Nova) alguns de seus chefes. Porque concordam com essa
pedagogia revolucionária países de civilização e de cultura tão diferentes,
como a Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos, ao passo que outros
países como a França, mais parecem ser-lhe refratários? Procurarão eles, no
fundo e pela mesma razão, a mesma coisa? Seria esse um belo motivo de
pesquisa para sociólogos competentes. Em todo o caso, não se poderá ver na
educação nova a manifestação exclusiva de um temperamento nacional. A
influência dos Estados Unidos é incontestável não somente porque abundam
em experiências e planos; é preciso não esquecer todavia que o pensamento
poderoso de J. Dewey foi uma das fontes do movimento. Será então forçoso
dizer-se que o mundo tende a americanizar-se? Vai nisso alguma verdade. Na
França encontrar-se-ão facilmente adversários da educação nova, os quais
suporão legítimas as suas resistências, defendendo a tradicional cultura latina contra o pragmatismo juvenil dos americanos. Resta explicar porque países de velha cultura original, como a Inglaterra e a Alemanha, são seduzidos
pelo americanismo. O bom êxito das idéias novas não depende apenas, penso eu, da hegemonia dos Estados Unidos no mundo: há outras razões mais
profundas, mais humanas; não é uma moda apenas” [Venâncio Filho, Francisco, 1941 apud Azevedo, 1964, 4. ed., p. 673, nota de rodapé n. 19].
Segundo Azevedo, foram tantas as interferências do pragmatismo
pedagógico e da cultura norte-americanas nas tentativas de reestruturação
dos métodos e saberes escolares pautadas no ideário escolanovista que “a
muitos pareceu a ‘educação nova’ um caso especificamente americano ou
um produto da civilização que se vem formando nos Estados Unidos”.
Uma conjunção coordenativa adversativa (“Entretanto”) marcou no texto
o início de seu diálogo com P. Fauconnet. Justificava-se o seu emprego.
Afinal, para Fauconnet, “não seria acertado fazer-se da educação nova
um caso puramente americano”, uma vez que não se podia desconsiderar
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as grandes contribuições que países como a Alemanha, Suíça e Inglaterra
deram para os debates acerca do movimento de renovação escolar.
Todavia, ainda que destacando a participação de educadores alemães, suíços e ingleses, era o próprio Fauconnet que algumas linhas
adiante afirmava que “A influência dos Estados Unidos [no movimento
pela educação nova] é incontestável não somente porque abundam em
experiências e planos; é preciso não esquecer todavia que o pensamento
poderoso de J. Dewey foi uma das fontes do movimento”. Para, em
seguida se perguntar: “Será então forçoso dizer-se que o mundo tende a
americanizar-se?”. E fechar as suas idéias com a seguinte resposta: “Vai
nisso alguma verdade”.
Logo, nota-se que ao se remeter às impressões de Fauconnet, acerca
das interferências norte-americanas nas concepções escolanovistas, Azevedo nada mais fez do que não reafirmar que elas se constituíam como
uma constante. Haja visto que, embora destacando a colaboração de
outros países no movimento de renovação escolar, Fauconnet em momento algum contestava a liderança desenvolvida pelos Estados Unidos. Mais ainda. Chegava, até mesmo, à conclusão de que, em certo
sentido, “o mundo tende[ria] a americanizar-se”.
Em que se teçam as considerações, penso que o percurso trilhado
até o momento tenha servido para apontar para as possíveis influências
da cultura e pedagogia norte-americanas no pensamento educacional de
Fernando de Azevedo a partir das fontes selecionadas. Inserido que estava, de um lado, no movimento de renovação escolar e, de outro, conferindo à sua atuação político e administrativa, junto a alguns outros
educadores (como Lourenço Filho e Anísio Teixeira) a conotação de
“vanguarda reformadora”, Azevedo não tinha como não se deixar influenciar por esse momento em que o país sofria interferências, em termos de cultura e pedagogia, dos Estados Unidos. Uma realidade já fortemente prenunciada a partir, principalmente de meados da década de
1870 – período em que se assiste à instalação de escolas de confissão
protestante no Brasil –, que deixaria as suas marcas por todo o restante
do século XIX e primeiras décadas do XX (Hilsdorf [Barbanti], 1977).
Nesse quadro, como Azevedo atesta em seu discurso em homenagem aos 90 anos de fundação do Instituto Mackenzie, o sopro de reno-
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vação que eclodira em meados da década de 1920 e que teve em John
Dewey um dos seus principais teóricos “Longe de ter estabelecido [...]
uma ruptura com o passado [...] retomou algumas das idéias principais
da pedagogia protestante, deu-lhes fundamentos mais sólidos e mais
alto grau de precisão, no seu conjunto teórico e em seus detalhes”.
Sendo assim, pode-se pontuar, à guisa de conclusão, que ao
entrecruzar uma documentação, ainda pouco trabalhada – a correspondência de Azevedo e Lourenço Filho e o discurso pronunciado pelo educador no Mackenzie –, ou mesmo inédita – no caso da conferência realizada no Colégio Adventista –, com fontes que já foram analisadas por
outros pesquisadores, o que pretendia era fornecer novas pistas para
aqueles que se interessam pela vida e obra do educador Fernando de
Azevedo. Longe de se constituírem como uma pintura acabada, espero
que minhas análises e reflexões tenham servido para, quem sabe, destacar mais alguns aspectos do complexo mosaico de discursos e de representações que acompanhou o desenrolar do movimento escolanovista
em terras brasileiras. Todavia – como já dei a entender quando das considerações acerca dos discursos –, o trabalho com essa documentação
deve ser precedido de alguns cuidados, por parte daqueles que se dispõem a analisá-la. O próximo tópico procurará versar, justamente, sobre os cuidados analíticos que tive ao lidar com a documentação constante ao Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP.
2. As cartas e manuscritos de discursos e
conferências de Fernando de Azevedo como
documentos históricos: uma crítica necessária8
A historiografia inevitavelmente ingressada em sua era
epistemológica, fecha definitivamente a era da identidade, a
memória é inelutavelmente tragada pela história, não existe mais
um homem-memória, em si mesmo, mas um lugar de memória.
(PIERRE NORA)
8.
Devo destacar que para a elaboração deste tópico apropriei-me de muitas das questões discutidas por Diana Gonçalves Vidal em seu artigo (Vidal, 2001).
168
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Enfocar aspectos do pensamento educacional de Fernando de Azevedo tendo como objetos de investigação, também, parte de sua correspondência pessoal e os seus manuscritos de discursos e conferências
obriga-me, de certo modo, a explicitar as maneiras privilegiadas de entrada a essa documentação. Afinal, como destaca Jacques Le Goff,
O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o
produzira, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a
viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda
que pelo silêncio [Le Goff, 1992, p. 547].
Voltando à epígrafe do tópico, quando das afirmativas de Nora de
que a “historiografia inevitavelmente ingressada em sua era epistemológica, fecha definitivamente a era da identidade, a memória é inelutavelmente tragada pela história”, pode-se pontuar que a história ao entrar
na sua era historiográfica distanciou-se da memória, e passou a questionar, inclusive, os documentos; uma vez que esses perderam as suas características inerentes de prova para se constituírem, e aí sim dotados de
algum valor analítico, como monumentos. Para que o distanciamento se
tornasse possível, fez-se necessário uma reflexão do papel que era designado aos documentos pelos historiadores. Nesse período de contínuos debates e reflexões concernentes aos “documentos históricos”,
paulatinamente, foi ganhando força a idéia de que, no lugar de “depositários” de uma pretensa memória, deviam aqueles que se dispõem a
interrogá-los, empreender-lhe um sentido de instrumentos de mediação
necessários para a construção e trabalho historiográfico.
Dessa forma, os historiadores passavam a delegar um certo estatuto
de “subjetividade” aos seus objetos de trabalho (os documentos). O pretendido era uma desconstrução das, chamadas, “fontes históricas”. Se,
antes, as atenções dos profissionais da história, em relação aos documentos, residiam num esforço para comprovar-se a “autenticidade das
fontes”, e uma vez que provada a origem, data, assinaturas etc., encaravam as informações constantes às fontes enquanto “valores absolutos”,
agora, para além dessas preocupações de ordem descritiva e cronológi-
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169
ca, deveriam, também, os historiadores concentrar-se nos, assim chamados, procedimentos de exclusão que se fazem presentes a toda e qualquer produção discursiva.
Nesse sentido, tornava-se necessária a busca de um discernimento
entre a forma visível daquilo que se pretendeu perpassar e a forma
enunciável estabelecida em função de cada momento histórico. Sendo
que esse “momento histórico”, no qual as práticas discursivas estão
inseridas, devia ser encarado como um conjunto de domínios que interferiu no campo de formulação dos discursos, bem como no campo em
que esses, os discursos, adquiriram as suas significações. Como conseqüência, em conclusão, caberia aos historiadores procurar atentar para
as nuanças relacionais (intencionalidades, circunstâncias, relações de
poder, objetivos etc.) que se faziam presentes no momento em que os
registros foram produzidos (Foucault, 1996, p. 9).
E é, precisamente, esse o quadro analítico que se deva, acredito,
evocar para melhor precisar as considerações que extraí das cartas e dos
discursos salvaguardados no Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/
IEB-USP. Afinal, segundo reminiscências do educador:
As cartas que escrevi, a tantos e tantos [...] dispersaram-se e estão de posse
de seus destinatários ou de suas famílias [...]. [Dentre as cartas] que recebi,
as que guardei zelosamente por sua proveniência, pelas questões de que tratavam e pelo zelo que revelavam de seus autores, de mim mesmo, ou dos
acontecimentos [...] já estão em lugar seguro, – e no mais adequado, que é o
Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo. [...] Foi um
querido amigo meu, Antônio Cândido, quem sugeriu a idéia de doação de
meus arquivos àquela instituição [...]. E para esse instituto foram, além de
muitas centenas de cartas, selecionadas entre as milhares que recebi [...] Mas
é tal a minha correspondência que, pouco mais de dois meses depois da entrega oficial de todo esse material epistolar e documentário [1970], já encaminhava para esse instituto dezenas de cartas a mais, escolhidas entre mais
de cem recebidas naquele período [Azevedo, 1971, pp. 231-232].
Como pode ser notado, Azevedo reconhece que empreendera um
processo de seleção às suas cartas antes da doação de seus arquivos ao
170
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IEB-USP. Caberia, aqui, indagar quais foram os interesses que fizeram
com que, pela perspectiva de seu crivo, determinados vestígios, e não
outros, recebessem o aval de “fatos históricos”.
Deve-se frisar que na maioria dos documentos que se refere à pessoa de Fernando de Azevedo e, mais explicitamente, no seu livro de
reminiscências, verifica-se um entrecruzamento de imagens que se
interpenetram compondo representações9. Tais representações enunciam
uma pretensa tentativa instituinte, por parte de Azevedo, de “guardar”
para a prosperidade um conjunto de lembranças comuns, de modo que a
leitura dessas se relacionem com uma identidade que ele pretendia construir de si mesmo10.
No tocante à seleção que Azevedo empregou à sua correspondência
passiva, ao buscar-se uma crítica histórica das mesmas, faz-se necessária uma análise em um nível diferente em relação, por exemplo, às reminiscências registradas em seu livro História de minha vida (Azevedo,
1971). Embora ambos domínios de memória apontem para uma tentativa de construir e confirmar uma “história”, as cartas caracterizam-se
pela reprodução de uma “voz interlocutora”. Mesmo que se considere
que, de fato, Azevedo tenha retirado do conjunto de documentos doados
aqueles que “desfaziam” a imagem que o mesmo procurou construir de
si, a “voz” que ecoa até os pesquisadores não é a do próprio, mas sim a
de terceiros (remetentes).
Já no que concerne à correspondência ativa, apesar de a “voz” registrada nas cópias/rascunhos das cartas escritas por Azevedo caracterizarse pela sua onipresença, deve-se relevar a intenção, por parte do doador,
9.
De julho de 1997 a dezembro de 2000 desenvolvi, de um lado, trabalhos de organização, higienização e seriação junto à documentação do Arquivo Pessoal de
Fernando de Azevedo/IEB-USP. E, de outro, pude dedicar-me à pesquisa “A Linguagem Jornalística e a Reforma Fernando de Azevedo”, em nível de iniciação
científica (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP).
Sendo assim, destaco que tive um contato direto com grande parte dessa massa
documental referente à vida e obra do educador.
10. Essa tentativa instituinte, espero ter demonstrado, também fica indiciada no capítulo que Azevedo dedica à educação nacional em seu livro A cultura brasileira.
Pois, a todo momento, o educador interessa-se em destacar e enaltecer a importância da Reforma da Instrução Pública (1927-1930) no movimento de renovação dos
métodos e saberes escolares do país.
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171
tanto no momento da escrita como no da conservação dos documentos.
Assim, torna-se imprescindível interrogar o porquê de as cartas estarem
disponíveis aos pesquisadores.
Dessa perspectiva, buscar a compreensão de um determinado período histórico fazendo-se uso, também, das lembranças dos participantes
ou pessoas contemporâneas – via correspondências, livros autobiográficos, entrevistas, conferências etc. – significa não perder de vista o caráter da subjetividade do discurso registrado por essas impressões. É a
partir do imbricamento dessa memória individual com outras várias perspectivas sobre a época que o historiador apreende elementos para a sua
reflexão (Bernardi, 1993).
É preciso observar que, nas reminiscências, o tempo da memória é social,
não se resumindo em datas, mas nas correntes de pensamento coletivas, através das quais ocorre o reencontro com o passado, refazendo-se, deste modo,
as lembranças [idem, p. 64].
Ainda no que se refere à utilização da correspondência pessoal enquanto suporte documental para o desenvolvimento de uma análise histórica, penso que seja interessante fazer coro com as seguintes considerações de Luiz. F. B. Neves:
A carta constitui uma ambivalência; é a exterioridade de uma interioridade.
E ainda: é a exibição de uma invisibilidade. Materializa uma gama muito variada e ampla de sentimentos e pensamentos. É a carta, uma forma de tornar
público o privado, de lançar, na sociedade o indivíduo [Neves, 1988, p. 191].
Sendo assim – tendo em vista as possíveis interferências do ambiente, circunstância e público/participantes na forma escolhida por Azevedo para expor as suas idéias nos originais de discursos elaborados para
serem proferidos no “Colégio Adventista” e no “Instituto Mackenzie” –
, pareceu-me correto pontuar uma certa cautela no trato com as informações advindas dos dois documentos. Não menos, parece-me ser preciso
destacar a presença também nas cartas de um conjunto de circunstâncias,
regras/rituais de escrita e acordos tácitos de sociabilidade que, possivel-
172
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mente, ocasionou interferências nas maneiras de os missivistas articularem suas idéias, relatos e impressões. Como alerta Paul Thompson:
[...] os historiadores [deveriam parar] para pensar até que ponto determinada
carta foi formulada, por quem a escreveu, para atender às expectativas de seu
imaginado destinatário, fosse este um inimigo político ou um amigo político,
ou um amante, ou, talvez, até mesmo, o fiscal do imposto de renda [Thompson,
1992, p. 142].
Tais considerações sugerem que uma dupla perspectiva analítica deve
ser empreendida para aquilo que foi/está registrado na série de missivas
trocada entre os educadores. A primeira delas reside na tentativa de se
enquadrar a correspondência entre amigos a partir de um olhar que tenha
como foco de atenção as preocupações que, talvez, estiveram presentes,
por parte do remetente, no momento da escrita. Elogios, impressões favoráveis, consonância de ideais adquirem, dessa forma, significados
outros que não somente os registrados nas cartas.
A segunda perspectiva analítica a ser privilegiada no trato com as
missivas consiste nas diversas apropriações que poderiam ser feitas das
idéias firmadas, por parte do destinatário, uma vez recebidas as cartas.
Um bom exemplo das diversificadas apropriações do escrito é a passagem transcrita como epígrafe para este artigo. Aquilo que, originalmente, Frota Pessoa endereçara a Lourenço Filho, indo parar nas mãos de
um terceiro: Fernando de Azevedo.
As considerações tecidas – acerca da seleção que Azevedo imprimira
à sua documentação no momento da doação dos seus arquivos, dos particulares de um educador que foi, ao mesmo tempo, ator e produtor de sua
história dos constrangimentos e adequações que, possivelmente, interferiram na elaboração dos dois discursos utilizados e, por fim, das duas
perspectivas que se constituem como imprescindíveis em uma análise
histórica que tenha como suporte documental, também, a correspondência pessoal – propiciam as condições para que se possa rumar para uma
conclusão. Uma vez que indícios de relacionamentos, circunstâncias e
momentos acontecidos, será no entrelaçamento das informações advindas desses objetos – documentação pessoal do arquivo, discursos e cor-
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173
respondência – com outras fontes e pesquisas sobre o período que estarão
estabelecidas as condições para que o trabalho do historiador possa ser
construído. E foi, justamente, na tentativa de estabelecer esse entrelaçamento que empreendi os meus esforços para o desenvolvimento desta
reflexão. Como resultado? Uma leitura realizada tendo como base, também, parte do Arquivo Pessoal de Fernando de Azevedo/IEB-USP. Como
encerramento? Um estímulo para que novas e diferentes leituras possam
ser produzidas a partir dessa documentação do educador.
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Recebimento: 15 de set. de 2004
Aprovado: 13 de abr. de 2005
Modificado: 5 de maio de 2005
A difusão da escola e a
afirmação da sociedade burguesa
António Gomes Ferreira*
A escola deve ser entendida como uma instituição que serve um tempo determinado e que
se configura em função das características dum determinado tempo. A sua emergência e
difusão resultaram fundamentalmente da relação das elites com a tecnologia, vendo esta
tanto como instrumento produtor quanto como capacidade de controlar riqueza e poder.
Na generalidade da Europa medieval as escolas estavam nas mãos dos clérigos e localizavam-se em mosteiros, catedrais e em igrejas paroquiais. Mas desde os séculos XIIXIII vemos avançar a criação de escolas laicas nas principais cidades europeias que
possuíam uma burguesia importante.
Por razões que se cruzam com interesses religiosos, económicos e nacionalistas, as regiões protestantes da Europa apresentam uma instrução popular mais generalizada que
as regiões católicas. Em geral, os povos setentrionais avançaram mais cedo e com mais
convicção para a educação popular e mostraram-se mais capazes de atender às necessidades educativas motivadas pelo progresso científico e tecnológico.
No entanto, essa não era sequer uma realidade que se visse generalizada nos países
europeus nos fins do século XIX e inícios do seguinte. Embora a imposição da escolaridade obrigatória se tivesse expandido de norte a sul da Europa, esta não se cumpriu de
igual modo em todos os países. Mas mesmo quando o esforço da escolarização esteve
mais em conformidade com o ideário transnacional que promoveu a imposição da escolaridade obrigatória isso nunca significou uma convicção igualitária.
ESCOLARIZAÇÃO; SOCIEDADE BURGUESA; EDUCAÇÃO POPULAR; IGREJA
CATÓLICA; EDUCAÇÃO
School must be understood as an institution that serves a particular time and that configures itself in function of the characteristics of a certain time. Its emergence and diffusion
resulted essentially from the relationship of the elites with technology, seeing the latter
both as a productive instrument and as a mean to control richness and power.
In most of medieval Europe schools were in the hands of clergy and were located in
monasteries, cathedrals, and parochial churches. But since XII-XIII centuries one sees
the implementation of non-church related schools in main European cities which held
an important bourgeoisie.
*
Professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e investigador do
Centro de Psicopedagogia da Universidade de Coimbra.
178
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
For reasons that mix with religious, economic, and political interests, protestant regions
of Europe show a popular instruction more broadly generalized that the one found in
catholic regions. In general, Setrentional people advanced earlier and with more
conviction towards popular education and showed a higher capacity to attend to
educational needs drived from scientific and technological progress.
Nevertheless, this was not though a reality that could be seen generalized over the
European countries in the end of XIX century and begging of the XX. Although the
imposition of compulsory education had expanded from the north to the south of Europe,
it did not happen in the same way in all of the countries. Even when the efforts of
scholarization was more in conformity with the transnational ideary that promoted the
imposition of compulsory education it never meant an egalitarian conviction.
SCHOLARIZATION; SOCIETY BOURGEOIS; POPULAR EDUCATION; CATHOLIC
CHURCHES; EDUCATION
No início do século XXI, continuamos a ouvir falar da escola como
entidade mítica, em que todo o futuro civilizacional repousa. Em grande
parte, isso resulta dum discurso político que incorporou a ideia de modernização a partir do pensamento racionalista e positivista que se desenvolveu sobretudo nos últimos séculos. A escola apareceu como a
instituição que podia abrir as portas do conhecimento e, como tal, colocava as pessoas e os países no caminho do progresso. A acentuação na
importância da escola, que se traduziu, por exemplo, na determinação
da escolaridade obrigatória, favoreceu um discurso tão especialmente
favorável à generalização da escola, associando-a à promoção pessoal e
ao desenvolvimento da qualidade de vida, que de algum modo o despojou dum rigor analítico capaz de melhor explicitar o sentido e o grau de
pertinência da causa advogada. Daí que se fale tantas vezes de escola
em abstracto mesmo que sobre preocupações concretas. Hoje, como
ontem, a retórica sobre a escola é, quase sempre, bastante generosa para
com o alcance educativo da referida instituição. O pensamento pedagógico, repartido em tendências de cariz mais ou menos conservadoras ou
progressistas, praticamente não encara a ausência da escola no desenvolvimento dum sistema educativo actual. Se algumas vozes têm causado incómodo ao saírem fora desse alinhamento, as suas propostas não
têm sido consideradas viáveis, sendo, quando muito, compendiadas para
estudos mais ou menos diletantes e inconsequentes.
A escola apresenta-se, hoje, como uma instituição tão fundamental
que, por um lado, deve existir em todo o lugar em que existam jovens e,
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
179
por outro, não é suposto que deixe de existir. A sua omnipresença e a sua
imanência no imaginário educacional contemporâneo confere-lhe o estatuto de instituição chave da educação das crianças e adolescentes, servindo, por isso, de qualificativo a um período da vida, designado por
idade escolar. Na verdade, a escola assumiu na contemporaneidade uma
importância muito grande enquanto instância de iniciação intelectual
adequada a uma modernidade florescente mas também como instituição socializadora, promovendo uma formação global tendente a inculcar valores e comportamentos convenientes a uma cultura dominante.
A generalização da compreensão da relevância social da escola devese em boa parte à aceitação da sua especial eficácia para o desenvolvimento de uma ordem cultural mais consentânea com a modernidade.
Ela mostrou-se mais adequada que qualquer outra instituição às exigências de formação requeridas por uma sociedade cada vez mais marcada
por uma dinâmica económica capitalista e/ou por uma burocracia administrativa cada vez mais controladora e sofisticada; ela revelou-se especialmente interessante às configurações político-ideológicas empenhadas em difundir e consolidar uma ideologia que promovesse a coesão
entre indivíduos provenientes de grupos sociais e culturais diversos e
com interesses díspares, estabelecendo uma sintonia ou, pelo menos, a
aceitação de princípios e de normas sociais orientadoras das relações,
entre diferentes níveis de hierarquias e impondo símbolos e valores
civilizacionais caros às elites que sustentavam a consolidação das nacionalidades.
A escola deve, pois, ser entendida como uma instituição que serve
um tempo determinado e que se configura em função das características
dum determinado tempo. Ela só existiu e existe como tem existido porque se verificaram e verificam condições tecnológicas, económicas e
políticas que a tornaram necessária e insistem na sua manutenção, ainda
que com concretizações bem diversas tal como propicia o jogo dos
factores que nelas influem. A sua emergência e difusão resultaram fundamentalmente da relação das elites com a tecnologia, vendo essa tanto
como instrumento produtor quanto como capacidade de controlar riqueza e poder. Por isso mesmo, a escola foi sempre concebida dentro
dum quadro ideológico definido a partir da cultura compreendida pelas
180
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forças dominantes, sendo que essas, por sua vez, se estruturam a partir
duma tradição, ou seja duma cultura legada pelas gerações anteriores.
A Igreja cristã, emergindo no contexto do Império Romano, em que
a escola teve grande desenvolvimento, absorvera muito da capacidade
organizacional, cultural e pedagógica desenvolvida na Antiguidade Clássica. Ela acabou por ser a herdeira dessa cultura e desse modelo organizacional, o que lhe conferiu um ascendente sobre os poderes políticos
que se foram formando sobre o desmoronar do Império Romano. Numa
Europa dilacerada por conflitos, retalhada em muitos territórios de fronteiras incertas, com populações inseguras e sujeitas à lei da força, a Igreja
católica organizou-se procurando manter a ideia de unidade superiormente dirigida por Roma, agindo sobre o mundo temporal a partir do
ascendente cultural que possuía e do poder coactivo que reconhecidamente tinha sobre as crédulas consciências dos europeus de então.
Nesse mundo medieval em que a condição de cada um é determinada pelas relações de domínio da terra e das pessoas e em que o poder se
encontra disseminado pelos grandes senhores, a Igreja ocupa um lugar
preponderante (Burckhardt, 1971). Em primeiro lugar, ela é uma força
económica muito importante. Deste modo, a Igreja integra-se na
feudalidade pelo lado económico e jurídico mas tem ainda o poder de
lhe fornecer recursos para a sua organização e de lhe conferir legitimidade e consistência ideológica. Há muito familiarizada com a lógica do
poder, tendo sabido adequar-se à evolução das sociedades saídas da fragmentação do Império Romano, constituindo uma instituição organizada
em torno de hierarquias e integrada por clérigos socialmente muito
heterogéneos, a Igreja católica reconhece a conveniência duma sociedade feudal dividida em três grandes grupos: o dos clérigos, a quem estava
confiada a implementação da religião e dos grandes valores morais, o
dos grandes senhores, fundamentalmente encarregados de organizar as
forças necessárias à defesa dos valores estabelecidos, e o dos servos,
rendeiros e vilãos, a quem cabia assegurar a produção dos bens necessários à subsistência de todos.
Olhando tanto do ponto de vista dos fundamentos filosóficos como
da real estrutura social, a sociedade apresentava-se estática. Cada um
devia viver na sua condição e cumprir o melhor possível a tarefa que lhe
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
181
estava destinada. A instrução encontrava-se praticamente confinada aos
clérigos, já que o resto da população, dedicando-se fundamentalmente
às actividades militares e agrícolas, não precisava dela. Ao povo bastava a formação religiosa. Com ela pretendia-se sobretudo uma apreensão
intuitiva da divindade e uma espécie de condicionamento sistemático
que provocasse como que uma aceitação involuntária dos princípios e
dos valores sociais e morais inseridos na doutrina da Igreja. Os meios
utilizados procuravam sobretudo impressionar: impressionar pela palavra por meio da pregação, impressionar pelo ritual e pelo poder que se
associava aos discursos e aos actos que os clérigos praticavam. A formação dos clérigos era importante para assegurar o funcionamento e a
unidade da Igreja. Em geral, o ensino dos clérigos visa dotá-los de uma
cultura instrumental baseada no latim e num reportório escrito definido
pela hierarquia da Igreja. Independentemente do pragmatismo que nunca deixou de estar presente, essa cultura orienta-se fundamentalmente
para a compreensão duma verdade revelada, para a explicação pelo encontro com o divino, para uma abordagem essencialmente mística a partir
de interpretações dos textos sagrados. Daí que, das tradicionais sete artes liberais, muito poucos se interessem pelas disciplinas do quadrivium
(geometria, aritmética, astronomia e música) e se dê, nas escolas clericais, especial ênfase às do trivium e, em especial, à gramática. “Ela era
considerada como arte por excelência” (Durkheim, 1995, p. 58). Mais
do que propiciar uma instrução sofisticada, interessava formar clérigos
capazes de ser bons difusores da doutrina católica e fiéis executores da
vontade da Igreja de Roma. Apesar disso, os clérigos tornaram-se praticamente os únicos a dominar a gramática e a escrita e, por isso, a ter
condições para apoiar a burocracia laica quando essa precisou de rigor
administrativo.
