A política pública de cotas na UERJ: desempenho e inclusão Autoria: Teresa Olinda Caminha Bezerra, Claudio Roberto Marques Gurgel RESUMO Este artigo objetiva aprofundar o debate sobre a política pública de quotas voltada ao acesso e à permanência de negros e pobres na Universidade brasileira. Ele traz elementos teóricos e empíricos que podem contribuir para que as análises sobre o assunto se verifiquem à luz da teoria da justiça e das evidências práticas. Para isto, toma-se a UERJ como campo de pesquisa. Os resultados indicam que o desempenho nos estudos, de cotistas e não cotistas, é semelhante, que os dois grupos se valorizam academicamente por igual e que a evasão entre cotistas é a metade da encontrada entre não cotistas. 1 Introdução O projeto de lei que quer garantir 20% das vagas para negros e pardos em todas as universidades do Brasil vem gerando opiniões opostas em toda a sociedade. Essa divergência de opiniões tem produzido argumentos contra e a favor da política em tela. Por um lado aqueles que vêem nesta política uma forma de diminuir as desigualdades sociais entre negros e brancos no país. De outro, aqueles que se sentem prejudicados por verem as suas chances, de passar no vestibular, diminuídas. Este artigo tem como objetivo aprofundar este debate sobre a política de quotas na Universidade brasileira, trazendo elementos teóricos e empíricos que possam contribuir no sentido de que as análises sobre o assunto se verifiquem à luz da teoria da justiça e das evidências práticas. Se isto for obtido, teremos ajudado a reduzir o teor individualista e em certos casos preconceituoso que tem muitas vezes envolvido o tema. De passagem, fazemos uma incursão sobre a chamada ação afirmativa, de que é parte a política de quotas, vendo este aspecto como ponto de partida para o debate teórico. Para realizar este trabalho, lançamos mão das reflexões de terceiros, em pesquisa bibliográfica, ao procurarmos trazer autores com representatividade no plano da educação e do pensamento social, jurídico e político, destacamente Rawls. Uma pesquisa de campo foi realizada, tendo em seu apoio uma pesquisa documental, ambas adotando como campo de observação a experiência de aplicação da política quotas, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ. Os estudantes que constituíram a amostra da pesquisa de campo foram aqueles que fizeram vestibulares em 2005 e 2006, quando a reserva de vagas já acontecia na UERJ. Além de examinarmos comparativamente o desempenho destes estudantes no vestibular e no desenvolvimento dos cursos, realizamos um levantamento sociométrico baseado em Moreno (1974, 1992), tendo em vista apurar o grau de acolhimento que aqueles estudantes cotistas obtinham no ambiente escolar. Com as pesquisas de campo e documental procuramos avaliar o quanto a política de quotas obteve de inclusão desses estudantes, seja no plano do conhecimento, seja no plano social, ainda que neste último restrito aos colegas cotistas e não cotistas. Os detalhes das pesquisas de campo e documental acompanharão, na abertura, a apresentação dos resultados, no item 4 deste artigo. De um modo geral, são pesquisas que trazem dados e informações a partir da experiência da UERJ, no Brasil a Universidade pioneira na implementação e execução dessa ação afirmativa, que, como já comentado, tem encontrado muitos críticos. A propósito, na percepção de Cristovam Buarque (2008, s/p), ex-reitor da Universidade Nacional de Brasília e ex-ministro da educação, “aqueles que hoje são contra as bolsas, há séculos são insensíveis à tragédia de um país que condena dezenas de milhões de pessoas à fome e à miséria. Não defenderam no passado a revolução que era necessária para que as bolsas fossem hoje desnecessárias” Também no mesmo artigo “os que são contra nunca se sensibilizaram com a exclusão de negros em nossa elite, e temem que vagas da universidade sejam ocupadas por jovens negros com alguns décimos a menos nas notas do vestibular”. Entende, ainda, o senador que as cotas não se constituem na solução do ensino brasileiro. Paralela às mesmas existe a necessidade de uma revolução na educação de base, porém “não devemos recusar esses instrumentos de discriminação afirmativos, mas tampouco comemorar a necessidade deles” (2008, s/p). Temos em Aquino (2003, p.7), que no pensar de Guimarães, docente do Departamento de Sociologia da USP e coordenador do programa de pesquisa, ensino e extensão em relações étnicas e raciais: 2 as cotas foram, até agora, o único mecanismo encontrado por algumas universidades brasileiras para resolver o difícil acesso de negros e pobres às universidades públicas. É uma iniciativa corajosa e só dentro de alguns anos poderemos avaliar se realmente cumpre a sua finalidade. As piores opções são não fazer nada ou querer nos fazer crer que está tudo bem, ou que as cotas representam um grande perigo para a cultura brasileira, para as relações raciais no Brasil, para o futuro da humanidade. Temos em Ghiraldelli (2010, s/p) que: “Cotas visam, antes de tudo, tornar os lugares públicos de direito como lugares públicos de fato, buscando com isso a ampliação de situações que provoquem experiências, possíveis de serem usufruídas por todos, cujo resultado é a ampliação do convívio e, portanto, do fim do preconceito”. Entende, ainda, o mesmo autor que as cotas, após alguns anos, promoverão condições de surgir uma “classe média negra bem escolarizada e, aí sim, todos os negros passarão a ter o benefício – indireto – de tal política”. Não serão olhados como estranhos, dependendo do lugar que estão, e isso sim, finalmente, os colocará em posição de igualdade a ponto da “igualdade perante a lei ser efetivamente lei”. As cotas para alunos negros nas universidades públicas, por exemplo, podem