/ O
/ O
/ O
H O M E M
/ O
A C T O R
E N C E N A D O R
C O N S T R U T O R
/ “Uma Visita Inoportuna” de Copi,
com enc. de Jorge Castro Guedes.
JÚLIO
CARDOSO
/ 50 ANOS DE TEATRO
/ “Tio Vâ n ia”, de Anton Tchecov, 1987
/ “Sexta-Feira”, de Hugo Claus, 1982.
/ “Play Strindberg”, de Friedrich Durrenmatt, 1990
/ Foto António Alves
/ “Eu Sou a Minha Pró p ria Mulher”, de Doug Wright, com enc. de João Mota, 2010.
...............................................
O produto da publicação deste livro reverte
a favor da Associação Mutualista dos
Artistas - AMAR - CASA DO ARTISTA/Norte
...............................................
Com o apoio
JÚLIO
CARDOSO
/ NO PALCO DA VIDA
/ 50 ANOS DE TEATRO
/ ANTóNIO REbORDãO NAVARRO
/ ÍNDICE
..................................................................
/ pág. 17
/ GRATIDãO
..................................................................
/ pág. 19
/ O ACTOR – ARNALDO SARAIVA
..................................................................
/ pág. 23
/ AUTORES REPRESENTADOS
..................................................................
/ pág. 35
/ PREÂMbULO
..................................................................
pág 37
/ ALGUMA INFÂNCIA
..................................................................
/ pág. 38
/ UM ENCONTRO COM FERNãO
DE MAGALHãES
/ ÁLbUM DE FAMÍLIA
..................................................................
/ pág. 39
/ ADOLESCÊNCIA
..................................................................
/ pág. 50
/ O bOMbARDEAMENTO DA EMISSORA
/ A FRAGATA “AFONSO DE
ALbUQUERQUE”
..................................................................
/ pág. 51
/ O FIM. A PRISãO
..................................................................
/ pág. 52
/ SEIS MESES DE INFERNO
..................................................................
/ pág. 53
/ O “CHICO”
/ O REGRESSO
..................................................................
/ pág. 54
/ PARÊNTESIS COM GOA
/ RETOMAR A VIDA
..................................................................
/ pág. 55
/ UM CASAMENTO
/ A VIDA MILITAR
..................................................................
/ pág 43
/ ÍNDIA
..................................................................
/ pág 44
/ GOA: OUTROS TRAbALHOS
..................................................................
/ pág 45
/ DEUS LHE PAGUE
/ “FEDRA” E OUTRAS ACTIVIDADES
TEATRAIS
..................................................................
/ pág. 56
/ CHICO TEIXEIRA DE ALMEIDA
..................................................................
/ pág. 57
/ O ACTOR DIRIGE-SE AO CRONISTA
..................................................................
/ pág. 59
/ O “TEP”, A ÁRVORE”
..................................................................
/ pág. 60
/ DIREITOS DE AUTOR
..................................................................
/ pág. 61
/ DESEJO E OCULTAÇãO
..................................................................
pág. 62
/ UMA DOR ANTIGA
/ ENCENAÇãO DO REAL
..................................................................
/ pág 46
/ O GOVERNADOR
..................................................................
/ pág 47
/ O ROSTO CONTRA O SOL
/ ACIDENTES
..................................................................
/ pág. 63
/ O CÍRCULO DE CULTURA TEATRAL
..................................................................
/ pág. 64
/ VICISSITUDES
/ O PODER DO ACASO. O PRIMEIRO
ENCONTRO COM O TEATRO
..................................................................
/ pág 41
/ O “RIVOLI” EM QUESTãO
/ OS MESTRES, A ESTREIA
..................................................................
/ pág 42
/ TEATRO MODERNO DO PORTO
/ SINAIS DE GUERRA
..................................................................
/ pág. 65
/ UM FILHO
..................................................................
/ pág. 66
/ EPISóDIOS SIMPLES
..................................................................
/ pág. 67
/ O “ZÉ CARIOCA”
/ LIbERDADE E CENSURA
..................................................................
/ pág. 68
/ LUÍS TITO
/ “UM DOS ACTORES MAIS PATEADOS
DO PAÍS”
..................................................................
/ pág. 70
/ COM ANTóNIO PEDRO
/ “O JUDEU” DE bERNARDO
SANTARENO
/ UM TEATRO MUNICIPAL NO PORTO
..................................................................
/ pág. 71
/ ARMANDO bAPTISTA
..................................................................
/ pág. 72
/ OUTRAS CENAS NO
“TRANSMONTANO”
/ COMO JÚLIO CARDOSO SE FEZ SóCIO
DO “bOAVISTA FUTEbOL CLUbE”
E AS “HISTóRIAS PARA SEREM
CONTADAS”
..................................................................
/ pág. 73
/ CURSOS DE TEATRO.
TEATRO PARA CRIANÇAS
..................................................................
pág. 74
/ SObRE CãES E GATOS
/ O GRUPO DE TEATRO DA OLIVA
..................................................................
/ pág. 75
/ RUGGERO JACCObI
..................................................................
/ pág. 76
/ “O MAIS FELIZ DOS TRÊS”
/ O ÊXITO INTERROMPIDO
..................................................................
/ pág. 78
/ HONRAS E SOLIDãO
/ UM TELEFONEMA ESPANHOL
..................................................................
/ pág. 81
/ A RUA ANTóNIO PEDRO
/ O REGRESSO
/ O VELHO E O NOVO
..................................................................
/ pág. 82
/ UM CONVITE DE VASCO MORGADO
/ SUbSTITUIR RAUL SOLNADO
..................................................................
/ pág. 83
/ JÚLIO CARDOSO E A CRÍTICA
..................................................................
/ pág. 86
/ ANTóNIO REIS
/ O GRUPO DE TEATRO INDEPENDENTE
“ANTóNIO PEDRO”
..................................................................
/ pág. 90
/ SEIVA TRUPE
..................................................................
/ pág. 91
/ “CATARINA NA LUTA DO POVO”
..................................................................
/ pág. 94
/ TRAbALHOS E CANSEIRAS
/ CORRERIAS E CANSAÇOS
..................................................................
/ pág. 95
/ UM TOMbO RESPEITÁVEL
/ UM PROJECTO GORADO
..................................................................
/ pág. 96
/ UM POEMA PERDIDO
/ JÚLIO CARDOSO E LUIZ PACHECO
..................................................................
/ pág. 97
/ CONTOS CRUÉIS
..................................................................
/ pág. 98
/ UM PERÍODO DA VIDA
/ A ESCOLA SUPERIOR ARTÍSTICA
DO PORTO
..................................................................
/ pág. 99
/ AUTO EXAME bREVE
/ O TEATRO DE S. JOãO
..................................................................
/ pág. 100
/ A CRIAÇãO DO FITEI
..................................................................
/ pág. 102
/ O PRIMEIRO FITEI E OS PRObLEMAS
INERENTES
..................................................................
/ pág. 103
/ O INCÊNDIO DA CARRINHA
..................................................................
/ pág. 106
/ MAIS PRObLEMAS
..................................................................
/ pág. 120
/ “TEATRO DO CAMPO ALEGRE”
..................................................................
/ pág. 121
/ PROTESTO
..................................................................
/ pág. 122
/ S. JOãO E PRÉMIO DE MELHOR
ESPECTÁCULO
/ A DEDICAÇãO E O PRAZER
DO TEATRO
/ O HORROR ÀS PROFUNDIDADES
/ DESAPARECE UM ELEMENTO
O FESTIVAL INTERNACIONAL
DE TEATRO LATINO-AMERICANO
..................................................................
/ pág. 108
/ “AbAJO EL IMPERIALISMO YANKEE!”
/ JÚLIO CARDOSO NA ONU
..................................................................
/ pág. 109
/ PARÊNTESIS
/ UM HOMEM SENTADO
..................................................................
/ pág. 111
/ AS COSTAS EM bRASA
/ “QUANTO VALE UM POETA”
..................................................................
/ pág. 112
/ ANTóNIO REIS E A SANITA
QUEbRADA
..................................................................
/ pág. 114
/ “MISTÉRIO bUFO” EM PENAMACOR
..................................................................
/ pág. 116
/ AINDA O “MISTÉRIO bUFO”
/ TELEFONEMAS A DESORAS
/ O FITEI E A SUA EXPANSãO
..................................................................
/ pág. 117
/ A VENDA DO COLISEU DO PORTO
..................................................................
/ pág. 118
/ O ENSINO DO TEATRO
..................................................................
/ pág. 119
/ PRONÚNCIA DO NORTE
/ ESPECTÁCULOS FORA DE HORAS
..................................................................
/ pág. 123
/ “SISTEMA” EM SENTIDO LATO
/ SObRE MOÇAMbIQUE
..................................................................
/ pág. 124
/ NA FIGUEIRA DA FOZ
/ UM TEATRO EM MOSCOVO
..................................................................
/ pág. 125
/ O CIRCO DE MOSCOVO
E O TEATRO bOLSHOI
/ POLóNIA
..................................................................
/ pág. 126
/ bARCELONA
/ KIEV
/ bUENOS AIRES
..................................................................
/ pág. 128
/ E AGORA FUTEbOL
/ EVOCAÇãO DE JAYME VALVERDE
..................................................................
/ pág. 129
/ E AINDA SEIVA TRUPE
..................................................................
/ pág. 130
/ EU SOU A MINHA PRóPRIA MULHER
/ UM PROJECTO DE VIDA
..................................................................
/ pág. 133
/ NOTA FINAL
/ Esta publicação só foi possível com o apoio da
Fundação Engº António de Almeida e do bPI, nas
pessoas dos Senhores Doutores Fernando Aguiar branco
e Artur Santos Silva.
Aqui fica, portanto, o nosso amplo agradecimento.
/ GRATIDÃO
Gratidão – neste caso – por muito valor que lhe possamos prestar, não passará de mais uma simples e vã palavra ou de uma particulazinha perante o
incomensurável esforço, dedicação e amizade que o António Reis, o Júlio
Filipe, a Nina, Marta, Humberto Nelson, Adérito, Júlio Gago e outros puseram na feitura do livro, especialmente pela força e pelos constantes empurrões que nunca se cansaram de me dar, pela paciência para aturarem as
minhas rezinguices e pelo bom gosto que exigiram que este Palco da Vida
transportasse. Não tenho mais do que pôr a minha alma neste reconhecimento. De igual modo, todo o meu íntimo explode com o profundo sentido
de um muito obrigado ao António Rebordão Navarro.
Evidentemente que jamais poderei esquecer esse grande artista, Paulo Carteiro,
que sempre está fora do alcance da luz dos projectores. Na sombra, com toda
a sua rara sensibilidade, inteligência e técnica, apaixonou-se pelo meu ofício.
Numa prova de sanguínea amizade, com a sua alma artística e o seu talento,
quase com raiva e com paixão, resolveu criar vários retratos dos quais alguns
alguns enriqueceram este livro.
Júlio Cardoso
/17
Pintura: Paulo Carteiro
O ACTOR
O papel que lhe coube: génio
E era em palco um génio
genial
Corrida a cortina
caladas as palmas
a sala vazia
lá estava ele outra vez
a contas com as contas
a hérnia
a paixão sem suporte
no velho papel de pobre
diabo
ARNALDO SARAIVA
/19
/ Júlio Cardoso.
/ “Lux in Tenebris”, 1975.
/ Recebeu prémios, troféus e homenagens
/ Paralelamente à sua vida de actor/encenador teatral,
participou em televisão - cinema - ópera - publicidade
e foi “diseur” em centenas de recitais de poesia.
/ Tem sido considerado uma importante referência como
animador sócio-artístico-cultural e programador, de
profundos conhecimentos, estando ligado a iniciativas
de grande fôlego tanto no país como no estrangeiro
/22
/ Alguns autores representados por Júlio Cardoso ao longo da sua carreira:
/ William Shakespeare / bertold brecht / Miguel Unamuno /
/ Paer Lagerkvist / Carlo Goldoni / Karl Wittlinger /
/ Guilherme Figueiredo / Silvano ambrogi / José António
Ribeiro / Romeu Correia / Walmir Ayala / Miguel Mihura /
/ António Pedro / Túlio Pinneli / José Régio / Gil Vicente /
/ Leon Chancerel / António José da Silva / Joseph Kesselring /
/ bizet / Raúl brandão / E. Labiche / Papiniano Carlos /
/ Stella Leonardos / Terence Mcnally / Carrigialle / António
Tabucchi / Robert Anderson / Sófocles / Camilo Castelo
branco / Jean Genet / Ricardo Monti / Dário Fo / Marcelo
Rubens Paiva / Ionesco / Gervásio Lobato / Mário Cláudio /
/ Almeida Garrett / Pam Gems / Fassbinder / Michael Frayn /
/ Eric Emmanuel / Schmitt / Carl Djerassi / Roald Hoffman /
/ Roberto Cossa / Margarida Fonseca Santos / António
Skármeta / Gluck / Orlando Neves / Pedro bandeira Freire /
/ Victor Haim / Augusto Cuzzani / Luís Francisco Rebelo /
/ Luís Humberto Marcos / John Osborne / bernardo Santareno
/ Plínio Marques / Pedro barbosa / Maricla boggio / Cliford
Odets / Armand Salacrou / Camões / Nelson Rodrigues /
/ Hugo Claus / Copi / Friedrich Durrenmat / Eça de Queirós /
/ Nicolau Gogol / Samuel becket / Federico Garcia Lorca /
/ Luigi Pirandello / Anton Tchecov / Heiner Müller / Oswaldo
Dragun / Thomas bernhard, e outros.
/23
/ Em Agüimes – Canárias, depois de uma representação da Secreta Obscenidade, José Saramago foi homenageado pela Câmara local.
Em palco Júlio Cardoso e António Reis com escritores ibero-latinos-americanos. O Alcaide declarou que, juntamente com outros municípios
espanhóis, iria propor Saramago a Prémio Nobel.
/ Recebido por Ramalho Eanes.
/ Entregando o Prémio Seiva ao Prof. Corino de Andrade.
/ Confraria das Tripas.
/ Jú l io Cardoso recebendo das mãos do actor o Prémio
Nacional de Teatro Ruy de Carvalho.
/ Recebendo das mãos do Presidente da República, Prof. Cavaco Silva, a Medalha
como Membro da Ordem de Mérito atribuída à Companhia Seiva Trupe.
/ Pré m io Seiva - José Rodrigues.
/ Pré m io Carreira Fantasporto.
/ Recebendo a Medalha de Mérito Distrital da Ministra da Cultura e da Governadora Civil do Porto.
/ “Afonso III” - Teatro Municipal Sá de Miranda, Viana do Castelo.
/ Na Ramalhal figura - Ramalho Ortigão.
/ No “Auto da Índia”, de
Gil Vicente, com enc. de
Carlos Avilez e cenário
de Júlio Resende, 1965.
/ Em 1982 na Festa da Poesia em Salvaterra do Miño com o escritor e
jornalista Altino Tojal e o actor Rogério Paulo.
/ No filme “O Viajante”, de António Damião.
/ Em D. Magnífica da Costa no espectáculo
“Luzes de Palco”, com enc. Norberto Barroca,
que foi comprar uns tecidos para a sua pensão
Magnífica a uma magnífica casa no Largo dos
Lóios, cujos proprietários eram do Conjunto
António Mafra e é atendida por um irmão Mafra.
/ Teleteatro com a obra de Alfonso Sastre “A Morte no Bairro”, com José Pinto.
/ “Marlene”, de Pam Gems - Júlio Cardoso dirige Simone de Oliveira, 2001.
/ “Henrique IV”, de Luigi Pirandello.
/ Em “A Desconhecida de Arras”, de
Armand Salacrou, com Alda Rodrigues.
/ Nos “Três Chapéus Altos”, de Miguel Mihura.
/ No Grupo de Trabalho de um espectáculo que ficou célebre no Porto “Histórias para serem contadas”, de Oswaldo Dragun.
/ Na Festa da Poesia em Afife com Natália Correia, Pedro Homem de Mello e José Carlos Ary dos Santos.
/ Com Dina Sfatt, António Reis e José Cayolla.
/ No 10º Aniversário do TEP.
/ PREÂMBULO
Passando este ano meio século da vida teatral de Júlio Cardoso, decidiram os seus amigos e admiradores celebrar esta data, reunindo num livro alguns passos da sua vida e da
sua carreira, tarefa nem sempre fácil, pois quando com ele se insistia para evocar acontecimentos e lembranças, declarava, peremptório, que “Hoje e amanhã é que interessam, o
passado já foi.”
No entanto, e ao longo de sessões várias, conseguimos trazer de Ponte da barca aquele
menino nascido em 8 de Setembro de 1938, com ele o seu pai, praticante de tiro aos pombos que interromperia o prélio porque o seu filho tinha fome. Com a morte do progenitor
a evocação de outros familiares, marcando-lhe a infância com relevantes traços de carácter
que para sempre recordaria. Depois, com a mãe e a irmã, a vinda para o Porto, a prossecução dos estudos, a carreira de promissor e jovem executivo da “Regisconta”, interrompida
pela perseguição de uma rapariga dirigindo-se para um curso de teatro no Clube Fenianos
onde Júlio conheceria o actor Jayme Valverde, esse homem tão humanamente interpretando a figura de Ivan Ivanovitch Nioukhine que daria lugar à lenda correndo o Porto de
ter servido a Tchekov de modelo para a personagem de “Os malefícios do tabaco”. Ainda
as vicissitudes porque passou na Índia Portuguesa, onde inclusivamente seria dado por
morto, constituem traços marcantes da biografia do actor que foi também um dos fundadores desse importante grupo de teatro que é a “Seiva Trupe”, bem como um dos mais importantes elementos desse festival internacional de teatro que é o “Fitei”.
Ainda as andanças do actor pelo mundo, as lições de teatro que elas lhe proporcionaram,
a convivência e a estima que o ligaram a actores e autores, até a sua faceta de apreciador
de futebol fornecem-nos uma ampla perspectiva do percurso de um actor pelo palco da vida.
/35
/ Júlio Cardoso - 3 anos.
/ João Júlio Barreira Cardoso – pai.
...............................................................
/ ALGUMA INFÂNCIA
Um dos primeiros episódios que recorda e lhe traz
a imagem de seu pai vem dos idos da infância e aí
batem asas, soam tiros e ele desempenha papel primordial. Teria uns cinco anos e assistia a um torneio
de tiro aos pombos entre o progenitor, adepto de tal
modalidade e um outro concorrente não natural da
barca. O cenário era um campo de futebol junto ao
rio Lima. Estavam uns cavalheiros sentados a uma
mesa e um homem tapado com uma serapilheira
puxava uns fios. A assistência aplaudia. Mas, perto
da vitória, o pai constata que o filho tem fome. Fome
e sono e, atendendo a tais necessidades, põe termo
ao campeonato.
Morreria pouco depois. E, com a sua morte, a
vida de Júlio e dos seus altera-se. A irmã necessita
seguir os seus estudos secundários. A mãe, menina
bonita de D. Azevedo, nunca trabalhara. Mas, naqueles tempos, sem reformas nem subsídios, mas
dívidas acumuladas pela doença do marido, não tem
outro remédio senão vender a casa onde viviam que
ainda hoje se mantém junto ao edifício abandonado
da Guarda-Fiscal, com ela todas as leiras e vem para o Porto procurar emprego que lhe consinta manter a filha a estudar, visto que em Ponte da barca
não existiam estudos liceais. A partir de então o
filho vai viver para a Quinta da Vinha, na freguesia
de Magalhães, com o avô paterno e as tias solteiras,
passando a ser conhecido por Julinho da Vinha.
Aí foi crescendo, brincando com os mocitos do
lugar, jogando com eles, sob uma latada, a sua bola
de borracha, sendo unanimemente escolhido para
guarda-redes e aplaudido nas suas defesas pelos
mais velhos que assistindo aos jogos o designavam
por Azevedo, então futebolista célebre do Sporting
Clube de Portugal.
Como a escola de Magalhães tinha uma professora regente, teve, após os dois primeiros anos, Júlio
Cardoso de ser transferido para a freguesia vizinha
de S. Tomé do Vade, sendo-lhe o almoço levado por
uma serviçal muito se arreliando por ele a retardar
com jogos de bola e, nesses tempos de fome e escassez, dividir a refeição com os colegas mais necessitados, o que obrigaria a sua boa tia Anésia a aumentar
as doses de comida.
