Formação da obra de arte
O formar como “fazer” que, enquanto faz, inventa o “modo de
fazê-lo”: uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
Íris Fátima da Silva *
Resumo: O propósito do presente texto é trazer à luz breves considerações acerca do formar como
“fazer” que, enquanto faz, inventa o “modo de fazê-lo”: uma perspectiva estética em Luigi Pareyson,
para quem, “produção é ao mesmo tempo e indivisivelmente, invenção”. A interpretação pessoal é o
tornar evidente a própria obra, isto é, o dar-se, revelar-se, o descortinar-se da obra em si. O interpretar
é de acordo com Pareyson, em si, sempre pessoal; entretanto é apenas uma forma dentre tantas outras
possíveis. A pluralidade das interpretações não deve ser considerada uma desvantagem, longe
de ser um “defeito” é já uma revelação da inexorabilidade do pensamento humano. Ao
conceber a interpretação como singular, evidencia-se a historicidade do contexto e a
personalidade do pensante. Iniciaremos com algumas considerações acerca da estética, em
seguida, trataremos da forma como execução e o formar como experimento.
Palavras-Chave: Estética; Formatividade; Interpretação, Luigi Pareyson; Obra de arte
Abstract: The purpose of the present text is to bring into light brief considerations
concerning forming as “doing” that, while it does, it invents the “way of doing it”: an aesthetic
perspective in Luigi Pareyson, for whom, “production is, at the same time and indivisibly,
invention”. The personal interpretation is the making evident of the work itself, that is,
giving, revealing, pulling the curtain of the work in itself. Interpreting is in agreement with
Pareyson, in itself, always personal; however, it is just one form among many other possible
ones. The plurality of interpretations should not be considered a disadvantage; far from
being a “defect” it is already a revelation of the inexorability of human thought. When
conceiving the interpretation as singular, it is evidenced the historicity of thinkers context
and personality. We will begin with some considerations concerning aesthetics, and treat
about the form as execution and the forming as experiment freewards.
Key words: Aesthetics; Artwork; Formativity; Interpretation; Luigi Pareyson
1 O que é estética?
A estética embora se encontre em uma daquelas zonas periféricas da filosofia
na qual não se sabe bem onde começa e/ou termina o discurso filosófico nos
remete a pergunta se temos competências técnicas para falar de criadores,
*
Doutoranda em Filosofia – PPGFIL-UFRN. E-mail: [email protected] Artigo recebido
em 07.08.2009, aprovado em 15.11.2009.
Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 135-148
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Íris Fátima da Silva
contempladores e juízes da beleza e da arte. Qual a relação entre o fazer e a
invenção? O “fazer” na sua historicidade tem um papel importante na
renovação estética filosófica da atualidade. A natureza da estética é
abrangente, no entanto não é normativa, não agrega princípios a fim de
julgar o que é arte, isso é atribuição da teoria e da crítica de arte. A estética
evidencia a necessidade da discussão da relação do leitor com a obra, só
através desta experiência poder-se-á alcançar conclusões teóricas universais.
Não obstante, a estética não está preocupada com uma obra específica, ao
contrário, ocupa-se, sobretudo de um conjunto de obras que consentem ao
teórico criar teorias. De acordo com Luigi Pareyson 1 a estética se preocupa
com a experiência concreta da arte, cabe a poética normatizá-la e especificar
as leis e regras de determinada arte. A tal propósito, Pareyson apresenta-nos
a questão da experiência estética como objeto essencial para discutir o
caráter especulativo da mesma e isso é sem dúvida interessante e sugestivo
nos remete a questões concretas e bem determinadas, no âmbito de revelar
também ao profano a utilidade e a eficácia da experiência da produção e
contemplação do belo, e a reflexão filosófica posta em foco originando
resultados universais e sistemáticos e renovando continuamente a si mesma
(Pareyson, ETF, 2005, p. 15).