Por sua vez, à Igreja deve-se a manutenção do ensino na Europa
Ocidental. De facto, ainda que na Itália se tenham mantido escolas não
religiosas em várias cidades, onde se ensinava gramática e retórica mas
onde também podia haver espaço para o direito e a medicina e na Espanha
(durante a ocupação muçulmana) também se ensinasse tanto as primeiras letras como a gramática, a retórica, a dialéctica, a geometria, a música, a astronomia etc. (Pernill, 2001), na generalidade da Europa as esco-
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
las estavam nas mãos dos clérigos e localizavam-se em mosteiros, catedrais e em igrejas paroquiais. No entanto, o desenvolvimento do comércio e da cidade vai exigir um ensino mais adequado às novas exigências. No início do século XIII, as cidades de certa importância têm uma
escola. Mas a evolução não acontece ao mesmo ritmo em todas as regiões e em todas as localidades. É fácil de compreender que os burgueses começassem por colocar os filhos nas escolas clericais que existiam
mas que com o tempo sentissem necessidade de lhes proporcionar um
ensino mais adequado à vida secular. A criação de escolas laicas, por
vezes pagas pelos municípios, são um testemunho dessa vontade de
mudança pedagógica. Convém, contudo, não exagerar na generalização
dessas escolas. Dependendo de circunstâncias geográficas, econômicas, políticas e culturais que nem sempre se conjugam do mesmo modo
e ao mesmo tempo, essas escolas dificilmente podem escapar a uma
compreensão que releve a sua singularidade. Embora possa se destacar
uma tendência para uma instrução mais pragmática e mais orientada
para a administração do que a que vinha sendo ministrada nas escolas
clericais, que em alguns casos se começasse a valorizar até línguas vulgares como o francês, a educação continuava sobretudo marcada pela
força cultural da Igreja, tendo o latim como principal língua de referência. A emergência das universidades medievais traduz bem esse poder.
Várias delas tinham origem em escolas catedralícias; muitas se apoiaram no reconhecimento papal; em geral, para além da filosofia, da medicina, do direito civil, acolhiam o ensino do direito canónico e da teologia, que eram saberes especialmente considerados; a matriz
organizadora do seu pensamento era profundamente cristã. Embora as
universidades fossem consideradas instituições ao serviço da cristandade e tivessem sido bastante influentes na sua organização, foram-se gradualmente secularizando, acolhendo cada vez mais estudantes apenas
interessados nos benefícios materiais que a sua frequência devia possibilitar, o que indica quanto o conhecimento e a competência letrada era
cada vez mais relevante para os não clérigos. A proibição, em 1254,
pelo Papa Inocêncio IV, de o clero ensinar direito civil deve ter contribuído bastante para o processo de secularização da universidade, processo que seria reforçado pelo fortalecimento do poder secular.
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
183
Desde os séculos XII e XIII vemos, portanto, avançar a criação de
escolas laicas nas principais cidades europeias que possuíam uma burguesia importante. Às cidades italianas juntaram-se as do norte da Alemanha. Nas cidades hanseáticas fundam-se escolas mantidas pelos municípios e mais de acordo com os interesses burgueses, por vezes, contra
a oposição da Igreja. Outras regiões europeias acompanham esse movimento. Nos Países Baixos foi possível uma expansão menos controversa em virtude da autonomia de que gozavam as cidades e de a Igreja
possuir aí um poder relativamente menor. Ao longo dos séculos seguintes foram-se espalhando essas escolas pela Europa à medida que a burguesia se afirmava. Estamos, pois, perante um fenómeno urbano e burguês. Isso não significa que a doutrina da Igreja esteja ausente mas tão
só que a iniciativa não pertence ao clero e que se olha a instrução como
forma de preparar para a acção. Em contrapartida, o campo ficou à margem desse movimento. Para a maioria da população, além da aprendizagem da actividade profissional restava-lhe a formação religiosa e social
dinamizada pelo clero e estabelecida em conformidade com o calendário e o ritual da Igreja.
A emergência e a generalização da escola secular na generalidade
do espaço europeu está, portanto, muito relacionada com o crescimento
comercial, com o desenvolvimento das cidades, com o aumento da burguesia e com a sua capacidade de impor-se como força social e política.
Ela assume cada vez mais importância no Parlamento da Inglaterra, nos
Estados Gerais de França, no governo de várias cidades italianas e de
outras regiões prósperas da Europa. Devendo o seu sucesso à acção,
sabe que tem de ser dinâmica, que tem de se adequar às circunstâncias
que encontra, que tem de ser organizada, que só pode ter sucesso se for
intelectual e socialmente competente. Todavia, o sucesso não se distribui igualmente por todos os burgueses. Desde os últimos séculos da
Idade Média que é clara a existência de homens de grande comércio ao
lado de pequenos comerciantes e artesãos. Os primeiros, por necessidade de vincar a sua importância política e de mostrar a sua consistência
sociocultural, vão procurar dotar-se de uma formação clássica, de uma
sofisticação intelectual; os segundos tendem a buscar uma formação
mais técnica, ou seja, mais voltada para o exercício da actividade pro-
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
fissional. Para muitos desses basta a aprendizagem da leitura, da escrita
e do cálculo, competências fundamentais que os governos liberais do
século XIX e XX se esforçarão por generalizar a toda a população.
Convém lembrar que esse desenvolvimento da escolarização também foi beneficiado por um conjunto de descobertas e invenções que se
foram somando desde os finais da Idade Média e acentuando depois nas
épocas seguintes. Apesar de estarmos numa época de grande revolução
tecnológica, ainda não é difícil reconhecer a importância que teve tanto
a descoberta, no século XIII, do processo de fabricação do papel quanto
a invenção da imprensa. Com a imprensa, a difusão do conhecimento e
a educação entravam num novo estádio de desenvolvimento. A rapidez
com que ela se espalhou por toda a Europa Ocidental traduz bem a relevância cultural que lhe foi reconhecida. Bem significativo da importância da imprensa é o número de edições que conheceu o primeiro livro
completo a sair do prelo, a Bíblia Latina, normalmente denominada de
Vulgata, nada menos que 92, entre 1456 e 1500. Saíram impressas também várias traduções da Bíblia em diversas regiões da Europa. Além da
Bíblia, outros textos religiosos tiveram um enorme sucesso editorial ao
longo dos séculos XV e XVI. Vários desses textos religiosos serviram
de apoio à aprendizagem da leitura e, consequentemente, contribuíram
para a formação religiosa, moral e social dos que os liam. Paralelamente
cresceu o interesse pelo estudo da matemática que, embora relacionado
com o desenvolvimento do comércio, foi certamente incrementado pelas inovações que se deram também nesse domínio do saber. A introdução dos algarismos árabes no fim do século XIII tornou a aprendizagem
da matemática e principalmente o cálculo de grandes números muito
mais fácil. A aritmética tornou-se mais acessível também com a aceitação da noção e do símbolo zero. A generalização desses conhecimentos
deveu-se em grande parte à actividade comercial mas, tal como aconteceu com os textos religiosos, ela acabou por se beneficiar muito com a
invenção da imprensa. A primeira aritmética impressa surgiu, em 1478,
em Trevisco, próximo de Veneza, mas logo outras foram editadas na
Europa Central e Setentrional. Em Portugal, o primeiro livro de aritmética foi publicado em 1519, e conheceu várias outras edições durante o
mesmo século.
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
185
Um dos aspectos que reforçou o interesse pela generalização da escola foi a crescente aceitação das línguas vernáculas. Durante a Idade
Média o homem culto tinha de dominar o latim para acompanhar a vida
cultural e religiosa e de falar vernáculo nos assuntos do dia-a-dia. Nos
finais da Idade Média o uso do vernáculo começou a suscitar interesse
por parte dos homens da Igreja e dos poderes seculares. Com o advento
do Renascimento veio o latim clássico que o afastava ainda mais da
língua materna. Além disso, os povos teutónicos sempre sentiram uma
maior dificuldade em aprender uma língua que não era aparentada com
a sua. O comércio cada vez mais utilizava o vernáculo. Além disso, o
francês, de uma língua da Corte, tornou-se, desde o século XIII, uma
língua muito requerida na actividade comercial. Nas escolas holandesas, por exemplo, o francês e o vernáculo eram ensinados ainda antes da
Reforma. Nos séculos XV e, principalmente, XVI, deram-se passos decisivos na afirmação das línguas vernáculas. Um deles veio com a já
referida invenção da imprensa, especialmente com a edição da tradução
da Bíblia e de textos relacionados com o conflito religioso (Elton, 1982);
outros vieram com a catequização, com o aparecimento de literatura de
qualidade, com o incentivo de intelectuais à aprendizagem da leitura a
partir da língua materna, com a publicação de gramáticas de diferentes
línguas. Apesar disso, o latim permanecia uma língua importantíssima,
dominando no mundo escolar, na filosofia e na diplomacia. De qualquer
modo, era evidente que começava a ceder terreno às futuras línguas
nacionais, tão caras à escola popular que se desenvolveu com a protecção
do poder secular.
Esses acontecimentos sucederam-se num período intelectual de
optimismo e de confiança que se costuma denominar de Renascimento
e que podemos arrumar em duas tendências: uma científica e realista, e
outra humanista. A primeira está associada a um movimento positivista
que tem como nome grande Guilherme d’Ockham (1300-1350), adepto
duma ciência experimental; a segunda procurou responder aos problemas da sociedade mediante a leitura dos autores da Antiguidade Clássica, mas acabou por confinar-se em compromissos que conciliavam o
Evangelho com a disciplina de um Séneca e de um Cícero. A corrente
científica e realista não teve o desenvolvimento desejado. Todavia de-
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
vemos sublinhar a relevância dos contributos de Copérnico, defensor da
concepção heliocêntrica, depois reafirmada por Galileu, Vesalius que
deu um grande contributo para a afirmação da Anatomia, Bernard Palissy
que pode ser tido como o criador da História Natural. O Renascimento
pode também ser interpretado a partir duma arrumação geográfica. Sem
entrar em grandes pormenores, pode-se diferenciar uma audaciosa Renascença Italiana, que emerge num contexto de forte desenvolvimento
urbano e de agitação política, social e moral, de uma Renascença da
Europa do Norte mais conciliadora, que procura substituir as escolas do
clero por escolas laicas capazes de proporcionar uma educação refinada
devotada ao culto das belas-letras (Burckhardt, 1983; Holmes, 1984). A
primeira acompanha bem o gosto por uma vida de luxo ou, pelo menos,
a valorização de um bem-estar terreno; a segunda desenvolve também
um sentimento de liberdade e de responsabilidade individual que já não
se filia na tradição religiosa católica mas assenta na sabedoria da Antiguidade. Contudo, deve ser sublinhado que o Renascimento é um movimento intelectual e estético elitista que, buscando uma verdade a partir
do conhecimento legado pela Antiguidade ou pela experiência, é interpretado apenas pelos que eram bem nascidos.
Não era fácil, contudo, explorar, aprofundar e generalizar as ideias
características desse movimento sem fragilizar a compreensão cristã de
mundo. Essa dificuldade levou a que o Humanismo acabou por se encaminhar para uma retórica sem ideias, para uma cultura de lugares comuns traduzida num exercício de estilo. Entretanto, surge a Reforma e a
inevitável reacção da Igreja católica, que se apropriam dessa cultura e a
consolidam. Ela parece mais adequada a um tempo que requer um regresso à ordem, à aceitação da hierarquia, à afirmação de verdades veiculadas por instituições poderosas. Se num primeiro momento, a Reforma, influenciada pelo Humanismo, parece prometer um caminho de
liberdade e de esclarecimento, depressa caiu num escolasticismo que
emergiu do confessionalismo imposto por Lutero e Calvino. De facto,
esses primeiros grandes líderes tinham defendido o direito de a pessoa
seguir as suas próprias opiniões religiosas a partir das interpretações
que cada um fazia das Escrituras, mas, o interesse da regularidade, a
repulsa à heresia, a aliança entre Igreja e Estado acabaram por determi-
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
187
nar um caminho bem diferente (Braudel, 1989). O que sucedeu foi a
defesa da perseguição de todos os que divergiam deles, uma não aceitação de ideias científicas que contrariassem as Escrituras, o currículo escolar foi formatado para corresponder às ideias que pretendiam inculcar.
É verdade que a Reforma foi favorável a uma instrução popular,
mas isso deve-se em grande parte ao contexto geográfico e económico
em que envolveu o seu surgimento. Além de ela corresponder às necessidades inerentes às sociedades mais desenvolvidas, também foi encarada como uma forma de formação religiosa. Todavia, a instrução socialmente valorizada estava nas escolas latinas. A preocupação com a
eloquência levou a exagerar o ensino da literatura clássica e, sobretudo,
o do latim. O modelo a seguir era Cícero. Os jovens que frequentavam
as escolas latinas deviam aprender as suas palavras e as suas expressões, deviam aprender a falar latim com a fluência e a elegância do
grande escritor clássico.
Do lado católico, o modelo é a pedagogia dos jesuítas. Eles, melhor
do que ninguém, sabendo interpretar os anseios de uma nobreza moderna e de uma burguesia ansiosa de reconhecimento e compreendendo
que só por meio do controlo das classes dirigentes conseguiriam impor
uma cultura e uma moral condizente com as determinações do Concílio
de Trento, investiram seriamente no ensino, criando uma rede de colégios e uma organização pedagógica devidamente adaptada às novas exigências da sociedade (Durkheim, 1995). O objectivo último era fazer
prevalecer a ideia de verdade absoluta, o que obviamente servia à causa
da ortodoxia católica e ao absolutismo régio. Na prática vão servir-se do
humanismo depurado que só tem sentido se o ambiente escolar permanecer afastado das vicissitudes e das paixões da vida quotidiana.
O estudo das línguas antigas não é para pôr os alunos em contacto
com a diversidade do pensamento da Antiguidade. Bem pelo contrário,
servirá para os mergulhar num mundo idealizado, carregado de personagens que representavam os grandes valores que se desejavam inculcar e visará também a favorecer a aquisição de habilidades linguísticas
capazes de propiciar o conveniente desempenho na sociedade.
O latim é a grande língua, a língua do rigor e do saber, portanto,
língua distinta que dá acesso à retórica, ao direito, às funções públicas e
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aos cargos políticos. É também a língua dos que sabem, dos que
categorizam e ordenam o mundo, dos que impõem e fundamentam a
ordem. O latim é língua de elite, uma língua que remete para o passado
e aprende-se por meio dum elevado número de regras e à força de muitos exercícios. É fundamentalmente em torno do latim que se desenvolverá a retórica e ambas as matérias, conjuntamente com o internato,
promoverão um ambiente pedagógico que sistematicamente apela à obediência a regras e a modelos, à evocação de figuras e de situações dignificantes, ao domínio da palavra e dos comportamentos.
A partir do momento em que a civilização ocidental começa a sofrer
a contínua pressão das transformações e em que as certezas do passado
e as explicações da religião se revelam frágeis, a busca de novas referências culturais acaba por desaguar num humanismo menos subserviente à Antiguidade e à retórica e mais favorável à análise de ideias.
Paulatinamente, o mundo contemporâneo vai preocupar-se menos em
buscar justificações e exemplos nessas personagens e nesses textos da
Antiguidade e vai procurar apoiar-se mais numa racionalidade que traduza já uma percepção de mudança que se desenha em vários domínios
da sociedade.
No século XVII desenham-se os primeiros riscos de caminhos futuros (Delouche, 1993). No domínio da ciência, a geometria analítica de
Descartes e o cálculo de Leibniz revolucionam a matemática, Galileu e,
posteriormente, Newton a astronomia, numerosas invenções de instrumentos novos como o telescópio, o microscópio composto, o barómetro,
contribuíram enormemente para descobertas importantíssimas, a medicina é confrontada com a descoberta de Harvey sobre a circulação do
sangue a par de outras descobertas de menor visibilidade. A filosofia
passa a ser dominada pelo racionalismo de Descartes mas o desenvolvimento do empirismo eleva as discussões sobre o método científico que
têm notório reflexo no pensamento pedagógico. A crença no valor da
educação põe sectores da sociedade mais progressistas e militantes a
investir na instrução popular. Isso é mais evidente na maioria dos países
da Europa Setentrional em que o princípio da tolerância religiosa foi
aceite, dando oportunidade que grupos evangélicos minoritários e outros encarassem a educação numa perspectiva caritativa. Os calvinistas,
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
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na sequência do sínodo de Dort (1618-1619), apostaram muito na instrução como forma de promover a educação religiosa. As resoluções do
referido sínodo estabeleciam uma educação religiosa no lar, nas igrejas
e nas escolas, tendo insistido para que essas fossem criadas em vilas e
aldeias. Mas várias personalidades e instituições estão empenhadas nessa instrução popular, e há regiões da Holanda e da Alemanha que vêem
ser declarada a instrução obrigatória.
Embora mais forte na parte protestante da Europa, o interesse pela
instrução popular também existiu em algumas regiões católicas. O movimento mais consistente foi protagonizado pelos Irmãos das Escolas
Cristãs. Essa ordem, criada por S. João Baptista de La Salle, em 1684,
dedicou-se à instrução gratuita de crianças pobres do ensino elementar.
O currículo compreendia a leitura, a escrita e a aritmética e também o
ensino de boas maneiras, o catecismo e as práticas religiosas. A ordem
foi aumentando gradualmente, estendeu-se por várias partes da Europa
e contribuiu para a instrução de centenas de milhares de alunos. Em
geral, o movimento para a educação popular era fundamentalmente orientado pela caridade cristã. Mas não era só a vontade de contribuir para
a valorização das competências instrumentais que estava presente nessa
ideia de caridade; era igualmente a vontade de salvar os filhos do povo
miserável, corrompido pela imoralidade, pela ignorância, pela
indisciplina, por práticas pagãs e pecaminosas. A ideia fundamental era
instruir as crianças do povo na piedade, na obediência, nos princípios da
doutrina cristã e de as preparar para uma vida social e profissional dentro da tradição familiar.
Por razões que se cruzam com interesses religiosos, económicos e
nacionalistas, as regiões protestantes da Europa apresentam uma instrução popular mais generalizada que as regiões católicas. Na Prússia, os
anos imediatos que se seguiram à derrota de Napoleão assistiram a um
movimento reformador que teve também consequências pedagógicas
evidentes. Sob a influência de intelectuais como Stein, Humboldt e Fichte,
pretendeu-se regenerar a alma da nação lançando um sistema de educação que atendesse a todas as crianças (Luzuriaga, 1985). Assim se criou
um ensino elementar público e gratuito para crianças dos 6 aos 14 anos,
inspirado no sistema pedagógico pestalozziano, que em breves anos fez
190
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
desaparecer o analfabetismo. Não tardou que os ideais mais democráticos sofressem investidas da reacção que se seguiu ao Congresso de Viena. Agora mais do que regenerar a sociedade ganha relevo a preocupação de organizar uma educação que forme o povo para a lealdade a uma
ordem estabelecida, valorizando ideais religiosos, nacionalistas e militares. No início da década de trinta do século XIX, está perfeitamente
claro que o ensino elementar não é o mesmo para todos. Até o fim da
primeira Guerra Mundial e o estabelecimento da República, a maioria
das crianças frequentavam a Volksschulen, mas os filhos das classes
dirigentes eram formados em escolas preparatórias do ensino secundário (Gomes, 1984). Essas escolas preparatórias tinham um currículo diferente do das escolas elementares, o que criava dificuldades de passagem ao ensino secundário a quem viesse das escolas elementares.
No ensino secundário, impõe-se o Gymnasium, instituição clássica
que tem como eixo fundamental do seu currículo latim, grego, matemática. Essa era a escola preferida por quem queria seguir a universidade e
ingressar no espaço das profissões mais valorizadas socialmente. No
entanto, os progressos científicos e tecnológicos sentidos na Alemanha
vão pressionar mudanças que obrigam a pequenos ajustamentos no Ginásio (Gymnasium) e sobretudo à criação ou desenvolvimento de novos
tipos de escolas que vão ser alvo de controvérsia e de desconsideração.
No entanto, a Oberrealschulen oferecia uma oportunidade de formação
mais adequada a quem pretendia seguir profissões técnicas e comerciais
superiores e a Realgymnasium, instituição comprometida com um curso
científico moderno, vê crescer a sua importância nas últimas décadas do
século XIX.
Nos países escandinavos, Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca
seguiam-se as doutrinas luteranas e políticas educacionais próximas das
que se desenvolviam na Alemanha. Vendo bem, já no século XVIII eles
tinham conhecido esforços de expansão do ensino elementar (Johansson,
1977). Ao longo do século XIX, a Finlândia conheceu o desenvolvimento de um dos melhores sistemas de educação elementar da Europa e
a Dinamarca preocupou-se em elevar a educação dos operários por meio
do ensino secundário. Em geral, os povos setentrionais avançaram mais
cedo e com mais convicção para a educação popular e mostraram-se
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
191
mais capazes de atender às necessidades educativas motivadas pelo progresso científico e tecnológico.
Na França, como na generalidade dos países católicos, o panorama
educativo da segunda metade do século XVIII é bastante desolador. No
ensino secundário, com a expulsão dos jesuítas, em 1764 (em Portugal
aconteceu em 1759) gerou-se a confusão. O Estado não consegue organizar uma instrução que corresponda à ideologia racionalista das Luzes.
A França, apesar de melhor que os países da Península Ibérica e das
regiões do sul da Europa, em geral, não consegue que dez por cento das
crianças entre os 7 e 16 anos frequentem a escola. O analfabetismo deve
rondar dois terços da população. A maioria da população vive em zonas
rurais e aí não têm condições para se instruírem. Mas essa realidade não
causava escândalo entre muitos intelectuais da época (Goubert, 1969).
De qualquer modo, a tendência para a secularização do ensino e para o
estabelecimento de uma escola elementar gratuita vai ser fortemente
acentuada com as reivindicações da época da Revolução. A Constituição da República, em 1791, estabelece a organização de um sistema de
instrução pública, comum a todos os cidadãos e gratuito para os saberes
indispensáveis a todos os homens. O generoso enunciado desse documento não passou de uma intenção revolucionária durante muitos
decénios.
O ensino elementar até à década de 1830 estava numa situação de
completo descontrolo. O parlamento, em 1833, decide tomar medidas
mas elas revelam pouca ousadia: torna obrigatória uma escola elementar por cada comuna mas não eram gratuitas. Era evidente que não se
apostava na escola elementar como instrumento de emancipação do povo.
Como o ensino elementar era necessário ao funcionamento duma sociedade moderna, devia-se providenciar que ele apenas se cingisse a fornecer uma formação socialmente útil. Nesse sentido, a religião voltava a
ser importante e a figurar no currículo escolar (Rémond, 1989). Só já na
seqüência da política da Terceira República a situação alterou-se profundamente. Uma lei de 1882 determinou a freqüência obrigatória para
todas as crianças entre os 6 e os 13 anos, embora pudessem ser dispensadas aos 11 se tivessem obtido a aprovação mediante um exame. A
tardia adesão da França à obrigatoriedade escolar e a forte ligação à
192
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Igreja do ensino elementar revelam que a burguesia francesa queria o
povo submetido à ordem da ortodoxia católica. Curiosamente, parecia
querer reivindicar para si o direito de livre discussão filosófica na ilusão
de que os seus interesses os afastariam de teorias subversivas (Prost,
1968). Na realidade, o ensino secundário tende a fornecer um saber clássico sólido inspirado por um liberalismo conservador, tendo como
objectivo preparar os que deviam ocupar posições dirigentes. As medidas tomadas no contexto político da Terceira República visavam atender a novas necessidades duma sociedade burguesa cada vez mais
marcada pelo desenvolvimento tecnológico e pelos progressos da ciência. Assim se devem compreender as alterações no ensino elementar
como a preocupação com a formação profissional e a modernização do
ensino secundário (Léon, 1977). Todavia, apesar da maior abertura do
ensino secundário às ciências e às línguas modernas, são os estudos
clássicos que ainda têm preponderância no acesso à universidade e aos
principais cargos administrativos.
Na Inglaterra, a situação da educação apresenta-se com características particulares mas acaba por inscrever-se numa idêntica compreensão
da finalidade educativa. Embora não fosse exclusivo da Inglaterra, não
há dúvida de que foi aí que se devolveu mais o ensino caritativo ou
beneficente. Pode-se mesmo dizer que, durante o século XVIII, o esforço na difusão da instrução se restringiu à vontade de particulares ou
sociedades empenhadas em propiciar ao povo a educação que entendiam adequada às necessidades da sociedade e à posição social de cada
um. Entre as variadas iniciativas podemos distinguir as escolas dominicais, destinadas aos filhos do povo que trabalhava durante a semana, as
escolas pré-primárias, que pretendiam educar as crianças cujos pais se
encontravam a trabalhar nas fábricas e as escolas fabris, que deviam
instruir durante parte das horas de trabalho os aprendizes. Nos inícios
do século XIX era já evidente que a actividade caritativa e filantrópica
não conseguia corresponder a anseios e a necessidades emergentes numa
sociedade que regista acelerado desenvolvimento económico e industrial (Wardle, 1970). Os liberais tentam um movimento que leve ao estabelecimento duma educação gratuita generalizada mas tal não deu resultado até ao início da década de trinta, devido à oposição dos Tories,
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
193
que receavam que isso tornasse os trabalhadores insubordinados. Apesar de alguns pequenos progressos nas décadas seguintes em direcção à
participação do Estado na instituição da escola pública, só com a chegada do partido liberal ao poder lançaram-se as bases de um ensino elementar generalizado em 1870 (Aldrich, 1982).
Enquanto se avançava muito lentamente para uma educação popular generalizada, o ensino secundário permanecia apegado ao ideal de
um humanismo clássico promovido pelas public schools. Na segunda
metade do século, uma comissão preconiza uma pequena modernização
do plano de estudos, com a introdução das ciências, dos estudos sociais
e das línguas modernas mas o ensino dessas grandes escolas continua a
valorizar muito a componente clássica (idem). Como se constata facilmente, este ensino secundário está muito vocacionado para formar a
classe dirigente do país. Na verdade, o que está em causa é a distinção
social pela dignificação cultural e isso é preocupação comum entre os
elementos das classes superiores dos países europeus ocidentais.
Estamos chegados a um tempo em que as sociedades dos diferentes
países da Europa Ocidental se organizam em função de uma racionalidade laica baseada numa ciência positivista, na liberdade de pensamento, na capacidade de realização, na idéia de progresso. Chegados à transição do século XIX para o século XX, a burguesia sustenta e participa
do poder mas hesita entre a cultura do passado e a dinâmica imposta
pelo progresso. A burguesia sabe, por experiência própria, que nada é
definitivo e uniforme. Mas também sabe que a sociedade burguesa precisa de ordem e estabilidade e que os interesses divergentes que encerra
podem arruiná-la. Ela precisa, por isso, estar bem informada para agir
em conformidade com o momento. Necessita sobretudo de dominar os
saberes que lhe asseguram a administração do poder. Ela sabe que a
competência é a qualidade chave do sucesso.
A escola tem sido fundamentalmente uma instituição cara à burguesia. Isso não significa que não tenha sido útil a outras forças sociais e
que não tenha servido interesses contrários aos dos burgueses. De qualquer modo, a sociedade burguesa não pode dispensar a escola e essa
tem sido, por vezes, uma medida da civilização burguesa.
É certo que durante a Idade Média boa parte da Europa Ocidental só
194
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
conheceu a escola associada à Igreja e que essa a utilizou para formar
clérigos. Mas a Igreja serve-se da escola menos como instrumento de
difusão religiosa e mais como entidade formadora de quadros necessários à administração do poder. Sublinhe-se que a Igreja é uma organização complexa e tem necessidade de formar pessoas com competências
diversificadas. Em contrapartida, possuindo a Igreja um conjunto de
recursos humanos bem formados, era natural que os utilizasse no ensino
e em escolas suas, mas dirigidas à população laica. A escola foi mesmo
ocasião de grandes períodos de convivência entre os interesses burgueses e os do cristianismo. Assim, quando digo que a escola é uma instituição implicada com o desenvolvimento da burguesia quero apenas relacionar o desenvolvimento da escolarização com o crescimento económico
e com o aumento da população burguesa e realçar as consequências que
isso tem para a construção da racionalidade ocidental.
