Francisco Seixas
da Costa
Embaixador.
Secretário de Estado dos Assuntos
Europeus (1995-2001)
A diplomacia portuguesa
e a Europa
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À luz do seu percurso profissional, o autor reflete sobre o caminho da ideia europeia no seio da nossa Administração
Pública e, em particular, no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).
Um bosquejo sobre a experiência da ditadura portuguesa nas instituições multilaterais conduz à conclusão de que a
«escola europeia» terá sido, até 1974, muito minoritária dentro do MNE e até algo contraditória com a preeminência
da defesa da política colonial. Tal não deu origem a conflitos abertos, pela emergência paralela de uma tendência europeísta em setores políticos e técnicos em ascensão no país. Foi o 25 de abril que deu pleno espaço a uma política europeísta na diplomacia portuguesa, embora marcada por algum voluntarismo e «impressionismo» dos respetivos atores
diplomáticos. As novas geração que passaram a intervir na política portuguesa para a Europa viriam também a estar,
por algum tempo, marcadas por uma atitude soberanista, que se refletiu na postura portuguesa na Europa.
Com a adesão à então CEE, aos diplomatas portugueses passou a ser exigido um maior conhecimento das temáticas
europeias, mas, durante alguns anos, a sua propensão para se manterem acantonados em áreas tradicionais da política
externa terá criado algum afastamento face aos setores técnicos com que conviveram nas estruturas de coordenação em
Lisboa. A adoção de uma perspetiva europeia nas áreas de trabalho onde atuavam terá acabado por contribuir para
a sua aculturação com os assuntos mais técnicos.
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With the background of his professional curriculum, the author offers a reflexion on the path followed by the European idea among our public administration and, in particular, in the Foreign Affairs Ministry.
A rapid glance over the experience of the Portuguese dictatorship in the multilateral institutions leads to the conclusion
that the «European school» has been, until 1974, vastly undervalued within the Foreign Affairs Ministry and even
somewhat contradictory with the pre-eminence of the colonial policy. This didn’t give rise to open conflict, given the parallel emergence of a European tendency in political and technical sectors growing in the country. It was the democratic
revolution of April 25, 1974 that gave the way to a European policy in the Portuguese diplomacy, although tinged
with some voluntarism and «impressionism» of its diplomatic performers. The new generation that started to intervene
in the Portuguese policy towards Europe would also be, for some time, marked by an attitude of «sovereignty» which
reflected on the Portuguese standing in Europe.
With the adhesion to the then EEC, it began to be demanded of Portuguese diplomats a greater understanding of
European themes, but, for several years, their tendency to remain entrenched in traditional areas of foreign policy generated some distance relative to the technical sectors with which they had to interact within the coordination structures
in Lisbon. The adoption of a European perspective in the working areas where they were inserted has come to contribute for their acculturation with the more technical issues.
S
erá interessante fazer-se, um dia, um
estudo cuidado sobre o percurso da
ideia europeia no seio da administração pública portuguesa e, muito em
particular, no pensamento em matéria de política externa gerado no Ministério dos
Negócios Estrangeiros (MNE). Enquanto tal não
tem lugar, teremos de nos contentar com leituras
algo impressionistas, muito tributárias de experiências pessoais, com todos os riscos inerentes
à limitação que esse tipo de visões tem. É o que
aqui hoje faço.
Entrei para a carreira diplomática portuguesa
imediatamente após o 25 de abril, num tempo
em que o lema «A Europa está conosco» andava pelas paredes e em que o Portugal democrático se mobilizou, com empenhamento, para vir
a ser aceite na então CEE. Nesse tempo, trabalhei na Noruega, onde o tema europeu, depois
do referendo de rejeição da adesão, era altamente polémico. Mais tarde, tive a oportunidade de
fazer parte da primeira estrutura que, no âmbito
do MNE, foi criada para acompanhar a presença efetiva de Portugal nas instituições europeias.
Nos anos seguintes, noutras funções, envolvi‑me, de muito perto, nas políticas comunitárias
de ajuda ao desenvolvimento, passando a ser um
visitante frequente das instituições europeias. Em
Londres, no Estado-Membro com uma posição
idiossincrática mais marcada face à Europa, segui a primeira presidência europeia de Portugal
e o intenso debate interno que culminou com o
afastamento de Margareth Thatcher. Foi o interesse pela Europa que me fez depois regressar a
Lisboa, para passar a assumir responsabilidades
dirigentes na área dos assuntos europeus, inicialmente como diplomata, depois em funções políticas por mais de cinco anos. Desde então, a Europa «persegue-me», de que é prova o que tenho
publicado. No termo deste percurso, confessome hoje um convicto europeu.
Mas sê-lo-ia, no início da minha carreira?
E era-o a diplomacia portuguesa, em geral?