1
Luigi Pareyson (1918-1991) ensinou Estética de 1945 a 1964 na Universidade de Turim,
sua terra natal, torna-se catedrático em Filosofia Teorética por longos anos e forma uma
“Escola” com nomes reconhecidos em todo o mundo como Umberto Eco, Gianni
Vattimo, Giuseppe Riconda e tantos outros. Foi um dos primeiros intérpretes italianos do
existencialismo. Em 1939, com apenas 21 anos publica a primeira edição de La filosofia
dell’esistenza e C. Jaspers, publicado em segunda edição revisado em 1940, logo em seguida:
publica Studi sull’esistenzialismo, 1943. Investiga profundamente o pensamento alemão dos
séculos XVIII e XIX e nos contempla com obras como Fichte, 1950; Shelling, 1975, Verità
e Interpretazione, 1971. Filosofia della libertà, 1989. Esistenza e Persona, (5ª Edizione),
2002. Ontologia della Libertà. Il male e la sofferenza, 1995 e 2000. Estetica dell’idealismo
tedesco III. Goethe e Schelling, 2003. Estetica dell’idealismo tedesco I. Kant e Schiller, 2005. La
sofferenza inutile in: Dostoevskij, in “ Giornale di Metafisica’, 4, 1982, 1, p. 123-170.
Heidegger: la libertà e il nulla, in: ‘Anuario filosofico’, 5, 1989, p. 9-29. La ‘domanda
fondamentale’:’Perché l’essere piuttosto che il nulla?’, in: ‘Anuario filosofico’, 8, 1992, p. 9-36.
La natura tra estetica e ontologia, in: ‘Anuario filosofico’, 9, Milano, 1993, p. 9-23. Essere e
libertà. Il principio e la dialetica, 1983, in: ‘Anuario filosofico’, 10, 1994, p. 11-88. Limitome aqui apenas as obras mais conhecidas. Ressalto, entretanto que as Obras Completas já
estão em vias de publicação.
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
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Ao que se refere ao caráter visível da estética, o autor vincula a
relação da estética com a experiência concreta, considerando-as inseparáveis,
de modo que a especulação sem base na experiência torna-se abstração
estéril. Assim como, a apreciação dos objetos estéticos sem o
aprofundamento filosófico torna-se mera descrição. De acordo com
Pareyson há dois caminhos distintos, no entanto convergentes para se
chegar ao problema da estética: o primeiro dar-se através do filósofo que
dedica seu pensamento à arte, o segundo investigando a própria arte.
Contudo, no ato da experiência concreta com a arte surge uma consciência
crítica sobre a própria atividade artística, desde que os dois caminhos
passem por examinar a obra de arte em si mesma e através de um
aprofundamento especulativo, o que é a verdadeira especificidade da
estética.
Vale lembrar, que com a intenção de diferenciar a estética da
crítica, o teórico afirma claramente que a crítica não pode ser confundida
com a estética, na medida em que a crítica compreende a experiência
estética como objeto de seu estudo. A função da estética não é definir
critérios de análise para o crítico, mas, ao analisar os critérios usados pela
crítica, desenvolve uma reflexão que serve ao crítico e acaba por interferir
inevitavelmente no seu trabalho e, por conseguinte no trabalho do artista
por originar-se nesse ínterim uma ciclicidade. Para Pareyson, estética e
teoria da arte são naturalmente duas coisas distintas, uma vez que a teoria
desenvolve normas e regras para a arte. A diferença entre crítica e poética
dar-se na sutileza do vir a ser, ou seja, a “poética se ocupa da obra por fazer e
a crítica avalia a obra feita. A estética tem a função de adequar a execução à
arte, e a crítica a de avaliar a obra de arte”.
Não podemos deixar de considerar aqui a indissociabilidade de
receptividade e atividade na sutileza do operar humano. Pareyson nos
explica que o operar humano é caracterizado pelo fato que ele (o operar)
não é criativo pó si: todas as atividades da pessoa remetem sempre a um
estímulo, uma sugestão, uma alusão da qual surge o início e revelam a
receptividade para a qual nem é receptividade absoluta, nem absoluta
atividade, não se trata nem de passividade nem de criatividade, no operar
humano receptividade e atividade são indissociáveis constituem o
acontecimento. O operar humano é sempre pessoal. “A iniciativa humana
não se inicia por si, mas é iniciada, e começa o próprio movimento somente
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Íris Fátima da Silva
enquanto é principiada.” (Pareyson, ETF, 2005, p.180). A crítica observa a
obra considerando o valor que ela apresenta para si mesma, na sua
configuração estética, e propõe uma discussão entre o artifício e o fazer da
obra, a partir da própria obra. Nesse sentido, a poética diz respeito ao fazer,
a feitura, ao produzir da obra, no entanto a crítica, como afirma Pareyson,
já tem à mão a obra feita, basta descobrir essa produção e fazer a avaliação
do poético, ou seja, a crítica poética. Ao que se referem aos diversos âmbitos
artísticos os problemas detectados devem ser tratados pela estética, sem
desconsiderar a unidade da arte, e os conceitos universais elaborados pela
estética devem ser tratados nos diversos campos da arte.