Como é evidente, a Igreja foi durante muitos séculos poderoso instrumento de uniformização cultural. Todavia, não fosse o desenvolvimento económico dinamizado pela crescente actividade comercial, certamente, hoje teríamos um pensamento diferente. Até a interpretação do
cristianismo não seria a mesma. A concentração de burgueses nos centros urbanos e a natureza da sua actividade obrigam à criação de escolas
laicas nas cidades, a novas e mais sofisticadas relações de poder, à necessidade de novos funcionários, ao desenvolvimento das universidades e do saber. Sem o incremento das trocas comerciais e do comércio
internacional não era fácil irromper o fulgor criativo que deu origem ao
Renascimento e ao Humanismo. Seriam burgueses dinâmicos e disciplinados interessados numa nova ordem moral que contribuíram para
consolidar a Reforma.
É sobre esse crescendo do mundo burguês que se vai autonomizando
o pensamento político, filosófico e científico do religioso. A partir do
momento em que a civilização ocidental começa a sofrer a contínua
pressão das transformações e em que as certezas do passado e as explicações da religião se revelam frágeis, a busca de novas referências culturais acaba por desaguar numa racionalidade mais favorável à análise
de ideias. O início dessa tendência pode ser já observada nos
enciclopedistas e em propostas e planos de reformas educativas que se
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
195
publicaram ao longo do século XVIII. Será, no entanto, a partir da
centúria seguinte, pese embora as contradições e os avanços e recuos do
processo, que se desenvolvem condições para uma maior aceitação de
idéias que servirão uma ideologia progressista caracterizada por oporse ao dogma e ao fatalismo da religião e por pressupor uma confiança
na natureza e nas capacidades humanas. Veja-se, por exemplo, como os
liberalismos, o político e o econômico, promoveram a ideia de que o
indivíduo não tem que ser definido pela condição social da família em
que nasceu mas pela sua vontade e capacidade individual.
Mas tudo isso acontece de uma forma muito mais lenta do que as
propostas dos intelectuais fazem supor. Vimos que, na generalidade
dos países da Europa Ocidental, ao longo do século XIX, se manteve
uma organização escolar que tratava de forma desigual as crianças que
vinham de meios sociais distintos. O mesmo aconteceria durante a primeira metade do século XX (Azevedo, 2000). Aos filhos das classes
trabalhadoras estava, quando muito, reservado o ensino elementar, ficando para os mais ricos a freqüência do ensino secundário. A situação
agravava-se ainda quando se referia ao sexo feminino. Mesmo no século XIX, como salienta Prost, a maioria das principais leis escolares
só diz respeito aos rapazes. Não admira, portanto, que a freqüência
escolar seja superior entre esses. Só ao longo do século XX foram-se
desfazendo todos os entraves que prejudicavam o acesso das raparigas
à educação.
Se ignorarmos algumas propostas vindas de sectores intelectuais
progressistas e alguma retórica revolucionária, vemos que não há vontade de promover a igualdade no acesso à escola. Invocando-se, por
vezes, a liberdade individual e um pragmatismo restritivo, no melhor
dos casos, dá-se a oportunidade de frequentar uma modesta escola elementar próxima do local de residência. Mesmo em países que tinham
decretado a frequência obrigatória da escola, não faltavam problemas a
impedir o seu cumprimento. Nos países do norte da Europa as crianças
das classes trabalhadoras tinham maior acesso à escola mas isso não
obstava a que estivessem sujeitas a um ensino que apenas pretendia lhes
fornecer os conhecimentos instrumentais adequados à condição
económica da família e uma formação moral e social que as deveria
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
manter adaptadas à ordem vigente. Se nas sociedades feudais ou senhoriais uma pessoa via a sua condição ser definida pelo sangue dos progenitores, nas sociedades burguesas liberais ela era legitimada pela escolaridade. A igualdade de direito, por vezes reforçada por alguma
genialidade que acompanhava alguém saído da classe popular, legitimava a liderança burguesa da sociedade. A cada um competia desempenhar uma função segundo a sua capacidade e essa parecia ser definida
pelo destino da condição social de origem. Na melhor das concepções
políticas, a instrução podia ser disponibilizada a todos mas nunca ser
igual para todos.
No entanto, essa não era sequer uma realidade que se visse generalizada nos países europeus nos fins do século XIX e inícios do seguinte.
Embora a imposição da escolaridade obrigatória se tivesse expandido
de norte a sul da Europa, essa não se cumpriu de igual modo em todos
os países. A sua concretização esteve muito relacionada com as exigências ditadas pelas necessidades da tecnologia produtiva e de governo.
Mas mesmo quando o esforço da escolarização esteve mais em conformidade com o ideário transnacional que promoveu a imposição da escolaridade obrigatória isso nunca significou uma convicção igualitária.
Como disse Andy Green, acreditava-se que era possível formar cada
pessoa como um sujeito universal mas fazendo-o de um modo diferenciado de acordo com a classe e o sexo (Green, 1994, p. 10). Ainda que
Nóvoa, seguindo outros autores, insista que a escola de massas deva ser
vista no quadro da afirmação dos Estados-nações considerando-a um
dos principais dispositivos que conferiu identidade nacional,
homogeneizando a cultura dos cidadãos dum território sobre o qual o
Estado exerce autoridade (Nóvoa, 1998, pp. 88-92), devemos não esquecer que essa nova concepção de organização política se impõe quando a tecnologia que suporta a burguesia dá a essa a capacidade de fazer
valer os seus valores. Todavia, o nível tecnológico e a distribuição e
composição da burguesia variava muito de país para país. Ora, isso explica, pelo menos em parte, como diante dum quadro ideológico
transnacional favorável à expansão da escola aconteceram ritmos de
concretização bastante diferenciados. Em contrapartida, tal compreensão coloca a escola como uma instituição que tem servido às forças
A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa
197
sociais dominantes embora pareça ter sido sobretudo estrategicamente
encarada pela burguesia. Na verdade, essa consolida o seu projecto sobre a expansão da escola e a escola generaliza-se em função das necessidades duma tecnologia produtiva e de governo que requeria habilidades instrumentais e uma sintonia cultural que unisse os diferentes grupos
sociais conferindo a estabilidade e a capacidade necessária ao desenvolvimento das actividades económicas. A escola fará a ligação entre o
passado e o futuro, entre a tradição e a modernidade, entre a liberdade
individual e o interesse nacional, entre a esperança de ascensão social
do indivíduo e a ideia de progresso colectivo, dando um sentido laico à
vida que se devia cumprir na terra. Mas, tal como o sistema social e
político burguês, o sistema escolar será concebido de modo a que muitos, ou todos, sejam chamados a participar mas poucos sejam os escolhidos a liderar.
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Debates sobre o ensino da
matemática na década de 1930
José Lourenço Rocha*
O propósito deste trabalho é situar o debate sobre o ensino da matemática do curso
secundário, travado na década de 1930, no contexto histórico no qual ele ocorreu, ressaltando-se a importância dada à conquista do controle da política educacional brasileira pelos grupos que disputavam o poder na época. Assim, pretende-se dar uma visão de
como as discussões sobre os rumos da educação nacional reproduziram-se no âmbito
específico de uma disciplina, no caso, a matemática.
ENSINO DA MATEMÁTICA; HISTÓRIA DO ENSINO DA MATEMÁTICA; HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA.
The intention of this work is to point out the debate on the education of the Mathematics
of the secondary schools, which occurred in the 1930s, in the historical context in which
it occurred, ahead of the importance given to the conquest of the control of the Brazilian
educational politics, for the groups that disputed the power at the time. Thus, it is intended
to give a vision of as the quarrels on the routes of national education was propagated in
the specific scope of one discipline, in the case, Mathematics.
MATHEMATICS TEACHING; THE HISTORY OF MATHEMATICS TEACHING; THE
HISTORY OF BRAZILIAN EDUCATION.
*
Doutorado em educação. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), Brasil. Bolsista da: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
200
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
1. Contexto histórico
A década de 1930 foi palco de uma disputa ideológica entre vários
setores da sociedade, com o objetivo de assumir o controle da política
educacional brasileira. Getúlio Vargas, para não perder as rédeas da situação, sinalizava com várias atitudes, ainda no início dessa década,
que demonstravam o grau de importância que seria dado por seu governo ao problema da educação, tais como: a criação do Ministério da Educação e Cultura; a reforma dos níveis secundário e superior, empreendida por Francisco Campos, em que se tentou agradar os “escolanovistas”
e os “católicos”; e ainda seu discurso, na abertura da Quarta Conferência Nacional de Educação, patrocinada pela Associação Brasileira de
Educação (ABE), em dezembro de 1931, no então Distrito Federal, em
que solicitou aos conferencistas que “... fornecessem ao Governo Provisório ‘a fórmula feliz’, ‘o conceito de educação’ da nova política educacional” (Carvalho, 1998, p. 380, grifo meu).
Nessa época, dava-se grande destaque aos assuntos educacionais,
pois se acreditava que “[...] pela educação, se formariam o caráter moral
e a competência profissional dos cidadãos, e que isto determinaria o
futuro da Nação” (Schwartzman et al., 2000, p. 19). Enfim, os grupos
em disputa tinham a fé de que quem controlasse o sistema educacional
do país seria capaz de moldar a “alma” humana, de acordo com os seus
próprios conceitos de certo ou errado, de bem ou de mal.
Sem se levar em conta os assuntos debatidos, além das diversas
nuances de visão que existiam, até mesmo entre aliados, uma boa descrição “a grosso modo” dos integrantes dessa disputa encontra-se nas
palavras transcritas a seguir:
[...] os militares, que buscam, em nome da segurança nacional, interferir diretamente na política educacional no sentido de conformá-la à política militar do país; a igreja, que luta pela introdução e manutenção do ensino religioso nas escolas públicas e pela liberdade de ensino, enquanto [sic] garantia da
existência de suas escolas e, de forma mais ampla, pressiona pelo atendimento de suas reivindicações por parte do Estado, e procura tirar o máximo
proveito do princípio de “colaboração recíproca” estabelecido pela Consti-
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
201
tuição de 1934; os educadores, que se esforçam por conduzir o sistema educacional brasileiro por caminhos novos, visando modernizá-lo e adequá-lo
às exigências do desenvolvimento do capitalismo; finalmente, o próprio Estado, que aproveita ao máximo as divergências existentes, reconciliando-as
e arbitrando os conflitos, para atender aos diferentes grupos das classes dominantes, mas que, em última análise, procura colocar o sistema educacional
a serviço de sua política autoritária [Horta, 1994, p. 3, grifos meus]
Até o final dos anos de 1920, os educadores associados à ABE mantiveram-se unidos em torno de alguns objetivos comuns, procurando
ressaltar muito mais as semelhanças do que as diferenças que existiam
entre suas idéias. Entretanto, no início da década de 1930, mais precisamente a partir da Quarta Conferência Nacional de Educação, rompeu-se
esse equilíbrio e eles dividiram-se em duas grandes correntes opostas:
os “pioneiros” e os “católicos”.
Os “pioneiros” assim se autodenominaram ao lançar o “Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova”, alguns meses após a Quarta Conferência Nacional de Educação (março de 1932). Nele, os defensores da
“Escola Nova” tentavam responder aos apelos do Governo Provisório,
no sentido de buscar a “fórmula feliz” a ser implementada na política
educacional brasileira, de modo que resolvesse os problemas que o país
enfrentava nessa área. Nessa conferência, não foi possível chegar a um
acordo diante da cisão que se instalou em seu seio. Para Marta Maria
Chagas de Carvalho, a recusa de responder aos anseios de Getúlio Vargas
e Francisco Campos na Quarta Conferência representou a vitória de uma
estratégia dos “escolanovistas”, uma vez que o grupo católico, que controlava a ABE desde 1929, ao que tudo indica, estava sintonizado com o
Ministério da Educação, no sentido de avalizar, na assembléia de encerramento da Conferência, uma orientação que fosse favorável aos seus
interesses (Carvalho, 1999, pp. 18-19).
Embora essas correntes não fossem monolíticas, principalmente a
dos “pioneiros”, que aglomeravam uma grande variedade de visões dos
rumos a serem tomados pelo sistema educacional brasileiro1, o que as
1.
Entre os pioneiros que assinaram o manifesto estavam, por exemplo, Lourenço
Filho, que pretendia ter uma posição de “educador profissional”, tendo inclusive
202
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
diferenciava era o fato de que os primeiros defendiam a laicidade do
ensino, a obrigatoriedade de o Estado assumir sua função educadora, a
escola única, e tinham como proposta descentrar o ensino do professor
para centrá-lo no aluno, a fim de melhor prepará-lo para uma sociedade
em transformação; enquanto que os segundos, “católicos”, apoiavam a
manutenção da dualidade e da orientação religiosa no ensino, a qual
tinha sido conquistada com a Reforma Francisco Campos. Além disso,
olhavam com desconfiança a intromissão do Estado na educação, uma
vez que possuíam um quase monopólio do ensino secundário, que teria,
primordialmente, segundo sua própria visão, a finalidade básica de formar as elites dirigentes, por meio de uma educação humanista.
Essa divisão que se veio delineando com o passar do tempo e o
acirramento dos debates levou à cisão desses dois grupos, a partir da
Quinta Conferência de Educação, realizada no final de 1932, em Niterói,
[...] com o objetivo de apresentar subsídios para o anteprojeto da Constituição. Durante a conferência, e isso era esperado, as divergências entre os dois
grupos (católicos e escolanovistas) acentuaram-se de tal forma, a ponto de
impossibilitar qualquer tipo de entendimento. Nesta conferência houve predominância dos escolanovistas [Cunha, 1981, p. 93, grifo meu].
Os “pioneiros” passaram a ter o controle da ABE, o que provocou
“[...] o êxodo dos católicos que, abandonando a ABE, reorganizaram-se
na Confederação Católica Brasileira de Educação, num combate sem
tréguas contra os princípios firmados no Manifesto e seus defensores”
(Carvalho, 1999, pp. 18-19).
A luta passaria, a partir de 1933, a ser travada na Assembléia Nacional Constituinte2, instalada pelo chefe do Governo Provisório, em 10 de
novembro daquele ano, caracterizada por pressões de ambas as tendências, as quais encaminharam suas teses, sugestões e anteprojetos, relati-
2.
cooperado com o Estado Novo; e Paschoal Lemme, que era um intelectual marxista, simpatizante do PCB.
Uma boa síntese da discussão travada, na Assembléia Constituinte, entre as tendências em questão, encontra-se na obra de Cury, 1988, pp. 112-121.
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
203
vos a educação e cultura, uma vez que era a referida assembléia o instrumento habilitado para organizar-se um novo Estado de Direito. Essas
disputas tornaram-se públicas por meio de manifestos, artigos em jornais e outras publicações.
A nova Constituição foi aprovada em 16 de julho de 1934, e era, de
certa maneira, reflexo do equilíbrio de forças que ainda existia entre as
duas tendências em disputa. Não ficou evidenciada naquela oportunidade
a supremacia de nenhum dos grupos ideológicos sobre o outro, ou seja, a
base de sustentação do governo provisório ainda era bastante heterogênea. Isso explica o fato de os dois grupos terem se sentido vencedores,
com a promulgação da Constituição. Os “pioneiros” pelo fato de a
nova Constituição [...] ter atribuído a um Conselho Nacional de Educação a
competência e o dever de traçar o plano nacional de educação para ser aprovado pelo poder legislativo; e também por atribuir aos estados a competência
de organizar seus sistemas públicos de educação e ainda por consagrar a
educação como um direito de todos; pelas disposições relativas à gratuidade
do ensino. Discordavam os liberais em relação aos dispositivos que deram à
União o poder de reconhecer e fiscalizar o estabelecimento dos ensinos secundário e superior, os quais contrariavam suas convicções descentralizadoras.
Além disso, a Carta de 1934 estabelecia que a União e os municípios deveriam aplicar nunca menos de dez por cento e, os Estados e o distrito federal,
nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos, no desenvolvimento da educação. Por tudo isso, a Constituição [...] ensejava, na opinião de Fernando de Azevedo, a “o país entrar numa política nacional de
educação de conformidade com os postulados e as aspirações vitoriosas na
conferência de Niterói, em 1932, e no manifesto dos pioneiros, pela reconstrução educacional do Brasil [Cunha, 1981, pp. 93-94].
Em contrapartida, os católicos
também aplaudiram a nova constituição porque foi feita em nome de Deus.
“Nós os representantes do Povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus,
recebidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime
democrático, que assegure à nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-
204
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil” – era o preâmbulo da carta constitucional
de 1934. Não somente isso. Assegurava igualmente o ensino religioso facultativo, que tinha dado ensejo a muitas controvérsias [idem, p. 94].
O fato descrito implica dizer que a luta continuaria por mais tempo
ainda, na tentativa de colocar-se em prática os dispositivos constitucionais referentes à política educacional brasileira. A controvérsia permaneceu então na elaboração do Plano Nacional de Educação, mas antes
de se analisar esse assunto, será feita uma breve referência às idéias de
outro grupo que tentou influenciar as linhas a serem seguidas na elaboração de uma política educacional brasileira – a classe militar.
Os militares dispunham de um projeto para a educação nacional, que
foi sendo gestado cautelosamente e, no início, apenas no âmbito restrito
dos quartéis. O desenvolvimento progressivo desse projeto educacional
teve, como ponto de partida, a tentativa de se neutralizar a “situação de
indisciplina e fragmentação interna” em que se encontrava o exército, no
início da década de 1930, efeito de seu envolvimento na ação política.
Para tanto, o exército foi substituindo a sua prática disciplinar, baseada
primordialmente em punições físicas e castigos, por outra forma de adestramento, em que se utilizava de disciplinas a serem ensinadas, quais sejam: a educação moral, a educação cívica, religiosa, familiar e a educação
nacionalista, cujos conteúdos estavam alicerçados na “inculcação de princípios de disciplina, obediência, organização, respeito à ordem e às instituições”. É claro que, com esse conjunto de idéias, os militares aproximavam-se mais dos “católicos”, principalmente de sua ala mais conservadora,
do que dos “escolanovistas” (Schwartzman et al., 2000, pp. 84-85).
Gustavo Capanema toma posse no Ministério da Educação e Saúde,
em 26 de julho de 1934, substituindo Washington Pires, que ficara no
lugar de Francisco Campos, o qual deixou o Ministério em setembro de
1932 (idem, p. 64). Todavia, somente em 7 de dezembro de 1935, em
uma reunião ministerial convocada por Getúlio Vargas – motivada pela
rebelião de novembro de 1935, que ficou conhecida por “Intentona Comunista” – o Plano Nacional de Educação retornou à pauta de discussões, por iniciativa de Gustavo Capanema, que o entendia como “solução
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
205
para a falta de orientação e de disciplina existente na educação brasileira”
e, logo a seguir, tomava a iniciativa de sair da teoria à prática na elaboração desse plano previsto na Constituição (Horta, 1994, pp. 150-151).
Logo a seguir, em janeiro de 1936, o ministro Capanema deu início
às providências nesse sentido, distribuindo um extenso questionário,
organizado, sob sua direção, por um grupo de educadores, com o intuito
de obter subsídios para a elaboração do Plano Nacional de Educação, a
ser encaminhado ao Poder Legislativo. Esse inquérito sobre a educação
nacional foi encaminhado às Secretarias Estaduais de Educação, bem
como às associações de educação, com o intuito de obter o apoio de
políticos, professores, jornalistas, escritores e sacerdotes, à política que
buscava implementar no Brasil, pois o questionário era orientado segundo uma posição de manter-se a educação a serviço da conservação
da ordem vigente (idem, p. 151; Schwartzman et al., 2000, p. 192).
É claro que todos os assuntos polêmicos quando da elaboração da
Constituição de 1934 voltaram ao centro dos debates, sendo que os envolvidos em tal polêmica quiseram impor seus pontos de vista na redação final do referido plano, como confirma o trecho abaixo:
O questionário, impresso pela Imprensa Nacional sob a forma de um livreto,
intitula-se Questionário para um inquérito. As 213 perguntas inquiriam sobre todos os aspectos possíveis do ensino: princípios, finalidade, sentido,
organização, administração, burocracia, conteúdo, didática, metodologia,
disciplina, engenharia, tudo, enfim, que se fizesse necessário considerar para
a definição, montagem e funcionamento de um sistema educacional. As perguntas revelam a preocupação em refletir o debate corrente e, em alguns
casos, a intenção de fixar interpretações para alguns artigos polêmicos da
Constituição de 34 que poderiam afetar a ação educativa [...] [Schwartzman
et al., 2000, pp. 193-194].
Todas as contribuições angariadas por Gustavo Capanema foram
encaminhadas ao Conselho Nacional de Educação (CNE), que havia
sido criado em 1931, visto que esse órgão tinha sido definido pela Constituição como responsável pela criação do Plano Nacional de Educação.
Esse Conselho foi totalmente reorganizado em 1936, tendo sido instala-
206
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do de maneira solene em 16 de fevereiro de 1937, data em que foi iniciada a feitura do citado plano, o qual teve sua redação final aprovada em
plenário e foi entregue ao ministro Capanema em maio de 1937. Logo a
seguir, foi repassado ao presidente Getúlio Vargas.
O plano foi então encaminhado ao Legislativo, ou seja, à Câmara dos
Deputados, que, para examiná-lo, criou uma comissão especial, que rejeitou a proposta de Capanema para sua votação em bloco, sem emendas. O
plano não chegou a ser votado, uma vez que sua tramitação lenta levou à
total ausência de definições quando do golpe de estado, de 10 de novembro de 1937, que fechou o Congresso, constituindo-se em um dos períodos de repressão política no país (Horta, 1994, pp. 155-158).
O Plano Nacional de Educação foi então abortado antes de sua conclusão, mas a luta pela supremacia na educação brasileira continuou
sendo travada nos bastidores e, ao invés de investir-se em um plano que
abarcasse todas as áreas da educação nacional, as reformas começaram
a ser feitas por partes, dedicando-se separadamente aos níveis de ensino. É o caso, por exemplo, da Lei Orgânica do Ensino Secundário, de
1942. Entretanto, a redemocratização do país, que culminou com a nova
Constituição de 1946, interrompeu esse processo, sendo que as discussões foram retomadas até promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), de 20 de dezembro de 1961.
É nesse contexto3, que deve ser entendido o debate em torno do
ensino secundário e mais especificamente das mudanças instituídas no
ensino da matemática secundária pela Reforma Francisco Campos.
2. Debate sobre o ensino da matemática:
reações à Reforma Francisco Campos
As mudanças no ensino secundário impostas pela Reforma Francisco Campos foram implementadas pelo decreto n. 19.890, de 18 de abril
3.
Para uma visão mais profunda dos debates realizados sobre a educação, durante a
década de 1930 e início da de 1940, ver os livros de Horta (1994), Schwartzman et
al. (2000), Cury (1988) e Cunha (1981), citados neste artigo.
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
207
de 1931, e consolidadas por meio do decreto n. 21.241, de 4 de abril de
1932. O principal objetivo dessas mudanças era o de ampliar a finalidade do curso secundário, que deveria deixar de ser apenas um curso propedêutico para ingresso nas faculdades, mas também e principalmente
possuir uma finalidade própria. Para isso, o curso passaria a ter sete
anos, dividido em duas partes: a primeira de cinco anos, comum ou
fundamental, e a segunda, de dois anos, com finalidade de preparação
para as escolas superiores. Essa última parte subdividia-se em três seções, de acordo com os grupos de faculdades existentes na época: direito; medicina, odontologia e farmácia; e engenharia e arquitetura.
A Reforma Francisco Campos – com todos os seus méritos, principalmente o de ter sido uma verdadeira reforma, de extensão nacional, e
até mesmo com suas deficiências, fundamentalmente a de não ter resolvido a questão da demanda pelo ensino secundário na década de 1930,
pois manteve o seu caráter elitista – foi primordialmente uma reforma
autoritária. Isso porque, embora tenham sido feitas concessões aos grupos que ainda disputavam o poder, diante da inexistência de uma tendência hegemônica, foi baixada por meio de decretos, impostos de cima
para baixo, sem prévias discussões com os órgãos representativos dos
diversos setores da sociedade brasileira. A estratégia de Francisco Campos foi apenas a de apropriar-se de idéias que já existiam e eram debatidas desde a década de 1920, procurando de certa forma agradar às diversas tendências existentes, notadamente aos educadores sediados no
departamento carioca da ABE e à Igreja católica, mas sempre com a
intenção precípua de subordiná-las a seus interesses políticos.
Quanto aos programas de matemática e suas instruções pedagógicas, a Reforma Campos apenas se apropriou das inovações que vinham
sendo implementadas de forma paulatina, desde 1929, no Colégio Pedro
II, tendo como protagonista o professor Euclides Roxo. Em suma, a
reforma instituída em 1931 no curso secundário não traz a marca pessoal de quem lhe deu o nome, que agiu, muito mais como político, tentando conciliar as tendências emanadas dos diversos pensamentos educacionais da época, do que propriamente como educador.
Nesse contexto, Euclides Roxo, então diretor do Colégio Pedro II,
aproveitando-se da importância de seu cargo, conseguiu estender, a todo
208
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
o país, as inovações que vinha implantando progressivamente no referido educandário, bem como defendendo por meio de artigos publicados
na imprensa.
As idéias de Euclides Roxo diziam respeito, basicamente, à fusão
dos diferentes ramos da matemática, interligando-os em uma única disciplina, à reestruturação de todo o currículo em torno do conceito de
função e à introdução de noções de cálculo diferencial e integral para
todos os alunos do secundário. Na verdade, ele estava muito bem informado de todas as discussões sobre o ensino da matemática que ocorriam, em maior ou menor grau, em vários países importantes do mundo.
Além disso, estava a par de todas as atividades desenvolvidas pela “Comissão Internacional para o Ensino da Matemática”4, criada em abril de
1908, no Quarto Congresso Internacional de Matemática, com vistas a
reunir esforços para a renovação do ensino da matemática. As principais influências sofridas pelo professor Euclides Roxo originaram-se de
Felix Klein (1849-1925) – matemático alemão e primeiro presidente da
citada comissão – com relação às idéias por ele defendidas, e de Ernst
Breslich, na elaboração dos compêndios de acordo com as novas diretrizes. Ao analisar as tendências da reforma que tomou conta de vários
países no início do século XX, Felix Klein chegou aos seguintes aspectos principais: a) predominância essencial do ponto de vista psicológico; b) dependência da escolha da matéria a ensinar em relação às aplicações da matemática ao conjunto das outras disciplinas; e c) subordinação
da finalidade do ensino às diretrizes culturais de nossa época. Tais tendências referem-se a três questões vitais em educação: a metodologia,
que está relacionada a quem ensinar e de que maneira; a seleção da
doutrina, ou seja, quais critérios devem ser utilizados na escolha dos
conteúdos dos programas; e, por último, a finalidade do ensino, que
está intimamente ligada às aplicações do que é aprendido, adequando-o
às necessidades dos indivíduos.
Sintetizando, o professor Euclides Roxo tirou proveito da posição
que ocupava na estrutura educacional do país, a qual lhe proporcionava
4.
Mais conhecida, na época, pela sigla IMUK (Internationale mathematische
Unterrichtskommission).
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
209
condições de fazer valer suas idéias, e implementou integralmente, pelo
menos na lei, de cima para baixo e sem discussões prévias, todas as
inovações defendidas por Felix Klein.
Padre Arlindo Vieira, jesuíta e reitor do Colégio Santo Inácio, foi
dos mais combativos adversários da Reforma Francisco Campos no que
tange ao ensino secundário de forma geral, e também, particularmente,
em relação aos programas de matemática.
A partir de 1934, o padre Arlindo Vieira passou a publicar artigos,
livros e a proferir conferências, com o intuito de defender o ensino secundário mais voltado às humanidades clássicas, compreendido aqui
como um tipo de ensino que possui como principal objetivo o estudo da
língua e da literatura dos antigos (latim e grego). Além disso, combatia
veementemente o que denominava “falência do nosso ensino secundário”, argumentando contra o seu caráter enciclopédico, inclusive no que
tange ao ensino da matemática, bem como contra a especialização prematura do secundário em cursos complementares. Alegava, também,
um excessivo controle federal exercido com a fiscalização dos estabelecimentos de ensino secundário, instituída pela Reforma Campos.