Sendo as instalações da escola de S. Tomé diminutas e rudimentares houve que construir-se uma
outra. A inauguração do novo estabelecimento originou solene festa e, porque o Julinho da Vinha demonstraria algumas qualidades teatrais, Dª. Ludovina, a sua
professora, encarregá-lo-ia de decorar alguns versos
de exaltação patriótica que o rapazinho declamaria
perante os senhores Inspector-Geral, Presidente da
Câmara e Governador Civil. Estalariam foguetes,
aplausos e, perante tão digna assistência, o seu primeiro público, Júlio Cardoso sentir-se-ia envaidecido.
/37
/ A Casa da Vinha.
..............................................................
/ UM ENCONTRO COM FERNãO
DE MAGALHãES
Teria Júlio Cardoso 7 ou 8 anos, quando, seguindo
com seu avô por uns atalhos para apanharem a carreira em Paço Vedro, ao passarem por uma capela
a meio de uns silvados, inquiriria: “Avô, que capela
é esta que está sempre fechada e com uns santos muito
feios?” Extremamente católico, o avô repreendê-lo-ia: “Nenhum santo era feio” e a capela pertencia
à Casa de Paço Vedro, constando que ali fora baptizado Fernão de Magalhães, narrando-lhe os seus
gloriosos feitos. De facto, embora durante muito
tempo se atribuísse a Sabrosa o lugar do nascimento
do navegador e muitos romeiros, especialmente do
Chile, por isso se deslocassem àquela região, como
também havia de dizer-se ter nascido no Porto, o
que não faria sentido por ser Fernão de Magalhães
de origem fidalga e, como tal, impedida a permanência dos seus nessa cidade, o que parece hoje
cabalmente demonstrado é ser ele natural de Ponte
da barca.
Haverá alguma relação entre Magalhães e Cardoso,
além dessa provável naturalidade? O actor diz que
não. Talvez só uma certa incompreensão e ainda um
contraste porque Júlio Cardoso sempre se recusou
a emigrar, apesar de muitas solicitações e propostas
nesse sentido se lhe terem deparado.
/38
..............................................................
/ ÁLbUM DE FAMÍLIA
Ao contrário da família Azevedo, o ramo paterno
do actor era plebeu e, segundo consta, seu avô, um
torna-viagem, chegou a ser considerado uma das
grandes figuras da região. Na primeira República,
uma das maiores casas comerciais de braga – a
Casa Redonda – era dele. Na freguesia de Magalhães, além de muitos bens ao luar espalhados pela
aldeia, pertenciam-lhe duas grandes quintas, a da
Igreja e a da Vinha. Certa vez, contar-lhe-ia uma
história que jamais esqueceria. O pai dele era um
dos caseiros da Quinta da Vinha. Um caseiro especial, género feitor. Pertencia a Quinta ao Conde do
Casal que ali vivia com a sua família. Um dia, propôs o fidalgo ao seu feitor que levasse o filho a sua
casa, de cara e mãos lavadas, pois desejava dar-lhe
uns rebuçados. Lá foram. Havia um piano em certa
sala e o rapazinho aventurou-se então a tocar numa
tecla. Mal o fez quase o prostrou violento cachaço
desferido pelo titular que se encontrava atrás de si.
O pai pediu perdão pela falta do filho. O conde declarou ter já aplicado merecido correctivo e deu
por findo o encontro.
O feitor faleceu e o filho rumou ao Porto, trabalhando numa refinaria de açúcar na Rua do bonjardim. Estudava e lia muito. Poupava, poupava, pensando sempre no brasil, nesses tempos a imagem do
Eldorado. Quando juntou o suficiente partiu num
vapor rumo a S. Paulo que por então era só mato.
Foi um dos seus construtores e por quatro vezes,
em viagens demorando 31 a 34 dias, para lá rumou.
/ João Júlio Cardoso – Avô paterno.
/ Júlio Cardoso.
Em dada altura, soube que a Quinta da Vinha estava
à venda. Foi ter com o Conde para a comprar. Informado do preço, apenas perguntou: “Nessa quantia
está incluído o piano?” O fidalgo anuiu. Então
adquiriu a propriedade.
Deste antepassado falecido há mais de cinquenta
anos guarda o actor uma lembrança indelével e embora desde jovem tenha tomado posições políticas
contrárias, apoiando Arlindo Vicente e depois Humberto Delgado, hoje compreende e aceita o conservadorismo do avô e da sua família, entre esta a mãe,
inicialmente monárquica e só depois, mas à custa,
salazarista, implorando-lhe que não fosse caçador
nem político e dando-lhe como exemplo um seu
irmão a quem, durante o sidonismo, chegariam a
arrancar-lhe as unhas. E Júlio Cardoso que diziam
muito igual a seu pai, embora, ao invés dele, amasse
pombos e outros pássaros, sente profunda mágoa
por sua mãe ter falecido antes do 25 de Abril.
..............................................................
/ ADOLESCÊNCIA
Concluído o exame de admissão e por então não
existir em Ponte da barca ensino secundário, vem
Júlio Cardoso para o Porto. Nessa altura pensava ser
bombeiro, aviador ou guarda-livros. Mas seria esta
última a carreira que seguiria, devotando-se com entusiasmo à contabilidade. Nessa altura, uma grande
empresa de escritório e organização estabelece-se na
cidade, passando a ser a mais importante a norte do
Mondego. É a “Regisconta”e Júlio Cardoso inicia a
sua actividade nos serviços administrativos. Algum
tempo depois e em horas extras é o responsável pela
escrita da representação do “Martini”. Desta época
recorda o actor com saudade o representante do vermouth Albino de Jesus. A firma de máquinas e equipamentos cresce e atrás do departamento comercial
e nas instalações, organização, direcção de serviços,
destaca-se o futuro actor.
..............................................................
/ O PODER DO ACASO. O PRIMEIRO
ENCONTRO COM O TEATRO
Ora, num fim de tarde em que com os seus 17 anos
descia a Avenida dos Aliados, junto ao cruzamento
com “O Comércio do Porto”, cruza-se Júlio Cardoso
com uma rapariga de rabo de cavalo e formas atraentes que o levam a segui-la. Estaria longe de supor
que aquele fortuito encontro o conduziria a um novo destino. Mas não seria ainda nesse dia que a sua
vida encontraria novo rumo. A perseguição seria interrompida por interpelação do seu amigo Eleutério,
antigo jogador do Futebol Clube do Porto e por
então proprietário da Cervejaria Capitólio. Nessa
altura, a rapariga desapareceria. Passados dois ou
três dias, voltaria Júlio Cardoso a pensar nela, efectuando o mesmo percurso cerca da mesma hora na
esperança de voltar a vê-la e aguardando-a junto ao
“Guarani”. Já quase desanimava e tomava o caminho da Praça, quando a moça apareceu e lhe sorriu.
Enchendo-se de coragem, perguntou se poderia
acompanhá-la. “Que sim, responderia ela, mas só
até aos “Fenianos”. Vou para uma aula de teatro
e já estou atrasada”.
/39
/ Ao centro JOSÉ RÉGIO conversando com Dr. Ferrão Moreira. Ao fundo de pé a contar
da esquerda Júlio Cardoso é o quarto, já director da Secção Cultural para a Juventude
do Clube Fenianos Portuenses.
– Teatro?, inquiriu Júlio.
– Sim, sim, de teatro, porquê? Não gosta?
Ele gostava e logo lhe fez várias perguntas: se
podia frequentar tais sessões, como poderia inscrever-se, quem era o professor. Se podia assistir, etc.
Ela foi respondendo e quando ele manifestou interesse em assistir à lição desse dia, a rapariga foi
falar ao mestre a tal respeito, declarando então ao
porteiro que seguiriam para a Sala Gil Vicente.
O mestre era Jayme Valverde, o grande actor e
brilhante intérprete de “Os malefícios do tabaco”,
de Tchekov. Era um homem alto, calvo, que fazia
diariamente a barba à cabeça e nunca usava gravata.
Morava na Rua de Santo Ildefonso e Júlio Cardoso
considera-o “um milionário de sonhos” que lhe incutiu humildade e amor ao estudo, à investigação,
à modernidade. Valverde possuía essas e muitas
outras qualidades. Sonhando derrubar a ditadura,
fora protagonista da célebre revolta da Mealhada:
mesmo quando lhe comunicaram que a mesma tinha
sido adiada, não desistira. Levava consigo quatrocentos homens e saíra de Cavalaria 6 à frente de
um comando, num side-car. Na Mealhada, face à
desproporção das forças sitiantes, despromoveu-se
a si próprio, fazendo uma patriótica alocução às
suas fiéis tropas. A partir daí, sempre que havia
movimentação revolucionária, lá o iam buscar à
casa onde vivia e mantinha um estabelecimento de
guarda-roupa teatral.
/40
/ Jayme Valverde em “Os Malefícios
do tabaco”.
Consentiria o mestre que o novato assistisse à
lição e dela nunca mais se esqueceu Júlio Cardoso
que versava Ortofonia, seguindo atentamente a exposição, explicando as várias formas de colocação
da voz através das falas dos diabos das peças vicentinas. Os alunos iam repetindo o termo “oremus”
com a voz no peito. O professor corrigia, explicava,
sugeria. Até que, por último, decidiria chamar o novato à lição. Ficaria satisfeito com a prova e, finda
esta, Júlio Cardoso inscrevia-se no curso. Era o chamamento do Teatro fazendo desaparecer a rapariga
que involuntariamente o levara até ali. Iniciar-se-iam então mais de cinquenta anos de uma vivência
profunda com denodado estudo e entusiasmo, com
inquietação e desassossego em que tentaria de todas
as formas seguir as lições dos Mestres que ao longo
da vida lhe abriram horizontes, lhos transmitiram e
ele passou humildemente a incutir nos outros.
A partir daquela primeira lição nos “Fenianos”,
o Teatro passou a ocupar papel fulcral na sua vida,
fazendo parte de um núcleo de fidelíssimos alunos
de Jayme Valverde que o seguiriam por mais de três
anos e participando noutros cursos no “Teatro Experimental do Porto”. A humanidade do mestre, o seu
saber e sonho, a sua verticalidade constituiriam uma
escola exemplar.
/ Teatro Rivoli - Porto.
/ Deniz Jacinto.
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/ O “RIVOLI” EM QUESTãO
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/ OS MESTRES, A ESTREIA
Ao núcleo de Teatro do “Leão d’Ouro”, onde naturalmente pontificava Jayme Valverde chegaria por
esses tempos a notícia de que o Teatro Rivoli iria
ser demolido para aí se instalar a sede do banco
borges e Irmão. Valverde garantia que tal empresa
não seria efectuada sem firme contestação, afirmando, convicto, que, iniciando-se os trabalhos, imediatamente, embora pacificamente, resistiria, deitando-se no hall da entrada e dali não saindo, ainda que
lhe lançassem jactos de água ou o espancassem.
A ele se juntariam outros, entre eles Cardoso, firmemente determinados a não deixar destruir o antigo
teatro. Este movimento repercutiu-se, chegando ao
conhecimento da administração do banco, prometendo edificar um pequeno teatro nas instalações
do prédio que ocupava na Travessa dos Congregados. Jayme Valverde recusou tal proposta. O que
não permitia era a destruição do “Rivoli”. Dona
Maria borges intercedeu, pedindo a seu filho Francisco que, enquanto fosse viva, não tirassem à cidade o célebre teatro. E assim se fez, o que demonstra que é já antiga a luta pela conservação do célebre recinto.
Seriam António Pedro, Deniz Jacinto e Jayme
Valverde os verdadeiros e primeiros mestres de
Júlio Cardoso que, continuando a estudar e a exercitar-se nas lides teatrais, participaria em récitas,
coros mímico-falados, análises e obras dramatúrgicas, até que, em certa noite de 1959, Amadeu Meireles, um tchekoviano compulsivo, homem da rádio,
do teatro e da boémia, lhe sussurra como contraregra: “Entra!”. Tal ordem paralisa Júlio Cardoso,
mas um forte cachaço o impele para o palco. Já não
está no casarão do “Teatro Sá da bandeira” a abarrotar de espectadores, mas em Tebas de mitos e prodígios. É em “Antígona”, de António Pedro, Hemon,
filho de Creonte e noivo de Antígona. Acabou o Julinho da Vinha, desapareceu o homem da Regisconta.
Nasceu o actor Júlio Cardoso.
A Sala Gil Vicente onde entrara pela primeira vez
com uma rapariga que seguira seria integrada na Secção Cultural para a Juventude do Clube Fenianos Portuenses. À frente da direcção encontrava-se o grande
pedagogo Ferrão Moreira. Aqui se movimentavam
centenas de jovens e cada um tinha, pelo menos, de
frequentar uma das cerca de trinta disciplinas ministradas por professores criteriosamente seleccionados
pelo Dr. Ferrão Moreira. Ainda muito jovem, não
teria mais de dezoito anos, Júlio Cardoso pertenceria
já à direcção. Depois, aquele grupo tornar-se-ia independente através da formação do “Centro Cultural
Ramalho Ortigão” cujos estatutos não escapando à
matriz oficial teriam uma aprovação provisória.
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/ Placas nos Fenianos.
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/ TEATRO MODERNO DO PORTO
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/ A VIDA MILITAR
É então que um grupo, não se dirão dissidentes,
mas amuados/ aborrecidos com o TEP, onde, entre
outros, pontificavam Fernando Gaspar, João Apolinário, João Maia, Moreira Azevedo resolveram fundar o Teatro Moderno do Porto, e Júlio Cardoso, em
sintonia com Valverde e Ferrão Moreira. Começa a
frequentar as sessões de formação à volta da obra
de Thornton Wilder “A Nossa Cidade”. Ao fim de
alguns meses, Cardoso não aguenta mais essas sessões de formação, pois fora nomeado mediador
entre os dois organismos teatrais existentes nos
Fenianos, relações essas que se tornaram complicadas.
Dever-se-á frisar que na sua curta existência o
Teatro Moderno do Porto teve um papel apreciável
na cultura teatral da cidade. Seria lá que Júlio
Cardoso conheceria pessoalmente Eugene Ionesco
e Luís de Lima, esse encenador lamentavelmente
esquecido que, além de ser director artístico do
grupo, seria encenador e protagonista de um memorável espectáculo, “Arlequim Servidor de Dois Amos”,
de Carlo Goldoni. Sendo ainda de destacar, entre
outros, dois actores que saíram deste grupo: Mário
Jacques e Ortins Donato.
Ainda não eram tempos de se falar de descolonização que apenas seria invocada por Sottomayor
Cardia no cinema Nun’Alvares, o que daria lugar à
intervenção do comandante das forças policiais de
serviço no local. Não havendo “colónias”, não se
poderia falar de “descolonização” nas províncias e
conquanto se pressentisse uma ligeira alteração no
Estado Português da Índia, a estrutura militar de
então seria mais do que suficiente para aguentar
os problemas, não sendo de estranhar que qualquer
cidadão ficasse, na inspecção, isento do serviço
militar. Assim, nunca pensaria Júlio Cardoso ser
incorporado. Até porque sua mãe intercedera junto
de um coronel-médico, amigo da família, em livrálo da tropa, garantindo-lhe o oficial que tudo correria normalmente, baixando ao hospital assim que
fosse incorporado. O pior é que na semana anterior
à incorporação, vitimado por ataque cardíaco, morreria o coronel-médico e Júlio Cardoso teria de seguir a vida militar a que era visceralmente avesso
e à qual não desejava prestar senão o mínimo a que
fosse obrigado. Recebe então do Ministério do Exército o telefonema de um amigo, avisando que iria
haver mobilizações no seu curso, sendo os últimos
classificados os primeiros a partir para a Índia. Por
esse facto empenhou-se a sério na carreira, ficando
entre os três primeiros classificados. Imediatamente
partiriam os últimos, mas, passado algum tempo,
seria obrigado igualmente a segui-los.
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/ Niassa.
Não tendo coragem de comunicar à mãe o seu
exílio, dir-lhe-ia que iria a Lisboa por dois dias.
Na estação de S. bento havia uma pequena multidão
despedindo-se dos expedicionários e a imagem materna dolorosamente o perseguiu.
A Índia começava a ser caso do dia devido aos
enclaves que lá tinham sido absorvidos e aos “satyagrahis”, de quando em quando penetrando nos territórios sob bandeira portuguesa e, por conseguinte,
uma multidão se despedia dos soldados partindo no
“Niassa”. bandas de música, fados, altas patentes,
bandeiras portuguesas de todos os tamanhos, lenços,
toalhas, lençóis, tudo servia para o adeus. No meio
da confusão e do ruído, consegue Júlio divisar seu
tio que tratava por Pai-Zeca, escrivão do tribunal da
boa Hora e muito querido de toda a família. O abra ço amigo desse parente, muito parecido com seu pai,
dar-lhe-ia um certo conforto, não bastante porém
para o fazer esquecer sua mãe, aguardando-o no
Porto.
A determinada altura da viagem, verificou-se uma
intoxicação alimentar, atingindo elevado número de
pessoas. Era Júlio Cardoso responsável pela aquisição da comida para um pelotão. No dia seguinte,
disseram-lhe que não queriam comer. Então decidiu
Cardoso não requisitar o almoço. Só mais quatro co mo ele responsáveis se solidarizaram. Muitos homens
começaram a lançar pratos para o mar. Um capitão
avisá-los-ia que eram obrigados a entregar a requisição, caso contrário seriam os responsáveis presos
no porão, ignorando-se o que lhes poderia suceder.
Todos preferiam o porão à traição, pelo que seriam
chamados à presença do comandante do navio.
Designado “grande chefe” pelos companheiros, quereriam este que fosse Júlio a falar, mas ele entenderia que tal incumbência caberia igualmente a todos.
O comandante era um oficial da marinha. Declarou
compreender a posição dos que ali estavam e apresentou desculpas. Jurou que em Port-Said iriam
efectuar um restabelecimento e que a qualidade da
comida melhoraria substancialmente. E assim foi,
só os ratos permanecendo no porão.
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/ ÍNDIA
No dia seguinte à chegada a Goa é Júlio Cardoso
abordado por Alfredo Cunha, Francisco Simons e
outros trabalhando na Emissora local. Pessoa amiga
do Porto com eles contactara, comunicando-lhes
quem era o actor que, para além das tábuas do
palco, fizera rádio-teatro, recitais e outras actividades na rádio. De facto, fora Maria Manuela Couto
Viana que o convidara para muitos dos seus programas. Horas e horas trabalharam na rádio e quando
não havia espaço nas estações, nomeadamente na
Emissora Nacional, ensaiavam na já histórica Casa
da Pedra, de Maria Manuela, na Rua das Águas
Férreas, que pertencera já a Oliveira Martins.
Convidam-no os membros da Estação de Goa a
ir ao “bar Coelho”, no jardim central da cidade,
no rés-do-chão do prédio onde estava instalado o
“selecto” Clube Vasco da Gama.
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Ali, como “um lírio” (termo designando os recém-chegados) vindo do Porto seria apresentado ao Dr. Cui.
– En sosserant songlen Cui (“conhecido por Dr.
Cui”), representante monárquico no Estado da Índia.
Era um sujeito magríssimo, vestindo um fato de
linho branco surrado, mãos grandes com dedos de
violinista, queimadíssimos dos cigarros que fumava
uns atrás dos outros e continuamente alcoolizado.
Veterinário municipal de rara inteligência, constava
que sofrera um desgosto de amor. Deslocara-se a
Moçambique e, no regresso, ela partira para bombaim.
(A propósito desta cidade, recorda Júlio Cardoso
que quando há dois anos ali esteve, um indiano o informou que tal nome tinha proveniência portuguesa.
Chegando ali, os navegadores tinham exclamado:
“Olhem que boa baía”.)
O Dr. Cui pronunciava a frase com que o recebera
várias vezes ao dia. Em concanim, “Cui” possuía
significados diversos. Tanto podia ser elogio portentoso a qualquer elegante que passava dando nas vistas, como superlativo ou negação completa até ao
nojo. E “en sosserant songlen Cui” poderia significar “neste mundo tudo é nada, tudo é merda”.
Mas outras características personagens frequentavam o “bar Coelho”. Entre elas, um homenzarrão
chamado Franco Ramoni e intitulando-se primeiro
fascista do mundo. Era fisioterapeuta, fora massagista do SNECI de Lourenço Marques, campeão do
mundo de hóquei em patins. Antes, fora piloto da
Força Aérea de Mussolini. O “Moka”, António Moka
que se dizia o primeiro operário socialista português
e se metia com o Dr. Cui, de pé, junto à porta, com
um cigarro e um copo de whisky nas mãos: “O Dr.
