Entrelinhas nº 71 Setembro | Outubro | Novembro | Dezembro de 2015
Artigo
Despatologização das Identidades Trans e Travesti: o que temos a ver com isso?
Fernanda Hampe Picon
Psicóloga, mestre em Educação. Professora da Unisinos.
Dia 18 de outubro é o Dia Internacional de Luta Internacional pela
Despatologização das Identidades Trans. Sensível a isso o conselho Federal de
Psicologia lançou em novembro uma campanha em apoio a esse movimento
internacional de colocar em pauta os efeitos danosos da patologização e invisibilidade
das experiências trans. Para tecer algumas considerações no que penso ser o
compromisso político e ético da psicologia com esta questão, acredito ser importante
frisar que a psicologia como ciência na modernidade, erigiu seu saber acerca do
humano em torno de categorias fixas, balizadas por aquilo que chamamos sujeito
norma, ou seja, branco, heterossexual, cristão, classe média, e aqui poderíamos
acrescentar, cisgênero, ou seja, cuja expressão de gênero está adequada com a que foi
designada no nascimento pela genitália.
Recorrendo a autores como Foucault (1997) e Judith Butler (2007) é possível
produzir uma certa ruptura nesta perspectiva de pensamento (construído na
modernidade), acessando outros modos de pensar os sujeitos, para além das
naturalizações, biologizações e essencializações, compreendendo a sexualidade e o
gênero como construções sociais, éticas e políticas que colocam em questão as noções
essencialistas e privatistas do humano, resquícios da lógica moderna do sujeito racional,
coerente, unificado e biodeterminado. É necessário neste contexto, arejar a discussão e
pautar quais demandas a contemporaneidade tem suscitado que demos passagem na
formação psi quando não compreendemos mais o sujeito como efeitos de um corpo
biodeterminado, mas como um corpo produzido na e efeitos da cultura.
Enquanto compromisso desta área de saber e intervenção, podemos dizer que
não faz muito tempo que a psicologia pautou como questão pertinente as temáticas
relativas ao debate gênero, sexualidade (bem como raça), no sentido de ampliar e
problematizar os discursos produzidos nesta interface que restringem a sexualidade à
prática heterossexual, a noção de gênero como meramente papéis sexuais
(naturalizados e biologizados). Rever a formação significa a impossibilidade da
continuidade de oferta de práticas psis que se atrelam à noções que circunscrevam a
sexualidade não heterossexual à lógica do desvio, da doença, da perversão e da
anormalidade, sendo também necessário produzir deformação na recorrente noção de
que heterossexualidade é superior e mais desejável do que os demais exercícios da
sexualidade, assim como, dar visibilidade a identidades sexuais e de gênero dissidentes,
ou não conformes.
Numa sociedade que é, simultaneamente, capitalista, patriarcal, racista,
heterossexista, as posições geradas por gênero, classe, raça e sexualidade geram
vulnerabilidades específicas. Hoje, a isso usamos o termo “interseccionalidade”.
Devemos assim trazer também a dimensão cissexista, ou seja, práticas e discursos de
que pessoas trans não são verdadeiras, pois entende verdadeiro como a dimensão da
genitália como âncora identitária da pessoa. O cissexismo está institucionalizado nas
leis, na mídia, nas religiões e muitas vezes, na formação em psicologia. Não esqueçamos
que os movimentos sociais LGBTT’s garantiram a transformação da noção de
Transtorno de Identidade de Gênero para Disforia de Gênero no novo DSMV, o que
garantiu um avanço na perspectiva psicopatológica da questão, trazendo para a cena a
dimensão do sofrimento psi disparado pelas violações sociais e culturais que a
invisibilidade e o não reconhecimento deste sujeito produzem. Precisamos, por
exemplo, pensar como operadores psis, como as crianças que desafiam as normas de
gênero são tratadas, pela família, pela escola e pelos próprios trabalhadores psis. Se
antes as orientações dos profissionais da área de saúde mental eram de intervenção nas
crianças, agora as orientações giram e dar suporte para que as famílias (bem como
escola) consigam acolher e apoiar as crianças, ao invés de enquadrá-las às duras
prescrições das normas de gênero. Travestis e transexuais sofrem uma marginalização
compulsória que pode ser exemplificada pela evasão escolar, impossibilidade de acessar
os espaços e serviços de saúde, ausência de empregabilidade formal, e o frequente
descaso em relação ao nome social, que o coloca numa situação de extrema
vulnerabilidade.