Suas críticas eram sempre feitas em linguagem grandiloqüente, pomposa, até mesmo agressiva em alguns momentos, e sua fundamentação
era realizada por meio de comparações do nosso sistema de ensino secundário com o de países estrangeiros, notadamente os por ele considerados mais civilizados. Seus argumentos eram repetidos exaustivamente em toda sua obra, além de serem utilizadas, com freqüência, expressões
do tipo “um ilustre pedagogo [...] fez-me dolorosa confissão [...]” (Vieira,
1934); “Escreveu-me a semana passada um dos mais acatados médicos
da capital paulista...” (Vieira, 1936c, p. 95); “Dizem muitos professores:” (Vieira, 1936b) etc., sem que fosse declinado o nome da figura a
que se referia. Em suma, a leitura de sua obra, após alguns artigos, torna-se cansativa e enfadonha. Assim, serão selecionados apenas alguns
trechos que melhor ilustram o seu pensamento, tanto em relação ao curso secundário em geral, quanto particularmente ao ensino da matemática nesse grau de estudo.
Relativamente ao enciclopedismo do currículo trazido pela Reforma Francisco Campos:
210
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
O que nos falta, e já há muito nos vem faltando, é um programa racional,
alijado desse enciclopedismo superficial, um programa que vise antes de tudo
à formação intelectual da juventude, que lhes desenvolva a inteligência gradualmente, habituando-a à reflexão, tornando-a apta para, mais tarde, assimilar, nos cursos superiores, as matérias em que devem especializar-se.
Ora, é óbvio, é patente que a isto se opõe formalmente o pedantismo dos
programas oficiais, que parecem não ter em vista outra coisa senão injetar na
cabeça dos nossos pobres alunos uma série de conhecimentos, úteis sem dúvida, mas que de modo algum contribuem para a formação dessas tenras
inteligências, que se sentem oprimidas pelo acúmulo de lições sobre 9, 10,
11 disciplinas que devem, não digo assimilar, mas decorar cada semana, para
se esquecerem de tudo alguns dias após.
À força de querer fazer dos nossos alunos ilustres enciclopedistas e sábios
em miniatura, convertemo-los em grandes ignorantes.
Os próprios rapazes, pelo menos os mais sensatos, não se deixam iludir
por esse fantasma de erudição.
Então, você tem 10 matérias na quarta série? disse eu, ao iniciar-se o ano
letivo a um dos meus melhores discípulos. “Onze, atalhou ele, e infelizmente, tanta coisa para afinal a gente não aprender nada”. Quanta tristeza despertou em mim esta sábia advertência [Vieira, 1934, grifos meus].
Comentando um livro sobre o Brasil, escrito por um francês, Louis
Mouralis, padre Arlindo Vieira argumenta contra a ingerência do Estado no ensino secundário e faz um verdadeiro libelo contra o sistema de
inspeção aos estabelecimentos de ensino secundário, criado pela Reforma Francisco Campos:
Que diria o autor se tivesse prolongado sua permanência no Brasil para
assistir à comédia das provas parciais? O sorteio dos pontos, decorados pelos
mais diligentes ou cuidadosamente transcritos em longas tiras de papel pelos
que não quiseram dar-se ao trabalho de os meter na cabeça; as questões formuladas, a correção das provas pelo professor, a suposta correção por um
segundo professor, a revisão pela inspetoria regional e outras mil formalidades ou ninharias que irritam um educador consciencioso e provocam a irrisão
dos observadores estrangeiros.
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
211
[...]
O exército de inspetores e sub-inspetores; a burocracia detestável que converte as secretarias dos estabelecimentos de ensino em fábricas que consomem tanto papel, tanto tempo, tanto dinheiro e tantas energias preciosas; os
abusos lamentáveis que se registram com freqüência aqui e ali, conforme
declarações feitas à imprensa pela própria Diretoria do Ensino; a completa
desmoralização do ensino, conseqüência inevitável desse formalismo ridículo e mil outras misérias que tanto depõem contra os nossos fóros de povo
civilizado! [Vieira, 1936d, pp. 115-116].
A diferenciação no ensino secundário, advinda da Reforma Campos, com a criação dos cursos complementares, também não contava
com a simpatia do combativo sacerdote:
A extensão do curso ginasial foi uma idéia feliz, mas a dissecação do curso
complementar em três ramos diversos é um despropósito de todo injustificável.
[...]
Esse curso complementar, organizado como está, traz consigo todas as
conseqüências desastrosas da especialização prematura, inimiga da cultura
geral, sólida e ampla [Vieira, 1936c, p. 72].
A solução para esses problemas do curso secundário brasileiro era,
segundo o padre Arlindo Vieira, única – o retorno ao ensino clássico:
O remédio, o único remédio é refundir os programas atuais nos moldes
dos estudos clássicos. Não são as novas reformas no estilo do sistema atual
que nos hão de tirar dessa situação angustiosa. Podemos multiplicá-las indefinidamente: – como as precedentes, não surtirão outro efeito, senão este, de
aumentar a balbúrdia atualmente reinante.
As experiências feitas (e que tristes experiências!) deveriam abrir os olhos
dos que se interessam pelo magno problema do ensino e fazer-lhes ver que
não nos resta senão repudiar de uma vez para sempre esse pedantismo de
uma cultura generalizada, ou melhor, de uma ignorância especializada, que
estiola e mata as mais belas energias da nossa mocidade.
[...]
212
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Não pretendemos negar que também nos países da Velha Europa haja deficiências em matéria de ensino. Mas é inegável que, onde estão em vigor os
estudos clássicos, há sempre uma elite respeitável que mantém as belas letras e as ciências em nível que estamos longe de atingir e nem atingiremos
jamais, enquanto o nosso ensino continuar a ser o que tem sido até hoje
[Vieira, 1934].
O ensino da matemática era também criticado pelo padre Arlindo
Vieira. Essa crítica era seguidamente realizada por meio de comparações com os programas de outros países ditos por ele mais civilizados
do que o Brasil. A conclusão a que ele chegava era sempre a mesma:
nossos programas de matemática eram mais complexos e extensos do
que os dos países que ele utilizava como paradigmas. A seguir, é apresentado um trecho de suas conclusões, após a comparação, por ele realizada, entre os programas brasileiros de matemática do curso fundamental e os dos cinco primeiros anos dos ginásios franceses:
Que diriam, pergunto eu, os educadores europeus, fossem eles belgas ou
italianos, alemães ou ingleses, que diriam se examinassem os nossos programas de Matemática?
Isto é maravilhoso! Exclamariam sem dúvida.
Esses jovens brasileiros devem ser um portento! É possível que sejam de
uma natureza superior à nossa... De outro modo não se poderia conceber
tamanha capacidade intelectual!
É verdadeiramente ridículo o papel que fazemos com os nossos programas
fantásticos. Serão porventura nossos alunos tão privilegiados que fujam à
regra comum?
Creio que não há exagero em afirmar que, quanto à inteligência, nada têm
eles de invejar à juventude européia; mas dar-lhes uma preeminência, que os
fatos não justificam, seria presunção ridícula [Vieira, 1936c, p. 149].
Vale observar que o padre Arlindo Vieira não era favorável ao método preconizado pelo professor Euclides Roxo, no qual o ensino de um
assunto deveria ser iniciado a partir do intuitivo e do concreto para, aos
poucos, atingir-se sua exposição mais abstrata e formal. Por exemplo, o
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
213
ensino da geometria dedutiva deveria ser precedido de um curso propedêutico, em que os assuntos seriam apresentados de forma intuitiva,
experimental e construtiva. Isso justifica, é óbvio, o fato de muitos dos
assuntos a serem estudados aparecerem em várias séries do curso, respeitando o grau de desenvolvimento mental do aluno e as suas aptidões.
O polêmico jesuíta denominava esse tipo de ensino de “sistema de ciclos” e o considerava desastroso. De sua postura em relação a esse método, pode-se inferir que ele não concordava com a fusão dos diversos
ramos que compõem a matemática. A seguir, é apresentado um trecho
escrito pelo padre Arlindo Vieira, com sua linguagem característica, em
que se observa sua opinião a esse respeito:
A conseqüência inevitável de tais programas é a mais desanimadora superficialidade. Só a isso pode levar o desastroso sistema de ciclos. Ensinei Matemática, em 1928, a uma turma de vinte e quatro rapazes do quarto ano.
O programa versava exclusivamente sobre geometria.
Com quatro aulas por semana, cheguei a dar-lhes os sete primeiros livros
do F.I.C. e algumas noções sobre as curvas usuais.
[...]
No ano seguinte, a fim de interessá-los mais pelo estudo da Cosmografia,
ensinei-lhes, em algumas aulas suplementares, a deduzir as fórmulas principais da trigonometria, a usar as tábuas de logaritmos e a resolver os triângulos retângulos e obliquângulos.
Como tinham bons princípios de geometria, esse trabalho foi rápido e seguro.
[...]
Mas o que ninguém pode negar é que nossos programas cíclicos e excessivamente carregados não se adaptam de nenhum modo à capacidade intelectual de meninos de 11 a 15 anos e os desnorteiam completamente com essa
iniciação prematura de elementos de álgebra, geometria e trigonometria. [idem,
pp. 149-150].
Os dois aspectos, alvos das críticas feitas às mudanças no ensino da
matemática – sistema cíclico e fusão das partes da matemática –, não
receberam a mesma ênfase que o acúmulo de conteúdos, na obra de
Arlindo Vieira, o qual considerava o caráter enciclopédico como o pro-
214
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
blema mais grave dos programas de matemática instituídos pela Reforma Francisco Campos. Dessa forma, para ele, a melhoria do ensino somente ocorreria a partir da redução e simplificação dos conteúdos dos
programas de matemática, como pode ser observado nas sugestões dadas pelo eminente sacerdote, em relação aos programas dessa matéria
no curso fundamental:
Quais as medidas urgentes que devem ser tomadas? Não se trata aqui de
concertar o que não tem concerto, mas tão somente de tornar menos prejudicial o programa do curso fundamental.
Quanto à Matemática o programa deve ser não só simplificado, mas refundido completamente.
Esses programas são o terror de professores e alunos. Na 1ª e 2ª série não
deve haver mais que a Aritmética. O programa de Álgebra da 5ª série: Derivadas, desenvolvimento em série etc. deve ser excluído do curso fundamental. Tudo isso é pura perda de tempo. Os alunos, quase sem exceção, não
compreendem nada. O programa de Álgebra e Geometria das 2ª, 3ª e 4ª séries – deverá ser gradualmente desenvolvido nas três ultimas séries com algumas noções elementares de Trigonometria [Vieira, 1936d, p. 372].
Outra importante manifestação contrária às inovações implementadas
nos programas de matemática veio dos colégios militares. Em 1937, foi
publicado um livreto chamado Os programas oficiais referentes ao ensino de matemática elementar, impresso por Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil que, na verdade, trata-se de um verdadeiro manifesto contra as idéias defendidas por Euclides Roxo e acolhidas pela Reforma
Francisco Campos. Esse documento foi assinado pelos seguintes professores: Armando Godoy, Octavio Saint-Jean Gomes, Elias Coelho
Cintra, José Pires de Carvalho Alburqueque, Dario Tito Castello Branco, Astorico de Queiroz, Alfredo Severo, Heitor Cajahy, Arthur Paulino
de Souza, Alanso de Oliveira, Heitor Alberto Carlos, Augusto de Araújo
Doria, Victalina Thomas Alves, Carlos Sussekind, Francisco F. A. Reis,
Pedro M. Serra, Clarindo Mey, Alexandre Barreto, Anthero M. Leal,
Ataulpho Eudes de Andrade e José Maria de Castro Neves.
Logo no início do texto, fica claro que as alterações na matemática
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
215
do secundário, efetuadas há seis anos pela Reforma Campos, não tinham até então sido implementadas, e seriam adaptadas para adoção
nos colégios militares:
Há anos a esta parte, mercê de uma nova orientação, operou-se uma modificação profunda nos programas que regulam o ensino da Matemática elementar nos nossos estabelecimentos civis de instrução secundária. Tal modificação, entretanto, não logrou se impor e será adaptada nos colégios militares.
Na qualidade de membros do corpo docente do mais antigo desses colégios,
julgamo-nos no dever de justificar a feliz orientação dos que influíram no
sentido de se evitar, com relação ao ensino da Matemática elementar, que a
juventude instruída nos mencionados colégios viesse a sofrer os males e os
inconvenientes observados na formação intelectual dos que são vítimas do
infeliz ponto de vista que promoveu e presidiu a organização dos programas
referentes à citada matéria e adaptados nos institutos de ensino subordinados
ao Ministério da Educação [Godoy et al., 1937, p. 3].
A partir disso, o manifesto buscou mostrar que o ensino concreto e
intuitivo deve se limitar ao curso primário e, que a partir do secundário,
deve ser dada importância à ordenação lógica que a matemática adquiriu com seu desenvolvimento histórico. Além disso, as aplicações práticas da matemática, tão defendidas por Euclides Roxo, deveriam ser
relegadas a segundo plano, uma vez que a primazia era para o ensino
lógico, com maior preocupação com o método, de forma que desenvolvesse o espírito do estudante, dando-lhe a disciplina mental necessária à
obtenção de uma sólida cultura geral:
Antes de mais nada, precisamos lembrar os três graus ou etapas em que se
divide a instrução bem orientada: a primária, a secundária e a superior. Na
primeira fase o ensino tem um caráter concreto e objetivo. Nem podia deixar
de ser assim, uma vez que, no aparelhamento e na educação mental da criança, não se pode abstrair das suas condições intelectuais, que estão subordinadas à idade e ao desenvolvimento físico. Na primeira etapa do ensino ministra-se ao cérebro da criança uma série de noções do domínio da Matemática,
da astronomia, da física, da química e da biologia, porém ensinadas concre-
216
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
tamente. As apreciações de que é suscetível o cérebro juvenil pouco além
vão do campo da contemplação concreta. Repetindo a nossa espécie na primeira fase da civilização, no início do estudo da ordem exterior, a criança
não pode destacar bem os fenômenos uns dos outros, só podendo observálos em conjunto como se lhe apresentam nos corpos. A abstração nos seus
surtos iniciais só se manifestou criando grandes coisas muito tarde, no período intelectual grego.
No período inicial do ensino, a criança pode aprender as diferentes operações, o cálculo de frações, algumas propriedades dos números, as diferentes
formas e tipos geométricos, não se a obrigando senão ao que lhe permite o
cérebro, isto é, a raciocínios muito simples. Lições de coisas, como bem diz
a expressão, é o que pode receber o cérebro infantil na primeira etapa da sua
instrução, a qual, nesse grau, se devem limitar as escolas de ensino primário.
Como nesta fase o ensino tem um caráter objetivo, seria absurdo e irracional
nele se iniciar o estudo conveniente da Matemática elementar de acordo com
o método dogmático, isto é, respeitando a sistematização lógica que o espírito humano realizou no campo da ciência fundamental.
Na segunda etapa do ensino, em que se ministra a instrução secundária, a
qual só é possível depois de uma certa idade e após a criança haver adquirido
os conhecimentos iniciais, é que se lhe pode dar a cultura Matemática indispensável ao estudo do cálculo transcendente, da mecânica e das outras ciências. Nessa fase como que é levado a repetir, em diminuta escala, os esforços
do espírito humano na instituição do cálculo e da geometria elementar. A
ordem e a bela concatenação que resultaram da evolução intelectual nesse
estudo da ciência do número, da extensão e do movimento. A sistematização,
a sucessão lógica e o aperfeiçoamento com que o espírito humano levantou o
edifício da Matemática, tão sólido na sua fundação quão deslumbrante e belo
nas suas linhas dominantes, são como que sagrados e devem ser seguidos
como indispensáveis a uma perfeita educação mental. Desde a mais remota
antiguidade, a sistematização que nos mostra a ciência fundamental foi iniciada mediante esforços de vários matemáticos, entre eles Hipócrates de Quios
e Euclides.
[...]
As influências mentais do estudo conveniente da Matemática são consideráveis, pois, entre outros elementos, dela faz parte a geometria, que na
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
217
sucessão lógica de uma vasta cadeia de conseqüências, deduzidas de um
número reduzido de princípios fundamentais, nos dá o modelo da verdadeira ciência.
A desordem na apresentação dos fatos matemáticos, com desobediência
das relações de dependência entre eles existentes, não pode dar lugar à necessária educação do raciocínio – principal objeto da ciência fundamental –
que se nos oferece como o campo mais propício para a cultura das nossas
faculdades lógicas. Visto como, no domínio da ciência inicial, os fenômenos
nele estudados são os mais simples e gerais, pode o espírito humano na sua
apreciação voltar-se mais para o método do que para a doutrina. Daí constituir o estudo da Matemática o melhor meio de se iniciar a educação mental
do homem e de se lhe dar a indispensável disciplina intelectual, de que há
sempre necessidade, sem o que não se pode conseguir uma cultura completa
bem orientada. É por isso que a ciência inicial é mais importante sob o ponto
de vista lógico do que científico. A sua beleza e importância ficariam diminuídas se o seu estudo tivesse por fim único habilitar-nos à solução dos problemas de que ele se ocupa [idem, pp. 3-6].
Observa-se que os autores do manifesto utilizam-se de um discurso
amparado em idéias positivistas para fundamentar seus posicionamentos.
E continuam no mesmo tom, ou seja, utilizando-se da mesma ideologia,
para efetuar, no modo de entender do autor desta pesquisa, a principal
crítica realizada aos programas elaborados por Euclides Roxo. Tal crítica refere-se à fusão entre os diversos ramos da matemática, que levou
ao ensino, em todas as séries do curso fundamental, da geometria (incluída a trigonometria), da álgebra e da aritmética. Os assinantes do
manifesto apoiavam-se no fato de a “[...] ordem didática tradicional aproximar-se muito da ordem geral dos programas da escola positivista”
(Vianna, s.d., p. 12). O trecho a seguir ilustra essa crítica:
Toda a ciência e a indústria de que hoje se pode orgulhar a humanidade,
não teriam tido o desenvolvimento que alcançaram, se a nossa espécie, pelo
órgão de seus mais ilustres filhos, não tivesse trilhado o caminho que a nossa
constituição cerebral e a ordem de pendência dos fenômenos lhe impuseram.
Dele não se devem afastar os programas de ensino, a menos que não queira
218
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seguir a estrada suave indicada pelo método positivo, isto é, a que fatiga
menos o espírito, é mais fecunda e proporciona melhores resultados.
Não é possível estudar-se convenientemente álgebra sem a necessária preocupação aritmética, uma vez que é só no domínio do cálculo dos valores
que se habilita o espírito do aluno para as generalizações que reclama o estudo das funções, objeto daquela parte da Matemática. Quando na aritmética
são instituídas as regras relativas às operações numéricas, inicia-se a abstração dos valores das grandezas, abstração que é completada com a da espécie
no campo algébrico. Impossível é o estudo da ciência do espaço sem a preparação conveniente nos dois cálculos: o dos valores e o das relações. Sim,
porque a todo instante o estudo da geometria reclama a contribuição da álgebra e da aritmética. Portanto, nos cursos de Matemática elementar, a progressão seguinte se impõe: aritmética, álgebra e geometria. Essa progressão
deve ser respeitada, se objetiva dar ao espírito do aluno uma base lógica
[Godoy et al., 1937, pp. 6-7, grifos meus].
É claro que não se podiam furtar à realização de algum comentário
e à exemplificação de como as coisas se passavam em algum país mais
“desenvolvido” do que o Brasil:
Se o que a história e a constituição da ciência, bem como o bom senso
ensinaram não basta e é preciso, para se encontrar eco em nossa terra, invocarem-se exemplos vindos de terras estranhas, cremos que, a tal respeito, a
nossa orientação é confirmada pelo que, no campo da instrução, se observa
em países adiantados. São inúmeros os compêndios de Matemática modernos em que se respeita a ordem de dependência dos fenômenos e, portanto,
se consagram o seu encadeamento e sucessão lógica. Um dos cursos modernos de Matemática é o que tem por autor o reputado mestre J.E. Thompson,
do Instituto Pratt, nos Estados Unidos. A obra em questão foi editada pela
primeira vez em 1931. O seu título é “Mathematics for self study”. As edições se sucedem a curtos intervalos e, não obstante se tratar de um curso
escrito para o estudo da matéria sem mestre, não se misturam os assuntos e
se respeita a ordem clássica. “Arithmetic”, “Algebra”, “Geometry”,
“Trigonometry” e “Calculus” são os títulos dos cinco volumes [idem, p. 7].
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
219
Os professores das escolas militares dão seqüência à sua exposição,
apontando mais uma falha que acreditavam haver nos programas de
matemática do curso secundário. Para eles, tais programas eram consideravelmente extensos, tornando-se necessária uma limitação nos assuntos a serem ministrados:
O que também se faz necessário é reduzirem-se os programas, limitandoos ao que é geral e indispensável, de maneira que haja tempo para se dar o
essencial convenientemente, em maior número de lições, de modo que o aluno possa fixar os principais resultados. No ensino tudo se deve fazer para se
simplificar e facilitar o estudo das matérias. Não adianta nada dilatarem-se
enormemente os programas, como se tem feito entre nós, se não há tempo
para ensiná-los convenientemente. Sigamos o exemplo norte-americano. Nos
Estados Unidos se tem reduzido o estudo das múltiplas disciplinas ao que é
indispensável e ao que o cérebro do aluno médio pode receber em um determinado tempo. Os mestres norte-americanos tudo tentam para evitar que o
estudante venha a desanimar.
Por exemplo, o estudo das seções cônicas é limitado às propriedades principais e só se exige um processo para a dedução da fórmula para a resolução
das equações do segundo grau.
Em conseqüência de se terem aumentados consideravelmente os programas e o número de matérias, a instrução secundária, cujo alto destino não é
necessário encarecer, sobremodo tem sofrido, está muito reduzida em seus
efeitos, e acusa um desnível crescente. Quanto mais dilatados e anarquizados
os programas e maior o número de disciplinas, tanto mais insignificantes os
resultados colhidos [idem, pp. 7-8].
O manifesto é encerrado com uma declaração de apoio ao professor
Joaquim I. de Almeida Lisboa que foi o principal crítico das mudanças
no ensino da matemática, ocorridas em 1929, quando das alterações
implementadas no curso secundário do Colégio Pedro II:
Que as considerações despretensiosas que aí ficam e fizemos com o alto
propósito de secundar a nobre e inteligente campanha do ilustrado professor
Joaquim de Almeida Lisboa, encontre eco entre os que têm a tremenda res-
220
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
ponsabilidade de influir sobre a organização dos programas de ensino, na
parte concernente à matéria de que mais depende uma eficiente e boa formação intelectual [idem, pp. 8-9].
Joaquim de Almeida Lisboa volta, nos anos de 1935 e 1936, a atacar
as idéias que o professor Euclides Roxo conseguiu que prevalecessem,
a partir da Reforma Campos, nos programas dos cursos secundários,
por meio de alguns artigos veiculados na imprensa, principalmente no
Jornal do Commercio.
O interessante é que o padre Arlindo Vieira também se utiliza do
nome do professor Almeida Lisboa para corroborar sua luta contra o
programas de matemática. Isso é feito por meio da citação de trechos,
que interessavam ao ilustre padre, de um artigo escrito por Almeida
Lisboa, em 18 de agosto de 1935, no Diário de Notícias. Vale a pena
transcrever as palavras de Almeida Lisboa citadas pelo padre Arlindo
Vieira, pois demonstram que antigo professor catedrático continuava
defendendo o ensino clássico da matemática. Reafirma também o seu
elitismo e preconceito em relação ao fato de essas idéias reformadoras
serem advindas das escolas técnicas profissionais, o que, para ele, um
cultor de Euclides, era um verdadeiro absurdo, pois as “elites dirigentes” estariam sendo formadas a partir de uma matemática gerada, primordialmente, para atender às necessidades práticas surgidas ante uma
sociedade em mudanças. Além disso, ao afirmar que o movimento era
só brasileiro, cometia uma grave injustiça, pois essa nova forma de ensinar a matemática surgiu na Alemanha e espalhou-se por todos os países industrializados do mundo:
A Matemática desapareceu do ensino secundário. Eis o triste resultado do
que se chama enfatuadamente “a moderna orientação do ensino da Matemática”, e é apenas uma orientação brasileira, atestando a nossa incompetência pedagógica. As verdadeiras demonstrações, os raciocínios perfeitos, o
rigor e a lógica da ciência, tudo o que faz a beleza e a imensa utilidade da
Matemática foi abolido do ensino oficial.
Nos programas oficiais brasileiros, não há mais nem teoria, nem rigor matemático.
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
Reduziu-se tudo a uma pequena coleção de receitas. E o aluno que aprendeu
uma delas e resolveu um desses problemas para jardineiros não sabe tratar
outros análogos, que só diferem do primeiro por insignificantes modificações:
desconhece a teoria que lhe mostraria o caminho seguro para atingir a solução
procurada. Estudou curiosidades; não sabe Matemática e não raciocina.
[...]
Os livros que obedecem a esta falsa diretriz são simples inventários de
fatos isolados, de exercícios infantis, de noções erradas, livros que envenenam a mocidade em vez de lhe inspirar o amor da ciência e o hábito do
estudo.
[...] Os que pretendem realmente aprender, nada encontram nessas páginas
vazias.
[...] Em geral, os autores que seguem os atuais programas oficiais, tomaram
por modelo livros americanos ou alemães, para escolas profissionais elementares. E é isso que impingem, no Brasil, aos estudantes do curso secundário!
[...] Querem restringir as possibilidades incalculáveis das novas gerações a
um mundo sem pensamento, nem imaginação [apud Vieira, 1936c, pp. 208209, grifos meus].
O ensino secundário não tem por objetivo formar homens práticos, função das escolas profissionais ou técnicas. Seu alcance é maior: é a primeira
seleção de intelectuais. São estes que fazem a grandeza de um povo [...] O
Brasil precisa de homens competentes que o levem a um brilhante futuro e é
na escola secundária que se iniciam os condutores de homens.
A instrução secundária, porém, tem outro destino e não pode ser superficial:
deve ser ministrada solidamente, devagar. Os incapazes de um estudo sério
prestarão enormes serviços ao país, dedicando-se a misteres independentes
das ciências e das letras. Os doutores que mal sabem ler constituem uma das
pragas que nos afligem.
[...]
Teremos ainda durante muito tempo inúmeros analfabetos. Pouco importa!
Formemos uma elite intelectual, onde o Brasil irá buscar os impulsores de seu
progresso e, nas horas graves de crise, os seus salvadores. E esta elite, nós a
criaremos em algumas dezenas de anos. O ensino se desenvolverá então das
camadas superiores para as inferiores. O primeiro passo a dar é a remodelação
do ensino secundário, alicerce indispensável da nossa grandeza.
221
222
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
[...]
Ora, entre nós, o ensino secundário vai morrendo ou já morreu. Nada se
estuda; nada se ensina [apud Vieira, 1936c, pp. 245-246, grifos meus].
Apesar de tanto os professores do exército quanto o padre Arlindo
Vieira terem se utilizado da figura do professor Almeida Lisboa e, embora tenham pontos em comum, principalmente quanto ao fato de todos
eles possuírem visões elitistas e conservadoras, pode-se afirmar que,
pelo menos com relação ao ensino da matemática, eles representavam
três tendências distintas, mesmo sabendo que as fronteiras entre elas
não eram muito bem delineadas. Dessa forma, procurar-se-á assinalar
essas diferenças, tomando por base a questão a que davam maior ênfase, quando dos ataques dirigidos à nova orientação do ensino da matemática.
