Leitura: o mundo além das palavras Leitura: o mundo além das palavras Organizadoras: Ana Gabriela Simões Borges Andressa Grilo Assagra Clarice Guterres López de Alda Realização Técnica: Instituto RPC Coordenação e edição: Ana Gabriela Simões Borges, Andressa Grilo Assagra e Clarice López de Alda Produção de textos e fotografia: Brisa Teixeira Revisão de Textos: Adamastor Marques Apoio técnico: Everton Renaud e Gustavo Viana Projeto gráfico e diagramação: Sintática Comunicação L533 Leitura: o mundo além das palavras / Instituto RPC. Organizado por Ana Gabriela Simões Borges, Andressa Grilo Assagra e Clarice López de Alda. Curitiba: Instituto RPC, 2010. 184 p. ISBN: 978-85-64009-00-4 1. Educação – Alfabetização. 2. Leitura – Práticas de leituras – Ensaios. 3 Leitura – Ensino Fundamental. CDD 370.7 Sumário Leitura e Cidadania Um país que não lê Introdução 06 08 10 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento Formação do leitor aprendiz Boneco do Conhecimento 12 14 24 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica A crítica dos sentidos Ponte entre a escola e o mundo 32 34 48 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental Por que e para que ensinar a leitura? Atualidade no currículo 56 58 68 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola Leitura literária na escola Quando o faz de conta inspira o mundo real 76 78 88 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada Produtores de significado Adolescentes Editores de Jornal 96 98 110 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação Novas referências para o saber Por um mundo menos desigual 118 120 130 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola Ler é atribuir sentidos Cada aula, uma novidade 138 140 152 Capítulo 8 - Ciberleitura Ciberleitura no contexto educacional Ligados nesta arte 160 162 176 Leitura e Cidadania A Gazeta do Povo criou o Projeto Ler e Pensar, que hoje é coordenado pelo Instituto RPC, porque acredita que o jornal é um eficiente recurso para projetos didáticos criativos voltados à promoção da leitura e cidadania. Reconhecido como um dos meios de comunicação mais completos, independentes e plurais, que aprofunda e analisa informações, possui e emite opinião, o jornal, por suas características, agrega valor ao processo de ensino-aprendizagem e amplia horizontes e compreensão de mundo. Na plataforma impressa ou digital, todos os dias o jornal publica textos diversificados (reportagens, notícias, artigos, opinião etc.) sobre temas como cultura, educação, política, esportes, economia, cidadania e serviços, bem como utiliza fotos e outros recursos gráficos que o tornam atrativo e confiável. Uma fonte quase inesgotável de informação e pesquisa sobre fatos e assuntos da atualidade. Os conteúdos do jornal levam o mundo para dentro da sala de aula e estimulam a prática da reflexão, comparação, análise, síntese e conclusão. Ou seja, a leitura constante e sistemática dos conteúdos do jornal, comprovadamente, conduz o aluno a contextualizar o aprendizado escolar e a entender melhor o seu papel na sociedade. Além disso, quando incorporado às práticas pedagógicas da escola, o jornal propicia e favorece o cumprimento do propósito maior da educação, que é formar seres humanos capazes de compreender sua realidade e nela interferir de maneira positiva. 6 Afirmações que não são nossas, e sim dos professores que vêm desenvolvendo o Ler e Pensar ao longo dos anos. De acordo com seus relatos, o uso do jornal no ambiente escolar tem sido determinante para a formação de alunos leitores habituais, bem informados e críticos. Crianças e jovens que, com toda a certeza, estão e estarão prontos para conduzir seu destino e o futuro das suas comunidades e até da Nação. Nelson Souza Filho Diretor de Redação do Jornal Gazeta do Povo 7 Um país que não lê Em um século onde saber expressar-se – fazer-se entender e ser entendido nos mais diferentes contextos e situações – é sinônimo de sobrevivência e inclusão social. Enfrentar e combater o decrescente interesse do jovem e adolescente pela leitura é um dos maiores desafios do Brasil. Uma guerra de proporções gigantescas composta de muitas batalhas que precisam ser encaradas com urgência pela sociedade como um todo e pelas instituições de ensino de modo particular. Comunicar-se é uma habilidade adquirida e aperfeiçoada ao longo da vida. Talento que se desenvolve principalmente a partir da leitura, um testemunho oral da palavra escrita que se tornou uma atividade extremamente importante para o homem civilizado, atendendo a múltiplas finalidades. Ler, porém, é um hábito que rapidamente vem sendo substituído pela facilidade e superficialidade das informações eletrônicas, os chamados hipertextos, cada vez mais sintéticos e em linguagem cifrada. Se é sabido que ninguém consegue aperfeiçoar a habilidade de expressão e comunicação manuseando e ouvindo expressões pouco letradas, cabe à escola – ambiente da educação formal – ensinar e estimular a prática da leitura significativa e contexualizada. Até porque, é na escola que a sociedade deposita a responsabilidade de reverter o ciclo do analfabetismo total e funcional que vem se perpetuando no Brasil dos últimos séculos. Pesquisas publicadas em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e pelo Instituto Pró-Livro revelam dados no mínimo preocupantes em relação à leitura no País. Nada menos que 45% da população brasileira não leem sequer um livro por ano. E desse percentual, 53% dos pesquisados dizem simplesmente não “ter inte- 8 resse” enquanto outros 42% admitem “ter dificuldade” de ler. Ou seja, somos uma Nação de não leitores. Portanto, por analogia, seguindo o raciocínio inicial, somos uma nação de não comunicadores. Um país de pessoas com dificuldade para entender e se fazer entender, que, apesar de todos os avanços já atingidos, continua transitando na contramão da compreensão exigida pela sociedade contemporânea. Existem várias justificativas para o reduzido número de leitores no Brasil. Nós da Rede Paranaense de Comunicação concordamos com análise da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e acreditamos que o pouco valor simbólico atribuído aos livros; o fato de poucas famílias brasileiras terem o hábito da leitura; e ainda termos poucas escolas efetivamente investindo em programas de leitura são os fatores preponderantes para o desenho desse cenário. Sobre o primeiro fator – valor simbólico do livro –, temos pouca influência. Mas como grupo de comunicação temos condições de fomentar o hábito de ler entre as famílias e facilitar o desenvolvimento de programas de leitura nas escolas. Com o projeto Ler e Pensar, a RPC coloca a força da comunicação a serviço da educação, democratiza o acesso à informação e dá a sua contribuição efetiva para reverter as estatísticas que ainda classificam o brasileiro como um povo com pouca intimidade com a leitura. Mariano Lemanski Presidente do IRPC 9 Introdução Uma utopia possível A leitura de jornal conecta professor e aluno numa eficiente e prazerosa forma de ensinar e aprender há séculos conhecida dos filósofos gregos e orientais: usar fatos cotidianos para explicar e dar sentido ao assunto em discussão. Usar a realidade para contextualizar os conteúdos curriculares ou discutir temas de relevância social exigem a presença de mestres dispostos a inovar seus métodos de ensino em favor de níveis de excelência elevados e da formação de cidadãos críticos, leitores assíduos. Jovens e adolescentes com opinião própria, motivados ao questionar e ansiosos por aprender cada vez mais. A publicação que você tem em mãos se propõe a unir os fundamentos pedagógicos do Ler e Pensar às experiências práticas adotadas por professores em diversos níveis e contextos escolares, montando uma instigante arquitetura exploratória de possibilidades educacionais. Para conduzir e amarrar os universos da academia e da escola, facilitando o diálogo entre a perspectiva pedagógica e a relevância social, a obra foi dividida em oito capítulos: Alfabetização e Letramento, Apropriação da Leitura Crítica, Práticas de Leitura no Ensino Fundamental, Literatura Infantil e Contação de História na Escola, Leitura Significativa e Contextualizada, Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação, Leituras e Literatura na Escola e Ciberleitura. 10 As oito abordagens são complementares e ao mesmo tempo independentes. Revelam possibilidades que podem ser adotadas de forma integrada ou isolada por professores de todos os níveis, sempre com resultados eficientes e eficazes. Por tudo isso, acreditamos que esta publicação seja inspiradora, e convidamos você a copiar, sem medo de plágio, cada ideia criativa aqui registrada. Afinal, elas não pertencem ao Ler e Pensar e sim a corajosos professores que, mesmo sendo de diferentes formações e enfrentando diferentes realidades, enxergam a educação como meio de transformação social e decidiram arriscar novas receitas na prática docente usando os ingredientes da confiança, estímulo à criatividade, identificação e desenvolvimento de habilidades e competências dos alunos. Uma utopia possível. Boa leitura! 11 Capítulo 1 Alfabetização e Letramento O capítulo inicial deste livro é tido por muitos professores como um desafio sem igual: o incentivo à leitura durante o período de alfabetização. Quem encara o desafio de teorizar sobre o assunto é a professora Angela Mari Gusso, doutora em Estudos Linguísticos, ex-professora da Rede Municipal de Ensino de Curitiba e docente em cursos de graduação e pós-graduação. Pesquisadora de Aquisição da Escrita, Angela Gusso tem diversas publicações sobre o tema em anais de eventos do ramo da Linguística e em periódicos da área de ensino. A teoria apresentada no ensaio de Angela relaciona-se com a prática desenvolvida pela professora Elenice da Cruz Gonçalves, que atua na Escola Rural Municipal de Santa Bárbara de Cima, localizada no município de Palmeira. Em 2009, ela foi premiada no Concurso Cultural Ler e Pensar. Seu trabalho com jornal, aplicado a alunos em fase inicial de alfabetização, destaca-se pelo uso de elementos lúdicos, como o “Boneco do Conhecimento” com o qual alunos e professores aprendem juntos a cada leitura realizada. A proposta simples vem obtendo grandes resultados no âmbito da leitura e da escrita nos primeiros anos escolares. O ensaio de Angela e a prática de Elenice nos mostram que é possível incentivar a leitura antes mesmo de a criança entender o significado da “sopa de letrinhas” à qual começam a ter acesso. 13 Formação do leitor aprendiz Angela Mari Gusso Vivemos rodeados de uma grande quantidade de materiais que trazem impressas informações gráficas, muitas vezes associando linguagem verbal e imagem, com os mais diferentes propósitos. Esses materiais se fazem presentes em larga escala no nosso cotidiano e, embora, muitas vezes, não nos demos conta da presença intensa da leitura na vida diária, ela é um fato. Note-se que já no momento em que acordamos, na hora da higiene matinal, precisamos ler os frascos que estão no banheiro: shampoo, creme de enxágue, creme dental, desodorante... Na cozinha, é necessário identificar o pote onde se guarda o açúcar e o café; verificar a validade do leite, do requeijão cremoso, ler as instruções para a nova dieta que se pretende iniciar na segundafeira da semana seguinte. Ao sair para o trabalho, outras leituras são realizadas, agora para identificar a linha de ônibus, para ativar o telefone celular, e assim vai o dia inteiro. São leituras de diferentes textos, para múltiplas finalidades, em interação com múltiplos interlocutores, cada uma realizada de modo específico – leitura rápida, minuciosa, silenciosa, em voz alta, mista... Os textos circulam propagados em uma gama variada de suportes: embalagens de produtos, placas, outdoors, cartazes, panfletos, tabuletas, jornais, revistas, livros, camisetas, paredes e muros, telas de computador, dentre outros. A sociedade, à medida que cria novas tecnologias, favorece possibilidades inusitadas de expressão gráfica, gerando novos gêneros textuais, transmutando outros, e, por outro lado, vai exigindo do cidadão novas capacidades leitoras. Merece destaque 14 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento o fato de que na década de 1990 ocorreu acentuada aceleração da produção e troca de informações, devido ao fenômeno da globalização e ao advento de uma série de novas tecnologias. Uma vez que o modo de uso da língua escrita é dinâmico, o conjunto de competências e habilidades que caracterizam um leitor proficiente também precisa modificar-se, para atender a tal demanda. Foi bem diferente, por exemplo, a época em que a elite brasileira se reunia em palacetes para ouvir leitura de poemas; nesse contexto histórico o comportamento do bom leitor era a realização de leitura expressiva, com boa fluência, com entonação apropriada, para permitir aos ouvintes acompanharem o ritmo dos versos. Sem dúvida, ainda hoje se espera de alguém, ao realizar leitura oral em um evento, que o faça com boa fluência, velocidade e volume de voz compatíveis com o contexto. Por exemplo, a leitura de um discurso de formatura, voltado a um grande público, será diferente do modo de ler uma história para uma criança, na hora de ela se deitar para dormir. No entanto, há de se convir que circunstâncias como essas são eventuais. Mas há inúmeras outras situações de leitura comuns na vida cidadã e que, necessariamente, precisam ser dominadas por toda a população de uma sociedade letrada, quando se pensa em cidadania. Para uma pessoa alcançar a proficiência de leitura desejável, ela depende, nos momentos iniciais do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, de dois requisitos: apropriação da tecnologia da escrita pelo processo da alfabetização e vivência de práticas variadas de leitura e escrita para possibilitar a apreensão dos usos e funções dessa modalidade linguística pelo processo de letramento. Na sequência, essas práticas precisam ser perseveradas, pois, por se tratar de um processo, pressupõe desenvolvimento contínuo. A partir dessas premissas, conclui-se que o percurso necessário para a formação de um leitor inicia antes da escolarização, passa por um 15 ensino sistematizado nos bancos escolares e se prolonga vida afora. Levando-se em conta que a constituição de leitores é um processo cujo início acontece antes do ensino formal da língua escrita, a criança que vive situações sociais nas quais a prática de leitura se faz presente está então, por meio dessa experiência, desenvolvendo o aprendizado das competências necessárias para a prática leitora. Dados empíricos revelam que no mundo contemporâneo a leitura é uma aprendizagem social, antes de ser escolar, pois seu valor social de comunicação é apreendido no convívio com os materiais escritos circulantes na vida cotidiana das famílias. Rótulos, etiquetas, letreiros de lojas, catálogos, Bíblia, receita médica ou culinária, livros, revistas, jornais são alguns exemplos de materiais comumente encontrados em nossa sociedade e que propiciam a inserção dos sujeitos no mundo da escrita. Apesar da larga produção de escritos, não se pode ignorar que são bastante desiguais os modos como as crianças pertencentes aos diferentes grupos sociais vivem práticas que as beneficiam como ouvintes e, posteriormente, como autoras dos atos de leitura. A criança que vive nos meios onde se faz uso constante da leitura tem condições distintas daquela cujo ambiente social está pouco vinculado à escrita, isso é, onde essa modalidade de linguagem está funcionalmente ausente. E, sem dúvidas, a desigualdade de oportunidades gera impacto na formação de leitores, haja vista os grupos sociais construírem suas experiências afetivas e sociais com a leitura de modos particulares. Assim, sabendo-se dessa inter-relação, assume caráter fundamental, já no início da escolarização, proporcionar às crianças, cujo acesso à escrita é restrito, experiências que lhes permitam avaliar o valor social conferido a essa modalidade de linguagem. Também a leitura do leitor experiente está vinculada a dados culturais. Quando lemos, para conseguir produzir sentidos para um texto em questão, precisamos das leituras anteriores. Os sentidos dos textos 16 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento advêm daquilo que foi lido antes dele, da bagagem cultural, dos valores sociais vigentes na época. Portanto, um texto é sempre complementado pelo leitor, que interage produtivamente com ele para a produção de sentidos; para essa interação, lança mão de conhecimentos prévios e estratégias cognitivas relevantes (em especial, a antecipação de conteúdo e realização de inferências), associando-as às pistas e sinalizações deixadas pelo autor. Pesquisas recentes têm indicado que a familiaridade com materiais escritos é antes uma condição para o êxito no acesso ao mundo da escrita, do que uma consequência dessa experiência. Através das leituras que ouve, a criança começa a perceber que a modalidade escrita difere do oral usado no cotidiano, em diversos aspectos: organização do texto, vocabulário, construção das frases. Por exemplo, um conto de fadas não tem a mesma estrutura do bate-papo; o vocabulário usado nas conversas familiares é diferente do empregado em uma instrução de jogo; há algumas estruturas sintáticas próprias da escrita, praticamente não usadas na fala, que, por meio da escuta de textos lidos pelo outro, vão sendo incorporadas e, posteriormente, quando já se tornarem familiares, passarão a ser empregadas nos escritos. Além disso, no manuseio de materiais impressos, na simples exploração incidental de uma página qualquer, a visão percebe os espaços em branco entre as palavras, bem como os demais recursos gráficos que se somam às letras, tais como os acentos e os sinais de pontuação, facultando, intuitivamente, a apreensão de certas características do sistema de escrita. O fato de atualmente estar assegurado a todos os brasileiros o acesso à escola aos 6 anos pode e deve ser aproveitado por essa instituição para dar prosseguimento ao processo de inserção da criança na cultura escrita, a partir do estágio em que ela se encontrar quando do seu ingresso. No ambiente escolar, ao contrário das experiências proporcionadas por outras esferas sociais, esse processo deverá ser 17 sistematizado, com base em um planejamento que contemple princípios linguísticos, psicológicos e pedagógicos, sob pena de não lograr o êxito almejado. O grande desafio da educação linguística (área de conhecimento que engloba oralidade, leitura e escrita) é permitir a desmistificação do letramento. O mundo letrado deve ser algo real para que a criança possa ir, gradativamente, ampliando sua condição de acesso e usufruto dos bens culturais atrelados à escrita. Para tanto, não basta que as pessoas, sejam crianças ou adultos, tenham acesso à tecnologia da escrita, isso é, à apropriação do conjunto de técnicas dessa modalidade linguística: conhecer o alfabeto e desenvolver habilidades para codificar fonemas em grafemas, decodificar grafemas em fonemas, bem como manipular os materiais usados (lápis, caderno, borracha, livros didáticos, computador). Apesar de esse domínio ser requisito indispensável, ele não é suficiente, uma vez que permite ao sujeito tornar-se alfabetizado, mas não lhe confere a condição de quem sabe ler e escrever e pratica de modo competente a leitura e escrita na vida cidadã. Alfabetização é um termo que, atualmente, está associado ao processo individual de habilidades requeridas para leitura e escrita que ocorre nos anos iniciais de escolarização. Já letramento refere-se aos aspectos sociais da apropriação da escrita, ao valor conferido a ela nos mais variados contextos sociais e áreas do conhecimento; a condição de letrado dos sujeitos é, dialeticamente, causa e consequência de transformações sócio-históricas. Foi no início deste século que o contexto educacional incorporou o termo e passou-se, então, a falar em letramento escolar. Com isso, a escola começou a se dar conta de que mais do que responsável pelo ensino e aprendizagem da técnica de escrita, a ela cabe também possibilitar as condições para que o sujeito desenvolva as competências requeridas para usar leitura e escrita nas práticas sociais, respondendo adequa- 18 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento damente às demandas sociais do ler e escrever. Apesar disso, convém não esquecer de que a escola não é a única responsável pela promoção do letramento, pois outras esferas sociais (família, igreja, ambientes de trabalho e de lazer etc.) também possibilitam a promoção dessa condição aos seus respectivos grupos, porém, informalmente. Uma vez que as demandas dos indivíduos e dos grupos sociais dos quais eles fazem parte são variadas e que as condições históricas e de estágio de desenvolvimento dos grupos também são diferenciadas, há de se falar em letramentos, no plural, pois as formas de leitura, escrita e uso da linguagem em geral são heterogêneas, variam no tempo e no espaço. Quando se fala em letramentos, portanto, leva-se em conta a linguagem verbal em sua totalidade – ouvir, falar, ler e escrever –, e as demais linguagens. Além disso, diz respeito, ainda, ao domínio dos mais diversos instrumentos tecnológicos, ou seja, estende o uso do lápis e papel, em decorrência do surgimento e ampliação das tecnologias digitais que exerceram impacto sobre as condições de produzir e circular textos na sociedade, bem como no modo de ler os novos gêneros textuais delas decorrentes. Um exemplo é o infográfico, gênero textual recente, mas que ganhou largo uso nos jornais e revistas (são quadros informativos que misturam texto e ilustração para divulgar uma informação visualmente). Se, por um lado, esse gênero surgiu graças aos recursos tecnológicos e exigências atuais de inovação na comunicação, por outro, impôs ao seu público-alvo um novo comportamento enquanto leitor. Nele, a leitura não precisa, necessariamente, ser realizada no sentido vertical, da esquerda para a direita; como são várias as possibilidades de organizar as informações, a sequência dos quadros não é imposta de modo rígido, tal como exige a sequência cronológica das histórias em quadrinhos, por exemplo. Ele se caracteriza por facultar ao leitor maior liberdade do que a permitida pelos textos informativos exclusivamente verbais. 19 Como as formas e os recursos de escrita vêm se modificando e determinando inusitadas condições ao ato de ler e escrever, as pesquisas relativas a essa área também têm se multiplicado. A produção científica sobre os temas da alfabetização, letramento e ensino de língua materna tem trazido, nas últimas três décadas, um conjunto de saberes solidamente estabelecido a respeito da natureza, função e usos tanto da linguagem oral, como da escrita. Esses conhecimentos teóricos permitem ao professor criar estratégias de ação mais adequadas, mais produtivas para alavancar a competência socioverbal dos alunos, em todos os níveis de escolaridade. A título de exemplo, pode-se mencionar a contribuição trazida pelos estudos referentes à questão dos gêneros textuais ou gêneros discursivos, dependendo da vertente dos estudos sobre texto. Pesquisadores dessa área contribuíram significativamente para desmistificar a ideia de que há uma “capacidade” geral para a leitura, isso é, de que o leitor que lê satisfatoriamente um determinado gênero textual terá esse mesmo desempenho diante de todos os textos, sejam quais forem os gêneros ou esferas sociais a que eles pertencerem. Estudos comprovam que a capacidade de compreensão não é transferível através dos gêneros, ou seja, ter proficiência na leitura de contos ou crônicas, por exemplo, não assegura domínio dos requisitos necessários para ler textos didáticos, poemas, propagandas ou outros. Cada gênero exige estratégias diferentes, que só são apreendidas no contato sistemático com ele. As particularidades dos gêneros textuais se justificam pelo fato de eles serem forjados historicamente, de acordo com a necessidade dos grupos sociais e de suas respectivas práticas de letramento que envolvem leitura e escrita. Cada gênero emerge em uma dada esfera social (acadêmica, jornalística, jurídica, religiosa etc.) para atender às necessidades e atividades socioculturais particulares, portanto seus propósitos são distintos – informar, opinar, divertir, instruir etc. – logo, 20 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento sua estrutura composicional, conteúdo temático e estilo, necessariamente, serão diferenciados. Sendo assim, por natureza, os gêneros são dinâmicos e alteram-se, principalmente, como consequência das inovações tecnológicas; nesse sentido, pode-se postular que nenhum leitor atingirá o grau máximo de letramento (qual será ele?), pois sempre haverá novos desafios, mesmo para leitores proficientes. Em função disso, todas as propostas de renovação de língua materna têm insistido na importância de a escola ficar alerta para a necessidade de, desde os anos iniciais, trabalhar com gêneros variados, trazendo para as aulas de todas as áreas do conhecimento os textos que circulam nas diferentes esferas da sociedade, evidentemente, respeitando o nível de experiência dos leitores. Por exemplo, o jornal é um suporte que pode ser usado desde os anos iniciais, porém sempre se levando em conta – tanto na escolha do assunto como na do gênero – a competência leitora do estudante. Assim, para crianças de níveis escolares mais avançados, notícias, anúncios, entrevistas, agenda cultural, reportagens, entre outros, se constituem em materiais interessantes para serem explorados pelas diversas áreas de conhecimento; já para iniciantes em leitura, são mais acessíveis, por exemplo, as legendas de fotos, manchetes, notas jornalísticas, além de cartas e e-mails publicados no suplemento infantil. Quando se trata de pensar em modos de promover práticas de letramento nos momentos iniciais de escolarização, vale lembrar dos textos que exploram a sonoridade das palavras, tais como parlendas, poemas, quadrinhas, trava-línguas, textos não verbais (placas, logomarcas, tiras), gêneros que associam linguagem verbal e não verbal (histórias em quadrinho, cartas enigmáticas, propagandas, legendas de fotos jornalísticas), além de textos informativos publicados em revistas, jornais, enciclopédias e sites destinados ao público infantil, textos de circulação na esfera cotidiana (bilhetes, rótulos, convites, receitas, provérbios, anedotas, avisos, letras de músicas), entre outros. 21 Na exploração desses materiais, paralelamente, o professor promoverá atividades para a criança ir se apropriando do sistema convencional de escrita e desenvolvendo habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais. O trabalho com o sistema de escrita carece de abordagem sistemática, explícita e direta, pois é um conhecimento que, para ser construído pelo aprendiz de escrita, depende da mediação do professor. Sem essa condição, o percurso será muito mais lento e difícil, o que para alguns alunos tornase desanimador a ponto de julgarem-se incapazes de se apropriarem desse bem cultural. O sistema de escrita usado em nossa sociedade é alfabético e ortográfico, do que decorre seu caráter convencional e arbitrário; em função disso, naturalmente, sua apropriação se caracteriza por uma relativa complexidade. Para a escola favorecer o alcance do domínio sobre seu funcionamento, é importante diversificar os estímulos, com a exploração de situações que promovam a ação e a busca intelectual das crianças. Brincadeiras coletivas ou em pequenos grupos com palavras que rimam e que iniciam com o mesmo som, realização de jogos contemplando sílabas, letras, palavras (bingo, boliche, baralho, dominó, quebra-cabeças) constituem recursos valiosos para o desenvolvimento da consciência fonológica (capacidade para focalizar os sons da fala), para identificação das letras e percepção da relação entre fonemas e grafemas. Atividades dessa natureza substituem com indiscutível supremacia os exercícios mecânicos, de mera repetição de letras, sílabas, palavras e frases, tradicionalmente usados pelos métodos cartilhescos. Vale, porém, insistir que só o trabalho com o sistema de escrita será insuficiente para a formação de leitores. É indispensável que a alfabetização se caracterize na perspectiva do letramento para que mais cedo, e de forma mais eficaz, as crianças aprendam a ler e a escrever, porém compreendendo o que leem e produzindo textos para finalidades diversas, em situações de usos reais da escrita na sociedade. 22 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento Para saber mais Alfabetização e linguagem. Pró-letramento. Disponível em: www. portal.mec.gov.br/ COSTA, Marta Moraes da. Sempreviva, a leitura. Curitiba: Aymará, 2010. KLEIMAN, Angela. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Disponível em: http://online.unisc.br/ REGO, Lúcia Browne. Descobrindo a língua escrita antes de aprender a ler. Em: Kato, Mary Aysawa. A concepção da escrita pela criança. Campinas, SP: Pontes, 1992. ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. www.letramento.iel.unicamp/ br/portal/ 23 Boneco do Conhecimento Professora: Elenice da Cruz Gonçalves Instituição: Escola Rural Municipal Santa Bárbara de Cima Cidade: Palmeira “Bem aventurado é aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”. Cora Coralina Quem acredita que o jornal é um suporte pedagógico útil apenas nas séries finais do Ensino Fundamental precisa conhecer o trabalho da professora Elenice da Cruz Gonçalves com alunos do primeiro ano. Atuando na Escola Rural Municipal Santa Bárbara de Cima, no município de Palmeira, Elenice criou um método simples e lúdico de trabalhar com o jornal e fazer com que seus alunos pudessem compreender, na prática, a importância da leitura como fonte de conhecimento. A atividade – que consiste na leitura diária de uma notícia publicada no jornal, seguida de um momento de conversação no qual os alunos são estimulados a opinar sobre o texto lido – fez com que todos pudessem tirar dúvidas, aprender juntos e refletir sobre notícias importantes que já tinham tido contato pela televisão ou rádio. Ao final de cada atividade, os alunos têm o direito de regar a cabeça do “Boneco do Conhecimento”, um brinquedo ecológico confeccionado pelas próprias crianças que, quando molhado, fazia brotar as sementes colocadas em seu interior. A leitura e a conversação foram acompanhadas por mudanças no boneco, que inicialmente era careca e passou a ter cabelos verdes. “Usei o Boneco para fazer uma analogia entre o crescimento das plantas e o do conhecimento das pessoas”. Disse aos alunos que, assim como as plantas precisam de água para brotar e crescer, o conhecimento precisa da leitura e da informação para se desenvolver. “Cada leitura que fazemos é como se estivéssemos regando o nosso conhecimento. Ele vai crescendo, fazendo com que fiquemos diferentes, mais espertos, mais informados e mais bonitos”, assegura Elenice. 