A ditadura e a Europa
A ditadura portuguesa havia ficado à porta do
processo integrador que, nos anos 50, se começou
a desenhar no continente, no quadro da guerra
fria e do renascimento socioeconómico subsequente à tragédia que devastara a Europa, mas
que não afetara diretamente Portugal. As instituições europeias, para além de trazerem consigo
um modelo atípico de relacionamento entre os
Estados, tinham, para o poder político do Portugal de então, o defeito de exigirem a adoção
de um padrão democrático. A NATO, por um
pragmatismo tributário da realpolitik, não tivera
esses rebuços e deixara conviver o autoritarismo
salazarista com regimes de liberdade. Mas, para
o que realmente contava em termos da progressiva integração do continente, Portugal e Espanha permaneciam como uma espécie de grande
«aldeia de Asterix», na periferia europeia.
A rigidez da política colonial portuguesa, que
é, ao mesmo tempo, uma consequência da ditadura e um fator protetor da mesma, fez com que
a nossa diplomacia tivesse de se adaptar àquilo
que lhe era então pedido: defender e promover
uma política internacionalmente impopular e
inexequível a prazo. Os executores práticos da
nossa política externa levaram a cabo essa função com uma qualidade técnica indesmentível,
com um profissionalismo notável. Toda a carreira diplomática portuguesa soube colocar-se
ao serviço da execução dessa política oficial. Mas
nem todos os diplomatas pensavam dela exatamente o mesmo.
Dentro da diplomacia portuguesa, sem que
tal correspondesse necessariamente a fronteiras
ideológicas bem definidas, cedo ficou patente a
emergência de um grupo de funcionários que
começou a ver para além da cegueira ultramarinista e a perceber que, logo que diluído pela História o resto do sonho imperial, o terreno europeu seria aquele em que o futuro natural do país
iria ser jogado.
Esse é o tempo em que emergem, no MNE,
mas igualmente no Ministério das Finanças e outros departamentos económicos, também ligados
à Presidência do Conselho de Ministros, alguns
técnicos que olham já as coisas europeias como
fazendo parte do nosso inevitável destino. A adesão e a participação na EFTA é o movimento que
impulsiona essa nova cultura, no seio da qual alguns sonham com uma vinculação, mais cedo ou
mais tarde, às políticas de integração.
A «escola europeia» dentro do MNE foi, até
1974, ultraminoritária e, por vezes, vista com al-
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guma desconfiança pelos setores tradicionais da
carreira – muito marcados, como referi, pelo modelo de defesa da política colonial, então preponderante. Mas a verdade é que não houve nunca
um confronto aberto entre estas duas tendências,
que conviveram de forma relativamente pacífica,
sempre com os europeístas a encontrar conforto
em personalidades, de raíz política ou técnica, que
emergiam em alguns ministérios sectoriais, mais
reforçados no tempo «marcelista» da ditadura.
Depois de abril
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É o 25 de abril que altera radicalmente a relação
de forças dentro do MNE. Anulada que ficou,
pelo peso dos factos, a «escola ultramarinista», a
Europa surge como o espaço óbvio de afirmação externa do novo regime democrático, onde
foram buscados os principais apoios práticos
para a sua solidificação e muitos dos princípios
que estruturavam o seu discurso. Como é óbvio,
isso trouxe um alento novo a quantos, dentro do
MNE, consideravam importante garantir condições para, a prazo, conseguir consagrar a nossa
futura adesão às instituições europeias. Por essa
razão, é perfeitamente natural que esse núcleo de
funcionários tenha adquido uma preponderância
no quadro de chefias em que o novo poder político se passou a apoiar preferencialmente. De
um momento para o outro, a Europa passou a
ser vista, dentro da carreira, como um dos espaços profissionais de futuro.
Nesse novo contexto, tem lugar um fenómeno
de cooptação que pode ajudar a explicar muito
do que acabou por ser a nossa presença inicial
nas instituições comunitárias, bem como a primeira formulação doutrinária europeia dentro do
MNE. Os euroentusiastas, cuja formação técnica
era então muito voluntarista e algo impressionista,
alcandorados na hierarquia, iniciaram um processo de seleção de colaboradores que, naturalmente, privilegiou jovens e qualificados diplomatas,
seduzidos pela nova área diplomática que se desenhava como prioritária. Também estes, porém,
na sua esmagadora maioria, eram tributários de
uma ideia da Europa de raiz apenas intelectual,
em que o pensamento soberanista prevalecia,
em absoluto, sobre qualquer filosofia integradora de natureza federalista ou outra. Seriam alguns
desses diplomatas que viriam a assumir posições
hierárquicas de responsabilidades na nossa política europeia nas duas décadas seguintes. E isso
não deixaria de ter algumas consequências, nem
sempre as melhores.
Durante muito tempo, em especial durante
o longo processo de adesão, a política europeia
mantinha ainda os seus «dois pés» tradicionais
na administração pública portuguesa: o MNE e
o Ministério das Finanças. O processo de adesão foi negociado sob essa tutela dual, embora
de uma forma nem sempre harmónica, por vezes
arbitrada na instância governamental superior.