Os professores dos colégios militares, embasados em uma orientação positivista5, ressaltavam a importância de retornar-se à matemática
escolar anterior às inovações, isto é, mantendo o ensino dos ramos dessa disciplina de forma estanque, e obedecendo à ordem, para eles determinada pela história, em que se deveria ensinar primeiramente a aritmética, depois a álgebra e, finalmente, a geometria (incluída a
trigonometria). A despeito de o padre Arlindo Vieira ter se posicionado
de maneira dispersa em sua obra, a favor do ensino separado, essa nunca foi a sua principal preocupação. Em contrapartida, Almeida Lisboa
diz em um de seus artigos, integrante da polêmica que manteve com
Euclides Roxo, sobre as inovações curriculares implantadas, em 1929,
no Colégio Pedro II:
Nunca fui partidário da separação absoluta do ensino dos diferentes ramos
da Matemática. Eles prestam-se mútuo auxílio e nada mais interessante e útil
do que fazer aplicações da Álgebra à Geometria, interpretar os teoremas e
5.
Para um interessante texto que procura responder à pergunta se, de fato, “[...] existiu, em algum momento da história da educação brasileira, uma matemática escolar positivista?”, ver Valente, 2000.
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
223
problemas da Álgebra ou da Aritmética por considerações geométricas e
empregar as teorias abstratas da Matemática à Astronomia, à Física e à Mecânica [Lisboa, 1930].
A principal divergência entre o padre Arlindo Vieira e o professor
Almeida Lisboa é que o primeiro privilegiava a língua e a literatura
greco-latina, com ênfase no ensino do latim, na formação da elite dirigente do país, e o segundo realçava o ensino da matemática com os
mesmos objetivos elitistas. Entretanto, a melhor descrição dessas diferenças e, pode-se dizer, dos pontos em comum entre os pensamentos
dos dois educadores, foi feita por eles mesmos, nas páginas do Jornal
do Commercio.
Joaquim de Almeida Lisboa questiona o padre Arlindo Vieira a
respeito de uma comparação feita por esse último entre os programas
do curso fundamental (implantados por Francisco Campos) e os do
ginásio italiano:
O padre Arlindo Vieira empenhou-se em combate contra aquilo que, por
irrisão, se chama o nosso ensino secundário. A erudição do batalhador, a
lógica de sua argumentação, os fatos que cita, mostram a miséria intelectual
a que chegamos e o triste destino do Brasil, governado amanhã por homens
desprovidos de cultura e de elevados ideais. As negras cores com que o padre
pinta o humilhante espetáculo ainda são insuficientes para traduzir o mal que
nos aflige. Não há pena capaz de descrever este amontoado de disparates,
esta salada de perfumarias baratas e molhos falsificados, cocaína que rotulamos com o nome de Ensino Secundário.
Mas o ilustre padre exagera as vantagens do estudo do Latim sobre as de
qualquer outra disciplina do espírito. Não lhe basta o predomínio da nobre
língua: quer a sua exclusividade. Ora, a Matemática não é menos instrutiva
ou necessária do que o Latim. Ela é, como ele, um fecundo exercício da
inteligência. É um pensamento contínuo. A Matemática encerra puríssimas
belezas, gemas tão preciosas e fulgurantes quanto as mais ricas jóias de Cícero
ou Virgílio. E mais do que o Latim, é fonte inesgotável de infinitas aplicações e de imprevistos e maravilhosos inventos.
No seu plano de ensino secundário, deveria o padre Arlindo Vieira, ao lado
224
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
do Latim, reservar um lugar de honra para a Matemática. Entretanto, bate-se
contra o grande número de horas que semanalmente lhe são destinadas e
contra a vastidão enciclopédica de seus programas – A eloqüência do padre,
suas múltiplas e esmagadoras comparações, sua vontade férrea de só fazer
sobressair o Latim, constituem um perigo para o futuro ensino daquela ciência fundamental. E o eminente educador não tem razão.
Os nossos programas de Matemática nada têm de vastos, nem de pomposos, ou enciclopédicos! São apenas ridículos. Os sábios professores estrangeiros que os percorrerem não ficarão espantados, como pensa o padre Arlindo
Vieira, pela imensidade do que se exige do estudante brasileiro. Eles rirão
somente; e rirão por motivos opostos aos que o padre supõe. E se folhearem
também os livros de Matemática que destinamos à mocidade, e onde se desenvolvem esses programas, reconhecerão logo que não pode haver ensino
onde não há professores. Não sabem, nem sequer suspeitam, que aqui se
disputam os lugares do magistério como cargos eleitorais [...]6 [Vieira, 1936,
grifos meus].
A resposta a esse artigo veio logo no domingo seguinte. O combativo
sacerdote, no trecho a seguir, manifesta, de maneira clara, sua opinião
sobre o ensino da matemática e do latim no ensino secundário. Em pleno século XX, ele ainda possuía a nostalgia do ensino humanístico das
primeiras escolas jesuítas7:
6.
7.
Nesse artigo, Almeida Lisboa criticou o ensino da matemática na Escola Politécnica. Esse fato provocou uma resposta do então diretor daquela instituição, Ruy de
Lima e Silva, por meio de uma carta enviada ao mesmo jornal e publicada em 6 de
maio de 1936.
“Podemos tomar as considerações de Leite – sem concordar exatamente com suas
razões [...] como bem reveladoras de que de fato não se estabeleceu desde os jesuítas uma matriz, uma origem para o desenvolvimento do que posteriormente constitui-se na Matemática escolar [...] Ocupar-se das ciências e da Matemática em particular, roubaria tempo importante dos estudos das letras, essas sim, consideradas
relevantes para a formação o homem [...] tudo leva a crer, enfim, apesar dos poucos
conhecimentos que temos sobre o tema, que as ciências e em particular a Matemática não constituíram, ao longo dos duzentos anos de escolarização jesuítica no
Brasil, um elemento integrante da cultura escolar e formação daqueles que aos
colégios da Cia. de Jesus acorriam” [Valente, 1997, pp. 27-28].
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
A exposição que acabo de fazer deve tranqüilizar os cultores da Matemática. Não pretendo dilapidar o ensino dessa bela ciência.
Propugnando por uma sábia organização dos programas de Matemática, a
exemplo da Itália, da França e da Bélgica, é evidente que ponho a salvo os
interesses da nossa cultura. Haveria razão para temer, se eu confrontasse
nossos programas com os de alguma obscura república da América ou dos
povos semi-analfabetos da África.
Este artigo e o precedente se resumem nestas palavras: – Levantemos os
olhos para mais alto! Vejamos quais são as normas seguidas no ensino da
Matemática e das ciências pelos países mais cultos do mundo e não temamos
seguir-lhes os exemplos.
Quanto à insistência com que me bato pelo predomínio do latim no ensino
secundário, não há nada que admirar. Assim fazem esses povos que marcham na vanguarda do progresso.
Ninguém pode contestar o interesse prático da Matemática, nem tão pouco
seu inestimável valor educativo.
Menos contestável ainda é o valor educativo do latim como já o demonstrei em um longo artigo.
Neste particular leva o latim as palmas à própria Matemática. Referindose à Matemática, escreveu Carbonel:
“Considerando a natureza destas disciplinas, é evidente que não servem
para educar a memória (que outro maior vício pudera dar-se que o memorismo
em Matemática?); e muito menos a sensibilidade. É verdade que a geometria
do espaço exige certo exercício de imaginação.
Mas, quão mesquinho! quão passivo! O arquiteto que não educar sua fantasia com outro estudo além da Matemática, poderá talvez competir com os
construtores das pirâmides, mas nada ter que ver com os artífices do Partenon.
Não será trabalho para ele. Será um edificador, mas não um arquiteto, no
sentido que dão a essa palavra todos os que colocam a arquitetura no coro
das belas artes”.
[...]
Que dizer dos grandes matemáticos franceses Poincaré, Henri-le-Chatelier,
Hermite etc? Já me referi aos matemáticos italianos. Todos condenam um
estudo especializado da Matemática no curso secundário. Dando-lhe o lugar que lhe compete nesse ensino, advogam um estudo intenso e demorado
225
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
das letras, mormente do latim, cujo poder formativo é incomparável [Vieira,
1936b, grifos meus].
Em suma, podem-se distinguir três linhas de pensamento no combate às renovações introduzidas na década de 1930 na matemática escolar
do curso secundário, não obstante terem vários pontos em comum. Uma,
representada pelos professores das escolas militares, que priorizavam,
baseados em “idéias positivistas”, a matemática escolar tradicional, isto
é, dividida em seus ramos básicos e obedecendo à seqüência clássica:
aritmética, álgebra e geometria. Outra, cujo principal personagem era o
padre Arlindo Vieira8, que criticava os novos programas de matemática,
bem como todo o currículo do secundário, alegando que seu caráter
enciclopédico impedia que fosse dada primazia ao que realmente era
importante na formação da elites: o ensino das humanidades, ou seja,
das letras clássicas, fundamentalmente, o latim. E, por último, a tendência que, embasada nos ideais platônicos, defendia a matemática clássica, que atribuía como verdadeiro objetivo de seu ensino, a formação do
“espírito” do aluno, colocando em segundo plano o seu caráter mais
prático, e que teve em Joaquim Ignácio de Almeida Lisboa, professor
catedrático do Colégio Pedro II, seu mais influente representante.
3. Considerações finais
Ante o exposto, verifica-se que todas as tendências, que disputavam
o controle do sistema educacional, estavam representadas nas discussões a respeito do ensino da matemática. O governo, como já dito, na
reforma do sistema nacional de ensino, refletiu o equilíbrio de forças
que ainda existia entre as tendências em disputa, não se evidenciando a
supremacia de nenhum dos grupos ideológicos em disputa. Com rela-
8.
O padre Arlindo Vieira concedeu uma interessante entrevista, a respeito do “inquérito” sobre o Plano Nacional de Educação, ao “O Jornal”, em 26 de março de 1936,
com o seguinte título: “Um grande inquérito dos ‘Diários Associados’ sobre o Plano Nacional de Educação”.
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
227
ção à matemática encapou todas as idéias assumidas por Euclides Roxo,
partidário da escola nova e ardoroso defensor de uma reforma do ensino
da matemática que tornasse essa ciência mais interessante e útil para os
estudantes, colocando-os no centro do processo ensino-aprendizagem.
Já os professores das escolas militares lutavam para ganhar espaço para
a sua visão autoritária e hierarquizada do seu projeto educacional. Tal
fato refletia-se na defesa do ensino tradicional da matemática, ou seja,
por meio do ensino dos diferentes ramos da matemática, em uma seqüência rígida (aritmética, álgebra e geometria), que coincidia com a
proposta positivista de Auguste Comte. De outro lado, o padre Arlindo
Vieira, com sua tendência a priorizar o ensino das humanidades no curso secundário, em detrimento das matérias ditas científicas, bem como
com sua defesa apaixonada da importância da formação das elites, foi
um representante dos educadores católicos. Finalmente, o catedrático
Almeida Lisboa, com sua defesa do purismo no ensino da matemática,
não pode ser colocado exclusivamente em nenhum dos campos descritos anteriormente. Foi um dos principais combatentes da matemática
escolanovista de Roxo, mas não se enquadrava em nenhuma das outras
tendências, embora tenha sido, por elas, cortejado e usado no combate
às mudanças defendidas por Roxo.
O debate em torno das inovações trazidas com os novos programas
de matemática foi interrompido com o fechamento do Congresso e a
instalação do Estado Novo. A partir de setembro de 1941, Gustavo
Capanema retoma pessoalmente as discussões sobre o tema, coordenando um debate nos bastidores sobre os programas de matemática. No
ensejo, acolheu opiniões e sugestões especialmente do exército, do padre Arlindo Vieira – então auxiliado, na apresentação de propostas a
respeito dos programas, pelos padres Achotegui e Chabassus, professores de matemática do Colégio Santo Inácio – e de Euclides Roxo. Esse
último, mesmo após ter deixado a direção do Colégio Pedro II, continuou a desempenhar papel de liderança, com participação na formulação do ensino de matemática na Reforma Capanema, como mostram os
documentos do Arquivo Gustavo Capanema do CPDOC, na Fundação
Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
A partir dessas discussões é que foram elaborados os programas de
228
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
matemática relativos à Lei Orgânica do Ensino, de abril de 1942, conhecida como Reforma Capanema para o Ensino Secundário. Na exposição
de motivos da referida lei, o ministro Capanema deixa bem clara a finalidade elitista do secundário, ou seja:
O que constitui o caráter específico do ensino secundário é a sua função de
formar nos adolescentes uma sólida cultura geral, marcada pelo cultivo a um
tempo das humanidades antigas e das humanidades clássicas, e bem assim,
de neles acentuar e elevar a consciência patriótica e a consciência humanística
[apud Cunha, 1981, pp. 127-128, grifos meus].
E ainda:
[...] se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos
homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre
o povo [apud Cunha, 1981, p. 128, grifos meus].
A respeito do ensino da matemática, os dois trechos a seguir demonstram que Euclides Roxo precisou “abrir mão” de alguns de seus
ideais de renovação, inclusive no tocante ao ensino das três partes da
matemática a partir da primeira série do ensino secundário:
Devo ainda acentuar que o programa por mim apresentado representa um
considerável recuo em relação ao movimento renovador pelo qual propugnei
a partir de 1928. Elaborei-o, aceitando várias sugestões... [Roxo, s.d.]
Apesar da forte oposição de algumas correntes reacionárias e “soidisant”,
tradicionalistas, manteve V. Ex. o ensino simultâneo da Aritmética e da Geometria nas duas primeiras séries, bem como o da Álgebra e da Geometria
nas duas últimas. Por outro lado, aos cortes e modificações sofridos pelo
projeto de “instruções” que tive a honra de apresentar a V. Ex. escapou,
graças por certo, ao fulgor da sua evidência meridiana, o preceito de que “A
Matemática será sempre considerada como um todo harmônico, cujas partes
estão em íntima correlação” [Roxo, 1942, grifos meus].
debates sobre o ensino da matemática na década de 1930
229
Pela exposição de motivos da lei que instituiu a Reforma Capanema
do ensino secundário, bem como pelas citadas palavras de Euclides Roxo,
pode-se inferir que, provavelmente, a Reforma Capanema foi um retrocesso em relação à Reforma Francisco Campos, instituída 12 anos antes.
Finalizando, fica aqui a seguinte questão: esse debate foi único entre as disciplinas escolares ou igualmente se refletiu em outras e, nesse
caso, quais teriam sido as repercussões no contexto dessas disciplinas?
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Recebido: 30 de ago. de 2003
Aprovado: 29 de abr. de 2005
Modificado:19 de maio de 2005
As representações
dos professores primários
Estratégia política e habitus professoral
Rosario S. Genta Lugli*
Este artigo analisa as formas peculiares pelas quais, durante o século XX, os professores
primários brasileiros buscaram eleger representantes para cargos eletivos. A intenção de
fazer ouvir os seus reclamos em âmbito estatal pela via política choca-se frontalmente
com uma forte e generalizada recusa da “vinculação política” das associações docentes.
Esse paradoxo foi solucionado por meio de práticas e discursos com relação à profissão
que permitem compreender o habitus professoral. São analisados os casos de três associações de professores primários: o Centro do Professorado Paulista de São Paulo, a
Sociedade Unificadora dos Professores Primários da Bahia e o Centro do Professorado
Primário de Pernambuco. Os conceitos estruturantes da análise são de Chartier (representação) e de Bourdieu (campos sociais).
PROFISSÃO DOCENTE; ASSOCIAÇÕES DE PROFESSORES; ENSINO PRIMÁRIO;
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA; SÉCULO XX.
This text aims to analyze the peculiar strategies that were used during the XXth. Century
by teachers’ associations to elect representants to the Legislative Assembly. The intention
to take vindications to the State by political ways collided with the strong rejection of
politics from teachers associations. This paradox was solved by practices and discourses
about the profession that allow us to understand the nature of teachers’ habitus. We
analyze the cases of three elementary teachers associations: the Centro do Professorado
Paulista from São Paulo, the Sociedade Unificadora dos Professores Primários from
Bahia and the Centro do Professorado Primário from Pernambuco. The concepts that
structure this text are from Chartier (representation) and Bourdieu (social fields theory).
TEACHERS ASSOCIATIONS; TEACHERS PROFESSIONALIZATION; ELEMENTARY
SCHOOL; POLITICAL REPRESENTATION; XXTH. CENTURY.
*
Doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(USP), professora na Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN) – mestrado
em educação. Projeto de pesquisa atualmente em desenvolvimento: A modernização
educacional brasileira e as tecnologias de ensino (1940-1970).
232
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
A eleição de professores para cargos representativos em âmbito estatal registra-se desde os primeiros momentos do período republicano
brasileiro. Os mesmos professores que deram origem à Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo em 1902 (uma das primeiras associações docentes de que se tem notícia no Brasil) – Arthur
Breves e Gabriel Prestes, haviam, na década de 1890, participado em
instâncias representativas (Vicentini, 1997; Catani, 1989). No entanto,
o fato de que esses homens fossem professores tinha sido, de algum
modo, acidental para suas eleições, sendo mais relevantes os vínculos
no campo político e no âmbito estatal. Somente quatro décadas mais
tarde surgiriam candidaturas nas quais o pertencimento à categoria profissional funcionaria como elemento principal para articular as qualidades de cada candidato professor. É esse tipo de candidatura vinculada
ao “modo de ser professor” o objeto deste artigo – em geral promovida
por associações docentes que visavam eleger “representantes do professor” como forma de se fazerem ouvir mais eficientemente junto aos
poderes públicos no que se referia às questões educacionais. Tais representantes seriam porta-vozes das posições da associação no Legislativo
e, conseqüentemente, a expressão da legítima vontade dos professores
quanto aos rumos educacionais.
A viabilidade concreta de tais candidaturas “docentes” foi dada a
partir de 1932, com a aprovação do Código Eleitoral que concedia às
mulheres o direito de voto e o instituía como secreto e obrigatório. Já
nesse momento a categoria era de composição majoritariamente feminina, o que permite imaginar o potencial da medida junto aos professores,
ao que se aliou a possibilidade de emancipação da influência dos líderes
políticos locais pelo segredo de voto. Além disso, temos a existência de
uma política de Estado que estimulava enormemente a sindicalização
oficial, por meio da criação da categoria de “representação profissional” nas instâncias legislativas, o que é assinalado por Costa (1986),
tendo em vista que somente as associações registradas no Ministério do
Trabalho poderiam propor representantes para a eleição.
O Centro do Professorado Paulista (CPP), associação de professores primários fundada em 1931, inicia sua participação no processo político de um modo bastante peculiar, tendo em vista que rejeitava expli-
as representações dos professores primários
233
citamente qualquer vínculo político-partidário para dar ênfase aos aspectos práticos de tal representação, como se verá adiante. Esse mesmo
obscurecimento dos vínculos partidários repete-se, a partir de 1955, para
o caso do Centro do Professorado Primário Pernambucano (CPPP, fundado em 1951) como também para o processo que se analisa no caso
baiano (Sociedade Unificadora dos Professores Primários – SUPP) para
a década de 1950. Nos dois primeiros casos, constrói-se um discurso
nos periódicos oficiais das associações que possui ao mesmo tempo um
caráter de propaganda de seus candidatos e de educação do “eleitorado
professor”, no sentido de fazer compreender as vantagens de votar nos
candidatos patrocinados pelas entidades docentes. Para o terceiro caso,
o baiano, a documentação disponível é de caráter mais “interno” (atas
de reuniões de diretoria), permitindo visualizar elementos diferenciados,
como podem ser as disputas internas à associação e as dificuldades concretas com as quais um candidato dessas características se deparava.
Os periódicos oficiais das entidades possuíam um público leitor
cativo, visto que eram distribuídos gratuitamente aos sócios e, nesse
sentido, a Revista do Professor (1934-1965), O professor (1964-1975)
e o Jornal dos Professores (1975 – em publicação), do CPP e o Jornal
dos Professores (1955-1958) do CPPP constituem fontes privilegiadas
para compreender de que formas as representações desses grupos profissionais sobre o próprio trabalho se expressavam nesse cruzamento
com o campo político. A idéia de representação, tal como pode ser analisada nos discursos vinculados a essas candidaturas, remete ao conceito formulado por Chartier (1990), que permite identificar vários significados do termo que se realizam nos documentos examinados: o da
representação frente ao poder público e o da representação construída
pela categoria a respeito de seu próprio trabalho, já que o processo
eleitoral, por meio da propaganda, coloca em jogo as imagens partilhadas pelo grupo profissional sobre sua condição de professores para a
eleição de um agente que represente também (e aqui num terceiro sentido) o modelo ideal da docência. No entanto, deve-se observar que
nem todas as candidaturas de professores anunciadas nos periódicos
analisados apresentam essas características: encontram-se muitas vezes anúncios de candidatos professores aos quais não se concede muito
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espaço, bastando apresentar seus nomes aos potenciais eleitores. O espaço concedido aos candidatos professores nos periódicos, ao seguir
uma lógica que buscava a representação mais fiel possível dos docentes por intermédio das associações, privilegiava os candidatos com maior
expressão nas instâncias da própria entidade – inclusive como uma certa
garantia de controle da atuação do futuro deputado. Como característica comum a absolutamente todos os anúncios, temos a omissão dos
partidos políticos, que se vincula à intenção de permanecer “politicamente neutros”, expressa nos estatutos redigidos quando da criação
das entidades analisadas. Ora, tal “neutralidade” política, ante atuações
que necessariamente implicavam posicionamento quanto a políticas de
estado no campo educacional, revela-se, na prática, impossível, e termina por se realizar apenas como um distanciamento de legendas partidárias, visto como um meio de afastar os “políticos profissionais“
das decisões educativas, numa tentativa de delimitar o espaço do campo profissional tornando-o âmbito exclusivo das decisões técnicas dos
educadores.
Os primeiros investimentos eleitorais
O projeto de eleger representantes da categoria para o legislativo
tardou alguns anos em concretizar-se para o caso do CPP – mesmo sendo apresentados como meios para que o magistério conquistasse “os
direitos condizentes com a importância de sua missão” (Vicentini, 1997,
p. 85), os candidatos apoiados pela entidade em seus anos iniciais não
foram eleitos. A novidade de tal iniciativa, nos termos em que era proposta, pode ser considerada uma das causas de seu malogro – uma série
de artigos com o fim de “educar” o eleitorado aparece na Revista do
Professor, recomendando aos docentes que se alistassem para votar e
eleger os candidatos da categoria junto a explicações de porque seria
vantajoso para os professores fazê-lo. Os líderes da entidade já nesse
momento consideravam o grande número de integrantes do magistério
como uma potencial “força eleitoral” que, sob a orientação do CPP, elegeria representantes para facilitar o encaminhamento das reivindicações
as representações dos professores primários
235
dos professores junto aos poderes públicos. É o que se expressa claramente neste artigo publicado em 1936:
Oxalá pudesse o magistério compreender a vantagem da união, para ter
seus representantes diretos na Câmara dos Deputados. Todas as pretensões
justas teriam o seu advogado persistente e acabariam vencendo. Venceriam
mesmo com facilidade. A dura realidade é que, numa classe com mais de
12.000 elementos, não há um representante do professor na Câmara cujos
deputados [da categoria] não obtiveram a metade dos sufrágios que poderiam dar os professores [Santos apud Vicentini, 1997, p. 88].
Somente em 1947 um associado do CPP, Henrique Ricchetti, foi
eleito para a Assembléia Legislativa, atuando como intermediário da
associação nessa instância. Desse momento em diante o CPP conseguiu
eleger candidatos em todas as eleições estaduais – em 1950, o presidente da entidade, Arnaldo Laurindo, foi eleito por meio de um movimento
de associações docentes conhecido como Liga Eleitoral do Professorado, em 1955 o seguinte presidente da entidade, Joaquim Silvério dos
Reis, assumiu uma vaga como deputado estadual, pois constava como
suplente e em 1958 o também presidente Sólon Borges dos Reis foi
eleito deputado estadual pela primeira vez, fato este que marca uma
mudança significativa no discurso da entidade com relação à política.
Tendo em vista essa trajetória do CPP, deve-se analisar primeiramente a Liga Eleitoral do Professorado, movimento que reuniu todas as
associações docentes paulistas com o fim de evitar “a dispersão do considerável contingente de votos dos professores, em favor de candidatos
estranhos aos reais problemas da educação e do magistério”. Tais associações eram a União dos Professores Primários, Associação dos Professores do Ensino Secundário e Normal Oficial do Estado de São Paulo (APESNOESP), Associação dos Docentes do Ensino Industrial e Agrícola,
a Associação dos Professores de Educação Física, a Liga do Professorado Católico e o sindicato dos Professores do Ensino Particular. O Manifesto da Liga, transcrito por Vicentini (1997), permite apreender muito
claramente aquilo que o conjunto dos professores paulistas pretendia
alcançar por meio da participação política, uma vez que se propunha a
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apoiar os professores candidatos a cargos eletivos que se comprometessem com o seu programa, a saber:
a) o cumprimento das disposições constitucionais relativas à aplicação de percentagens de impostos na ampliação e melhoria dos serviços de educação
b) respeito à personalidade humana, à liberdade de pensamento e de cátedra e
aos princípios democráticos e cristãos da Constituição brasileira;
c) revigoramento do primado do interesse da criança e da juventude que estuda, na solução dos problemas do ensino e do magistério;
d) necessidade de consulta direta à classe, através de suas entidades regularmente organizadas no estudo e solução dos problemas educacionais e do
magistério;
e) consolidação das leis e regulamentos relativos aos concursos de ingresso,
remoção e promoção do magistério público estadual e municipal atendendo aos resultados da experiência e aproveitando as sugestões indicadas
pelas entidades das classes interessadas, resguardando sempre [...] o interesse superior da educação;
f) adoção de medidas que assegurem [...] a dignidade da profissão do professor, afastando qualquer possibilidade de interferência política na vida do
magistério
g) adoção de medidas práticas imediatas que objetivem proporcionar situação econômica condigna aos professores e funcionários técnicos e administrativos de todos os graus de ensino;
h) elaboração de leis que assegurem medidas de proteção aos professores e
suas famílias, principalmente as que se relacionam com a assistência social, cultural e financeira, inclusive facilidade para a educação dos filhos;
i) amparo às entidades de classe do professorado para a realização de seus
fins;
j) adoção de medidas que visem estimular e amparar a iniciativa particular
na manutenção de ensino de todos os graus;
k) colaboração e apoio ao magistério particular na luta pelas suas justas reivindicações
Observa-se, nesses itens, uma clara intenção de fazer ouvir as associações como representantes do magistério nos processos de estru-
as representações dos professores primários
237
turação da carreira e de constituição de políticas educacionais – o intuito de estabelecer limites e condições para a participação no campo
educacional é claro: os concursos, a tentativa de excluir a interferência política no campo. Esses professores pretendiam utilizar a política
para, entre outras coisas, afastar os políticos profissionais do trato dos
problemas educacionais, que deveria ser predominantemente técnico.
Pode-se dizer que esse fenômeno se encontra na conjunção de dois
processos: a ampliação dos limites do campo político brasileiro (pela
extensão do direito de voto) e a definição das fronteiras do campo
educacional.
No que se refere a esse último, pode-se assinalar os primeiros momentos da construção de um discurso profissional relativo às reivindicações salariais (ou melhor, de imagens e slogans) que seria dominante nas décadas seguintes, até meados dos anos de 1970, com o
surgimento do “sindicalismo renovador”. O reclamo financeiro é um
dos eixos fundamentais do movimento dos professores e, como visto
anteriormente, já aparece na iniciativa da Liga do Professorado, numa
aproximação do discurso que as associações tradicionais do magistério primário farão posteriormente e com maior ênfase, mas sempre
apontando em primeiro lugar para a melhoria das condições do ensino
e para o bem-estar dos alunos. Os reclamos que são, em última instância, salariais, não se apresentam como tais, dado que a imagem de “sacerdotes do saber” dos professores não permitiria a admissão de interesses próprios, especialmente materiais. O discurso articula-se então,
sempre em função de interesses maiores, como o futuro dos alunos, o
progresso do país e os destinos da humanidade – esses interesses “desinteressados” com relação ao aspecto econômico terminam por servir
aos propósitos concretos dos professores, uma vez que seu financiamento adequado permite dar suficiente dignidade ao papel que eles se
atribuem no grande sistema de humanização e progresso do qual se
consideram parte. Esse “desinteresse” não é fruto de uma estratégia
consciente do grupo, pensada em termos, por assim dizer, “publicitários” para alcançar seus objetivos, e sim uma das múltiplas expressões
do habitus professoral, ou seja, das estruturas de percepção e ação próprias desse grupo profissional. Nesse sentido, essas representações sobre
238
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a função do próprio trabalho atendem a uma necessidade de conferir
significado às práticas cotidianas, servindo em nível coletivo à coesão
do grupo profissional e é por essa razão que o reclamo salarial se apresenta de forma tão indireta.
