III Encontro Nacional de Estudos da Imagem
03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
A IMAGEM E A RELAÇÃO DO ATOR COM OS OBJETOS: A
COMPOSIÇÃO DE CENAS NA OBRA DE TADEUSZ KANTOR
Luciano Matricardi de Freitas Pinto¹
Universidade Estadual de Londrina
Na perspectiva do teatro pós-dramático, Lehmann relaciona algumas das principais
experiências teatrais cujas bases estão relacionadas às vanguardas artísticas. Desde a
estaticidade das peças de Maeterlinck e a tradição teatral asiática que inspirou o teatro
europeu do séc. XX, nas palavras de Malarmé, um “novo cerimonial teatral”, até o chamado
teatro de imagens de Robert Wilson que intrigava pelas imagens misteriosas e, então, com a
utilização de bonecos e manequins que imitavam a vida, na obra de Tadeusz Kantor, há uma
tradição teatral que Lehmann classifica ironicamente como teatro do “destino”. Nas palavras
de Maeterlink, “Parece também que toda criatura que tem aparência de vida sem ter vida
remete a potências extraordinárias. [...] são os mortos que parecem falar conosco; por
conseqüência, vozes augustas” (apud LEHMANN, 2007, p. 96).
A elaboração do drama, numa leitura mais tradicional, esteve sempre baseada no
conflito de idéias, no embate gerado entre duas pessoas, entre dois personagens. Tal
concepção foi construída a partir de um modo específico de entender a realidade. O teatro
pós-dramático, no entanto, explora outras maneiras de se ver o mundo, principalmente pela
retirada do conflito e na abordagem do tempo como temática (LEHMANN, 2003, p. 10).
Sobre o enfoque no tempo, como elemento de ruptura com a carga dramática, Lehmann indica
alguns dos procedimentos adotados pelos autores denominados pós-dramáticos.
Transformaram o teatro numa coisa extremamente lenta. E com isso o tempo
começou a ser um tema. Ou então eles aceleraram muito o tempo, e dessa maneira
o tempo também se tornou tema. Ou eles criaram colagens e, a partir dessas
colagens, não se teve mais um tempo contínuo. Esses são todos procedimentos que
surgiram a partir do momento que essa unidade dos elementos teatrais se explodiu,
se esfacelou. (LEHMANN, 2003, p. 10)
Elementos que também serão observados no teatro de Tadeusz Kantor de acordo com
sua realidade, que é determinante em seus processos criativos, e na maneira pela qual conjuga
as situações e temáticas na contramão dos princípios do drama clássico. Segundo Lehmann,
“desaparece a hierarquia que constitui uma necessidade vital para o drama, no qual tudo
gira em torno da ação humana e as coisas existem apenas como acessórios” (2007, p. 121).
1923
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Lehman faz uma especial referência à obra do encenador Tadeusz Kantor, como um
dos pioneiros no que veio a se estabelecer como pós-dramático. Kantor, como aponta
Lehman, obteve um desenvolvimento artístico complexo e composto por diversas fases, nas
quais experimentou elementos que comumente derivam das artes plásticas, também elaborou
happennings e dirigiu espetáculos que apresentavam uma plasticidade fortemente ligada às
questões do cotidiano, da realidade da guerra e de seu país.
A atribuição do caráter político, à linguagem do encenador Tadeusz Kantor, se refere
a um posicionamento artístico de subversão às técnicas e conceitos tradicionais de
representação do drama. Kantor procura construir uma experiência real entre os atores e o
público, refletindo sobre os temas da guerra e sobre as difíceis condições de seu país. Para
isso, Kantor se fundamenta a partir de experiências e memórias pessoais, a memória coletiva é
então revelada pelas memórias individuais.