Cui é daqueles que ainda têm pretensões monárquicas” …“Eu ainda tenho pretensões, mas você nem
pretensões pode ter”, redarguia o veterinário. O Del
Sol, um homem fardado, em calção e divisas no ombro. Era chefe da polícia, toda a gente o conhecia
por Del Sol, porque jogava a back central e era muito
parecido com o célebre Del Sol, jogador internacional espanhol. O Dr. Coissoró, advogado brâmane,
defensor dos nacionalistas nos tribunais, que bebia
muito, embora aos da sua estirpe o álcool estivesse
interdito, e sabendo Júlio Cardoso oriundo do Porto,
achou que devia considerá-lo honesto e sincero.
Em dada altura, colocando a sua mão no ombro do
actor, declararia: “por muito pouco que vocês fizes-
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sem, sempre são 450 anos de civilização ocidental.
A mentalidade de Goa é diferente. É única. Precisamos dos vossos oficiais para organizarem as nossas
forças de segurança. Goeses e portugueses vão fundar um estado e podemos pertencer a uma futura
comunidade lusíada. Peter Alves (nacionalista goês)
no Parlamento Indiano, sempre que se refere a Goa
diz “o meu país”. Sabe, Júlio, vocês fizeram mais
nestes últimos anos aqui em Goa do que nos cinco
séculos anteriores”.
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/ GOA: OUTROS TRAbALHOS
Mas o tempo em Goa não se circunscreveria apenas às animadas reuniões no “bar Coelho”.
Por algum, embora pouco tempo, seria Cardoso
colocado no Tribunal Militar como meirinho. Participando num concurso e após a realização de alguns
testes, seria admitido como locutor da Emissora,
sendo ainda um dos fundadores do “Círculo de
Divulgação Teatral de Goa”. Ali dirigiu “O meu
caso”, de José Régio e “O Túnel”, do Nobel sueco
Päer Lagerkvist, com cenários e grafismo do escultor Zulmiro de Carvalho, sendo esta colaboração
prestada por correspondência. A luminotecnia era
constituída por lâmpadas normais em latas de óleo.
Quanto ao reóstato, a engenharia do Moka resolveria a situação: uma bateria descascada com água salgada e uma paleta a rodar pela água sobre o ritmo
que se passava em cena e o Moka a morder a língua
e a falar sozinho, conforme a situação: “o gajo hoje
está com pressa”, “eh, pá, hoje a moça está a passo
de galinha”.
Cardoso percorreu Goa de lés a lés. bem como
Damão e Diu.
Além de locutor, era também um dos coordenadores dos espectáculos com apoio da Emissora. As sessões dos teatros indianos começavam às 21 horas e
terminavam às 9 da manhã. Os espectadores que enchiam sempre as salas levavam comida para aguentarem e todos os concertos sinfónicos esgotavam com
quinze dias de antecedência. O povo era melómano
por natureza.
Do “Círculo Teatral” lembra Cardoso um extraordinário actor, José Luís Cardoso, mais conhecido
por béu-béu. Gostaria de ser profissional de teatro,
mas a sua maior paixão era a bateria. Entre ambos
se estabeleceu uma forte amizade.
/ Em Goa. Júlio Cardoso é o 2º a contar da esquerda.
Por então, andava béu-béu de cabeça perdida por
uma lindíssima indiana, ficando de se encontrar com
ela certo dia numa igreja, pois por então, a não ser
que tivesse sido pedida em casamento, não podia
uma mulher daquela raça encontrar-se com um continental. À hora do encontro, um amigo comum suspende uma corrida (aluguer com condutor) de mota
e conta a Júlio Cardoso que, tendo de entrar em serviço, deixara de assistir em Camutá (bairro da cida de de Pangim) a uma excepcional sessão de jazz
com béu-béu na bateria. Verificando que passava
meia hora do combinado encontro na igreja, Júlio
Cardoso parte numa corrida de mota para o local
onde decorria o concerto no qual participava igualmente Augusto Cabrita e que dezenas de pessoas
acompanhavam. Aproximando-se do baterista, segreda-lhe ao ouvido o combinado compromisso.
Logo béu-béu atira as matracas ao ar e desata em
louca correria, pedindo ao motorista que trouxera
Júlio que o conduza. O espanto é geral. O que foi,
o que não foi? Júlio Cardoso declara que o amigo
deixara ao lume uma panela com água a ferver e
calmamente toma o caminho em direcção ao centro
da cidade. Daí a pouco a mota pára à sua beira e
béu-béu abraça-o a chorar, declarando que a igreja
estava já fechada e não chegara a encontrar a moça.
Seguro que uns whiskys poderiam acalmar o frustrado baterista, Cardoso diz ao motorista que leve
béu-béu ao “bar Coelho” aonde ele irá ter.
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/ DEUS LHE PAGUE
Nunca ao longo da sua carreira receberia Júlio
semelhante proposta: “Oh Júlio, não sou rico, mas
ainda tenho algum. Por favor, leve à cena o “Deus
lhe pague” que eu suportarei todas as despesas”.
Insistentemente o bom do veterinário, introduzindo
o seu habitual prólogo lhe pedia: “Por favor, dê algum
sentido à minha vida. Diga-me o que precisa.” Júlio
ia inventando desculpas, mas o outro não o largava
e, ao cair da noite, já com muito álcool no sangue,
não desarmava: “Cui, o que é que quer para me
ouvir?”
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/ ENCENAÇãO DO REAL
Durante muitas noites havia atentados perpetrados
por elementos que o exército indiano, há coisa de
um mês, fora introduzindo como civis no território.
Júlio Cardoso partira para o aeroporto por volta das
3 da manhã, a defender a Emissora de um possível
ataque e de serviço no programa para África.
O seu amigo Guilherme Macedo Pinto (Guilherme
Pinto no Teatro e Macedo Pinto na Rádio) era protagonista da obra “O Túnel”de Päer Lagerkvist cuja
acção se desenrolava no descarrilamento de um comboio, desempenhando o actor o papel de um indivíduo que ficara com um ombro e um braço partidos.
Após a análise dramatúrgica e talvez um mês de
ensaios recebe Júlio Cardoso a notícia de que o seu
amigo se encontra no hospital. Para lá se dirige,
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D. Manuela de Soutto e Sá Azevedo – Mãe.
ficando a saber que Macedo Pinto ia de bicicleta para
o ensaio e para preparação da personagem com o
ombro e o braço partidos, resolvera guiar apenas
com uma mão. Atravessando-se um carro à sua
frente, acabaria por partir o braço.
Estaria Macedo Pinto com o programa da manhã
na Emissora de Goa, quando esta foi bombardeada
pela força aérea indiana.
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/ O GOVERNADOR
Deslumbrados com os encantos ou, talvez melhor,
os feitiços de Goa, fácil era para os que ali estavam
esquecer o passado, não imaginar o futuro, viver
apenas o presente.
Um dia o director da Emissora chama Júlio Cardoso, comunicando-lhe que o Governador desejando
falar-lhe, lhe marcara uma entrevista para três dias
depois. Isto pô-lo em cuidados e tirou-lhe o sono.
Perguntou a Del Sol e aos seus superiores se havia
alguma queixa contra si. Interrogou vários serviços
secretos e até a PIDE para saber. Não constava nada.
No dia aprazado com o estômago vazio de alcóois,
praticamente a pão e água, impecavelmente vestido
com fato de linho branco e sapatos castanhos reluzentes apresentou-se. Conduziram-no à porta do gabinete.
– V.ª Exa. dá-me licença, senhor governador?,
perguntou timidamente.
– Entre, entre, Júlio Cardoso. Então tudo bem?,
inquiriria o general, perguntando-lhe se queria
tomar alguma coisa e mandando-o sentar.
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(Tinha Júlio Cardoso a boca seca, mas rejeitou a
oferta, agradecendo.)
Então o Governador, pedindo-lhe desculpa pelo
pequeno inquérito que lhe ia fazer, perguntou-lhe
com quem vivia antes de vir para Goa. Júlio Cardoso,
atarantado, fez com que o general repetisse a pergunta:
– Com quem é que você vive, ou melhor, vivia?
– Vivia, vivia aonde, senhor?, gaguejaria o actor.
– Você é do Porto, não é verdade?
– Sim, sim, Senhor…
– Com quem é que vivia no Porto?
– Ah, no Porto…Com a minha mãe.
– Com a sua mãe? Viviam só os dois?
– Tenho uma irmã que está casada, mas é independente.
O Governador fez uma pausa embaraçante. Depois,
continuou:
– Sabe, Júlio, às vezes acontecem coisas que me
parecem absurdas. Como é possível você estar vários meses sem dar notícias à sua mãe? Ela escreveu-me uma carta pedindo-me para a certificar que
você estava realmente bem, que não estava doente.
Vá lá, por favor, escreva um postalzinho à senhora
e diga-lhe que está bem.
Estas palavras de Vassalo e Silva de quem todos
diziam ter um coração do tamanho do mundo, petrificaram o actor que, descendo as escadas do Palácio
do Governo Geral, caminharia, cheio de remorsos,
pela marginal do Mandovi longos minutos se não
mesmo horas. Longe do centro, na estrada para a
praia de Dona Paula, sentou-se num bar pedindo um
whisky com soda. Naquele momento sentia a vida
bater no coração. Pensava nisto enquanto o grande
sol tombava no horizonte incendiando as águas.
Mas mais ardente era o desejo que sentia de abraçar
sua saudosa e distante mãe.
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/ O ROSTO CONTRA O SOL
Há situações, episódios, conversas que nunca se
esquecem. Entre várias, recorda Júlio Cardoso um
fim de tarde deslumbrante passado com uma futura
farmacêutica quebrando o preconceito de estar sozinha com um europeu (pacló). Falariam de coisas
banais, ele enaltecendo a enorme beleza do lugar.
Então perguntar-lhe-ia ela se ele conhecia bem Goa.
Júlio indicava alguns lugares. Mas ela ia mais longe.
– Conheces esta casa, aquele palácio?
E referia casas brasonadas ou da alta burguesia.
– Sei que já viste, mas reparaste em pormenor no
bairro das Fontainhas? Conheces bem alguma coisa
da Índia?
E alheando-se das evasivas respostas do actor,
prosseguia:
– Aqui há mesmo uma fronteira. A arquitectura,
a cultura, a nossa maneira de ser. Tudo… Hindus,
cristãos ou maometanos, somos muito diferentes.
Pergunto-me se não seria melhor declarar a todos
os goeses que estão por esse mundo fora: Vamo-nos
sentar à mesa e discutir a autonomia de Goa.
– Autonomia não, a independência, corrige Júlio
Cardoso.
– Ou sim, continua ela, mas talvez mais alargada
no tempo, daqui a uma década, por exemplo, mas
com todos os goeses sentados à mesa a discutir, depois da experiência da autonomia. Eu sei que esta
aparência de paz podre, alterada de vez em quando
com uns ataques, vai acabar com uma anexação à
União Indiana.
Houve um silêncio. Júlio Cardoso mastigou uma
castanha de caju, bebeu um pouco de whisky e comentou: “Este vai-vem de ferryboats é uma riqueza
incalculável”.
Mas a rapariga logo retomou a palavra:
– Sabes que o nosso porto de Murmugão é um dos
principais do Oriente. Todos os dias imensos cargueiros de várias nacionalidades partem carregados de
minério goês. Parece que todo o mundo sabe que
daqui de Goa sai o melhor ferro do mundo nesses
barcos sulcando o Mandovi. Mas parece que Portugal o desconhece.
O facto era na verdade incompreensível.
– Pois é, continuou a moça, a operar nas minas
não há uma única empresa portuguesa. Quando diariamente ao içar a bandeira de Portugal no Palácio
do Governo, todos os automóveis param, as pessoas
saem e ficam de pé até o acto se concluir, isto e as
suas contradições coadunam-se ou não com o apodo
de colonialistas? Estou ansiosa por ir a Portugal,
porque tenho vontade de, chegando lá, gritar:
“Vocês são uns jericos. burros até mais não! Na
minha terra estão a entregar o ouro ao bandido!”
– E também acabamos por vos entregar à Índia,
comentaria Júlio Cardoso a quem a tarde declinando
enchia de encantamento. Era maravilhoso estar ali
com um rapariga, mantendo uma conversa agradável
e inteligente, os barquinhos de pescadores com as
suas pequenas velas içadas, parecendo prestes a ser
devorados pelo mar pleno de labaredas que o sol, a
desaparecer, punha nas águas.
Então a rapariga gritou: “Não!” e as suas mãos taparam os olhos e desviaram o rosto do companheiro.
– Que aconteceu? Que tens?, perguntou Cardoso.
– Oh, desculpa, murmurou ela, sorrindo e continuando a puxar-lhe a cara. Há aqui uma lenda antiga
dizendo que quando dois namorados se encontram à
beira-mar nenhum deles deve ver o sol desaparecer.
– Porquê?, quis saber Júlio.
– Acontece rompimento, respondeu ela, segurando-lhe o rosto com toda a força.
– Mas isso é com dois namorados, rectificou o
actor.
– Pois, pois, mas com amigos também pode ter
efeito.
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/ SINAIS DE GUERRA
As funções desempenhadas por Júlio Cardoso forneciam-lhe um grande número de informações. Com
muita antecedência teve conhecimento que, ao mais
alto nível, a Índia preparava a invasão, à parte de
todas as actividades dos movimentos nacionalistas.
Nas zonas sob a bandeira portuguesa as forças
de segurança eram ainda suficientes, senão mesmo
demasiadas. Dentro dos movimentos nacionalistas
a contra-informação fornecia elementos frustrando
o ataque.
Nos inícios dos anos sessenta, as forças armadas
da União Indiana não tinham o poderio nem a organização que posteriormente conseguiram. A China
penetrava declaradamente no território indiano.
Dava um passo e a Índia recuava dois. A oposição a
Nheru atacava-o, declarando que em breve a China
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alcançaria Nova Delhi ou bombaim com a indiferença indiana. Atendendo à situação e como se aproximavam eleições, Krishna Menon, Ministro da
Defesa, sugeriria a Nheru a invasão dos territórios
na posse dos portugueses. O primeiro ministro indiano hesitava, não só tendo em conta a herança
pacifista de Ghandi, como a sua própria ideologia,
temendo também a atitude da China podendo desencadear uma tremenda guerra em todo o país que a
situação económica da Índia não aguentaria por
muito tempo. O certo é que a oposição não se calava
face aos avanços da China.
Constou ter Nheru dito a Krishna Menon que se
a invasão não durasse mais que dez ou doze dias, a
Índia poderia pensar seriamente no assunto, respondendo o ministro da defesa que perante as forças
militares que os portugueses por então possuíam
(algumas centenas de homens tinham partido para
Timor fazendo face a uma tentativa de revolta) uma
invasão organizada em todas as frentes, terra, mar e
ar, com cerca de 60.000 homens e porque as forças
portuguesas apenas possuíam material obsoleto,
conquistaria a vitória em três dias.
Naturalmente, Salazar estava há meses a par da
situação. A velha aliança com os ingleses informava
constantemente a nossa diplomacia. Apesar disso,
três ou quatro meses antes, tivera Júlio Cardoso o
privilégio de assistir à primeira nacionalização em
território português. Os caminhos-de-ferro goeses
foram nacionalizados. Eram propriedade inglesa
que Portugal comprou.
Apesar dos sérios avisos britânicos, Salazar mantém-se estático, ou melhor, os serviços de “intelligentsia” SNI – Comunicação Social iriam
manipulando os cérebros para o que viesse a acontecer. O tempo vai passando. Toda a máquina de
guerra indiana começa a cercar as fronteiras. Toda
a gente fala de iminente invasão. Jornalistas de toda
a parte começam a chegar a Goa. Pequenas acções
do nosso exército vão abrindo trincheiras fronteiriças e o seu armamento é tragicamente caricato: munições verdadeiras e de instrução são distribuídas
aos soldados. Grandes extensões de fronteira não
têm guarda. Os indianos esvaziam umas pequenas
aldeias do seu território, durante a noite passam a
linha da fronteira para o lado de Goa e bombardeiam aquelas localidades, levando lá a seguir jornalistas estrangeiros, mostrando ao mundo que
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Portugal é um perigo para a região. Os ingleses vão
desempenhar o papel de fiel da balança. Insistem
com Salazar para que faça qualquer coisa, que se
abra um pouco e inicie conversações. Salazar
queixa-se que a Inglaterra não cedeu aeroportos
para que Portugal pudesse enviar reforços. Como
se fosse possível a Grã-bretanha ceder aeroportos
para atacar um país da Commonwealth!
A partir de Novembro, tropas especiais indianas,
à civil, são introduzidas em território goês. De dia,
misturavam-se com o povo, estudavam os locais e
durante a noite sucediam-se as explosões.
Todas as noites entravam mais tropas regulares
e o sistema nervoso dos portugueses era esfrangalhado. Em Dezembro constava que cerca de 11.000
homens deambulavam pelo território.
Pouca gente refere isto. Os cronistas de guerra
só falam das acções nos campos de batalha. Júlio
Cardoso mantém a opinião de que quando a aviação,
a marinha e o exército iniciaram os bombardeamentos, psicologicamente Goa estava já vencida.
Nessa altura que não gosta de lembrar, namorava
o actor Winnie, directora do serviço inglês da emissora. Só mulheres, velhos e crianças é que podiam
conseguir transportes para abandonar Goa. Porque
corria muito perigo, depois de muita insistência,
consegue Cardoso convencê-la a seguir para Portugal. De madrugada, quando já parte do território de
Goa se encontrava ocupada, decidiu o actor dirigirse para a cidade de Vasco da Gama, conduzindo-a
para o aeroporto. Conseguir taxis e ferryboat para
atravessar o Zuari foi extremamente difícil. Só já
no aeroporto teve Júlio a convicção que um homem
pode transformar-se de um momento para o outro,
consoante as circunstâncias. De observador pacífico
e conciliador, tornara-se um lutador infatigável. Por
fim, alcançariam a desejada meta. No meio de uma
extensa multidão, sofrendo empurrões por todos os
lados, não ouvindo nada nem ninguém, alcançariam
que, ao fim de uma hora, Winnie embarcasse para
Lisboa no último avião com uma carta para a mãe
de Júlio. A confusão era indescritível. A meio dela,
uma voz interpela-o:
– Oh, Júlio quem são aqueles tipos que estão ali?
– Não sei.
Passa um oficial amigo, abraça-o e informa-o:
– São reforços. Chegaram há bocado. Vieram por
via internacional como se fossem uma equipa de
futebol.
– Oh Júlio, anda aqui comigo.
Um tenente amigo puxa-lhe um braço e diz-lhe:
– Eh pá, esta merda dava para rir, se não fosse
trágica. Os gajos de Lisboa mandaram-nos umas
bazucas modernas (parece ter dito que eram espanholas, mas Cardoso não tem a certeza), mas não
mandaram as munições. Estas foram imediatamente
solicitadas e o código era figos. Comunicaram-nos
que vinham no avião que chegou. Para lá fomos com
dois jeeps e pessoal armado da melhor maneira, mas
sabes o que encontrámos? Figos do Algarve!
Júlio Cardoso regressou a Pangim, pensando que
estavam a fazer dos homens carne para canhão.
Naquela altura, Salazar era também Ministro da
Defesa!
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/ O bOMbARDEAMENTO DA
EMISSORA
Logo ao nascer do sol, os emissores foram pelos
ares. Imediatamente todas as rádios indianas anunciaram que uma esquadrilha da força aérea da União
Indiana, comandada pelo Chefe do Estado Maior das
Forças Armadas da União Indiana, Major General
Pinto do Rosário, filho de Goa, tinha lançado as
primeiras bombas libertadoras. A título de curiosidade, refira-se que este Pinto do Rosário era irmão
do Dr. Pinto do Rosário, deputado da União Nacional em Lisboa.