25 Mesmo que o aspecto lúdico do Boneco seja o que mais chama a atenção dos alunos, Elenice considera a leitura diária do jornal como de extrema importância para o processo de aprendizagem. “Apesar de eles serem tão jovens, o contato com os mais variados tipos de texto está despertando a curiosidade. Além disso, ao aprender a ler e a escrever com o jornal, a criança também começa a entender qual a função social da escrita e o quanto ela é importante para a sua vida em sociedade”. No papel de primeira professora e, de certa forma, responsável pelas impressões que o aluno terá sobre a vida escolar, Elenice assumiu o compromisso de transformar essa experiência num momento prazeroso e estimulante. E seu entusiasmo já “contagiou” os professores das demais séries. “O jornal é percebido como um recurso pedagógico por toda a escola. É bom saber que o projeto de leitura iniciado no primeiro ano terá uma continuidade porque todos temos como objetivo atender às novas exigências dos educandos e fazer da escola um espaço privilegiado de ensinar e aprender”, afirma Elenice. A prática O “Boneco do Conhecimento” nada mais é que uma cabeça confeccionada com uma meia fina feminina, areia, sementes de alpiste, dois botões e um pequeno pedaço de feltro vermelho. A cabeça é feita de meia e preenchida com uma mistura de areia e sementes de alpiste que, quando regadas, começam a brotar. Os botões fazem às vezes dos olhos e o feltro, de boca. A cada texto lido em sala, as crianças regam a cabeça do boneco e a analogia está no crescimento da planta com o crescimento do conhecimento. 26 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento Vencendo dificuldades Mas não é só a pouca idade dos alunos que torna o trabalho da professora desafiador. Seus alunos, em sua maioria, vivem em condições precárias. A comunidade rural de Santa Bárbara de Cima ainda aspira por saneamento básico, melhorias e oferta na educação, nos serviços de saúde e qualidade das estradas. “Em dia de chuva, o transporte escolar não tem condições de chegar à escola e os alunos que vêm a pé não conseguem atravessar um trecho porque a ponte está quebrada. Nesses dias, são poucos os que conseguem chegar à escola”, lamenta a professora. Fora da escola, os alunos enfrentam a falta de oportunidades. O fato de morarem numa área rural de condições precárias e desde pequenos trabalharem na lavoura com os pais, diminui a autoestima e a perspectiva de um futuro melhor. Com isso, alguns alunos apresentam problemas de relacionamento, timidez, agressividade e dificuldades cognitivas de aprendizagem. “No jornal a gente aprende a reconhecer as letras que a professora mostra no quadro”. Ana Maria Amaral Voichcoski, 6 anos Para enfrentar esses entraves, a proposta pedagógica adotada pela Escola Santa Bárbara de Cima está voltada à formação de cidadãos críticos, produtivos e com mobilidade social. Nessa perspectiva, o trabalho da professora Elenice e seu “Boneco do Conhecimento” não só está alinhado à proposta da escola como às necessidades sociais da comunidade. 27 Leitores mirins O projeto de leitura com alunos do primeiro ano começou em 2009, quando o projeto Ler e Pensar chegou à escola e a turminha de alunos de 5 e 6 anos foi também contemplada. A partir daí, com o apoio das sugestões do Boletim de Leitura Orientada, a professora Elenice, que já utilizava alguns textos de jornal em sala, mas nunca havia criado um projeto específico de uso, passou a pensar em formas de ampliar seu trabalho. Mais ainda. Ousou acreditar que crianças em fase de alfabetização também poderiam aprender com o jornal. Apesar do interesse e boa vontade, os desafios e dificuldades iniciais foram grandes. E o principal deles era levar o jornal para crianças que ainda nem liam. “Aprendemos juntos a descobrir o jornal e embora no início não tenha sido muito fácil, aos poucos todos nós fomos conhecendo o que ele tem de interessante e quais as possibilidades lúdicas e criativas que oferece.” Tanta persistência valeu à pena. Em 2009, a professora Elenice foi premiada no Concurso Cultural Ler e Pensar, que reconheceu o seu esforço pelas excelentes ideias colocadas em prática no processo de alfabetização e letramento dos alunos do 1.º ano. 28 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento Bagunça criativa Como em qualquer proposta que fuja da rotina e use outros recursos além do livro didático ou apostila, levar o jornal para sala de aula provoca uma “certa bagunça”, que pode ser desmotivadora para professores que não compreendem o efetivo valor do seu uso. “É verdade que muitas vezes os alunos aproveitam a atividade para extrapolar, mas nada que algumas regrinhas simples não resolvam. O importante é saber que estamos criando uma oportunidade para as crianças aprenderem a pesquisar, a interagir, a dialogar e a conviver com a diversidade. Aí tudo vale a pena”. Na turma, todos sabem que segunda-feira é o dia “oficial” de trabalhar com o jornal, mas também sabem que as atividades iniciadas na segunda se estendem por toda a semana. Isso acontece porque as aulas são um processo aberto, no qual as ideias vão surgindo aos poucos, no contato das crianças com o jornal. “E nele meu papel passa a ser de orientadora. Mostro e ajudo a decodificar seus conteúdos, estimulando os alunos a desenvolverem o gosto pela leitura”. “O jornal tem notícias e sabendo mais a gente fica mais inteligente”. Jonatan Henrique Machado, 6 anos O modelo tem dado certo. Nas turmas de alfabetização nas quais a professora já teve oportunidade de introduzir o trabalho com jornal, as crianças apresentaram uma notável desenvoltura na comunicação, não têm medo de falar e expressar opiniões. São alunos que já descobriram o prazer de ler (todos os tipos de textos) e adoram ir à escola. 29 Exemplo prático A leitura da reportagem “Animais invasores: controlar ou abater?”, publicada pelo jornal Gazeta do Povo do dia 21 de abril de 2010, caderno Vida e Cidadania, foi o ponto de partida para uma série de atividades envolvendo as disciplinas de Ciências, Português, Artes e Matemática. O trabalho começou com um bate-papo no qual os alunos tiveram de identificar os animais citados, diferenciando os selvagens dos domésticos. Depois, tiveram de apontar a função dos animais na natureza e emitir sua opinião sobre matar ou não esses invasores. Na sequência, Elenice pediu para os alunos marcarem no texto todas as vogais já aprendidas em sala, trabalhou o som das letras e pediu para os alunos identificarem palavras conhecidas iniciadas com as cinco vogais. Depois, os alunos foram desafiados a elaborar um minidicionário com palavras desconhecidas por eles encontrandas nas notícias da Gazeta do Povo. “Também fizemos um exercício de caça-palavras com o nome dos animais, confeccionamos animais de sucata e ainda reforçamos o conteúdo de quantidade, quando tinham que contar quantas letras tinham, por exemplo, a palavra “aranha”. Em Matemática ainda, eles fizeram gráficos, após uma enquete realizada em sala para saber quantos tinham cachorro em casa”. 30 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento Com métodos simples e lúdicos, alunos compreendem na prática a importância da leitura como fonte de conhecimento. Alunos da professora Elenice mostram desenhos feitos a partir da leitura do jornal. 31 Capítulo 2 Apropriação da Leitura Crítica Lidar com o leitor, organismo vivo em constante mutação, e ao mesmo tempo orientá-lo de modo a garantir a apropriação do conhecimento é uma tarefa das mais complexas. Aprender a ler criticamente exige, no mínimo, informações comparativas, fontes históricas, referências e análise de cenário. Além de tais ferramentas nem sempre estarem disponíveis no ambiente escolar, promover a leitura crítica entre estudantes, especialmente de Ensino Fundamental e Médio, esbarra em outro fator dificultador: a falta de tempo. A análise acadêmica do tema é assinada pelo jornalista e doutor em Literatura Brasileira José Carlos Fernandes, professor nos cursos de Jornalismo da PUCPR e UFPR. José Carlos escreve reportagens, crônicas e editoriais para o jornal Gazeta do Povo, onde trabalha desde 1989. Pesquisador das relações entre o leitor de jornal e o leitor literário, leitura e cidade, e leitura não escolarizada, ele é otimista diante do crescente número de professores interessados no tema. Alerta, porém, que é necessário fugir do lugar comum ao planejar aulas que tenham como intenção promover a leitura crítica dos meios de comunicação. Em suas práticas, com persistência e vontade, a professora Janisse Cordova Dornelas da Costa, que dá aulas para 4.ª série, da Escola Municipal Germano Paciornick, em Curitiba, conseguiu fazer das suas aulas um momento para promover mudanças nas atitudes e modo de pensar dos alunos, provando que a tarefa pode ser árdua, mas não impossível. Premiada na edição 2009 do Concurso Cultural Ler e Pensar, a principal preocupação de Janisse é tornar seus alunos leitores críticos, reflexivos, questionadores e, sobretudo, cidadãos capazes de entender e respeitar as diferenças de cada um. 33 A crítica dos sentidos José Carlos Fernandes “Apropriação da leitura crítica” – eis o tema. Meu primeiro contato com essa proposta, confesso, não foi de uma simpatia oceânica. Como o robô B-9 da série Perdidos no Espaço, pensei cá com meus botões: “Perigo, perigo”. Pois é, conduzido pela memória de menino de calças curtas, de pronto me lembrei da crônica “Sob o feitiço dos livros”, do educador Rubem Alves, publicada no extinto suplemento “Sinapse”, do jornal Folha de S. Paulo. Fiz essa leitura em 27 de janeiro de 2004, mas a guardo com o frescor de minutos atrás. Se penso em leitura crítica, penso no que disse Alves nesse alfarrábio. Alerto: esse texto deveria constar nos anais da educação, onde ocuparia a pasta “artilharia pesada contra conspiradores da leitura”. Deixa mortos e feridos. Às falas. O educador, filósofo, psicanalista e ex-pastor Rubem Alves relata em “O feitiço dos livros” uma experiência que teve com um professor de sua filha. Dá para sentir o calor das chispas trocadas entre eles. Ao subir na mesa para discordar da recomendação de uma leitura chatésima, seguida de ficha igualmente enfadonha prescrita pela escola, o pai escutou a máxima de que o objetivo do trabalho era “produzir a consciência crítica”. Pois estava armado o salseiro. Alves queria saber por que sua filha tinha de ler um livro sensabor se podia degustar uma obra prazerosa e dela se fartar. Difícil um professor que não tenha uma resposta na ponta da língua para pais hedonistas, ora pois. Rubem, claro, mandou pelos ares todo seu arsenal teórico sobre o desejo e o prazer – duas categorias filosóficas marginais e obviamente assustadoras. Rejeitou, qual um membro da Resistência Francesa 34 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica em plena Segunda Grande Guerra, aquele discurso algo utilitarista em torno do ato de ler, cuja crença, por certo, movia as crenças mais profundas do professor. “Penso que o meu mundo seria muito pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei”, escreve Alves a linhas tantas de sua defesa. Está dado seu recado: só os livros que amamos fazem parte de nós. Cá entre nós, não condeno de todo o mestre espartano, que defende a leitura crítica. Talvez ele estivesse condicionado a tratar a leitura como uma tina de roupa ou coisa assim, mas é provável que tenha sorvido uma boa literatura sobre o assunto. Não foi por mal. Sua associação entre leitura e criticidade é tão mecânica quanto gritar “silêncio para a chamada”. Raro quem não o faça. Tenho para mim que, seja o sujeito quem for, nada mais fez do que reproduzir uma cantilena usada a tal ponto nos círculos educacionais que se tornou uma receita de bolo de fubá. Dizer que a leitura aumenta o senso crítico se tornou tão banal quanto dizer “vai chover”. Eu não saberia dizer quantas gerações de estudantes cresceram ouvindo que é preciso ler para escrever melhor, mas arriscaria que esse cacoete é remanescente dos tempos do Iluminismo, no século XVII, e que deve estar bem explicada na obra do historiador Robert Darnton – autor do imprescindível O grande massacre dos gatos. Só quem lê tem o que dizer, diz-se. Ler é um instrumento para não ser um tolo, repetese... E daí para adiante. São frases prontas que soam como um pito, uma carraspana, um sabão bem dado. Não há notícias de que essas recomendações severas, dignas de um Torquemada, tenham aumentado o número de leitores, mas mesmo assim devem ter versão similar em pelo menos 20 idiomas, sem contar o sânscrito e o aramaico. É simples explicar por que a formação da leitura incutiu categorias como a tortura e negação do prazer. Como o avesso do tolo é o crí- 35 tico, criou-se o teorema imperfeito de que quem lê sabe das coisas. Apesar da preguiça que nos provoca a imagem do “sábio amargo e ressentido”, a associação entre leitura e conhecimento não deixa de ter um fundo de verdade. O risco reside, contudo, em equiparar a leitura aos efeitos de um alvejante ou às utilidades de uma tábua de passar roupa, como já se disse. Mas de resto, as tentativas – seja as de Rubem Alves, seja a de todos nós – parecem em vão para derrubar esse sofisma. Com base nesse raciocínio torto, ler tem de servir para alguma coisa, o que exclui da conversa umas tantas obras da literatura universal, cujo maior mérito é justamente não servir para nada, e ainda um rodo de compêndios de filosofia, igualmente inúteis, assim como a cultura oral, já que lhe sobra emoção, senso comum e lhe falta finalidade prática. Pode-se viver muito bem e alcançar o progresso das nações sem que seja preciso decifrar a obra de Espinoza, passar pelos labirintos de Nietzsche ou enfrentar as contradições de Montaigne. Passa-se muito bem sem ouvir contos de assombração ou sem cultivar memórias familiares. Mesmo assim, a relação íntima entre leitura e ócio, leitura e desejo e leitura e prazer permanece como um problema clássico, cuja raiz mais longínqua parece ser o próprio pecado original. Impossível não lembrar o esforço de Marshall McLuhan, no texto “Visão, Som e Fúria”, em espinafrar a cultura livresca, sem sucesso. O mago da comunicação da década de 1960 defendia, a seu modo, que meios de comunicação, como a tevê, podiam dar conta de necessidades humanas, sim. E que eram extensões dos sentidos. Mas McLuhan parecia sentir muito prazer no que dizia, o que o reduziu a poeira. Sua defesa apaixonada de pouco adiantou: a televisão, veículo que admirava, não escapou da fúria dos críticos, que 36 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica a elegeram o motivo dos males do mundo, pelo menos até Arlindo Machado escrever A televisão levada a sério. Tenho para mim que a televisão foi mais demonizada que a pornografia – e mesmo assim ocupa lugar de honra em 98% dos lares brasileiros, sendo para muitos o único canal de informação disponível. Sem falar nos grandes temas que, de resto, não chegariam à população se não tivessem sido cotejados pela telinha – dos transplantes à adoção e à condição feminina. Pois é. Tenho cá para mim que essa suposta ligação umbilical entre leitura e serventia foi propagada tantas e repetidas vezes que se converteu em uma verdade incontestável, cuspida da boca para fora, principalmente na falta de algo mais interessante a dizer. Parodiando Alves, eu lembraria aqui que em nome das verdades muitas fogueiras foram acesas. O discurso papagaiado pelo professor da filha de Alves é o caso. Funciona muito mais como estratégia de poder e de intimidação do que de educação, ainda que ele acredite, sem dúvida, estar usando as próprias entranhas para defender o conhecimento, com o qual tem obrigações juramentadas. Para salvar o que há de crítico na prática da leitura, esse ensaio precisa tentar desnudar tal conceito, dissecá-lo na mesa do IML, rendêlo aos efeitos do formal. É tarefa passível de linchamento. Explico. Por partes. Aquele que defende a leitura crítica e a acha um bom motivo para dedicar a vida – você, eu, o professor da filha do Rubem – toma para si a figura do leitor. Nós o encarnamos. Como lemos muito, experimentamos a fortuna dos livros e nos tornamos mais sabidos, críticos, interessantes. Somos um modelo a ser seguido. Temos o que dizer. E dizemos, a quem interessar possa, que um texto que não sirva para mudar nossa relação com o mundo não deve ser 37 lido. Um livro sem conteúdo equivale à sedução de alguém não confiável. É lixo. “Perigo, perigo...”, como diria o prudente B-9, o robô da infância. O que se quer dizer com isso é que, por uma espécie de conspiração do destino, a exclusão literária está implícita na ideia de “leitura crítica”. O que não se presta deve ser evitado. Trata-se de uma expressão carregada de preconceito, contaminada pela censura e tomada de uma chatice sem igual, para a qual gente como Alves reserva o bocejo eterno. Se não houver precauções sobre esse autoritatismo, o leitor crítico há de se tornar aquele que filtra sua biblioteca com a fúria de um inquisidor. Há de banir qualquer obra que não contribua para melhorar de forma instantânea, por isso pobre, a relação entre ele – o sujeito – e o objeto – o mundo. Essa atitude pouco ou em nada difere do que pregam as cartilhas políticas, os livros de catequese ou os manuais de autoajuda. A ideologia que rege a equação “leitura e criticidade” tem mais a ver com engajamento social e com o conforto psicológico do que com a experiência real e comprovada sobre a leitura dos livros. Com todo o respeito aos renhidos defensores da “leitura crítica”, às vezes essa seara parece coisa justamente de quem não gosta de ler. “A literatura é feita com as palavras que desejam morar no corpo”, avisa Alves ao professor espartano de sua filha, na tentativa de demovê-lo de suas intenções. Esse impasse, contudo, não se resume a uma mera oposição entre a leitura por prazer e a leitura por dever cívico ou que nome se queira dar a ela. Há de se contabilizar que é quase impossível ignorar a associação de fato e de direito entre o ator de ler e a formação do senso crítico. Negar que a criticidade aumenta com a leitura, reconheça-se, é reduzi-la tanto quanto dizer que ler só serve para isso ou aquilo. 38 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica Às falas. Raro encontrar alguém que não tenha prestado mais atenção à realidade depois de uma leitura – seja ela a de um romance cor-de-rosa ou de um manifesto panfletário distribuído na Praça Osório. São muitos os indícios de aquele que lê dispõe de mais mediações e recursos para responder a demandas da vida como ela é. E fim de papo: a escola, na sua nobre função de transmitir conhecimento, tem na leitura seu instrumento de trabalho. Não raro, por esse motivo, vê-se coibida na hora de responder às demandas do prazer garantidas ao ato de ler. Dito isso, volta-se ao começo. Zero a zero. Nem Rubem nem o professor de sua filha vencem nesse ringue. Deve-se buscar outra chave para abrir esta porta. E ela existe – é cultural. Em vez de tentar pisotear as evidentes virtudes críticas da leitura, instaurando a ditadura do prazer, deve-se considerar que desde as décadas de 50 e 60, com a alvorada da filosofia de Barthes e com os estudos de estética da recepção – nascida na Universidade de Constança, na Alemanha – os esforços da literatura se voltaram para o leitor. Mudou tudo. Este é o ponto de onde se deve partir. Desconsiderar o leitor é retrocesso, é sonegação de massa crítica. Sem dizer que o leitor funciona como o fiel da balança. Tendo ele como medida de todas as coisas se resolve o impasse entre a turma do prazer e a criticidade. Chega a ser irônico: foi apenas no pós-Guerra que aqueles que garantem a existência do texto, os leitores, foram, digamos, descobertos. Os escritos de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e, na mesma esteira, Umberto Eco, sobre o assunto, inspiraram legiões de estudiosos. Em sua obviedade aparente, soaram como algo realmente novo. O leitor carrega um museu imaginário – para cunhar aqui a expressão de André Malraux – e esse museu é acionado a cada página. Cada leitura é única e irrepetível. Lê-se com as entranhas da experiência e do saber acumulado. Lê-se fazendo sinapses. É único. Prazeroso. Lê-se para 39 preencher os espaços vazios – expressão algo poética para as grandes dúvidas que nos acompanham. Era disso que o pai Alves queria falar com o professor crítico, sem sucesso. Em miúdos, depois de Constança, seus pensadores, Eco e todos os entusiastas da figura do leitor, tornou-se praticamente imoral ignorar a poética da leitura e a poética do leitor. Ou seja, a leitura crítica, no seu sentido mais funcional, envelheceu junto com as cartilhas da escola, mas não porque não vale a pena, mas porque algo de mais fascinante se sobrepôs a esse debate, dando-lhe uma dimensão mais relacional e menos rígida, como se depois de ler todo mundo devesse estar sujeito a uma sabatina. O mundo chegou às teorias do leitor, da mesma maneira que chegou à abstração, à música dodecafônica, à poesia sem rima e às delirantes semanas de moda. É disso que Alves tenta falar: sabe-se muito sobre o leitor. Viva o leitor – ele é complexo, dinâmico, abusado e está num labirinto. No labirinto, o leitor perde-se. E o leitor do século XXI se perde – na rede, nas imagens, na cidade, nos excessos, nas tragédias, nas criticidades todas das quais necessita para se mover. Alguns dirão que toda esta discussão se encontra implícita na suposta teoria da leitura crítica, que via de regra não ignora o leitor nem o prazer. Mas não colocar os apelos da estética da recepção em primeiro plano corresponde a ignorar um movimento cultural que oxigenou o debate sobre a leitura, enxergando-a para muito além de uma penitência escolar. É um campo minado. A escola se tornou a detentora da leitura, particularmente em países de economia periférica, nos quais o ensino tem responsabilidade total sobre a educação para o conhecimento. Ler é um ato escolar, uma tarefa. Mas a estética da recepção e sua 40 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica teoria do leitor abalaram esse reinado, chamando atenção para a leitura que corre por outras bordas, não raro longe dos bancos da escola. Ela é tão produtiva quanto, uma relação com o mundo que nem sempre cabe nos conteúdos programáticos da escola. Os códigos da leitura não escolarizada, contudo, são outros. Nesses, a leitura ordenada, produtiva e pedagógica não é um cânone. Há, inclusive, a possibilidade de uma leitura desordenada, anárquica e labiríntica, nascida menos da necessidade de um aprendizado formal e mais de emergência de uma ruptura emocional e intelectual. Estão aí para comprovar as teorias de Macedônio Fernández – inspirador de Jorge Luis Borges –, agora revisitadas pelo argentino Ricardo Piglia no livro O último leitor. Eis a questão. A escola, pelo que tudo indica, tem dificuldade de entender o abalo dos sentidos – entre outras premissas da experiência estética contemporânea – como uma forma de criticidade. Ao bater na tecla da leitura crítica, subentende-se que, para chegar a esse estágio, o aluno leitor deve seguir etapas, digerir autores, acompanhar escolas, responder provas. Ou seja, tem de matar o prazer da leitura para conquistar o conhecimento. No que tange à leitura sem prazer estético, contudo, diria que atende pelo nome de “leitura espartana”. De penitência. De necropsia. E o pior – de maniqueísmo. É como se, historicamente, nos fosse imposto um falso problema: o de que há duas leituras, incompatíveis entre si, e que apenas uma delas merecesse a confiança. É preciso se deter um pouco sobre essa afirmação. A desconfiança da leitura lúdica tem raízes fortes no pensamento ocidental. E não se deve tomar, de antemão, que a conspiração contra ela nasce de professores mal-amados, que escondem em seu 41 autoritarismo uma deficiência pessoal como leitores. Cabe um parêntese – a incompreensão dos meandros da experiência estética que ronda a escola não é de todo culpa dela. Como desenvolve o teórico britânico Terry Eagleton no livro A ideologia da estética (Ed. Zahar, 1993), a arte pela arte, a arte sem conexão política e ética – consagrando a criação como desbunde – se apartou dos grandes debates, o que inclui o escolar. Como explora Eagleton, na virada do século XIX para XX os artistas – já embalados pelas vanguardas – reivindicaram para si a chamada “arte pela arte”, que obviamente foi recebida com um pé atrás pelos círculos do saber mais estratificados e conservadores. É o caso da escola, em cuja esteira a retração é regra. Os motivos saltam aos olhos. A arte que não quer dizer nada, destituída de mensagem e de ensinamento, calcada num conhecimento subjetivo do mundo – a arte que se nega a ser ilustração para se tornar uma realidade em si mesma – foi alardeada como resultado de uma experiência radical. Pode experimentá-la apenas aquele que desce aos infernos, que rompe barreiras, que prova da amoralidade. Não causa espanto que a escola a tenha recebido com quatro pedras na mão. Basta acompanhar, ainda hoje, os livros de História ou os currículos de Artes para ver até onde conseguem chegar: depois de passar pela “Monalisa”, de Da Vinci, as cartilhas passeiam por Picasso e Dalí, dificilmente avançando mais do que isso. No campo da literatura não é diferente. Em 2009, acompanhou-se toda a polêmica dos livros proibidos em muitas escolas, reacendendo a discussão sobre até onde vai a capacidade das instituições de ensino de dar conta da literatura contemporânea, uma literatura que, via de regra, tenta dar conta do leitor múltiplo e não com o leitor do século XIX, cuja existência a escola insiste em sustentar. 42 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica Desses contínuos embates entre a arte que se apresenta como libido, desejo e luxúria e a arte que se presta a formar é que parece nascer essa identificação instantânea entre leitura crítica e lição de casa. Trata-se de um equívoco, cujo maior dano tem sido o de travar os avanços nas políticas de leitura – dentro e fora da escola. Assim como Eagleton, outros autores puseram na parede a mitificação do artista e essa aura de que só se conhece a verdadeira arte depois de uma viagem ao submundo. Seria, convenhamos, como traçar um caminho único, reduzindo a experiência humana à contravenção. Uma bobagem. O mesmo não se pode dizer de todo o conhecimento sobre o leitor trazido pela estética da recepção. Se de um lado a escola tem o dever de se proteger da banalidade da arte e dos sofismas que proliferaram na esteira das vanguardas, por outro não devia se eximir de assimilar a contribuição de Iser e Jauss ao campo da leitura. Ao colocar o leitor na berlinda, revelando como “ele funciona”, a estética da recepção exige dos professores uma postura menos unilateral. É preciso renunciar à figura do aluno como tábula rasa e converterse a um outro campo de experiência. Como diz Marisa Lajolo, aquele que lê faz uma leitura do mundo. O estudante lê o mundo, ainda que suas referências sejam esparsas, tímidas ou pouco críticas. Lidar com esse organismo vivo, em mutação, que é o leitor – e ao mesmo tempo orientá-lo, de modo a garantir a transmissão do conhecimento –, é tarefa das mais complexas. Para dar conta dela, nas últimas duas décadas pipocaram práticas escolares ocupadas de desburocratizar a leitura, permitindo que acontecesse, em sua magia, também dentro da escola. 43 Muitas instituições, por exemplo, criaram salas com almofadas, de uso livre e esparramado. Outras tantas criaram a hora da leitura e, para felicidade geral, muitas entenderam que só haveria melhora nos índices de leitura se colaboradores das escolas e professores também fossem vistos com o livro nas mãos. Aprendeu-se muito nesses anos, embora ainda seja cedo para dizer que tenha morrido, em alguma reunião de conselho de classe, aquela velha opinião de que ler é se instrumentalizar para entender a realidade, reduzindo, em muito o campo da leitura. A escola ainda tem medo do discurso do desejo – o defendido por Alves diante do professor autoritário – por relacioná-lo a uma prática destituída de racionalidade e de mérito. Superada essa associação algo ingênua, a escola pode estar livre para transformar a sala das almofadas – ou o que valha –, a sala de aula, os corredores e principalmente a rua em espaço de leitura. Um dos grandes trunfos dos estudos sobre o leitor reside justo aí. Não só desmontou a figura do leitor aluno como apontou um leitor que tem de ser investigado continuamente, nos retirando da situação confortável de antigamente – a situação do leitor estanque, dado aos pendores iluministas, interessado em acumular conhecimento e não em gerar respostas. Nesse sentido, uma das leituras que mais respondem às demandas do século XXI é a de jornal. Não causa espanto que tantos professores, atentos – digamos – à nova configuração técnica da leitura crítica, estejam se dedicando ao uso do jornal em sala de aula. É claro, trata-se de uma zona de risco. Não é difícil encontrar quem faça do jornal uma extensão da velha teoria da leitura crítica, com todos os ranços a que tem direito. Por tratar da realidade, a imprensa diária seria a fortaleza do leitor que reage aos fatos. 44 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica Na mesma linha – e ainda menos raro – há mensageiros da leitura crítica que transformam o jornal em sua tábua de tiro ao alvo. Incorrem num erro severo: negam o valor da imprensa na construção da sociedade democrática a fazem uma leitura ingênua da produção da notícia. Uma lástima. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, numa defesa brilhante do papel da mídia na construção do leitor, expresso em seu livro Metamorfose, pergunta aos mais amargos como é que a mídia pode fazer tantas cabeças. Afinal, desde o nosso nascimento, estamos muito mais expostos à influência da família, da igreja e da escola do que propriamente da televisão e, muito menos, dos jornais e revistas. A criticidade, na sua forma menos maleável e orgânica, resuma-se, põe para correr a imprensa. Mas é também ela que se abre a um fenômeno dos mais impressionantes. Com a alvorada da internet, alterou-se em definitivo o panorama da leitura. Foi preciso correr atrás do leitor, entendê-lo para tê-lo. Em desvantagem, dada a crise da leitura diária, os jornais têm se reinventado. Não se trata de uma frase de efeito. Para sobreviver tem sido preciso entender o leitor literário, o leitor labiríntico, o leitor hedonista, o leitor que responde às demandas urbanas – como a violência, o desemprego e as mudanças nas relações de vizinhança, para citar três. Ignorar esse movimento corresponde a repetir o tal do erro histórico. Na década de 60, as descobertas sobre o leitor feitas por gente bamba como Iser e Jauss encontraram um solene desprezo nos círculos jornalísticos e em parte do circuito escolar. O preço foi um descompasso, que outro preço não nos cobra senão uma perda de leitores de qualidade nas duas instâncias – a educação e a imprensa. 45 Um dos pecados mais graves, nesse caso, é o preconceito. Um e outro meio construíram o seu leitor ideal. Ele é comportado, aplicado, severo – um homem de Esparta, como já se disse. Segue rotinas, modelos e responde sempre que convocado. Já o leitor real precisa dar respostas bem menos sacerdotais à vida. Necessita de serviços, de interpretações, do riso largo. A percepção crítica do mundo passa por todos esses sentidos. Não deve haver preconceito. A criticidade que nos salva é a que nos leva ao habitante da cidade. Ele é o cidadão. Um de seus direitos mais sagrados é o de se encantar. Só assim poderá responder a um mundo que roda cada vez mais rápido. Eis um princípio bem crítico, sobre o qual pensamos com muito prazer. 46 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica Para saber mais ALVES, Rubem. A maçã e outros sabores. Campinas: Papirus Editora, 2005. CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. Trad. Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. COSTA, Marta Morais da. Sempreviva, a leitura. Curitiba: Ed. Aymará, 2009. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ed. Ática, 2000, 6.ª ed. LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. A leitura rarefeita. Leitura e livro no Brasil. São Paulo: Ed. Ática, 2002. LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores & leitura. São Paulo: Ed. Moderna, 2001. MANGUEL, Alberto. Os livros e os dias. Um ano de leituras prazerosas. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e leitura. Ensaios. São Paulo: Ed. Global, 2009. 2.ª ed. Revista e ampliada. Coleção Leitura e Formação. 47 Ponte entre a escola e o mundo Professora: Janisse Cordova Dornelas da Costa Instituição: Escola Municipal Germano Paciornick Cidade: Curitiba “Ser professor é semear em terreno sempre fértil e se encantar com a colheita”. Gabriel Chalita A tradicional rivalidade entre as torcidas dos principais times paranaenses e o aumento da violência no futebol foram a “inspiração” que a professora Janisse Cordova Dornelas da Costa teve para promover uma verdadeira revolução social entre seus alunos da 4.ª série, na Escola Municipal Germano Paciornick, de Curitiba, no ano de 2009. Como grande parte dos alunos matriculados na escola mora em áreas de favela e invasão, é carente e convive diariamente com a violência e a rivalidade no futebol sempre acabava em algum tipo de conflito iniciado na rua e levado para o ambiente escolar. Para enfrentar o problema, a proposta inicial foi usar o jornal para discutir o tema “violência no futebol” e influir positivamente sobre o comportamento dos alunos. Inicial, porque depois de um tempo, todas as outras violências também entraram no “cardápio” das aulas e o desafio educacional e social ganhou uma proporção muito maior. A experiência de mais de 15 anos de magistério, oito deles usando o jornal como instrumento de apoio pedagógico, deu à professora Janisse a segurança necessária para escolher os textos a serem trabalhados e construir as atividades e debates que a levariam a atingir os objetivos traçados. Os resultados foram compensadores. “A escola não pode mais fechar os olhos para questões sociais que fazem parte da vida dos alunos e sim trabalhá-las de forma coerente, respeitosa e comprometida. E as mídias ajudam muito neste processo porque funcionam como pontes que abrem a sala de aula para o mundo. Educar com o jornal possibilita uma melhor compreensão da 49 realidade, ao mesmo tempo que também desenvolve as potencialidades do aluno”, salienta Janisse. O trabalho sobre violência rendeu à professora o prêmio no Concurso Cultural Ler e Pensar, em 2009, mas, apesar da alegria da premiação, ela garante que essa não foi sua maior recompensa. “A minha grande realização foi constatar mudanças significativas na atitude dos meus alunos. O resultado foi melhor do que eu esperava. Consegui realmente fazer a diferença para aqueles 140 alunos. Eles tornaram-se leitores críticos, reflexivos, questionadores e, sobretudo, cidadãos capazes de respeitar as diferenças, mais tolerantes com a diversidade e com uma melhor autoestima”. A prática A dramatização da Notícia, técnica que aprendeu em um dos cursos oferecidos pelo projeto Ler e Pensar, foi uma das formas que Janisse lançou mão para mobilizar seus alunos. Ao aproximar intimamente as áreas de comunicação, educação e a criatividade do teatro, a professora criou um ambiente estimulante e sintonizado com os novos tempos. Um momento no qual todos os alunos podiam ler o jornal, debater e elaborar criticamente seu entendimento sobre as notícias relacionadas à violência. Na prática os alunos são divididos em grupos, escolhem uma notícia, ensaiam em um local da escola escolhido por eles e depois dramatizam a notícia para os demais colegas da turma. 50 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica Conhecimento e autonomia Para colocar uma proposta como essa em prática é preciso, antes de mais nada, conhecer bem as características da turma e a individualidade e, se possível, a realidade dos alunos. “Depois, é só ler muito, ter persistência e seguir a intuição”, disse a professora Janisse. Isso porque todo o trabalho se fundamenta na liberdade que os alunos precisam ter para ler o jornal onde quiserem, bem como para escolher o modo como vão abordar o tema lido (explicação oral, dramatização da notícia, telejornal etc.) na hora de discuti-lo e defender seus pontos de vista. Outro ponto importante é sempre promover atividades em grupo. “Você é louca! Jamais faria isso! Olha a bagunça! Eles gritam o tempo todo e não param sentados!”. A reação da professora auxiliar de Janisse, ao participar de uma aula com jornal, teve como resposta: “Calma, é assim mesmo, logo você verá o resultado”. Janisse afirma que nunca se preocupou com a “bagunça”, mas, como sua auxiliar, outros professores julgam o trabalho em grupo improdutivo devido a conversas e agitação. “Mas, acreditem, é nesse momento que ocorre o melhor do aprendizado, porque eles discutem, defendem suas ideias e decidem os papéis de cada um”. “Nas aulas com o jornal a gente fica sabendo das coisas que acontecem no mundo. A sala fica mais alegre porque nós fazemos atividades em grupo, aprendemos a escrever melhor e também nossos pais ficam informados porque levamos o jornal para casa”. Wagner Ricardo Kozera Frankowiski, 10 anos 51 Xô monotonia Desde o dia em que levou o jornal para a sala de aula pela primeira vez, Janisse garante que suas aulas passaram a ser muito mais criativas e divertidas. “Nunca mais dei aquelas aulas monótonas nas quais só eu falava e 35 alunos ficavam estáticos, só ouvindo. Não gosto nem de lembrar quando tinha aula dessa maneira, e não desejo isso para meus alunos. Quem é professor sabe, é só lançar algo diferente que o entusiasmo toma conta da sala”. Para Janisse, o professor realmente comprometido com o aprendizado e com o desenvolvimento integral dos alunos precisa estar atento aos interesses da classe e sempre buscar a melhor maneira de direcionar o seu trabalho. Ela percebe a falta de tempo e a necessidade de cumprir o programa escolar, mas não entende porque os professores resistem às mudanças educacionais e insistem no modelo tradicional de ensino. “O educador deve constantemente se atualizar, buscar cursos de formação continuada. Além disso, precisa exercer a criatividade para motivar seus alunos. Todas as profissões são importantes, mas ser professor tem um peso a mais, lidamos com pessoas e necessitamos criar vínculos com elas. Somos formadores de opinião”. 52 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica Novas ideias O fato de as turmas e alunos serem sempre diferentes não assusta a professora, que aproveita essa diversidade para exercitar ainda mais sua criatividade. “Cada turma tem suas características, mas o meu interesse e o envolvimento deles são sempre os mesmos”. E é por acreditar no sucesso da proposta e metodologia de uso de jornal em sala de aula que Janisse já está preparada para alçar novos voos, desta vez para discutir o tema “O lugar onde vivo”. No novo projeto, a ser iniciado no segundo semestre de 2010, os alunos serão levados a ler, debater, produzir reportagens e notícias sobre a cidade onde moram, abordando questões como meio ambiente, cidadania, violência, pontos turísticos, infra estrutura, moradia e outros. “Gostaria de usar o jornal em todas as aulas. Gosto de ler o jornal para ficar sabendo sobre tudo o que acontece. Meu interesse pela leitura aumentou”. Gabriela Ferreira de Jesus, 11 anos “Vamos buscar informações atuais sobre esses temas nas páginas da Gazeta do Povo. Depois, lendo a página Nostalgia (com fotos e textos sobre Curitiba antiga), publicada também na Gazeta, faremos uma comparação da evolução da cidade até os dias atuais. Quero que os alunos reflitam sobre o ambiente urbano e o papel de cada um na preservação e qualidade de vida”. 53 Abordagem lúdica Para a professora Janisse, o grande trunfo de usar o jornal em sala de aula está na possibilidade que o veículo oferece de promover uma abordagem lúdica, que faz parte do cotidiano dos alunos. “Se fôssemos trabalhar a violência ou outros problemas sociais usando como referência os fatos registrados na comunidade ou os problemas reais da escola, isso nunca poderia ser feito coletivamente em sala porque iríamos criar situações constrangedoras. A partir da leitura das notícias publicadas no jornal, trabalhamos as situações genericamente e ninguém se sente constrangido. E ao final do trabalho, vemos que conseguimos discutir o que precisa ser discutido obtendo resultados muito expressivos”. Durante o desenvolvimento das atividades, dar autonomia e exigir respeito às diferenças são condições fundamentais porque fazem com que o aluno aprenda a conviver em grupo e a respeitar as ideias dos colegas. “O trabalho é tão prazeroso e produtivo que quando estamos envolvidos na discussão de uma reportagem ficamos horas e horas nessa atividade. A aula se alonga. Ninguém tem pressa de ir embora”. 54 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica Professora Janisse: “Quem é professor sabe, é só lançar algo diferente que o entusiasmo toma conta da sala”. Aulas divertidas e criativas com o jornal permitem aos alunos desenvolverem as suas potencialidades. 55 Capítulo 3 Práticas de Leitura no Ensino Fundamental À medida que o processo de alfabetização avança, aproximar o estudante dos livros e despertar seu interesse pela leitura podem fazer toda a diferença sobre seu futuro. Pequenas práticas desenvolvidas pelos professores contribuem para tornar a sala de aula um espaço alfabetizador e, mais do que isso, um local de encantamento para a leitura. A opinião é da pedagoga e mestranda em Educação Ana Gabriela Simões Borges, coordenadora geral do Instituto RPC, e da jornalista e mestre em Educação Andressa Grilo Assagra, responsável pela produção de conteúdos do projeto Ler e Pensar. Ambas são autoras de materiais didáticos e produzem o Boletim de Leitura Orientada (BOLO), tabloide que chega quinzenalmente às escolas apoiadas pelo projeto. Imersas diariamente em atividades que envolvem a leitura, a mídia e a educação, neste capítulo as autoras defendem a importância de trabalhar com a diversidade de gêneros textuais em sala de aula e afirmam que a prática pode levar os estudantes a ampliar o domínio de produção textual, sem perder de vista a relevância social do aprendizado. Já a experiência em destaque é assinada por Márcia Bíscaro, professora de 4.ª série na Escola Municipal José Eurípedes Gonçalves, do município de Campina Grande do Sul. Para Márcia, que sistematicamente utiliza diversos textos literários para despertar o gosto pela leitura e estimular a produção de textos entre seus alunos, o jornal é uma ferramenta educativa que já se tornou indispensável nas aulas. Premiada em 2007 no Concurso Cultural Ler e Pensar, desde então Márcia vem sendo procurada por professores que buscam inspiração para realizar atividades e projetos que tenham como matéria-prima o jornal. 57 Por que e para que ensinar a leitura? Ana Gabriela Simões Borges e Andressa Grilo Assagra Quando começar a ler? O que ler? Como ler? Por que e para que ensinar a leitura? Por que a leitura é uma das últimas opções de lazer para as crianças? O que fazer para formar leitores? Por que as pessoas leem cada vez menos? Essas são apenas algumas das dúvidas que passam pela cabeça das pessoas preocupadas com a educação. Afinal, todos sabem que uma educação de qualidade depende da leitura e que ela é a base para o aprendizado das crianças e jovens em nosso País. Não é por acaso que a leitura é um dos temas mais debatidos no meio educacional. Além de ser um dos alvos das avaliações nacionais, é um dos principais pontos de partida para a inserção do aluno na vida escolar, principalmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental, pois é na escola que o aluno aprende a ler para aprender todo o resto. Sabe-se que estimular a leitura não é uma tarefa tão simples e que também não compete unicamente à escola. Entretanto, em um país como o Brasil, onde muitas crianças ainda têm dificuldade de acesso a livros, jornais, revistas e outros materiais de leitura, a escola acaba sendo um dos únicos espaços em que esse acesso pode ser facilitado. Recentemente acompanhamos pelos noticiários as comemorações dos avanços nas avaliações nacionais pelos quatro cantos do País. Que ótimo que melhoramos, mas, ainda assim, insistimos em perguntar: será que temos mesmo tanto a comemorar? 58 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental Se compararmos a Prova Brasil com o antigo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), por exemplo, veremos que cinco de seis médias de Língua Portuguesa e Matemática estão hoje inferiores às de 1995. Além disso, ainda estamos longe de atingir as notas mínimas desejáveis para os países desenvolvidos e contamos com um número significativo de pessoas não alfabetizadas. Dados como esses acionam a luz da emergência e nos fazem pensar no que pode ter dado errado, mas também no que ainda se pode fazer. Não pretendemos aqui fazer um histórico dos índices educacionais mensurados pelas avaliações nacionais, nem dar a fórmula mágica da leitura, muito menos ficar lamentando o que poderíamos ter feito, ou os infindáveis motivos que têm afastado os alunos do ato de ler. Nossa intenção tanto com o ensaio, quanto com a organização deste livro, é estimular, por meio de bons exemplos, a prática frequente da leitura nas escolas. É preciso deixar claro que, quando nos referimos à leitura, nos referimos ao seu sentido mais amplo. Entendemos a leitura como uma prática social necessária, uma atividade rica, transformadora, prazerosa, interativa; que constrói sentidos, que estabelece uma relação dinâmica e que dialoga com o leitor e o texto; e que é capaz de divertir, entreter, ensinar, informar e, até, de fazer o leitor viajar. Muito já escutamos sobre a leitura durante a nossa trajetória educacional. Até parece que foi ontem que alguns teóricos diziam: “Não devemos estimular o hábito da leitura; devemos sim, estimular o gosto pela leitura”. A palavra hábito, nesse contexto, ganhou fama de vilã e o gostar de ler virou a moda da vez, assim como muitas outras, que enquanto educadores já vimos passar. Não achamos que estimular a leitura como hábito seja tão ruim assim; imagine que mundo teríamos se ler fosse tão importante para as pessoas quanto escovar os dentes. Não sabemos dizer se essa “moda” passou, mas o fato é que 59 a leitura, seja como hábito, seja como gosto, precisa fazer parte do cotidiano dos nossos alunos. Isso faz lembrar de uma palestra do professor Mário Sérgio Cortela à que assistimos em 2009. Ele dizia que se tornou um leitor porque seu pai conversava todos os dias sobre os conteúdos do jornal. Como ele queria ter o que discutir, passou a ler diariamente e mantém o hábito até hoje. O bom é que ele não ficou apenas na leitura de jornal, buscou conhecimentos em várias outras fontes. Nesse caso, concluímos que o hábito veio antes, o gosto depois, e que o interesse de Cortela pela leitura foi fundamental. Esse exemplo nos mostra que ler se aprende lendo, assim como escrever se aprende escrevendo. É preciso que se ensine a ler oferecendo práticas de leitura que privilegiem a reflexão e que façam os alunos irem além da simples decodificação das palavras. A Lei 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação, afirma que o objetivo do Ensino Fudamental é a formação básica do cidadão e tal objetivo será alcançado mediante o “desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo” (BRASIL, 1996, artigo 32). Com isso, podemos concluir que estimular a leitura não é apenas apresentar aos alunos a sua técnica; e que para formar bons leitores, a escola ainda tem um grande trabalho a ser cumprido. Pode até parecer fácil, mas não é tanto assim, pois as atividades de leitura na escola precisam ser muito bem planejadas. Não vale “contar uma história” só porque choveu na hora do intervalo, ou levar um jornal para a sala de aula para sair da rotina, sem ter qualquer objetivo e planejamento. Essas atitudes podem ter um efeito catastrófico, e em vez de arrebanhar leitores, pode distanciá-los ainda mais. Sabemos que é comum alguns professores ensinarem a ler da forma como aprenderam. Não queremos aqui fazer qualquer crítica, nem en- 60 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental trar na discussão sobre métodos de ensino, mas não podemos deixar de lado o fato de que os alunos de hoje não são os mesmos de anos atrás. Os pequenos cidadãos que se sentam hoje em bancos escolares são diferentes daqueles que fomos; são crianças e jovens mais dinâmicos, imersos na cultura globalizada do século XXI, estão conectados, têm acesso a muitas informações, são questionadores e exigem, mesmo que indiretamente, novas formas de ensinar. Ainda que o novo aluno exija um novo professor e uma nova maneira de construir o conhecimento, é necessário um processo de transição, no qual o professor é o condutor. Ao professor cabe o papel de relacionar as categorias textuais para leitura com o desenvolvimento intelectual dos estudantes, estabelecendo também uma relação com o aprendizado cotidiano que os estudantes apresentam, vinculando séries, currículos, desenvolvimento cognitivo e afetivo. Mas, então, o que fazer para incentivar a leitura? Ideias e exemplos não faltam e para conhecê-los basta fazer a leitura deste livro, consultar as revistas educacionais mais lidas, os livros que tratem do tema ou, ainda, olhar o que o colega da sala ao lado anda fazendo. O importante é que cumpramos nosso papel de apresentar diversas possibilidades de leitura: dos livros aos jornais, das rodas de leitura à contação de histórias, do diálogo sobre obras literárias às comunidades de leitores, das imagens aos poemas, dos gráficos à arte. Existem várias opções, mas são a sua escolha e a forma como a levará para a sala de aula que poderão ser transformadoras, ou diminuírem ainda mais o interesse dos alunos pela leitura. Por esse e outros motivos, a seleção das leituras é uma das partes mais delicadas, pois é preciso conhecer bem a turma para definir os tipos de leitura a serem apresentados, levando em conta o novo conceito de aluno. Também não se pode ignorar o fato de os estudantes, hoje, 61 estarem inseridos em um ambiente imagético, com textos cada vez mais curtos e com referências de leitura cada vez mais dispersas e que isso deve ser mudado aos poucos. Assim, radicalizar e levar Dom Casmurro para a sala de aula sem nenhum preparo pode não ser a melhor estratégia. A leitura não é algo passivo, depende da interação entre texto e leitor. É o leitor quem cria o sentido a partir de seus conhecimentos prévios e de sua expectativa com relação à leitura. No caso do aluno, porém, a intenção muitas vezes parte do professor. Quem deseja que a leitura seja feita, porque é importante e necessária, é o professor. Só ele pode transformar o que precisa ser lido em algo prazeroso e significativo. Segundo Frank Smith, o significado da palavra “leitura”, em todos os sentidos, depende de tudo que está ocorrendo, não somente do que está sendo lido, mas do porquê de um determinado leitor estar lendo. Nós, leitores mais experientes, sabemos que só lemos o que é in- teressante, importante ou necessário e sabemos que essa escolha pode variar de acordo com os diferentes contextos e momentos de vida. Da mesma forma devemos proceder com nossos alunos. Muitas vezes, a nossa atenção centra-se apenas na seleção do texto e nos esquecemos do contexto e do sujeito, ou seja, do momento de vida e do aluno que irá ler. Seja como for o processo de seleção de um texto, é preciso ter em mente que o mesmo deve ter um significado compartilhado com os alunos. Entender o motivo pelo qual se lê – e o significado do que se lê – é o primeiro passo para que se compreenda a importância da leitura e assim se procure formas para inserir esse importante hábito no cotidiano da escola. Concordamos com Silva (2002) quando ele diz que todos nós educadores temos como objetivo formar alunos e leitores questionadores, capazes de se situar no contexto social, compreendê-lo e transformá- 62 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental lo. Para isso, precisamos pensar em recursos condizentes com tais objetivos e transformar definitivamente nossas boas intenções em ações coerentes. Coerentes, porque vemos por aí muitas práticas que vão contra nossas intenções. Explicando melhor, para escrever este ensaio buscávamos textos norteadores e teóricos renomados e foi aí que encontramos um artigo, intitulado “Pragas da leitura”, em que Sírio Possenti (1994) chama atenção para alguns obstáculos que podem surgir e alerta para sete erros, ou “pragas”, mais comuns: 1 – Rotular as leituras. Achar que existem leituras adequadas para idade, sexo ou temática específica, por exemplo, para meninos, para meninas, crianças, adolescentes, leituras sobre amor ou sobre aventura. Em uma única leitura podemos ter tudo isso e até um pouco mais e aquelas que classificamos como leitura para adultos, como o jornal, podem ser muito bem aceitas pelas crianças. 2 – A imagem que os adultos têm das crianças. Segundo o autor, o potencial das crianças é menosprezado e diminuído por nós adultos. Por isso muitas vezes se leva para a criança textos que não acrescentam nada de novo e por vezes com uma linguagem que o autor classifica como idiota. 3 – A leitura dos livros didáticos é a terceira praga apresentada pelo autor, que se preocupa com a forma com que esses livros podem matar a curiosidade dos alunos. Isso porque são como minienciclopédias, nas quais as crianças acreditam conter todo o conteúdo sobre um determinado assunto, o que faz com que não tenham curiosidade ou necessidade de buscar informações em outras fontes. 4 – A demasiada censura na escolha das leituras, por exemplo: se tiver palavrão não pode, se falar de violência não pode, se falar de sexo não pode; além de tantos outros temas que são comuns na sociedade, mas que “de jeito nenhum” podem ser abordados pela escola. Difi- 63 cilmente, segundo o autor, poderemos indicar boas leituras que não tratem de assuntos como esses. 5 – A leitura única e uniforme para todos com respostas únicas e prontas para todos. Isso é como se perguntássemos aos alunos o significado de um poema, esperando uma só resposta. 6 – O autor também critica o pensar que qualquer leitura serve, então nem é preciso selecionar. 7 – Para encerrar, as pragas da vez são os educadores que não têm qualquer compromisso com a leitura, não pedem para os alunos lerem, ou pior, também não leem. Esses dificilmente conseguirão despertar em seus alunos a vontade e o prazer de ler. Ao apresentarmos tais entraves (ou pragas da leitura, conforme define o autor), queremos também despertar em você a reflexão, o diálogo e a construção de novos significados. De forma alguma nossa intenção é dizer “faça isso!”, “não faça aquilo!”, como nas receitas pedagógicas. Até porque, é você, professor, quem está em sala de aula, conhece a turma e sabe dos recursos, oportunidades e limites que a escola oferece. Analisando tudo o que foi dito por nós e pelos autores até agora, não podemos deixar de falar de um suporte bastante rico de leitura: o jornal. Foram inúmeros os motivos que nos fizeram escolher o jornal para comentar um pouco mais: é atual, apresenta uma grande diversidade de gêneros textuais, pode ser lido por pessoas de todas as idades; informa, coloca o aluno em contato com a realidade e com o mundo; entre tantos outros motivos que, se fossem citados aqui, poderiam se estender até o final deste livro. O jornal não possui apenas textos de caráter informativo, como notícias e reportagens. Nele, podemos encontrar também a literatura nas 64 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental crônicas, a arte nas charges e nas fotos, a diversão nas tiras, o humor nas piadas, a sensibilidade nas poesias e pensamentos do dia, a opinião nos artigos e editoriais, entre tantos outros gêneros. Arriscamos dizer que é impossível que nenhum deles desperte o interesse do leitor. Seja o resumo da novela preferida, as ofertas de produtos, a tabela do Brasileirão ou o horóscopo do dia, no jornal sempre há algo que nos chama a atenção; e se chama a nossa atenção, por que não chamaria a das crianças e jovens? O sábio educador Paulo Freire (1982) já ressaltava as relações mútuas entre a leitura do mundo e a leitura da palavra, entre a linguagem e a realidade, entre o texto e o contexto. Por isso enfatizamos a importância de se colocar os alunos em contato com o mundo e com a leitura por meio do jornal. Essa prática, sem dúvidas, será mais rica do que o simples responder de um questionário ou um fichamento, que priorizam a reprodução de ideias. O aluno precisa ser ativo diante do texto, compreender e refletir sobre o que quis dizer e, a partir disso, chegar às suas próprias conclusões, ou seja, dar um novo significado ao texto a partir de seu referencial e histórico de vida. Para Villardi (1999), a leitura se dá quando o indivíduo é capaz de atribuir sentido ao que lê, pois está vinculada à capacidade de interpretar o que está escrito, utilizando análise e crítica ante as informações colhidas, o que se constitui como um dos atributos que permitem exercer, de forma mais abrangente e complexa, a própria cidadania. Mais uma vantagem do jornal é que ele permite a prática de leitura no Ensino Fundamental, mesmo pelas pessoas ainda não alfabetizadas, como as das séries iniciais e as da Educação de Jovens e Adultos, por exemplo. Com esses alunos é possível ler imagens, observar as diferentes fontes e tipos de letras e números e é possível que você, professor, 65 leia para eles. Mantê-los em contato com esses suportes de leitura que circulam na sociedade pode trazer ganhos surpreendentes. O cotidiano escolar é um ambiente letrador e como tal deve estimular a leitura. Porém não qualquer leitura, mas uma leitura vinculada a uma relação com o leitor. Como já dissemos antes, é ele quem vai construir os significados do texto e é ele também que determinará o sucesso de um texto, ao relacionar seus conhecimentos prévios e assim construir novos conhecimentos. Nesse cenário, nosso compromisso como educadores é fazer o que nenhuma política educacional conseguiu: transformar a importância da leitura para a construção da cidadania em fato. Muitos foram os autores que inspiraram este ensaio e que deram suas contribuições para a educação e especialmente para a leitura, mas a maior inspiração veio mesmo da vontade de dar a nossa parcela de contribuição para os professores, escolas, Secretarias de Educação e parceiros, que ao longo de 11 anos vêm nos acompanhando nessa caminhada em prol da leitura, por meio do projeto Ler e Pensar. Com a certeza de que juntos já fizemos muito pela leitura, encerramos nossa conversa, esperando que, também juntos, façamos ainda mais. 66 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental Para saber mais BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília-DF, 1996. Disponível em http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf . Acesso em 24 de setembro de 2010. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1982. GERALDI, João Wanderley (org). O texto na sala de aula, 3ª ed. São Paulo: Ática, 20001. MEIRELLES, Elisa. Literatura, muito prazer. Revista Nova Escola. São Paulo, ano XXV, n.º 234, p. 48-58, ago. 2010. POSSENTI, Sírio. Pragas da leitura. Leitura, escola e sociedade. São Paulo, FDE, Série Ideias n.º 13, páginas 27-33, 1994. SILVA, Ezequiel Theodoro da. O Ato de Ler: Fundamentos Psicológicos para uma Nova Pedagogia da Leitura. São Paulo: Cortez Editora, 2002. _____. A Leitura no Contexto Escolar. Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_05_p063-070_c.pdf. Acesso em 15 de agosto de 2010. SMITHS, Frank. Compreendendo a leitura – Uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. VILLARDI, Raquel. Ensinando a gostar de ler e formando leitores para a vida inteira. Rio de Janeiro: Qualitymark / Dunya ed., 1999. 67 Atualidade no currículo Professora: Márcia Kaminski Bíscaro Instituição: Escola Municipal José Eurípedes Gonçalves Cidade: Campina Grande do Sul “A educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Paulo Freire “Meus primeiros trabalhos com o jornal foram feitos para ‘não desapontar a supervisora’, já que ela defendia a proposta e estimulava os professores da escola a adotá-la. Mas como não era uma iniciativa na qual eu efetivamente acreditava, acabava nem sabendo o quê e como trabalhar”. A “confissão” é da professora Márcia Bíscaro Kaminski, que atua na 4.ª série da Escola Municipal José Eurípedes Gonçalves, no município de Campina Grande do Sul, e estava longe de refletir a atual realidade das suas aulas com jornal. “Senti que precisava de orientação para desenvolver a prática e fui buscar aprimoramento nas oficinas e cursos oferecidos pelo Instituto RPC. Com o tempo, aprendi a lidar com o jornal e desenvolvi atividades com resultados tão bons que isso mudou os meus conceitos. Hoje vejo o jornal como um recurso pedagógico indispensável.” Márcia revela também que antes de o jornal entrar nas suas práticas era uma professora fechada, não tinha muitas ideias e de certo modo era limitada. “Com o jornal amadureci bastante, ampliei minha visão do processo educativo e passei a buscar constante aprimoramento. Não tenho mais vergonha de falar ‘não sei’ porque agora o fato de não saber sobre alguma coisa me desafia a pesquisar sobre o assunto. Depois que ganhei o prêmio do Ler e Pensar, minha autoestima aumentou, passei a perceber o valor do meu trabalho e, principalmente, sinto que ele pode ser constantemente melhorado.” E se Márcia comemora as mudanças ocorridas na sua maneira de dar aula, festeja ainda mais o impacto positivo do jornal sobre os níveis 69 de aprendizado e interesse dos alunos pela leitura. “As crianças adoram ler o jornal, e também passaram a pedir mais livros na escola e hoje eles querem ler nos horários de folga e ainda pedem para levar para casa. Dá gosto de vê-los devolvendo os livros e comentando sobre tudo o que leram”. A prática A técnica usada por Márcia é simples e consiste em mostrar cada pedacinho do jornal, associando os textos e fotos publicados com os conteúdos que estão sendo estudados em sala de aula. A associação facilita o entendimento e “traduz” a importância de aprender aquele conteúdo, já que o aluno consegue enxergar onde ele aparece na vida real. O processo tem sido tão bem absorvido pelos alunos que é bastante comum ouvir perguntas como “Profe: será que isso não tem no jornal?” em toda a vez que Márcia começa desenvolver um conteúdo novo. 70 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental Aprendizado para a vida Criar um link entre os conteúdos escolares e a atualidade é a principal preocupação de Márcia na hora de planejar suas aulas. Uma preocupação motivada pelo interesse dos próprios alunos – que cobram essa aproximação – e pelo empenho pessoal em contribuir na preparação deles para sua vida escolar futura. “Muitos estudantes chegam ao 3.º ano do Ensino Médio e não sabem fazer uma produção de texto. Não vencem um vestibular porque não sabem interpretar e escrever uma redação. E isso ocorre porque faltou o aprendizado com a atualidade, que é fundamental nessas produções.” Trabalhando o jornal como elemento de aproximação, só neste ano de 2010, Márcia garante que registrou uma melhora de 90% na escrita, na produção de textos e na capacidade crítica dos seus alunos. “Eles estão na frente, em vantagem competitiva”, diz orgulhosa. Márcia sabe que nos próximos anos eles vão mudar de escola (a atual só vai até a 4.