Nascido em 1915, num pequeno povoado do leste da Polônia, Kantor aborda em suas
obras a religiosidade e os costumes de sua região. Desde criança observava a igreja como uma
espécie de teatro, tendo a missa, os presépios de natal e outras representações bíblicas como
os espetáculos deste teatro. O jogo teatral foi pensado e experimentado desde sua infância,
quando montava quadro a quadro cenas com caixas de sapato, ligava-as por um barbante e
conforme as caixas eram puxadas as cenas se desenvolviam (KANTOR apud BABLET, 2008,
p. XXVI). Este era o jogo livre e inocente da infância, que sendo aprimorado no encontro com
outras artes, em sua maturidade, geraria um trabalho extremamente conectado à realidade e
baseado em contrastes, agora, verdadeiros.
Após os estudos secundários decidiu ser pintor, influenciado pelos simbolistas
Wyspianski² e Matchevski, suas pinturas, embora julgasse serem péssimas, conduziram-no à
Escola de Belas-Artes, cursada entre 1934 e 1939 na Cracóvia. Foi então o estudo da
cenografia e o contato com novos nomes do teatro que o fizeram estabelecer suas primeiras
proposições estéticas e gerar um pensamento próprio sobre o teatro. Na escola, estudou
cenografia com Karol Frycz, um dos discípulos de Edward Gordon Craig, e lá também criou
um teatro de marionetes influenciado pelas idéias de Piscator e pela escola da Bauhaus.
Apesar destas influências, não gostava dessa classificação, que de certa maneira
evoca laços de dependência. Kantor se coloca como um admirador do pensamento e da
criação de literários e artistas plásticos. Embora as relações estéticas e filosóficas dos
principais artistas com os quais entrou em contato se evidenciem na obra do encenador,
Kantor defende o desenvolvimento de uma arte autônoma (BABLET, 2008, p. XXVIII).
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Mesmo com o desenvolvimento de uma poética e de um teatro de grande originalidade, seja
pela estética ou pelas temáticas abordadas por Kantor, estão presentes em sua obra as
referências textuais, espaciais, e imagéticas de seus mestres. Tomemos como exemplo as
imagens construídas a partir da relação do ator com objetos e manequins, segundo a
afirmação de Bablet:
(...) apesar das distâncias que este se empenha em sublinhar, a despeito do fato de que a
Classe Morta toma como ponto longínquo de partida uma peça de Wietkiewicz, Tumor
Cerebral, não se pode deixar de ver, nesta última criação, de um lado um espetáculo em si,
e que é preciso ver como tal, e de outro um duplo diálogo, diálogo com Edward Gordon
Craig, autor de ‘O Ator e a Supermarionete’, e com Bruno Shulz, autor do ‘Tratado dos
Manequins’ (BABLET, 2008, p. XXVIII).
O início de sua atividade teatral se dá num dos piores momentos políticos e sociais
da Polônia, em 1942, enquanto há ocupação de tropas e muita destruição, realiza seus
primeiros trabalhos com jovens pintores em espaços clandestinos. O belo, a natureza e o
espírito romântico são colocados em cheque, uma vez que a realidade da guerra nos coloca
em dúvida sobre a concretude de tais aspectos. O teatro experimental desse período é
chamado de Teatro Clandestino (ou Teatro Independente), são então encenadas as peças:
Balladyna, de J. Slowacki e O Retorno de Ulisses, de Wyskianski.
O engajamento com as questões sociais e humanas que o cercavam está refletido não
apenas em sua temática, mas sobretudo nos espaços que utilizava para encenar suas peças e na
disposição do público. Kantor nega os espaços tradicionais, chamados por ele de “edifícios de
inutilidade pública” (KANTOR, 2008, p. 2). Sua proposição espacial é também uma atitude
política, no sentido de recolocar o olhar do espectador, colocando-o num espaço que possui
memórias e incita a experiências reais, não à representação. Em suas palavras: “A gente não
olha uma peça de teatro como um quadro, pelas emoções estéticas que ela proporciona, mas
a gente as vive concretamente” (KANTOR apud BABLET, 2008, p. XXIX).