Quando Júlio Cardoso chega à Emissora, a confusão é total. Pega num gravador e vai para a rua tentar apontamentos de reportagem. Passa pelo Tribunal
Militar e o presidente, coronel Paz Olímpio, com
uma velha “Mauser” em punho dispara contra os
aviões. O céu é sulcado por aeronaves de todo o género, jactos, bombardeiros, até avionetas com altifalantes e panfletos, fazendo avisos para que os militares
se rendam e a população abandone a cidade. Ao passar por um ou outro graduado, pergunta Júlio Cardoso
qual é a situação na frente de combate. Ninguém sabe
nada. As comunicações extinguiram-se. Nunca pensara Cardoso na extraordinária importância deste
sector numa guerra convencional. A confusão dominava. Era o fim. Pessoal de Engenharia dinamitava
algumas pontes e estradas, enquanto tropas portuguesas permaneciam muito atrás. Ao passar pelo
Hotel Mandovi, constata Cardoso que um alferes
comanda uma companhia de naturais. Colocou
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homens no telhado do Hotel, nas janelas e na rua.
Faz-lhe várias perguntas e ele diz ter a impressão
que já tinham chegado à outra banda do rio. Cardoso dirige-se a velha Goa. A dada altura um soldado manda-o parar e deitar-se, pois uma ponte vai
pelos ares. O actor vê ao longe uma figura a correr,
julgando que levava uma máquina fotográfica na
mão. Vozes gritam: meu alferes, meu alferes, há um
estrondo medonho e aquela figura nunca mais se vê.
Passados momentos, ouve-se um tenebroso roncar
do outro lado do rio e a floresta começa a movimentar-se. Júlio Cardoso retrocede. Pelas estradas e
caminhos, pessoas com carrinhos de toda a espécie
fugiam desesperadamente de acordo com os incessantes avisos.
Estas carreiras eram ultrapassadas umas vezes,
acompanhadas outras por veículos com grandes
bandeiras de várias nacionalidades. Eram carros de
técnicos, administradores e directores de muitas
empresas estrangeiras proprietárias de minas de minério. Tornar-se-ia fácil deduzir que em breve os
impostos sobre as mais valias mudariam de país.
Passando novamente pelo Hotel Mandovi constatará
Júlio Cardoso que ali apenas se encontra o alferes.
A companhia desertara.
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/ A FRAGATA “AFONSO DE
ALbUQUERQUE”
À entrada do porto de Murmugão vários vasos de
guerra dos mais variados tipos disparavam em fogo
contínuo contra a fragata “Afonso de Albuquerque”
que estrondosamente respondia de quando em
quando, mas sempre em ziguezagues. Colossais estrondos de morteirada, silvos dos barcos de guerra,
a “Afonso de Albuquerque” conseguia pôr fora de
combate vários navios gigantescos, a ondulação e
o efeito das peças de artilharia nas águas forneciam
espectáculo intensamente dramático. De um camião
com alguns marinheiros na cabina, salta o primeiro
sargento Santa Rita, escriturário no Departamento
da Marinha junto ao Quartel General, camarada de
muitas caldeiradas e amenos convívios. Grita-lhe:
“Eh pá, vou tentar dar algum apoio de terra. Se a
algum de nós acontecer alguma coisa, o que escapar,
chegando a Portugal informa a família do outro que
o último pensamento foi para ela”.
/ Fragata Afonso de Albuquerque.
A “Afonso de Albuquerque” fora atingida de
morte. Já não disparava mais. Júlio dirige-se para
o local onde supõe estar o barco encalhado. A vegetação era luxuriante de ambos os lados da estrada.
Quando se aproxima do local onde se encontrava a
fragata o bombardeio continuava e tudo estava queimado pela artilharia dos barcos indianos que incessantemente continuavam a vomitar as suas mortíferas descargas. Por entre todas aquelas detonações
em água e em terra muitos homens nadavam e outros corriam pelas margens inundadas. No meio da
estrada, de olhos arregalados, jazia o Santa Rita.
Só ao fim de muitos anos, conseguiria Júlio Cardoso
contactar a família do amigo que vivia no Algarve.
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/ O FIM. A PRISãO
Ainda dois dias antes o Governador inaugurava
obras. Constava andar entusiasmado com a estrutura
da nova ponte. Era oficial de Engenharia e quando
lhe perguntam pela situação militar ele responde
ser tal assunto da competência do Chefe do Estado
Maior. Apesar de a situação ser dramática, a vida
continua e as populações não lhe perdoariam se a
governação parasse.
Júlio Cardoso e Guilherme Pinto tentam uma conversa com o Governador. Sobem ao Palácio deserto
onde apenas se encontram meia dúzia de soldados
e um outro graduado. Entram no seu gabinete onde
ele está sentado com a bandeira nacional aberta na
secretária.
Júlio Cardoso pergunta-lhe: “Na esperança de que
este trabalho possa um dia ir para o ar, quer dizer
alguma coisa?”
O Governador responde: “O quartel general vai para
Vasco da Gama e lá, no último reduto, vai ser a última
resistência.” Faz uma pausa e continua num tom magoado: “Custa muito pensar que o último governador
do Estado Português na Índia foi Vassalo e Silva.”
Quando, há dois anos, Júlio visitou na Velha Goa
o Museu dedicado aos portugueses, na sala onde se
encontram em grandes dimensões (talvez 1x1 m) os
retratos de todos os governadores, deparou-se-lhe
em último lugar uma pequena fotografia de Vassalo
e Silva que julga ter sido o governador mais querido
das populações de Goa, Damão e Diu. A par disso
estavam os indianos que lhe concederam prisão
especial numa vivenda com cozinheiro português,
dizendo-lhe beneficiar desse privilégio em vista
da consideração que o povo lhe tinha.
Feito prisioneiro, Júlio Cardoso é chamado ao
posto de comando. Aí se encontra com Franco
Ramoni que lhe conta a história de uma namorada
conhecendo um familiar do coronel Anka, o comandante indiano que entrara em Pangim, onde se encontravam tropas especiais Gurkas, desviadas do
Congo. Pergunta ao actor se ele queria ficar a chefiar
a Secção de Português na Emissora. Cardoso não
aceita. Depois de muita conversa, já na despedida,
pergunta-lhe Ramoni em que pode ser-lhe útil. Júlio
Cardoso responde-lhe: “Se puderes, manda um telegrama à minha irmã e diz só isto: Eu e o Lázaro
(capitão casado com uma prima) estamos bem”.
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Quando chegou, soube Júlio Cardoso que tinham
publicado uma lista com os sobreviventes da Emissora onde o seu nome não figurava, o que levaria
mãe e irmã a porem luto que o telegrama veio
quebrar.
Tinham sido provisoriamente presos no bairro
do Altinho e iriam ser transferidos para o campo de
concentração em Pondá. Informaram-nos que os doentes seguiriam em viaturas. Por duas ou três vezes, fora
Júlio Cardoso atacado por uma doença à qual os
europeus eram muito atreitos. Um testículo crescia
desmesuradamente e, ao fim de meia dúzia de passos,
dores terríveis prendiam os movimentos. O remédio
era relativamente simples: antibiótico, saco de gelo
na virilha e dois dias de descanso, de barriga para
o ar. Ora se no dia seguinte seguissem a pé para
Pondá (a cerca de 35 quilómetros) impossível seria
a Júlio Cardoso efectuar tal percurso. Claro que tal
marcha era também efectuada com intuitos de humilhação e propaganda.
Na fila para a consulta do médico, estava à frente
de Júlio um velhinho que tinha o posto de tenente e,
enquanto não chegava a sua vez, foi relatando a sua
vida. Já ali se encontrava havia décadas. Constituíra
família e por lá ficara. Agora mandara todas as mulheres e crianças para Portugal e sentira a obrigação
de se fardar e pegar numa caçadeira, juntando-se aos
militares. Devia andar pelos oitenta anos. Quando
chegou a sua vez, pediu ao tenente médico, um jovem
muito simpático e educadíssimo, que lhe desse uma
injecção letal, pois não queria passar pela vergonha
de cair, dado ter a certeza de não aguentar a marcha.
O médico indiano abraçou-o comovidamente, pedindo-lhe para confiar nele. Falou, falou muito e proferiria o que para Júlio Cardos seria o maior libelo
contra a guerra. Em resumo, declararia, as guerras
eram obras dos políticos e aquela, como qualquer
outra, era estúpida. Nós éramos considerados vencidos, mas ele e o pessoal que o rodeava, também podiam estar nestas condições. Ele fora mobilizado
como médico e como tal tinha por obrigação arranjar transporte para ele e para outros em semelhantes
circunstâncias. Por fim, perguntou-lhe: “O senhor
sabe qual é o livro que tenho na minha mesa de
cabeceira? “Retalhos da vida de um médico”, de
Fernando Namora.”
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/ SEIS MESES DE INFERNO
Júlio Cardoso manifestou sempre profunda admiração pelo Papa João XXIII. Ele quebrara o preconceito de os Papas se confinarem ao Vaticano, dali
saindo para visitar uma prisão. Aconteceu também
que passados dias de se encontrar no Campo de
Concentração Alfa, também ele e os seus companheiros receberiam o Núncio Apostólico ou seu representante, concluindo que muitos prisioneiros se
encontravam em condições deploráveis. Alguns dias
após, camiões enviados pelo Papa descarregavam
cobertores no Campo.
Os prisioneiros sofriam uma alimentação deplorável, as instalações eram péssimas, os trabalhos forçados. Tinham de proceder à reconstrução de pontes
dinamitadas, a limpezas de vária ordem, de assistir
a exibições de propaganda indiana, à limpeza do pó
ao arame farpado, num campo no meio da floresta.
Mas talvez o mais custoso fosse a obrigação de
assistir à transmissão de um pequeno aparelho
radiofónico difundindo um programa denominado
“É Portugal que Manda!”. Programa emitido de
Lisboa pela Emissora Nacional que depois de muito
palavreado e de patriotismo bacoco e rancoroso
terminava invariavelmente: “nós compreendemos
o vosso desassossego, o vosso desespero, mas lembrai-vos que é Portugal que manda”. Contrapondo
toda essa nacional-parlapatice, os vencedores diziam:
“Nós não temos qualquer interesse em vos ter prisioneiros. Qualquer um de vocês é livre, pode sair
quando quiser, o que não pode é ficar em território
da Índia. Se estão aqui é porque o vosso governo
quer”.
Nheru nomearia para Comandante do Campo um
major cristão. Com este passaram-se várias cenas
dignas de registo, para já não referir a cena do pelotão de fuzilamento. Recorda Júlio Cardoso ter então
visto em retrospectiva os principais acontecimentos
da sua vida, daí evocando a lição de fragilidade
do ser humano a que as circunstâncias conseguem
transmitir uma extrema coragem, podendo transformar-se em quarenta cinco minutos para sempre
inesquecíveis.
/ Esmeraram-se por aprimorar os rostos.
O mesmo casaco, camisa e gravata, serviram
para dezenas de fotos de prisioneiros que
seguiram para a Embaixada do Brasil.
/ “A raposa e as Uvas”.
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/ O “CHICO”
Toda a gente conhecia o Chico. Dos muitos macacos que andavam pelo campo de concentração, havia
um que se destacava dos restantes pelo seu enorme
tamanho e que logo foi baptizado Chico pelos prisioneiros.
Todos os dias dezenas de prisioneiros eram destinados para os mais variados trabalhos. Um militar
já de certa idade que parece tinha o posto de tenente
era encarregado de entregar o “gado” a várias patrulhas, levando-os para os mais diversos locais. Toda
a gente o conhecia por “Chico”.
Ao fim de três quatro meses, a situação mantinhase. O governo português gostaria que a situação fosse
outra, apta a receber com pompa e circunstância e
todo o país de luto a receber os corpos dos soldados
em caixas de pinho. Daí seria fácil concluir que toda
a política da Mocidade Portuguesa e do nacionalismo
bacoco não resultara. Mas a hierarquia não teve
lugar. Alguns prisioneiros pediram asilo à Embaixada do brasil que os representava em Nova Dehli.
A fim de estudarem o assunto, pediam fotografias.
Um mesmo casaco servia para dezenas de fotos. Já
se falava de um exército comandado por Humberto
Delgado.
Por coincidência ou não o certo é que o programa
da Emissora Nacional “É Portugal que Manda” a
partir de então começaria a fornecer informações
mais concretas.
Júlio Cardoso seria um dos últimos a sair do
Campo Alfa. Quando o último grupo se encontrava
no aeroporto aguardando o embarque para Karachi,
aparece o tal “Chico”, o homem dos trabalhos forçados. Soa uma voz: “Até aqui o filho da puta não nos
larga.” Mas o “Chico” sobe um degrau e declara:
– O Chico é um macaco e eu sou um homem que
nesta guerra teve esta incumbência. Compreendi
sempre a vossa situação e o desprezo e os insultos
que sempre me votaram. Mas fiz questão de vir aqui
despedir-me deste último grupo para dizer que vos
sinto como filhos ou irmãos. É que pelo facto de
serem vencidos nesta guerra, ireis ser os vencedores
da vossa vida” – (Comove-se.) É isto que vos desejo.
Ouvem-se palmas. Uma voz grita: “Viva o Chico!”
Em uníssono, o brado repercute-se.
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/ O REGRESSO
Júlio Cardoso regressa ao Porto. Quando chega,
fica mais de uma hora num banho de imersão.
Depois, regala-se com uma pescada cozida.
Não queria ver nem falar com ninguém. Caminhava
pelas ruas da cidade como despertando de um longo
pesadelo. Mas por muito que desejasse evitá-la, a
notícia da sua chegada correria célere, o telefone
não cessaria de tocar, os amigos bateriam à porta.
Um dia, telefonar-lhe-ia Júlio Couto dizendo-lhe
que, a partir de então, passaria a acreditar em milagres. Um dos actores do seu grupo de “Os Modestos” adoecera e, no dia seguinte, representar-se-ia
uma peça para o Júri do concurso do SNI. Fora um
milagre encontrá-lo. Mas Cardoso dissuadi-lo-ia:
“Tu estás louco, nem penses, nem penses….” Mas a
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pressão seria tanta que acabaria por ceder. Seguir-se-ia uma noite sem dormir, toda a gente a ensaiar,
ele a reduzir drasticamente as marcações, à noite,
as pancadinhas de Molière, a sala de “Os Modestos” completamente cheia, o respeitável júri com
ar austero e circunspecto e um acto (talvez o primeiro) terminando com acesa discussão entre um
pai e um filho, levando a crer que acabaria em vias
de facto, quando rapidamente se fechava a cortina.
Mas em vez do pano rápido, ouve-se um sussurro
– “pano, pano, fecha a cortina”, Júlio fazendo de
filho e o actor interpretando o papel de pai interditos, improvisando texto e gestos, olhos de soslaio
para a direita baixa, de onde deviam puxar a corda
e finalmente a cortina fechando-se. O que acontecera? O malogrado Fernandinho – porque havia
de falecer num acidente da Avenida da boavista –
nunca vira Cardoso. Preso pelo bico à cena, fora
entrando, entrando no palco, esquecendo-se de
fechar a cortina.
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/ PARÊNTESIS COM GOA
Certo dia, um coronel-general de relevo nas negociações marcelistas, no 25 de Abril, – familiar
querido de um muito querido seu parente – procuraria Júlio Cardoso para indagar, por curiosidade
pessoal, o que se passara com a queda da Índia
portuguesa. Atendendo às muitas solicitações do
seu familiar, a muito custo e com grande sofrimento,
acede o actor a atendê-lo e a falar do penoso tema.
Ao fim de extensa narração de episódios que conhecera e vivera terminaria declarando que o que
se pretendera em Diu seria a resistência até ao limite dentro da fortaleza e, atingida ela, a dinamitação daquela Praça com os sobreviventes dentro
dela. Perguntaria Cardoso se tal critério não revelava estupidez e barbárie atroz. Mas, friamente,
o oficial declararia: “As ordens não se discutem,
cumprem-se!”
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/ RETOMAR A VIDA
Entretanto o tempo ia passando e Júlio Cardoso não
se sentia em condições de aceitar as várias propostas
profissionais que lhe apareciam.
Gostava de estar só ou de passear com o seu sobrinho
num desses típicos eléctricos que percorriam a cidade,
com os seus assentos em palhinha, as suas vibrantes
campainhas, os seus singelos anúncios, as vozes e os
silêncios dos seus frequentadores.
Estava absolutamente consciente da precariedade do
seu estado psíquico: muitas vezes, a propósito ou despropósito, sentia a sua fragilidade quando a emoção
atingia as lágrimas que se esforçava por reter. Temia
uma habituação medicamentosa e tinha uma necessidade urgente de criar espaços para poder dar vazão
aos nervos soterrados.
Winnie telefonava-lhe quase diariamente. Trabalhava
em Lisboa, na Emissora. Na rádio conseguiria Júlio colocação em Lisboa, Angola, Macau ou Moçambique.
Do TEP receberia o convite e a Regisconta aguardava-o.
Precisava de um certo equilíbrio e conseguia força
mental para se manter sem embarcar em aventuras exigindo grandes rasgos e responsabilidades. Por exemplo:
uma simples reportagem radiofónica exigia muito de
um profissional. Era necessária uma profunda aplicação. O improviso era rigorosíssimo. Por outro lado, a
criação e uma personagem exigia um esforço tremendo.
Assim passaria Júlio uma temporada, tentando evitar
círculos teatrais, voltando a frequentar mais assiduamente o Café Ceuta, embrenhando-se activamente na
sua carreira profissional, frequentando cursos e cursilhos de várias especialidades, sendo considerado, subindo na carreira e orgulhando-se de ser um dos pilares
do engrandecimento empresarial. Toda esta actividade
seria, todavia, entremeada por uma mais ou menos regular participação na vida artística da cidade, com deslocações a Lisboa, Madrid e outros locais onde pudesse
assistir a peças teatrais.
Compulsivamente, compraria, leria, discutiria teatro,
pretendendo concentrar-se apenas na vida comercial,
mas nunca o abandonando a tentação do teatro. Às vezes,
participava num filme, num directo na televisão. Estes
exigiam um esforço tremendo. “Faltam cinco minutos
para terminar o telejornal”. “Atenção, o telejornal terminou” “Atenção, silêncio absoluto” “Atenção!” Havia
brancas. Uma girafa de captação de som fazia sombra
e entrava em campo. As pessoas moviam-se e falavam
mas não sabiam ao certo se a máquina estava a gravar.
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/ UM CASAMENTO
No quarteirão dos Poveiros/ batalha, encontrava-se
Júlio Cardoso com um núcleo de amigos, poetas, actores, escritores, comedores e bebedores. Entre eles,
destacava-se Alfredo Azevedo, homem inteligente e
possuidor de portentosa memória. Era bastante mais
velho que Júlio, um dos seus tutores em andanças
literárias, ex-futebolista amador, ex-jornalista, crítico
literário, empregado de escritório, bom bebedor, sabendo de cor poemas vários de diversos poetas, ele
próprio autor de muitas composições recitadas nas
mesas de cafés e tabernas do Norte. Um dia, encontrariam Pedro Homem de Mello que fora seu professor e o considerava grande poeta. O seu pai, fascista
ferrenho pusera-lhe o nome de Alfredo Mussolini de
Azevedo, tendo o filho eliminado o nome do ditador
italiano entre o onomástico e o patronímico.
Júlio Cardoso ia casar e convidara-o para padrinho.
O amigo aceitaria com a condição de, se um dia lhe
acontecesse o mesmo, trocariam de papéis e querendo
saber se o Chiquinho também compareceria. (Chiquinho era Francisco Teixeira de Almeida de quem Júlio
Cardoso voltará a falar).
Na véspera do consórcio, Azevedo telefona a Júlio,
pedindo-lhe que no dia seguinte o fosse buscar à batalha, onde se encontraria no Café Tropical ou na Taberna do Louro. A cerimónia na Conservatória estava
marcada para as onze horas. Não encontrando o amigo
no “Tropical”, decide Júlio Cardoso engraxar os sapatos, quando dez minutos depois aparece Azevedo que
resolve também engraxar os seus sapatos. Só chegam
à Conservatória cinco minutos antes do meio-dia.
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/ “FEDRA” E OUTRAS ACTIVIDADES
TEATRAIS
Alguns directores do Grupo “Os Modestos”convidam então Júlio Cardoso para encenar “Fedra”, de
Miguel de Unamuno. Cardoso aceita sem pensar que
mais uma vez o Teatro lhe faz o cerco.
No ensaio geral, no dia anterior à estreia, fora entregue um ofício da Comissão de Censura proibindo
o espectáculo. Porque ele tinha sido autorizado, a
Direcção pede a revisão da medida e parece ter sido
o Advogado Araújo de barros, presidente da Assembleia Geral, que ao fim de oito dias consegue que a
peça seja representada.
