2b O Anápolis Anápolis, 1 a 7 de julho de 2006 OPINIÃO ARTIGO O QUE VOCÊ TEM A VER COM ISSO? JEFFERSON PONTIERI Editor-Executivo “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica, e de comunicação independentemente de censura ou licença” Constituição Federal, art. 5. IX De estarrecer. Esta semana, em entrevista ao jornal Contexto, o promotor de Justiça Marcelo Celestino Santana declarou que “dentro de alguns dias deve fazer um ajuste de conduta com as emissoras de rádio, televisão e jornais”, o motivo: “deflagrar uma campanha de conscientização eleitoral”. Salvo a nobre intenção, resta acerca da atitude do promotor, somente a dúvida de se este seria o papel do Ministério Público Estadual. Se cabe a ele defenestrar o candidato não compromissado com a cidade e decidir quem é mais apto para administrar Anápolis, para que precisaríamos de Justiça Eleitoral? Mas o que deixou a maioria de meus colegas jornalistas indignados foi a declaração acima citada. Pudemos observar que a tentativa de alguns membros dos três Poderes em conter a liberdade de imprensa, após os anos de ferro, foi estéril e hipócrita. Então a atitude do promotor parece esquisita: se a Constituição proíbe a censura, como é que pessoas e órgãos da comunicação continuam a sofrer proibições ou coibições? Deve haver algum dispositivo legal que permita esse tipo de decisão (o tal Termo de Ajuste de Conduta), será?, ou a Justiça não a tomaria; mas, se isso não se chama censura, qual nome teria? Admito que a imprensa, às vezes, é fogo: toma assinatura com alguém e o persegue até o final dos tempos. Mas o remédio mais democrático para isso é a lei, não a proibição prévia; é o processo judicial, que pune os excessos. Imagine que um personagem, protegido de citação, faça alguma coisa memorável – invada, por exemplo, um campo de futebol, com nariz postiço e cuecas impressas com o rosto do Cafu. Quem estiver proibido de citá-lo não poderá dar nem essa notícia? Pelos males terríveis da autocensura, muito disseminada atualmente nas redações brasileiras, pode-se medir o mal ainda maior da censura oficial. Uma vez eliminados os direitos e as garantias individuais próprias dos regimes democráticos, o Estado começa por simplesmente vetar o que não lhe agrada no material da imprensa. Se não encontra resistência, se a reação é débil, ou, ainda, se a truculência do poder discricionário elimina as resistências, o passo seguinte é consagrar a meia-verdade, muito mais eficiente do que o veto pura e simples, absoluto – como ainda persis- te em Cuba, por exemplo. Sem o anteparo da decência e da dignidade, a malícia cria o cinismo e daí o censor se torna o alterego do jornalista. Sente-se no direito não só de controlar tudo que sai, mas também de manipular o que pode ser publicado. A realidade passa a depender da vontade do Torquemada – um dos principais inquisidores da Espanha. A anomalia segue uma tal espiral que logo a eventual boa intenção na origem terá resultado num monstro sem controle. É essa a trajetória de sempre das ditaduras, mesmo quando começam como um regime de profilaxia. Acabam se especializando numa das mais maléficas atividades humanas: o corte de cabeças. Zakhour Georges Zakhou Conheci o Zakhour na década de cinqüenta, quando ele aqui chegou. Era casado com uma irmã do Elias Modisse, meu cliente no escritório de contabilidade, já estabelecido com o comércio de secos e molhados, por grosso e a varejo, à Rua General Joaquim Inácio, onde, hoje, está o Super Mercado Floresta. O Zakhour era um homem feito. Tinha mais de quarenta anos. Era robusto, com corpo cheio, e o seu andar era vagaroso. Aliás, era uma pessoa calma, falava compassadamente, com voz suave, sempre esboçando um semblante descontraído. Já estava com os cabelos embranquecendo. Mantinha a barba e o bigode raspados. Era um homem muito educado, seguro e confiante de si mesmo. Ele associou-se com o jovem Salim Bittar e, os dois, muito vivos e inteligentes, logo começaram a disputar a freguesia dos mais antigos, já estabelecidos em Anápolis, e com alguma tradição em bem servir os seus compradores. O setor atacadista anapolino movimentava apreciáveis capitais e, de longe, vinham comerciantes, do norte e de Estados circunvizinhos de Goiás abastecerem-se por aqui. Contou-me Elias Zaiek, que, por algum tempo. Conviveu e trabalhou com Zakhour, como comissionado, uma passagem sigular. Certa vez o Zakhour o convidou para, juntos, almoçarem em um restaurante, que servia comida árabe. Tranqüilos, satisfeitos, assentaramse à mesa e, logo, começaram a chegar os pratos e uma pilha de pães sírios. O primeiro foi o grão de bico. Cada qual pegou um pão, rasgou-o em pedaços, que, presos aos três dedos da mão direita, eram esfregados sobre o “theine”. Assim absorvendo uma boa porção da massa, levava-os às bocas escancaradas, para aparar toda a comida, que era mastigada com prazer. Depois de consumirem o primeiro monte de pães, o Elias pediu outro, enquanto Zakhour, afastando-se um pouco, da mesa, passou a observar o seu companheiro. E o Elias, que parecia estar com saudade de “nós terra”, estava, mesmo, muito ocupado com a mastigação contínua. Quando passou dos dez pães, ali retalhados pelos dois comensais, e esvaziados