A materialização de seus ideais começaria com o surgimento do Teatro Cricot 2. Na
contracorrente dos espaços de produção comercial, Kantor se apóia na rotina de ensaios como
um constante processo de experimentação. Isso o levará a expressão de uma subjetividade
específica à própria criação. Formado em 1955, o Cricot 2 foi composto por atores
profissionais e amadores, artistas plásticos e literários. O grupo eclético proporcionaria ao
diretor novas maneiras de composição cênica, renovando o método do jogo teatral e
contribuindo para o seu olhar que ora tendia à pintura, ora ao teatro. Com o Cricot 2 se inicia
a fase do Teatro Autônomo. Conforme Kantor, “Cricot 2 não é um teatro que pesquisa
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unicamente valores plásticos, mas um teatro de atores desejosos de encontrar uma renovação
total no método de jogo cênico” (KANTOR, 2008, p. 15).
Segundo Bablet, embora se caracterizasse como um teatro de vanguarda, haveria
uma série de ressalvas, por parte de Kantor, sobre qual a importância da renovação artística e
de suas referências estéticas para o desenvolvimento de uma obra artística nova. Contra o
formalismo e o congelamento de uma forma, de um estilo, Kantor defende a vanguarda como
um processo de redescoberta constante da própria linguagem (BABLET, 2008, p. XXXIV).
Talvez, por esse motivo, seja difícil identificar um método de trabalho kantoriano, entretanto
há um posicionamento estético e político que permite a análise de suas proposições ousadas e
alheias ao aperfeiçoamento de uma técnica. De acordo com Bablet, a constante transformação
de Kantor é o reflexo de “[...] uma aventura permanente que não se pode viver e conduzir
sem a aceitação lúcida e a busca deliberada do risco. Jogo, aventura, risco impossíveis sem
uma sinceridade absoluta” (BABLET, 2008, p. XXXIII).
O teatro autônomo de Kantor se refere a uma realidade que não será reproduzida,
mas reestruturada numa experiência artística para o público; é também autônomo quanto a
utilização dos elementos literários, busca então a autonomia da arte teatral. Questão que já
fora levantada e idealizada por encenadores e outros artistas do início do século XX (Craig,
Appia, Taírov...). No entanto, Kantor é mais radical quanto à inter-relação dos elementos
teatrais na perspectiva da obra de arte total wagneriana. Conforme o próprio Kantor afirma em
suas notas, “todos os elementos da expressão cênica, palavra, som, movimento, luz, cor,
forma são arrancados uns dos outros, eles se tornam independentes, livres, eles não se
explicam mais, eles não mais se ilustram uns aos outros” (KANTOR apud BABLET, 2008, p.
XXXV). É então a heterogeneidade que guia seus espetáculos, ator, texto, cenografia e
público são elementos que constituem sua engenharia do espetáculo, sem, no entanto, assumir
uma hierarquia dos elementos da cena. Verificaremos posteriormente como se dão esses
processos, analisando inclusive o jogo entre atores e marionetes, situação em que o signo é
expresso pelo contraponto das duas potências expressivas.
Sendo o ator mais um elemento expressivo do teatro, e não o centro dele, a utilização
do texto é então um jogo do ator com a palavra, a ação do texto e a ação cênica são autônomas
(KANTOR, 2008, p. 2). A palavra surge como referência de sua própria natureza, não há sua
representação, mas sim um convite às estruturas significativas de uma outra obra, a literatura,
para dialogar com a estrutura significativa da própria ação cênica. A palavra dialoga com a
criação do ator, com a cenografia, com os objetos, com os elementos que caracterizam a
composição da cena. Para ele, tornava-se indispensável uma relação de respeito para com o
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objeto, tratá-lo como potência expressiva e não considerá-lo apenas como um acessório da
cena. Por vezes tratava o objeto como elemento mais importante que os atores. O ator, o
objeto e a música eram fundamentais na construção do espetáculo.
Desde Grotowsky os objetos estavam intimamente ligados à composição espacial e
às ações, estabelecendo relações significativas com o espaço e os atores. No entanto, a
perspectiva de Grotowsky se diferencia de Kantor numa questão metodológica. O primeiro
pretendia eliminar os elementos que não fossem essenciais à composição cênica, ressaltando
então o movimento dos atores pelo palco. Kantor estabelece diversos tipos de relações e
utilizações dos objetos, debruça-se sobre o universo dos objetos como um material da
memória, individual e coletiva, necessários à elaboração de uma poética do teatro da morte.