O TEP continua a convidá-lo, mas Júlio Cardoso
pretextando muito trabalho que, de facto, o ocupava,
não aceita. A direcção do grupo “Os Modestos”
pede-lhe então que ocupe o cargo de seu director
artístico. Cursos de teatro, colóquios, conferências,
mesas-redondas intercaladas com participações de
grupos de teatro portugueses e galegos, jornadas de
teatro e 24 horas a representar, enfim as mais variadas iniciativas têm então lugar. O teatro do Grupo
anseia concorrer ao concurso do SNI. Júlio Cardoso
não concorda. Acede por fim com a promessa de todos trabalharem afincadamente para que tal participação, não podendo ser considerada a melhor, fosse,
pelo menos, marcada por uma grande dignidade.
Foi requisitado ao SNI um apoio para o encenador, tendo a escolha recaído em brunilde Júdice,
“grande dame” do Teatro Português, em casa e na
família de quem teatro e ópera se respiravam.
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/ Grupo dos Modestos.
Entretanto participa Júlio Cardoso na fundação da
APTA – Associação Portuguesa de Teatro Amador
– a que se juntariam alguns amigos do Norte, bem
como Viriato Camilo e outros em Lisboa. Todavia,
os estatutos de tal colectividade jamais sairiam da
gaveta do governo.
Depois de terem acordado em levar à cena a peça
de Joseph Kessering “Arsénico e rendas velhas”, seria
sempre por Revº. Harper, personagem que interpretaria, que brunilde Júdice o trataria.
Após estrondoso êxito no Porto e, depois, na fase
final, no “Trindade”, em Lisboa, brunilde Júdice
assistiria na plateia à representação e, no final, com
todo o público de pé por ela chamando, não alterando
o seu ritmo, elegantemente, de leque na mão, contornaria o teatro, entrando no corredor de acesso ao
palco e só depois aparecendo em cena, perante um
público não cessando de a aplaudir e aclamar.
Como já se previa, seriam afastados de todos os
prémios com o pretexto de que o nível do espectáculo era demasiado superior ao pretendido.
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/ CHICO TEIXEIRA DE ALMEIDA
Nessa altura era presidente da direcção do Grupo
Luís de Monte Empina, homem de grande bondade,
figura de relevo nos meios teatrais, também homem
da rádio e da contabilidade. Deliberou-se então levar
a efeito uma conferência denunciando a descriminação de que o Grupo dos Modestos fora alvo. Naquela
altura eram raras tais conferências, pelo que a sala
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onde se realizava estava completamente cheia e nela,
naturalmente, se encontrassem elementos da Pide.
Monte Empina, com a sua esmerada educação e
porte de grande cavalheiro, começaria por historiar
a vida do clube, fundado pelos prósperos comerciantes ferrageiros da Rua do Almada, com a finalidade de, para além do aspecto social, ter como
principal actividade o teatro, lembrando nomes importantes como Soares Correia, Campos Monteiro
e outros, saindo ou passando pelos “Modestos”.
Entraria depois no tema do tal concurso do SNI.
Júlio Cardoso sentava-se junto dele na mesa e não
podia esquecer os argumentos que utilizara contra
a impostura que seria a participação em tal concurso. Perante o silêncio da sala, Monte Empina
falava, provava, considerando tudo aquilo uma
grande farsa.
Subitamente, uma voz altissonante interromperia
a argumentação do orador. Alguém dizia: “Senhor
presidente, senhor presidente dá-me licença, desculpe, sugiro que a Direcção a que Vª. Exa. preside
diga ao SNI para ir fazer concursos de arte dramática à grande puta que os pariu”. Seguem-se palmas,
gargalhadas, um grande reboliço e assim termina
tal conferência de imprensa.
Quem tão energicamente protestara fora Chico
Teixeira de Almeida. Possuía ele um humor corrosivo, declarando-se responsável pela arte de mal
dizer. Conhecera-o Júlio Cardoso logo nas primeiras
aulas de Jayme Valverde no “Leão de Ouro”. Por sua
mão se iniciara na gastronomia. Locais de boa comida eram seus conhecidos e às quartas ou quintas-
-feiras telefonava ao actor para o integrar no grupo
dos bons garfos, juntando-se nos almoços dos sábados. “Oh Julinho, não conheces? Isso é uma grande
falha de cultura geral. Começamos por almoçar no
sábado e só saímos de lá depois do jantar de quarta-feira.”
Chico Teixeira de Almeida devia pesar mais de
120 quilos. Era homem de antes quebrar que torcer.
Conhecera a sua Maria, o grande amor da sua vida,
mãe dos seus dois filhos, como criada em casa de
seus pais. Prometera-lhe casamento e cumprira.
Tinha um “Austin 30” com tantos faróis que mais
parecia um arraial minhoto. A sua buzina estridente
repetia os primeiros acordes da “Marselhesa”. Horas
e horas a beberricar e a fumar, contava-lhe casos
que conhecera e vivera. A sua vida era digna de um
livro onde se revelariam pormenores de sucessos
do grande Porto e de muitos outros pontos do país.
Fora proibido de ser despachante oficial das alfândegas pelas suas ideias políticas.
Certa vez, pelas 5 horas da manhã a Pide foi buscá-lo à sua residência no bairro das Pedras, em Vila
Nova de Gaia. Voltaria da parte de tarde para revistar a casa. Tocam à porta. Dª. Maria abre. A Pide
identifica-se, dizendo ao que vai. Dª. Maria pega
num machado, barra-lhes o caminho e numa gritaria
medonha, batendo com a mão no peito, declara:
“Eu sou uma mulher muito séria. Cá em casa só
entram homens com a presença do meu!”
Os vizinhos assomam às janelas, às portas, inquirem, querem saber o que se passa e os pides não têm
outro remédio senão correrem para o carro e abalarem a grande velocidade.
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/ O ACTOR DIRIGE-SE AO CRONISTA
Por várias vezes ao longo deste livro, tem Júlio
Cardoso entrado em contacto com o autor do texto,
chamando-lhe a atenção para diversos aspectos da
sua biografia e dos problemas que a mesma lhe
acarreta.
Por relevante e importante para uma mais capaz
compreensão do texto, das suas evoluções e vicissitudes, se transcreve um desses chamemos-lhe parêntesis:
“Nunca será demasiado repetir que jamais alguma
vez pensei em escrever ou ditar alguns episódios da
minha vida. Evidentemente que, durante cinquenta
anos de trabalho, têm surgido amiudadas ou raras
vezes lembranças que a propósito se entroncavam
em conversas profissionais ou de simples convívios.
Aqui e ali os circundantes registam ou com agrado
ou como referência. E aqueles que me acompanharam mais de perto exigiram que agora botasse muitas para um livro. Ora coisa tal, repito, nunca me
passou pela cabeça, antes pelo contrário, se fosse
guardando algumas coisitas, hoje, teria um acervo
de, por exemplo: -guardanapos, papéis, originais de
poemas e outros textos, desenhos, dedicatórias, etc.
de nomes muito importantes das artes e das letras.
Nem de longe nem de perto, se pode pensar que
era por falta de consideração; metia-os num livro,
numas publicações ou numas gavetas, as mudas, as
mulheres arrumando e outras limpezas desapareceram. Oh, António, reiteradamente te digo que não
me lembro do que fiz ontem, quanto mais durante
cinquenta anos!...
De qualquer maneira, pensei e continuo a pensar
que tenho lido livros de memórias com muito interesse e alguns como receituário de boa disposição.
Colegas de teatro houve que preferiram o anedotário
da profissão que é terreno fértil para tal. Eu, daquilo
que me vou lembrando, prefiro a selecção de casos
simples, de pessoas que, embora pertencendo a elites, tiveram a coragem de saltar a circunferência,
tornando-se candidamente humildes e observadores
atentos do seu tempo. Gente de inteligência para
além da média, indivíduos que pertenciam a tribos
de sensibilidades em todas as horas e que só pretendiam alvejar os avejões com os seus neurónios de
génios de criatividade – Pessoas inteiras e íntegras
e, também, porque não dizê-lo, pessoas sofredoras
por elas e pelo próximo. É dessa gente maior, os heróis anónimos dos meus círculos, que aqui procuro
lembrar, talvez em contramão de muita gente das
minhas relações, de grande amizade e consideração,
as chamadas pessoas de bem, de grande sucesso,
enfim, bem instaladas na vida. Pessoas dos poderes,
dos contras, das chamadas grandes famílias. Com
todo o respeito, estima e consideração, optei pelos
simples, mas grandes de alma. Desculpem. Alguns
por opção e militância tornaram-se em vagabundos
até ao limite!... Gente que saía do Porto para Paris
com 2,50 (escudos) e passados uns meses regressava. Abraçávamo-nos e eu: “Não, não conseguia,
morria de fome”.
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/ Mãe Pátria e outros poemas.
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“– Olha, é fácil: a minha primeira etapa é até bragança. Aí vou ter com o bispo, o meu primeiro anfitrião, e descanso os costados.”
Quem é que não conhecia o Leote, de capa e batina
há décadas. – Diziam que era de “boas famílias” e
que o pai lhe tinha deixado uma pequena herança e
nomeado um tutor, de uma família muito conhecida
do Porto e que cumpria sagradamente com a vontade
do progenitor. Mas é claro que a mesada era só para
uns dias. Então o bom do Leote passava pelos amigos e entregava um pequeno papel que, mais ou menos, dizia isto: “por empréstimo agradecia 5$00”.
Durante anos e anos o sistema era o mesmo. Ora um
dia, no “Louro”, estava o Chico Teixeira de Almeida
a tragar um “neguinhos” de tinto para mitigar a sede,
com a casa de comes e bebes a abarrotar de clientela
e o patriarca Louro debaixo daquela tonelada de
presuntos e eis que entra o Leote, com o seu tradicional traje académico muito roto e roçado, como
canino farejando o dono, dá de caras com o Chico e
zás, papelinho no bolso. O Teixeira de Almeida de
imediato e em voz alta, a devolver o papel e a dizer:
“Oh Leote, porra, você sabe que há muito tempo
deixei-me de políticas. Não quero saber de política
para nada, guarde o papel.”
Depois desta cena e passados uns anos, quando
entrava na “Ribadouro”, em Lisboa, para cear, aparece-me o Vimané (Victor Manuel das Neves), outro
poeta marginal, ex-oficial, ex-bancário, cumprimentando-me efusivamente e quando estou a convidá-lo
a acompanhar-me, aparece repentinamente o amigo
de capa e batina. De imediato, o Vimané: “– Oh
Leote, por favor não invadas a minha zona!” Um
dia, eu e o Vimané preparávamo-nos para entrar na
“Maria Rita” e ouço esta proposta: “Oh Júlio, se
fossemos à “Ateneia” tomar um chá?” “É para já!”
Sentados na pastelaria – naquele tempo, que chique
– o Vimané talvez por flatulência de vazios ou enchimentos estomacais, deixa sair um arroto um
pouco sonante. Uma senhora da mesa ao lado olha
com ar reprovador. O Vimané soergue-se e diz: “Oh,
minha senhora, peço imensa desculpa, mas isto são
reminiscências de um passado faustoso!...”
Oh, António, temos de prosseguir em passo acelerado porque se trata de personagens, estes sim, cada
um deles merecia um livro.”
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/ O “TEP”, A ÁRVORE”
Após diversas solicitações, aceita Júlio Cardoso o
convite do “TEP” com a condição de o aceitar ou não
dentro das suas disponibilidades, ficando clara a sua
ligação ao teatro de amadores para estudos e experiências de que necessitava e para ressalvar que não
contava com a mesada do teatro para viver. E assim
aconteceu. Só que assim se iniciaria uma vida vertiginosa da qual sairia vencedor o teatro.
Por essa altura estaria nos primórdios a Cooperativa Artística Árvore, da qual o arquitecto e amigo
Pulido Valente era um dos responsáveis, não esquecendo evidentemente esse grande timoneiro que foi o
amigo-irmão Zé Rodrigues. Esse mesmo, o Escultor.
Então, Cardoso e Carlos Neto (bancário e pintor) encarregar-se-iam de criar ali um bar moderno. Colocariam algumas maquinetas, vários artigos e uma tabela
de preços com um letreiro dizendo mais ou menos
isto: “Sirva-se e deixe ficar a importância do que consumiu. Os preços estão na tabela”. Ao fim de dois
meses de funcionamento, teriam de fechar, caso contrário a Cooperativa iria à falência.
A “Árvore” foi e continua a ser um local de grandes eventos artístico-culturais e sociais. É já um
organismo histórico da cidade.
Um dia, após uma reunião findando de madrugada,
o actor fecha a porta, mete-se no carro e ao passar
na Cordoaria ouve um grande estrondo. Chegando a
casa, em Gonçalo Cristóvão, recebe um telefonema
comunicando que uma bomba destruíra “A Árvore”.
A nova vida que o actor escolhera não lhe concederia o menor descanso. A cena estava pronta, ele tinha
de conferi-la. Com o tronco nu, com um pé calçado,
outro descalço, a cara meia pintada ou não, lá ia ele de
imediato, cruzando opiniões, perguntas e respostas.
– Atenção, senhores artistas, faltam dez para o início do espectáculo, avisava o Corte Real, grande capitão-mor dos bastidores, mestre de contra-regra, que
cumpria e fazia cumprir ao pormenor as boas e muitas
regras do profissional de teatro. No hall dos camarins,
junto ao grande e tradicional espelho, lá estava encaixado e grandemente ampliado o Regulamento do
Teatro Apolo.
– Atenção, senhores artistas…, repetia aos cinco, a
três, a um minuto.
A partir do aviso dos três minutos, os actores que entravam na primeira cena passavam por ele fazendo-lhe
sinal que estavam prontos.
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/ Nos “Burossáurios”, com António Montez e Hernâni Pinto.
– Atenção, o espectáculo vai começar. Por favor,
silêncio e atenção.
Quando havia pancadas de Molière, o ritmo, a
sonoridade tinham o selo da sua batuta.
Era um prazer com a personalidade e o rigor do Corte
Real, concedendo tranquilidade ao director de cena.
Na Rua do Ateneu Comercial do Porto, mesmo em
frente à Travessa de Sá da bandeira, ao fundo de um
corredor, perfeitamente visível das ruas fronteiras,
havia uma antiga lavandaria da célebre “Casa Confiança”, onde diariamente dezenas de peitilhos, punhos e colarinhos eram engomados, havia de nascer
uma pequenina jóia de arquitectura, magistralmente
construída por Luís Praça (excelente arquitecto de
quem hoje infelizmente ninguém fala) dando origem
a um teatrinho de bolso, possuindo em dimensões
mínimas as de qualquer grande teatro. A sua lotação
era de 130 lugares, distribuídos por plateia e balcão.
Logo à entrada uma parede toda em azulejo, de rara
beleza artística, com motivos de obras teatrais, assinada pelo multímodo artista António Pedro. (Dizem-me que este painel está guardado no atelier de
Armando Alves. Assim espero).
Nos primeiros anos da década de cinquenta do
século passado, António Pedro, farto das patifarias
que lhe tinham feito em Lisboa e de ter convidado
um largo número e amigos para o acompanharem à
porta do Parque Mayer, onde se despediria do teatro
da capital, fazendo vários manguitos durante longos
minutos perante o silêncio comprometido de uns e
comovido de outros, isolar-se-ia na sua casa-atelier
de Moledo do Minho.
/60
Quando os primeiros participantes do Círculo de
Cultura Teatral Experimental do Porto têm conhecimento do caso, uma delegação tendo à frente Eugénio de Andrade desloca-se a Moledo a convidar o
Mestre. Perante os trabalhos quase concluídos do
Teatro de bolso e do projecto artístico e cultural
do TEP que tinha até então como ensaiador Athaide
Perry, jornalista e crítico de teatro no “Primeiro de
Janeiro” e letrista e ensaiador de vário grupos teatrais, António Pedro aceita imediatamente. No seu
período áureo, a seguir ao Futebol Clube do Porto,
o TEP era o organismo com mais associados e espectáculos houve em que, para se conseguir bilhetes, era necessário fazer reserva com duas e três
semanas de antecedência.
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/ DIREITOS DE AUTOR
Os direitos de autor, em muitos casos, são sempre
uma dor de cabeça para quem deseja produzir uma
obra teatral. Mas acontecem casos que merecem
simpatia.
Não se recorda Júlio Cardos de quem lhe disse,
talvez Armando Varejão, Amilcar Paulo ou João
Maia, fundadores do TEP que, quando decidiram
levar à cena “A Morte de um Caixeiro Viajante”,
porque a diferença cambial era notável, tornando
insuportáveis os direitos autorais, resolveria a direcção contactar directamente o dramaturgo, pedindo-lhe compreensão para a situação do TEP e do seu
projecto. Passados tempos, receberiam uma carta
de Arthur Miller, declarando que por princípio não
/ No “Auto da Feira”, de Gil Vicente, com enc. Carlos Avilez
e cenário de Armando Alves, 1965.
dava borlas, mas cedendo os direitos pelo pagamento
simbólico de 1 dólar.
Onde estará essa carta?
Outro caso: Glicinia Quartim tinha estado em Itália, aprofundando os seus conhecimentos teatrais e
lá conhecera o dramaturgo Silvano Ambroggi, propondo-nos que levássemos a sua obra “Os burossáurios”. Contactou-se directamente o autor, pedindolhe compreensão quanto aos seus direitos. Silvano
Ambroggi respondeu que o preço seria a sua vinda
à estreia. Assim aconteceu. A seguir, iriam almoçar
à Ribeira, ainda sem a chusma de restaurantes e tascos que agora existem, mas já com o “Chez Lapin”.
Lá estava a Companhia e outros colaboradores e
aqui destaca Júlio Cardoso a presença da primeira
cenógrafa que conheceu, porque cenógrafos profissionais havia bastantes em Lisboa, como Pinto de
Campos, Mário Alberto e outros, havendo vários no
Porto, mas exercendo outros ofícios. Maria Helena
Matos tinha concluído as belas Artes e partira em
seguida para Londres para se especializar em cenografia. O primeiro cenário e figurinos dela seriam
para “Os burossáurios”. Os seus méritos e a sua
criatividade combinaram-se num resultado memorável. Aqui fica o saudoso preito de Júlio Cardoso
à artista que morreria pouco depois de doença.
Decorria animada a conversa no “Chez Lapin”
e, em determinada altura, Silvano Ambroggi conversando com um aluno do TEP que participava como
groom de repartição pública na sua peça, terminaria
a sua exposição, inquirindo “a capito?”, ao que o
jovem responderia: “Há, há e do bom!”
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/ DESEJO E OCULTAÇãO
Certa vez, quando caminhava calmamente para
entrar em cena, repara Júlio no jovem António Montez chamando-o insistentemente: “Olha, olha-me
para aquele tipo.”Referia-se a um colega em cena –
diga-se de passagem que era um profissional de primeira cepa, mas pouco capaz de representar – interpretando uma personagem tipo macho-ibérico, usando
um figurino muito justo, género collants e transportando ao colo uma actriz a caminho do leito… mas
com uma erecção agitada e saliente, perfeitamente
detectável. Montez, com os olhos arregalados de
espanto, perguntava: “como é possível acontecer
tal coisa a um actor em cena?
Júlio Cardoso responder-lhe-ia:
– Como vês o “canastrão” vive o papel…
O desejo, considera Cardoso, é qualquer coisa de
inesperado, mas a metamorfose que se opera num
actor espera que ele esteja ciente da razão, sentimento e técnica. Aliados ao conhecimento do texto
e sub-texto. Nesta combinação, como é possível o
devir do desejo?
Mais tarde e já nos princípios do Fitei e por coincidência no Teatro António Pedro, num actor de uma
companhia teatral da cidade de Vitória, Espanha,
completamente nu e no decorrer da interpretação
ir-se-ia notando a erecção. E todos os dias a cena se
repetia. A partir daqui, Cardoso mudaria de opinião.
Todavia, falando com grandes actores por esse mundo fora, afirmariam muitos categoricamente ser tal
impossível, ao que lhe contraporia: “Não, é possível. Já testemunhei. O defeito é nosso!”
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/ No “Mistério da Fábrica de Chocolates”, com enc. de Fernanda Alves.
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/ UMA DOR ANTIGA
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/ ACIDENTES
No TEP houve momentos de trabalho insano.
Chegavam a fazer quatro espectáculos por dia – dois
para crianças e dois para adultos. Os primeiros no
antigo “Nun’Álvares” e os segundos no Teatro de
bolso.