dois pratos do apetitoso manjar, o Zakhour, com notória ironia, ia soltando, em árabe, algumas palavras, que só mais tarde o Elias compreendeu, e ficou meio desajeitado. Entre dentes, dizia o Zakhour: - Rasga... rasga... rasga. - Fazia uma pausa, e continuava: - Desgraçado é quem o convidou! – Rasga... rasga... rasga! Quanto a mim, que lhe havia regis- trado a firma comercial, e lhe prestava serviços, como contador, também fui surpreendido. Toda vez que ia ao seu estabelecimento, em busca de papéis, assinaturas, levar balanços ou mesmo, fazer compras para o abastecimento de casa, o Zakhour, sempre sorridente, me oferecia “bresentes”. Ora era uma lata de goiabada, de pêssego, algumas garrafinhas de bebidas, que lhe mandavam as fábricas, como brindes, e eu, inocentemente, até satisfeito, com as gentilezas, voltava, contente, acrditando ser muito considerado. Porém, no primeiro acerto de contas, após alguns meses, quando houve o primeiro confronto, lá estavam, em seus registros: uma latinha de goiabada, Cr$ 1,00; outra de pêssego, Cr$ 1,50; cinco garrafinhas de Martini, Cr$ 2,50. Compreendi, sim, o meu equívoco, e nunca mais aceitei “bresente” do “turco”, que agia como “grego”. Os irmãos Alves – João, José, Antônio e Paulo – que haviam se transferido de Ipameri, para Anápolis, mantinham, aqui, um grande armazém, para a venda de produtos manufaturados, sal. Açúcar, arames, ferramentas, farinha de trigo, óleos, armarinhos. Tinham exclusividade em algumas mercadorias e ofereciam condições e preços razoáveis, que atraiam fregueses de longe, até de outros Estados. Em certa ocasião o açúcar ficou escasso e o preço subiu. Chegou à casa dos Cr$ 500 o saco de 60 quilos. O Zakhour não tinha o produto em sua loja, e não era fácil adquiri-lo, nas usinas. Assim, foi até o Irmão Alves e ali fechou o negócio, comprando a carga de um vagão, inteirinho, que estava para chegar, pagando preço superior ao comum, no varejo. Com prazo de 30 dias, para pagamento, após o recebimento do produto, ofereceu Cr$ 510 por unidade, que o Antônio Alves aceitou, sorridente, pois, sem trabalho, estava somando mais Cr$ 5 mil ao seu lucro. Tão logo o vagão foi liberado, na plataforma, para a descarga, ali mesmo foram encostados dezenas de carroceiros e até caminhões, que, em parcelas, acabaram por esvazia-lo. Nenhum saco de açúcar foi levado para o armazém do Zakhour. Vendo o que viu, pois, o armazém dos irmãos Alves ficava bem próximo da estação da estrada de ferro, o Antônio Alves incomodou-se, demonstrando preocupação. Ora, o Zakhour comprou o açúcar por Cr$ 510 e vendeu tudo por menos, perdendo dinheiro. Assim, agitado, com a promissória do Zakhour, no bolso, foi até o nosso escritório, exibindo o documento e, um tanto surpreso, indagou: - o Zakhour está quebrado...? Tá...? - Por que a pergunta, Sr. Antônio? Continuou ele a falar: - Uai! Ele me comprou 500 sacos de açúcar, e me assinou uma promissória. Tudo bem! Mas o “turco” já vendeu todo o carregamento vago, perdendo Cr$ 5 mil... Pode?... um negócio desse? Não entendí...”torrando”mercadoria, abaixo do custo...? – Negócio é para a frente! Poucos dias após, o Zakhour nos veio trazer documentos par a aescrituração de sua contabilidade. A promissória de açúcar estava entre os papéis, quitada. Lembrei-me da pergunta do Antônio Alves, à qual não dei seguimento, quando foi formulada. Com semblante zombeteiro, o Zakhour foi dizendo: - Essa gente não sabe negociar. Eles ganham dinheiro só porque têm dinheiro... E continuou: - Fui ao Banco, tomar emprestado Cr$ 250 mil, a fim de, com esse dinheiro, “tomar” dos Alves, o “bagão” de açúcar que ia abastecer a praça. O Banco ofereceu o dinheiro, sim, mas fazia o desconto dos juros, dois e meio por cento, por dentro. Eu receberia Cr$ 6,250 mil a menos. Então pensei: Vou oferecer aos Alves, Cr$ 10 a mais, por saco de açúcar, e estarei pagando dois por cento, no fim de 30 dias. Foi o que aconteceu. Em menos de cinco dias, ajuntei os Cr$ 500 de cada saco, que me ajudaram a pagar outras duplicatas, ganhar os apreciáveis descontos, de pagamentos à vista, e, com a venda de outros produtos, quitar a promissória do açúcar, no tempo exato do seu vencimento. -Olha o quanto ganhei de descontos, ao pagar, à vista, as duplicatas da Martini & Rossi, da Sambra, da BelgoMineira, da Gessy Lever, da Gambargote. O açúcar, todo ele saiu, vendido, acompanhado de outros produtos, como sal, arame, bebidas, em valor igual, que me proporcionaram ganhos superiores à perda de cada Cr$ 10 em saco de açúcar. O negócio rendeu, satisfatoriamente, rápido e seguro. Não houve erro. Só que o senhor Antônio não percebeu o estratagema. O boato que imaginou, não “pegou”... pois, fui eu quem “pegou” o dinheiro que ele deixou de ganhar. O Zakhour foi um homem singular, entre os seus patrícios. Foi um dos mais inteligentes que conheci. Simples, educado, consciente e seguro do que fazia, distingui-se de tantos conterrâneos seus com os quais convivi. Ele ganhou muito dinheiro, em sua atividade comercial. Mudou-se para Brasília e depois retornou à sua terra natal. Tive notícia do seu falecimento, antes que houvesse chegado à velhice. Aprendi muito, sorrindo, com as “tiradas” do amigo ZAKHOUR. João Asmar