ª série) e muitos não terão a sorte de encontrar professores com o mesmo desempenho, mas acredita que as sementes plantadas continuarão dando frutos e tornando-os leitores críticos pela vida toda. “O que mais quero é desenvolver em meus alunos um aprendizado para a vida. Espero que outros professores pensem da mesma forma e também façam a sua parte.” “Quero sempre ser um dos melhores da sala, por isso, quando começamos a trabalhar com o jornal, procurei logo me adaptar com aquele novo tipo de aula. Me concentro na leitura e tento interpretar sozinho o que leio, pois sei que a professora vai trabalhar algo em cima do que estamos lendo”. Rafael Victor Appel, 9 anos 71 Olhar comparativo A maior parte dos alunos de Márcia não tem computador em casa e até a chegada do jornal à escola, nunca tinha tido contato com esse meio de comunicação. A realidade ajudou Márcia a valorizar a oportunidade de ter contato com um meio de comunicação que os manteria informados sobre os principais acontecimentos do Paraná, do Brasil e do mundo e que abriu as portas para o trabalho de leitura crítica da mídia. Isso aconteceu naturalmente, ao longo do trabalho, quando os alunos passaram a comparar os conteúdos do jornal com o meio com o qual eles têm mais contato: a televisão. Eles começaram a perceber que na tevê os assuntos são apresentados rapidamente, de forma resumida, e não têm tantos detalhes, mas no jornal a notícia é mais aprofundada, além de possibilitar uma releitura toda a vez que isso precisa ser feito. “Aproveitei que eles mesmos manifestassem esse interesse para fazer uma comparação orientada sobre as principais características não só desses dois veículos como também dos outros meios de comunicação. Para isso, identificamos um tema que tinha sido divulgado em todas as mídias e analisamos o tratamento e abordagem que recebia em cada veículo.” 72 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental Diálogo e criatividade No dia de trabalho com jornal a sala fica uma bagunça, mas, como a professora faz questão de salientar, “é uma bagunça criativa”, na qual alunos trabalham em grupo, interagem e querem saber o que os outros grupos estão fazendo. “É bagunça mesmo, mas o importante é ver que estão aprendendo, exercitando o diálogo, a crítica e a criatividade. Sabem que para produzir um bom trabalho todos precisam conviver e se entender com todo mundo”, diz Márcia. “A professora sempre nos diz que o jornal é Nesses dias, reclamações como “jornal suja a mão” ou “jornal é coisa de velho” não assustam a professora e são rebatidas na hora. “Suja a mão sim, mas olha o que você pode ver aqui dentro de interessante, veja como é valioso e quantas notícias atuais ele nos traz todos os dias”. A insistência transformou a turma, e até os alunos tímidos desabrocharam. “Com o jornal eles ficaram mais soltos. Perderam a timidez”. uma ferramenta valio- Apesar do sucesso das suas aulas, na escola poucas outras professoras se interessam em trabalhar com o jornal porque veem a prática como “um trabalho a mais” ou dizem que o salário não compensa para tanto esforço. e o Sudoku porque sa que temos todos os dias em nossas mãos e que se soubermos aproveitar o jornal vamos nos tornar verdadeiros leitores. O que mais gosto do jornal são as Cruzadinhas exigem concentração”. Giovanna de Souza Dantas, 9 anos Para aquelas que abraçaram a ideia, Márcia é uma espécie de conselheira. “Digo que trabalhar com jornal cansa mais do que as aulas tradicionais, mas que os resultados são muito mais compensadores”. 73 Jornal do Estudante Uma das maiores novidades na Escola Municipal José Eurípedes Gonçalves em 2010 foi a criação do Jornal do Estudante, que nasceu na turma de Márcia e chegou ao segundo semestre como o jornal da escola. Seguindo o modelo e a estrutura de editorias presentes nos jornais tradicionais, a produção da escola publica assuntos de interesse dos alunos, a partir da leitura de notícias, charges e outras reportagens publicadas na Gazeta do Povo. “O interesse surge durante as atividades com jornal. Os assuntos que despertam maior curiosidade na turma acabam sendo escolhidos para compor o Jornal do Estudante. A partir da primeira semana de julho, por exemplo, nosso foco passou a ser as reportagens sobre eleições, presentes em quase todas as edições da Gazeta do Povo.” Eleito o tema da próxima edição do Jornal do Estudante, além da turma de Márcia, outros professores e alunos começaram a ser envolvidos. Hoje, boa parte da escola participa da produção. “Ao realizar essa atividade, percebo que consigo ampliar o meu papel como docente. Além de transmitir informações, cumpro a tarefa fundamental de promover a conscientização para o exercício da cidadania, abro caminhos para os educandos pensarem sozinhos e os impulsiono ao desejo de reconstruir seus próprios conceitos, fazendo da escola um lugar de entendimento, análise e produção de informação.” 74 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental Professora Márcia e alunas durante a confecção do Jornal do Estudante Alunos mostram publicação produzida com assuntos da atualidade escolhidos por eles e distribuída em toda a escola. 75 Capítulo 4 Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola Tendo objetivos diferentes, a leitura deve ser trabalhada de acordo com o gênero textual, e são diversas as maneiras de ler, assim como diversos são os textos e os objetivos de leitura. No que diz respeito ao gênero literário, a escola assume o importante papel não só de apresentar aos alunos um mundo lúdico, prazeroso, divertido e emocionante, como principalmente o de promover ações pedagógicas estruturadas e planejadas, que os levem a compreender e apreciar o universo da leitura e da literatura. O capítulo que dedicamos à Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola está repleto de ideias e provocações que estimulam o gosto pelo gênero, tornando a escola um local especial para a formação de leitores apaixonados. O tema é tratado pela pedagoga, especialista em Literatura Infantil e doutoranda em Educação Elisa Maria Dalla-Bona, professora do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Paraná, onde desde 1991 ministra disciplinas como Prática Pedagógica e Metodologia de Ensino da Literatura Infantil. O entendimento da importância da leitura literária para o desenvolvimento infanto-juvenil impulsiona as aulas lecionadas pela professora Suely Rubbo Coelli, que atua na Escola Municipal Frei Tiago Luchese, no município de Bituruna. Utilizando a técnica da Contação de Histórias, Suely promove o envolvimento dos alunos. Mesclando emoção, razão e imaginação – literatura e contação de histórias se transformam em atividade dinâmica e dialógica, que reflete a infinita capacidade dos seus alunos para associar experiências e ideias. 77 Leitura literária na escola Elisa Maria Dalla-Bona A literatura deveria deixar de ser um apêndice da área de Língua Portuguesa para se constituir como uma disciplina obrigatória no Ensino Fundamental e assim ter definida a sua lista de saberes e competências específicas. Como decorrência, o corpo docente teria de passar a dominar as finalidades, os conteúdos e as estratégias pedagógicas específicas desta área do conhecimento. Estas são as questões que pretendemos abordar, ainda que parcialmente, a seguir. A literatura infantil ao ser escolarizada tem sofrido um processo de didatização que desfigura, desvirtua e falseia (SOARES, 1999) o texto literário, criando resistências e aversão à leitura. Principalmente são apresentados aos alunos apenas fragmentos e adaptações precárias do texto literário que é transformado em pretexto para estudar gramática, ou para exercícios de interpretação que “privilegiam as perguntas ‘livrescas’ que se prendem à reprodução de palavras que são usadas no texto; à não intertextualidade; aos aspectos não relevantes para a compreensão; à execução de exercícios que solicitam preenchimento de lacunas; ao assinalamento de respostas que demandam certo/ errado, falso/verdadeiro e outros semelhantes” (RANGEL, 2005, p. 150151). Agrega-se a esses problemas a limitação do tempo dedicado à leitura literária na escola. Dificilmente os alunos têm a oportunidade de ler literatura em sala de aula, e quando o fazem são estimulados à passividade. Os professores não provocam a reflexão, o raciocínio e a troca de ideias entre os alunos. 78 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola As teorias da resistência (SNYDERS, 1988; GIROUX, 1997) confirmam a existência das forças conservadoras presentes na escola, como as acima expostas, ao mesmo tempo em que afirmam que elas podem ser combatidas pela atuação ativa de professores e alunos. Nessas teorias as escolas são vistas como espaços de lutas contraditórias e entendem que os sujeitos envolvidos no processo educacional são capazes de usar o conhecimento crítico para a tomada de consciência das condições de dominação. Uma das formas de a escola se transformar em espaço de contestação, luta e resistência é investir no encontro dos alunos com os conhecimentos científicos, técnicos e artísticos. Nesse último inclui-se a literatura como importante agente de crítica, de denúncia e de inquietação, que são ingredientes imprescindíveis para a criação de novos modos de vida. Pensar na escolarização da leitura literária para além dos limites das forças conservadoras é investir na formação do leitor, é inserir o aluno numa experiência estética que pressupõe sentir prazer, entender, apreciar e compreender uma obra, é investir no potencial que a literatura tem de: • desvelar as arbitrariedades sociais; • de provocar a reflexão do que se quer ser ou do que precisa mudar tanto no nível pessoal, quanto social; • de provocar a afetividade; • de emocionar, divertir e dar prazer; • de contribuir para a humanização da pessoa e à construção da sua sociabilidade; • de favorecer o relacionamento do mundo da ficção com a realidade; • de extrapolar espaços por meio da imaginação na construção de incontáveis e infinitos horizontes; • de promover a experiência do encontro com o outro (autor, colegas, professor); • de promover a capacidade de debate e de confrontação de ideias; • de dialogar com diferentes culturas e interpretar as ideias e os valo- 79 res que a configuram; • de desenvolver a capacidade interpretativa; • de desfrutar da experiência estética e singular da linguagem literária; • enfim, de tornar o mundo mais compreensível, sensível e humanizado. As situações escolares, muito comuns, em que o professor propõe a leitura de um poema ou de uma história e em seguida pergunta aos alunos o que o autor quis dizer precisam ser superadas. A leitura literária só dá satisfação ao leitor quando ele participa da análise e não se limita a contemplar a solução já formulada pelo autor, ou pelo professor. Tanto o texto quanto o leitor são ativos (ISER, 1996). O texto literário se apresenta de forma inacabada e descontínua ao leitor, que por sua vez, com o uso de sua imaginação e experiências, completa as lacunas do texto. Assim, as atividades de interpretação de texto devem ser as de construção de sentido, que por sua vez é um efeito experimentado pelo leitor e não preexistente à leitura. O papel do professor é o de convidar o leitor para integrar-se no processo de constituição da obra, contemplando-a, entendendo-a e interpretando-a, o que torna a leitura um processo singular e particularizado. Entretanto, é preciso considerar que, ao interpretar um texto literário, o leitor não está completamente livre, mas limitado tanto pela visão de mundo que já possui (suas crenças, princípios e ideias), quanto pelas normas contidas na obra de arte literária (JAUSS, 2002). A atividade de interpretação de uma obra literária é uma experiência estética, ou um ato de prazer que mobiliza o leitor e o impele à ação, estimulando-o a refletir sobre seus preceitos éticos e morais. A arte não existe para confirmar o conhecido, e sim para contrariar expectativas, podendo levar o leitor a uma nova percepção de seu universo. A obra literária não é um mero reflexo das palavras do autor reproduzidas na mente do leitor, ela é o resultado de uma interação (leitor- 80 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola texto) que é ao mesmo tempo receptiva e criadora. Esta interação é profundamente dependente da mediação da escola para auxiliar o leitor a preencher as lacunas deixadas pelo autor, para auxiliá-lo a entrar no jogo do texto, a mergulhar no mundo da imaginação e da ficção, a dominar a linguagem literária para reconstruir o universo simbólico contido nas palavras. O professor deve ser um auxiliar do aluno para aproximá-lo do maior número possível de obras de modo a ampliar seu universo cultural, instigá-lo a desvendar as pistas deixadas pelo autor, a expressar os conteúdos intelectuais, sensoriais e afetivos despertados pela obra. Cabe também ao professor aproximar os alunos de obras que superem as suas expectativas, os instiguem, os desafiem e para usar um termo de Jauss (2002), que os emancipem. Preocupadas com as questões práticas enfrentadas pelos professores ao trabalhar com literatura, as autoras Bordini e Aguiar (1993) criaram o método recepcional, que recebe esse nome porque é fundamentado na teoria da estética da recepção (JAUSS, 2002; ISER, 1996). O método recepcional busca criar as condições na escola para que se estabeleça uma efetiva comunicação do leitor com o texto, mobilizando seu imaginário, num processo sempre ativo. O ponto de partida do trabalho com a literatura na escola, a partir do método recepcional, é o conhecimento literário anteriormente adquirido pelo leitor, que pode tê-lo ajudado a definir algumas preferências e a iniciar a constituição do seu horizonte de expectativas que é formado por aspectos sociais (classe social à que pertence), intelectuais, ideológicos (valores), linguísticos (padrão expressivo) e afetivos. O professor é o responsável e o dinamizador do processo de aprendizagem, provocando situações literárias que propiciem o questionamento desse horizonte e favorecendo a sua superação pelo domínio de conhecimentos mais complexos. 81 O método recepcional, ao colocar o leitor em contato com obras literárias desafiadoras, provoca um esforço salutar para responder aos desafios ante o novo, de adotar uma postura de disponibilidade. As ações pedagógicas propostas têm características provocativas, problematizadoras e reflexivas, gerando impactos no leitor (aluno) e em seu meio social (escolar e familiar), na medida em que, por meio da leitura literária, provoca a revisão de suas crenças, atitudes e valores. No que se refere à seleção dos textos literários, no método recepcional o ideal é a coexistência, no ambiente escolar, dos textos com os quais os alunos estão mais familiarizados, com os de “outras épocas, regiões e classes sociais, em diferentes níveis de estilo e abordando temáticas variadas” (BORDINI E AGUIAR, 1993, p. 86) e também com aqueles produzidos pelos próprios alunos. Isso favorece a comparação entre o familiar e o novo, entre o próximo e o distante. O processo de trabalho proposto pelo método recepcional sugere, ainda, a participação ativa dos alunos no planejamento e na execução das atividades. A frequência de oportunidades para a expressão e o debate oral e escrito entre os alunos, destes com o professor e também com os membros da comunidade, favorece a atividade dos alunos e são criadas as condições para que ele aja como sujeito da História. As estratégias didáticas são de natureza lúdica e capazes de provocar o desejo de aprender e de superar-se. Este método objetiva o desenvolvimento das capacidades de observar, descrever, analisar, comparar, interpretar, críticar, extrair conclusões e aplicar os conhecimentos ou comportamentos adquiridos a novas situações. A avaliação proposta é processual, dinâmica e permanente, ocorrendo a cada leitura do aluno. “No desenvolver dos trabalhos, esse deve evidenciar capacidade de comparar e contrastar todas as atividades realizadas, questionando sua própria atuação e a de seu grupo. A res- 82 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola posta final deve ser uma leitura mais exigente que a inicial em termos estéticos e ideológicos” (Idem). Assim, ler literatura na escola é se inserir num mundo lúdico, prazeroso, divertido e emocionante, provocado por ações pedagógicas estruturadas, organizadas e planejadas, sem serem sisudas e impositivas, mas desencadeadoras da interação do leitor com o texto. Cabe à escola, como afirmamos de início, assegurar formalmente o trabalho com a literatura, dando acesso a textos cuja qualidade literária provoque o desejo de ler cada vez mais, a fruição de um prazer superior, enfim o desenvolvimento das competências leitoras. Trata-se de um ambiente em que professores e alunos deixam-se levar pela força e a emoção das palavras narradas, em que os alunos sentem o desejo de criar e escrever seus próprios textos literários, gargalham com o humor e se deixam contagiar e proteger por ele e provam do prazer da narração de uma história. A questão do estímulo à leitura, especialmente quando se trata de crianças pequenas, passa também pela contação de histórias, pois uma narração bem feita provoca o desejo de ler o livro. Mas na escola essa atividade é comumente improvisada, resultando no tumulto entre as crianças, que desinteressadas pela atividade se estapeiam, conversam e fazem provocações com os colegas. A leitura do professor passa a ser intercalada com gritos para chamar a atenção das crianças. É bom lembrar que o prazer de ouvir uma história bem contada não se esgota na infância. Tomo como referência a minha própria experiência recente, provocada pelo encantamento de ouvir histórias narradas por Celso Sisto. Ele é um contador de histórias que não utiliza de outros recursos senão a expressão corporal e a entonação de voz. Ele consegue tocar profundamente seus espectadores sem utilizar de materiais de apoio, o que faz com que a atenção se volte para 83 a narração, para o texto e não para os recursos que eventualmente possam ser utilizados. Celso Sisto nos dá pistas importantes sobre o tema, em seu livro Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Ele insiste na necessidade de o professor se preparar para a contação, o que pressupõe diversas leituras antecipadas da obra, até que se sinta tomado pelo desejo de contá-la. Assim, as palavras vão brotando “dos lábios com veemência, convicção, detalhe e emoção” (SISTO, 2005). O professor não pode ter pressa depois de começar, pois os princípios da estética da recepção estão presentes também quando os alunos ouvem uma história, na medida em que por meio de sua imaginação vão preenchendo as lacunas e os vazios do texto. Sisto se refere à cumplicidade que o narrador deve criar entre história e ouvinte, “oferecendo espaços para o ouvinte se envolver e recriar. Esses espaços de locomoção do ouvinte dentro de uma história podem ser construídos pelas pausas, silêncios, ações, gestos e expressões de forma harmônica” (Ibidem). Assim, a narração expressiva em que a voz provoca suspenses, instiga, encanta, faz rir e se insinua está ávida pelo leitor, pela reação criativa no sentido de alguém que muito mais do que um espectador é um coautor. “Uma história é feita, na cabeça do ouvinte, pela construção de expectativas, frustrações, reconhecimentos e identidades” (Ibidem). Ler ou contar uma história depende de o professor optar por aquela situação em que ele se sente mais confortável. Em qualquer delas tem de estar presente o cuidado com a expressão da voz, da face, dos movimentos corporais, “emoção, texto, adequação, corpo, voz, pausas e silêncios, olhar, espontaneidade e naturalidade, ritmo, clima, memória, credibilidade” (Ibidem). O importante é provocar o espectador para que construa mentalmente o que está sendo contado e estabeleça a comunicação com a história. 84 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola Ao final da narração é muito importante que o professor estimule o debate, de forma que os alunos possam falar sobre o que estão sentindo, sobre as relações que estabeleceram entre a história e sua realidade, ou com outros textos que leram. Nesse caso, a lembrança pode ser de um texto literário, mas pode também ser de uma notícia do jornal, por exemplo. Os bons textos literários sempre abordam com profundidade temas que se relacionam com a vida real, com os sentimentos humanos, as inseguranças, as dificuldades, os conflitos, as curiosidades etc. A narração de um texto literário pode derivar para o trabalho com diferentes linguagens (música, filme, artes plásticas) e também com diversos gêneros textuais, como um poema, uma carta, uma receita médica, uma bula de remédio, uma piada, uma entrevista jornalística e um artigo científico. É uma maneira de explorar o potencial para as intertextualidades que um texto literário tem, ou para abordar o mesmo assunto de forma diversa, descobrindo a riqueza de cada uma delas. Destaco o potencial que o jornal tem como auxiliar na formação do leitor literário. Os cadernos direcionados para o público jovem e os de atividades culturais são ótimos recursos para o professor, que pode proporcionar aos alunos a leitura de análise de obras, a leitura de entrevistas com autores, conhecer lançamentos, divulgar encontros para audição de textos literários, acesso a artigos de especialistas, a participação em iniciativas de promoção da leitura divulgadas pelo jornal. Dentre as inúmeras atividades que podem ser desenvolvidas a partir do jornal, há algumas que interessam muito aos alunos, por exemplo, a criação de um caderno cultural da escola. Inspirados nos cadernos que conhecem nos jornais, os alunos podem escrever comentários sobre os livros que leram, que podem ser complementados por outros alunos com as análises de obras similares e com ilustrações dos que 85 se sentem mais aptos para o desenho. O caderno é um excelente espaço para a divulgação de obras do acervo da escola, para a divulgação de novas aquisições, para a publicação das entrevistas que realizaram com autores e ilustradores, para a divulgação de poemas criados pelos alunos, ou selecionados por eles. Os quadrinhos também podem fazer parte do caderno, tanto os criados pelos alunos quanto os compilados por eles. Quando a escola dispõe de uma assinatura de jornal é importante que frequentemente os alunos recortem as informações relacionadas às atividades literárias para que montem uma textoteca. Para assegurar uma dinamização maior de acesso a essas informações, a coletânea pode ser colocada na biblioteca da escola. Estas atividades visam criar as condições para que os alunos sintam o desejo de trocar experiências literárias, aprofundem seus conhecimentos acerca do assunto e encontrem um espaço real para desenvolver a sua criatividade e divulgar seus textos. 86 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola Para saber mais BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura. A formação do leitor: alternativas metodológicas. 2.ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais. Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1997. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996. 2 v. JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. RANGEL, Jurema Nogueira Mendes. Leitura na escola. Espaço para gostar de ler. Porto Alegre: Editora Mediação, 2005. SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a Arte de Contar Histórias. Curitiba: Positivo, 2005. SNYDERS, Georges. A alegria na escola. São Paulo: Manole, 1988. SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, Aracy et alii. A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 87 Quando o faz de conta inspira o mundo real Professora: Suely Goretty Rubbo Coelli Instituição: Escola Municipal Frei Tiago Luchese Cidade: Bituruna “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Paulo Freire Para a professora Suely Goretty Rubbo Coelli, da Escola Municipal Frei Tiago Luchese, do município de Bituruna, educar é aventurar-se – e levar junto os alunos – a um mundo de desafios e coisas novas, que façam sentido para a vida real. Então, nada mais natural para ela que se inspirar no mundo do “faz de conta” para promover uma das atividades lúdicas mais envolventes usando o jornal: a contação de histórias. “O projeto nasceu como uma estratégia para fugir da rotina e da mesmice que as aulas acabam se tornando quando nós professores não encontramos caminhos para tornar a escola um ambiente de aprendizagem atrativo, capaz de instigar o aluno e desafiá-lo a novas descobertas”. Segundo ela, a busca pelo envolvimento da emoção, da razão e da imaginação, numa atividade dinâmica e dialógica, consegue refletir a infinita capacidade dos estudantes para a associação e circulação de experiências e ideias, especialmente numa sociedade tão seletiva, excludente e altamente competitiva. A implantação da proposta não foi fácil. A professora teve de enfrentar o desafio de superar as limitações dos alunos, pouco familiarizados com textos literários e, principalmente, nada acostumados com o exercício do raciocínio dedutivo. “Mas a partir do momento em que sabemos aonde queremos chegar, todos se envolvem e os resultados são perceptíveis em diferentes situações. Os alunos passam a demonstrar maior interesse pela leitura, prestam atenção aos detalhes, fazem inferências, estimativas, levan- 89 tam hipóteses, questionam, criticam. Muito diferente e mais fluido que antes do projeto, quando tudo era muito difícil de acontecer”. Suely afirma que até mesmo quando a discussão envolve temas polêmicos, os alunos se posicionam criticamente, inclusive citando referências e as fontes que consultaram para fundamentar suas opiniões. “Além disso, têm segurança e se sentem à vontade para citar exemplos vivenciados por eles próprios, com a família, vizinhos e conhecidos. “Isso acontecem porque as aulas ocorrem em clima de harmonia, com direitos e deveres muito bem estabelecidos e um permanente respeito ao outro”. A prática A partir da leitura de uma história como Ali Babá e os 40 ladrões – na qual um homem pobre fica rico ao descobrir um tesouro deixado por ladrões em uma caverna –, lendo um capítulo por aulas e instigando os alunos a conhecerem a história, a professora estimula os seus estudantes a buscarem fatos semelhantes publicados no jornal impresso e na edição da Gazeta do Povo Online. A intenção é demonstrar aos alunos que é possível encontrar histórias reais com algo em comum com o mundo da fantasia. O trabalho remete à reflexão e análise tanto da história ouvida quanto da notícia, que identificada permite que o aluno transponha para a realidade o contexto e o argumento da narrativa e vice-versa. Depois, as conclusões são apresentadas oralmente aos colegas, em duplas, socializando o conhecimento adquirido. 90 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola Conexões possíveis Em um primeiro momento, associar os clássicos da literatura às notícias que saem na imprensa e ao cotidiano dos alunos causa surpresa e estranheza. Depois, a magia e o encantamento dos textos lidos conseguem ultrapassar barreiras e pré-conceitos, já que são usados como oportunidade para revisitar conceitos e entender melhor a realidade. Mas, além de trabalhar aspectos culturais, sociais, econômicos, políticos e religiosos dos alunos, as aulas com contação de história também podem ser usadas como uma ponte para a consolidação do conhecimento escolar, lançando luzes sobre questões relacionadas às disciplinas curriculares. Uma faceta do trabalho que exige constante atenção e interesse por parte do professor. “Ao escolher um texto literário para ler em sala, é preciso organizar todo um plano de abordagens explorando as possibilidades que ele oferece. Assim, quando existe a chance, por exemplo, de explicar melhor os conteúdos de História, Geografia ou Matemática, vou para a sala de aula já preparada para promover a discussão e responder às dúvidas dos alunos. Sem essa preparação, fica muito difícil conseguir explorar e fazer todas as conexões possíveis”. “É importante trabalhar com o jornal porque desenvolve a inteligência da gente. O que eu mais gosto dessa aula é quando a professora conta histórias e quando lemos os livros”. Michael Jonatam, 11 anos 91 Heróis anônimos Ainda saboreando o sucesso do projeto de contação de histórias usando os textos clássicos e o jornal, a professora Suely já está em busca de novas “provocações” e quer substituir a matéria-prima principal de suas aulas por histórias de vida. Para isso, começou a identificar pessoas da comunidade que têm trajetórias inspiradoras, apesar de enfrentarem as mesmas dificuldades dos alunos. “Quero mostrar que os verdadeiros heróis são pessoas simples, humildes, que fazem parte, anonimamente, da comunidade. Pessoas que não pertencem à elite, não aparecem na televisão, não fazem parte de grupos sociais de destaque. Trabalham no mato ou na roça e têm experiências de vida fantásticas porque dominam o senso comum e valorizam muito mais o ser do que o ter”. Ela diz que a maior parte das crianças, ainda que esteja longe desses modelos, se identifica e valoriza referenciais equivocados. Sonham em ser a garota escultural da tevê, o jogador famoso de futebol que ganha rios de dinheiro, a atriz famosa que vive um romance de conto de fadas... Ou seja, suas referências são casos raros e modelos praticamente inacessíveis para as pessoas comuns. Ouvir relatos de pessoas reais e que vivem num mundo muito parecido com o dos alunos pode mostrar a eles que devem viver e lutar pela sua própria vida e não tentar viver a vida dos outros. “Espero que eles compreendam que ter sucesso é vencer nossos próprios desafios, desenvolver nossos talentos e aproveitar as oportunidades que surgem de forma honesta, fazendo o bem para si mesmo e para os outros”. 92 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola Humano e conectado Para Suely, o professor do século XXI deve ser despojado, aberto, “digital” e “conectado”, mas sem perder a sensibilidade e o caráter humano. “Precisamos inspirar confiança e acreditar no potencial dos alunos. Afinal, pelas nossas mãos passam os futuros presidentes, médicos, cientistas, dentistas, empresários, jornalistas e outros tantos talentos que um dia precisaram ter suas aptidões descobertas e apoiadas”. “Tenho certeza de que estou fazendo diferença na vida dos meus alunos e acredito que outros professores também podem fazer. Eu mesma sou fruto do esforço e interesse de professores dedicados e interessados que me motivaram a ler e a expressar minhas opiniões e ideias, e a ter confiança para lutar pelos meus sonhos”. “Quando a professora conta histórias a gente viaja no mundo da leitura. O jornal é muito importante para o nosso desenvolvimento”. Emanuele Matias, 11 anos E esse é um comportamento que exige dedicação e um plano de interesses voltado ao desenvolvimento integral do aluno. “Não adianta ter todos os mais modernos recursos ao nosso alcance se não soubermos usufruir dos benefícios que eles podem nos oferecer. E isso não depende da tecnologia e sim de atender às necessidades da turma, valorizar as diferentes habilidades de cada aluno e descobrir o melhor processo de ensino-aprendizagem”. Infelizmente, admite, muitos professores ainda resistem à ideia de novas ou inusitadas práticas 93 didáticas. Ficam enfurnados entre as quatro paredes da sala de aula e levam os alunos a fazer o mesmo, quando até mesmo a pouca idade os impede de aceitar esse modelo. “Por isso eles se rebelam, se revoltam, demonstram indisciplina. Lá fora, o mundo é mais atrativo, dinâmico e interessante”. Cidadania Atender, efetivamente, a um dos objetivos da educação, que é permitir que o educando adquira conhecimento, descubra e alargue todas as suas potencialidades. Essa é a mola que impulsiona a professora Suely ao trabalho permanente com o jornal. “Vejo no jornal uma ferramenta pedagógica de longo alcance e de duplo significado. Com o jornal é possível conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento integral dos alunos como cidadãos. E ajudá-los a exercer sua cidadania plena exige que trabalhemos questões como valores, caráter, crítica, consciência e atuação social.” Para atingir tantas necessidades e objetivos, Suely garante que é preciso se despojar de atitudes de poder associadas aos tradicionais papéis de professor e alunos e fazer tudo para diminuir a distância entre os dois lados. Ou seja, o professor não pode se apresentar como dono do conhecimento. Ele deve entender que todos os dias também aprende algo com seus alunos, porque educar é um caminho de mão dupla. “Chegar à classe engessada por pré-conceitos não serve mais para os profissionais da educação. É preciso abrir as ‘janelas’ e visualizar um mundo aberto a novas possibilidades. O professor deste milênio precisa ensinar e orientar o aluno para atuar e modificar a realidade melhorando sua vida e a dos outros”. 