Um dia, representava Júlio no “Nun’Alvares” a
peça “O Mistério da Fábrica de Chocolates”, encenada pela saudosa Fernanda Alves. Interpretava o
papel de um amaldiçoado maldoso e de uma forma
shakespeariana o público sabia quem ele era, mas o
jovem protagonista não. As crianças são um público
cândido, espontâneo, ainda não atingiram a idade
dos políticos, ou melhor, da hipocrisia e por isso
reagem facilmente aos seus sentimentos. Sempre
que entrava no palco ouvia-se um barulho ensurdecedor com gritos, assobios, pateadas e insultos infantis. Acontece que um dia, numa marcação no
proscénio, Júlio Cardoso escorrega e cai na plateia.
Logo em cima dele tomba uma chusma de crianças
que só os colegas em cordão ou em grua conseguem
livrá-lo de um massacre. Passaram-se muitos anos,
mas ainda hoje o joelho esquerdo do actor, principalmente no inverno lhe recorda a fúria dos estafermozinhos.
Muitas vezes, as soirées sucediam-se às matinées.
No intervalo, costumavam Júlio e Oliveira Santos
petiscar qualquer coisa na “Conga” ou no “Pedro
dos Frangos”. Talvez estivesse em cena uma alta comédia camiliana. No final da representação da tarde
dirigir-se-ia Cardoso ao camarim do colega, comunicando-lhe que o esperaria à porta. “Não pode ser”,
contestaria o camarada. Tenho de ir já para casa.
Quando saía para a matinée, falecia o meu pai. Neste
intervalo tenho de ir tratar do funeral.”
Noutra ocasião, em que acabara de jantar com o
encenador Júlio Castronuovo e calmamente se dirigiam ambos para um ensaio da censura, constituída
por três elementos, um do Porto e dois de Lisboa,
ao chegarem pela Rua de Entreparedes à bifurcação
com a Praça da batalha, um sinaleiro mandá-los-ia
parar. Do lado direito e por cima do passeio apareceria um táxi, com o condutor, de boné sobre farta
cabeleira, a gesticular e aos gritos. Castronuovo
abre o vidro e pergunta o que se passa, mas o motorista, sem perder fôlego, começa a insultá-los de
tudo quanto há. Cardoso deixa o carro a trabalhar
e dirige-se ao taxi. “Isso é para mim?” A resposta
é novo chorrilho de insultos. Júlio perde a cabeça,
deita as mãos ao fecho da porta e não vê nem se
lembra de mais nada. É agarrado por transeuntes, o
capacete do sinaleiro cai ao chão, há recomendações
de calma e todos seguem para o comando do Governo Civil. Ainda não há telemóveis e Júlio aproxima-se do sinaleiro e comunica-lhe que tem de
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/ No “Auto da Barca do Inferno”, com cenário de
Franscisco Relógio e enc. de Carlos Avilez.
/ No “Auto da Índia”, com Glícinia Quartin e Margarida Mauperrin,
com cenário Júlio Resende e enc. Carlos Avilez.
fazer uma chamada muito urgente. O outro, com
uma negra no olho, diz-lhe que o conhece, que sabe
que não foi por mal que o atacou, que fique descansado. Todos têm razão. Telefonemas de um lado para
o outro, queixas daqui e dacolá, o sinaleiro, tranquilizando: “Não há problemas. Os senhores vão já embora…” Mas são já dez horas, os censores estão
à espera no bar, tomando uns cafezinhos, Júlio e
Castronuovo chegam deitando os bofes pela boca
e o velho Valente tirando o charuto da boca, grita do
alto da bilheteira: “E logo nesta altura um furo no
pneu! Que arrrelia! Tenha calma, Sr. Júlio, que o
Senhor Coronel compreende!”
De outra feita, é um actor que falta à matinée. São
quinze e quarenta e cinco. Côrte-Real agarra-se ao
telefone. Sabe que o faltoso namora certa pequena e
liga para casa dela. Não está, foi dormir com uma
colega. Decide então telefonar ao Presidente dizendo-lhe que a sessão vai ser anulada, avisando-se o
público que, por doença de um actor, não haverá
sessão. O gajo tem de apresentar imediatamente um
atestado médico. Não senhor, vamos dizer que um
actor, por estar fora do Porto, não pode chegar a
tempo. Podem levantar o dinheiro, trocar os bilhetes, etc, etc e tal. Sai toda a gente, ficam apenas
Júlio e o velho Vicente. De súbito, toca o telefone:
“Senhor Júlio, é para si”. Do outro lado do fio:
“Por favor, vem ter comigo à “brasileira”.
Júlio encontra lá o actor em lágrimas. – “Que
devo fazer? Não tenho lata para aparecer. Eh pá, o
que eu fiz! Mereço que me esmurrem o nariz, que
me multem em três meses de ordenado, que me insultem de tudo. Estou arrasado. Aconteceu exactamente o que tu imaginas, acabou por ser uma noite
linda. Adormecemos por volta das onze da manhã e
ela acordou às cinco da tarde e foi a essa hora que
também acordei.
ó Júlio, como é possível depois de momentos
inesquecíveis, de uma beleza única, encontrar-me
num lamaçal, do qual não sei como vou sair!
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/ O CÍRCULO DE CULTURA TEATRAL
O Círculo de Cultura Teatral / TEP-Teatro Experimental do Porto não foi apenas casa aberta a alguns
mestres das artes plásticas como António Pedro,
Augusto Gomes, Eduardo Luís, António Quadros,
Ângelo de Sousa, Justino Alves, Artur boal, Armando
Alves, Júlio Resende, Francisco Relógio, Tito Reboredo, Jorge Pinheiro, Américo Moura, Zulmiro de
Carvalho, José Rodrigues, Jaime Isidoro, José Emílio Calvário, Joaquim Pinto Vieira, Carlos barreira,
Armando Silva, Alberto Péssimo, Rui Anahory,
José Paiva, Acácio de Carvalho, Jaime Azinheira
e outros. Por lá passaram também grandes nomes
da cenografia portuguesa como Fernando Fonseca,
Mário Alberto, baptista Fernandes, A. baganha,
Mário brito, Maria Helena Matos, Fernando Filipe,
Juan Soutullo, Norberto barroca e outros ainda.
Isto demonstra que o Teatro foi e poderá ser uma
confluência de várias artes e para ele alguns destes
artistas criaram peças de raro valor, algumas das
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quais, infelizmente, desapareceram. Importará também dizer que a primeira encenação profissional de
Carlos Avilez, o espectáculo constituído pelas peças
“Auto da Feira”, “Auto da Índia” e “Auto da barca
do Inferno”, foi levada a efeito pelo Círculo de Cultura Teatral. Aí participaram Armando Alves, Júlio
Resende e Francisco Relógio. Foi uma lufada de ar
fresco no panorama teatral da época. Júlio Cardoso
era um dos actores da invejada e desejada barca
do Inferno, havendo qualquer coisa de especial em
todos aqueles condenados; eram mesmo o fruto apetecido e divertiam-se imenso com isso. Participariam num Festival Internacional de Teatro de Lisboa,
organizado pela Casa da Imprensa. Após a primeira
apresentação no “Império”, um grupo de críticos,
teatrólogos e intelectuais abordaria o espectáculo
à porta daquele teatro e a discussão prolongar-se-ia
até às nove horas da manhã, indo todos de seguida
tomar o pequeno-almoço.
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/ VICISSITUDES
Infelizmente, nem tudo eram sucessos e alegrias.
Houve ocasiões de desespero e drama. Os recursos
eram escassos, actores e técnicos tinham alugueres
das casas por pagar, dívidas a mercearias, fornecedores reclamando créditos. A situação era tão aflitiva que, certa vez, o poeta Orlando Neves, altruisticamente oferecera o seu “Fiat 600”para ser empenhado.
Nos meses do “defeso”, quase trágica denominação, Junho, Julho, Agosto e Setembro, montava-se
um espectáculo mais ou menos de exigências da chamada 3ª via e, em auto-gestão, actores e técnicos
exploravam as representações pelo país fora.
Júlio Cardoso convoca uma reunião com todos
os profissionais, acordando-se na peça a representar
e em convidar um encenador para o efeito.
Na semana seguinte, apresentou Cardoso toda a
planificação dos trabalhos de montagem, o nome do
encenador e a proposta e todos os custos de montagem, de cenografia e de encenação seriam suportados pelo TEP. Corria tudo bem até que passados
dois dias os seus colegas lhe marcaram uma reunião.
Não concordavam com o encenador, pela simples
razão de que nunca dirigira uma companhia profissional. Júlio conhecia há muito Edurisa Santos.
Nascera em ambiente teatral. O pai, Edurisa, tinha
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sido crítico de teatro no “Primeiro de Janeiro”.
Edurisa filho desistira do curso de engenharia, casara em Freamunde e logo ali dera seguimento à
sua vocação, fundando o “Grupo Teatral Freamundense”, amador, mas muito premiado. Vários autores entregavam-lhe originais e, antes de os publicarem, pediam-lhe que, se estivesse de acordo, os
levasse à cena. Possuía uma boa biblioteca de teatro. Passava muito tempo a ver teatro em Lisboa,
Madrid e barcelona e sobre ele a conversar com
actores e encenadores. Encenara várias dezenas de
obras. Os colegas, após um debate aceso, profundo
e importante para o futuro da companhia, ficariam
de dar uma resposta no dia seguinte à mesma hora.
Ela foi afirmativa, mas com a condição de Júlio
Cardoso fazer parte do elenco.
Era um tempo de orgulho e de preservação profissional. Infelizmente hoje em dia assiste-se a exibições de grupos constituídos algumas vezes por
actores de nomeada, mas com a direcção de um
principiante que de direcção de actores e espectáculos nada sabe, desvalorizando-se completamente o
papel de assistente de encenação e o resultado é o
que se vê, considerando Júlio que um dos problemas
do teatro português é a falta de directores/encenadores e declarando que quando encontra um jovem
a assinar uma encenação num grupo de jovens, vislumbrando-se potencialidades de encenação sente
um prazer que o transporta.
Para não ferir susceptibilidades e concentrando-se
na região de Lisboa e Vale do Tejo, ao fim e ao cabo
a principal, refere Júlio Cardoso os seguintes nomes
que, no sentido transacto, considera dignos do nosso
orgulho: Carlos Avilez, Diogo Infante, Fernando
Gomes, Helder Costa, João brites, João Lourenço,
João Mota, Joaquim benite, Jorge da Silva Melo,
Luiz Miguel Cintra, Maria do Céu Guerra, Maria
Emília Correia, Mário barradas, Norberto barroca.
Se este conjunto de encenadores tivesse mais ou
menos em permanência um ou dois assistentes durante dois, três anos e se paralelamente eles fossem
fazendo uma ou outra encenação em grupos de estudantes, de amadores, de empresas, etc, de certeza
que seria superior o panorama do teatro português.
Os grupos de amadores estão completamente votados ao ostracismo.
Há centenas de associações por esse país fora,
cujos palcos estão cheios de teias de aranhas; há
/ Em “O Gebo e a Sombra”, de Raul Brandão, com encenação de Ernesto de Sousa.
Estão ainda Fernanda Alves e David Silva.
dezenas senão centenas de profissionais, ou, pelo
menos, com cursos de teatro de níveis secundário ou
superior, que ambicionam iniciar-se em encenação;
há milhares de jovens por esse país fora que tanto
desejariam experimentar teatro.
Os governos que fazem? Por absoluta incapacidade enterram a cabeça na areia. Gastam milhões —
e bem — na preservação de certos vícios, nomeadamente de droga e álcool. Se analisarem a radiografia
de vários concelhos do interior, onde determinados
vícios atingem horizontalmente a juventude de todas
as classes sociais, verificarão com facilidade que
concelhos em que o movimento associativo é razoável, existindo uma ou mais bandas de música, grupos de teatro, de dança, desportivos, etc, se houver
consumo é muito residual. Naturalmente o teatro,
pelas suas características, é uma arte privilegiada
para a animação sócio-cultural.
Durante a outra senhora, a APTA – Associação
Portuguesa de Teatro de Amadores — foi proibida.
Depois do 25 de Abril existiu, mas, por incúria e
desleixo dos vários governos parece que morreu de
morte natural. Existe agora a ANTA – Associação
Nacional de Teatro Amador – mas, segundo me
dizem, os governos continuam de costas voltadas.
É. É uma tragédia.
O teatro sofre com a falta de organização. Sobre
isto, diz Júlio Cardoso, não vou falar mais, porque as repartições competentes já lá têm resmas e
resmas de papel com sugestões e planos sobre o
assunto.
Enquanto a regionalização não está implantada,
as delegações regionais não deviam ter na sua competência as artes profissionais, mas tudo o que diga
respeito ao amadorismo, como teatro, música, dança,
folclore, etc. E já agora, para terminar, penso que os
grupos de teatro de estudantes, em todos os níveis,
como complementos curriculares, deveriam sair do
Ministério da Cultura entrando na competência dos
Ministérios da Educação e do Ensino Superior.
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/ UM FILHO
“– Não, mãe, não. Tenho que ir já já. Estou atrasadíssimo. Dentro de dez minutos tenho de entrar
em cena e ainda aqui estou.
– Tu estás doido, rapaz! Então a criança está quase
a nascer e esta casa fica sem homem nenhum, sem
o pai.
– Está cá a parteira, a médica acabou de sair, pronto, adeus.”
Entretanto, o pai, Júlio Cardoso, telefonara a
Jorge Corte Real comunicando-lhe que ia a caminho. Chegaria naturalmente esbaforido ao teatro,
preparando-se como bombeiro para pegar no capacete e apetrechos e acorrer ao incêndio. “Senhores
artistas, por favor todos ao palco imediatamente,
o encenador quer falar antes do ensaio”.
“Vamos dar início ao ensaio-geral imediatamente.
Só nesta pequena carapaça poderemos avaliar as
exigências e a dureza da profissão. Soube agora
que o Júlio veio a correr para o ensaio-geral e na
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sua casa toda a gente espera o nascimento do seu
primeiro filho. (Uma voz: Já, oh Júlio, casaste há
um mês ou por aí e já vem uma criança? (gargalhada
geral) ó Júlio, vai correr tudo bem e no final corre
também para casa e sobre o ensaio falaremos durante
a noite ou amanhã de manhã, determinou Ernesto de
Sousa, encenador de “O Gebo e a Sombra”, de Raul
brandão, com cenário de José Rodrigues e música
de Jorge Peixinho.
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/ EPISóDIOS SIMPLES
Durante estes cinquenta anos, poderia Júlio Cardoso relatar muitos factos protagonizados ou passados com destacadas pessoas que já por certo os
esqueceram. Prefere, todavia, falar de episódios
simples com pessoas/actores que os tornaram dignos
de destaque.
Certa vez, interrompendo-lhe a gestualidade, o
falar sozinho e o deambular de um lado para o outro
no corredor que ia dos camarins para o bar, o Zé
Prole, funcionário administrativo do TEP, comunica-lhe que a Direcção queria falar com ele. Júlio
prometeu ir dentro de vinte minutos, aproveitando
o intervalo no ensaio.
Ia haver eleições para a direcção e queriam que o
actor fizesse parte da lista. Mas Júlio não desejava
aceitar. Tinha o tempo completamente preenchido.
Embora lhe propusessem a direcção da companhia,
persistiria na negativa, retomando o ensaio.
Passados dois dias, tocava o telefone. Era da
EFACEC, o Dr. Orlando Neves queria falar com
ele. Poderiam ir almoçar no dia seguinte.
Júlio Cardoso consultava a sua agenda e não
podia aceitar, pois tinha de fechar um bom negócio.
– E à noite, depois do ensaio?, insistiria Orlando
Neves.
– Também não posso; tenho uma ceia na Associação dos Jornalistas, organizada pelo Loubet e com
malta de teatro.
– Então quando podes?
– Depois de amanhã.
E ficou combinado para esse dia. Durante o almoço,
Orlando Neves destacaria as especiais características de Júlio Cardoso para o cargo, contra argumentando este o seu estatuto, enquanto actor.
Finalmente, assinalando Orlando Neves que Cardoso
assumiria o cargo de director delegado à companhia,
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ficando os restantes elementos mais livres para incrementarem as actividades paralelas e a chefia da
tesouraria que era sempre uma dor de cabeça, aceitaria o actor em integrar a lista.
É claro que os afazeres e responsabilidades aumentaram substancialmente. Naquele tempo, o pequeníssimo subsídio que a Companhia recebia do
SNI cobria apenas os meses que eles consideravam
de temporada teatral – de Outubro a Maio. No resto
do ano, actores e técnicos viviam de ar e vento.
E mesmo durante aquele período, estavam sujeitos
a constantes cortes.
A partir de então, fosse onde fosse, passaria Júlio
Cardoso a exigir o maior rigor e o integral cumprimento em todos os contratos e contrapartidas assumidas. O que lhe custaria aborrecimentos vários e
até corte de relações, mas o ajudaria também a suportar de peito feito várias situações eivadas de absurdo e prepotência. O argumento de que a confusão
é generalizada e que ninguém está a cumprir o que
devia não o atinge. Não o aceita.
Em certa altura que tentava esclarecer determinada posição face ao Secretário Nacional de Informação, César Moreira baptista, e em que não
aceitavam a sua exigência de substituir um director,
dir-lhe-ia o político:
– Você é capaz de não acreditar. Muitas vezes
colegas meus do governo atiram-me à cara o facto
de estar a subsidiar uma companhia que é do reviralho. Sabe o que lhes respondo? Podem ser, mas são
os únicos que cumprem todos os compromissos!
Seria convocada uma assembleia geral e na sua
intervenção o advogado Araújo Correia Filho declararia: “Os senhores do SNI têm a faca e o queijo na
mão, por isso que façam o que entenderem. Mas nós
temos a obrigação de ir a Lisboa, de bicicleta, de
carro, de comboio, de barco ou de avião, dizer àqueles senhores que por aqui, ainda quem manda nas
nossas casas somos nós. E o TEP é nosso”.
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/ O “ZÉ CARIOCA”
O Sr. Mendes era um simpático funcionário da
Companhia dos Telefones que, nas horas vagas,
criava batons, pomadas, massas nos mais variados
tons para maquilhagem. Devendo interpretar um papagaio, numa peça, segundo crê intitulada “A Sereia
de Prata”, de acordo com a encenadora, a saudosa
Alda Rodrigues, inspira-se Júlio Cardoso no célebre
Zé Carioca, pelo que pede ao amigo a sua colaboração na maquilhagem. Passada uma semana aparecelhe o Sr. Mendes com vários sticks, massas, enfim
uma parafrenália de tons. Dois dias depois estudariam a caracterização do Zé Carioca. Entretanto,
passaria Júlio Cardoso horas e horas frente a uns papagaios de uns tascos da Ribeira e da Rua do Rosário, estudando os seus comportamentos.
Era um espectáculo para crianças. Quando abria o
pano para o segundo acto, soava uma música de ambiente quente, os cenários eram tropicalíssimos e
aparecia Júlio, com uma agilidade e força braçal
próprias da idade, pendurado numa árvore, saltando
de galho em galho, uma autêntica ave, humanizada
em Zé Carioca, de palhinha na cabeça, nariz de papagaio e rosto de mil cores. A partir da segunda semana, várias crianças assistiam ao espectáculo pela
segunda vez e, logo no início da segunda parte lançavam para o palco amendoins, rebuçados, bombons, tudo o que uma criança imagina de gracioso e
grande para oferecer. No final, todo aquele teatrinho
de bolso com um público generoso e espontâneo
aplaudia e chamava pelo Zé Carioca.
No final de uma dessas sessões, quando já se descaracterizava, bate à porta do camarim o contra-regra, dizendo que uma senhora com uma criança
queria falar com ele. Mandou-as esperar, dizendo
que entrassem quando estivesse pronto. A senhora
com uma menina de uns quatro anos pela mão disse-lhe que a filha queria conhecer o Zé Carioca e por
isso tinham vindo. Então a criança desatou num berreiro infernal, ficando roxa, fora de si, chamando
mentirosa à mãe, dizendo que queria ver o Zé Carioca e não um homem. Achou Júlio que a menina
tinha razão. O Zé Carioca com efeito já tinha ido
embora. Combinando então com a mãe que aparecessem três dias depois, quando a porta do camarim
se abriu, ali apareceu o Zé Carioca com os sons, a
voz e as roupagens de cena, recebendo da menina
/ “Henrique IV”, Luigi Pirandello.
agarrada ao seu pescoço um grande cartucho de
amendoins.