Pareyson ressalta a peculiar sutileza entre estética e poética, nota
que a estética não pode transformar em divergência filosófica os duelos que
as diversas poéticas travam ao longo dos anos, haja vista não ser possível
contrapor filosoficamente questões de arte que são, em suma, diferenças no
âmbito do gosto. Uma poética tal, só tem validade dentro de seu campo de
atuação, mas em virtude de a poética definir normas, passa a querer definir
como arte apenas as que seguem suas regras, apresentando a intenção de
tornar-se estética, distanciando-se da sua especificidade ao considerar a
experiência poética. Nesse sentido, Pareyson afirma que uma poética é
eficaz somente quando propõe normas que traduzem toda a espiritualidade
de uma época transformada em expectativa de arte.
Retomando o que já aludimos anteriormente, a natureza e a tarefa
da estética não são normativas, sobretudo pelo seu caráter filosófico. De
acordo com Pareyson – a reflexão sobre a experiência estética é legítima,
enquanto a poética e a teoria de cada arte são de caráter normativo –
desenvolvem normas e regras sobre as questões da arte, estabelecem seus
limites. A poética precede a obra, “ainda por fazer”, regulamenta a produção
artística. Todavia a crítica analisa e ajuíza a obra feita. Mas a arte é um fazer,
que tem um sentido mais profundo, já que não se trata do simples executar
de uma atividade, a arte é invenção, criação, inovação não apenas de
artefatos que têm vida própria, mas de formas originais que transcendem a
realidade, justamente por recriá-las.
Pareyson no decorrer das suas investigações desenvolve com
originalidade e paixão uma formulação da teoria da arte como formatividade
considerada um de seus pontos cardinais. A fenomenologia do processo
artístico é investigada com o rigor da sua reflexão estética, complexa e
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
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instigante no âmbito da obra de arte, caracterizando-a na sua especificidade.
Em suma, a estética é do âmbito da filosofia, mas pesquisa a expressão
artística. Para tanto, terá que levar em conta outras áreas que estão
intrinsecamente ligadas à arte, tais como a poética, a crítica, a teoria de cada
arte, a história da arte, a experiência do artista, o leitor, isto é, o intérprete,
mesmo que, segundo Pareyson, a estética seja sutilmente distinta de todas
essas áreas. Por sua natureza especulativa explora investigações mais
universais sobre a arte descortinando a expressão artística, levando suas
indagações ao seu limite. Sabemos que a natureza da filosofia fundamenta-se
no problema a investigar. Sua grande questão é: Por quê? O que significa?
Qual o Problema? O que está por traz? Isto é, o que nos faz produzir uma
outra experiência.
Depois de Baumgarten (1714-1762) criador do vocábulo Aesthetica
(= estética). (foi numa de suas obras mais famosas Aesthetica escrita em latim
entre (1750-1758) onde tornou conhecido o conceito da nova palavra). A
partir da discussão originada pelas provocações de Baumgarten o conceito
de fim da arte defendido por Hegel e analisado por outros estudiosos no
século XVIII, determinou estéticas negativas como as que subjazem ao
dadaísmo, surrealismo, cubismo e expressionismo. “Escolas” literárias
importantes para a compreensão da estética. Hegel não concebe que a arte
possa significar para o homem moderno o que significava para os gregos
e/ou medievais. A revelação direta de uma dimensão divina, que não era
considerada um mito criado pela imaginação humana, mas ao contrário
durante uma longa trajetória da história do homem no mundo, o
fundamento de sua existência, isto é, o sentido de sua existência. Ao homem
moderno não interessa mais o contentar-se com a contemplação estética
imediata como um meio suficiente de contemplar essa verdade, ele inventou
para si mesmo a imprescindibilidade do refletir e do pensar sobre a arte.
Hegel expõe esta idéia de que a partir da idade moderna: “O pensamento e
a reflexão sobrepujaram a bela arte”.