Esses dois mundos só se vêm a conjugar institucionalmente na nova estrutura criada em finais
de 1985, que viria a comportar também quadros
técnicos oriundos de outros ministérios que haviam estado envolvidos nas negociações da adesão. Essa nova estrutura – a então Secretaria de
Estado da Integração Europeia (SEIE) –, que
deu ao MNE um forte papel coordenador, seria
a primeira instância de convivência de todas as
valências que iriam ser relevantes na política europeia do país.
Diplomatas e técnicos
Para o que aqui nos importa – os diplomatas
e a política europeia – vale a pena dizer, em abono da verdade, que os funcionários oriundos da
carreira diplomática se mantiveram quase sempre
acantonados, no seio dessa SEIE, em departamentos mais próximos daquilo que era a matriz
tradicional da sua ação: questões institucionais e
relações bilaterais intraeuropeias.
A SEIE foi, contudo, o grande espaço de aculturação do trabalho comum de técnicos de diversas extrações com diplomatas com diferentes
formações. Ao olhar para trás, tenho hoje o sentimento de que esse processo de ação conjunta
não foi conduzido da melhor forma e, em especial, não se conseguiu que ele tivesse sido um fator de aperfeiçoamento funcional de que todos
pudessem beneficiar e em que o MNE pudesse
ganhar uma escala e sinergia à altura do desafio
com que estava confrontado. Concedo, contudo,
que essa possa não ser a visão de muitos.
Na cultura tradicional do MNE, a política –
tida esta pela elaboração teórica em temas inter-
nacionais mais tradicionais – teve sempre uma
prevalência óbvia na hierarquia temática interna, onde as áreas ligadas às questões económicas padeceram sempre de uma certa desvalorização na psicologia coletiva. Não obstante uma
recorrente retórica no sentido da promoção da
diplomacia económica, que passou a integrar o
«politicamente correto» dos diversos Governos,
a verdade é que foi sempre muito difícil convencer a maioria dos diplomatas a interessarem-se
pela negociação de posições pautais agrícolas ou
pelo mercado interno, em detrimento de temas
nobres, como o Kosovo ou a questão timorense.
Em perspetiva, entendo hoje que foi essa atitude,
para além doutros fatores conjunturais, que contribuiu para a progressiva perca de importância
do MNE no trabalho interministerial de coordenação dos temas europeus.
A formação dos diplomatas
Com a nossa adesão à então CEE, os assuntos
europeus passaram a estar no centro dos requisitos dos novos diplomatas admitidos no MNE.
Isso foi facilitado pelo facto do ensino universitário, embora muitas vezes numa perspetiva excessivamente teórica, ter enveredado por uma
maior atenção às questões da Europa. Também
no quotidiano do trabalho do MNE, a decifração
das questões europeias tornou-se essencial e facilitou progressivamente a generalização de um conhecimento global sobre os principais dossiês, em
especial os de matriz política mais acentuada.
Uma observação empírica reforça-me, contudo, a convicção de que a aculturação dos diplomatas portugueses à matriz europeia se fez,
essencialmente, pela via da política externa e de
segurança comum, através da partilha de uma espécie de «jurisprudência» diplomática que conduziu as Necessidades a um olhar sobre temas e
áreas geográficas que, durante muito tempo, não
faziam parte das linhas de interesse prioritário da
política externa portuguesa. Assim, o facto de
muitas das grandes questões de política internacional passarem por um debate em Bruxelas fez
com que os nossos diplomatas começassem, com
naturalidade, a sentir a necessidade de incorporar a dimensão comunitária sempre que tais temas eram abordados, o que chegou mesmo a ser
válido para alguns assuntos que, anteriormente,
estavam sujeitos, prioritariamente, à pura lógica
bilateral – de que o caso das relações luso-espanholas é talvez o mais evidente.
Também a necessidade da «coordenação comunitária», em todas as instâncias multilaterais onde
a diplomacia portuguesa passou a atuar, acabou
por criar, não apenas um modelo de trabalho diverso, mas igualmente uma tendencial cultura
comum de comportamento e reação. Aos diplomatas portugueses não passou, necessariamente,
a aplicar-se uma espécie de template europeu, mas
passou a ser sempre exigível uma visão europeia
dos temas abordados no seu quotidiano. E isso,
queiramos ou não, alterou o olhar português sobre muitas questões, para além de o despertar
para outras.
Deixo uma nota final para sublinhar o papel
extremamente positivo que representa a presença
conjunta de técnicos e diplomatas na Representação Permanente (Reper) que Portugal mantém em
Bruxelas. Foi nela que muitos diplomatas ganharam um conhecimento prático das grandes questões técnicas europeias, que enriqueceu a sua formação e que tem sido de extrema utilidade para
o desempenho do MNE neste domínio.
A pedido expresso do autor e muito embora a direcção da revista e a editora entenderem manter a opção ortográfica
tradicional e ainda em vigor em Portugal, o presente artigo já usa a solução consagrada no novo acordo ortográfico.
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A diplomacia portuguesa e a Europa