Investiga a natureza dos objetos e a re-significação deles dentro do espaço cênico. Trata-se de
uma outra proposição, que é, no entanto, muito pertinente na obra de Kantor pela realidade
expressa em seus objetos (KOBIALKA, 2005, p. 230). Por vezes, seus atores se confundem
com os objetos, assim como também os caracteres e imagens que refletem a morte
estabelecem um contraponto, um contraste que instiga a uma reflexão sobre a vida. Imagens
que se repetem como necessidade de preservar memórias.
Já não é mais a improvisação o trabalho diário dos atores, Kantor acredita na decisão
e no acaso como as ferramentas de criação do ator, perspectiva semelhante ao posicionamento
artístico gerado pelas vanguardas estéticas, no qual a idéia e o ato criativo se mostravam mais
instigantes do que o próprio produto final. (KANTOR, 2008, p. 140)
Nas palavras de Bablet, a improvisação não será completamente banida do processo
de criação. A partir de uma estruturação cênica, quando a matéria surge de uma composição
que vem sendo arquitetada, o ator pode intervir como se sentisse o dever de fazê-lo. Apossase dos elementos pré-existentes, joga diretamente com o universo construído pelos objetos,
pela cenografia e outros movimentos da cena, abrindo-se para a cena ao invés de se mascarar.
O ator, no teatro de Kantor, utiliza de suas potências, de sua pré-existência, permanece antes
de tudo ele mesmo (BABLET, 2008, p. XXXIX).
As predisposições representam a matéria essencial para a realização artística. Os
objetos são tratados por sua existência concreta, despidos de significações e funções utilitárias
(KANTOR, 2008, p. 136). Longe da representação da vida, a realidade é encarada em sua
predisposição para o jogo de tensões, desmaterializada e submetida a um novo olhar. Os
argumentos de Bablet indicam como Kantor encarava este processo:
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Kantor recusa-se a fazer da arte a reprodução ilusionista, a apresentação ou a
representação, a explicação ou a expressão de uma realidade prévia, meta da obra
de arte tradicional. Ele se apodera da realidade, apreende-a, “anexa-a”. Objetos
verdadeiros, situações, entourage são assim capturados, na verdade presos na
armadilha. A obra de arte não é mais um fim. O que conta é a negação da forma e
da expressão, a valorização do comportamento, a manipulação e a utilização
gratuita e inútil do real. O gesto e o ato (BABLET, 2008, p. XXXIX).
Posterior ao período do Teatro Autônomo, Kantor se aprofunda nas relações entre os
elementos cênicos como geradores de tensões para a cena. Seu teatro, a partir de 1961, propõe
uma radicalização nos modos de trabalho que atingiria seu ápice no Teatro Zero, em 1963.
Cada vez mais distante das proposições de encenação tradicionais, trabalha com temáticas que
tendem ao ilógico, negando a aparência de vida e valorizando o acaso na busca por uma
realidade essencial para o homem de sua época. O radicalismo se daria com a completa fuga
da ilusão da realidade, com atores que assumissem o estado de entrega às suas próprias
emoções e condições marginais. Período no qual se desenvolve o Teatro Happening,
proposições artísticas que se aproximam cada vez mais do real e da intervenção na atividade
cotidiana. Recoloca a experiência e a pré-existência dos atores como material expressivo, seja
na própria experiência do happening, ou como um processo necessário ao ator dentro de sua
trajetória artística (KANTOR, 2008, p. 136).
Com o Teatro Happening, a partir de 1965, a atividade artística retoma alguns
princípios dadaístas e surrealistas, reportando-se às questões do pensamento, da invenção e da
atitude. O fluxo do pensamento estava inserido no processo artístico e poderia agora ser
refletido na organização da obra. A experiência do happening possibilitou que o ator
percebesse sua preexistência como posicionamento estético/artístico. Kantor reforça a corelação entre o objeto, o espaço e o ator, contra a ilusão do texto dramático. Kantor queria que
a realidade fosse reivindicada pelo texto e não se constituísse fácil e superficialmente. O
diretor queria que ela se amalgamasse, que se unisse indivisivelmente “com esta préexistência (pré-realidade) do ator e da cena” (KANTOR, 2008, p. 135).