94 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola A partir da leitura de uma história, professora Suely estimula os alunos a buscarem fatos semelhantes no jornal. A professora Suely trabalhando, em suas aulas, questões como valores, caráter, consciência e atuação social. 95 Capítulo 5 Leitura Significativa e Contextualizada Ler não é somente identificar símbolos, juntar letrinhas, relacionar as letras aos seus respectivos sons e repetir frases lidas em cartazes ou anúncios. Ler, em seu sentido amplo, significa saber decifrar um grande número de informações e reconhecer seus significados e interações com o mundo. Enfim, entender o que está sendo lido e transformar a leitura em aquisição de conhecimento. O ensaio acadêmico sobre o tema Leitura significativa e contextualizada é assinado por Benedito da Costa Neto, professor na área de Língua Portuguesa e de Literatura, consultor, crítico de arte e escritor. Professor de Língua Portuguesa da Rede Paranaense de Comunicação (RPC), Costa Neto também é responsável pelo estilo de linguagem adotado pelos telejornais da rede. Além disso, ministra aulas em diversos cursos universitários. Já a prática em sala de aula que destacamos para este capítulo é o fanzine produzido pelos alunos da professora Adriana Margarete Rolim da Silva Gonçalves, no contraturno da Unidade de Educação Integral Abranches, em Curitiba. Com aulas dinâmicas e divertidas, Adriana, premiada no Concurso Cultural Ler e Pensar de 2008, usa a leitura de jornal para motivar o aprendizado entre jovens adolescentes e faz das suas aulas um exemplo de criatividade, interatividade e estímulo ao protagonismo. 97 Produtores de significado Benedito da Costa Neto Quando lemos, o que lemos? A leitura está efetivamente no texto lido ou em nossa mente? Será que o que lemos nos precede, sendo uma voz que fala antes de nós, ou seria uma voz nova, que fala a cada dia e que fala algo novo a cada vez? Nós somos leitores ou somos também produtores de significado? E o que seria mais importante no ato da leitura: o que vem antes do texto e que tornou possível este texto; quem o escreveu; nós mesmos? A voz de nossa professora de Português ecoa em nossa mente indicando um bom caminho para o texto: não fazer perguntas, pois um texto deve ser afirmativo, mas eu gostaria de começar este texto (assim como comecei a apresentação oral que o antecedeu) justamente com perguntas, para que, a partir delas, seja possível afirmar o que deverá ser afirmado. Ler, para um erudito livre e independente como Alberto Manguel, é um processo complexo, sem dúvida, mas um processo extremamente marcado pela condição cultural. Para ele, a leitura não é apenas a dos olhos sobre o texto, uma vez que cegos podem ler e uma vez que há outros tipos de leitura, como a da vidente que observa o fogo, o pescador que sabe quando há peixe, o amante que passa os dedos pelo corpo do amado1, entre tantas outras infindáveis formas de ler. Já para autores mais ligados à pesquisa acadêmica, no seio da LinA obra de Manguel em que ele afirma isso e pesquisa outras formas de ler é Uma história da leitura. 1 98 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada guística, ler é um processo, digamos, mais fechado, que admite uma taxionomia: haveria uma leitura neurofisiológica, uma leitura cognitiva, outra afetiva, e ainda leituras como processo argumentativo e simbólico, ocorrendo todas ao mesmo tempo e não sendo nenhuma “superior” à outra. Este tipo de análise ganhou corpo no século XX e pode ser encontrado em pesquisadores como Vincent Jouve2. Ainda no meio acadêmico, podemos encontrar outras formas para o ler, como a do pesquisador luso-americano António Damásio, a partir de cujas pesquisas podemos intuir que o processo de ler está atrelado à ideia que temos de nós mesmos, assim como à nossa percepção do mundo3 (memória, um sentido do “eu” e um sentido do existir). De um modo ou de outro, a dúvida permanece e talvez o ato de ler seja tudo isso: haveria muitos significados para a leitura, que não caberiam neste texto. Em particular, quero me dedicar a um tipo de leitura em especial, a do jornal. Talvez fosse coerente com a multiplicidade dos meios jornalísticos frisar, não por excesso de zelo, que há uma leitura de jornal escrito, em papel, específica, e que difere da leitura em página da web, por exemplo. O leitor de jornal é aquele que recebe o jornal em casa, pela manhã, aquele que para em uma banca para ler o que está à disposição ou ainda aquele que comprou o jornal para lê-lo na praça, no banco, no aconchego da sala ao retornar para a casa. Há enorme diversidade de jornais e de cadernos: jornais de bairro, jornais de grande circulação, jornais específicos e, no interior de cada um, uma diversidade de cadernos, desde uma seção de classificados, que sustenta muitos jornais financeiramente, até textos muitíssimo particulares, como os sobre vinhos, moda ou ainda, em cadernos especiais, sobre a velhice ou a violência urbana. Sem saber, o leitor está em consonância com o que se discute dentro A obra em questão é A leitura. Para Damásio, em O mistério da consciência, há diferença entre a noção de “eu” e a noção do existir. 2 3 99 do meio acadêmico: ora temos um leitor que buscará o tema, o sentido, o significado, o conteúdo, o dado que o antecede, sendo muitas vezes um dado que ele não conhece e que, por não conhecê-lo, não pode duvidar dele, ora teremos um leitor mais passivo, que passa os olhos pelo jornal à procura de algo interessante, por lazer, passatempo ou por mera formalidade dos eventos diários. Se um jornal traz um dado irregular (como dizer que Abu Dabi fica no Marrocos), o leitor necessitaria ser aquele leitor não ideal imaginado por Umberto Eco no século passado4, que buscaria cada dado para verificar se é ou não verdadeiro. Mas não são todos os dados, por assim dizer, pois os números e informações sobre uma investigação policial não podem ser checados, o que nos faz imaginar que o leitor deve ter com o jornal um pacto de aceitação do dado, ou um pacto que o faz aceitar determinados dados, se pensarmos ainda no mesmo Eco que trata do “pacto de leitura”. Ocorre que o jornal é um múltiplo também no sentido empregado, hoje, pela arte contemporânea5. O jornal não é apenas um emaranhado de letras, frases, parágrafos, que o leitor deve traduzir. Tal tradução é uma falsa ideia da leitura. Ler também é traduzir algo (uma escrita, principalmente, em nosso caso), mas ler, em sentido mais amplo, é decifrar um grande número de informações que o jornal carrega consigo: a diagramação, as manchetes e chamadas (que são escritas também), as cores, as imagens, as propagandas (misto de imagens e textos), a tipografia etc., índices pelos quais o leitor reconhece o “seu” jornal e “seu” texto. Todas essas características, juntas, fazem da leitura o que ela é: uma tradução em múltiplos níveis. Porém, se a leitura fosse uma decifração de textos (“escritas” em vários sentidos de “escritas”, como Barthes, por exemplo, teria imagi4 5 100 Umberto Eco tratou disso em vários escritos, mas penso agora em Lector in fabula. Quanto a esta nomenclatura, penso nos estudos de Nicolas Bourriaud e Anne Cauquelin. Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada nado6 e tantos outros antes dele, depois dele), isso seria uma tarefa razoavelmente simples de resolver. Estudos de gramática e de escrita dariam conta do desafio e ler seria um processo de decifração ora de cores, ora de tipografia, ora de uma escrita com regras sem as quais não se pode fazer um jornal: as normas gramaticais vigentes no interior de cada redação, certas regras gramaticais aceitas em acordos internacionais e em certas gramáticas normativas. No entanto, existe o conteúdo da escrita, algo que um pensador como Pêcheux, se emprestássemos dele certa ideia sobre o discurso, chamaria acontecimento. Todo texto tem uma estrutura (frasal, gramatical etc.), mas todo texto tem um conteúdo ideológico, político, soociocultural, que faz ou não parte da vida e do mundo do leitor7. Quem escreve para um jornal, escreve de um ponto social muitas vezes não definido, mas tentaremos um caminho investigativo sobre este ponto. Pensemos primeiro num lugar físico de escrita, de onde tudo flui. Antigamente, há não muito tempo, os jornalistas, no interior de cada redação (e com certeza em alguns lugares do mundo isso ainda deve ocorrer) escreviam a partir de máquinas de escrever8. Hoje, talvez seja comum em todo o país a utilização de computadores, interligados em rede, com acesso à internet, enfim, que facilitam em parte a escrita em si, a produção de textos. Mas este profissional da escrita escreve de um lugar que não é simplesmente este lugar físico – é, para além do espaço físico, não sem importância, como já mostrado por estudiosos com certa abordagem fenomenológica ou por outros a partir de abordagens sociológicas, um espaço cultural, um espaço do dizer em Barthes ocupou-se disse grande parte de sua produção, mas penso em O prazer do texto. Aqui há uma leitura bastante livre de O discurso – estrutura e acontecimento, de Michel Pêcheux. 8 Em muitas redações de jornais escritos e falados, a máquina de escrever foi usada até meados dos anos 1990, por uma questão de custos. Era realmente caro investir em equipamentos eletrônicos para todas as equipes. Valeria lembrar, igualmente, que o uso de computadores em larga escala, no meio empresarial, é fato relativamente recente na História. 6 7 101 que a voz não é apenas gramatical ou espetacularmente estrutural, com erros e acertos. A voz que fala num jornal é uma voz social, repleta de intenções as mais diversas, de interesses, de interpretações do mundo, de visões específicas. É lugar-comum dizer que o jornalismo deve ser a voz da liberdade, mas tal liberdade pode não ter as asas tão dilatadas como sonha a versão típica das edições, que cantam a liberdade de expressão e o teor da verdade de cada matéria. E, nesse momento, entra em questão o que há de mais complexo na leitura, que é a questão do discurso. É extremamente comum encontrarmos a palavra “interpretação” quando verificamos os textos dos pesquisadores que investigam a leitura. Tal palavra remete a um grande número, por sua vez, de possibilidades interpretativas: por vezes, deparamos com a ideia de que é possível resgatar a voz do autor e procuramos num texto esta voz perdida; se a voz nos é próxima, por exemplo, a voz de um escritor ou jornalista vivo, fica razoavelmente fácil distinguir o texto de um Luis Fernando Verissimo de um texto de José Simão, mas se a voz é antiga, e se perde na noite dos tempos, fica bastante complicado ouvir esta voz e a interpretação dela não é mais do que um desejo. De todo modo, nossa leitura é sempre uma leitura do hoje e não do ontem. É como se fizéssemos uma atualização (no sentido que Pierre Lévy dá ao termo quando discute a cibercultura9). No Brasil, principalmente, dada a força da USP e das análises sociológicas difundidas pelo estudioso Antonio Cândido, é comum encontrarmos análises desse tipo, mescladas a outros discursos: a psicanálise freudiana ou junguiana, a fenomenologia de Bachelard, a nova história de autores tão díspares como Natalie Zemon Davis e Carlo Ginzburg etc. Ocorre que tais análises são possíveis, como qualquer outra análise, mas muitas vezes deixam de lado o seguinte: fazemos também, nós, uma leitura do hoje, do agora e dos discursos posteriores ao texto, que o atravessam. 9 102 Tal pensamento está em O que é o virtual? Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada Há também autores realmente complexos que parecem acenar para este tipo de análises – Clarice Lispector, certo Kafka – e são justamante esses que, por motivos razoavelmente compreensíveis, passam a ser objeto de análises “de autor”. A ideia central é: “se entendo um autor, posso entender sua obra”. O risco é: “confundo o autor com a obra”. Pode parecer lógico também que, se entendemos o universo solitário e, segundo biógrafos, depressivo de Lispector, entenderemos melhor A paixão segundo G. H., mas isso não ocorre na leitura de um jornal, haja vista que é bem comum não conhecermos os jornalistas. Embora “vivos”, produzindo “em nosso tempo”, eles não são pessoas próximas tampouco analisáveis nesse sentido. Não obstante, a leitura é também uma busca por uma “voz de autor”, apontável ou não. Outro tipo de análise comum, igualmente interpretativa, é a análise do “texto em si”. Há diversas análises ao longo do século XX preocupadas com o texto em si a partir do momento em que a textualidade ganhou importância em detrimento das questões gramaticais ou discursivas, o que seria talvez certo modo positivista de ler e de interpretar o texto. Há tanto o modo de análise do texto com o desejo de encontrar para ele uma definição, sem a qual a análise não seria possível, assim como a análise das potências textuais do texto, o que ganhou corpo no Brasil a partir dos anos 1980, quando a Linguística Textual passou a ser estudada em larga escala, o que contaminou – no bom sentido – as análises literárias. Tais análises são possíveis e interessantes, mas desde que não tenham como objetivo maior a classificação vazia: discutir se um texto ficcional é novela, romance ou conto, é também importante, mas não como fim em si. Também na leitura do jornal ocorre um certo tipo de classificação. No geral, o jornal (parece óbvio, mas é mais espinhoso que isso) é classificado justamente como aquele cujo texto é “jornalístico”, como se o texto jornalístico fosse um gênero à parte e fechado. Não seria mentiroso dizer que o jornal é “jornalístico”, mas se isso for importante para uma análise (separar o que seria jornalístico daquilo que não é), há de se pensar também que cada jor- 103 nal se diferencia do outro e que em cada jornal há universos textuais e discursivos diferentes. Ao pé da letra, cada jornal é um veículo de informação, mas as informações podem ser sobre política, economia e gastronomia — num jornal de grande circulação, privado – e podem ser informações sobre aumento salarial, demissões, direitos do trabalhador – num jornal sindical. A questão do “texto em si” (tanto as análises gramaticais quanto textuais) pode ser um grande aliada em sala de aula, mas desde que outras análises não fiquem de fora. Fariam parte deste grupo algumas análises ditas estruturalistas, ao modo de Propp, e ainda análises da Linguística textual ao modo difundido no Brasil pela professor Ingedore Koch. Até mesmo algumas ferramentas da Sociolinguística são usadas nesse tipo de análise. Quando não são mera formalidade classificatória, podem ser úteis. Por exemplo, se dizemos que um texto foi escrito por homem ou mulher, se o texto foi escrito por jovem ou idoso, se o texto foi escrito por pessoa de tal ou tal formação, devemos ter em mente que por detrás dessas afirmações há discursos muito poderosos, incluindo aí alguns preconceituosos. Haveria um terceiro modo de analisar o texto que não verificando sua origem tampouco as questões estruturais que fazem um texto ser um texto. Costumo dizer que as análises discursivas são um tipo de análise e de interpretação possível e diferente das dos outros dois grupos. A seu favor, conta-se com a capacidade de investigar o texto em seu território de escrita, em seu momento de dizer, seja ele sociocultural ou histórico. Análises sociológicas em geral (usos e costumes, gênero, política), análises históricas, análises que utilizam ferramentas das áreas “psi”, análises que utilizam discursos do Direito ou da Medicina, são possibilidades muito interessantes para a sala de aula. A seu desfavor, tal modalidade de investigação tem lá suas obrigações: a) necessita ser erudita, para que não se corra o risco de falsas conclusões; b) não pode procurar a verdade como um fim, pois que a investigação é uma procura eterna e não um processo com limite final e estabelecido; c) não pode desviar demais a atenção do texto, seja um romance ou um jornal o que se lê. 104 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada Do lado de cá do texto (ou seja, nem a leitura do antes, tampouco a leitura do texto em si), haveria um tipo de leitura não aceita pela academia, mas existente e, volta e meia, tentando penetrar o sagrado espaço acadêmico. Decerto, não existe interpretação que não seja pessoal, que não seja uma investigação “do leitor”, única e intransferível. Porém, muitas vezes, a leitura torna-se tão pessoal que ultrapassa a condição de uma leitura e de uma interpretação. Isso ocorre quando a leitura vai além dos dados e do discurso do texto lido, o que poderíamos chamar leitura “intimista”, “livre” ou ainda “impressionista”, sem relação com o movimento artístico moderno. Cada leitor lê o texto a seu modo e seria um exercício borgeano ler A ilha do tesouro como um livro de receitas ou como um oráculo. Mas, em sala de aula, tais leituras não são bem-vindas. Do mesmo modo que um romance não deve ser lido como receita, assim é o jornal. De todo modo, a sala de aula é um lugar livre para especulações, mas também para orientação sobre os limites da leitura e da interpretação. Quem lê Clarice Lispector procurando saídas para a vida pessoal faz decerto um exercício fascinante de leitura, mas não exatamente um exercício acadêmico ou de resultados benéficos para a sala de aula. Evidentemente, cada uma dessas análises não pode ser separada simplesmente e isolada. Ao lermos um texto e ao avaliarmos um texto, na verdade mesclamos vários tipos de análise. Desde que haja a pergunta “quem o escreveu?”, estamos procurando um sujeito anterior à leitura, que pode dizer muito a respeito do texto. Isso é mais simples do que imaginamos. A leitura não deixa de lado seu autor, e inclusive utilizamos adjetivos específicos para nos referirmos a um tipo ou a uma modalidade textual: borgiano, rosiano, foucaultiano. Do mesmo modo, enxergamos no jornal uma modalidade, como já citado no começo deste texto, e continuamos com a utilização de expressões adjetivas: jornalístico, televisivo, de revista, da web, editorial (como adjetivo e como substantivo), de lazer, econômico etc. No caso particular de um jornal, valeria lembrar que talvez não conheçamos todos os jornalis- 105 tas, mas não é tão complexo observar que há articulistas, editorialistas especiais, colunistas razoavelmente fixos, cujos textos ganham em sentido quando colocados lado a lado, principalmente se conhecemos o trabalho anterior de quem escreve. Do mesmo modo, se há a pergunta “quando isso foi escrito?”, de algum modo estamos entre o primeiro e o terceiro tipo de análise, tentando uma fixação não arbitrária para o texto, de modo a tentar entender o que é/foi escrito numa determinada época, sabendo de antemão que as épocas diferem entre si e que algo dito numa época não poderia ser dito em outra, do mesmo modo que, se algo é dito exatamente como o foi em outra época, o resultado desse discurso é só aparentemente igual. Então, podemos dizer que a interpretação de um texto tem, sim, a ver com quem o escreveu (seria melhor sabermos quem o escreveu, mas a fonte em que está já ajuda), da mesma forma que o lugar/tempo de onde o texto “fala” nos é importante, desde que não fiquemos analisando a vida particular de autores e jornalistas. Em paralelo, a leitura de um texto prevê certos mecanismos de leitura e de apreciação e ainda de aceitação. Muito se fala sobre o pacto que realizamos com um texto (Umberto Eco, por exemplo, já citado) e do como separamos mentalmente um gênero textual de outro. Na superfície do texto, convivem regras gramaticais, regras de escrita, acordos e convenções que, se rompidos, corrompem não apenas a qualidade do texto como apontam-no como um “não texto”. O texto de jornal em particular tem uma lógica, uma sequência, e as características conhecidas como continuidade e progressão (nomenclatura típica da Linguística Textual) são importantes aliadas na leitura em sala de aula. Quem trabalha gramática, por exemplo, pode se servir dos textos de jornais, que invariavelmente utilizam uma linguagem não erudita, mas via de regra em concordância com a norma culta. Até mesmo erros e deslizes podem ser questionados em sala, sendo o texto do jornal um bom exercício de pontuação. Curto e objetivo, ele pode treinar a ordem direta do português e a dura lida com o ponto e a vírgula. Em 106 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada resumo, o texto em sua formalidade pode ser usado como mecanismo de difusão da norma culta, que o aluno precisa dominar tão bem quanto as demais línguas que utiliza em seu dia a dia. Invariavelmente, o mais complexo na leitura de um texto é a questão discursiva: descobrir e explicar o que atravessa o texto ao nível dos discursos. Nenhum texto é neutro, nenhum texto é vazio ou opaco, pois o texto é o resultado (em sentido exposto por Mikhail Bakhtin) de uma interação entre sujeitos. Quem escreve em um jornal, como já dito, escreve de um lugar físico e de um lugar cultural e o faz em relação a outrem: o leitor. Este leitor está na imaginação do jornalista (ou do escritor, dramaturgo, publicitário, designer gráfico) e o conteúdo da escrita é o resultado das referências de quem escreve – sempre em relação a quem lê. Para Bakhtin, haveria como que três sujeitos no ato da escrita: a) quem escreve, que é uma consciência em particular; b) quem lê, ou seja, para quem é direcionada a escrita; c) outras vozes, que estão amalgamadas ao que se escreve, e que existem antes do texto. Não sendo possível investigar as intenções verdadeiras, concretas, definitivas e acabadas de quem escreve, podemos investigar possibilidades. Não sendo possível descrever “verdadeiramente” as intenções de quem escreve, podemos inferir, tirar conclusões, fazer, então, uma leitura. Penso que a leitura em sala de aula possa ser uma aventura acadêmica e uma aventura que leve os alunos a lugares não antes visitados, mas desde que a leitura entre como processo que impeça a difusão do preconceito, abra portas para novos mundos, exercite a capacidade de entendimento das coisas do mundo, aumente a capacidade de investigação e faça crescer o interesse por leituras mais profundas e menos comerciais e vazias. 107 Para saber mais BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1996. BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção – como a arte reprograma o mundo contemporâneo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística – uma introdução crítica. Tradução de Marcos Marciolino. São Paulo: Parábola, 2002. CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea – uma introdução. Tradução de Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DAMÁSIO, António. O mistério da consciência. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ECO, Umberto. Lector in fabula – a cooperação interpretativa nos textos narrativos. Tradução de Atílio Cancian. São Paulo: Perspetiva, 1986. _____. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 108 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada _____. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo, Loyola, 1996. _____. O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Alpiarça: Passagens, 2000. JOUVE, Vincent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: UNESP, 2002. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2004. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. VAL, Maria da Graça Costa. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 109 Adolescentes Editores de Jornal Professora: Adriana Margarete Rolim da Silva Gonçalves Instituição: Unidade de Educação Integral Abranches Cidade: Curitiba “O trabalho escolar é um equilíbrio entre o esforço e o prazer, instrução e diversão, educação e vida”. Paulo Almeida Apresentar o conhecimento de maneira diferenciada e divertida ao mesmo tempo que mantém a coesão e a disciplina necessárias em uma classe. É com essa preocupação que a professora Adriana Margarete Rolim da Silva Gonçalves, que atua no contraturno da Unidade de Educação Integral Abranches (antigo Piá), prepara suas aulas. Um exercício que a leva, por consequência, a repensar constantemente a sua didática e ainda exercitar a criatividade. E tudo isso para conseguir traduzir os conteúdos para a linguagem dos alunos, tornando-os atraentes ao ponto de favorecer a apropriação da informação e a construção do conhecimento. A proposta é arrojada e faz com que Adriana exerça múltiplas funções simultaneamente. Além de professora, ela também vira um pouco mãe, psicóloga e amiga... Trabalho que vai muito além do contrato para dar aulas, mas nada que assuste tanto que a faça desistir, porque quanto mais se aproxima dos alunos mais consegue atenção e respeito deles, obtendo melhores resultados nas atividades que desenvolve. Nesse processo em constante evolução, o uso do jornal em sala de aula teve um importante papel. Segundo Adriana, leituras e pesquisas com jornal oferecem ao professor uma excelente oportunidade de promover aulas diferentes, instigantes e interativas. Aulas que aceleram o processo cognitivo, favorecem a apropriação dos conhecimentos escolares e a comunicação transversal. Na experiência que vem realizando, Adriana afirma que o destaque fica para a proposta de elaboração de um fanzine (publicação feita com recortes, colagens e jornalismo instintivo). Segundo ela, essa produção a levou a aproximar-se ainda mais os seus alunos, entendendo os interesses e universos pessoais deles. 111 A proposta exige uma maior aproximação com o grupo e, enquanto isso ocorre, Adriana ouve relatos, dúvidas, críticas e o que os estudantes pensam sobre cada assunto. “Isso me permite dialogar com o aluno, conhecê-lo melhor. Aos poucos vou descobrindo que um adolescente, que se sente incompreendido e à margem da sociedade, pode se tornar um sujeito que reconhece suas capacidades intelectuais, afetivas e cognitivas, consciente de sua responsabilidade para consigo e com seus pares”. Mas, segundo ela, para conseguir tais resultados o professor precisa estar disposto a ser um aprendiz em tempo integral. “Não dá para repetir velhas fórmulas. É preciso conhecer a linguagem e as expectativas dos jovens para poder conquistá-los e deles conseguir o melhor”. A receita tem dado certo. Orgulhosa, Adriana todos os anos vê seus alunos sendo premiados em feiras de redação, concursos de frases e de poesias. A prática O fanzine “Quem Somos”, nome escolhido pelos alunos, mostra o mundo da adolescência de forma divertida e em linguagem adequada à percepção do grupo. Publicação semanal coletiva de baixo custo, o fanzine favorece a integração e motiva os alunos à prática de leitura e pesquisa. Seu conteúdo reflete o universo adolescente, com seus questionamentos e certezas, seus gostos musicais e literários, além de publicar depoimentos sobre o cotidiano e ainda um apanhado retrospectivo sobre o que ocorreu na semana anterior. A publicação também prevê a edição de reportagem relacionada à disciplina de História Mundial, com comentários dos jovens sobre aquilo que entenderam, suas pesquisas e considerações. 112 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada Ler é chique Um resultado social do projeto com jornal é a valorização dos alunos, pois muitos deles não têm nenhuma outra condição de acesso ao meio de comunicação. Por ser um veículo que precisa ser comprado, os alunos “acham chique” ler jornal, e isso aumenta sua autoestima. Além disso, como têm oportunidade de ler mais aprofundadamente sobre determinadas notícias, passam a levar as informações para casa, ampliando e qualificando o diálogo com a família. “Estar ‘por dentro’ os faz sentir importantes e aptos a dialogar com outras pessoas”. “Eu achei divertido trabalhar com jornal porque, além de pensar e montar matérias, nos divertimos e aprende- A prática de ler ajuda principalmente a vencer o obstáculo da leitura superficial ou ineficaz, na qual o aluno decodifica as letras e frases, mas não compreende o conteúdo daquilo que está lendo. mos coisas que nós não sabíamos. As coisas mais legais foram: montar um jornal nosso, trabalhar e pesquisar sobre a Segundo Adriana, o jornal facilita a transposição dessa dificuldade e favorece a aquisição de competências importantes, como escrever melhor, usar o dicionário como fonte de pesquisa, para não repetir palavras, e para a substituição de expressões informais, típicas dos jovens, por frases elaboradas. É gratificante ver os alunos passarem a trocar expressões como “Eu acho que...” por ‘Eu penso que...’. ‘Percebe-se’, ‘Entende-se’ e expressões como ‘Tipo assim’ por ‘Semelhante a’”. vida do adolescente, ler sobre política e desenhar um logotipo para nosso fanzine”. Allan Bento Ribeiro, 12 anos 113 Quebra de paradigmas Promover atividades que levem o estudante a pesquisar, questionar e a criticar pressupostos e paradigmas é, segundo Adriana, o grande segredo do sucesso de suas aulas com adolescentes, pois nessa faixa etária todos querem ser ouvidos e desafiar modelos preestabelecidos. “Jovem normalmente fala pouco, escreve pouco, mas pensa muito. Nesse universo, o fanzine surge como uma válvula de escape. É adolescente escrevendo para adolescente, sem medo de expressar-se. E isso tem impacto na atitude de todos”. Segundo a professora, alunos que tinham medo de falar porque achavam que não tinham assunto mudaram o comportamento a partir do fanzine. “Agora eles dialogam e se posicionam de outra maneira, até porque precisam definir e pesquisar sobre o que vai ser publicado no jornal”. Outra evolução percebida é a qualidade textual dos alunos, que ficam mais exigentes e percebem quando falta pontuação, vírgulas e existe repetição de termos. Enfim, demonstram empenho constante em fazer um bom jornal e em transpor para o papel o que entenderam sobre o assunto a fim de serem compreendidos pelos leitores. 