Deve-se observar que não se trata aqui de revelar a “má-fé” dos
professores, no sentido de que eles visam ao aumento salarial e, tortuosamente, clamam por melhor qualidade de ensino somente para atingir
esse objetivo. A relação que se pretende fazer ver aqui entre discurso e
consciência dos agentes (por dedução, nesse caso) encontra-se
mediatizada pelo “habitus professoral” e, portanto, não se refere a uma
construção plenamente consciente do discurso sobre a profissão, mas a
“esquemas de percepção incorporados” que justamente por seu papel
estruturador do pensamento e das práticas são percebidos pelos agentes
como idéias “naturais”, ou seja, a atividade do professor não poderia ser
pensada de outra forma. É essa “naturalidade” das idéias a respeito da
atividade docente em cada agente que possibilita a crença, a convicção
a respeito das imagens escolhidas e, portanto, garante a boa-fé dos agentes
quando formulam esse discurso que não é mais do que a expressão de
um “desinteresse interessado”.
Essa forma “desinteressada” de relacionar-se com as necessidades
salariais é muito próxima ao modo pelo qual essas associações de professores se vinculam com a política e, dessa forma, compreende-se que
a Liga do Professorado fosse concebida como um movimento apartidário,
que se limitaria a fazer propaganda do conjunto de seus candidatos na
imprensa, sem mencionar legendas partidárias ou dar destaque a algum
candidato, além de providenciar fiscalização nas zonas eleitorais para
garantir a idoneidade das eleições. De forma coerente, a Revista do Professor não noticiou essa iniciativa das entidades docentes, e tampouco
destacou a eleição de seu presidente, Arnaldo Laurindo, nem a sua atuação como deputado. O periódico do CPP praticamente não se refere ao
processo eleitoral ou à atuação dos candidatos professores, situação que
vai ser modificada a partir da eleição de Sólon Borges dos Reis para
deputado estadual em 1958.
as representações dos professores primários
239
A política sem a política –
a deputada e a associação
O caso pernambucano é, dentre os examinados, aquele que apresenta
o tipo de relação mais explícita com a política desde o início do funcionamento da associação, pois a presidente do Centro do Professorado Primário de Pernambuco foi eleita deputada estadual antes mesmo do registro
oficial da entidade em 1955, marco do início de suas atividades, o que
sugere ter a inserção política de Maria Elisa Viegas possibilitado as condições para que o CPPP começasse a funcionar. Existe, portanto, uma
inversão dos fatores analisados até o momento – não é uma candidatura
de professora promovida pela associação docente de que se fala num primeiro momento. No entanto, também desde o início da história do CPPP
se observa uma intenção semelhante à das demais entidades para tomar
distância do campo político. Desse modo, encontramos nos estatutos originais do CPPP, publicados nos números 2 e 3 do Jornal do Professor,
que o Centro é por princípio “alheio a competições ideológicas, políticopartidárias e religiosas” (art. 2.). A mesma deputada, filiada ao Partido
Democrata Cristão (PDC), dizia-se avessa à política partidária, como consta
do seu agradecimento ao professorado que a elegeu, publicado originalmente na Folha da Manhã de 27 de janeiro de 1955 e reproduzido na
primeira página do exemplar n. 1 do Jornal do Professor, periódico oficial do CPPP:
Afastada da política partidária por temperamento, quase avessa às cogitações políticas, foi a fé em melhores dias para a instrução primária de nossa
terra, melhor compreensão e maior justiça para as mestras dos pequeninos,
que nos fez encaminhar para o campo da peleja, confiada e segura nas colegas fiéis, que nos acompanharam na investida – difícil e decisiva [p. 1].
Observa-se aqui a estrutura da argumentação própria aos discursos
de professores que justificam as iniciativas tomadas em defesa de seus
direitos. O interesse da categoria por melhores salários aparece como
“egoísta” e “interesseiro” ante as características sacerdotais do habitus
professoral, revelado em inúmeras imagens de religiosidade, do profes-
240
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
sor como iluminador das almas infantis, formador de caracteres, responsável pelo progresso da nação e de seus cidadãos. A imagem de
Maria Elisa Viegas não escapa a esse quadro, embora sua vinculação
com a política não seja eludida. Nas páginas do Jornal do Professor
pernambucano, encontram-se relatos de sua atuação na Assembléia Legislativa, discursos e alguns textos comemorativos de sua autoria, que
podem ser considerados formas de propaganda, diferentemente do silêncio quanto à representação política que se observa na Revista do Professor de São Paulo. No entanto, trata-se de uma propaganda discreta e,
nesse aspecto, também se diferencia consideravelmente do discurso construído no periódico oficial do CPP a propósito de Sólon Borges dos Reis
– não se encontra a exaltação da figura de Maria Elisa Viegas como a
grande líder do professorado, sendo que sua formação e trajetória raramente são mencionadas e tampouco suas qualidades pessoais. A própria
deputada qualificou a sua atuação no Legislativo Estadual como discreta, “sem demagogia ou sensacionalismo”, tendo realizado um “trabalho
silencioso”. Espelhando essa austeridade nos adjetivos que descrevem
Maria Elisa, a imagem fotográfica também se apresenta sóbria: apenas
o mesmo retrato do rosto da deputada que se repete em diferentes tamanhos (o que coaduna com a pobreza de imagens geral do periódico, em
cujo conteúdo predomina o texto). Tal sobriedade na descrição da figura da presidente da associação também aparece em sua propaganda política para a reeleição ao cargo de deputada – a partir de março de 1958
(n. 33), o tema é apresentado com grande destaque nas páginas do Jornal do Professor pernambucano; no entanto, fala-se pouco das qualidades pessoais diferenciadoras de Maria Elisa, dando lugar às características profissionais que a identificariam com seus eleitores. Desse modo,
sua propaganda política utilizava-se de procedimentos “simples e discretos, inteligentes e dignos que já pôs em prática [na campanha anterior] e condizem bem com seu perfil de educadora” (“Professoras! Às
urnas em 3 de outubro!”, Jornal do Professor, n. 34, jun/58, p. 1.).
Trata-se aqui da modéstia própria da representação da professora, que
de algum modo a prejudica para o exercício da função legislativa, dado
que capitalizar suas iniciativas, isto é, dar publicidade a seus “grandes
feitos” é fundamental para sua reeleição.
as representações dos professores primários
241
A ausência, no periódico, das qualidades pessoais extraordinárias
de que Maria Elisa seria dotada (seu capital social, cultural ou específico do campo) era compensada na argumentação da campanha pelo caráter utilitário que poderia ter a presença de uma professora na Assembléia Legislativa: ela atuaria pelas professoras primárias (aparentemente
suas eleitoras) e, desse modo, serviria também à infância. Também ressaltava o fato de que Maria Elisa era a única mulher a ocupar assento no
Legislativo Estadual: um grande anúncio na primeira página do número
36 (ago.-set./58) utiliza esse fato, dizendo ao lado de uma foto de Maria
Elisa Viegas: “Votar em Maria Elisa Viegas de Medeiros é contribuir
para a defesa dos direitos da Mulher através da palavra e da ação da
própria MULHER”. Utilizou-se, além desses temas, a atuação da deputada durante seu primeiro mandato, ressaltando-se como mais relevante
sua bem-sucedida campanha para que o governo do Estado construísse
um novo edifício para o Instituto de Educação de Pernambuco, tradicional instância de formação docente. Também se deu destaque à sua participação na Comissão de Finanças quando da reestruturação de cargos
do funcionalismo estadual – o que implicou uma grande campanha salarial por parte das entidades sindicais, uma vez que se poderia estabelecer uma escala mais ou menos favorável aos interesses das diversas
categorias de funcionários. Aparentemente a atuação de Maria Elisa gerou
alguma polêmica, dado que ela se disse “incompreendida” e, em seu
discurso na Câmara, deu-se ao trabalho de ressaltar a dificuldade que
encontrou para manter a imparcialidade, dado que era, naquele momento, presidente da Associação Pernambucana dos Servidores do Estado
(APSE). Aparentemente em função dessas circunstâncias, a reeleição
de Maria Elisa para o cargo de deputada estadual encontrava-se
ameaçada, o que justificou o artigo “Professoras! Às urnas em 3 de outubro!” na primeira página do Jornal do Professor de junho de 1958 (n.
34). Tal artigo propunha uma estratégia para os votos das sócias do CPPP,
propondo que cada votante de Maria Elisa conseguisse mais dois votos
entre os professores: “temos o dever moral de alerta, de garantir a substituição a esses possíveis desvios de votos de colegas inexperientes, tímidas ou mal-avisadas [...]” (p. 1). A proposta não surtiu o efeito esperado, uma vez que a presidente do CPPP não foi reeleita em 1959, tendo
242
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
retomado seu cargo como diretora técnica do ensino primário, na Secretaria Estadual da Educação.
Essas qualidades de modéstia e sobriedade no trato da figura pública de Maria Elisa Viegas de Medeiros contrastam com a hierarquia de
sua posição no campo educacional, já que essa professora foi a “grande
líder” do CPPP e ocupou cargos relevantes na Confederação dos Professores Primários do Brasil, entidade que pretendia coordenar um movimento docente em nível nacional. Modéstia similar aparece no caso
da líder do professorado baiano, tornando tortuosos os mecanismos de
disputa e indicação dos candidatos da Sociedade Unificadora do Professorado Primário nas assembléias – aparentemente, seria imperdoável
para a quase candidata falar abertamente de sua disposição para liderar
o movimento docente, o que a aproximaria de uma imagem política e,
portanto, a faria menos exemplar como professora. Identifica-se, portanto, uma tensão fundamental entre a modéstia da professora (pois somente alguém exemplar poderia representar a categoria) e a propaganda
de si própria que é uma das estratégias fundamentais para a ação no
campo político1.
Os limites que o habitus professoral impõe
às ambições políticas
A documentação disponível para a associação baiana de professores
permite identificar as formas pelas quais a dificuldade com relação aos
valores do campo político são solucionadas, evidenciando uma lógica
(schème) que é comum às entidades analisadas, embora as estratégias se
diferenciem em função das condições objetivas de cada estado. Verifica-se aqui uma relação peculiar, na qual se procura eleger uma professora exemplar para a representação pública da categoria profissional,
1.
Ver, a respeito dessas relações entre representação e exemplaridade (no sentido
moral, Bourdieu, 1990. Para mais informações sobre o movimento docente brasileiro, ver Lugli, 1997.
as representações dos professores primários
243
em termos de uma imagem social que a associação se encarrega tanto de
defender junto ao público externo ao campo educacional como de cultivar e perpetuar entre os professores. Ora, como já se assinalou, a modéstia e a abnegação são virtudes exemplares para as mestras que entram em forte contradição com a necessidade de exposição, publicidade
e auto-elogio de uma candidatura política. Uma grande dificuldade coloca-se de saída: como pretender ganhar legitimidade suficiente para
ser votada como representante do magistério se a mesma pretensão de
ser eleita (o interesse) desmente o desinteresse que é uma das marcas
fundamentais da mestra e, portanto, torna-a indigna de representar o
grupo profissional?
As atas das reuniões de diretoria e assembléias da Sociedade
Unificadora do Professorado Primário (SUPP) permitem visualizar as soluções que se encontravam para essas dificuldades na prática, por meio
da discussão das propostas de candidaturas para o legislativo estadual.
Como nas demais associações, os principais “candidatos a candidato”
surgem da cúpula dirigente – no caso baiano tratou-se da presidente da
entidade, Raydalva Bittencourt, que duas vezes procurou obter o respaldo da SUPP. Como professora digna de representar a categoria, desinteressadamente devotada ao magistério, Raydalva não se apresenta – sua
candidatura é proposta por suas colegas. Na primeira vez em que isso
ocorre, a situação parece cuidadosamente preparada por ela (que então
era a presidente da entidade) para que seu nome surgisse “espontaneamente” ante a questão “é possível que haja um candidato da categoria
para as eleições?”. O conflito estabelece-se quando surge imprevistamente, ao lado de Raydalva, o nome de Hugo da Silveira, que era sócio
da entidade e tinha se candidatado a deputado estadual – a proposta era
que a entidade o apoiasse como seu “candidato oficial”. Ora, os argumentos que o grupo a favor de Raydalva apresenta em defesa de sua
candidata explicitam questões fundamentais ligadas à representação da
profissão.
O primeiro argumento é o relativo ao gênero – Hugo da Silveira não
representaria devidamente o grupo profissional (no sentido de aparecer
como um exemplo do mesmo) pelo fato de ser homem. Dois professores
então intervieram, opondo-se a esse argumento, sendo finalmente pro-
244
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
posto o apoio da entidade a dois candidatos – um do sexo masculino e
outro do sexo feminino. Com a intenção de evitar a possível dispersão de
votos que essa iniciativa acarretaria, o argumento que se apresenta para
desqualificar Hugo da Silveira é o de que ele “seria um candidato político, conseqüentemente comprometido com o seu partido”, sendo necessário que o candidato da categoria fosse “apolítico”. A rejeição a uma
vinculação política explícita da entidade era tamanha que se chegou a
declarar que o partido político ao qual o possível candidato da categoria
se filiaria era uma questão a ser resolvida isoladamente pelo mesmo.
A contradição nos termos não passou despercebida à assembléia,
dado que se qualificou a exigência de “apoliticismo” [sic] do candidato
a ser apoiado pela entidade como “impossível” e “pouco prática”. A
questão resolveu-se por meio do estabelecimento do princípio de que os
candidatos da categoria profissional deveriam priorizar os seus compromissos com os colegas de trabalho aos compromissos com o partido
político a que pertencessem. A característica rejeição às formas políticas tradicionais volta a fazer-se presente ainda nessa reunião ante a observação da professora Denise Tavares de que o grupo presente era uma
minoria diante do total do professorado e que, portanto, a possibilidade
de discussão de uma decisão tão importante como a da participação
política da categoria deveria ter sido explicitada pela entidade na
convocatória da reunião, o que levaria um maior número de professores
a participar da discussão. As respostas são reveladoras, em primeiro
lugar sobre as formas habituais de funcionamento da SUPP, quando duas
associadas próximas à diretoria esclarecem que todas as decisões importantes sempre tinham sido tomadas por uma minoria, dado que era
impossível contar com a presença massiva das professoras para tomar
decisões. Em segundo lugar, a desconfiança com relação aos políticos
aparece no esclarecimento de Raydalva: segundo ela, a ausência do tema
“participação política” da convocatória foi o resultado do receio da diretoria de que uma maior divulgação do tema “chamasse a atenção dos
candidatos demagogos, que tendo conhecimento da reunião, ali estariam naquele instante, confundindo os professores e interceptando a seleção que ora se fazia através de argumentos francos”. Ao final desse
encontro discutiu-se ainda possíveis sanções ao candidato da categoria
as representações dos professores primários
245
que não honrasse os compromissos assumidos com os professores depois de eleito: a maior, senão única sanção proposta, era a denúncia da
“traição à classe” perante a opinião pública.
No que se refere à seleção do candidato a ser apoiado pela SUPP, esta
não poderia se basear somente num argumento de gênero e no distanciamento com relação à política partidária. Uma explicitação positiva
das qualidades deveria ser feita, como apresentação dos critérios que
justificavam a escolha – e assim registrou-se na ata da reunião que a
entidade deveria apoiar alguém “que se interessasse pelo professor do
interior, que tenha espírito de sacrifício; que fosse Supeano; que tivesse
serviços prestados à classe; que tivesse serenidade e firmeza e que fosse
professor primário em exercício” (Ata Diretoria, 17 de fev. de 1954). O
nome de Raydalva V. Bittencourt então é finalmente apresentado como
uma possível candidata pelos professores, qualificada como uma
“supeana que preenchia os requisitos exigidos para a ocupação de tão
alto cargo”. Votam-se em seguida os dois nomes discutidos nesse encontro e Raydalva obtém grande maioria, o que era de se prever, dada a
forma como tinha sido conduzido o debate.
Raydalva era adequada como candidata dos professores não só pelas características que lhe atribuíam, como pelo fato de que era nesse
momento presidente da entidade pela segunda vez consecutiva e dera
início a um período de crescimento significativo da mesma. Pode-se
dizer que ela foi a “grande líder” da entidade, sendo a única eleita para
dirigi-la mais de uma vez. Era uma liderança discreta, no entanto: sua
principal estratégia de campanha era que cada professora partidária de
sua candidatura convencesse outra a votar nela: “gostaria de ter um cabo
eleitoral em cada escola. Esse cabo eleitoral terá de, depois de determinado tempo, dizer-lhe quantos votos supõe lhe sejam dados naquela
escola; isso fora a capital e o subúrbio. Esclarece que para ser eleita
precisa, no mínimo, de 3000 votos.” (4 de abr. de 1954). O complemento dessa “propaganda boca-a-boca” foram visitas a quantas cidades do
interior fosse possível, o que se revelou insuficiente para eleger Raydalva,
que teve apenas 2.758 votos, entre capital e interior – evidentemente,
em plena campanha pelo aumento salarial não lhe era possível dedicarse a essas atividades com a intensidade necessária, tendo visitado ape-
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nas 39 dos 173 municípios existentes. Essa foi uma das explicações
encontradas para a derrota da candidata – algumas professoras do interior mencionavam que ou ela havia visitado seus municípios tarde demais ou não tinha estado nos mesmos: “a representante de Barra disse
que o motivo da pouca votação nesse município foram: a SUPP não ser
conhecida, desunião do professorado e compromissos assumidos anteriormente” (14 de fev. de 1955). Os compromissos das professoras do
interior com as lideranças políticas locais são explicitados ainda uma
vez, ao qualificar a campanha de Raydalva como
sui generis, sem cambalachos políticos, daí ter se tornado difícil, porém o
fator preponderante pelo qual a Sra. Presidente não foi eleita é a falta de
espírito classista, que o professorado ainda não tem. Em aparte diz a Profa.
Maria de Lourdes que o professorado do interior vivia dependendo devido
especialmente ao baixo ordenado [14 de fev. de 1955].
Pode-se dizer que o não-pertencimento ao campo político, que implicou a utilização de estratégias “sui generis”, bem como a “falta de
espírito classista” e “a incompreensão do professorado”, que seguramente se vincularam aos débeis resultados da campanha salarial daquele ano, terminaram por levar à derrota da candidatura da SUPP ao
Legislativo Estadual.
Três anos depois desse fracasso eleitoral, em 1958, novamente a
questão do apoio da SUPP a um candidato a deputado estadual foi apresentada na assembléia anual – trata-se aqui mais claramente que em
outras situações, desse possível representante no Legislativo Estadual
como um representante da entidade antes que dos professores ou do
interesse público em geral, numa forma muito próxima à proposta originalmente formulada pelo CPP em 1932. A diretoria da SUPP procurou
postergar essa questão, alegando que seu mandato terminava e que essas decisões correspondiam à próxima presidente a ser eleita. A Assembléia contestou essa decisão, inclusive porque a presença de associados
do interior, que somente ocorria nessa ocasião, anualmente, dava maior
representatividade às decisões tomadas. No correr da discussão, o
impasse entre a diretoria e os associados se esclareceu: a primeira não
as representações dos professores primários
247
queria apresentar a candidatura de Raydalva Bittencourt para deputada
estadual pela associação e tampouco aceitava que a assembléia impusesse e votasse o tema autonomamente, ameaçando com demissão coletiva, o que talvez significasse o fim da entidade. A solução ao impasse
foi proporcionada por Raydalva em seguida:
A profa. Raydalva pediu a palavra e com ardor defendeu a causa da Assembléia que deseja se apresente um candidato da classe às próximas eleições; que
é esse um problema de responsabilidade coletiva e não apenas da diretoria; que
já esperou muito tendo o assunto sido preterido pela Presidente na ocasião em
que foi apresentado, com grande surpresa sua. O tempo urge; um mês, um dia
é tempo perdido para a vitória e, ante a atitude da Diretoria, retiro a minha
pretensão a candidata da classe [Assembléia Geral, 26 de fev. de 1958].
A retirada de Raydalva acalmou os ânimos da diretoria, que permitiu que se continuasse a discutir o assunto, sendo mencionado que um
deputado da SUPP agilizaria os trâmites do aumento salarial, que era
objeto de “descaso” dos deputados. Aparentemente a SUPP terminou não
indicando candidato no ano de 1958 e Raydalva participou da eleição
pela União Democrática Nacional (UDN) de forma independente, tornando a obter baixa votação.
Contrasta singularmente com essa história de fracassos eleitorais a
trajetória de Sólon Borges dos Reis, líder de longa data do CPP, que
conseguiu conciliar a publicidade necessária à participação no campo
político com a construção de uma imagem exemplar, o que lhe garantiu
sucessivas reeleições, tanto para a presidência da entidade como para
cargos representativos nos legislativos estadual e federal.
O grande líder do Centro do Professorado Paulista –
um modelo bem sucedido de representação
Sólon Borges dos Reis constituiu a grande liderança do CPP, apresentando uma imagem bastante original que, desde o início, vincula o
comando da entidade ao processo político-partidário, constituindo um
248
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
eleitorado fiel com os professores associados à entidade. O sucesso das
estratégias eleitorais do presidente do CPP explica-se, em parte, pela
caracterização da figura de Sólon Borges dos Reis apresentada no periódico oficial da entidade e, de outra parte, pelo grande crescimento do
número de sócios, que eram atraídos pela estrutura de lazer e assistência
que a entidade oferecia crescentemente durante sua gestão.
A imagem veiculada constantemente pelo jornal do CPP expressa
os valores ideais com relação à docência, articulando-os de modo que
exercesse um duplo efeito de representação: o grupo de professores reconhece-se nessa imagem2, o que leva à sua reafirmação e perpetuação.
Pode-se recuperar, dessa forma, elementos significativos do habitus professoral, que permitem compreender as estratégias associativas e
reivindicatórias docentes num sentido que transcende tanto as convicções filosóficas quanto o cálculo político.
Sólon Borges dos Reis é caracterizado pelo periódico como um líder que conjuga um sem-número de qualidades morais e intelectuais, o
que o leva a ser respaldado pela massa de professores nas manifestações
públicas que ele convoca a partir de seu ingresso na presidência da entidade. A massa que o respalda está fartamente documentada nas fotografias das passeatas de professores à Assembléia Legislativa ou ao Palácio
de Governo para pedir melhores salários. Essa cobertura fotográfica das
atividades de Sólon intensifica-se e ganha dinamismo com a mudança
do formato do periódico do CPP, que passa a ser jornal a partir de 1964.
Esse não constitui o começo das iniciativas publicitárias do CPP – a
Revista do Professor vinha sendo utilizada como veículo de propaganda desde 1957, quando Sólon Borges dos Reis assumiu a presidência da
entidade –, mas em 1958, ano da sua primeira eleição para deputado
estadual, a superexposição de sua imagem é notável, o que se alia à
ampliação do número de edições e de exemplares da revista, para acompanhar o aumento do número de associados do Centro. A partir de 1960
Sólon passa a utilizar esse veículo de propaganda com maior freqüência, sendo que um dos elementos fundamentais de sua imagem pública
2.
A imagem profissional dos professores passava por mudanças significativas nesse
período. A respeito, ver Lugli, 1997 e Vicentini, 2002.
as representações dos professores primários
249
já se fazia presente, a saber – o conhecimento prático dos problemas do
ensino e das dificuldades do professor, que só a sua experiência lhe
poderia dar e que era um diferencial significativo para sua atuação no
legislativo:
Deputado trabalhador, ardoroso e inteligente, Sólon Borges tem demonstrado que é capaz de realizar muita coisa em favor da grande classe oprimida
que é o professorado paulista. Precisávamos desse arrojado e corajoso representante. Que fosse da classe também e conhecesse, de perto, os magnos
problemas do ensino. Que conhecesse as amarguras do mestre escola, a sua
luta e sacrifício para conseguir certas insignificâncias e a abnegação de que é
portador [Reis apud Vicentini, 1997].
Paula Vicentini (1997) analisa em detalhe o impacto da primeira
gestão do presidente do CPP no periódico da entidade, descrevendo uma
forma de propaganda que dificilmente explicitava o seu caráter político:
No período que antecedeu as eleições de 1962, sobressaiu-se a intensa
divulgação das atividades de Sólon Borges dos Reis como Secretário da Educação no governo de Carvalho Pinto desde maio de 1962, com especial destaque para a lei que concedeu um aumento salarial ao magistério, sancionada
no dia de sua posse. Foi possível notar novamente uma grande exposição da
figura do presidente do CPP com fotos suas na capa da Revista do Professor
(n. 67 e 68), numa das quais estava ao lado do governador durante a assinatura da referida lei. A proximidade com autoridades do governo também era
registrada mediante a cobertura de eventos oficiais e de homenagens a sua
pessoa [...]. Por outro lado, uma matéria fartamente ilustrada sobre o seu
encontro com uma comissão de professores e alunos das escolas de surdos,
incluindo uma foto sua abraçando um aluno, procurava mostrar os vínculos
que mantinha com a categoria e as suas realizações no comando do ensino
paulista [...] [Vicentini, 1997, p. 181].
O conteúdo dessas fotos permite imaginar que a idéia de representação política dos professores como uma forma de aproximá-los das instâncias de decisão no poder público ainda tinha apelo, uma vez que o
250
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
trânsito de Sólon Borges dos Reis nas altas esferas políticas estaduais
era evidenciado – ao mesmo tempo o potencial caráter negativo dessa
proximidade (Sólon como político e, portanto, oportunista, traidor dos
valores desinteressados dos docentes) era amenizado/neutralizado por
sua proximidade dos professores e a vivência das agruras da profissão.
Uma única vez a menção ao processo eleitoral aparece na Revista
do Professor, num editorial escrito pelo próprio Sólon solicitando apoio
para a sua reeleição em 1962, a qual representaria uma “oportunidade
para o magistério demonstrar que não era ‘uma classe desunida’”
(Vicentini, 1997, p. 182). O grande número do magistério, que sempre
era usado contra o atendimento de suas reivindicações, passaria a ser
uma arma a seu favor – tanto no plano eleitoral como nas grandes mobilizações que se deram a partir de 1958 para tornar públicas as reivindicações do magistério.
Falta agora que o professorado se afirme como uma força política respeitável, que pese na balança das eleições. Para mostrar à opinião pública, aos
partidos políticos e aos governos que nós somos realmente uma grande expressão eleitoral e que exigimos, por isso também, a atenção e o respeito que
recebem todas as poderosas correntes de opinião, numa democracia verdadeira. O 7 de outubro está aí. É uma grande oportunidade que os professores
têm para mostrar a união da classe, fazendo sentir que nós somos realmente
uma força. Precisamos ser uma força, pois ainda temos trabalho e luta pela
frente. Os interesses do ensino e as reivindicações do magistério ainda vão
exigir de nós muito trabalho e muita luta. Para vencer, é preciso que tenhamos força. As próximas eleições mostrarão se somos ou não uma classe unida, e a nossa responsabilidade é muito grande por isso. Mas temos a certeza
de que, mais uma vez, os professores vão responder ‘presente’. E todos ficarão sabendo, de uma vez para sempre, que os professores de São Paulo formam uma classe unida, que está disposta a cumprir a sua missão social de
defender a democracia no Brasil [Reis apud Vicentini, 1997, p. 182].