As teorias estéticas desenvolveram-se, sobretudo no século XX
buscando uma significação “moderna” para a obra de arte. Não obstante, é
possível olhar os movimentos artísticos, não como derivações de descobertas
científicas, mas, ao contrário, como elementos impulsionadores dessas
descobertas, o que nos conduz a voltar o nosso olhar para o significado
“renovador” da interpretação para Pareyson. Nos manteremos atentos à sua
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Íris Fátima da Silva
Estetica. Teoria della formatività, onde a execução e interpretação da obra de
arte são investigadas através da personalidade da interpretação e infinidade da
obra como fundamento da variedade das execuções. 2 . A propósito do primeiro
problema, nos afirma o autor que só o conceito de “interpretação” pode nos
explicar como as execuções possam ser múltiplas e diversas sem que com
isto seja comprometida a unidade e identidade da obra, mas que executar
significa, acima de tudo interpretar. Haja vista a natureza da interpretação
consiste no declarar e revelar o que se interpreta e expressa ao mesmo tempo
à pessoa do intérprete, reconhecer que a execução é interpretação significa
dar-se conta que ela contém simultaneamente a identidade imutável da obra
e a sempre distinta personalidade do intérprete que a executa. Os dois
aspectos são inseparáveis: por um lado se trata sempre de tornar a fazer viver
a obra como ela mesma quer, e por outro e sempre novo e diverso o modo
de torná-la e fazê-la viver (Pareyson, ETF, 2004, p. 226).
Pareyson defende a interpretação pessoal como o único modo pelo
qual a obra pode dar-se, pode mostrar-se, aparecer e conseqüentemente ser.
Mas esse aspecto pessoal da interpretação não é uma desvantagem - no
sentido que na interpretação seja acessível somente um aspecto relativo da
obra e nunca a obra como é “em si” -, porque ao contrário as várias
interpretações são toda a própria obra, dado que a obra não existe além das
suas execuções, não existe um lugar onde se encontre a obra como é em si,
porque a obra não aparece, isto é, não é do lado de fora, no além das suas
interpretações pessoais, ela é propriamente o seu mostrar-se.
Poder-se-ia distinguir dois aspectos da interpretação. Por um lado,
a interpretação é a obra mesma, e por outro, a interpretação é sempre
pessoal, mas somente uma das tantas possíveis. Com efeito, todo intérprete
deve manter a sua execução a única possível, mas ao mesmo tempo ser
consciente do fato, que existem inúmeras outras, igualmente válidas. No
entanto só se toda interpretação é a obra mesma há sentido confrontá-las e
só com esta promessa dar-se a possibilidade de um diálogo que seja
verdadeiramente diálogo, e logo diálogo entre pares. Fiel a obra se é apenas
2
Pareyson, Luigi, Teoria della formatività, (IV edizione), p. 226. Personalidade da
interpretação e infinidade da obra como fundamentos da variedade das execuções. Pareyson
afirma que só o conceito de “interpretação” está em grau de explicar como as execuções podem ser
múltiplas e diversas sem com isso seja comprometida a unidade e identidade da obra, e sim que
executar significa, acima de tudo, interpreta (trad. Nossa).
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
141
na interpretação pessoal. Neste sentido, em sua obra Esistenza e Persona
Pareyson precisa: “A interpretação é ao mesmo tempo revelativa e expressiva:
é um conhecimento no qual o objeto se revela na medida em que o sujeito
se expressa, de tal modo que subjetividade e objetividade [...] estão em
proporção direta”.
2 A forma como execução e o formar como operar humano
Pareyson em sua Teoria da fomatividade (Pareyson, ETF. 2005, p, 60), nos
chama atenção para: um fazer que ao mesmo tempo inventa o modo de fazer o
que implica que se proceda por tentativas, e o bom êxito de uma operação
deste gênero, é propriamente uma conquista; não se pode penetrar a
natureza da forma e do formar (formar significa por um lado fazer,
produzir, realizar e por outro, inventar o modo de fazer), se não se colhe o
inseparável nexo que combina respectivamente com a conquista e com o
tentar. De acordo com Pareyson “toda operação humana é sempre
expressiva, no sentido que é sempre acompanhada pelo sentimento, e brota
sempre daquele primeiro olhar da interpretação, daquele sentido das coisas,
daquele especial modo de ver, que é característico da simples e irrepetível
pessoa, e que se condensa sempre em um sentimento” 3 .