114 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada De olho no futuro Adriana não descuida da aprendizagem formal e de exigir o uso da linguagem padrão. “Esclareço que embora o que mais eles usem sejam a internet e o telefone celular – onde as palavras e expressões podem ser cortadas – esses meios não são referências no uso da linguagem formal. E se quiserem vencer na vida, vão precisar continuar estudando e aprender a gostar de ler, expressarse e escrever corretamente. Falo sempre que a linguagem padrão é muito importante em situações como uma entrevista de emprego, no vestibular ou concursos”. Para estimular o aprendizado da linguagem padrão, Adriana promove o acesso não só à leitura de jornal como também a dos livros. O interesse aumentou tanto que a classe ganhou uma minibiblioteca. “Quando terminamos uma atividade, é comum o aluno pedir um livro para ler e ainda tem aqueles que passam o recreio lendo algum livro”. A leitura literária alimenta o círculo virtuoso de relacionamento entre a professora e os alunos. “Muitos tidos como machistas pedem para ler livros de poesia. Eles me surpreendem o tempo todo e isso é muito gratificante”. ‘‘Trabalhar com jornal é fantástico, você cria a sua própria matéria, com as suas palavras. Conhece novas coisas e a linguagem melhora muito. Utilizar o jornal foi uma experiência muito boa no meu desempenho escolar também. Com uma conversa mais culta eu posso conseguir um futuro melhor, uma carreira melhor’’. Jéssica Teleginski de Oliveira, 12 anos 115 Ética e cidadania Melhor entendimento sobre cidadania, ética, trabalho em equipe e respeito à opinião alheia também são resultados importantes registrado pelo projeto fanzine. De acordo com a professora Adriana, trabalhar temas como direitos e deveres, juízo de valor ou limites usando como referência os conteúdos a serem publicados no jornal faz com que os alunos exercitem a democracia e construam referências importantes. Afinal, nem tudo o que os alunos pensam ou querem pode ser publicado – até por uma questão de espaço físico do jornal. A discussão dos temas não está explícita no desenho nem faz parte dos resultados tangíveis do projeto, mas vai aparecendo aos poucos, ao longo do processo, porque os alunos passam a exigir mais de si mesmos antes de emitir opiniões, debater e defender ideias sobre assuntos que pretendem publicar. Um bom exemplo ocorreu durante a produção do fanzine sobre moda e comportamento. A edição exigiu que todos pesquisassem acerca de estilos, moda e tribos que se identificam por determinado tipo de roupa. A partir daí, os alunos conseguiram respeitar a diversidade e reduzir seus preconceitos. 116 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada Professora Adriana e alunos decidem juntos os temas que farão parte do fanzine. Produção dos fanzines melhorou a qualidade textual dos alunos e do diálogo em sala de aula. 117 Capítulo 6 Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação Não há como interpretar uma informação ignorando a forma como a mesma é percebida pelo indivíduo receptor, suas referências e relações sociais. Toda comunicação – especialmente aquela intermediada por um veículo, seja jornal, rádio, televisão ou internet – pressupõe um receptor capaz de desvendar mensagens, promover elaborações culturais e chegar à construção de relações entre a informação à que tem acesso e o seu próprio universo social. Neste capítulo, o tema é tratado pela doutoranda em Educação Marlei Gomes da Silva Malinoski, professora da Secretaria Estadual de Educação do Paraná e da Universidade Tuiuti do Paraná. Marlei, que também responde pela Coordenadoria de Integração das Licenciaturas da Universidade Tuiuti do Paraná, trabalha com disciplinas e conteúdos que envolvem leitura, letramento, paradigmas, ensino de língua e linguagem, práticas pedagógicas e formação docente. Em sua abordagem na escola, o tema Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação é visto sob a ótica da professora e coordenadora Mary Lucia Medeiros Baldança, da Unidade de Educação Integral Dr. Osvaldo Cruz , em Curitiba. Produzir um jornal gigante foi uma das propostas de Mary para levar os alunos do contraturno a analisarem e refletirem sobre as informações publicadas no jornal. Segundo a professora, ao deixar os alunos livres para folhear, ler, manusear e discutir entre eles o que será publicado no Jornal Gigante, cria-se um espaço efetivo para trabalhar as referências e relações sociais, individuais e coletivas, porque todos são estimulados a expor o que entendem e o que esperam de cada um dos assuntos em pauta. 119 Novas referências para o saber Marlei Gomes da Silva Malinoski Os discursos “oficiais” escolares reforçam a ideia de que ler é uma questão de hábito ou gosto, adquirido por vontade individual, independentemente dos vínculos sociais estabelecidos pelo sujeito. O que demonstra uma interpretação equivocada, pois não há como interpretar uma informação ignorando a forma como essa se processa no indivíduo e nas suas relações com a cultura. São as práticas de leitura que favorecerão a comunicação e a apropriação de recursos cada vez maiores de compreensão e reelaboração de textos, mas não somente a prática de ler o escrito e sim expor-se a diversas formas de leituras, práticas reais e delas extrair contextos relacionados à sua forma de comunicação social. Se pensarmos na leitura como um fenômeno social – por sua vez é representado de forma simbólica – compreenderemos que o hábito de leitura não existe e sim o habitus do leitor. Esta não é uma característica inata do indivíduo, é uma determinação de trocas significativas de cultura entre pares sociais que, naturalmente, determinarão a percepção, aceitação ou refutação do lido. Para melhor compreender a possibilidade de se realizar trocas significativas de cultura no ato de ler, exemplificaremos com a leitura do jornal, não pressupondo apenas o caráter informacional do mesmo e sim abordando a potencialidade de troca cultural encontrada em suas páginas. 120 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação No jornal observamos que a leitura se torna um processo de apropriação do conhecimento, pois obedece às mesmas leis de outras práticas culturais, ou seja, organização, seleção, critério, associação cultural e informação. A organização parte do conhecimento do indivíduo sobre a estrutura apresentada no texto lido e assim dela extrair a informação. Assim, comunicação de um conto e de uma crônica, ou de uma notícia e de um classificado se dará quanto melhor o indivíduo puder interagir com sua estrutura e assim perceber a organização da informação comunicada. A seleção está diretamente relacionada à organização, uma vez conhecendo a organização do veículo comunicativo o leitor poderá buscar a informação desejada e comprovar ou refutar ideias, relacionando-as com outras informações selecionadas. A capacidade de relacionar informações confere ao leitor à possibilidade de estabelecer um critério de confiabilidade da informação, uma vez que poderá checar a articulação da informação selecionada. Mas será a capacidade de associar a informação com o universo cultural do leitor, que possibilitará a efetivação da comunicação entre a intenção do produtor da informação, o lido e o leitor. Pois não há como interpretar uma informação, ignorando a forma como essa se processa no indivíduo e nas suas relações sociais. O veículo de comunicação jornal organiza práticas sociais de elaborações culturais, que partem desde a seleção por cadernos, sessão e notícia até a construção de relações da informação com o universo social do leitor. Ler é uma forma de pensar o mundo com base nas nossas escolhas e descortinada pela nossa forma de atribuir cultura e informação ao caráter comunicativa da mensagem. 121 O caráter comunicativo da mensagem sugere, assim, um repensar sobre a leitura. Enfatizando um olhar sobre a cultura presente no ato de ler, será que o dito fracasso escolar nas práticas de leitura e escrita não estaria justamente nas formas de representação do sentido da leitura dado pelas práticas educacionais e a didatização do lido? Ao se considerar que a ideia principal, o resumo e a síntese se constroem no processo da leitura e são produtos da interação entre os propósitos que causam, o conhecimento prévio do leitor e a informação aportada pelo texto, consideraremos que a leitura se realiza, então, na convergência do texto com o leitor. O discurso escrito tem, forçosamente, um caráter virtual e político, pois não pode ser reduzido nem à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do leitor. Político, sim, pois o ato de ler só se efetiva quando houver um encontro entre leitor e texto. E as ideologias que os perpassam na busca do significado, que se edificam nas formas simbólicas estruturadas pelas sociedades em tempos e contextos delineados possibilitarão o ler e o compreender. Ler e compreender são palavras que podem se relacionar a várias acepções semânticas, diretamente relacionadas ao pensamento daquele que as produzir. São palavras, e, antes mesmo de defini-las, torna-se importante ressaltar sua implicação como tal. A forma como se pensa uma palavra é que constrói o seu significado. Não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera diante de um novo significado, mas o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma palavra. Assim, as implicações do ato de ler, para uma sociedade, estão relacionadas às implicações políticas e à compreensão crítica do ato, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipam e se alongam na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, como já enun- 122 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação ciado por Paulo Freire: ˝(...) a leitura crítica da realidade, dando-se, num processo de alfabetização ou não e associada, sobretudo a certas práticas, claramente políticas de mobilização e de organização, pode constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica˝. (FREIRE, 2003). Defini-se, então, uma perspectiva interativa para o ensino da leitura, pautada nas experiências prévias do leitor sobre o lido, que envolverão sua compreensão semântica da palavra, abarcando significação, decodificação e estruturas textuais. Nossas experiências, como leitores, antecipam nossa leitura, visto que conforme a tipologia textual, nossa familiaridade com o texto e o reconhecimento do universo discursivo é que estabeleceremos relações leitoras maiores. São nossas familiaridades com textos diversos em múltiplos gêneros, que quanto maiores mais ampliarão nossas representações sobre o lido. Ler passa a ser o processo pelo qual se compreende a língua escrita. Pois envolve a decodificação – quanto mais significativa e familiarizada, melhor; a inferência – determinada pela proximidade conceitual entre o texto e o leitor e as suposições promovidas por ambas a respeito do texto. Assim, o leitor quanto mais familiarizado com o texto será capaz de prever fatos ou até mesmo impor inferências na ordem que se dará a estrutura textual. Para Bourdieu, a leitura pode ser substituída por uma série de palavras que designa uma espécie de consumo cultural ou pré-saberes. São esses pré-saberes que auxiliam o processo de letramento do indivíduo. O autor vê a linguagem de modo privilegiado na comunicação da sociedade. Os grupos sociais se comunicam pela parte comum de seus códigos que será mais aclarada quanto mais relações possam fazer. 123 Ou seja, quanto mais suas agências de letramento se entrecruzem em um momento de significação e intervenção. Os pré-saberes são importantes porque, conforme Bakhtin (2001) não se pode observar apenas a natureza do enunciado linguístico, uma vez que observar-se-ia mero formalismo e não o vínculo forte entre língua e vida. Existe a necessidade de interação com o verbal, e a compreensão leitora deve privilegiar a natureza do ato leitor. A palavra torna-se, segundo Iser (1996) e Bakhtin (2000), o código comum que assegura a recepção de uma determinada mensagem. Porém, o código só constitui o texto quando se estabelece, em potencial cognitivo, o sentido da obra. Então, o ato de ler se relaciona com a consciência sobre o lido e a consciência estabelecida ao se escrever. É o encontro de duas necessidades, a de conhecer e a de se registrar. Há também o encontro ideológico, pois a inferência de uma palavra dentro de uma mensagem depende da caracterização da mensagem no contexto à qual pertence, em que inferir significa concluir um significado pertinente a um conceito. Com base em um ensino de leitura descendente, em que se privilegie o universo cultural do aluno, Colomer e Camps (2002) sugerem algumas condições para o ensino produtivo e significativo. Primeiro é fundamental partir do que os alunos sabem e ter consciência de que a escolarização permite ampliar experiências sobre o mundo e não reduzi-las. Lembrar que a escrita é uma modalidade de comunicação (abstrata) que deve ser interpretada como tal, não substitui a modalidade oral, mas se agrega a conhecimentos prévios. Dessa forma, não é o texto que tem sentido e sim as inferências do leitor sobre o texto. Não é o que o texto quis dizer, pois esse é mudo, e sim é o que o leitor depreende de informação, relacionada ao seu contexto, do texto. É o que o leitor tem a dizer sobre o texto. 124 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação Em um segundo momento, deve-se favorecer a comunicação multirreferencial. A linguagem escrita deve ser descortinada em sua potencialidade simbólica. Por isso as produções devem apresentar um universo múltiplo de possibilidades, sejam reais ou imaginativas, ideários construídos apenas pela possibilidade da linguagem. Lembrando que a linguagem é uma construção social e sua interpretação comunicativa dependerá das interpretações do leitor. No terceiro momento, familiarizar os alunos com a escrita e criar uma relação positiva com o escrito: não representamos a escrita reduzida a um universo apenas de gênero ou tipo. Não lemos um texto jornalístico da mesma forma que lemos um romance e nem como lemos um poema. A leitura de cada um exige uma estratégia e requer do leitor um número de estruturas e processos diferenciados. A criança deve estabelecer uma relação afetiva com o texto escrito e de forma a reconhecê-lo em diversos gêneros e veículos. Além de reconhecê-lo, deve experimentá-lo em situações de publicação (compreender a palavra publicação como tornar público – social – integrado a práticas de comunicação). Em um quarto momento fomentar a consciência metalinguística, não esquecendo que o ato de ler se trata de um processo, que inicia na compreensão do código e suas regras e estruturas, então ler é compreender regras e estruturas, que também são acordos sociais para estabelecer a melhor forma de comunicabilidade. A criança deve reconhecer as micro e as macroestruturas de um texto, ou seja, da sílaba à frase, e como essa se contextualiza e significa em um universo estruturado de texto. O quinto momento está em utilizar textos concebidos para a sua leitura e não “montados” para aferir capacidade de decodificação e localização de ideias desconexas. Lembrar que ler é uma prática social, por isso não devemos simular ambientes ou veículos de leitura. A leitura 125 se distancia de práticas orais à medida que se estrutura como uma forma simbólica e complexa. Adaptar textos é restringir a potencialidade leitora do indivíduo. No sexto momento oferecer experiências com textos e leituras diversos, independentes da idade e sim relacionados à maturidade do leitor. Oficialmente aprendemos a ler da mesma maneira, porém o ato de ler requer conhecimentos e práticas linguísticas diversos. Não lemos um romance da mesma forma que um poema, ou da mesma forma que buscamos uma palavra em um dicionário, como já foi dito, mas nossas experiências em simples ações como essas dependerão do quanto essas práticas se relacionaram em nosso cotidiano. O sétimo momento está mais para um alerta, pois devemos compreender que ler não significa oralizar e sim interagir e agir. A leitura não é um ato isolado ou uma técnica de avaliação qualitativa ou quantitativa da aprendizagem do ler. Ler pode e deve ser uma forma de apropriar-se de um determinado conhecimento, que não significa oralizálo literalmente. Mas agir sobre ele em um contexto de comunicação, que pode ser até a compreensão de outras leituras. Por isso, a leitura em voz alta deve ir além da capacidade decodificadora do leitor; deve expor sua compreensão leitora, que será percebida na interação desse com o texto, ao se presenciar as pontuações expressivas como elemento de compreensão e indagação sobre o lido. Assim, a escolarização deve fornecer aos alunos um âmbito de alfabetização para o letramento configurado por contextos significativos de aprendizagem, funcionais e relevantes, que ofereçam experiências organizadas que fundamentem a vivência da leitura. A informação, trazida pela leitura, deve estar relacionada à contextualização, o que requer uma seletividade do leitor, que está baseada na qualidade e na utilidade do material apresentado como elemento 126 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação passível de comunicabilidade. O ensino deve inserir elementos novos à forma de linguagem que o aluno já possui, acomodando e expandindo seu conhecimento a respeito da sua forma de percepção das variantes linguísticas e discursivas apresentadas pelo texto. O ensino da leitura e da compreensão busca desenvolver a autonomia do sujeito, para que ele seja capaz de construir conceitos pertinentes ao texto lido e assim tornar-se capaz de elaborar a crítica. Dentro de uma possibilidade abrangente do diálogo, capaz de inferir à mensagem conhecimento, habilidades, valores e atitudes diante da mensagem decodificada e do contexto da linguagem, possibilitando a efetivação da comunicação entre os sujeitos e a emancipação da cultura e do compreender o escrito. Ao compreender o escrito o homem consegue ordenar sua história, que se torna linear e cronológica. O conhecimento passa a poder ser sistematizado, racionalizado. O ato de compreender o lido passa a ser uma tecnologia intelectual que teria um papel fundamental no estabelecimento de novas referências para a constituição do saber. A leitura na escola deve ser percebida como um meio de realização da aprendizagem e não como um objeto do conhecimento. O texto, e nele o literário, passa a ser uma forma de ser do homem no mundo, um posicionamento leitor. Retomando o termo utilizado por Jouve (2002), a relação do leitor com o texto não é um epifenômeno. Não há mágica ou divindade, o que existe é um trabalho de significação. Ler está relacionado às inferências que o texto produz para e no leitor; identificar é apenas um dos processos da leitura, que não abrange o seu todo, caracteriza-se como ferramenta inicial, que sozinha, desvinculada do contexto social e das inferências produzidas pelo leitor, torna-se um ato vazio. 127 Para saber mais BAGNO, Marcos. Língua Materna: Letramento, variação e ensino/ Marcos Bagno, Gilles Gagné, Michael Stubbs. São Paulo: Parábola Editorial, 2002. BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2002. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5.ª ed. São Paulo: Annablume, 2002. BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas: introdução organização e seleção Sergio Miceli. 5.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. BOURDIEU, Pierre; PAIRE, Alain; CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. 2.ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. BRITTO, Luiz Percival Leme. A Sombra do Caos: Ensino de Língua X Tradição Gramatical. Campinas. Mercado das Letras. Associação de Leitura do Brasil. Coleção Leituras no Brasil. 2004. COLOMER, Teresa; CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Porto Alegre: Artmed, 2002. FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo. Cortez, 2003 a. 128 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação GERALDI, João Wanderley (org.). O Texto na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 2002. GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ISER, Wolfgang. O ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Joannes Kretschmer – São Paulo: Ed. 34, 1996. JOUVE, Vincente. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002. KLEIMAN, Ângela B. (org.). Os Significados do Letramento. São Paulo: Mercado das Letras, 2001. MAGNANI, Maria do Rosário. Leitura, Literatura e Escola. São Paulo: Martins Fontes, 1989. MESERANI, S. O intertexto Escolar: sobre leitura, aula e redação. São Paulo: Cortez, 1998. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 129 Por um mundo menos desigual Professora: Mary Lucia Medeiros Baldança Instituição: Unidade de Educação Integral Dr. Osvaldo Cruz Cidade: Curitiba “Num tempo em que a esperança parece cada vez mais escassa, é fundamental reavivar nossa confiança em dias melhores”. Gabriel Chalita Formar cidadãos críticos e contribuir para um mundo menos desigual é o desafio que Mary Lucia Medeiros Baldança criou para si mesma e, embora seja gigante, ela garante que registra resultados efetivos. Professora e coordenadora da Unidade de Educação Integral Contraturno Dr. Osvaldo Cruz, em Curitiba, Mary Lucia explica e justifica o desafio no perfil de seus alunos. Oriundos, em sua grande maioria, de famílias de baixa renda e escolaridade, que residem em áreas de ocupação irregular e têm renda proveniente do trabalho na construção civil ou na reciclagem de materiais, as crianças apresentam dificuldade de aprendizagem e são acompanhadas por programas sociais do governo. Consciente da necessidade de oferecer apoio pedagógico e social aos alunos da sua turma, desde 2009 a professora Mary Lucia vem incorporando o jornal no planejamento de suas aulas, mas a atividade não é novidade na escola, que recebe e trabalha com o jornal desde 2003. Uma das iniciativas que mais deram resultado na classe foi a produção de um jornal gigante, que levou os alunos a apresentarem uma grande evolução quanto ao apreço pela leitura, ampliação do vocabulário, melhora na produção escrita, interpretação de textos e, é claro, comportamento cidadão. “Eles aprendem a posicionar-se, exercitam a reflexão, problematizam as questões da sociedade e demonstram muito interesse em melhorar de vida. E sabem que para isso terão de continuar estudando”, diz a orgulhosa professora. Tantos avanços transformaram Mary Lucia numa apaixonada por jornal. Atualmente na função de coordenadora, ela mobiliza e organiza 131 com os professores o planejamento das aulas trabalhando com o jornal. “As mídias podem e devem ser aproveitadas no processo educativo, desde que na sua finalidade esteja o compromisso com a formação crítica do sujeito com um mundo menos desigual.Necessitamos quebrar paradigmas e valores cristalizados que enrijecem a prática educativa. É preciso abrir a sala de aula para o mundo, onde o aluno enriqueça sua experiência de vida, aprenda a ser responsável por suas palavras, em relação a si e ao meio em que está circunscrito e ao mundo”. A prática O Jornal Gigante é uma atividade de envolvimento. Exige um efetivo trabalho em equipe, baseado no respeito às opiniões. Tudo começa com a apresentação detalhada do jornal e explicação da sua função social. O momento seguinte é de familiarização com as editorias. A professora deixa os alunos livres para folhear, ler, manusear e discutir entre eles. Na sequência, os alunos selecionam as matérias que mais chamaram a atenção, registram o dia, recortam e começam a formar o Jornal Gigante, que segue a proposta do jornal convencional. Chega, enfim, o momento da apresentação. Todas as equipes apresentam seus jornais gigantes, explicando e expondo suas opiniões sobre os textos, notícias, fatos ou fotos que selecionaram. 132 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação Avanço no Ideb O resultado do trabalho de educação social desenvolvido por Mary Lucia e outros professores tem influenciado o comportamento e mudado a realidade do Contraturno Dr. Osvaldo Cruz. De um quadro de grande rotatividade de alunos registrado em anos anteriores, a escola chegou a 2010 comemorando um índice de evasão menor que 1%. Paralelamente, a escola também registrou um avanço no desempenho registrado pela pesquisa Ideb – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, saltando da nota 3,8 em 2005 para 5,1 em 2007, e 5,4 em 2009. Os professores garantem que o trabalho realizado com o jornal, que vem acontecendo desde 2003 na escola, tem colaborado para esses avanços. “O ato de ler e escrever ganha significado quando aproximamos a informação da realidade dos anos. A partir de atividades como redigir uma notícia, criar um anúncio, fazer uma pesquisa na hemeroteca, confeccionar um jornal gigante e analisar imagens e fatos, os alunos são estimulados a emitir opiniões, perceber novas possibilidades e entender a importância do conhecimento. No trabalho com o jornal estimulamos as competências de ler, escrever e interpretar o mundo. E o melhor, é que tudo isso pode ser feito concomitantemente, sem perdermos o horizonte dos conteúdos disciplinares”. “As aulas com o jornal são divertidas e aprendemos bastante. Gosto de ler notícias da área de Ciências e fico preocupada em saber que o ar está poluído e que as florestas estão pegando fogo”. Mayane Iris Soares Alves, 10 anos 133 Abrir a sala para o mundo Educar para cidadania é contribuir para a construção de um mundo melhor. E a professora Mary Lucia destaca os três principais impactos percebidos ao longo do desenvolvimento do projeto com jornal: maior autonomia, maior criticidade e melhoria na linguagem oral e escrita. A autonomia das crianças, explica ela, é adquirida durante as atividades, que normalmente exigem decisão sobre o quê e quando ler. Já a criticidade vai sendo construída aos poucos, à medida que a criança se familiariza com a leitura e discute com os colegas. “Aos poucos eles vão descobrindo a função social do jornal, que é contribuir efetivamente para a formação de sujeitos que reflitam e proponham encaminhamentos para as problemáticas locais e do mundo. Atuando responsavelmente na realidade em que vive”. Já os impactos sobre a linguagem oral e escrita aparecem como consequência direta da leitura. “Tanto a hemeroteca quanto o Jornal Gigante e outras atividades com o jornal que realizamos podem e devem ser repetidos, para que os alunos possam avançar em todos os aspectos e objetivos do projeto: autonomia, criticidade e crescimento na linguagem oral e escrita”. 134 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação Uma nova realidade A professora lembra que, assim como o jornal, outros meios de comunicação atendem hoje à necessidade de criar novas formas de organizar e transmitir o conhecimento. Afinal, lembra ela, os alunos diariamente estão sendo impactados pelos meios de comunicação e tecnologias. “Eles, por exemplo, vivem recebendo e enviando textos pelo celular. O celular os conecta com o mundo. Diante de coisas como essas, não dá para dar aulas exatamente como antes da ‘revolução tecnológica’”. Mary Lucia acredita que os professores que estão hoje exercendo o magistério precisam ficar atentos à evolução do modelo, comportamentos e estrutura social, porque só assim vão garantir a efetividade do seu trabalho. “E isso exige leitura, aprender todo o dia, investir na formação continuada, e ter humildade para avaliar seu trabalho e mudar sempre que necessário”. “Em todas as profissões, as pessoas são permanentemente exigidas em aperfeiçoamento e qualificação. Por que no magistério seria diferente? Nós, professores precisamos agir assim se estivermos efetivamente comprometidos com o nosso papel social e nos sentimos responsáveis pela formação dos pequenos cidadãos”. “É bom observar e saber o que está acontecendo no país e no planeta. O jornal ajuda a gente a entender melhor o que aprende nas aulas. Fotos, tirinhas e charges também trazem muita informação”. Matheus Felipe de Góis da Silva, 10 anos 135 Via de mão dupla Em sala de aula, são inúmeras as práticas que Mary Lucia desenvolve usando o jornal. Todas elas voltadas à promoção da leitura significativa e contextualizada. “Esse tipo de proposta leva os alunos a se perceberem no mundo e terem uma melhor compreensão da realidade. É um exercício que mobiliza tanto quem ensina quanto quem aprende. Ou seja, o professor precisa estar disposto ao debate, ver suas posições contestadas e a não se posicionar como ‘dono da verdade’”. Ela lembra que o destino didático do jornal aproxima a escola do mundo, exatamente porque amplia os níveis de compreensão, oferece uma variedade de informações e contribui efetivamente para que o aluno perceba e desempenhe com criticidade um conjunto de atividades associadas ao seu papel social. Por tudo isso, Mary Lucia não acreditar em fórmulas prontas. “Devemos sempre diversificar, surpreender e arriscar. Nem sempre dá certo, mas é somente com os erros e acertos que o professor vai aprimorando e alimentando seu trabalho”. 136 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação Atividades com o jornal resultam na ampliação do vocabulário e melhoram a produção escrita. Jornal Gigante tornou-se uma atividade de envolvimento e trabalho em equipe baseada no respeito às opiniões. 137 Capítulo 7 Leituras, Literaturas e Escola Este capítulo, que é dedicado à análise comparativa entre o texto verbal e o texto literário, parte do pressuposto de que todo o texto é uma ocorrência linguística, escrita ou falada, de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal. Ou seja, há uma unidade de linguagem em uso e essa unidade precisa ser compreendida e trabalhada no ambiente escolar. O ensaio sobre o tema em questão é de responsabilidade de Catia Toledo Mendonça, doutora em Estudos Literários, com tese defendida sobre a importância da leitura da série “Vagalume” no processo de formação do leitor. Professora adjunta na PUCPR onde coordena o curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa e Literatura Infantil nas séries iniciais, Catia analisa a leitura de texto verbal em sala de aula, em particular a leitura do texto literário, e faz ainda uma reflexão sobre a necessidade de a escola trabalhar textos diversificados. Para Catia, o texto literário não está em sala de aula do modo como deveria nem com a constância necessária. A prática que exemplifica a análise coube a Expedita Estevão da Silva, da Escola Municipal Augusto Staben, de Campina Grande do Sul. Com experiência de vinte anos no magistério, a professora revela o esforço de diminuir as diferenças no processo de democratização da informação e na promoção da leitura em escolas públicas. Expedita, que já atuou como professora, coordenadora e supervisora, afirma que, independentemente da função exercida, sempre procurou inovar. Com isso ganhou a atenção dos alunos, a admiração de outros professores e o agradecimento dos pais. Um trabalho reconhecido e premiado na edição 2009 do Concurso Cultural Ler e Pensar. 