Esse texto vincula duas idéias fundamentais para a eleição do candidato dos professores paulistas – por um lado, a obtenção de “atenção” e
“respeito” por parte das autoridades, que era uma reivindicação antiga
as representações dos professores primários
251
da categoria, sempre desejosa de ver socialmente reconhecida a importância de sua função. Por outro lado, a eleição de Sólon Borges dos Reis
seria um gesto dos professores em defesa da democracia brasileira, manifestação do desinteresse e altruísmo próprios da categoria profissional – pode-se identificar aí, portanto, uma associação de representações
que equilibra o “interesse” por reconhecimento social com o “desinteresse” da missão de defesa da democracia que se adequa notavelmente
às características do habitus professoral.
O surgimento do jornal O professor em 1964 permite verificar com
mais detalhe a consolidação dessa imagem e as transformações que as
mudanças das condições objetivas do campo educacional vão lhe impondo, uma vez que tanto a cobertura fotográfica como os textos de
publicidade mais ou menos sutil surgem com maior freqüência. A sucessiva exposição das fotos de Sólon nos braços da multidão de professores ou discursando para a massa, bem como a enumeração de suas
“conquistas” para o professorado como parlamentar e a freqüente exposição de seus dados biográficos, permite identificá-lo com um tipo de
liderança populista, segundo os elementos apresentados por Weffort
(1989). Desse modo, temos a massa de professores (especialmente entre 1964 e 1968, nas grandes manifestações de rua) sob o comando do
“líder inconteste do professorado”, que incorpora e representa seus
anseios:
[...] Sólon vivamente aclamado – terminada a votação, os professores não
arredaram o pé‚ da Assembléia. Só que agora concentravam-se no saguão
[…] à espera do prof. Sólon que não tardou a aparecer. Verdadeiro carnaval
de alegria contagiou todo mundo. Os professores aplaudiram delirantemente
o seu líder, por mais esta vitória espetacular em favor do professorado primário [O professor, n. 1, p. 11].
Essa relação, profundamente política, não aparece como tal – permanece obscurecida pela identificação pessoal entre cada professor e o
líder, identificação essa que parece dever-se a uma qualidade intrínseca
do mesmo, ou seja, ao seu “carisma pessoal”. Os elementos que compõem essa “misteriosa propriedade objetiva da pessoa”, nas palavras de
252
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Bourdieu, visam a dissimular o poder que a relação de representação
confere ao líder, de modo que este apareça como pura e simples expressão dos desejos daqueles que representa. É importante observar que não
se trata aqui das “intenções” do presidente do CPP e sim do modo como
o discurso a respeito dele se articula para legitimá-lo. O seguinte excerto
de Bourdieu contribui para esclarecer o sentido do que pretendo dizer:
De fato, não se trata de sair da representação ingênua do mandatário devotado, do militante desinteressado, do dirigente cheio de abnegação, para cair
na visão cínica do mandatário como usurpador consciente e organizado [...]
A impostura legítima só é bem-sucedida porque o usurpador não é um calculador cínico que engana conscientemente o povo, mas alguém que com toda
a boa-fé considera-se uma coisa diferente da que ele é [...] em muitos casos
os interesses do mandatário e os interesses dos mandantes coincidem em
grande parte, de modo que o mandatário pode acreditar e fazer com que acreditem que ele não possui interesses à margem dos interesses de seus mandantes [Bourdieu, 1990, p. 200].
As qualidades atribuídas a Sólon Borges dos Reis pelo periódico
são basicamente as mesmas utilizadas para descrever os demais dirigentes do CPP: experiência, dinamismo, cultura, honestidade etc. No
entanto, somente o perfil do presidente da entidade reúne todas as qualidades desejáveis para o líder do professorado: professor e administrador experiente, honesto, corajoso, independente, culto e outros mais.
Veja-se, por exemplo, o seguinte excerto, publicado em novembro de
1978 no Jornal dos Professores, para apresentar alguns dados biográficos do presidente da entidade:
Honestidade: Deputado de mãos limpas e cabeça erguida, demonstrou sempre caráter e dignidade em todos os episódios e posições em sua vida [...] Um
homem responsável e que resolve: Conhecido no ensino e fora dele pela extraordinária capacidade de trabalho [...] Enfrentando e vencendo os maiores
desafios, tem resolvido as questões mais difíceis. Independência: [...] Fora
do governo, nunca cortejou nem temeu o poder. Rompeu com três governos,
por causa dos professores ou por discordar dos métodos políticos.[...] Espíri-
as representações dos professores primários
253
to público: [...] É um dos homens públicos mais sacrificados pelo seu senso
de responsabilidade. Com tantas oportunidades que já teve, servindo tanto e
a todos, não reivindicou nada para si. Quando deixar o Legislativo, só tem
um cargo para assumir: o de professor de Educação, que conseguiu por concurso de títulos e provas, quinze anos antes de ser deputado pela primeira vez
[Jornal do Professor, n. 154, nov. de 1978, grifos do original].
Características importantes a serem ressaltadas nesse excerto são,
em primeiro lugar, o desinteresse do líder que se dedicou a lutar para
obter benefícios para os demais, e que, findo seu mandato, retornará a
seu modesto ofício original. Destacam-se nas biografias do líder o grande número de atividades a que tem se dedicado: poesia, literatura, jornalismo, direito – essa diversidade de talentos aparece como a comprovar
a excepcionalidade daquele que tem centrado seus esforços na área educacional, ou seja, essa figura admirável, portadora de tantas qualidades,
é, afinal de tudo, um simples professor. E, nessa condição, não esquece
sua origem e compreende as dificuldades de todos os professores, afinal
exerceu “todos os postos docentes e administrativos de 1° e 2° graus”,
além de lecionar no ensino superior. Segundo o Jornal do Professor de
abril de 1980 (n. 168, p. 5):
O presidente, como todos ou quase todos os demais dirigentes do CPP,
começou sua vida de professor exercendo as funções de substituto efetivo,
antes de ingressar no magistério por concurso. Conhecem eles todos, por
isso, como ninguém, e por experiência própria, a problemática dos colegas
agora chamados de estagiários e que enfrentam, hoje, situação muito difícil.
O periódico do CPP publica freqüentemente testemunhos de professores comuns: associados agradecidos por alguma conquista salarial ou
funcional, bem como expressões de apoio e admiração ao líder. Tais
manifestações de apoio passam a ser especialmente bem-vindas depois
de 1968, quando as grandes passeatas não puderam mais ser realizadas
devido ao recrudescimento da repressão do regime militar. Nesse sentido, em dezembro de 1972 encontramos um longo texto em O Professor,
(n. 42, p. 5), intitulado “Ajudando escolas e semeando livros: presiden-
254
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
te do CPP é patrono de biblioteca”, que relata a solenidade de inauguração da biblioteca do Grupo Escolar “Orestes Guimarães”. O discurso
contendo o elogio dos professores ao deputado Sólon Borges dos Reis
reproduz as qualidades continuamente enfatizadas pelo periódico do CPP:
Tentaremos fazer um pálido esboço da vida desse homem público. Professor primário, era já apaixonado por assuntos da educação. Fez o curso de
Pedagogia na Universidade de São Paulo. Exerceu o magistério nos três níveis de ensino, o que afasta qualquer dúvida sobre sua vivência dos problemas da educação. De teóricos da educação o ‘mercado’ está saturado.
Os cargos que ocupou como administrador do sistema de ensino,
tanto por concurso como os cargos de confiança são enumerados, para
dizer: “Teremos então este líder inconteste, este político honesto, este
administrador competente que teve seus inquestionáveis méritos reconhecidos não só pelo governo brasileiro como também por governantes
estrangeiros dos quais foi convidado especial”. A imagem extensamente cultivada de Sólon Borges dos Reis torna-se, de certo modo, mítica:
ele simboliza o professor ideal, uma espécie de parâmetro no qual todos
podem se reconhecer. Muitas vezes, num efeito de metonímia, análogo
ao assinalado por Pierre Bourdieu (1990) em sua análise do fetichismo
político, Sólon Borges dos Reis é tomado pela entidade que representa,
como pode-se ver no seguinte excerto:
A seu respeito, disse o prof. Paulo Nathanael Pereira de Souza: “... a figura
do deputado Sólon Borges dos Reis que, mais do que o professor, tornou-se
o símbolo do professorado na luta que esta classe empreende permanentemente na defesa dos seus interesses. Conhecedor de Educação como poucos,
portador de um prestígio de liderança raramente encontrado, é nele que eu
quero depositar o meu aplauso para que, através dele, esse aplauso se reparta
pela entidade e por todo o magistério” [O Professor, n. 80, p. 8].
Encontramos ainda as palavras de José Ramos de Brito:
as representações dos professores primários
255
Nestes anos todos a história da luta de nossa classe se confunde com a
história do Centro do Professorado Paulista, e com ele, a do Prof. Sólon
Borges dos Reis, quer como presidente, quer quando exerceu a deputação
estadual durante cinco mandatos, quer como deputado federal [...] Sólon não
é somente um homem político, na expressão bela da palavra, como orientador
e intérprete das aspirações populares, mas, [...] poeta, escritor, professor e
advogado [Jornal dos Professores, n. 247, ago./set. de 1990, p. 12].
Bourdieu assinala o caráter paradoxal dessa situação, “quando o
grupo só pode existir pela delegação a uma pessoa singular [...] habilitada a agir como pessoa moral, isto é, como substituto do grupo” (1990, p.
189). Estabelece-se uma relação circular, em que a base do poder do
representante é o grupo que o escolheu e esse grupo, por sua vez, só
passa a existir simbolicamente a partir do momento em que passa a ter
um representante.
Essa relação entre associados e líder estabeleceu-se muito eficazmente no caso do CPP, sendo alimentada pelo inegável impulso que a presidência de Sólon Borges dos Reis deu à entidade. Não é gratuita, portanto,
a menção, nos artigos laudatórios, ao crescimento do patrimônio do CPP
e à visibilidade que este passou a ter (e com ele o magistério primário):
colocou essa entidade de classe [o CPP] na vanguarda do prestígio moral e
social e ampliou extraordinariamente o patrimônio material do CPP. Mobilizou o professorado paulista em dimensões até então desconhecidas no País,
com memoráveis campanhas democráticas a serviço do ensino e do magistério, que lhe devem importantíssimas conquistas em matéria de vencimentos
e direitos [O Professor, n.80, p. 8, nov. de 1974].
Ainda há alguns episódios que são recorrentes no discurso do jornal
do CPP – constantemente rememorados com intuito de exibir a independência desse parlamentar que, muito embora fizesse o jogo político
(para beneficiar os professores), não se deixava conspurcar pelas “seduções corruptoras do poder”. Esses relatos tornam-se mais freqüentes a
partir de 1979, quando as acusações de “peleguismo” contra Sólon Borges
dos Reis parecem motivar uma seção intitulada “Fatos falam mais do
256
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
que palavras: passando o espanador na memória”, na qual se lembra ao
professorado o papel fundamental desse líder nas lutas passadas do magistério.
Essa tentativa de recuperar o prestígio de Sólon Borges dos Reis
ocorre num momento de polarização do campo educacional, quando
uma nova representação a respeito da profissão docente se impõe como
legítima, em detrimento dos valores representados por Sólon e pelo CPP.
Ganha espaço, no contexto da redemocratização política do país e numa
situação econômica e institucional muito diferente daquela em que a
imagem de Sólon surgiu e se consolidou, a representação do “professor
como trabalhador” e do “Estado como patrão” que coloca de forma direta a relação entre o serviço prestado pelos docentes e sua remuneração, deixando em segundo plano as características “morais” que
estruturavam os modos anteriores de conceber a profissão. Sólon Borges
dos Reis passa a ser considerado um “traidor” da causa dos professores
e um líder antidemocrático, não obtendo a reeleição para deputado estadual em 1979. Esse fato levou à retomada, no periódico do CPP, do
discurso corporativo do “representante da classe”, muito presente nos
primeiros anos do CPP, em termos bastante explícitos, como se vê no
seguinte excerto de Pedro Castilho Fernandes:
Mesmo ausente da Assembléia Legislativa, e longe da Câmara Federal,
para a qual não foi eleito apesar dos quase 30 mil votos obtidos em 1978, o
Prof. SOLON, nestes últimos e sofridos anos, não abandonou a trincheira de
combate aos demagogos e carrascos do magistério [...] devemos dar ao Prof.
SOLON BORGES DOS REIS o mandato que precisa ter para que seja reposto tudo aquilo que nos foi tirado pela demagogia e pela insensibilidade da
política atual [“Uma tribuna para Sólon”, Jornal dos Professores, n. 188, set.
de 1982, p. 4].
“Professores nos Parlamentos”, de Milton de Oliveira, é outro exemplo nesse sentido: o autor inicia explicitando as razões pelas quais os
professores devem eleger representantes da categoria nos níveis municipal, estadual e federal e especialmente esse último, visto que se tratava de eleger os deputados que formariam a Assembléia Constituinte.
as representações dos professores primários
257
contando com representantes da classe nos diversos parlamentos, tudo fica
mais fácil para o atendimento às reivindicações da categoria e na feitura de
leis de interesse do magistério [...] Não podemos esquecer que quando tivemos um representante na Assembléia Legislativa, as coisas, embora de difícil solução, sempre ficaram mais fáceis e os problemas eram contornados. E
foi durante o tempo que contamos com esse deputado estadual que, através
de seu trabalho, o magistério de São Paulo obteve muitas de suas melhores
conquistas [Jornal dos Professores, n. 211, set. de 1985, p. 12].
Como se vê, a cada eleição surgiam artigos explicando aos associados do CPP porque deveriam votar em um candidato dos professores e
as razões que faziam de Sólon Borges dos Reis a melhor escolha. A esse
respeito, o artigo “Antes: Professor não votava em professor; Agora: Os
professores votarão em professores”, de Maria Alice Bicudo Soares é
exemplar e por isso me permito citá-lo extensamente:
Historicamente, professor não tem votado em professor [...] não basta que
o candidato tenha um diploma de professor. Não! Ele tem que ter compromissos com o magistério e com a educação e já ter provado isso pela sua
história de vida e nós precisamos saber onde esteve e o que fez o candidato,
nos últimos anos [...] Vamos ser corporativistas, neste momento! Este
corporativismo é sadio! Ele visa a melhoria da educação de nossas crianças e
de nossos jovens através do resgate da qualidade do ensino público e da
dignidade dos professores da rede pública. Este corporativismo que visa a
tirar a nossa juventude da situação em que se encontra, hoje, vítima que é do
descaso dos governos [..] Professor, este ano é fácil votar em professor! Temos a felicidade de contar, em nossa categoria, com o candidato mais capacitado e mais comprometido com a educação em nosso Estado, talvez do País.
Trata-se do Professor Sólon Borges dos Reis [...] Teremos, com sua reeleição, a certeza de que demos nosso voto a alguém que, como nós, no início de
sua carreira no magistério comeu poeira de estrada como professor de escola
rural, que sofreu o que todos nós sofremos, ocupando todos os seus cargos,
que conhece profundamente as especificidades da carreira do magistério, que
nunca esqueceu o que é ser professor, que sempre lutou e suou a camisa em
defesa dos professores, mesmo durante o período da ditadura militar, quando
258
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
fazer isso era muito mais difícil e que já defendia a escola pública e os professores quando eu e muitos outros, que hoje até se dizem candidatos dos
professores, ainda freqüentávamos os bancos da escola primária [Jornal dos
Professores, n. 247, ago./set. de 1990, p. 3].
É importante ressaltar que na década de 1980 a candidatura de Sólon
Borges dos Reis passa a ser acompanhada pela apresentação dos nomes
de sócios do CPP também candidatos a cargos eletivos. Continua a não
haver menção a partidos políticos nas páginas do jornal, à semelhança
dos primeiros investimentos eleitorais da entidade na década de 1930 –
os candidatos das mais variadas tendências tiveram sua foto e seu número para a votação apresentados. A distinção entre os candidatos fazse por meio do espaço que lhes é concedido no periódico: Sólon Borges
dos Reis é continuamente tema de artigos e tem sua biografia extensamente apresentada.
A ausência de relação entre as candidaturas e a política partidária
nas páginas do periódico do CPP pode ser justificada pelo caráter
populista da liderança de Sólon Borges dos Reis, pois, como é indicado
por Weffort, uma das principais marcas do populismo é o fato de que
elude o aspecto político da relação entre o líder e as massas, levando
cada indivíduo a identificar-se isoladamente com o líder, daí o caráter
de “personalismo” que o caracteriza. Essa característica do populismo
combina-se com a “neutralidade” pretendida pelo CPP desde sua fundação, que leva a associação a enfatizar os aspectos profissionais – o que
importa é o fato de o candidato ser professor, colocando em segundo
plano sua opção política. Particularmente quanto a Sólon Borges dos
Reis, é possível considerar se a pouca expressão do PDC, partido a que
esteve filiado até 1965, quando da instauração do bipartidarismo, não
teria contribuído para esse “ocultamento” das relações políticas, o mesmo podendo-se dizer da legenda a que pertence atualmente, o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) que tampouco tem grande expressão, em
São Paulo. No que se refere ao segundo partido a que esteve filiado, a
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), essa somente era mencionada
para ressaltar a independência de Sólon, dizendo algo assim como:
“Sólon, mesmo pertencendo ao partido da situação não apoia o governo
as representações dos professores primários
259
quando este prejudica os professores”. Um exemplo interessante é a
eleição de 1974, quando, eufórico, O Professor anunciava: “Povo reelege deputado – Sólon eleito pela 5ª vez”.
A extraordinária votação obtida pelo conhecido educador e homem público impressionou os meios políticos do Estado, por ter sido recebida na mais
difícil das eleições que já tivemos, em que a esmagadora maioria do eleitorado se recusava a votar em candidatos da situação, por melhores que fossem
[...] e preferiu votar na oposição, mesmo sem se fixar em qualquer nome de
candidatos, mas apenas na legenda oposicionista [n. 81, p. 4].
***
A análise das formas de participação política dos professores primários no Brasil revela, antes de mais nada, o desconforto desses professores com o cálculo explícito e a publicidade que são próprios da esfera
política – duas características que chocam frontalmente a matriz de disposições individuais socialmente gerada por essa forma de trabalho
(habitus professoral). Em outras palavras, o “modo de ser professor”,
incorporado durante a passagem pelas instâncias de formação (seja a
escola normal ou a prática, no caso dos leigos) e pelos anos de atividade
nas escolas, acaba por conformar as estratégias de participação política
da categoria3.
O que constitui esse modo de “ser professor” aparece, de forma sintetizada, na representação do professor ideal, aquele que expressa as
qualidades da imagem pública da categoria. A vivência do cotidiano da
profissão é valor fundamental – há uma exigência quanto à prática que
serve para localizar o candidato do lado dos professores primários, ou
seja, daqueles que não são “teóricos” da educação4. Observe-se, portanto, que a distância necessária com relação às práticas políticas tradicionais (a “neutralidade”) não se justificava sempre pelo conhecimento
3.
4.
O mesmo se dá com as formas associativas e para reivindicação salarial.
A respeito dessa oposição entre teoria e prática e sua correspondência com a situação objetiva do campo educacional nas décadas de 1950 a 1970, ver Lugli, 2002.
260
revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
especializado (teórico) que se supunha condição para tratar do ensino –
muitas vezes a questão que incomodava deveras os professores era a
inexistência de regras claras (ou que fossem cumpridas de fato) para a
vida profissional – como exemplo, as denúncias de remoções sem concurso, por apadrinhamento, são freqüentes. Os professores primários
devem defender-se, portanto, de dois grupos: os “teóricos” e os “políticos”. Nesse sentido, chama a atenção a capacidade de mobilizar conteúdos desses grupos “a evitar” que foi realizada por Sólon Borges dos
Reis, sem que isso significasse a “traição” aos valores docentes. A apropriação do discurso populista, que permite se distanciar dos partidos e
das formas políticas tradicionais, seguramente teve um papel nesse processo. No entanto, também se pode indicar como parte de uma explicação possível para o sucesso de Sólon Borges dos Reis, fatores simbólicos ligados às dimensões do gênero e da religiosidade – afinal, a
caracterização que dele é feita, como o homem que salvará/redimirá o
magistério tão vilipendiado, tem um apelo ao mesmo tempo romântico
e religioso5.
As origens religiosas da profissão se fazem sentir, embora indiretamente, na necessidade de despreendimento e espírito de sacrifício que é
uma das marcas desse ideal de professor – essa característica também
reflete, de certa forma, as condições da prática: a carreira que se iniciava sempre nas “piores” escolas e a precariedade do trabalho (com relação a um modelo escolanovista). Esse valor de despreendimento não
tem como conseqüência direta, como se tem assinalado, a falta de reclamos salariais e sim uma forma oblíqua de reivindicar melhor pagamento: esse deveria equivaler à importância da função, à sua nobreza, pois
somente alguém muito vocacionado para o magistério permaneceria num
trabalho tão sacrificado. Trata-se, na verdade, de um grupo de “eleitos”,
que garantia o progresso da nação e a democracia – qual o pagamento
adequado para um serviço de natureza tão sublime?
5.
Há uma série de charges no Jornal dos Professores que caracteriza Sólon Borges
dos Reis como um cavaleiro medieval – o tema, embora pretendesse ser humorístico, não destoa do conteúdo do periódico e mesmo o sintetiza, no que se refere à
figura do presidente da entidade (Lugli, 1997).
as representações dos professores primários
261
Em que medida o habitus professoral deve suas características a
outros habitus, como os de origem social ou de gênero pode ser apenas
visualizado – seguramente as características de afetividade e modéstia
evidenciadas nas fontes vinculam-se a aspectos de gênero, o que contribui para a compreensão tanto das razões do sucesso de Sólon Borges
dos Reis no plano eleitoral como dos relativos fracassos de Maria Elisa
Viegas de Medeiros e Raydalva Bittencourt. Deve-se observar, no entanto, que não se trata apenas de considerar os esquemas de percepção e
ação dos agentes – o capital simbólico (social, escolar e educacional) de
que dispõem para participar das disputas eleitorais também influi nos
processos aqui descritos e a menção reiterada no jornal do CPP aos vários diplomas do grande líder expressa bem essa dimensão do cálculo
de possibilidades de “lucro simbólico”. Também se pode observar aí o
fenômeno da “conversão” de capital simbólico que se pretendia operar
de outros campos para o educacional. De modo semelhante, a trajetória
de Maria Elisa Viegas de Medeiros na alta hierarquia do ensino
pernambucano evidencia a posse de um capital considerável naquele
meio, advindo tanto da posse de diplomas como possivelmente de suas
origens sociais.
Combinam-se no processo de construção das representações profissionais do professor durante o período examinado um conjunto diversificado de elementos que a noção de habitus permite articular: a mudança nas condições objetivas de trabalho e de formação docente, a
delimitação do campo da política partidária e os novos modelos de escola e de docência que se propunham como desejáveis. Esses fatores
contribuem para a produção de representações, mediadas pelas associações docentes, nas quais os professores podiam se reconhecer e às quais
poderiam reconhecer eleitoralmente, sempre que o campo político e a
força do habitus o permitisse.
Referências bibliográficas
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Professorado Primário.
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Recebido: 7 de out. de 2004
Aprovado: 2 de maio de 2005
Modificado: 18 de maio de 2005
Resenhas
Os intelectuais na Idade Média
autor
cidade
editora
ano
Jacques Le Goff
Rio de Janeiro
José Olympio
2003
O livro de Jacques Le Goff foi editado pela primeira vez em 1957
e teve sua segunda edição em 1985, sem modificações (ambas por
Editions du Seuil). Essa nova edição em língua portuguesa confirma,
mais uma vez, sua importância entre os clássicos que nos possibilitam
uma leitura da educação inserida nos fenômenos de longa duração, especialmente quando propicia uma releitura de um período histórico que
foi preconceituosamente convencionado como a “Idade das Trevas”. O
leitor ainda tem acesso ao ensaio bibliográfico cuidadosamente preparado por Le Goff (36 páginas). Entre os problemas colocados pelo autor está o da organização corporativa do magistério, presente desde a
gênese da sua constituição. Um outro aspecto que se destaca na leitura
é a gênese da definição da “função docente” imbricada na negociação
do reconhecimento social. Os intelectuais estão situados na evolução
escolar, na revolução urbana que vai do século X ao século XIII: a
separação entre escola monástica, reservada aos futuros monges, e escola urbana, em princípio aberta a todos, sem exclusão dos estudantes
que permanecem leigos. Ao lado do nascimento e da riqueza, o sistema
universitário permitiu uma real ascensão social a um certo número de
filhos de camponeses, por meio do exame, um processo totalmente
novo no Ocidente.
Foi pela evolução das escolas catedrais, assumindo um caráter
mais corporativo, que se alcançou o instituto de universidade: o studium
generale. Em Paris, o studium generale nasce ao redor da escola episcopal onde se destacou o prestígio de Abelardo, por volta de 1150,
instituindo um curso referente ao trivium (as três artes liberais elementares: gramática, retórica, lógica), depois à teologia, ao direito, à
medicina, que vinham constituir o nível superior de ensino. Os cursos
eram de artes e teologia. Para a docência de artes exigia-se pelo me-
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nos seis anos de estudo e a idade mínima de 20 anos. Para o ensino
de teologia requeriam-se pelo menos oito anos de estudos (cinco
anos de teologia e a idade de 34 anos). Concluído o curso de artes o
estudante prestava exame diante de três ou quatro mestres; em seguida era admitido à Determinatio, ou seja, à exposição independente e pessoal de certas questões, sob a presidência do respectivo
professor. Este evento dava-se no período quaresmal. Promovido a
bacharel (baccalaureus), passava a explicar publicamente os livros
oficiais de texto por um espaço de dois anos. Esses livros eram as
obras de Aristóteles e as obras gramaticais de Prisciano. Depois disso recebia o título de Magister Artium. Para o magistério de teologia
a exigência era maior, exigia-se três bacharelados: o bacharel bíblico lecionava durante dois anos a Sagrada Escritura. O bacharel
sentenciário lecionava as sentenças de Pedro Lombardo, depois disso tinha-se o Magister actu regens. As duas principais formas de
ensino eram a lição (lectio), que consistia na leitura e na explicação
de um determinado texto e a disputação (disputatio), que era conduzida por um ou mais mestres, numa espécie de torneio intelectual.
O mundo muçulmano precisava das matérias-primas do ocidente
(madeiras, espadas, peles, escravos) para suas enormes clientelas
urbanas – de Damasco, de Feustat, de Tunis, de Bagdá, de Córdoba.
Os embriões das cidades são os “portus” e se desenvolvem de modo
autônomo ou ligado aos flancos das cidades episcopais ou dos
“burgos” militares, desde o século X. No século XII os produtos
mais raros do Ocidente vêm do Oriente, com as especiarias e a seda
os manuscritos trazem ao Ocidente cristão a cultura greco-árabe. As
obras de Aristóteles, de Euclides, de Ptolomeu e de Galeno acompanharam no Oriente os cristãos heréticos – monofisistas e nestorianos –
e os judeus perseguidos por Bizâncio, e por eles foram legadas às
bibliotecas e escolas muçulmanas que as receberam em grande número. O encontro entre o Ocidente e o Oriente é, antes de tudo, uma
frente militar de combate com armas, nas Cruzadas. Os tradutores
do grego para o latim foram espanhóis que viveram sob o domínio
muçulmano, assim como judeus e muçulmanos. Le Goff empenhase em mostrar que mais do que a matéria, a contribuição maior talvez tenha sido o método: a curiosidade, o raciocínio e toda Lógica
Nova de Aristóteles com as duas Analíticas (priora e posteriora), os
Tópicos, os Elenchi (Sophistici Elenchi) que acrescentaram à Lógi-
resenhas
ca Vetus – conhecida por meio de Boécio. As contribuições propriamente árabes podem ser exemplificadas na aritmética, e particularmente com a álgebra de Al Karismi – à espera de que nos primeiros
anos do século XIII, Leonardo de Pisa dê a conhecer os “algarismos” ditos arábicos, na verdade indianos, mas vindo da Índia pelos
árabes. Os centros dessa incorporação à cultura cristã são representados por Chartres, as vizinhanças de Paris, mais tradicionalmente
Laôn, Reims, Orléans e as feiras de Champagne.