Assim sendo, compreender uma obra de arte não significa apenas
explicitar um significado que transcende o seu corpo físico (como se a obra
não passasse de um simples meio, um simples veículo cognoscitivo à espera
de explicitação, e como se compreender fosse possuir de uma vez por todas a
sua insondável realidade física e espiritual), mas, mais precisamente,
interpretá-la, entrar em diálogo com ela, responder ao seu vivo apelo, quer
dizer, ao vivo apelo que ela própria é, enquanto fundadora de um mundo
que nasce com ela. Trata-se, enfim, de reconhecê-la, ao mesmo tempo,
como uma forma e um mundo: “[...] uma forma que não exige valer senão
como pura forma e um mundo espiritual que é um modo pessoal de ver o
universo”. 4 Mas só se pode vê-la como tal quando se tem presente a sua
organicidade e o seu caráter dinâmico e processual. São esses fatores que
atestam a alteridade a e irredutibilidade da forma artística relativamente aos
pré-condicionamentos de qualquer natureza e que evidenciam o seu caráter
3
Pareyson, Luigi. Teoria dell’Arte. Saggi di estetica, Milano, Marzorati, 1965, p. 53-54.
4
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext&pid=s0100_s12x2005000200018#mt10.
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Íris Fátima da Silva
hermenêutico e ontológico: hermenêutico, no sentido de que a sua
interpretabilidade não é algo externo, secundário, posterior a conclusão, ao
contrário, é um aspecto, constitutivo de sua gênese interna; ontológico, no
duplo sentido de que a) é produto do agir de uma pessoa e, assim como
esta, está em relação com o ser; b) de que se impõe, ela própria, como uma
realidade, cujo fundamento reside nela mesma, na sua própria constituição
interna, e não em algo já dado e pré-constituído.
Bem no início da sua investigação sobre o problema da especificação
da arte Pareyson nos chama atenção para a constatação que a estética é
reflexão filosófica sobre a experiência estética (Pareyson, ETF, 2005, p. 18).
No entanto, isso não significa cair em um círculo, já que a estética toma os
movimentos da experiência propriamente, a qual, se devidamente
interrogada, ela mesma mostrará e denunciará, no seu vasto âmbito os
aspectos ou as zonas que têm um caráter estético ou artístico. Ao comparar a
arte com qualquer outra atividade, não se alcançará nunca uma definição
como operação específica se a inteira experiência não tivesse já ela mesma
um caráter de esteticidade e artisticidade: como operação própria dos
artistas a arte não pode resultar a não ser da acentuação intencional e
programática de uma atividade que é presente em experiência humana por
inteira, e que acompanha, a propósito, constitui cada manifestação da
operosidade do homem.
Não obstante, esta atividade, que insere genericamente a todo
experimento e que, se oportunamente especificada, constitui aquilo que
normalmente chamamos arte, é a formatividade, isto é, um tal fazer que
enquanto faz, inventa o modo de fazer: produção que é, ao mesmo tempo e
indivisivelmente invenção. Todos os aspectos da operosidade humana dos
mais simples aos mais articulados apresentam um caráter, ineliminável e
essencial de formatividade de acordo com Pareyson em (Pareyson, ETF,
2005, p, 18). Chamamos atenção para outra importante obra do Pareyson,
Os Problemas da Estética. Nessa obra o autor ressalta o argumento que a
reflexão estética, a partir da origem etimológica do termo, mesmo nos
remetendo à relação da estética com a filosofia, permanece sem grandes
alterações desde sua adoção no século XVIII, onde a influência do
romantismo tornava evidente a relação entre o belo e o sentimento. Vale
dizer, que o conceito de estética a partir de então foi sendo reconstruído,
buscando um ponto de reflexão com o vislumbre do grande acontecimento,
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
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isto é o surgimento da arte moderna onde o belo, no sentido clássico, não
era mais o objetivo da arte. Em tal reflexão o argumento era que a beleza
não estaria no objeto, e sim, no resultado da arte, na idéia. Relacionar o
termo estética ao belo, nos conduz à reflexão que a arte é a idéia, não é o
objeto mesmo, no entanto nos remete à questão filosófica em si, isto é, o
que nos conduz a perguntar o que está por traz das coisas do cotidiano? A
experiência estética lida com a singularidade de uma forma. Pareyson nos
chama atenção para o caráter concreto da estética. A relação da experiência
estética com a experiência concreta é inseparável, de forma que a
especulação sem base na experiência torna-se abstração estéril, ao mesmo
tempo em que, a análise dos objetos estéticos sem o aprofundamento
filosófico torna-se mera descrição.