139 Ler é atribuir sentidos Catia Toledo Mendonça Ler é atribuir sentidos. Esse é o conceito de leitura com que se trabalha hoje. É inegável a importância da leitura na formação do sujeito e, a partir da ideia de que o sujeito se constrói no discurso do outro, difundida por Bakthin, faz-se a proposta de revisão do exercício da leitura na escola. Vê-se a necessidade de a escola fornecer aos alunos textos em maior quantidade, de naturezas e linguagens diferentes. Dessa necessidade vem a consciência de se trabalhar a aquisição da leitura de textos que exigem habilidades leitoras diferentes. Dependendo da linguagem utilizada na produção do texto, serão necessárias habilidades diferentes para que seja feita a leitura. Fala-se, então, em leitura de múltiplas linguagens; assim, textos pictóricos, musicais e verbais já convivem na escola brasileira. Neste ensaio, no entanto, deseja-se discutir a leitura do texto verbal em sala de aula; em particular, a leitura do texto literário, que, segundo a opinião desta autora, não está em sala de aula nem do modo como deveria, nem com a constância necessária. Também será parte da reflexão desenvolvida aqui o questionamento sobre a leitura do texto paradidático em sala de aula, frequentemente confundido, pelos professores, com o texto literário. A seleção dos textos a serem lidos na escola brasileira depende, diretamente, dos conceitos de criança, de literatura infantil e de escola, que se desenvolveram, principalmente, a partir do final do século XIX. Naquela época, a criança era vista como um ser sem autonomia alguma, como uma página em branco, que deveria ser controlada e pre- 140 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola enchida pelo adulto. Nesse sentido, o papel da escola era selecionar os conteúdos a serem assimilados pelos alunos, que obedeceriam às determinações dos adultos. Os textos escritos para crianças eram, então, suportes nos quais a ideologia da época era claramente difundida. Tem-se, portanto, a legitimidade de textos, por exemplo, de Olavo Bilac, como A Pátria, em que o poema, impecável quanto à forma, é utilizado para ensinar às crianças as noções de patriotismo, trabalho e progresso, ideologia obviamente positivista e que ditou os caminhos da Literatura e da Escola brasileiras no século XIX, além de, claro, estar presente nos dizeres de nossa bandeira: Ordem e Progresso! A obra literária destinada a crianças, a exemplo dos critérios antes utilizados pela crítica literária, principalmente na pessoa de Sílvio Romero, visa à construção da identidade nacional e, por isso, tinha em seu aspecto pedagógico um critério determinante da qualidade literária. A função pedagógica que caracterizava as obras produzidas nesse período permaneceu presente na maioria das obras escritas para crianças no Brasil, na primeira metade do século XX, e foi marcante, inclusive, na obra lobateana. Monteiro Lobato, o grande nome da literatura infantil brasileira, tinha por meta tornar a escola brasileira um lugar mais agradável para a infância. Adepto da Escola Nova, tendência que foi implantada no país nas primeiras décadas do século XX, Lobato conjuga fantasia e conteúdo programático em várias de suas obras, como Emília no país da gramática ou Aritmética da Emília, livros em que os netos de Dona Benta, o Visconde de Sabugosa, Emília e Quindim aprendem brincando os conceitos que deveriam ser passados pelos professores, na escola, de forma convencional. A grande diferença dos textos lobateanos para as outras obras da época é o compromisso do autor com uma escola em que o conhecimento se alie ao prazer, em que a criança seja vista como um ser capaz de gerar conhecimento e o professor, um agente desse processo. Essa teoria pode ser verificada facilmente na obra de Lobato, pois as crianças participam das conversas, questionam, acrescentam ao conhecimento do adulto – seja 141 ele Dona Benta ou Tia Nastácia – os seus próprios saberes. Ou seja: a criança não é mais um ser em branco, que a escola e a literatura, como agentes ideológicos, devem preencher. Na década de setenta do século XX, com a difusão das ideias piageteanas sobre a criança e com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases 5.692, que torna obrigatória a leitura de autores nacionais nas escolas, acontece o chamado “boom” da literatura infanto-juvenil brasileira. Com o engajamento de novos autores, que não se colocam a serviço da escola, a literatura infantil começa a ser vista como um texto autônomo, o que pode ser percebido com as novas tendências textuais registradas então. Edmir Perroti, em sua obra O texto sedutor na literatura infantil, de 1982, assinala a presença do discurso estético ao lado do utilitário, usado até então na produção da literatura infantil. Nomes como Ligya Bojunga Nunes – ganhadora do Prêmio Hans Cristhian Andersen, o Nobel da literatura infantil – Marina Colasanti, Ana Maria Machado e Bartolomeu Campos de Queirós são apontados como autores que privilegiam o discurso estético, apesar das exigências da escola, e caminham na contramão da literatura de mercado. Nesse sentido, as ligações entre pedagogia e literatura começam a ser condenadas no texto de Literatura Infantil, que tem, então, como critérios de literariedade os mesmos utilizados para a leitura do texto literário adulto, a chamada literatura sem adjetivos. Desde então, a visão literária em relação à seleção dos textos para leitura na Escola tem se afastado bastante daquela que os professores formados no curso de Pedagogia têm. Essas divergências de formação se espelham no dia a dia das salas de aula de nosso país, onde a leitura instrumental prevalece sobre a literária, uma vez que a perspectiva pragmática da Pedagogia é a que está na formação do professor que atua nas séries iniciais. Assim, apesar dos esforços dos críticos de literatura infantil, temos, na escola 142 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola brasileira, no quesito leitura literária, um retorno à perspectiva do início do século XX, quando um texto era julgado por sua capacidade de ensinar, passar valores, ideologias. Os critérios literários, como a forma a linguagem é utilizada, os desvios do lugar comum, a perspectiva da “arte da palavra” não são levados em conta quando da escolha dos textos e dos livros selecionados. Por tudo isso nossos alunos não têm contato com o verdadeiro texto literário, a não ser por meio de alguns fragmentos, que aparecem em livros didáticos, geralmente desviados de sua condição literária para servir de ponto de partida para o estudo gramatical. É o famoso texto usado como pretexto, que não ensina nada, já que essa não é a natureza do texto literário, e nem contribui para a formação do leitor, uma vez que seus aspectos literários não são explorados e, portanto, não se ensina a ler o texto literário através de fragmentos. Sabe-se que cada tipo de texto exige habilidades diferentes em sua leitura. Desse modo, é justo afirmar que o texto literário exige habilidades diferentes para sua leitura daquelas que exige, por exemplo, o texto informativo ou pedagógico. A leitura desses textos – chamada de instrumental porque serve como instrumento para alcançar alguma coisa – exige o conhecimento do idioma, a capacidade de decifrar o código, mas não exige, como o texto literário, o preenchimento de tantos espaços, deixados pelo autor para que o leitor se torne coautor de texto, como determina a Estética da Recepção. O professor das séries iniciais deveria ser capaz de ensinar aos alunos os caminhos para preencher essas lacunas, ensinar a estabelecer as relações necessárias para a compreensão da leitura que está fazendo. Nesse sentido, Vera Aguiar e Glória Bordini, na obra A formação do leitor: alternativas metodológicas, enfatizam a importância de, no Ensino Fundamental, criar-se um repertório de textos literários para os alunos, que lhes permita selecionar, “catar” o significado de um novo texto que se constrói no diálogo com o outro. 143 Na perspectiva do letramento literário, o papel do professor é o de mediador de leitura. Ele deverá ser aquele que tomará a mão do leitor e o guiará pelos bosques da ficção, como o leitor-modelo preconizado por Umberto Eco. É necessário que o professor letre seus alunos em relação ao texto literário, que elabore um programa em que o processo de formação do leitor seja a preocupação, e não apenas a leitura feita no contexto geral do conteúdo da escola. Embora não se deseje estipular faixas etárias limitadoras aos leitores, sabe-se que mesmo grandes autores, como Bartolomeu Campos de Queirós, que afirma não escrever necessariamente para criança, têm textos de complexidades diferentes. Então, não se pode considerar que o leitor de Cavaleiros das sete luas seja o mesmo de O Piolho, ambos de Queirós. No primeiro texto, elaborado em refinada linguagem conotativa, encontram-se referências aos diversos mitos, principalmente da mitologia grega, como Gaia, Flora e Moira, e a constância da numerologia, referente aos números sete, quatro e três, principalmente. Um neoleitor infantil certamente não será capaz de perceber as entrelinhas, não entenderá as metáforas constantes no texto. Nesse caso, tem-se como leitor-modelo da obra de Bartolomeu Campos de Queirós um leitor já em desenvolvimento, que tenha em seu repertório o contato com o texto poético, com a mitologia e com a linguagem figurada. O mesmo não acontece com o texto O Piolho, em que se percebe a concepção defendida por José Paulo Paes, de que “poesia é brincar com as palavras” (PAES, 2007). Os jogos sonoros elaborados a partir da palavra piolho (olho, repolho, piolho) são apropriados a um leitor ainda em início de formação, que não será chamado a fazer tantas relações como aquelas necessárias para a leitura de Cavaleiro das sete luas. Um professor que tenha o processo de formação do leitor em mente ao elaborar seu planejamento conhecerá a necessidade de graduar as dificuldades apresentadas nos textos de forma crescente, assim como não pode perder de vista a possibilidade de colocar o aluno em conta- 144 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola to com textos mais diversos possíveis, e não apenas expô-lo ao texto informativo. José Paulo Paes chama esse crescer em dificuldades do texto literário de teoria do degrau (PAES, 1990). Ou seja, o leitor deve permanecer sempre subindo, vencendo novas dificuldades, galgando novos degraus. Nesse sentido, é necessário, antes de tudo, que a escola não se renda ao que chamo de “ditadura do gosto”. Ao se tentar “despertar o gosto pela leitura”, são apresentados aos alunos textos facilitados, que não exigem do leitor grande esforço. Esses textos, que são adequados para as séries iniciais, se mantidos ao longo das séries, além de não desenvolver novas habilidades leitoras, também não apresentam desafios ao leitor que, cansado da mesmice, tende a desinteressar-se pela leitura. Ao traçar etapas de um processo, o professor deve considerar a variedade de gêneros, de tipos textuais, mas também deve considerar, dentro de cada um, as dificuldades crescentes. Além disso, a incursão por novas experiências estéticas permite que o leitor conheça novas formas de dizer, conheça o texto rico em imagens e perceba as formas como a literatura elabora a linguagem. Nesse sentido, a leitura literária se torna fundamental. Além disso, se o letramento literário não garante que o leitor seja capaz de ler qualquer outro tipo de texto, ele permite que o leitor desenvolva a capacidade de estabelecer relações, de perceber o que está “por baixo” da escrita. O texto literário permite que se estimule o leitor para a percepção da metáfora do iceberg, ou seja, a maior parte do sentido do texto está subentendido, não está na superfície e somente um leitor que tenha aprendido a perceber esse fenômeno será capaz de preencher as lacunas deixadas pelo autor, estabelecer relações e realizar o texto em sua plenitude. Além da preocupação com o processo de formação do leitor, a defesa do texto literário em sala de aula cresce pela certeza dos benefícios 145 que sua leitura traz. Ao se ler um texto informativo, ou um paradidático, as informações absorvidas serão consideradas no momento, e não se transformarão, necessariamente, em conhecimento. Walter Benjamim, em seu famoso texto, do início do século XX, O Narrador, já apontava as diferenças entre conhecimento e informação, destacando a permanência do primeiro em detrimento da transitoriedade do segundo. A informação é importante no momento em que ela é notícia, enquanto o conhecimento se perpetua, se agrega ao espírito do indivíduo. A literatura oferece suportes e modelos para compreender e representar a vida interior, os afetos, as ideias, os ideais, as projeções fantásticas e também modelos para representarmos nosso passado, o de nossa gente, o dos povos, da história, ou seja, a literatura favorece o conhecimento. Nos textos literários, encontra-se a representação do mundo, mas não de forma didática. No bom texto literário, o leitor terá a oportunidade de conhecer outras formas de viver, mas não será induzido a mudar seus valores ou seu comportamento, como acontece, por exemplo, nos textos de autoajuda. Muitos dos textos escritos para crianças e que estão nas bibliotecas escolares poderiam ser enquadrados na categoria de autoajuda, como por exemplo Meu irmãozinho me atrapalha, de Ruth Rocha, em que a autora, utilizando uma linguagem coloquial, às vezes até simplificada demais, procura reproduzir a situação vivida por uma criança que ganha um irmão. Observe-se o trecho a seguir: ˝Eu tenho um irmãozinho que se chama Pedro. A gente chama ele de Pedrinho. Ele é bem bonitinho e eu gosto muito dele. Acho que eu gosto. (...) E a minha mãe fica me enchendo, que ela quer que eu leve ele pra todo lugar que eu vou: pra brincar na areia, pras festas de aniversário, pra ir ao shopping com meu pai. (...) Está certo que às vezes criança pequena atrapalha. Mas também, às vezes, criança pequena é bem divertida! E sabe de uma coisa? 146 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola Eu não acho que eu gosto dele. Eu sei que eu gosto muito, muito mesmo do meu irmãozinho!˝1 Se bem que pese o fato de o texto apresentado aqui ser uma montagem de trechos diversos do texto original, percebe-se claramente a coloquialidade excessiva utilizada pela autora. Certamente por desejar atingir o leitor infantil e, entende-se, por pressupor que este não seria capaz de entender uma linguagem mais elaborada, o que a coloca no início da escada de nosso leitor, e somente aí. Assim mesmo, deve-se considerar a natureza desse texto, visivelmente escrito para ajudar a criança que está passando pela situação vivida pelo personagem do conto. Ora, se esta leitura for sugerida como leitura literária, não só ela estará ocupando um lugar que não lhe pertence, já que o texto está bastante longe do conceito atual de literatura infantil, como também estará fugindo de sua proposta inicial, que é ajudar as crianças a aceitarem o irmãozinho, uma vez que muitos alunos não estarão vivendo tal situação. Então, esta seria uma leitura adequada para ser indicada pela orientadora educacional, por exemplo, para uma criança que estivesse precisando de ajuda para lidar com a situação presente. A indicação ou a leitura para a turma inteira revela-se, pois, inadequada. Quero também chamar atenção para o trecho “minha mãe fica me chateando”. Além da coloquialidade já citada, fica clara a visão da mãe como alguém chato, e isso porque está ensinado à criança a se comportar, ou seja, reforça-se o enfraquecimento da mãe como figura positiva de formação do indivíduo e se fortalece o enfrentamento da criança com os pais, tendência comum na década de setenta, quando a mesma autora escreveu Marcelo, marmelo, martelo, em que a falta de diálogo entre pais e filhos quase ocasiona um desastre em casa. Note-se que não se pretende aqui atacar a obra de Ruth Rocha, que tem textos de boa qualidade, mas apenas destacar o fato de que ter 1 ROCHA, Ruth. Disponível em http://www2.uol.com.br/ruthrocha/historias_02.htm. Acesso em 25/06/20210. 147 um livro assinado por um autor de literatura infantil não é garantia da qualidade literária do texto, como se pode comprovar com o trecho acima. É responsabilidade do professor escolher as obras que seus alunos lerão, levando em consideração todos os itens já citados neste ensaio, mas, principalmente, deverá analisar a qualidade da obra a ser lida. Nós, que gostamos de ler, lamentamos a falta de tempo de ler os livros que gostaríamos de ler; já que não se pode ler tudo, que se selecione o lido pela qualidade, para que não se desperdice tempo e esforço, lendo o que não vale a pena. Nesse sentido o professor poderá buscar ajuda em sites, em cadernos infantis dos jornais, onde as indicações de leitura são atualizadas e pertinentes. No caderno Gazetinha, por exemplo, encontram-se frequentemente discussões sobre as obras preferidas pelos jovens, lidas por professores especializados em Literatura Infantil e Juvenil, que poderão auxiliar o professor das séries iniciais em sua escolha. Outra questão importante, no que se refere à leitura literária, é a possibilidade de, pela leitura de autores de diferentes épocas e culturas, ter-se o contato com formas diferentes de ver a vida. O confronto com textos literários distintos leva a enfrentar a diversidade social e cultural. Hoje, quando os estudos culturais são uma tendência mundial, colocar o leitor infantil em contato com textos que representem culturas diferentes é proporcionar a ele a oportunidade de relativizar conceitos e perceber que a diversidade é fator positivo. Pode-se, então, trazer para a sala, não apenas os textos consagrados pela crítica ocidental e majoritariamente europeia, mas obras das várias partes do mundo, como por exemplo Mil e uma noites, em que a visão oriental está presente. Nos casos dos textos traduzidos e adaptados, o professor deve prestar atenção à qualidade da adaptação, para não cair na armadilha da facilitação excessiva, presente em vários textos adaptados, inclusive de Mil e uma noites. 148 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola Uma possibilidade de diversidade importante é a busca de contos de autores indígenas, como Daniel Munduruku, Olívio Jukupé e tantos outros, que hoje publicam as histórias de suas tribos, não mais sob o olhar eurocêntrico, como ocorria até então. São histórias que revelam a mundivisão do índio, como um fascinante texto escrito por Daniel Munduruku (disponível em http://www.overmundo.com.br/overblog/ sobre-o-tempo-e-o-trabalho), em que ele fala sobre a relação entre tempo e trabalho na perspectiva indígena. O contato com a diversidade, segundo Teresa Colomer (2007), é um direito dos alunos, que devem “saber que existem corpus distintos, com variadas ofertas para diferentes momentos e funções de vários tipos.” Finalmente, não se pode olvidar uma reflexão sobre o lugar do texto poético no processo de formação do leitor. Presente nos livros didáticos mais pela extensão que por sua natureza, a poesia é “trabalhada” na escola como suporte para questões de ordem gramatical ou, no máximo, em solenidades cívicas, quando os alunos são solicitados a declamar poemas que abordem o tema da festividade. Assim, estes gêneros textuais que falam sobre árvores são lidos no Dia da Árvore, assim como poemas que falam sobre o Brasil são declamados nas festividades de Sete de Setembro, reforçando o caráter pedagógico com que se vê a literatura e deixando de lado as particularidades do texto literário em si, uma vez que só se considera o conteúdo e não a forma como o texto é escrito. Em rápida visita às escolas, pode-se constatar que os alunos são levados a crer que o texto poético Tem de ser rimado, apesar de não se explorar o ritmo, a musicalidade, que está na essência poética. A definição de José Paulo Paes (1999), desse modo, é deixada de lado, para que, mais uma vez, se destaque o caráter pedagógico da literatura, conceito ultrapassado, mas que ainda é reforçado nas escolas brasileiras. 149 Neste ensaio, procurou-se não apresentar receitas, mas questionar as práticas de leitura nas escolas brasileiras e apresentar alternativas, uma vez que a realidade atual não se mostra eficiente, como atestam os resultados obtidos pelos alunos brasileiros em testes internacionais e como é facilmente comprovável, em visita a nossas escolas. Nesse sentido, é que as sugestões apresentadas para a ênfase na leitura literária se justificam, já que se vê tal prática como um caminho possível para complementar o letramento de nossos alunos, assim como uma forma de permitir que eles, enquanto leitores literários, tenham contato com textos que lhes permitam escolher e construir sua própria realidade, sem que esta seja imposta por textos pedagógicos e utilitários. Nesse sentido, é que se sente a falta da formação literária para o professor das séries iniciais, pois, como se procurou comprovar neste ensaio, é necessário que ele tenha subsídios que lhe permitam ler criticamente os textos literários, para que possa exercer adequadamente seu papel de mediador de leitura e contribuir para a formação do leitor em nossas escolas. 150 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola Para saber mais AGUIAR, Vera Teixeira & BORDINI, Glória. A formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. BENJAMIM, Walter. O narrador. Disponível em http://www.4shared. com/file/98851761/c5473cd4/Benjamin_Walter_O_narrador___.html. Acesso em 25 de junho de 2010. COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: companhia das Letras, 1990. _____. Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 2007. PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986. QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. O piolho. Belo Horizonte: Ed. RHS, 2003. _____. Cavaleiros das sete luas. Belo Horizonte: Miguilim, 1997. ROCHA, Ruth. Meu irmãozinho me atrapalha. Disponível em http:// www2.uol.com.br/ruthrocha/historias_02.htm. Acesso em 25/06/2010 151 Cada aula, uma novidade Professora: Expedita Estevão da Silva Instituição: Escola Municipal Augusto Staben Cidade: Campina Grande do Sul “Sempre faço o que não consigo fazer para aprender o que não sei”. Pablo Picasso “O jornal é um material pedagógico no qual, a partir de uma notícia, é possível aprofundar os conhecimentos e envolver várias disciplinas. Cada aula com jornal é uma novidade, uma curiosidade”. A afirmação é da professora Expedita Estevão da Silva, que atua na Escola Municipal Augusto Staben, no município de Campina Grande do Sul. Pedagoga com mais de vinte anos de magistério, Expedita, que já exerceu várias funções no ambiente escolar – professora, coordenadora, supervisora – , destaca a importância do apoio da direção da escola aos professores que desenvolvem projetos dessa natureza. “Entender o papel da mídia na educação não deve ser privilégio de determinados professores e sim de toda a estrutura educacional. A iniciativa isolada de um professor não consegue ter o mesmo impacto que um projeto coletivo da escola. Por isso, independentemente das funções que exerci, sempre procurei desenvolver projetos, estimular e apoiar iniciativas inovadoras para a escola.” Expedita se considera uma professora que não para no tempo e não aceita repetir modelos pedagógicos ultrapassados. Seu maior orgulho é ter conseguido acompanhar as mudanças ocorridas nas metodologias de ensino, a evolução dos processos e as novas ideias e linhas pedagógicas. “O que me deixa mais satisfeita é perceber as novas posições da escola em relação ao uso da mídia na educação.” E foi por aí, procurando entender as novas demandas educacionais, que ela descobriu e incorporou o jornal como recurso pedagógico de incentivo à leitura. “Fico encantada com os resultados que estes projetos geram. Meus alunos passam a ler e a escrever melhor e, no parale- 153 lo, também a emprestar mais livros da biblioteca, porque o gosto pela leitura cresce exponencialmente.” Tamanho interesse provou, inclusive, a necessidade de criar a Hora da Leitura, momento semanal em que a professora e o alunos vão à biblioteca para descobrir novos livros e leituras. “Na Hora da Leitura sempre uso a metade do tempo para ler uma história. Na outra metade, as crianças ficam livres para ler o que quiserem.” Expedita também criou uma Caixa de Leitura, que fica disponível na sala e é constantemente renovada atendendo a pedidos dos alunos. “Temos de tudo na caixa: histórias em quadrinhos, livros de poesia, folclore e biografias. Tudo de acordo com o gosto da turma.” A prática O tema bulliyng, tratado na reportagem que a Gazeta do Povo publicou no dia 16 de junho de 2010, possibilitou que a professora Expedita discutisse o assunto, também presente na escola, com todos os alunos. E o debate começou já com a análise do título “Bullying atinge 35% dos alunos do DF”. “Vocês sabem o que quer dizer bullying? Vocês acham que isso só acontece no Distrito Federal? Vocês acham que na nossa escola existe esse problema?” Com perguntas dessa natureza, Expedita provocou a discussão do assunto, trazendo-o para a realidade da comunidade. Na sequência, pediu para fazerem um resumo, seguindo as seis perguntas básicas usadas no jornalismo: O que? Quem? Onde? Como? Quando? Por que? A atividade continuou como tarefa de casa e os alunos aprofundaram o assunto fazendo pesquisas e em conversa com os pais. 154 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola Socorro! A primeira experiência da professora Expedita com o jornal em sala de aula foi quase traumatizante. Por pouco, muito pouco, ela não desistiu. Como não tinha experiência para planejar o desenvolvimento das atividades propostas, perdeu-se na orientação até de coisas simples como auxiliar os alunos no ato de abrir e ler o jornal. “Conforme a atividade ia acontecendo eu pensava: ‘Meu Deus isso não vai dar certo, é muita bagunça e pouco resultado’.” Depois desse dia, ela levou um tempo para ter coragem de novamente trabalhar com o jornal, mas reconhecia a importância de utilizá-lo para promover a leitura e aproximar a mídia do processo educativo. Intimamente, Expedita sentia que precisava encontrar maneiras de tornar o trabalho mais produtivo, e a solução apareceu quando encontrou o objetivo principal da iniciativa: era necessário reverter a dificuldade que seus alunos apresentavam nas atividades de leitura e escrita. “O jornal fez com que eu tivesse mais interesse em ler, pois lá tem algumas informações que não vemos na televisão. Gostei de trabalhar com o jornal sobre o Bullying e também sobre as pulseiras coloridas. Descobri que devemos tomar muito cuidado.” Ramilly Amatti de Brito, 10 anos Foco definido, o desafio foi encontrar o método e atividades adequados à fase de aprendizado dos alunos, que começavam a escrever com letra cursiva. E a ideia de reservar os primeiros minutos de aula para a leitura do livro Uma história para cada dia, acabou dando tão certo que fez a professora esque- 155 cer as dificuldades iniciais e abriu caminho para novas e gratificantes experiências que passou a desenvolver com o jornal em sala de aula. Flexibilidade e admiração Contrariando a percepção de muitos professores, Expedita garante que o jornal nunca a impediu de cumprir o currículo escolar. “Logo que comecei a ver os resultados, pedi à supervisora para eu não participar das reuniões de planejamento que ocorrem todo início de bimestre. Expliquei que o jornal já estava muito presente nas minhas aulas, e que um planejamento que o excluísse me deixaria presa, pois não conseguiria continuar o projeto”. A supervisora aceitou o argumento e, a partir disso, Expedita conquistou a necessária liberdade e o respeito dos colegas, requisitos essenciais para continuar usando o jornal e ainda influenciar outros professores. Apesar de não participar do planejamento em conjunto com outras professoras, Expedita diz que ele é um dos requisitos básicos para o trabalho do professor. “Só que nas minhas aulas, volta e meia, ele precisa ser adaptado e o cronograma sofre alguma alteração. Faço isso para não deixar escapar as novas ideias e o interesse dos alunos.” O projeto Gazetinha Augusto Staben (GAS), por exemplo, não fazia parte das aulas planejadas por Expedita para 2010, mas acabou sendo desenvolvido e teve um dos melhores resultados já registrados. A ideia nasceu em 2009, entre os alunos da turma de 3.ª série, que gostaram tanto de produzir um jornal que pediram a sua continuidade quando passaram para a série seguinte. O GAS conta com três páginas e publica assuntos do cotidiano da escola, curiosidades, porquês dos feriados e notícias do mundo. Única inicia- 156 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola tiva do gênero na escola, o jornal produzido pelos alunos também tem sido usado como recurso de integração, principalmente para os alunos novos. Vocês viram isso? Um dia, enquanto folheava o jornal Gazeta do Povo na sala dos professores, Expedita viu que na coluna Imagens do Universo tinha uma foto mostrando as menores pessoas do mundo e pensou: “É por aqui que vou começar a trabalhar com o jornal”. Recortou a imagem e levou para a classe dizendo: “Olha pessoal, que legal! Vocês viram isso?” A imagem passou de aluno em aluno e alguns inclusive pediram para levar para a casa, com o objetivo de mostrar aos pais. Enquanto isso ocorria, Expedita já estava pensando lá na frente, em como usar o jornal para fazer atividades mais amplas, que incentivassem a leitura. Nas aulas seguintes, a professora procurou destacar e ler outras notícias ligadas ao universo dos alunos, mas eles ainda eram passivos, só ouviam. Quando percebeu que já estavam acostumados a ouvir as notícias, viu que era o momento de explorar o jornal em todas as suas possibilidades. “Aprendi na escola que o jornal é um meio de comunicação e quem lê fica informado de tudo o que acontece no mundo. Ler jornal nos dá muitas ideias. Fui eu que tive a ideia de fazer o jornalzinho da sala, foi muito legal e todo mundo adorou. Tomara que possamos fazer outro”. Eric Dion da Silva, 10 anos “A Pedagogia do Fica Quieto acabou. Os alunos estão mais curiosos, querem saber mais, expor o que pensam, têm interesses que extrapolam os muros da escola, e o professor precisa acompanhar essas novas demandas”. 157 Hoje é comum encontrar a professora e os alunos com um jornal na mão, desenvolvendo inúmeras atividades, sem medo de lidar com assuntos de qualquer natureza. Consciência social Para medir os impactos do trabalho com o jornal sobre o desenvolvimento dos alunos, a professora adotou as técnicas de comparar os cadernos e avaliar o desempenho oral, em debates. E garante que são indiscutíveis as melhorias na escrita, na postura e defesa de ideias. “Na comparação de desempenho de um ano para o outro, dá para perceber o quanto meus alunos amadureceram, e não só em atitudes individuais, mas também no sentido social, porque a cada dia estão mais aptos a participar de atividades coletivas e conscientes de seus limites, direitos e deveres.” Para exemplificar a última afirmação, Expedita usa a própria leitura de jornal no ambiente escolar. “Como os alunos sabem que outros colegas, os professores e até os pais também terão oportunidade de manusear o exemplar do jornal, passaram a cuidá-lo de forma diferente. Aprenderam a devolvê-lo sem amassados, limpo e com os cadernos em ordem porque já compreendem o que é um bem coletivo.” Tanta dedicação e tamanhos resultados foram reconhecidos na edição 2009 do Concurso Cultural Ler e Pensar, quando a prática de Expedita foi destacada e premiada. 158 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola Na “Hora da Leitura” alunos vão à biblioteca para descobrir novos livros e leituras. A cada atividade com o jornal, a professora Expedita percebe melhorias na caligrafia, postura e defesa de ideias. 159 Capítulo 8 Ciberleitura O que é ciberleitura? Como incentivar a leitura em ambientes virtuais? Como contribuir para a formação de cidadãos críticos e participativos, lançando mão dos recursos disponíveis no ciberespaço? O ensaio que publicamos neste capítulo é assinado por Márcia Silva Di Palma, mestre em Educação e pesquisadora do NuPPEI – Núcleo de Pesquisas em Processos Educativos Interativos da Universidade Tuiuti do Paraná, instituição em que ministra aulas nos cursos Letras e Pedagogia. Ela tenta responder a essas e outras perguntas a partir da análise desse fenômeno cultural, que tem na construção de uma sociedade em rede o seu principal elemento. Márcia pesquisa o papel das novas tecnologias no contexto escolar e na formação de professores em cursos de pós-graduação presenciais e a distância da UTP e outras instituições. Para ilustrar o tema Ciberleitura, selecionamos a experiência didática da professora Sonia Maria Alves Domingues, da Escola Municipal Paulo Freire, de Curitiba. Veterana no uso do jornal impresso como recurso pedagógico, há dez anos, ela desenvolve atividades utilizando esse instrumento como apoio às suas aulas. Recentemente, passou a trabalhar também com o jornal em plataforma eletrônica e revolucionou a utilização da sala de informática da escola. Para ela, a web possibilita a construção de materiais didáticos que atendem a diferentes estilos de aprendizagem, e o jornal utilizado na internet é um instrumento que contribui para a formação das novas gerações. 