No happening havia a possibilidade de se tratar a realidade como um objeto pronto,
como um ready made (como concebeu Duchamp). Elementos que constituíam a vida
elementar e que seriam destituídos de suas funções cotidianas, recolocados no contexto real
“permitindo-lhes uma existência autônoma, de dilatação e desenvolvimento livre e sem
objetivo” (KANTOR, 2008, p. 136).
Na experiência desafiadora que é o seu teatro, na qual atores, objetos e texto são
colocados num embate que descende de suas próprias existências, o público também estará
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ali, imerso num ambiente incomum (em contraposição aos prédios teatrais confortáveis) para
que compartilhem uma nova visão da realidade. Kantor estará no canto da cena, visível ao
público durante a encenação, reforçando a quebra da ilusão com sua presença que mais se
assemelha a de um maestro. Se todos os elementos compõem um jogo de tensões para a cena,
Kantor será mais um desses elementos (BABLET, 2008, p. XLI).
A realidade evocada pela realidade da experiência cênica, realidade degradada,
caminha para o encontro com a morte, principalmente na última fase da obra do encenador.
Reflete sobre a própria transitoriedade da vida, que está intimamente relacionada com a
trajetória, com a vida, de Kantor. O clima não é de completa morbidez, mas também de
memória, de ternura, sobre a vitalidade e a passagem do tempo. Seus manequins, que em
repetidas obras aparecerão, são formas que imitam a vida e paradoxalmente estão mortas,
remetem a aquilo que fomos ou poderíamos ser. São o modelo para o ator que vive nesse
teatro, jogando com a ausência de vida para exprimir a própria vida. Sobre esse ator,
argumenta Kantor, “eu o vejo antes como um rebelde, um objetante, um herético, livre e
trágico, por ter ousado permanecer só com sua sorte e seu destino” (KANTOR, apud
BABLET, 2008, p. XLIV).
No dia 8 de dezembro de 1990, em Cracóvia, Tadeusz Kantor teve um mal súbito em
um dos ensaios de sua última peça, Hoje é meu aniversário, vindo a falecer logo em seguida.
O Cricot 2, ainda excursiona por diversos países até 1992, com o espetáculo final desta
companhia teatral, fundada por Kantor.
A colagem, a sobreposição de imagens, sua proposição de jogo entre os atores, a
composição do espaço com um forte caráter político e principalmente a importância dos
objetos na cena são características que colocam o teatro de Kantor, na definição de Lehmann,
como teatro pós-dramático, mas principalmente pelo modo como o encenador se utiliza das
temáticas que rodeiam a morte. Não há um desenvolvimento dramático que leva à morte
como ápice, revelação ou desfecho de uma situação. A morte é, sobretudo, uma premissa para
a cena, uma atmosfera que paira na cena e permeia as imagens do resto, do após, do que é
inerente a própria morte. “A morte não é posta em cena dramaticamente por Kantor, mas
repetida de modo cerimonial” (LEHMANN, 2007, p. 119).
Os processos de degradação do homem pertinentes ao cenário da guerra, como as
torturas, prisões e os próprios assassinatos, se distanciam da representação dramática. São
imagens de cunho poético construídas na subversão dos próprios temas e re-significadas de
maneira tragicômica. Nas palavras de Kantor, “creio que um todo pode conter lado a lado
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barbárie e sutileza, tragicidade e riso grosseiro” (KANTOR, 2008, p. 1). Assim, também se
utiliza da repetição e do esfacelamento do tempo. Estes são elementos de ruptura com o
drama tradicional, conforme afirma Lehmann no trecho “Kantor ou a cerimônia”:
As “sequências de imagens comicamente antiquadas e ao mesmo tempo
infinitamente tristes” com freqüência remetem a cenas que poderiam figurar em um
drama grotesco, mas o dramático se perde em favor de imagens em movimento por
meio do ritmo repetitivo, das configurações à maneira de quadros e de uma certa
des-realização dos personagens, que com seus movimentos em solavancos se
tornam parecidos com marionetes. (LEHMANN, 2007, p. 13)
Os espetáculos de Kantor se baseiam em memórias dele e em memórias inventadas,
como se só restasse a memória do que aqueles personagens foram um dia e uma eterna
procura de si mesmos. Em atmosfera de estranheza, as imagens tragicômicas revelam essas
memórias, Kantor se apropria do real para refazê-lo na cena sob uma perspectiva de
estranhamento. São imagens fragmentadas, conforme o próprio fluxo da memória e da
lembrança, nas quais o objeto e os atores, por vezes atores-objetos, suscitam uma realidade
degradada, a chamada “realidade do mais baixo escalão” (LEHMANN, 2007, p. 120).