compor um conjunto de medidas práticas, efetivas e imediatas que apontem para o fim das desigualdades raciais na sociedade brasileira (PRAXEDES e PRAXEDES, 2003). O argumento de que as políticas de cotas ferem a igualdade de direitos entre os alunos que estão disputando uma vaga junto à Universidade pública, pode ser melhor avaliado tendo em conta Rawls e sua teoria de justiça. Para ele em uma sociedade justa pode haver desigualdades sócio-econômicas, mas que isto é aceitável somente com a condição de que elas permitam aos menos favorecidos ter acesso às vantagens da cooperação social. Assim, os bens desta cooperação devem ser disponibilizados para todos, assumindo um sentido político. Rawls adota a concepção de bens sociais primários, sob a ótica do justo, ao invés do bom, portanto, do ponto de vista da justiça pública. Estes bens, essenciais ao desenvolvimento adequado e pleno das capacidades morais, existem em duas categorias, quanto às fontes de oferta: bens privados e bens públicos, tendo estes últimos duas características: a indivisibilidade e o caráter público. Para que todos os indivíduos possam desfrutar de um bem, devem igualmente ter acesso a ele (RAWLS, 1997).i Há, então, uma necessidade geral, e aceita-se o fato, no âmbito público, de que nenhum cidadão pode ser privado de seu consumo e de que todos devem pagar por esses bens.ii A justiça distributiva em Rawls só pode ser alcançada quando forem satisfeitos os dois princípios de justiça, isto é, o da liberdade igual e o da igualdade equitativa de oportunidades. Nesta percepção, as cotas nas universidades aparecem como uma tentativa de reverter a desigualdade – por si só injusta – que acompanha a história da sociedade brasileira, ou seja, a exclusão de uma grande parcela da sociedade, em busca de condições para elevar seu patamar social, cultural e econômico. Rawls, em “Uma teoria da justiça” (1997), levanta uma questão de grande importância ao afirmar que só existe justiça entre iguais, partindo da ideia de que todo o sistema social deve ser construído de forma que a distribuição seja justa e igualitária, mesmo que existam fatores ou forças que o direcionem a um sentido contrário. O Autor defende, também, que se melhore a posição dos mais necessitados. Seu estudo se volta à justiça política, abarcando a última metade do século XX, com reflexos neste século XXI. Para Rawls, os menos favorecidos são compreendidos como aqueles membros que possuem uma quantidade menor de renda e riqueza. Entretanto, usufruem de modo igual dos princípios prioritários, quais sejam das liberdades básicas iguais e da igualdade equitativa de 3 oportunidades. As políticas afirmativas não se sustentam na ideia de que os pobres têm de receber privilégios. O que ocorre é exatamente o contrário, a eles são oferecidas oportunidades por não terem partido do mesmo ponto que os mais privilegiados e, portanto, não possuírem a mesma facilidade para o acesso à Universidade pública. Poderemos entender que na realidade as cotas tentam reduzir a distância existente entre os dois segmentos estudados. Rawls compreende que o objeto dos princípios de justiça é a estrutura básica da sociedade, entendendo esta como o modo através do qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens que provêm da cooperação social (RAWLS, 1997). Evidencia-se que o ensino superior público é parte integrante das instituições na estrutura básica da sociedade. Dentre os bens sociais primários, Rawls menciona a autoestima, definida como algo que garante um enriquecimento da vida pessoal e social dos cidadãos e que está diretamente relacionada ao crescimento de uma sociedade, pois, na medida em que esta se desenvolve, aquela, automaticamente, é exigida. Nesse sentido, os recursos alocados para a educação devem ser de tal forma que tendam a favorecer a autoestima dos cidadãos, como forma de impulsionar o bom funcionamento da sociedade. Se a justiça como equidade for uma análise fundamentada da justiça entre pessoas, essa teoria aplicada à inclusão não pode estar muito equivocada (Ibid). 2. Ações afirmativas Segundo Gomes (2001), Menezes (2001), Guimarães (1997), Walters (1997), as bases filosóficas das políticas afirmativas são a justiça distributiva e a justiça compensatória. Na visão de Gomes (2001, p. 40): [...] as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais, como a educação e o emprego. Menezes (2001, p. 27) define ação afirmativa como: [...] é um termo de amplo alcance que designa o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas, sejam elas presentes ou passadas. Colocando se de outra forma, pode-se asseverar que são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providências efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas. Entende Guimarães (1997, p.154) que essas ações vão além da dimensão redistributiva, “uma vez que elas podem prevenir que pessoas pertencentes a grupos com grande probabilidade estatística de serem discriminados ou indivíduos de certos grupos de risco tenham seus direitos alienados.” Nas palavras de Gomes (2002) e ainda nas de Guimarães (1997), conforme observado, a teoria das ações afirmativas passou a ser recentemente conhecida no Brasil, mas sua prática 4 não é totalmente estranha à administração pública brasileira. Gomes (Ibid) exemplifica tal fato com a Lei do Boi – Lei 5.465/68, que separava preferencialmente, 50% das vagas dos estabelecimentos de ensino médio agrícola, bem como aquelas das escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, para candidatos agricultores, ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residiam com suas famílias na zona rural, assim como 30% (trinta por cento) a agricultores, ou filhos destes, proprietários ou não de terras, residentes