A estética da formatividade de Pareyson define a arte como um
legítimo êxito de uma atividade modeladora e especificamente própria da
forma artística o que caracteriza o cerne do seu conceito de autonomia da
arte, desenvolvendo uma estética de âmbito especialmente ontológico.
Pareyson pretende evitar o labirinto das teorias que se perdem tanto na
exaltação de formalismos abstratos, quanto àquelas que tomam como ponto
de partida um suposto conteúdo da obra de arte e, depois, não têm como
explicar a passagem decisiva do conteúdo em si ao plano da arte. Mas o que
Pareyson de fato entende por forma artística e sobre como esta se especifica?
Em arte, explica ele, a forma se especifica como um legítimo êxito, isto é,
como conclusão de um processo cuja única condição de êxito é o próprio
amoldamento a si mesmo e a nenhum outro fim ou valor externo.
Segundo Pareyson a particularização formativa não subentende a
atividade isolada de uma formatividade vazia, (isto não seria possível,
considerando-se que a pessoa se faz sempre presente em todos os seus atos),
mas, ao contrário, requer, para a sua sustentação, toda a plenitude da vida
espiritual de quem opera, toda a sua vontade expressiva e comunicativa,
traduzidas em modo de formar. É assim, portanto, quer dizer, já como
componente orgânico da obra de arte, que o mundo do artista se faz
presente na obra. Esse conceito de modo de formar permite entender o
caráter auto-referencial do discurso artístico, enquanto discurso originador,
que se constitui não somente como discurso sobre, mas, primordialmente,
como fundador de uma linguagem e, portanto, de um mundo próprio que
com ele se origina. O discurso primordial de uma obra de arte é, pois,
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Íris Fátima da Silva
aquele que ela faz dispondo suas formas de um modo específico — e não
simplesmente o conjunto de juízos que ela eventualmente pronuncia sobre
determinado assunto. No seu conteúdo legítimo revela-se, então, o seu
próprio modo de formar, enquanto modo de ver a realidade e de atuar sobre
ela. É desse prisma que Pareyson teoriza a questão da autonomia da arte e
das suas relações com a realidade (Pareyson, ETF, 2005, 246).
De acordo com Pareyson a forma artística, é, essencialmente,
matéria formada, dizer que a forma é matéria formada significa dizer que ela
é, de per si, um conteúdo, um “conteúdo expresso”, para usar o termo de
Pareyson na forma artística, tudo está carregado de significação, até as
inflexões estilísticas mais discretas, enfim, tudo é significado. Dizer, pois,
que a forma é matéria formada é o mesmo que dizer que ela é coincidência
perfeita de forma e conteúdo: matéria formada é matéria humanizada,
espiritualizada, impregnada de significado e de expressividade. Observe-se
que essa identidade não é apenas entre forma e conteúdo, mas entre forma,
entendida como matéria formada, e conteúdo, entendido como conteúdo
expresso, o que pode ser traduzido em uma fórmula bastante ilustrativa:
forma = matéria formada = conteúdo expresso. A analogia dar-se devido ao
propósito que tudo que integra, especificamente, a composição da forma
artística ali está enquanto já assumido pelo gesto formativo do artista e em
submissão à lei orgânica que presidiu todo o processo. A obra de arte
apresenta-se, então, como uma contração orgânica de valores diversos,
dotada de legitimidade interna, de autônoma consistência e, ao mesmo
tempo, de uma basilar ligação com a realidade de onde brota. Vale dizer, ela
já insurge de suas posições com uma particularização própria (Pareyson,
ETF, 2005. PP, 46-47).
Ao que se refere à forma artística propriamente, esta apresenta-se
como resultado de uma gênese formativa que ela mesma dirige e que nela se
inclui de modo indelével. Esse acabamento, evidentemente, não é algo que
se acrescenta (como acontece, por exemplo, quando se faz consistir o
problema artístico em dar uma forma estética a um dado conteúdo), mas
subentende uma teleologia interna, explicada por Pareyson como uma
atuação da própria obra como formante, bem antes de se concluir como
forma formada. Entenda-se que o procedimento da arte contém em si
mesmo a própria direção, porque o tentar, não sendo nem preventivamente
regulado nem abandonado é por si só orientado pela passagem da obra a
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
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qual comanda, define. E esta antecipação da forma não é propriamente um
conhecimento preciso e uma visão clara, porque a forma existirá somente
com o processo concluído e executado, mas nem mesmo uma vaga sombra e
uma larva pálida, que seria idéias e não propósitos infecundos. Trata-se
verdadeiramente de um presságio e de uma divinização, na qual a forma não
é encontrada e colhida, mas intensamente atendida e esperada (Pareyson,
ETF, 2005, p, 75).