Os personagens seguem um caminho de busca por suas próprias imagens, na
retomada de memórias que cotidianamente deveriam ser esquecidas. Kantor deseja levantar
na cena as memórias que não deveriam ser esquecidas. No entanto, só se pode registrá-la no
curto espaço do aqui, do agora, no acontecimento da cena, na retomada da imagem. A
presença da morte como lembrança, como fotografia inanimada, revela paradoxalmente
aspectos da vida, dos que querem continuar a viver (LEHMANN, 2007, p. 119).
Talvez como recurso de metalinguagem, vemos a questão da imagem e da morte bem
relacionadas em um pequeno trecho da peça Wielopole, Wielopole (1979), quando a fotógrafa
irá registrar um grupo de jovens soldados, de repente, transforma sua câmera fotográfica em
metralhadora e com um riso irônico mata o grupo de soldados. Conforme a análise de
Lehmann, “[...] a um só tempo, emblema tragicômico do assassinato por meio da fixação da
imagem e denúncia surrealista da guerra” (2007, p. 120).
No presente texto pretendeu-se abordar de maneira introdutória os modos pelos quais
o teatro passou a operar a partir da ruptura com os princípios do drama e as premissas para o
teatro contemporâneo. A imagem é um dos focos principais desta corrente por conta da
descentralização do conflito e da palavra como formas expressivas principais do Teatro Pósdramático.
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Como pesquisa inicial, este trabalho se prolongará no estudo das imagens construídas
no teatro de Tadeusz Kantor a partir da utilização de objetos que ganham sentidos e
atribuições poéticas variadas. Apesar das restrições quanto à disponibilidade de materiais e
referências bibliográficas, cada vez mais pesquisadores se interessam pelo tema e produzem
materiais que enriquecem esta área temática. Crendo, principalmente, que o teatro pode
explorar universos criativos e assuntos que necessitam ser abordados para além da palavra e
das unidades dramáticas tradicionais.
___________________
¹ Graduando do curso de Artes Cênicas na Universidade Estadual de Londrina, integrante do Projeto
de Pesquisa “Identidade, Jogo Cênico e Objeto-Imagem”, pelo Programa de Iniciação Cientifica –
PROIC.
² Stanisław Wyspiański foi dramaturgo, pintor e poeta polonês (1869 - 1907).
Referências Bibliográficas
BABLET, Denis. O jogo teatral e seus parceiros. In: KANTOR, Tadeusz. O Teatro da Morte/
Tadeusz Kantor; textos organizados e apresentados por Denis Bablet. – São Paulo:
Pespectiva: Edições SESC SP, 2008.
CINTRA, Wagner Francisco Araujo. No limiar do desconhecido. Reflexões sobre o objeto no
teatro de Tadeusz Kantor. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
KANTOR, Tadeusz. O Teatro da Morte/ Tadeusz Kantor; textos organizados e apresentados
por Denis Bablet. – São Paulo: Pespectiva: Edições SESC SP, 2008.
KOBIALKA, Michal. Kantor está morto! Esqueçam Kantor! In: Sala Preta. Departamento de
artes cênicas da ECA-USP, n. 5, 2005.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Sussekind. São Paulo:
Ed.Cosac&Naify, 2007.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático e Teatro Político. In Revista Sala Preta.
Dep. De Artes Cênicas da ECA-USP, n. 3, 2003.
1931
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