em cidades, ou vilas que não possuíssem estabelecimentos de ensino médio. Segue a mesma linha a lei dos dois terços, assinada por Getúlio Vargas, que exigia a contratação de, pelo menos, 2/3 de trabalhadores nacionais por qualquer empresa instalada no País. Dessa forma, o Brasil já conheceu, anteriormente, correntes de solidariedade, baseadas em causas nacionais, ou regionais, que, possivelmente, tenham se constituído na semente da aplicação de ação afirmativa (GUIMARÃES, 1997). Podemos acrescentar outras iniciativas da mesma natureza, tal como a determinação de que as listas partidárias de candidatos a cargos proporcionais tenham no mínimo 30% de mulheres, exigência presente nas eleições brasileiras há alguns anos. Em Walters (1997), o conceito de ação afirmativa não indica qualquer técnica de implementação dessas ações, mas sim um fundamento filosófico que visa a corrigir os efeitos da discriminação racial sofrida, no passado, pelos ascendentes dos indivíduos pertencentes ao grupo racial negro, entre outros grupos historicamente marginalizados. Munanga (2003) afirma que as políticas de ação afirmativa são recentes na história da ideologia antirracista. Comenta, também, que, nos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Malásia foram estabelecidas com o objetivo de proporcionar aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado, como medida compensatória das desvantagens resultantes do racismo. Siss (2003) informa que, embora a expressão “ação afirmativa” tenha surgido da legislação trabalhista norte-americana e difundida, principalmente, no período de luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis, as políticas de cotas, como práticas de combate às desigualdades, são bem anteriores, se olhadas como formas de ação de políticas públicas governamentais. Como exemplo, pode-se citar a experiência com cotas na Índia, logo após a independência daquele país, no tocante aos indivíduos classificados socialmente como “párias” (intocáveis). Também para Wedderburn, o conceito de ação afirmativa teve sua origem na Índia, antes de sua independência. Entende o Autor que existe uma verdadeira cegueira política e social que deixa milhões de pessoas, que deveriam estar estudando e produzindo riquezas para todos, fora do sistema: [...] em termos puramente econômicos e financeiros, a incorporação ativa dos segmentos marginalizados à economia representa um bem absoluto, mesmo na perspectiva do lucro, que é, em definitivo, o mecanismo propulsor da dinâmica capitalista. É por isso que a globalização capitalista implica também certa adaptação dos mecanismos econômicos mundiais à diversidade cultural, étnica, religiosa e racial do planeta (WEDDERBURN, 2005, p. 333). Todos os autores relacionados acima, que discutem o tema, estão, na realidade, demonstrando que as políticas afirmativas funcionam como um mecanismo de inclusão social para tais grupos. Com essas ações, o Estado pretende atender a uma de suas finalidades, ou seja, a promoção da justiça distributiva. No que se refere ao papel da Universidade, as cotas visam, antes de tudo, torná-la um lugar público, ao qual todos os brasileiros possam ter acesso. Buscam, ainda, tornar uma 5 igualdade de direito, em igualdade de fato. Torna-se importante destacar que as cotas precisam ser encaradas como uma medida emergencial, e não como solução definitiva, para o enfrentamento do problema da exclusão, pois seu principal mérito é trazer a questão para o centro do debate em relação às desigualdades. A ideia de justiça está presente nos princípios enunciados, “e o liberalismo de Rawls parece querer conciliar os pilares do liberalismo clássico – a liberdade, o individualismo, a meritocracia - entre outros – com os anseios por igualdade social, próprios dos movimentos de esquerda. Ocorre que, na linha de um “liberalismo social”, Rawls justifica a desigual liberdade existente ou usufruída pelos e entre os cidadãos através dos benefícios que os menos favorecidos terão com o igual acesso a oportunidade ou rendimento” (CARVALHO, 2011, p.11). Na mesma linha de análise, Ghiraldelli Jr (2010) entende que, na verdade, a política de cotas como um todo está sob uma visão totalmente possível de ser conciliável com o liberalismo. Basta para tal imaginarmos como funciona a justiça de Rawls em uma sociedade liberal. O acesso à cultura e ao conhecimento é o bem universal de libertação das pessoas. Sem conhecimento não há como compartilhar a base da vida humana em sociedade. O processo educacional deve estar voltado à formação integral do ser humano, para que todos os seres sustentem a vida e a cultura, condição sine qua non para que a própria existência humana no planeta não seja colocada em risco. Ao propor as ações afirmativas – dentre elas, as políticas de cotas na educação –, objetiva-se tornar aplicável o princípio da igualdade, constante na Constituição Federal (CF) vigente, em seus art. 3° e 5°. Nesses dois artigos, estão definidos os objetivos de tais políticas; dentre outros, o de erradicar a pobreza e a marginalização e o de reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, bem como de quaisquer outras formas de discriminação, afirmando-se que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Dentre as diversas formas, para cumprir a CF, no que se refere à discriminação, as políticas afirmativas são recursos viáveis e pertinentes. Na compreensão de Genro (2005), as políticas afirmativas, em particular nas universidades, procuram desenvolver ações que modifiquem uma realidade de desigualdade e de desperdício de talentos. Diz, ainda, que, se forem comparados os dados do Instituto Nacional de Estudo e Pesquisas Educacionais, chega-se à conclusão que, a cor do campus é diferente da cor da sociedade: “os brancos na sociedade somam 52,0% e no campus 72,9%; os negros da sociedade somam 5,9%, no campus 3,6%; os pardos da sociedade somam 41%, no campus 20,5%” (GENRO, Ibid, p. 26). Em Blatt (2006), dados do Inep/2004 demonstram que, no Brasil, somente 11 de cada 100 alunos matriculados no ensino fundamental chegam à educação superior. Essa média varia de região para região: regiões Sul, 17,1%, Sudeste, 15,4% e Centro-oeste, 15%. Nas regiões Norte e Nordeste, a percentagem é a metade da média nacional. Reproduz-se, desse modo, interregionalmente, no campo da educação do ensino superior, a desigualdade existente na sociedade. Possas, Quilici Gonzalez e Carvalho (2005) defenderam o papel social da universidade pública, demonstrando as dificuldades que elas enfrentam para exercer seu papel na sociedade brasileira, impregnada pela exclusão e discriminação social. Desta maneira, a exclusão e a discriminação são geradores de baixo desenvolvimento nacional, uma vez que instrução e conhecimento são valores primordiais, imprescindíveis para o desenvolvimento e a sobrevivência de qualquer nação desenvolvida. Para Schultz (1973), a instrução e o progresso no conhecimento constituem importantes fontes de crescimento econômico. É óbvio que não são fontes naturais; são, essencialmente, produzidas pelo homem, o que significa que envolvem economia e 6 investimento. Investimento na instrução constitui-se em uma das fontes de geração de capital humano. Na concepção de Frigotto (1999), a simples eliminação da desigualdade social e de classes já constitui um investimento no capital humano de uma nação, permitindo e ampliando a ascensão na vida e na responsabilidade funcional de seus cidadãos. No Brasil, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI) foi protagonista de um dos primeiros conceitos nacionais de ação afirmativa. Para esse grupo: As ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos acumulados em virtude das discriminações ocorridas no passado (SANTOS, 1999, p.43). As argumentações acima destacam a necessidade de se superarem dois legados históricos de exclusão: a) a exclusão por falta de oportunidades, previamente estabelecida nas instituições de ensino, ao privilegiarem castas e categorias; b) a exclusão genética pela cor, raça e origem social. Ambas determinam que o acesso é para poucos e para poucos significa uma oligarquia acadêmica que caracteriza os de “cima” e os de “baixo”. Existe, pois, nas “elites” universitárias, que só se justificariam se viessem em benefício dos menos favorecidos, uma casta que objeta as políticas de ação afirmativa. O Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Enviou, também, ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 3.627, de 20 de maio de 2004, que “institui o Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior.”. Este projeto e outros correlatos tramitam no Congresso Nacional, gerando grandes discussões, debates e disputas, de âmbito acadêmico-político, na busca de aprovação, ou rejeição (SANTOS, 2009). A partir deste ato, de acordo com Queiroz (2008), com base no Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira, do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, são as seguintes instituições universitárias que implantaram a Lei de cotas: Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro; Centro Universitário Estadual da Zona Oeste; Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Universidade do Norte-Fluminense; Universidade de Minas Gerais; Universidade Estadual de Montes Claros; Universidade Federal de Juiz de Fora; Universidade Federal de São Paulo; Universidade Estadual de Campinas; Universidade Federal do ABC; Faculdade de Medicina S. J. do Rio Preto; Faculdade de Tecnologia de São Paulo; Universidade Federal de Brasília; Universidade Estadual de Goiás; Universidade Estadual do Mato Grosso; Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul; Universidade Federal do Paraná; Universidade Estadual de Ponta Grossa; Universidade Estadual de Londrina; Universidade do Estado da Bahia; Universidade Federal da Bahia; Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; Universidade Federal de Alagoas; Universidade Federal do Pará. As pesquisas do referido Programa concluíram que, das 24 (vinte e quatro) IES que adotaram ações afirmativas para negros, 21 (vinte e uma) utilizaram o sistema de reserva de vagas e 03 (três) o sistema de pontuação adicional; 16 (dezesseis) universidades são estaduais; 08 (oito), federais; 07 (sete) adotaram ações afirmativas através de leis estaduais; 15(quinze), por decisões dos Conselhos Universitários; 01 (uma) tem um percentual destinado a mulheres negras e à autodeclaração (Ibid). Ainda, segundo o autor, como forma de identificação dos 7 candidatos e condições para concorrer ao sistema de cotas nas universidades 06 (seis) delas exigem que o candidato seja negro e tenha uma determinada renda per capta máxima (critério socioeconômico); 14 (quatorze), que sejam negros e oriundos da rede pública de ensino; 04 (quatro) têm como pré-requisito serem negros, independentemente se oriundos da rede pública ou privada. O ponto mais polêmico da discussão é definir quem será beneficiado pelo sistema de cotas. A proposta original era destinar as vagas para quem se declarasse negro, ou pardo, no ato da inscrição do Vestibular. Tal recurso, o da autodeclaração, é hoje o mais defendido por quem apoia o sistema de cotas. Aqueles que a ele se opõem, no entanto, vêem a autodeclaração como excessivamente subjetiva. 