Em Paris a voz dos goliardos é peculiar. De origem urbana, camponesa ou nobre, antes de tudo são errantes, representantes típicos
de uma época em que o desenvolvimento demográfico, o despertar
do comércio e a construção das cidades lançam nas estradas e reunido em suas encruzilhadas, que são as cidades, os deslocados, audaciosos e infelizes, que excluídos das estruturas estabelecidas
representam o maior escândalo para os espíritos tradicionais (p. 48).
A Alta Idade Média esforçava-se para situar cada um no seu lugar,
na sua ocupação, na sua ordem, na sua condição. Os goliardos formam nas escolas urbanas aqueles grupos de estudantes pobres que
vivem de expediente, tornam-se domésticos dos condiscípulos afortunados ou vivem de mendicância. Alguns, para ganhar a vida, tornam-se jograis ou bufões. Entre os goliardos encontraremos, talvez,
Pedro Abelardo que, ao tornar-se um mestre, se estabeleceu no Monte
de Sainte Geneviève. Abelardo foi antes de tudo um lógico e deixou
um método com seu Manual de lógica para principiante e sobretudo com Sic et non. Afirma que é preciso uma ciência da linguagem,
já que é difícil para as pessoas se entenderem. As palavras são feitas
para significar e constituem o único lugar da generalidade – o
nominalismo –, mas as palavras também têm fundamento na realidade. Le Goff também revisita a relação entre Abelardo e Heloísa
fazendo considerações sobre a corrente antimatrimonial do século
XII, destacando o tema da mulher e do casamento nesse período (p.
64) ao lembrar que a própria Heloísa evoca a imagem do casal intelectual pobre que formariam (p. 65) sem poder conciliar as responsabilidades de trabalho intelectual e a infra-estrutura que uma tal
família necessita, quando se é um professor.
Chartres é o grande centro científico em que não se desenhavam as artes do trivium, mas o estudo das coisas, que eram objeto do
quadrivium – aritmética, geometria, música e astronomia. Os
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chartrianos sustentam seu racionalismo na crença sobre a onipotência da natureza. A natureza é em primeiro lugar um poder fecundante, perpetuamente criador, mater generationis (mãe da geração, mãe
geradora). Mas a natureza é também o cosmos, um conjunto organizado e racional. É a rede das leis, cuja existência torna possível e
necessária uma ciência racional do universo. O espírito chartriano é
humanista não apenas no sentido que invoca a cultura antiga para
edificação de sua doutrina, mas porque põe o homem no coração de
sua ciência e de sua filosofia. Retoma a metáfora estóica do mundofábrica, mediante obra de Gerhoch de Reichersberg, o Livro sobre o
edifício de Deus. Para Honório de Autun, o exílio do homem é a
ignorância e sua pátria é a ciência. Chegamos a essa pátria pelas
artes liberais, que são igualmente cidades-etapas. A primeira cidade
é a gramática, a segunda cidade é a retórica, a terceira cidade é a
dialética, a quarta cidade é a aritmética, a quinta cidade é a música,
a sexta cidade é a geometria e a sétima cidade é a astronomia, a
oitava cidade é a física, na qual Hipócrates ensina aos peregrinos as
virtudes e a natureza das ervas, das árvores, dos minerais, dos animais; a nona cidade é a mecânica, pela qual os peregrinos aprendem o
trabalho com os metais, a madeira, o mármore, a pintura, a escultura e
todas as artes manuais; a décima cidade é a economia que é a porta da
pátria do homem, nela se regulamentam os Estados e as dignidades,
nela se distinguem as funções e as ordens.
O autor enfatiza, sobremaneira, o “ofício de ensinar” ao afirmar
que “o século XIII é o século das universidades porque é o século
das corporações”. A dinâmica de todas as corporações é a mesma:
“Em cada cidade em que existe um ofício agrupando um número
importante de membros, esses membros se organizam em defesa de
seus interesses para instaurar um monopólio que os beneficiem”
(p. 93). Entretanto a dinâmica da universidade põe no centro do debate a relação entre o conhecimento e a sustentação, a aliança ou a
ruptura com os poderes. “É lutando, ora contra os poderes eclesiásticos, ora contra os poderes leigos”, que as universidades adquirem
sua autonomia (p. 94). O caso exemplar de Paris é destacado em
seus sangrentos acontecimentos, que põem frente a frente os estudantes e a polícia real, culminado na conquista da autonomia da
universidade. Durante dois anos não há cursos em Paris: só em 1231
é que São Luis e Branca de Castela reconhecem solenemente a inde-
resenhas
pendência da universidade. Os universitários encontraram um aliado todo-poderoso: o papado. Isso teve um preço, é claro. Assim os
professores se tornaram agentes pontifícios. Assim, “nascidos de um
movimento que caminhava para o laicismo, integram-se à igreja,
mesmo quando buscam, institucionalmente, sair dela” (p. 100).
A questão salarial dos intelectuais é apresentada a partir do dilema salário X benefício, a tendência preponderante foi a dos mestres
em viver do dinheiro pago pelos estudantes. A gratuidade do ensino,
proclamada pela Igreja no Concílio de Latrão de 1179, tinha como
objetivo garantir o ensino aos estudantes pobres. Mas a Igreja não
pode mantê-los. As congregações seculares opunham-se à extensão
do espaço ocupado nas universidades pelos mestres pertencentes às
novas ordens mendicantes. Os mendicantes, graduando-se em teologia, lecionam sem ter obtido previamente o mestrado em artes e,
vivendo de esmolas, não exigem pagamento.
No declínio da Idade Média, entre as guerras e a evolução da
renda feudal que assume a forma monetária, as classes dos artífices
assumem formas proletárias, igualando-se aos camponeses. As camadas superiores fundem-se à classes dominantes. São designados
para lecionar os obscuros professores das escolas comunais, no
momento em que o título de mestre adquire um outro status. De
início, no século XII, o magister é o contra-mestre, o chefe da oficina. O mestre-escola é mestre como são os outros artesãos. Isso muda
quando os intelectuais não aceitam mais o risco de serem confundidos com trabalhadores. Assim se cumpre a cisão entre a teoria e a
prática, entre a ciência e a técnica, modificando o impulso que no
século XII e XIII aproximava as artes liberais das artes mecânicas.
O exemplo principal é encontrado na medicina: a separação operase entre o médico-clérigo e o boticário-comerciante, cirurgião. No
século XIV a divisão de cirurgiões, distinguindo os cirurgiões de
beca (bacharel ou licenciado) e os barbeiros (que cortam barba e
cabelo e fazem pequenas cirurgias, vendem ungüentos, fazem sangrias, curam feridas, contusões e abrem abscessos), é feita por meio
de diferentes editos.
A mudança social faz operar uma modificação na própria
escolástica que passa a renegar suas exigências fundamentais. No
que se refere ao “equilíbrio entre a razão e a fé” (p. 162) as expressões dessa mudança podem ser destacadas na corrente crítica e céti-
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ca que tem sua origem em Duns Scot e Ockham. Por essa corrente
chegamos à distinção entre um conhecimento abstrato e um conhecimento intuitivo: o conhecimento abstrato “não nos permite saber
se uma coisa que existe, existe, ou se uma coisa que não existe, não
existe... o conhecimento intuitivo é aquele através do qual sabemos
que uma coisa é, quando ela é; e que ela não é, quando ela não é” (p.
163), passando-se assim para a valorização do livre-arbítrio. Outras
expressões são encontradas no experimentalismo científico
(Autrecourt, Buridan, Oresme), que enfatiza a experiência “não dou
tudo isso como certeza, mas apenas pediria aos Senhores Teólogos
que me explicassem como tudo isso se produz” (p. 165). Na política
o averroísmo de Marsílio de Pádua desempenhará um papel importante junto ao imperador Luís da Baviera na luta contra o papado.
Marsílio assimilou a tradição gibelina que representou a mais importante luta contra as aspirações pontifícias em relação ao domínio
do temporal, o princípio da separação dos poderes espiritual e temporal e a reivindicação do poder temporal para o imperador (p. 175),
justificando a autonomia do Estado, fundada na separação do direito
e da moral. O antiintelectualismo (Eckhart, Nicolas Cues, Pierre
d’Ailly) se expressa pelo ataque ao aristotelismo e a apologia que
faz à douta ignorância. O cardeal Nicolas de Cues assim se expressa: “hoje é a seita aristotélica que prevalece, e ela considera uma
heresia a coincidência dos opostos, cuja admissão é o único caminho para a teologia mística” (p. 167).
As universidades seguiram rumo a uma aristocracia universitária; em Bolonha é reclamado um direito preferencial para filhos de
doutores na sucessão das cadeiras vacantes. Tudo o que cerca os
rituais universitários passa a representar os símbolos de nobreza (anel
de ouro, emblema, barrete, túnica, capuz e longas luvas passam a
ser, na Idade Média, símbolos de posição social e de poder). O intelectual integrando-se aos grupos privilegiados desaparece para dar
lugar ao humanista. Esse é um aristocrata e ao tratá-lo, historicamente, é preciso destacar o movimento que retira os intelectuais da
cidade, levando-os para o campo. O meio do humanista é a corte,
notadamente o Collège des Lecteurs Royaux (Colégio dos Leitores
Reais), que se tornará o Collège de France. Erasmo, em seu Banquete Religioso, admira que “haja pessoas que se deleitem com a
fumaça das cidades”. Um outro aspecto é a desvinculação entre a
resenhas
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ciência e o ensino. A imagem escolhida por Le Goff para finalizar
sua apresentação da passagem dos intelectuais da Idade Média para
os humanistas é o contraste entre o professor, colhido em sua atividade de ensinar, cercado pelas bancadas em que se espreme o auditório e o erudito solitário, em seu gabinete.
Gesuína de Fátima Elias Leclerc
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
Manifesto dos Pioneiros da Educação:
um legado educacional em debate
autor
cidade
editora
ano
Maria do Carmo Xavier (org.)
Rio de Janeiro
Belo Horizonte
Editora da Fundação
Getúlio Vargas
Faculdade de Ciências
Humanas (FUMEC)
2004
Em 2002, por ocasião dos setenta anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, diversos eventos foram realizados no
Brasil, buscando lançar novas luzes sobre o documento que vem
sendo apontado, já há algumas décadas, como um marco na história
da educação brasileira. Resultado dos trabalhos apresentados em um
desses eventos – o Colóquio Nacional “70 anos do Manifesto dos
pioneiros: um legado educacional em debate” –, realizado em Belo
Horizonte e em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, em agosto de 2002,
o livro Manifesto dos Pioneiros da Educação: um legado educacional em debate reúne dezesseis artigos (além da apresentação e do
prefácio), escritos por vinte autores, brasileiros (dezoito) e argentinos (dois).
Os textos reunidos no livro guardam, entre si, uma grande
heterogeneidade, tanto no que diz respeito às temáticas quanto às
abordagens escolhidas para tratá-las e à densidade das informações
trabalhadas. Alguns artigos e autores se filiam mais explicitamente
ao que se vem configurando como uma “nova historiografia” da
educação; outros optam por abordagens mais tradicionais. Há capítulos que, baseados em fontes documentais ainda pouco exploradas,
trazem novos elementos para a compreensão da temática; outros,
por sua vez, assumem um caráter predominantemente ensaístico.
Alguns textos realizam leituras instigantes do Manifesto ou de aspectos a ele correlatos e, nesse sentido, provocam o leitor; outros
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
apenas confirmam teses já consagradas pela longa historiografia
dedicada ao tema. Mesmo considerando as diferenças assinaladas
entre os artigos publicados (e talvez por causa delas), o livro constitui uma leitura fundamental para aqueles – pesquisadores, professores, alunos dos cursos de graduação e de pós-graduação – que se
interessam pela temática e pelo período abarcado pelos estudos apresentados (concentrados nas primeiras décadas do século XX).
Na tentativa de apresentar o livro de uma maneira mais sistematizada para o leitor, classifiquei os artigos em quatro grandes grupos. Como qualquer classificação, a realizada certamente tem um
grau de arbitrariedade, o que pode fazer com que seus autores nela
não se reconheçam. No primeiro conjunto, agrupei os artigos (quatro) que se atêm, primordialmente, à análise do documento propriamente dito. Em um segundo grupo, estão os textos (quatro) que,
embora não se detenham na análise do Manifesto, auxiliam a compreender o próprio processo de sua elaboração e/ou da sua constituição como marco na historiografia da educação. No terceiro grupo,
reuni os capítulos (quatro) que se propõem a discutir aspectos relacionados ao pensamento escolanovista no Brasil, principalmente por
meio do estudo das concepções e/ou práticas educacionais de alguns
pioneiros. Por fim, em um último conjunto, agrupei os estudos (quatro) que extrapolam o tema do Manifesto, guardando somente uma
tênue relação com ele. Compõem o primeiro grupo os artigos “O
Manifesto dos pioneiros da educação nova como divisor de águas
na história da educação brasileira”, de Libânia Xavier; “Legado e
legatários: questões sobre o Manifesto dos pioneiros da educação
nova”, de Mirian Jorge Warde; “Um olhar sobre o Manifesto dos
pioneiros da educação nova de 1932”, de Carlos Roberto Jamil Cury;
e “A educação tradicional e a educação nova no Manifesto dos Pioneiros (1932)”, de Marta Maria de Araújo. Os artigos, ao se deterem, primordialmente, no texto do próprio documento, auxiliam o
leitor a melhor compreender as estratégias discursivas utilizadas pelos
pioneiros (fazendo cisões, principalmente, entre o novo e o velho e
entre as forças que os representavam), os interlocutores (abertos ou
ocultos) a quem se dirigiam (como mostra Carlos Roberto Jamil
Cury), assim como as estratégias de arregimentação de signatários
(e as ausências de alguns intelectuais vinculados ao movimento entre eles, como mostra Mirian Warde) e de sua divulgação junto a
resenhas
instâncias sociais mais amplas, para dar ao Manifesto o caráter simbólico que, passados mais de setenta anos de sua publicação, ainda
possui. Esse processo é decorrente, como argumenta Libânia Xavier,
não apenas do conteúdo do documento ou das estratégias de sua
divulgação, mas também da força simbólica dos discursos elaborados pelos leitores contemporâneos ao seu lançamento, permanentemente (re)atualizada por leituras e celebrações posteriores, que o
tornaram emblemático. Nesse sentido, o Manifesto é tomado como
documento histórico, mas também como um texto literário embebido de imagens e símbolos, que serviu de estratégia política para reafirmar a identidade do grupo de signatários, em um momento de
reorganização do Estado pós-1930, de tentativa de construção de
um Brasil moderno (como mostra Marta Araújo), de especialização
e autonomização do campo educacional. Como afirma Mirian Warde,
na medida em que manifestos são sempre peças de combate, marcadas
pelo peso da conjuntura imediata, é importante compreender as condições de produção do próprio documento.
Como já anunciado, em um segundo conjunto, reuni os artigos
que, embora não se detenham na análise do texto do documento de
1932, auxiliam a compreender o próprio processo de sua elaboração
e/ou da sua constituição como marco na historiografia da educação.
É o caso dos artigos “Pensamento republicano e reconstrução social
no(s) Manifesto(s): formas e falas”, de Marcos Cezar de Freitas; “O
Manifesto e a Liga Internacional pela Educação Nova”, de Marta
Carvalho; “Do Manifesto dos pioneiros à sociologia educacional:
ciência social e democracia na educação brasileira”, de Marcus
Vinícius da Cunha e Marcelo Augusto Totti; e “Às margens do Manifesto dos pioneiros da educação nova”, de Clarice Nunes. De modo
geral, os textos auxiliam o leitor a compreender que, como afirma
Freitas, apesar da forte heterogeneidade que caracteriza o conjunto
dos seus signatários, o Manifesto “pode ser identificado como um
grupo republicano agindo e argumentando a favor do aperfeiçoamento da República” (p. 205). Nesse processo, ganha relevo o papel
da ciência como um dos pilares para a construção da nova mentalidade modernizadora no campo da educação, que os pioneiros buscaram instaurar (como mostram Marcus Cunha e Marcelo Totti) e
torna-se necessário o apagamento de rastros modernizadores não
republicanos, como o dos professores imperiais, como afirma Clarice
273
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
Nunes. Essa nova mentalidade modernizadora na educação, por sua
vez, não se construiu apenas, como vêm mostrando alguns estudos,
com base nas relações estabelecidas entre os pioneiros e os Estados
Unidos mas, como mostra Marta Carvalho em um artigo denso e
repleto de informações pouco exploradas na historiografia da educação brasileira, também entre os escolanovistas brasileiros e intelectuais europeus, principalmente mediante a Liga Internacional pela
Educação Nova, fundada na França.
Em um terceiro conjunto, como já explicitado, agrupei os artigos que se propõem a discutir aspectos relacionados às concepções
e às práticas educacionais dos pioneiros: “Anísio Teixeira e a Escola
Nova”, de Ana Waleska Mendonça; “A casa, a escola ou o trabalho:
o Manifesto e a profissionalização feminina no Rio de Janeiro (19201930)”, de Diana Gonçalves Vidal e Rosane Nunes Rodrigues; “Manifesto dos pioneiros de 1932: o direito biológico à educação e a
invenção de uma nova hierarquia social”, de Cynthia Greive Veiga;
e “A reação de Minas ao Manifesto dos pioneiros da educação nova”,
de Ana Maria Casassanta Peixoto. Os artigos ajudam, de maneira
indireta, a compreender o Manifesto na medida em que esclarecem
concepções e práticas educacionais dos signatários (Ana Waleska
Mendonça, Diana Vidal e Rosane Rodrigues e Cynthia Veiga) e as
faces assumidas pelo escolanovismo em diferentes Estados (Ana
Maria Peixoto). Destaco, nesse conjunto, o artigo de Veiga que, ao
discutir a influência do ideário higienista e das teorias eugênicas,
baseados no aparato da medicina e da psicologia, na difusão das
práticas escolanovistas, traz elementos pouco explorados sobre a
Escola Nova brasileira, que auxiliam a melhor compreendê-la. Merece destaque também o artigo de Peixoto que, ao analisar o movimento da Escola Nova em Minas Gerais, constata que, por intermédio
da incorporação dos métodos ativos aos princípios da pedagogia cristã, os católicos mineiros buscaram aliar tradição e modernidade,
dando origem a um escolanovismo católico. O artigo instiga o leitor
a entender a Escola Nova em sua diversidade, assumindo uma configuração própria e, às vezes, aparentemente paradoxal, nos diferentes estados brasileiros.
Os artigos reunidos em um quarto conjunto, por sua vez,
extrapolam o tema do Manifesto, guardando somente uma tênue relação com ele. É o caso dos capítulos escritos por Dermeval Saviani,
resenhas
“Setenta anos do Manifesto e 20 anos de Escola e democracia: balanço de uma polêmica”; Silvina Gvirtz e Verônica Oelsner, “El
movimiento de Escuela Nueva y sus estrategias de cambio para el
sistema educativo argentino entre 1920 y 1996”; Eliane Peres, “A
institucionalização da modernidade pedagógica no Rio Grande do
Sul: a criação do Centro de Pesquisa e Orientação Educacionais
(CPOE) – 1943”; Maria Cristina Soares Gouvêa e Cândida Paixão
Gomide, “Uma nova família para uma nova escola: a propaganda na
produção de sensibilidades em relação à infância (1930-40)”. Os
artigos auxiliam a compreender como o escolanovismo e a modernidade pedagógica buscavam irradiar suas concepções não apenas
no interior da escola, mas também em espaços sociais mais amplos,
como a imprensa (Maria Cristina Gouvêa e Cândida Gomide); como
algumas propostas dos pioneiros foram normatizadas e concretizadas por estratégias distintas nos diferentes estados brasileiros (Eliane
Peres) e que faces assumiu a Escola Nova em outros países latinoamericanos, como a Argentina (Silvina Gvirtz e Verônica Oelsner).
No caso do artigo de Dermeval Saviani, pode-se afirmar que, ao
debruçar-se primordialmente sobre o livro Escola e democracia, de
sua autoria, pouco auxilia a compreender o Manifesto, mas pode
interessar aos pesquisadores que buscam compreender as disputas
intelectuais contemporâneas, no Brasil, no campo da educação e,
particularmente, da história da educação. Nesse sentido, o leitor deve
proceder à leitura desse capítulo em conjunto com o pós-escrito de
Clarice Nunes no artigo de sua autoria.
Espero que, ao final desta resenha, o leitor tenha percebido que,
embora desiguais, os artigos reunidos no livro trazem, cada um a
seu modo, subsídios para uma melhor compreensão do texto do
Manifesto, do processo de sua elaboração, das concepções e das práticas educacionais dos seus signatários e dos motivos que o levam a,
recorrentemente, ser objeto de homenagens e de estudos. Como
explicita José Gondra no prefácio, a tradição de manifestar-se na
educação brasileira é anterior ao Manifesto e continua depois dele.
Talvez isso explique a recorrência das celebrações em torno do documento, vistas como oportunidades públicas de referendar-se as
principais teses do texto, ainda hoje não plenamente realizadas.
Em contrapartida, o livro também nos permite analisar as formas como o Manifesto e, de maneira mais ampla, a Escola Nova,
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vêm sendo estudados: ora a partir de um olhar mais panorâmico,
calcado nas dimensões política e ideológica do movimento, ora focalizando aspectos propriamente pedagógicos, ora detendo-se no
ideário de seus principais representantes. Em alguns casos, as pesquisas baseiam-se apenas em fontes “secundárias”; em outros, em
documentos de arquivos, brasileiros e estrangeiros. A produção contemporânea de um discurso sobre o escolanovismo brasileiro é, assim, marcada por tensões que certamente se relacionam aos lugares
ocupados pelos pesquisadores que o estudam. Não apenas o estudam mas, por diferentes motivos e estratégias, conseguem fazer os
resultados das suas pesquisas circularem e serem recorrentemente
reiterados em outros trabalhos.
Muitas vezes essa repetição de afirmações sobre o movimento
apaga a emergência de outros discursos possíveis sobre a Escola
Nova no Brasil. Acredito que o deslocamento do já dito é possível,
inicialmente, mediante realização e difusão de pesquisas sobre o escolanovismo em diferentes estados, pois certamente em cada um
deles a Escola Nova assumiu uma configuração diferente e específica. É preciso complexificar a idéia de que o modelo paulista foi
“irradiado” para o restante do Brasil, como se os demais estados
brasileiros, muitos com uma tradição cultural de séculos, fossem
“tábula rasa” no que diz respeito à construção de uma modernidade
pedagógica. O artigo de Ana Maria Peixoto, no livro, mostra essa
necessidade, ao trazer informações detalhadas de como, em Minas,
em um aparente paradoxo, a Escola Nova foi católica, modelo que
será encontrado em outros estados principalmente durante o Estado
Novo. Para dar outro exemplo, em Pernambuco, a experiência de
modernidade pedagógica liderada por Ulisses Pernambucano, ainda
no final dos anos de 1910, é praticamente ignorada pela historiografia dedicada ao tema.
É preciso também, embora pareça óbvio, incorporar novas fontes às pesquisas sobre Escola Nova no Brasil, muitas das quais encontram-se espalhadas aqui e em outros países. Os discursos
generalizantes sobre o movimento, baseado primordialmente nas
obras dos pioneiros, parecem estar dando sinais de esgotamento.
Além disso, a investigação de aspectos quase silenciados do pensamento dos intelectuais escolanovistas é extremamente necessária,
como faz Cynthia Veiga em relação à eugenia. Em outros casos, a
resenhas
277
formulação de perguntas que não compõem o repertório daquelas
exaustivamente repetidas ao longo dos trabalhos sobre o tema pode
abrir portas para uma série de pesquisas que certamente auxiliarão a
elucidá-lo. Mirian Warde, ao questionar a ausência, entre os signatários, de nomes vinculados ao escolanovismo, e Marta Carvalho, ao
questionar o papel da Liga Internacional pela Escola Nova na configuração do escolanovismo brasileiro, certamente dão pistas para investigações futuras que não se limitam ao já dito.
Acredito, ainda, que faltam pesquisas sobre a incorporação do
ideário escolanovista nas práticas educativas nas diferentes instâncias dos sistemas escolares ao longo de várias décadas. Certamente
o artigo escrito por Silvina Gvirtz e Verônica Oelsner pode provocar, entre nós, o desejo de realização de estudos que abarquem a
diversidade de experiências escolanovistas ocorridas no Brasil, em
diferentes períodos e espaços sociais. Embora a historiografia da
educação brasileira recente tenha criticado a realização de pesquisas
baseadas sobretudo na legislação escolar e na obra dos grandes pensadores, os estudos sobre o Manifesto e sobre a Escola Nova tendem
a ignorar as práticas.
Como afirma Cury, em seu artigo, são tantas as pesquisas já
realizadas sobre o Manifesto que já merece ser realizado um estado
da arte sobre o tema. Por meio de um balanço das pesquisas que
vêm sendo desenvolvidas sobre o documento e o movimento
escolanovista no Brasil certamente será possível chegar a algumas
conclusões mais gerais sobre a temática e melhor compreender a
diversidade que se encontra na aparente unidade, como adverte Ana
Waleska Mendonça em seu artigo, da expressão Escola Nova no
país. É possível, também, assinalar as ausências e os não-ditos com
mais propriedade e, dessa forma, abrir caminho para a emergência e
divulgação de novas pesquisas.
O livro, de certa forma, como tentei mostrar aqui, já nos põe a
par das abordagens, das fontes e das análises que vêm sendo privilegiadas para tratar da temática por alguns dos principais pesquisadores brasileiros (e argentinos) da área de história da educação; por
isso sua leitura é fundamental.
Ana Maria de Oliveira Galvão
Professora da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Orientação aos Colaboradores
A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,
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apresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexão
teórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdo
da obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textos
recentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura devem trazer uma notícia de publicação recente.
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pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. A primeira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome e inserção institucional do autor. Deve conter também o resumo em
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completo do artigo em português e em inglês, seu nome, titulação e
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Extensão mínima e máxima, respectivamente:
• Artigos – de 30 mil caracteres a 60 mil caracteres (aproximadamente de 15 a 30 páginas). Cada resumo que acompanhar
o artigo deverá ter, no máximo, 700 caracteres (contando
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revista brasileira de história da educação n° 9 jan./jun. 2005
espaços). Para contar os caracteres no Word, no item “Ferramentas”, a opção “Contar palavras”. Para as palavras-chave,
consultar as Bases de Dados: Lilacs, Medline, Sport Discus.
• Resumos e abstracts – os resumos e abstracts dentro de
cada artigo não devem ter mais de 4 linhas cada.
• Resenhas – de 8 mil caracteres a 15 mil caracteres (aproximadamente de 4 a 8 páginas).
• Notas de leitura – de 2 mil caracteres a 4 mil caracteres
(aproximadamente de 1 a 2 páginas).
As indicações bibliográficas, no corpo do texto, devem vir no
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6023:2000. Notas de rodapé, em numeração consecutiva, devem ter
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Contents
EDITORIAL
7
ARTICLES
Techonologies of ordering of elementary school in century XIX: curriculun
and intuitive method of the primary school in the North-american (1860-1880)
Rosa Fátima de Souza
9
Institute of Education Files: the new school memory
holder in Federal District (1930’s)
Sonia de Castro Lopes
43
The childhood production in the scripturistic administration
of elemetary school instruction in XIX century
Cynthia Greive Veiga
73
Professional struggles within the moralized and civic system of a school:
the experience of teacher Manoel Jose Pereira Frazão
in Imperial Court (1870-1880)
Alessandra Frota Martinez de Schueler
The trace of north americans cultural and pedagogical influencies in
the educational thought of Fernando de Azevedo
José Cláudio Sooma Silva
The school dissemination and the bourgeois society affirmation
António Gomes Ferreira
109
139
177
Debate about mathematics teaching method in the 1930s
José Lourenço Rocha
199
The representation of elementary theachers: political strategy
and teachers habitus
Rosario S. Genta Lugli
231
BOOK REVIEWS
The intellectual in the Middle Ages. Translated by Marcos Castro
By Gesuína de Fátima Elias Leclerc
263
Education Pioneer’s Manifest: one bequest education in debate
By Ana Maria de Oliveira Galvão
271
GUIDES FOR AUTHORS
279
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