Pareyson institui um vínculo efetivo e indivisível entre os três
momentos basilares da experiência da arte: a gênese, a forma acabada e a
interpretação. Interpretação em Pareyson é definida como: “uma tal forma
de conhecimento na qual, por um lado, receptividade e atividade são
inseparáveis, e, por outro, o conhecido é uma forma e o conhecedor é uma
pessoa” (Pareyson, ETF, 2005, p, 18). Os referidos momentos são períodos
que se interligam na obra mesma ao passo em que esta, no ato mesmo em
que se mostra como fim de um processo formativo, revela-se como abertura
a inexauríveis interpretações, atuando como lei diretora, em primeiro lugar
para o autor, e, posteriormente, para o intérprete. Por conseguinte, a
importância desse atrelamento íntimo obriga-nos a outra consideração
imprescindível, isto é, a forma artística, bem mais do que ser expressão de
um mundo acabado, é, na sua essência, um começo, uma fenda permanente
ao diálogo, em virtude de ser uma fonte perene de significados, propícios a
iluminar, de modo sempre renovado a realidade à sua volta e de transformar
qualitativamente o lugar do homem e das coisas no interior dessa realidade.
Na estética de Pareyson, ao contrário, a autonomia da obra de arte revelouse um traço distintivo dela mesma, intrinsecamente ligado à sua
particularidade como arte.
Pareyson chama atenção para três aspectos fundamentais ao que se
refere à sustentação teórica dessa autonomia: 1). identidade de forma,
matéria e conteúdo, na obra de arte; 2). alteridade da obra frente a seu autor e
seu tempo, enquanto se apresenta, ao mesmo tempo, como lei e resultado do seu
próprio processo de formação; 3). polaridade contínua entre acabamento e
processualidade, pela qual a forma acabada pode colocar-se, não apenas como
acabamento e resultado (o que faria dela um mero objeto de explicitação),
146
Íris Fátima da Silva
mas como abertura a um fluxo interminável de interpretações, ao longo da
história 5 .
Concluímos as nossas breves investigações chamando atenção para
o argumento pareysoniano de que a obra de arte brota com um preciso
condicionamento, mas já explicitada como arte. O que nos remete ao que se
segue: 1) a forma estética já nasce com uma especificação formativa (vale
dizer: nasce já como “conteúdo expresso”); 2) que o seu poder de exercer
esta ou aquela função, o seu potencial revolucionário e libertário, enfim, são
decorrências dessa autonomia e não fatores determinantes em relação à
mesma. Não obstante: se a obra de arte pode desempenhar tais funções, sem
com isso se comprometer na sua autonomia e no seu valor, é precisamente
porque, antes, conseguiu ser arte. Pareyson nos apresenta uma possibilidade
hermenêutica e ontológica importante, não apenas no âmbito de permitir
um olhar completo do fenômeno arte e uma aceitável concepção da sua
autonomia, mas, sobretudo a razão do descortinar da possibilidade de se
repensar, sobre alicerces mais consistentes, o problema do estatuto
ontológico da arte, enquanto alteridade irredutível, não dedutível e não
explicável por condições preexistentes. Nesse âmbito, em meu parecer,
incide uma das contribuições mais significativas da ontologia estética de
Pareyson.
Referências
PAREYSON, Luigi. La filosofia dell’esistenza e Carlo Jaspers, (1939), Napoli,
Loffredo, 1940. Marietti, Genova, 19973 (1931), è la rielaborazione del
vol. La filosofia dell’esistenza e Carlo Jaspers, Loffredo, Napoli, 1940. Si veda
in particolare l’introduzione alle p.3-29 (Lo Jaspers e l’esistenzialismo tedesco)
con continui riferimenti a Karl Barth.
_______ Studi sull’esistenzialismo, (1943), 2 ed., Firenze, Sansoni, 1971.
(nuova edizione; 1951). Si vedano in particolare i due studi su Barth:
L’esistenzialismo di Karl Barth, p.111-182, già apparso in «Giornale critico
della filosofia italiana», (1939); e La dialettica della crisi in Karl Barth,
p.183-205.
5
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext&pid=s0100_s12x2005000200018#mt10.
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
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