3. Critérios de acesso Na busca de contribuir com o objetivo de diminuir as desigualdades existentes em nosso país, ampliou-se o estudo sobre a política de cotas em outras universidades brasileiras. Esta ampliação expandiu igualmente a identificação da variedade de pré-requisitos para o aceso às cotas disponibilizadas. Este é um ponto a que vale a pena retornar por ser a ponte entre a proposta de justiça como equidade e sua efetivação. São diversas as classificações (critérios) utilizadas para o ingresso de negros na Universidade pública, podemos citar entre outros, de acordo com Vasconcelos Neto (2010, s/p), Fenotípica, Genotípica e Autodeclaração. Diz o autor que a fenotípica tem como base o conjunto de características físicas, morfológicas e fisiológicas de um organismo. As IES que adotam esse critério, geralmente, formam uma comissão com quantidade impares de membros que procederá ao exame das características referidas. É um critério que toma como requisitos as características morfológicas do indivíduo. Para que os candidatos possam ser considerados negros se submetem a um processo de observação que leva em consideração alguns traços físicos: cor preta da pele, lábios grossos, nariz largo e cabelos crespos. A genotípica se refere à presença de material hereditário herdado dos genitores, também pode ser analisada pela leitura do material genético da pessoa (pouco utilizada, por ter um alto custo e necessitar de aparelhos especializados). No entanto, a análise dos parentes não torna o critério abrangente e eficaz para a finalidade das cotas raciais, pelas dificuldades que os candidatos têm em juntar documentos de seus antecedentes. A autodeclaração no Brasil é a classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a mais utilizada pelo sistema de cotas. Podemos citar algumas Universidades que se enquadram nestas modalidades: em 2003 a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) instituiu uma comissão formada por cinco membros, sendo três do movimento negro e dois da própria IES; em 2010, os critérios foram modificados, o candidato deve se autodeclarar negro ou indígena no ato da inscrição, porém a autodeclaração não é suficiente, “os candidatos, também, passarão por entrevista através de comissões especiais instituídas pela Secretaria de Administração do Estado, e composta por estudiosos e entidades ligadas à questão étnico-racial pra evitar que seja usada de má-fé. Os negros serão avaliados através do fenótipo. Já os indígenas devem portar a certidão administrativa emitida pela Fundação Nacional do Índio” (FATIMANEWS, 2011, s/p). O critério para ingressar como cotista na UnB tem sofrido mudanças. Inicialmente foi prevista como suficiente para concorrer ao sistema de cotas, a autodeclaração de cor. O vestibulando deveria se autodeclarar negro no ato da inscrição e estaria apto para disputar os 20% das vagas destinadas ao sistema de cotas (BRITO, 2008). Ainda, em Brito (Ibid, p.24), lê-se que “contrariando o que estabelecia o Plano de Metas, a Comissão de Implementação das Cotas na UnB optou para que o candidato se identificasse de acordo com os critérios do IBGE - de pretos e pardos. O candidato deveria responder se era preto ou pardo e se 8 considerava negro”. A resposta positiva a essas duas questões levava o candidato a responder se queria ou não participar do sistema de cotas. Os candidatos que optaram pelas cotas tiveram que fazer o teste da foto para evitar possíveis fraudes. Uma banca sigilosa foi responsável pela análise das fotos e pela validação ou não da inscrição dos candidatos pelo sistema de cotas. “O edital do primeiro vestibular de 2008 estabeleceu que para concorrer pelo sistema de cotas, o candidato tinha que ser negro de cor preta ou parda; optar, no ato da inscrição, para concorrer, exclusivamente, pelo Sistema de Cotas para Negros” (Ibid). Fazer uma entrevista após as provas de conhecimento e anterior à divulgação do resultado final do vestibular, assinar declaração específica de adesão aos critérios e aos procedimentos referentes ao sistema. Caso o candidato não preenchesse os requisitos estabelecidos no edital, na entrevista pessoal, seria eliminado pela Banca Entrevistadora, ficando impossibilitado de disputar as vagas oferecidas pelo Sistema Universal (Ibid). No segundo vestibular de 2008, “o candidato convocado e que não comparecer à entrevista pessoal será eliminado do vestibular, não podendo concorrer às vagas do sistema universal. O candidato concorre, automaticamente, pelo sistema universal se não for convocado para a entrevista pessoal” (Ibid). As mudanças ocorridas demonstram que a UnB tem procurado não engessar o sistema, porém não deixando de ser criteriosa, no acesso do negro à Universidade pelo sistema de cotas. Temos em Bezerra (2011) que a UERJ foi a primeira Universidade brasileira a instituir o sistema de cotas. O então Governador do Estado, Anthony Garotinho, estabeleceu, por meio da Lei 3.524/2000, reserva de 50% das vagas nos Vestibulares das Universidades Estaduais – UERJ e Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), em Campos de Goitacazes, para alunos egressos de escolas públicas do Estado. Observe-se o que determinam as Leis, que versam sobre a matéria em pauta: A Lei Estadual nº 3.708/2001 estabelece cota mínima de até 40% (quarenta por cento) para a população negra e a parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF. Em 2003 foram realizadas duas modalidades de vestibular: o Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio (Sade), para a reserva de vagas, e o chamado Vestibular estadual, sem cotas, ambos com o grau de dificuldade similar. A Lei Estadual nº 4.151/03 demarcou nova disciplina sobre o sistema de cotas, introduzindo o conceito de “carentes”, dentro do qual estão os candidatos oriundos da rede pública de ensino e os negros (sendo os pardos excluídos, devido à grande polêmica em torno da autodeclaração e da classificação racial existente em nosso País). Foram, ainda, introduzidos os