Em 2008, ao proferir uma conferência-debate na
Universidade Sénior da Foz, uma senhora declarou-lhe: “os meus cabelos já há muito embranqueceram,
ao longo da minha vida vi dezenas de espectáculos,
mas há um que guardo especialmente na memória
em que conheci um actor que fazia de Zé Carioca”.
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/ LIbERDADE E CENSURA
Considera Júlio Cardoso que a maior fortuna do
homem é ser livre. Por isso ainda sofre com prepotências e injustiças que sofreu ou a que assistiu.
Lembra: “Vai ao centro da cena, com as duas mãos
entreabre a cortina, estica o pescoço e com a cabeça
da caricatura do “porreirinho” pronuncia: “Senhor
coronel, a companhia está pronta, podemos começar?” O coronel, respeitosamente soerguendo-se:
“Façam o favor” Para ele, eu devia ser o maior
“canastrão” que havia debaixo do sol. Limitava-me
a “debitar” o texto e mais ou menos as marcações,
pois que às vezes estas poderiam levantar suspeitas.
Quantas obras representei que aquando dos ensaios
já o lápis azul cortara palavras, frases e cenas inteiras! Era necessária uma imaginação sobredotada
do colectivo para poder representar certas peças ao
alcance da compreensão do público. No final, todos
esperavam ansiosamente pela chegada do encenador: “Passou com o pedido de recomendação ao
senhor Júlio Cardoso que dê mais dignidade à personagem do coronel”
/ Júlio Cardoso em “Mirandolina” de Carlo Goldoni.
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/ LUÍS TITO
Muito esticadinho, talvez com o seu metro e noventa de altura, sapato meio tacão, cigarro entre dois
dedos muito esticados, chegava ao bar, Luís Tito,
grande actor brasileiro que viera na companhia Della
Costa e, habitualmente, cumprimentava os amigos,
exclamando “Ai que luta mininos, ai que luta. Uf!”
Dizia Ernesto Sampaio no seu surrealismo latente
que Portugal mandara uma grandiosa delegação artística à exposição internacional de Osaka (Japão) e,
então, durante o desfile, como se estivesse estirado
num canapé, com uma indumentária meia romana
meia grega, aos ombros de rapazes corpulentos de
luzidio tronco nu, seguia Luís Tito e então os milhares de japoneses que se aglomeravam nas bermas diziam em uníssono: “que bela expressão corporal”.
O actor brasileiro dirigiu Júlio Cardoso em vários
espectáculos. Um deles foi a “Mirandolina”, de
Carlo Goldoni. Numa das representações, uma actriz
teve um ataque de riso e, de certa maneira, contagiou os restantes colegas em cena, mas por pouco
tempo. O certo é que para espanto geral, todo esticadinho e com o cigarro entre os dedos, entra no
palco Luís Tito e declara: “Se não param de imediato com o riso, mando fechar o pano”.
Luís Tito estava há muitos anos no nosso país,
dizendo que era aqui que toda a sua vida estava organizada, mas que era como os elefantes, se tivesse
tempo de pressentir a sua morte, tudo faria para
morrer na sua terra. Um dia o actor regressou ao
brasil e aí morreu.
/68
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/ “UM DOS ACTORES MAIS PATEADOS
DO PAÍS”
Cenários belíssimos de Júlio Resende, a base de
folhas de alumínio desenhada, cortada e recortada
por ele próprio. No centro do palco, ocupando todo
o fundo, uma grande cruz de uma beleza infinda.
Muitos adereços no género. Júlio Cardoso transportava nas mãos uma coroa de espinhos toda trabalhada pelo Mestre.
O que é certo, é que um movimento contestatário
– naturalmente político — se manifestava em Lisboa,
Coimbra e Porto. Ora a direcção, constituída por
excelentes pessoas, era toda do contra e não compreendia a situação. Todos os dias a lotação encontrava-se esgotada e, a partir de determinada altura,
era impossível continuar pelas contínuas pateadas.
Um dia, a direcção, completamente desaustinada,
requisita dois polícias para se colocarem como dois
leões na plateia, à direita e à esquerda do palco,
garantindo que as representações chegassem ao fim.
É claro que começaram as tosses, seguiram-se os
sapateados e Júlio Cardoso salta para a plateia e
solidariza-se com o público.
Por isso costuma dizer que é um dos actores mais
pateados do país.
/ Jú l io Cardoso em “Auto da Alma”
de Gil Vicente com enc.
de Luí s Tito - /69
TEP, 1969.
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/ “O JUDEU” DE bERNARDO
SANTARENO
/ António Pedro.
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/ COM ANTóNIO PEDRO
Sempre que Júlio Cardoso se encontrava com
António Pedro, preocupava-se, de forma indirecta e
de maneira muito subtil, em reduzir uma certa animosidade que o grande homem de teatro tinha para
com o TEP. É claro que toda esta preocupação obedecia a uma estratégia muito pessoal, até porque,
embora não directamente, outros responsáveis do
TEP não se mostravam tão interessados. Com o andar dos tempos, chegaria a abordá-lo directamente
e crê ter alcançado um verdadeiro triunfo quando
Pedro se dispôs a ir ao teatro de bolso, embora tendo ficado só pelo balcão. Não desceria as escadas
que davam para a plateia e para o bar, o sítio social
onde o público se juntava.
De abordagem em abordagem, Pedro foi-lhe dizendo que para director artístico nem pensar, por já
lhe bastarem as dores de cabeça que tivera naquele
“buraquinho fazedor de asma”.
Mas um dia, Júlio Cardoso perguntou-lhe que obra
gostaria de encenar no TEP. Pedro, sorrindo, respondeu-lhe: “Para o ano falaremos disso tudo em pormenor.”
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Era um fim de tarde. Após um ensaio, Júlio
Cardoso tomava um café no “Leão d’Ouro”, quando
António Pedro se sentou, ofegante e feliz à sua me sa. O António Martinho enviara-lhe o manuscrito
de “O Judeu”, solicitando a sua opinião.
Entusiasmado, o grande homem de Teatro confessava-lhe que começara a ler o texto após o jantar e
tanto lhe agradara que tomara notas e mais notas,
considerando-o uma das melhores obras da dramaturgia portuguesa do século. Eram já nove horas,
Cardoso sorvia todas as palavras do Mestre, arrebatado pelo seu entusiasmo e agarrado pelo seu braço,
quando protestava estar já atrasado, precisando de
se retirar. Pedro declarava que António Martinho
teria de ir uma semana para Moledo, onde os dois
podariam a peça, insistindo porém que em Portugal
só existia um actor para desempenhar o papel de
Cavaleiro de Oliveira: Ruy de Carvalho. Desde então
não se recorda Cardoso se alguma vez chegou a exprimir tal opinião ao actor que, após o 25 de Abril,
com encenação de Rogério Paulo, interpretaria o
papel. Na estreia, pensara em comunicar-lha, mas
consideraria a opinião de António Pedro importante
demais para tal ocasião, a transmitir no camarim a
abarrotar. Após isso, imensos contactos travou com
o seu colega, mas ainda hoje duvida que chegasse
a dizer-lho.
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/ UM TEATRO MUNICIPAL NO PORTO
Por essa altura seria constituída uma comissão
alargada para estudar o local e a construção de um
teatro municipal. Nas primeiras reuniões, esta comissão deliberou reunir uma vez por mês e convidar
António Pedro para dela fazer parte.
Logo no termo da primeira reunião, iria António
Pedro ao “Leão d’Ouro” onde se encontravam Júlio
Cardoso e Jayme Valverde, contando-lhes pormenorizadamente o que se passara. Considerava interessar-lhe sobremaneira a construção de um teatro municipal, mas achava que com reuniões mensais não
se chegaria a lado nenhum, propondo que as mesmas
passassem a ser semanais. Parece que elas teriam
lugar às quartas-feiras e por volta da meia-noite
Cardoso e Jayme Valverde esperariam António Pedro.
Vários locais seriam sugeridos, consumindo alguns
deles vários encontros da comissão. A princípio e
absorvendo muita discussão pensou-se em destinar
o Mercado Ferreira borges à construção de tal teatro, depois, foi sugerido e quase aceite ser o edifício
constituído no cimo de Sá da bandeira no local onde
depois seria erigido o Silo-auto, por último e definitivamente, foi acordado que o edifício se localizasse
na estação de recolha dos carros eléctricos, na Rotunda
da boavista, onde hoje se situa a “Casa da Música”;
esperando-se para breve o início das obras, muito
entusiasmando António Pedro que explicava e fazia
desenhos e mais desenhos para a encomenda do projecto, saindo eufórico das reuniões e confessando ser
seu principal objectivo e não descansando enquanto
o Porto não tivesse um teatro municipal de nível
europeu. Está Júlio Cardoso em crer que foi no décimo aniversário da morte de Gulbenkian que se deu
o primeiro empurrão. Azeredo Perdigão ofereceria
dez mil contos para o teatro municipal. António
Pedro faleceu e aquela importância, após uma década e depois do 25 de Abril seria atribuída a Viana
de Lima para dirigir a reconstrução do Mercado
Ferreira borges.
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/ ARMANDO bAPTISTA
Armando baptista era professor do secundário e
artista plástico nas horas vagas Entre a pintura e a
bebedeira preenchia o seu tempo livre. Raras vezes
o veria Júlio pouco alcoolizado. Quando aparecia
era com carraspanas de caixão à cova. E a respeito
de cova…. Num dia de intenso calor, quando abriam
um jazigo no cemitério do bonfim para lá entrar um
cadáver, estava o baptista a dormir profundamente.
Ele morava para os lados de Campanhã e dizia que
naquela noite estava um calor insuportável e tivera
aquela ideia luminosa… De outra feita, comprara
por quinhentos escudos um burro a uns ciganitos
e nos dias seguintes ia ao bolhão comprar chapéus
de palha para dar de comer ao animal.
Certa noite, com a lotação quase esgotada, estava
Júlio Cardoso a actuar e a dada altura entra, numa
euforia tresloucada, o Armando baptista aos gritos:
“Oh Júlio Cardoso, esta burguesia não merece a sua
beleza. Desça as calças e limite-se a mostrar o traseiro a esta gentalha”. Desesperadamente, corre
Cardoso pelo corredor, mete-lhe um braço, puxa-o
/ Armando Baptista, 1967.
em direcção ao camarim, sussurrando-lhe: “Oh baptista, porra, você está a prejudicar-me.” Mas o outro
não o deixa continuar, e também em voz baixa, murmura, aflito “ Isso nunca! Júlio Cardoso, isso nunca!
“ O actor mete-o no camarim, recomendando-lhe
calma. No fim do espectáculo, ao abrir
a porta, depara com o outro chorando convulsivamente: “Oh Júlio, juro-lhe que não o queria prejudicar”.
Numa noite, com o “Transmontano” a abarrotar,
vê Júlio Cardoso Armando baptista aos gritos. “Oh
Júlio Cardoso! Júlio Cardoso! Onde está o Júlio
Cardoso!”, carregando um enorme quadro e exclamando: “Veja, veja a minha última obra-prima”.
Era uma representação de Cristo no Gólgota com
uns testículos descomunais arrastando pelo chão e
alguns soldados romanos fugindo esbaforidos com
as mãos nas cabeças, tentando protegerem-se dos
varapaus partidos da escada que os soldados subiam
para o crucificar.
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/ “Toda a nudez será́ castigada”, 1986.
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/ OUTRAS CENAS NO
“TRANSMONTANO”
O “Transmontano” aqui já por várias vezes citado
era um restaurante situado na Rua de Sto Ildefonso,
que estava aberto até altas horas da madrugada e era
frequentado por actores, actrizes, gente do teatro,
jornalistas, boémios. Nele tinham lugar por vezes
cenas extravagantes.
Numa noite, um indivíduo aproximou-se de Júlio
Cardoso, dizendo-lhe:”venho despedir-me de ti, porque amanhã embarco para a Guiné para defender
os Melos”. Era o Trigo que fora médico do “braga”
quando o clube ganhou a Taça de Portugal. O Trigo,
de bata branca, talvez com o galão de alferes, a cair
de bêbado, agarrado a um cabo maqueiro.
Noutra noite em que numa mesa muito comprida
se reuniam vários amigos, entre os quais o “magriço” Victor Mendes, ouve-se de repente um tiro.
Segue-se um silêncio sepulcral e um indivíduo, em
altas gargalhadas, grita:”Seus cagarolas. Isto no
Vietname é o pão nosso de cada dia”.
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/ COMO JÚLIO CARDOSO SE FEZ
SóCIO DO “bOAVISTA FUTEbOL
CLUbE” E AS “HISTóRIAS PARA
SEREM CONTADAS”
Certa vez alguns directores do grupo dos “Modestos” convidariam Júlio Cardoso. Compreendeu Júlio
que aquele convite tinha qualquer coisa por trás e
não se coibiu de o referir. Queriam, de facto, que
Cardoso falasse a Luís Silva no sentido de este aceitar a presidência do grupo. Luís Silva era um profissional de carnes verdes, boavisteiro ferrenho proprietário de vários talhos onde se abasteciam os melhores restaurantes da cidade. Sempre que havia
oportunidade pedia-lhe Júlio Cardoso que lhe comprasse bilhete para ver o “boavista”. Ao fim de alguns anos, disse-lhe Luís Silva: “Olhe, não lhe
compro mais bilhetes. Tenho aqui uma proposta e
você vai ser sócio do clube.” E assim foi. Júlio entrou para sócio do “boavista” e Luís Silva para presidente da direcção dos “Modestos”, com a condição
de Cardoso lá ir fazer uma encenação.
As “Histórias para serem contadas”, de Oswaldo
Dragun, encenadas por Júlio Cardoso tiveram êxito,
levando a Companhia a vários pontos do país e fazendo chover em catadupa convites nos “Modestos”.
Todos queriam as “Histórias”.
Luís Silva insistia com Cardoso para, mal findo
aquele êxito, repetisse a dose com novo espectáculo.
Em Lisboa, no Teatro Vasco Santana, com o público de pé, aplaudindo e soltando bravos no final
de uma das representações, Júlio Cardoso encontrava-se de pé, junto à porta da entrada do público quando
sentiu um forte abraço a estreitá-lo. Era Luís Silva
com lágrimas no rosto, reiterando mais uma vez o
seu pedido: “Oh Júlio, você tem de repetir a dose.
Pronto, porra, é mais boi menos boi!”
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/ CURSOS DE TEATRO. TEATRO
PARA CRIANÇAS
Efectuaram-se cursos de teatro, colóquios, intercâmbios com grupos de teatro, sendo de registar a
vinda do “Teatro Circo Artesans” da Corunha, dirigido pelo grande amigo, actor, dramaturgo, director,
professor e grande galeguista Manuel Lorenzo, que
trouxe ao Porto “O Entremez famoso sobre a pesca
no rio Miño”, encenada por um extraordinário director, o madrileno Pepe Estruch; o “Teatro de Campolide”, dirigido por Joaquim benite com “A Vida do
Grande D. Quixote” e outros. Eram, efectivamente,
intercâmbios em todos os sentidos. O grupo, como
teatro de amadores, ia funcionando pois tinha autonomia e estruturas para tal, limitando-se Júlio Cardoso a dar simples opiniões com a colaboração
muito especial de Jorge Castro Guedes.
No meio de toda esta azáfama como profissional
de teatro, consegue Júlio Cardoso arranjar tempo
para, ao fim da tarde, trabalhar com um núcleo de
crianças de vários pontos da cidade. - Ribeira,
Fontinha e Antas - e com a preciosa assistência de
Artur Jales estudarem a problemática do teatro para
crianças.
Este laboratório teatral ocupar-lhe-ia vários meses,
concluindo Cardoso que deveria existir um organismo governamental, (hoje talvez pudesse concluir,
como complemento ou extensão ao Instituto da
Criança) que, em pesquisas e estudos permanentes,
aconselhasse, formasse, incentivasse a educação
pela arte, não sendo preciso assistir, como está a
acontecer, com a dança, o ballet, o teatro, a música,
os concertos para bébés, etc, em que tudo se passa
sem qualquer certificação.
Após o 25 de Abril, ainda seriam criadas umas
unidades de produção de teatro para crianças, bem
como uma Associação dessas estruturas, mas teriam
vida efémera.
/ Pesquisa de teatro para a infâ n cia no Teatro dos Modestos.
/ Ensaio de “Fim de Festa”, com enc. de Júlio Castronuovo, 1970.
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/ SObRE CãES E GATOS
Possui Júlio Cardoso uma especial estima por cães,
principalmente de grande porte, entre os quais destaca os grandanois. O mesmo não se poderá dizer
quanto aos felinos. Embora possa ter nutrido certa
simpatia por alguns deles, ela desapareceu definitivamente quando, numa representação de “Fim de
Festa” de beckett, teve de entrar num bidon, nunca
mais saindo de lá. Na noite anterior, tinha ali dormido um gato e a sua urina despertou-lhe vários vómitos sempre que desaparecia dos olhares do público,
pelo que nunca mais se reconciliou com felinos.
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/ O GRUPO DE TEATRO DA OLIVA
O Doutor Magalhães dos Santos, transmontano de
Vila Real que pousou em definitivo em S. João da
Madeira, homem invulgar, verdadeiro intelectual,
professor de grego e latim, cultor vicentino e do
grande humor da dramaturgia universal e director ou
chefe de secção da “Oliva”, aquela grande fábrica de
máquinas de costura, salamandras e outros aparelhos
que havia em S. João da Madeira, propõe um dia a
Júlio Cardoso dirigir o grupo de teatro da “Oliva”.
Presentemente rareiam os grupos teatrais das empresas, mas naquela altura muitas delas possuíam grupos de teatro com várias finalidades, mas especialmente meios de marketing e publicidade de muita
eficiência e prestígio. Grupos havia montando bons
espectáculos de teatro de amadores e alguns deles
da responsabilidade de profissionais reputados.
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Pode dizer-se que mais uma experiência e uma
lição para Cardoso. Magalhães dos Santos era um
actor nato. Trabalharam a peça “Retábulo do Flautista” de Jorgi Teixidor. Naquele grupo participavam
pessoas das mais variadas categorias profissionais,
desde directores, chefes de secção, funcionários administrativos, operários especializados e sem qualificação profissional, etc. Para além de assuntos relacionados com a prática teatral, sempre Júlio Cardoso
procurava conhecer as pessoas. Num intervalo, tomando um café com um dos actores, quando o vento
e as trovoadas se sucediam, o seu companheiro relatou-lhe que ainda teria de percorrer vinte quilómetros de bicicleta mas que no dia seguinte de novo
se apresentaria. Há anos que era amador e o teatro
era uma espécie de estímulo para aguentar a vida.
No regresso ao Porto, sob constante mau tempo,
Júlio Cardoso não podia deixar de pensar na magia
do teatro dominando as pessoas.
“O Retábulo do Flautista”, de Jorgi Teixidor, ia
já em trabalhos adiantados, até que um dia Júlio
Cardoso se sentiu indisposto, fatigado, com um pouco
de temperatura e uma má disposição entre o umbigo
e o externo. Foi assistir a um colóquio de Roque Laia
nos “Modestos” sobre inquilinato, mas por volta da
uma hora da noite, quando chegou à “brasileira”, os
amigos riram da posição do seu pescoço. Tinha ficado
a olhar para a direita. No dia seguinte, o médico receitou-lhe Ultralevure e assim andou durante uma
semana, tendo, após uma fortíssima dor no externo,
sido levado para a Casa de Saúde da boavista com
o primeiro enfarte. O “Retábulo do Flautista” seria
terminado pelo seu amigo Artur Ramos.
/ Ruggero Jacobbi numa conferê n cia de imprensa no TEP em Setembro de 1966.
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/ RUGGERO JACCObI
Continuava o esforço de manter o TEP no seu período áureo. A companhia era constituída por magníficos profissionais, as actividades paralelas eram
incrementadas; a Itália iriam buscar um encenador
de categoria internacional, professor de teatro que
pertencera ao grupo de Visconti. Crítico literário e
de teatro, tinha a vantagem de conhecer profundamente a cultura teatral portuguesa. Estivera no
brasil, onde, juntamente com outros directores, nomeadamente Zimbinsky, fora um dos principais renovadores do teatro brasileiro nos anos cinquenta.
A sua apresentação como director artístico da Companhia calou profundamente as dezenas de pessoas
das artes e das letras, bem como os críticos presentes, havendo um que disse que Ruggero Jaccobi proferira uma autêntica oração de sapiência. O projecto
sob a sua direcção era muito ambicioso, pois que,
para além da Companhia, também iria ser director
da Escola de Teatro.