161 Ciberleitura no contexto educacional Márcia Silva Di Palma Este ensaio é fruto das pesquisas realizadas no NuPPEI – Núcleo de Pesquisas em Processos Educativos Interativos, no que diz respeito às mudanças ocorridas nos processos de leitura diante das influências das novas tecnologias, e principalmente seus reflexos no contexto educacional. O estudo se justifica porque, como profissionais e intelectuais da educação, precisamos estar em permanente processo de atualização e reflexão crítica para que possamos desempenhar o nosso papel de educadores e formadores com maior eficiência. Nesse sentido o objetivo maior deste ensaio, em vez de trazer respostas prontas, é trazer à luz alguns elementos que sirvam de pontos de partida para reflexões individuais e em grupo sobre a temática. Discutir a respeito da leitura e da ciberleitura não seria possível sem antes abordar o advento da escrita, isso porque leitura e escrita estão absolutamente articuladas, como os dois lados de uma mesma moeda. Portanto, gostaria de começar a refletir sobre os processos de leitura a partir da gênese e evolução dos registros escritos na história do mundo. Desde os primórdios da história, o ser humano se deparou com o grande desafio de garantir que o conhecimento acumulado por uma determinada geração pudesse ser não apenas transmitido às gerações mais jovens, mas também que servisse de base para outras descobertas e evoluções. Esse desafio fez com que o ser humano desenvolvesse sua primeira fase de relação com o conhecimento: A memorização. Como 162 Capítulo 8 - Ciberleitura a base da comunicação estava centrada na comunicação oral, muitos conhecimentos se perdiam, o que não somente comprometeu, mas reduziu significativamente o progresso das civilizações. O surgimento da escrita representou uma grande conquista para a humanidade, constituindo-se na segunda fase da relação do homem com o conhecimento: a escrituração. Os primeiros registros gráficos podem ser identificados há cerca de 50.000 anos. Eram incisões em pedras ou ossos que tinham o objetivo de controlar a quantidade de animais e/ou objetos pertencentes a cada grupo de indivíduos que viviam como nômades. Posteriormente, há cerca de 30.000 anos, essas incisões já se tornam mais sofisticadas e passaram a serem figuras gravadas ou pintadas em cavernas, retratando cenas de caçadas e do cotidiano dos homens das cavernas. Apesar desses registros tão antigos, essas manifestações culturais e artísticas ainda não podem ser consideradas como “escrita” uma vez que não há consistência ou padronização de símbolos. Há cerca de 4.000 anos, porém, já é possível identificar em vários locais do planeta – Mesopotâmia, China, Egito, América Central – a presença dos “desenhosescrita”, ou seja, a produção de um conjunto de símbolos mais ou menos padronizados, que tinham um significado estabelecido, para todos ou quase todos os membros de um mesmo grupo ou estrato social. Com o passar do tempo, alguns ícones foram assumindo valores permanentes, fazendo com que as mensagens escritas em um determinado momento histórico pudessem ser decodificadas e interpretadas por outros grupos sociais geograficamente distintos e contribuindo com isso para que civilizações já extintas possam ser estudadas e compreendidas na contemporaneidade. Dessa forma, a escrita representou um marco na história da humanidade, pois significa a possibilidade de preservar falas, ideias, fatos, 163 ultrapassando limites de tempo e espaço e preservando a essência das diferentes culturas. Porém nem sempre houve uma preocupação de que o conteúdo dos registros escritos estivesse disponível a todos os membros da sociedade. Assim, ao longo da história da humanidade, a leitura passou por vários momentos, com características próprias a cada um. Até a Idade Antiga, a leitura era realizada em voz alta, nos templos e edifícios governamentais, pelos membros das elites e sacerdotes. A temática girava em torno de conhecimentos “sagrados” que apenas uma pequena parcela da sociedade tinha acesso. Essa prática objetivava garantir que a mensagem fosse traduzida/verbalizada correta e adequadamente sem que houvesse a interferência da interpretação do leitor quanto ao que havia sido lido. A prática da leitura em voz alta e o questionamento pontual sobre elementos concretamente identificáveis no texto, se mantive da Antiguidade até por volta do século V depois de Cristo. Após a queda do Império Romano, a Igreja Católica Romana assumiu uma posição hegemônica e, para garantir que os ensinamentos contidos na Bíblia não fossem questionados, censurou, retirou de circulação e destruiu vários documentos escritos. Dessa forma, a maioria da população não poderia ter acesso à explicação de seus dogmas, e assim restringia o acesso à leitura a alguns membros da nobreza e do clero, que tivessem tido uma educação formal mais elaborada. Naquele momento histórico, a leitura se restringia a alguns poucos exemplares da Bíblia e de outros textos religiosos copiados manualmente, que tinham um caráter doutrinário e, portanto, não podiam ser “interpretados” ou discutidos. A invenção dos tipos móveis por Johannes Gutenberg (1398-1468) representou uma grande evolução para os processos de leitura porque 164 Capítulo 8 - Ciberleitura permitiu não apenas a expansão na produção dos livros, mas também criou condições para a impressão de periódicos com notícias e temáticas de amplo interesse, inclusive das novelas cujos capítulos eram disponibilizados a cada mês ou semana. Paralelamente, a ampliação dos processos de escolarização fez com que houvesse um aumento significativo do número de pessoas com acesso à leitura, competência essa que era extremamente valorizada em todas as sociedades. A valorização da leitura e a ampliação de exemplares impressos permitiram que emergissem diferentes tipos de textos: narrativos, descritivos etc., que provocaram uma mudança gradual na maneira como a leitura era feita. Se até o século XV era realizada em voz alta e, a partir de então, passou a ser feita silenciosamente, essa prática criou condições propícias para que houvesse diferentes interpretações dos textos escritos. A partir do século XVIII, e com os avanços da indústria e da imprensa, desenvolvem-se vários tipos de textos – jornalísticos, publicitários, literários –, que tinham objetivos e formas de organização próprias. O aumento significativo do acervo cultural da humanidade permitiu o desenvolvimento de áreas específicas do saber, das Ciências Humanas, Exatas, Biológicas, Sociais etc., a partir do século XIX, e com isso identifica-se uma terceira fase da relação do homem com o conhecimento: a especialização. Naquele período, percebe-se o desenvolvimento da competitividade em todos os níveis da sociedade, e é possível perceber essa competitividade inclusive na publicação dos jornais e periódicos que primavam pela notícia bombástica, “o furo” de reportagem, para conquistar mais leitores. Observa-se também uma multiplicidade de tipos, gêneros, estilos e formatos de escrita que se ampliam radicalmente no século XX, criando condições para uma ampliação do conceito de leitura, que deixou de referir-se apenas a textos escritos para englobar também 165 a interpretação de outros símbolos e linguagens. Assim, o conceito de leitura, a partir da segunda metade do século passado, passou a referir-se ao “processo de (de)codificação e interpretação de símbolos gráficos, imagens, sons, situações isoladas ou combinadas, dandolhes um significado pessoal” (SANTOS, 2006). Também é possível perceber que, apesar do grande número de pessoas escolarizadas e com acesso a vários textos escritos, apenas uma pequena parcela da população tinha acesso às publicações com conhecimentos científicos de ponta, já que o material escrito produzido pelos “intelectuais” estava “pronto e acabado”, obedecendo a uma lógica e hierarquia determinada pelo autor, com o qual não seria possível discutir pessoalmente em tempo real. Com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e das tecnologias digitais, que passaram a ser integradas ao cotidiano de uma parte da população, a partir da segunda metade do século XX. Observou-se a emergência de um conjunto de condições propícias para o surgimento e avanço de uma nova cultura global. Essa cultura traduz as contradições inerentes à “Sociedade do Conhecimento” – apesar do grande avanço científico que fornece as bases para o desenvolvimento econômico e político, as questões sociais em vários pontos do planeta ainda carecem de atenção. Diante dessas contradições, percebe-se o nascimento de uma quarta fase na relação do homem com o conhecimento: a universalização individualizada, que se caracteriza pelo acesso irrestrito ao saber vivo e significativo, construído a partir do interesse do leitor (LEVY, 2004). O acesso irrestrito às bibliotecas virtuais promovido pela globalização planetária fez com que as trocas simbólicas entre pessoas dos mais diversos locais do planeta deixassem de ser feitas concretamente no mundo real e se transferissem para o mundo virtual, também conhe- 166 Capítulo 8 - Ciberleitura cido como ciberespaço ou ainda nuvem de internet. Essas trocas, por envolverem pessoas de origens e culturas diversas, interferem na maneira como as pessoas pensam, sentem, agem, se relacionam e se comunicam. Essa nova cultura se manifesta pela presença constante de computadores em vários ambientes – familiar, escolar, profissional, de lazer; em bancos, supermercados, escolas, centros de saúde etc. –, que, devido à facilidade de acesso e articulação com outros meios digitais como a telefonia móvel, jogos etc., por exemplo, criam uma outra maneira de construir e dominar conhecimentos na sociedade. Além disso, o ciberespaço é um espaço de comunicação livre, uma região abstrata, invisível que permite a divulgação e a circulação de informações sob vários formatos, ele garante uma ampla possibilidade de leitura de imagens, sons, textos etc. Com isso, descarta-se a necessidade da presença física das pessoas como interlocutores, ao mesmo tempo em que se permite a interação, a edição/atualização imediata de conteúdos por pessoas que estejam geográfica ou temporalmente distantes. Observam-se assim uma rápida atualização de conteúdos nos mais diferentes formatos e a construção de redes interativas multifacetadas. Um exemplo concreto é a rápida proliferação de sítios de notícias, que divulgam acontecimentos de maneira pontual e objetiva, contrastando com as mídias impressas em que a notícia é veiculada de maneira mais contextualizada, fundamentada e aprofundada. Ao contrário dos textos impressos, na web todas as informações se encontram no mesmo plano não havendo hierarquização entre elas. Porém, ao mesmo tempo, o todo se diferencia e ganha relevância de acordo com as relações que o leitor vai estabelecendo. Como não existe hierarquia absoluta, cada página é um ponto de partida e/ou de chegada e/ou uma bifurcação para milhares de rotas possíveis. 167 Bem, além dos aspectos formais trazidos pela tecnologia, não podemos deixar de considerar os efeitos que a utilização sistemática dos recursos tecnológicos nas atividades cotidianas traz ao desenvolvimento de aspectos biológicos, como percepção, sentidos, memória, raciocínio e imaginação; competências essas, que foram maturadas no ser humano durante milênios como fator fundamental para garantir a sobrevivência e/ou melhorar a qualidade de vida dos seres humanos. Assim, é preciso ter claro, que o meio digital não apenas dá suporte às questões do dia a dia, mas interfere, modifica e amplia numerosas funções cognitivas humanas como os sentidos da visão, audição, tato. Na área da saúde, por exemplo, a manipulação genética com o uso de microscópios eletrônicos e instrumentos comandados por joysticks que permite diagnosticar problemas genéticos em gametas antes mesmo da fecundação; as nanocirurgias, que corrigem defeitos congênitos de bebês ainda por nascer; a manipulação das células-tronco, que permite a recuperação de órgãos e sistemas seriamente comprometidos sem a necessidade de intervenções cirúrgicas de grande porte. Essas competências sensório-motoras foram estimuladas exaustivamente durante a infância e adolescência dos profissionais que as realizam atualmente. A memória de curto e longo prazo também tem sofrido interferências, já que muitas informações que no passado precisavam ser “decoradas” atualmente são transferidas para as diferentes mídias digitais – computador, CD, pendrive, telefone celular – liberando espaço em nossa memória biológica para outras funções mais significativas ou criativas. Também é possível observar que a forma de raciocínio tradicional também vem sofrendo influências dos meios digitais, deixando de ser linear (sequências de lógicas, deduzíveis/previsíveis) para assumir uma visão mais ampla de contexto. Isto facilita a compreensão de situações complexas e vislumbra soluções inusitadas, porque articulam 168 Capítulo 8 - Ciberleitura vários conhecimentos oriundos de estímulos diversos recebidos de jogos, filmes etc. Com isso, o espaço para o desenvolvimento da imaginação através de simulações se amplia significativamente, tornando possível a invenção de jogos virtuais cuja aparência nas telas de LCD, plasma e LED estão cada vez mais próximos da realidade. Ou ainda abrem espaço para a concretização no cinema de mundos fictícios, que com auxílio de várias técnicas de filmagem e composição gráfica trazem à vida, em três dimensões, personagens, plantas, meios de transporte etc. fazendo com que a realidade virtual e a real se tornem quase a mesma coisa. A presença permanente dos computadores, então, faz com que as crianças da maior parte da população comecem a interagir com todo o aparato tecnológico cada vez mais cedo e que passem a ter o seu desenvolvimento cognitivo e sensório-motor influenciados pela lógica de organização cibernética. Diante das modificações de natureza biológica, o processo de construção de conhecimentos também se modifica sendo possível observar que se iniciam cada vez mais cedo os processos de letramento alfabético, digital e gráfico, ou seja, esse novo modelo interfere diretamente na organização dos indivíduos, da sociedade e como consequência afeta de modo radical a peculiaridade do trabalho pedagógico escolar. Se a relação com o mundo se modifica, também se altera a relação com a leitura. Assim, a expressão “ciberleitura” – grafado com i em português – então se constitui na combinação do prefixo cyber, que diz respeito a “uma região abstrata, invisível que permite a circulação de informações na forma de imagens, sons, textos etc. e permite uma forma de comunicação que descarta a necessidade da presença física e sincrônica das pessoas” (LÉVY, 2000); com o complemento leitura. Portanto, o termo “ciberleitura” refere-se ao processo de (de)codifica- 169 ção e construção de significados a partir do acesso de textos eletrônicos/hipertextos que são divulgados na nuvem virtual – Internet. O hipertexto é um formato de texto que integra várias linguagens – imagens estáticas e dinâmicas, sons etc. – que são disponibilizadas na rede e que se articulam com várias outras formando um mosaico que pode ser acessado a partir de qualquer ponto, com destinos mutáveis e inusitados. Ao acessar um hipertexto, o leitor passa a desenhar e a construir um percurso inédito em uma rede de relações individualizada que tanto pode obedecer a uma lógica linear, mais simples, ou pode ser tão complicada e complexa quanto à curiosidade e/ou criatividade do leitor permitirem. É preciso ainda deixar claro que a disponibilização dos textos on-line não significa o fim dos livros e materiais impressos, já que milhões de pessoas em todo o planeta desenvolvem uma relação especial com a textura do papel e a possibilidade de interagir com o autor, ainda que de maneira limitada, através de reflexões escritas nas bordas das páginas ou pedaços de papel colocados entre as páginas de um livro para identificar os trechos favoritos ou mais relevantes. O fato de o texto ser apresentado na tela não muda nada, pois ainda se trata de leitura, muito embora seja preciso ter claro que com os hiperdocumentos e a interconexão geral as modalidades de leitura tendem a transformar-se. Isso porque nos materiais impressos tradicionais a sistemática que ainda predomina é a da leitura realizada, no caso dos países ocidentais, de cima para baixo, da esquerda para a direita, parágrafo por parágrafo, linha a linha, da primeira à última página. Discorrendo a respeito da ciberleitura, Smith (1999) explica que a leitura Online não descaracteriza as formas tradicionais de leitura já que 170 Capítulo 8 - Ciberleitura as pessoas acessarão os conteúdos virtuais pelas mesmas razões que acessariam textos impressos, a saber: pelo prazer, pela informação, pela identificação com a temática, pela experiência e hábito de leitura. “Não há novas razões para a leitura Online, mas sim uma nova gama de possibilidades de folhear documentos anteriormente inacessíveis e até legalmente restritos.” Apesar da grande variedade de tipos, gêneros e estilos, a organização do texto impresso não permite uma rápida atualização ou mesmo a interação entre autor e leitor. Por outro lado, as qualidades do texto impresso podem ser trazidas para os textos eletrônicos, com a vantagem de poder articular temáticas diferentes, autores clássicos e contemporâneos, linguagens diversas e cuja leitura pode obedecer à lógica definida pelo leitor. Essa reordenação na forma de ler traz à luz outro aspecto a ser destacado e que diz respeito à quebra da condição passiva do leitor e o transforma em coautor e interlocutor. Isso porque os hipertextos trazem a possibilidade de discutir, contribuir e inclusive atualizar os conteúdos disponibilizados por outrem, e isso faz, com que a relação entre leitura e escrita se torne mais integrada e ativa que nunca. A combinação desses aspectos não pode ser descartada pela escola e pelos profissionais que nela atuam. Principalmente os professores de Língua Portuguesa, já que a ciberleitura abre uma gama de possibilidades inteiramente nova para o trabalho com a língua e a literatura, substituindo o exercício descontextualizado e repetitivo por atividades com uso criativo das múltiplas linguagens como recursos para facilitar, melhorar a comunicação. Nesse sentido é interessante o trabalho com jornais e revistas Online, pois os mesmos trazem temáticas atuais e que podem ser livremente acessadas pelos alunos, tanto no ambiente escolar quanto em 171 suas casas ou lan houses. Todavia, não se pode imaginar que o simples acesso ao sítio de interesse trará grandes impactos ao processo de aprendizagem dos alunos, porque é importante que os professores conheçam e estabeleçam uma estratégia para o uso pedagógico dos recursos tecnológicos para que os mesmos não se esvaziem de seus potenciais educativos. Ou seja, o professor precisa repensar seu papel e buscar novas formas de trabalho que superem as formas fossilizadas de atuação ao longo dos séculos, e converter-se em parceiro de seus alunos no processo de aprendizagem. Os alunos, por sua vez, também precisam superar uma atitude passiva de reprodução dos conhecimentos transmitidos e começar a se auto-organizar no processo de aprendizagem. Existem várias atividades que podem ser realizadas com auxílio do computador Online e off-line. As atividades Online dizem respeito a pesquisas realizadas em sítios da nuvem de Internet que disponibiliza bancos de imagens, de textos, vídeos de propagandas e curta-metragens, blogs, salas de bate-papo etc. com objetivos específicos estabelecidos previamente pelo professor. As informações levantadas nesses ambientes devem ser articuladas e integradas àquelas encontradas em livros didáticos, enciclopédias, dicionários e periódicos. A partir desse levantamento podem ser realizadas atividades em computadores que dispensem o acesso à rede, ou seja, que estejam off-line, com a produção de textos em processadores como o Word e com a aplicação de suas ferramentas – encontrar palavras, formatar, destacar etc. Outra possibilidade é a utilização do Power Point para a produção de textos de diversas natureza, com a inclusão das imagens selecionadas dos sítios Online. É possível ainda a criação de um pequeno vídeo, a partir das fotos digitais tiradas em uma festa no ambiente da escola, com textos explicativos utilizando o recurso do Movie Maker. 172 Capítulo 8 - Ciberleitura A partir desses materiais, a turma, ou a escola como um todo, pode montar seu próprio sítio virtual para disponibilização de suas produções, como a criação de um jornal acadêmico com a divulgação dos projetos que estão sendo realizados para a comunidade. Enfim, as possibilidades são infinitas, e nós professores, como formadores de cidadãos críticos e emancipados, precisamos, mais do que nunca, rever nossas estratégias para o estímulo da leitura e da escrita para que nossos alunos não sejam excluídos do processo de participação e construção da Sociedade do Conhecimento. 173 Para saber mais ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência. SP: Loyola, 1999. AQUINO, R. FRANCO, D., LOPES, O. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. RJ: Ao livro técnico, 1980. BRASIL. Portal Sua Pesquisa. Pré-História – As fases da Pré-História, cultura e arte pré-histórica, Paleolítico (Idade da Pedra Lascada), Mesolítico, Neolítico (Idade da Pedra Polida), a vida dos homens das cavernas, nômades e sedentários, origem da agricultura, arte rupestre. Disponível em www.suapesquisa.com/prehistoria. HIGOUNET, Charles. História concisa da escrita. 10.ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. KIM, Joo Ho. Cibernética, Ciborgues e Ciberespaço: Notas sobre as origens da cibernética e sua reinvenção cultural. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 10, n. 21, jan-jul 2004. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ha/v10n21/20625.pdf. LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 4.ª ed. São Paulo. Loyola, 2003. _____. As tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993. 13.ª reimp, 2004. _____. Cibercultura. 2.ª ed. São Paulo: Editora 34, 2000, 4.ª reimpressão, 2003. 174 Capítulo 8 - Ciberleitura MARTINS, Maria Helena. O que é leitura? São Paulo: Brasiliense, 1982. NOVAES, Tatiana. Uma proposta pedagógica de ciberleitura. In: Revista letra magna. Revista eletrônica de divulgação científica em língua portuguesa, linguística e literatura. Ano 2 – n. 3 – 2. Sem. 2005. Disponível em http://www.letramagna.com/tatianenovais.pdf. SANTOS, Betina Astride. Ciberleitura: o contributo das TIC para a leitura no 1.° ciclo do ensino básico. Porto: Profedições, DL 2006. SMITH, Frank. Leitura significativa. Porto Alegre. Artmed, 1999. 175 Ligados nesta arte Professora: Sonia Maria Alves Domingues Instituição: Escola Municipal Paulo Freire Cidade: Curitiba “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre”. Paulo Freire Sonia Maria Alves Domingues, professora da Escola Municipal Paulo Freire, em Curitiba, foi uma das pioneiras a utilizar o jornal em sala de aula no Estado do Paraná. Há dez anos, conheceu o projeto Ler e Pensar e desde então foi criando atividades diferenciadas utilizando como principal recurso o jornal impresso e on-line. Para ela, o uso de gêneros textuais tem um papel decisivo na formação de leitores, por isso a cada aula que ministra traz para si mesma o desafio de formar alunos leitores e produtores de conhecimento. Apesar da experiência, a cada início de ano ela enfrenta dificuldades na implantação do projeto com jornal, porque as turmas mudam e a proposta do ano anterior já não serve mais. É preciso adequar os interesses e modificar o projeto para que o trabalho seja realizado com a excelência de sempre. Com esse objetivo, o trabalho começa com a preocupação de conhecer a turma e só depois se pensa no plano a ser executado. “Cada ano é necessário motivar novas turmas para o trabalho com o jornal. Inicio com a sensibilização e a importância de estarmos sempre bem informados sobre as notícias, – locais e mundiais. Com o passar dos dias, todos ficam motivados e querendo sempre aprender mais sobre as possibilidades do jornal, e é aí que apresento o projeto que criei para eles”, afirma Sonia Maria. “Charge, cartum e tirinha: tô ligado nessa arte!” foi uma das atividades desenvolvida pela professora para 2010. A escolha do trabalho com esses gêneros textuais foi motivada pelo fato de a turma interessar-se pela linguagem artística. 177 “Esses gêneros oferecem um conteúdo rico e crítico, que têm inúmeras abordagens sobre a política nacional, estabelecendo relações de intertextualidade, exigindo conhecimentos específicos da linguagem e do período histórico a ser analisado”, diz ela. Com essa atividade, a professora Sonia procurou estimular os alunos a fazerem análises críticas por meio de exposição onde também tinham de apresentar suas conclusões. “Foi muito interessante levá-los a perceber situações polêmicas que envolvem a realidade. Temos o envolvimento de todos em atividades críticas e problematizadoras, nas quais descobrimos e valorizamos talentos.” A prática Durante a atividade, a professora Sonia garante um tempo para a leitura das notícias de interesse comum. Num segundo momento, os alunos vão para a sala de informática onde aprofundam o tema escolhido pesquisando na Gazeta do Povo Online e em outros sites. Depois, a professora reserva um tempo para os alunos trabalharem com jogos educativos. As regras estabelecidas com antecedência evitam dispersão. “Associamos a leitura de jornal impresso com a leitura na internet porque a tecnologia facilita a obtenção de dados, imagens, resumos de forma rápida e atraente. E, durante todo o processo, o professor passa a ser um facilitador, ajudando o aluno a interpretar esses dados, a relacioná-los e a contextualizá-los.” 178 Capítulo 8 - Ciberleitura Aliados tecnológicos A sala de informática é território comum nas aulas da professora Sonia, pois ela diz que a tecnologia deve ser introduzida na aprendizagem destas novas gerações. “A web possibilita a construção de materiais didáticos que atendem a diferentes estilos de aprendizagem. Nós usamos o jornal na plataforma internet e isso tem nos ajudado muito.” Sonia lembra que livro didático não é mais o único recurso acessível e é preciso apropriar-se das inúmeras outras possibilidades hoje disponíveis. Ela afirma que tanto os livros quanto as revistas, jornais, enciclopédias, CD-ROMs e sites da internet são fontes de informações úteis ao aprendizado. “A internet é uma tecnologia que, pela novidade e suas inúmeras possibilidades, amplia a motivação dos alunos à pesquisa.” Nesta proposta, Sonia Maria tem usado programas que possibilitam a criação de jornais eletrônicos escolares, que simula uma redação de jornal e onde os alunos fazem desde a produção textual, de imagens (fotos e desenhos), até a editoração e publicação na web, utilizando um ambiente que integra os usuários participantes. “As aulas de leitura com o jornal impresso e na internet são mais divertidas. Procuro as charges na Gazeta do Povo Online e quando acesso de casa sei exatamente onde encontrá-las.” Alane Maria Leal da Rocha, 10 anos “Lembro sempre que é possível aprender conversando com pessoas, assistindo a vídeos, documentários e notícias. Acredito que ao assumir o papel 179 de leitor e pesquisador, o professor consegue incentivar os alunos às mesmas práticas, levando-os a participar ativamente do processo de aprendizagem”, afirma a professora Sonia. Leitores preparados “As atividades que realizo com o jornal, tenho absoluta certeza, tornam meus alunos mais preparados para a leitura e a efetiva compreensão daquilo que leem. À medida que a pessoa lê e consegue identificar as ideias principais do texto, passa a levar em conta os fatores que influenciam a situação examinada, e isso dá sentido à leitura. É um círculo virtuoso realimentado por novos textos e novas descobertas”, diz Sonia. Isso ocorre, segundo ela, porque o jornal publica informações atualizadas e usa recursos de comunicação que facilitam a compreensão dos fatos. “O aluno pode entender a lógica dos movimentos da sociedade e, com isso, cria suas próprias hipóteses e pode ainda entender, contestar, expor ideias e defender os seus interesses.” O jornal também possibilita a conexão, não apenas com as diversas disciplinas, mas especialmente entre a comunidade escolar e o mundo. Quando a proposta de estudo ocorre a partir dos conteúdos do jornal, tudo fica fácil e nota-se que o assunto abordado vira um tema inesgotável. “Sinto que todos ganham nesse processo. E isso acontece porque não há competição nem isolamento em sala de aula, só trabalho em equipe”. 180 Capítulo 8 - Ciberleitura Todos atualizados A professora Sonia também destaca que, ao longo do tempo, além de o trabalho com o jornal despertar os educandos para a importância da leitura e da informação como base para a construção do conhecimento, ainda permite uma constante atualização tanto do educador como do aluno, mantendo todos em sintonia com os temas mais relevantes da atualidade. E só ficando atento ao que acontece e ao que desperta o interesse do grupo é que o professor consegue estabelecer esse tipo de diálogo com os alunos. Avaliar as práticas, retomar e redirecionar a transmissão dos saberes e relacioná-los com tais interesses, que podem transitar da política aos esportes, das artes à moda, dos negócios às ciências e tecnologias, é a única forma de tornar o processo eficiente e eficaz. A sincronia fina entre os acontecimentos externos e a sala de aula amplia a bagagem cultural, facilita o diálogo e o entendimento em classe, equilibra a relação entre professor e aluno e permite o engajamento social. E quando todos falam a “mesma língua” e discutem assuntos que conhecem, as conclusões ficam mais consistentes, ganham importância social. “O jornal visto pela internet é interessante e divertido. Para buscar uma notícia, vamos direto aonde a gente quer. É tudo mais rápido e interativo. Gosto muito quando desenvolvemos atividades pelo computador.” Daniel Alves da Silva, 10 anos 181 Caminho sem volta Para o professor que até gostaria de trabalhar com o jornal e outras mídias em sala de aula, mas ainda percebe mais problemas que benefícios na proposta, Sonia dá um recado: as gerações que estão chegando hoje à escola já nasceram “plugadas” e, por isso, é preciso refletir sobre as práticas didáticas, planejar atividades que contribuam para os objetivos que a escola quer atingir e escolher com cuidado os recursos que serão usados. “O professor que não se atualizar terá cada vez mais alunos desmotivados e com baixos rendimentos escolares. Essa nova maneira de educar, usando as mídias, é desafiadora e muito diferente da maneira tradicional com a qual eu e a maior parte dos professores fomos qualificados durante o curso de Magistério, mas é um caminho sem volta.” “Tomando por base o que acontece comigo – e o mesmo já foi manifestado por vários alunos –, o jornal permite que nos libertemos da rotina, amplia a consciência e promove a valorização de todos, porque pessoas informadas se sentem mais preparadas para a vida. Com o jornal, as aulas podem ser conduzidas de forma mais agradável e interessante. Ganham os alunos e eu também ganho, e muito”, assegura a professora Sonia. 182 Capítulo 8 - Ciberleitura Com charges, cartuns e tirinhas em mãos, alunos são levados a perceber e a debater situações polêmicas que envolvem a realidade. Sala de informática é território comum nas aulas da professora Sonia, que por meio de jornais eletrônicos estimula a leitura. 183