candidatos portadores de necessidades especiais e aqueles pertencentes às minorias étnicas. Em 2004, a UERJ propôs a unificação das duas modalidades de cotas, e o vestibular do mesmo ano reservou 20% das vagas para alunos de escolas públicas, 20% para negros e 5% para deficientes físicos e minorias étnicas. Os candidatos às cotas só poderiam concorrer por uma das modalidades, tendo que comprovar carência financeira, com uma renda máxima de R$ 300,00 (trezentos reais) líquidos por pessoa da família. Valor este que vem sendo atualizado a cada vestibular. Para o vestibular de 2010, a renda para candidatos às referidas vagas, em qualquer modalidade, foi de R$ 960,00 (novecentos e sessenta reais) brutos, observando-se as pessoas relacionadas no Formulário de Informações Socioeconômicas. O projeto de Lei nº. 2.917/05 ampliou o sistema de cotas para negros, estudantes da rede pública e pessoas portadoras de deficiência, para a Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC), o Centro Universitário da Zona Oeste (UEZO) e as escolas de formação da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. 9 As alterações votadas pelo Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão da UERJ, para o Vestibular 2006, foram: o estabelecimento de nota mínima de 20 pontos em 100 pontos e, na segunda fase, supressão de uma das três provas discursivas sobre matérias específicas, para cada carreira, sendo Língua Portuguesa obrigatória para todas as áreas. Tais modificações aplicaram-se a todos os candidatos ao Vestibular, cotistas e não cotistas. Em 2007, o Governador do Estado, Sérgio Cabral Filho, sancionou lei incluindo os filhos de policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos em serviço, no percentual de 5% das vagas já reservadas para deficientes físicos e minorias étnicas. No caso das Universidades Estaduais do Rio de Janeiro contempladas pela Lei 3.708/01(UERJ e UENF), segundo Márcia Souto Maior Mourão Sá, diretora do departamento de ensino de graduação da UERJ, o candidato para disputar uma vaga, para a modalidade cotista, basta se autodeclarar negro no ato da inscrição. Também da LEI Nº 4151/03, temos em seu § 3º, “o edital do processo de seleção, atendido o princípio da igualdade, estabelecerá as minorias étnicas e as pessoas com deficiência beneficiadas pelo sistema de cotas, admitida a adoção do sistema de auto-declaração para negros e pessoas integrantes de minorias étnicas, cabendo à Universidade criar mecanismos de combate à fraude”. Para Braga (2008), a inclusão da população negra no ensino superior é um dos temas mais debatidos no Brasil, nos últimos dez anos, tendo como ponto central a reserva de cotas para afrodescendentes nas universidades públicas. Esta vem sendo defendida, não somente pelo movimento negro, mas por vários professores e intelectuais. Não há discórdia quanto ao fato de que os negros estão em desvantagem nos exames de seleção para ingresso nas universidades públicas. Existem, porém, argumentos bem diferentes dos que defendem a política de cotas raciais, por acreditarem que medidas direcionadas para a questão socioeconômica seriam insuficientes para incluir, significativamente, os negros na educação terciária. Já os críticos da política de cotas raciais, enfatizam que os beneficiários da política de cotas seriam, em grande parte, os negros ricos, o que afastaria ainda mais a população pobre do ensino superior, alimentando o racismo nessas camadas da população. Uma forma de contribuir para o debate e na solução do problema acima mencionado, efetivamente um risco da política de cotas, seria o critério utilizado pela UERJ, que exige como pré-requisito a caracterização de “carente”, ou seja, para o candidato pleitear um dos três tipos de cotas por ela oferecida, precisa demonstrar sua carência econômico-social. As universidades que não atentam para este pré-requisito, podem de fato fortalecer a discórdia e fugir ao objetivo desta política pública de “inclusão social” que visa diminuir as desigualdades no Brasil. Acredita-se que as cotas nesta situação não estariam atendendo, em sua plenitude, somente àqueles que são excluídos de nossa sociedade. Abririam portas a negros de uma classe social elevada, que fariam uso desta política apenas pela facilidade por ela proporcionada. Acredita-se, ainda, que está simples mudança empreendida pela UERJ poderia reduzir a polêmica existente em relação às cotas. A observação desta trajetória legal e administrativa dos critérios de acesso à política de cotas, permite concluir que há uma atenção para com o assunto e a tendência para introduzir pontos de correção, a cada aspecto que se revela prejuízo ou risco de prejuízo para essa ação afirmativa. De certo modo é também um movimento de resposta às críticas ao sistema de cotas. É também com este objetivo que passaremos ao item seguinte, quando apresentamos a pesquisa de campo e a documental tendo em vista avaliar o desempenho escolar e a acolhida social dos cotistas. 