As contribuições de Judith Butler (2015) com a sólida crítica ao paradigma da
heteronormatividade, entendendo sexo/gênero/desejo como um sistema discursivo
que reitera a norma hetero, agregando à agenda dos movimentos sociais, o
questionamento da norma, o que não significa apenas sua destruição, mas a busca por
normas que melhor nos sirvam quando temos por projeto, a liberdade. Embaladas por
Butler, ou surfando sua onda, é possível dizer que ainda que tenhamos que lutar por
liberdades individuais, temos que pensar o lugar dos corpos não conformes e das
sexualidades dissidentes e nos indagar quais corpos podem mover-se livremente dentro
de uma democracia. Precisamos atentar ao modo com que a vulnerabilidade e
precariedade estão diferencialmente distribuídas, estabelecendo pessoas como “não
lamentáveis”, como corpos que não importam, como corpos invisíveis. Quando Butler
nos ajuda a ocuparmo-nos com o “sujeito ilegível”, ou seja, aquele que transita entre o
fora/dentro dos enquadramentos identitários, nos aponta a necessidade de
problematizar o quanto os corpos abjetos são violados pelas instituições: escola,
academia, ciência dominante, saúde, igreja.
É preciso darmos às pessoas trans (transexuais, transgênero e travestis),
visibilidade frente uma estrutura que mantém essas pessoas à margem, lutando contra
o cissexismo, agregando à luta, a ética libertária, a necessidade de romper-se com a
deslegitimização e violação de qualquer vivência trans, rompendo com aquilo que deixa
à margem, desumaniza e coloca as identidades trans como anormais e abjetas. O corpo
produzido como transgressão de gênero nos aponta que o humano não se limita apenas
ao “homem” e a “mulher”, pois isso é deveras binário. Há quem experimente um corpo
e o faça como palco de criação daquilo que não é apenas “isso” ou “aquilo”. A
psicologia precisa (des)envolver estratégias de intervenção que afirmem a vida, para
além de tolerâncias ou discursos de inclusão, pois tal lógica permanece centrada em um
humano referência e normativo: branco, homem, heterossexual, cisgênero, sendo os
“demais”, “incluídos” naquilo então que ele representa como “fora” (os sujeitos
ilegíveis). Entendo que nossa formação precisa comprometer-se a desacomodar um
sistema de educação que reproduz e segue formando para a reprodução das formas de
dominação e manutenção das desigualdades e hierarquias sociais.
Assim, como a psicologia pode contribuir com a proposta de transformar o
contexto heterossexista, cissexista e racista em que vivemos? Qual a implicação da
psicologia com a produção de sujeitos vistos como anormais, desviantes, ou mesmo,
com a produção do campo de normalidade desenvolvida ao longo da modernidade?
Enfatizo que toda norma regulatória é uma espécie de poder produtivo, o poder de
produzir - demarcar, fazer, circular, diferenciar – os corpos que ela controla. O sujeito
ao nascer é designado macho ou fêmea, branco ou negro, e estes enunciados não apenas
descrevem algo, mas produzem este algo. São performáticos (BUTLER, 2007). É preciso
problematizar o recorrente alinhamento entre sexo-gênero-sexualidade que normatiza a
noção de que, invariavelmente, o sujeito deverá corresponder ao seu sexo (circunscrito e
reduzido ao entendimento naturalizante e essencializante macho ou fêmea), numa
simetria ao gênero que lhe colocam como correspondente (masculino ou feminino) e
numa lógica de que o desejo será orientado na perspectiva heterossexual. Nesta
perspectiva, entendemos que a formação em psicologia exerce a biopolítica, governo da
vida (FOUCAULT, 1997) da sexualidade, do gênero e da raça, reproduzindo discursos
que permanecem respaldando uma única forma possível de sexualidade, de vivência e
construção do gênero e raça, qual seja, a heteronormatividade, a binariedade (homem x
mulher) e a supremacia branca. Torna-se necessário abrir a rede de discursos existentes
em torno da sexualidade, do gênero e da raça, embasados nos estudos que a partir do
século XX aliaram-se a diferentes campos (teóricos e dos movimentos sociais)
possibilitando questionar e abalar os pressupostos básicos do paradigma de Ciência
hegemônico: da universalidade, racionalidade, neutralidade, prerrogativas de
definições de verdades atemporais e a-históricas, numa suposição de essência humana,
masculina, branca e heterossexual (MEYER, 2004) e cisnormativa.
Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In:
LOURO, Guacira. O Corpo Educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p.153-172.
BUTLER, Judith. Entrevista à Revista Cult – Revista Brasileira de Cultura. Ano
18, número 205, setembro de 2015, pg 21-26.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 12ª edição. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1997.
MEYER, Dagmar. Teorias e Política de Gênero: fragmentos históricos e desafios
atuais. In: Revista Brasileira de Enfermagem (DF). 57 (1): 13-18. Jan/fev, 2004.
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