4. Desempenho e aceitação Parte deste debate, o desempenho e a aceitação dos cotistas, é aqui objeto de estudo 10 empírico, quando apresentamos os principais resultados da pesquisa realizada entre 2009 e 2010, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, onde a política de cotas teve sua primeira e mais cuidadosa experiência. A pesquisa preocupou-se principalmente com os impactos que a política de cotas poderia ter no preocesso de superação da exclusão da juventude negra e pobre, promovendo ou não a inclusão dessas pessoas. O meio utilizado para a verificação se houve ou não inclusão do cotista foi o estudo da implementação do sistema de cotas para os menos favorecidos, segundo os critérios estabelecidos pelas Leis Estaduais de nºs 4151/2003 e 5074/2007, que dispõem sobre o Sistema de Cotas. A verificação do desempenho considerou os resultados quantitativos, no processo de avaliação (rendimento escolar definido no regimento da UERJ e disponível no sistema de registro acadêmico), bem como procedeu à averiguação da inclusão acadêmica, mediante a aceitação do aluno cotista pelo aluno do sistema tradicional e do cotista por ele mesmo. A coleta de dados foi realizada pela aplicação de questionários/ficha sociométrica aos alunos da Universidade, de forma a que se obtivessem informações quanto à concepção de inclusão. Ou seja: verificar se houve ou não inclusão por meio de desempenho dos resultados quantitativos e aceitação ou acolhimento acadêmico do aluno cotista. Optou-se, para efeito da avaliação do acolhimento, pelo uso da sociometria de Moreno. A escolha por Moreno (1992), para desenvolver o objetivo que trata da aceitação acadêmica, baseia-se no fato de o Autor considerar os diversos grupos no contexto organizacional, aqui adaptados, no ambiente acadêmico, a cotistas e não cotistas. Trata-se de uma técnica bastante simples, que consiste em perguntar a cada membro do grupo que outros membros ele escolheria, ou rejeitaria, para desenvolver alguma tarefa conjunta (atividades de lazer, de trabalho, de estudo), bem como para ser líder. Nesta pesquisa, foi solicitado aos respondentes que escolhessem três colegas para desenvolver alguma tarefa conjunta. Adotou-se, assim, o aspecto afirmativo. Com base nas orientações metodológicas citadas, entendeu-se que o mais condizente com a proposta desta pesquisa seria o estudo de caso, levado a efeito na UERJ e em uma de suas unidades regionais, a FFP (Faculdade de Formação de Professores), com alunos cotistas e não cotistas, nos cursos de Educação, Administração, Medicina, Direito, Odontologia, Engenharia Química e Pedagogia – SG, inscritos nos exercícios de 2005, 2006 e 2008. Acredita-se que as seis faculdades escolhidas caracterizaram uma amostra bem significativa nos exercícios estudados. É com base nos resultado dessa pesquisa que se pretende examinar os efeitos e promessas da política de cotas, para o enfrentamento da exclusão dos negros e pobres da universidade brasileira. Para comparar os resultados da análise de desempenho no Vestibular, com os resultados de rendimento acadêmico no curso dos alunos cotistas e dos não cotistas, foi feito um estudo, a partir das médias gerais dos cursos escolhidos em 2005 e 2006, tanto as referentes aos resultados do Vestibular, quanto ao rendimento alcançado no curso escolhido. Dos candidatos aprovados nos Vestibulares, de 2005 e de 2006, em cada curso escolhido, os cotistas apresentaram médias bem menores que os não cotistas, resultado que poderia induzir à ideia pré-estabelecida de que o desempenho no Vestibular é um bom prognóstico para o rendimento na Universidade. Tendo como base os resultados obtidos, poder-se-ia dizer que o modelo do rendimento na Universidade foi bem independente do desempenho no Vestibular, tal qual se apurou. Com base no quadro 1, pode-se observar a fragilidade nos resultados obtidos, no exame Vestibular, nos anos de 2005 e 2006, pelos alunos cotistas. Ou seja, a média alcançada por esses alunos foi, praticamente, em alguns cursos, a metade daquela alcançada pelos 11 discentes não-cotistas. Em contrapartida, ao longo dos cursos, o resultado acadêmico dos alunos cotistas surpreende, uma vez que quase se iguala ao dos discentes não cotistas. Em vista do exposto, pode-se concluir que, não obstante o resultado medíocre obtido no Vestibular, os alunos cotistas superaram as deficiências curriculares iniciais, tendo sido capazes de acompanhar o desenvolvimento das matérias ministradas em sala de aula, tão bem quanto os seus colegas que não se valeram do sistema de cotas para adentrar a Universidade. Quadro 1 - Comparação entre o desempenho no vestibular e nos cursos – 2005 e 2006 – UERJ. Vestibular 2005 CURSO Administração Direito Eng. Química Medicina Pedagogia-Rio Pedagogia-SG Média acadêmica nos cursos 2005/2009 Média acadêmica nos cursos 2005/2009 Vestibular 2006 cota não cota cota não cota cota não cota cota não cota 30.48 43.83 35.13 53.30 29.14 25.27 56.02 72.38 43.88 75.08 39.57 28.03 8.077 7.71 6.68 7.46 8.43 8.43 8.044 8.57 7.18 7.607 8.64 8.33 30.55 44.95 29.48 50.42 30.69 26.24 53.17 72.38 51.73 73.24 41.7 30.86 7.941 7.789 6.76 7.76 8.96 8.58 8.07 8.806 7.49 7.71 8.97 8.72 Fonte: Elaborado pela autora. Adicionalmente, a pesquisa demonstrou que a média de evasão dos seis cursos escolhidos foi, para os cotistas, de 12.25% e, para os não cotistas, de 23.27%, no ano de 2005. Em 2006, a porcentagem verificada foi de 9.39% para os cotistas e de 20.36% para os não cotistas. Nos dois exercícios estudados, como se pode verificar, os não cotistas tiveram um percentual de evasão bem superior ao dos cotistas. Quadro – Percentual de evasão/ingressantes em 2005 – cotistas – não cotistas –UERJ Ingressantes cotas Evasão não cotas Evasão cotas % não cotas % cotas 66 168 54 144 19 12 8 9 28,8 7,14 78 44 34 17 10 38,63 Medicina Pedagogia- Rio 94 360 51 253 43 107 3 65 2 7 5,88 33,16 Pedagogia- SG 111 92 19 24 3 26 14,8 6,25 27,7 7 4,65 4,27 15,7 8 Centro Curso Ingressantes CCS CCS Administração Direito 120 312 CTC Engenharia Química CBI CEH CEH Ingressantes não cotas Fonte: Fonte: Elaborado pela autora. Quadro – Percentual de evasão/ingressantes em 2006 – cotistas e não cotistas – UERJ Centro Curso Ingressantes Ingressantes não cotas Ingressantes cotas Evasão não cotas Evasão cotas % não cotas % cotas CCS CCS 120 312 65 168 54 144 19 15 5 9 29,23 8,93 9,26 6,25 80 53 27 16 5 30,19 18 CBI CEH Administração Direito Engenharia Química Medicina Pedagogia- Rio 94 360 51 221 43 139 2 50 2 9 3,92 22,62 CEH Pedagogia- SG 116 99 17 27 2 27,27 4,6 6,47 11,7 6 CTC Fonte: Elaborado pela autora. 12 Numa segunda etapa, a inclusão foi examinada, por meio da aceitação que teve como suporte o teste sociométrico de Moreno (1992). O teste sociométrico demonstrou que, ao analisar os cursos estudados, a escolha dos mais votados, independe do fato destes serem cotistas ou não. O aluno foi escolhido devido a uma maior afinidade com aquele que o contemplou com seu voto. As preferências têm como critério a afinidade intelectual entre o que escolhe e o escolhido. De um modo geral, os líderes de cada curso são tanto os do sexo feminino, como os do masculino, à exceção dos cursos de Odontologia, que só apresentaram o sexo feminino na posição de liderança. Nos cursos de Administração, Engenharia Química e Odontologia e Pedagogia - SG, o segmento dos cotistas obteve um maior número de votos. Apenas nos cursos de Direito e Medicina, os alunos não cotistas foram mais votados. Quadro 4 – Estudantes ingressantes e escolhidos – UERJ/2008 RELAÇÃO ALUNOS INGRESSANTES/ESCOLHIDOS- 2008 CURSO COTAS Ingressantes Escolhidos 52 18 145 20 36 9 43 6 26 12 4 2 306 64 ADMINISTRAÇÃO DIREITO ENG. QUÍMICA MEDICINA ODONTOLOGIA PEDAGOGIA-SG TOTAL GRUPOS Fonte: Elaborado pela autora % 35 18 25 14 46 50 NÃO COTAS Ingressantes Escolhidos 64 21 167 31 40 8 48 8 32 11 83 39 434 118 % 33 19 20 16 34 47 CONCLUSÕES Ainda que a política de cotas seja frequentemente colocada à prova pelo Sistema Legislativo, Judiciário, no Ambiente Acadêmico e pelos meios de comunicação, os dados sociométricos concluíram que o aluno cotista, dentro da sala de aula, recebe dos colegas um tratamento igual aos demais. O questionário apresentado em pesquisa de campo revelou que os não cotistas escolhem igualmente como parceiros de trabalhos de grupo alunos cotistas e não cotistas, não havendo distinção entre os mesmos. No desenvolvimento dos estudos, as diferenças de desempenho acadêmico, observadas no vestibular, são superadas ou são reduzidas consideravelmente, como se vê nos dados oferecidos por nossa pesquisa documental nos registros de notas de vestibulares e dos cursos. De outra parte, deve-se considerar que, se o rendimento na Universidade foi bem diverso daquele verificado no Vestibular, a receptividade favorável ao aluno cotista pode ser um dos grandes responsáveis pelo seu desenvolvimento acadêmico satisfatório ao longo do curso e, consequentemente, pela sua inclusão acadêmica. Já se teve a oportunidade de lembrar os efeitos positivos sobre a motivação daquilo que se chama acolhimento, na linguagem da teoria da motivação. Uma vez que se viu escolhido para trabalhos em sala de aula, o cotista fortalece a certeza de ser ele tão capacitado quanto os demais, possuindo as mesmas condições intelectuais, portanto, para desenvolver um aprendizado satisfatório e saudável. De acordo com esses resultados, nos dois momentos supracitados, é possível entender que o sistema de cotas, na UERJ, alcançou seu objetivo, qual seja, incluir socialmente o estudante cotista. Pode-se concluir daí que mais um mito que perdura entre os acadêmicos e a população 13 em geral, qual seja o de que os cotistas abandonariam os cursos, não se confirmou nos resultados desta pesquisa. Tivemos ocasião de apurar que os cotistas também apresentaram índices de evasão bem inferior aos do outro grupo. A rigor, este resultado, considerando-se o grupo social com que se trabalha, contém duas respostas de natureza subjetiva, extremamente importantes para o sentido de nossa pesquisa: a primeira é que as condições sociais básicas, sejam ditadas pela situação dos cotistas, sejam acrescidas pela própria condição de cotista, não representaram um obstáculo à aproximação e a boa receptividade de não-cotistas e cotistas; a segunda, é que isto se dá em um ambiente de trabalho em que o fator diferencial a ser valorizado em cada estudante é, sobretudo, o conhecimento. Esta é a questão em debate quando se discute a política de cotas e é disto que se fala quando se trata de exclusão. Ocorre um falso dilema: o de que a política de cotas e seus programas agravariam a exclusão, seja porque acentuariam o conflito entre brancos e negros, pobres e ricos, ao propiciar-se algo que aos olhos de muitos representaria um privilégio para negros e pobres, seja porque o desempenho escolar fraco dos mal preparados cotistas destacaria ainda mais sua fragilidade e acentuaria sua exclusão. A política de cotas é um fato inédito e inovador na história brasileira de reconhecimento das desigualdades. Mesmo que os cotistas não cheguem a ocupar postos de prestígio e poder, podem começar a influenciar os membros das elites estatais a pensarem em mudanças nas políticas públicas brasileiras. Os dois segmentos, ao conviverem no mesmo grupo, tendem a gerar um ambiente universitário mais criativo e mais solidário. A política de cotas tem como alvo reduzir o preconceito e a desigualdade, de forma a tornar viáveis os preceitos constitucionais de erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, bem como de quaisquer outras formas de discriminação, pois que todos são iguais perante a lei, devendo ser tratados sem distinção de qualquer natureza. REFERÊNCIAS AQUINO, Mª Irene de Araújo. A política de cotas nas universidades públicas brasileiras. Ponte Nova. 37 f. 2009. Monografia (Especialização Docência do Ensino Superior) Faculdades Integradas de Jacarepaguá, Ponte Nova, 2009. Disponível em: <http://sigplanet.sytes.net/nova_plataforma/monografias../8403.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2011. BEZERRA, T. O. C. A política de cotas em universidades e inclusão social: desempenho de alunos cotistas e sua aceitação no grupo acadêmico. 187 f. 2011. 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