Em sucessivas reuniões, verificaram que a lista de
obras por Jacobbi apresentada estava cortada pela
Censura e as obras permitidas teriam cortes tão significativos que tornariam impossível a sua representação. Profundamente conhecedor de Pirandello, proporia Ruggero um ciclo sobre um dos autores mais representativos do século, mas seria necessário traduzir
as obras propostas e, após isso, enviá-las ao chamado
exame prévio (censura). Não havia tempo a perder,
pelo que optariam pela montagem de “A Estalajadeira” de Carlo Goldoni, com cenários de Jaime Isidoro.
Eram meses de férias e na direcção mantinha-se
Júlio Cardoso ao serviço. A forte personalidade de
Jacobbi ia eliminando pequenos vícios existentes.
Havia um actor que nos primeiros dias chegava atrasado aos ensaios, atrasos que se cifravam entre os
cinco e os dez minutos. No primeiro dia alegaria
falta de estacionamento para o carro, no segundo
a caótica situação do trânsito. Então Rugggero
Jaccobi chamou-o de parte e disse-lhe: “Aconteceu
duas vezes, mas a terceira já não pode acontecer,
porque sei que todas estas aflições e atrasos são devidas ao seu automóvel. A partir de agora você tem
uma solução: vai vender o carro!”
Cardoso conhecia várias histórias de Jaccobi no
brasil. Convidado pelo próprio grande actor e empresário Procópio Ferreira a dirigi-lo num espectáculo, constatara o encenador que Procópio nunca
soubera um papel, tendo feito toda uma carreira sustentada no ponto. Procópio procurou o encenador
para marcarem a data da estreia. Jacobbi respondeu
que só pensava na estreia quando ele soubesse o
papel. Passados uns dia Procópio insiste e Ruggero
dá-lhe a mesma resposta: - ó Ruggero esteja à vontade que eu não o deixo ficar mal; já sei o papel
como nunca soube nenhum, garantiu Procópio. “Pois
já lhe disse, que quando souber o papel eu marcarei
a estreia”, responde o encenador. Finalmente, na
estreia, bibi Ferreira corre para Ruggero Jaccobi
abraça-o e beija-o efusivamente e, de seguida, abre
a porta do camarim do pai e grita: “papai, finalmente
você sabia o papel”.
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Os ensaios de “A Estalajadeira” iam já muito
adiantados, quando Roggero Jaccobi declara a
Cardoso: “Júlio, você é a primeira pessoa a saber,
conduziram-me à Pide e deram-me quarenta e oito
horas para abandonar Portugal. O que faço?
A grandeza de Ruggero ainda lhe permite ir a
Lisboa ao guarda-roupa do Anahory e seleccionar
toda a indumentária para “ “A Estalajadeira”. Entretanto, mês de férias, com toda a direcção ausente, à
excepção de Júlio Cardoso que consegue reunir com
um conjunto de advogados associados do TEP, como
Armando bacelar, António Macedo, Araújo Correia,
Vilhena de Andrade e talvez mais. Era importante
que o encenador não fosse preso. Com a Embaixada
e o Consulado de Itália em consonância, preparou-se
a sua partida. Ao mais alto nível, o Embaixador italiano comunica que é o responsável por o levar à
fronteira. O ensaiador não tinha dinheiro, saíra de
Itália depois do divórcio e trouxera a sua nova mulher, a Mara que fora sua aluna. Vinha recomeçar a
vida no nosso país e combinou-se que ele iria para
Vigo, comprometendo-se Júlio Cardoso que passadas
três semanas lhe enviaria o dinheiro para aquela cidade. Entretanto, a Alda Rodrigues, como assistente
de encenação, iria todas as semanas ter com ele para
fazer o ponto da situação e receber ordens.
Ruggero dizia a Júlio que a expulsão sofrida devia
ter tido informação no brasil. Um dia, ali, recebera
também uma ordem de expulsão por, juntamente com
Jorge Amado terem feito um manifesto sobre um
Congresso Internacional da Paz. Acontece que um
ministro do governo brasileiro, muito ligado à cultura e amigo dele, sabendo do caso, informou-o que
aquilo ia ficar sem efeito – o que aconteceu – deven do, porém, ter lá continuado a ficha.
Jaccobi estava hospedado provisoriamente na
Estalagem Pão de Açúcar, na Rua do Almada. No dia
da partida, três carros da Embaixada, vários da Pide,
o casal desce da Embaixada, Jaccobi aproxima-se de
Júlio Cardoso e sussurra-lhe: “no meio da tragédia,
temos de encontrar alguns factos positivos. O primeiro é que Mara nunca conheceu os horrores do
fascismo. Ela não faz ideia dos tempos de Mussolini.
Esta noite não conseguiu dormir, porque dois pides
passeavam de um lado para o outro no corredor!
Júlio Cardoso tinha o seu filho de dois anos junto de
si e não pode esquecer as últimas palavras do encenador: “Por último, deixo-te a certeza que o Julinho
vai viver tempos melhores que os nossos”.
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Havia várias barreiras para, nessa altura ir a Vigo.
A principal era de ter caducado o passaporte, mas
no dia aprazado Júlio Cardoso cumpriria o prometido, encontrando-se com o casal no restaurante
“La Chata”.
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/ “O MAIS FELIZ DOS TRÊS”
Carlos Cabral deixara engenharia para ir estudar
teatro em Estrasburgo e quando chegou ao TEP trazia óptimas ideias de renovação. Das várias peças
que encenou recorda Júlio Cardoso “O mais feliz
dos três”, de Eugene Labiche que tinha como pano
de fundo uma pintura alusiva à revolução francesa
que os actores tinham de sobrepor à sua estatura
para não serem devorados por aquelas gigantescas
figuras. Era uma alta comédia de rir de princípio a
fim. Todas as noites os 130 lugares estavam ocupados. Num dos espectáculos, estava uma senhora que
ria de uma maneira especial, qual galinha ou menina
histérica, aumentando com a sua risada a gargalhada
geral. A determinada altura, no final de uma fala da
personagem interpretada por Júlio Cardoso, entre
um grito estridente e gargalhada, ouve-se um sussurro altissonante: o apelo do homem: “Vê se tens
mais cuidado, porra” e a resposta dela em tom agudíssimo: “Ai Vasquinho que estou toda molhada!”
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/ O ÊXITO INTERROMPIDO
O clamoroso êxito da peça de Labiche seria bruscamente interrompido, pois, num sábado, quando
Cardoso se dirigia calmamente ao campo do bessa
para assistir a um boavista-Sporting, sai-lhe repentinamente do estacionamento da direita um carro
conduzido por uma senhora alemã, fazendo inversão
de marcha. Desviando-se, embate Júlio Cardoso no
passeio da esquerda. Ainda não se usavam cintos
de segurança, pelo que dá com a cabeça no tecto do
carro, continuando com um traumatismo craniano,
a carregar no acelerador. É internado na Casa de
Saúde da boavista onde o Dr. Rocha e Melo, muito
ligado às coisas da Cultura e íntimo amigo da família de João Guedes, lá o foi curando ao longo de
meses. Havia naquele estabelecimento dois quartos
de urgência, sendo um para Cardoso e outro para
Sá Carneiro que sofrera um acidente. Talvez que
/ “O Mais Feliz dos Três”, de Labiche.
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isso tivesse originado um texto que o actor escrevera a instâncias de Zé Viana e tinha por título
“Tio Sá dos Carneiros”. Zé Viana lê-lo-ia com toda
a atenção e, no fim, arregalando os olhos como era
seu hábito e rindo, comentara: “isto não é de censura, é caso de polícia”.
E por aqui ficariam as pretensões de Júlio para
autor. Ainda escreveria alguns textos dispersos,
teatrais, naturalmente, mas depois desistira da empresa.
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/ HONRAS E SOLIDãO
Entre dois conceituados administradores do Porto:
Afonso de Magalhães, presidente do Conselho de
Administração do banco Pinto de Magalhães e
Maximiano da Silva, administrador da Companhia
de Seguros “A Mutual do Norte”, apareceria Júlio
Cardoso como sócio benemérito do Círculo de Cultura Teatral/Teatro Experimental do Porto. Porquê?
O certo é que, durante anos, Júlio Cardoso recebera
o seu ordenado, entregando-o novamente. Pode dizer-se que não está minimamente arrependido do seu
gesto, mas hoje não o repetiria. Várias direcções de
uma forma ou de outra iriam inquinando o projecto
do TEP, tornando-se candidamente seus coveiros.
Nunca preocuparia Júlio Cardoso sair do TEP
como sócio honorário e sócio benemérito, sempre
o preocupando, isso sim, um contínuo estudo, pesquisa e divulgação da cultura teatral. Por isso se
afastaria entristecido, cansado, desiludido. Na brasileira, no Transmontano, no Ginjal, no Ventura em
Espinho ou no Leonardo na Póvoa, na casa de João
Maia ou na sua, um grupo alargado de amigos, jornalistas e artistas discutiam a vida do país, em especial a do Porto e do Norte. Mas Júlio Cardoso
sentia-se tão magoado e triste que decidira afastarse de todo esse círculo, chegando ao ponto de mudar
de casa. Deixaria Gonçalo Cristóvão, indo viver
para S. Mamede, mesmo na fronteira com o Porto,
alugando uma vivenda por trás do campo do Progresso. Ali organizaria e aumentaria substancialmente a sua biblioteca, especialmente de poesia e
teatro, estudaria e leria compulsivamente, considerando a família aquele espaço como a sala de brinquedos do pai.
Começou também a coleccionar pombos e pássaros, sendo em poucos meses considerado respeitosa-
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mente no meio. Por então, receberia uma cadela
pastor alemão com pedigree, criada com todos os
cuidados. De vez em quando não podia fugir a umas
noitadas em sua casa. Numa delas encontravam-se
Fernanda Alves, Isabel de Castro, Ernesto Sampaio,
Fernando Gusmão e outros. No final, comentaria
Ernesto Sampaio: “Que raio de ideia tiveste, Júlio.
No Porto estavas mesmo à mão de semear, mas resolveste vir viver para Santo Tirso! “ Gonçalo Cristóvão fora um ponto de encontro constante, mas
em S. Mamede, essas noites iam rareando. Num
romper de sol e quando uns argentinos saíam de
casa, alguns vizinhos romperam em aplausos; entre
os convivas tinha cantado muito esse monstro da
canção latino-americana, Mercedes de Soza. Foi
uma noite memorável. Gracias a La Vida.
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/ UM TELEFONEMA ESPANHOL
Júlio Cardoso atende o telefone e do outro lado
do fio um espanhol pergunta-lhe se o pode receber.
O actor responde-lhe que estava a jantar, mas se
viesse logo ainda lhe dava o prazer de jantar consigo. Amiudadas vezes, espanhóis apareciam em
sua casa, ora recomendados por amigos comuns
para falarem de teatro, ora pedindo apoio, asilo,
etc. Júlia, na altura mulher de Júlio Cardoso, diria
“por acaso ainda hoje fiz a cama dos hóspedes”.
O espanhol apresentar-se-ia como o novo director
artístico do TEP. Estava no Porto há uma semana
e ouvira falar de Júlio Cardoso. Deviam ser cerca
das dez e meia da noite quando apareceu. A falar, a
falar, a petiscar e beberricar passaram muito tempo.
A meio da noite, concluiria Júlio Cardoso que o seu
hóspede estava muito bem informado a seu respeito.
Falar-lhe-ia do projecto do TEP, das peças que a
censura não permitia, queria começar pelos “Cuernos de D. Friolera”, de Valle-Inclán, proibida pela
censura e então desata a discorrer entusiástica e
profundamente sobre a obra de Lorca, “A Casa de
bernarda Alba”, o exagero do matriarcado e, por
volta das sete da manhã, Júlio Cardoso pergunta-lhe qual será o elenco. O espanhol cita o nome de
todas as actrizes, como estava a ver as carpideiras,
etc. “Espera aí, atalha Júlio, falaste em todas as
personagens, mas quem faz a bernarda?” “És tu”,
respondeu simplesmente o espanhol. Não sabe
Júlio Cardoso se gritou, se ficou sem fala, sabe sim
/ “A Casa Bernarda Alba”, de Federico Garcia Lorca, 1972.
que durante esse dia o telefone tocou vezes sem
conta e do outro lado Angel Faccio dizia: “sei que
amanhã ao meio-dia me dás uma resposta, mas é
claro que só há uma”. No escritório ou em casa, o
Faccio estava sempre presente pelo telefone ou fisicamente. Por mais condições que Cardoso pusesse,
não de ordem económica, mas de independência
total em relação ao projecto, não abdicava minimamente. À menor distracção eu sairei… ele cortava
eu saio contigo.
Durante cinco semanas, trabalhando no mínimo
dez horas por dia, à volta de uma mesa, Cardoso e
Faccio estudavam aturada e profundamente e faziam
a análise dramatúrgica. Ao fim daquele período, o
encenador adoeceu. Com a voz débil e o aspecto
moribundo, ele recomendava: não te esqueças da
bissectriz cabeça-sexo. Ele com 40 graus de temperatura e Cardoso junto ao leito, de gravador em
punho, a dizer com voz assexuada centenas de
vezes: “Silêncio!...A minha filha morreu virgem.
Ouviram? Virgem!”
Algumas curiosidades: havia duas actrizes que
faziam a mesma personagem e Júlio só sabia quem
era quando ela aparecia em cena.
Mais ou menos de quinze em quinze dias, apresentava-se um cantante (um cantador de cante gondo)
flamengo. Começariam com o célebre Manuel Gerena que naquela altura estava exilado em França.
Nem Cardoso nem as restantes actrizes sabiam
quando ele cantava. Andava pelo meio do público
e interrompia quando entendia.
Após o blackout final, não apareciam para agrade-
cer os aplausos. Nos primeiros dias, aparecia naquela
alvura de espuma, concebida pelo José Rodrigues,
uma monstruosa coroa de flores com fitas fúnebres,
onde era ao longe visível: “às vítimas da repressão
sexual”. Depois da primeira semana, a censura proibiu, mas em Roma foi reposta.
Senhoras do Movimento Nacional Feminino, de
escada em punho, andavam de noite a rasgar o cartaz do Zé Rodrigues. Missas de desagravo eram
rezadas na Igreja do Carvalhido. Todos os fins-de-semana, dezenas de espanhóis deslocavam-se ao
nosso país para assistir ao espectáculo. Sempre,
sempre lotações esgotadas. Uma foto da bernarda
correu mundo em muitas capas de revistas.
No “Festival Internacional de Teatro”, em Roma,
com o teatro completamente cheio, com tradução simultânea, os aplausos nunca mais paravam. Encontravam-se ali vários exilados políticos do mundo
ibérico e, do seu camarote, Rafael Alberti gritava;
“batam palmas, batam palmas.”
O vestido da bernarda pesava 8 kg, é uma peque na jóia de figurinos concebida por Zé Rodrigues.
Finda a peça, caminhando Cardoso por um corredor, avistaria uns mictórios e para despejar não só a
urina, mas toda a adrenalina, levantaria despreocupadamente o vestido, descendo o calção, quando,
olhando para trás, depara com uma legião de fotógrafos e repórteres em acção.
No meio de uma pequena multidão aglomerada
à entrada dos camarins, apresenta-se um sujeito.
Chama-se Martins Janeira e é embaixador de Portugal em Roma. Sente-se orgulhoso com o trabalho
/79
/ Festival Mondial du Theatre.
/ Pré m io Roma 1972.
apresentado e pergunta a Cardoso se aceita que a
Companhia seja recebida oficialmente na Embaixada. Agradecendo, o actor responde que só no dia
seguinte poderia dizer, pois teria de apresentar a
proposta ao colectivo.
Foi uma recepção em grande, não só por ser em
Roma e extensiva a todo o corpo diplomático como
pela presença de muita gente interessante. Até porque o embaixador era um intelectual, um dramaturgo. Um homem de cultura, preocupado em levar
a efeito uma grande cerimónia.
E aconteceu uma grande festa.
De várias partes do mundo choveriam convites
para a bernarda. Este estrondoso êxito esbarrava
com todo o projecto que, aturadamente, se organizara para o tempo de Angel Faccio.
Embora Júlio Cardoso declare sentir muitas dificuldades em lembrar factos e dar-lhes sequência,
muitos deles vêm-lhe à memória, como é o caso
dessa “tournée” pelo estrangeiro. E, naturalmente,
também a necessidade de ser objectivo e sintético.
Portanto, e apenas como curiosidade conta que esta
viagem foi milimetricamente calculada com Angel
Faccio sempre a dar palpites e procurando-se as
mais económicas vias. Concluiriam assim que deviam seguir até Madrid em automóveis e, a partir
dali, em autocarro espanhol, seguindo os cenários
em camião português e por outros trajectos. (Claro
que como diz o ditado muitas vezes o que é barato
sai caro, mas isso são outras história) Esta viagem
descrita com todos os pormenores seria capaz de resultar num extenso volume de “evangelhos apócri-
fos”. Mas como pequena curiosidade, conta Júlio
que em Roma, se albergariam numa pensão baratucha, no Campo dei Fiori onde ficaria estacionado o
autocarro espanhol que, certa manhã, teria pintada
com tinta plástica e brocha larga a toda a largura do
veículo, a seguinte inscrição: “MORTE AL FASCISMO”, isto nos princípios da década de 70, com
Francisco Franco muito vivo.
Na apresentação pública de Faccio, ele, com todo
o seu anarquismo social que tanto o caracterizava,
dissera que a bernarda era uma masturbação artística. Cardoso argumentava que deveriam ser coerentes e acabar com o espectáculo. Já tinham estado em
Lisboa, no Teatro Capitólio também com assinalável
êxito.
Todas as filhas em todos os momentos tratavam
Cardoso por mãe e os restantes elementos por bernarda. Psicologicamente o actor estava a ficar frágil.
Tinha que se preservar e o melhor era afastar-se.
Na primavera de 2009 iria a Madrid com António
Reis assistir no Teatro Espanhol, com encenação de
Faccio, à obra de D. Ramón de Valle-Inclán, “Los
Cuernos de D. Friolera”. Em conversa com o encenador e trazendo à lembrança o arrebatador êxito de
bernarda, dizia ele: “Nós nunca demos o devido
valor àquilo que tínhamos em mãos.”
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/ Inauguraç ã o FITEI 78 na Câmara Municipal do Porto.
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/ A RUA ANTóNIO PEDRO
Como director do TEP, propusera Cardoso o nome
de António Pedro para o teatro de bolso, escrevendo
ainda ao jornalista e crítico musical Hugo Rocha,
presidente da Comissão de Toponímia, para que uma
das ruas do quarteirão do teatro tivesse o seu nome,
o que de facto veio a acontecer.
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/ O REGRESSO
Regressando ao centro do Porto e indo morar para
um T4 duplex, mas repleto de luz, num prédio concebido pelo seu saudoso e querido amigo, Viana de
Lima, com a família aumentada – em S. Mamede
nascera a sua filha – aqui tudo ficava mais à mão e
amiudadas vezes em sua casa, na de João Maia,
onde se saborearia o célebre arroz da D. Orquídea,
ou nos restaurantes já referidos, teriam lugar os habituais convívios. João Maia era um jornalista muito
conhecido, mas a quem se atribuía um ou outro
eventual defeito, esquecendo-se totalmente as suas
virtudes. Há quem diga que é um defeito português.
O certo é que, em jovem, numa reunião de família,
colocaram Júlio como réu e alguns dos seus familiares começaram a assacar-lhe defeitos. No fim, levantou-se e só disse: há um prato que está lá no
alto. Vá, por favor, ponham nele pelo menos uma
virtudezinha, caso contrário correm o risco de cada
um estar a ver com três olhos. E saiu.
Sem receio de exagerar, considera Júlio Cardoso
que se alguém quisesse escrever a história dos
movimentos culturais da cidade do Porto, depois
da II Guerra Mundial, teria obrigação de mencionar o nome de João Maia como um dos mais importantes autores de muitas iniciativas. Em organizações onde ocupou o núcleo promotor, teve Júlio
Cardoso a sorte de encontrar dois homens de extraor dinária importância. Um deles era João Maia, o
outro António Reis.
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/ O VELHO E O NOVO
Durante os anos 60-70 dizia-se que no TEP qualquer luta entre o velho e o novo, aquele acabava
sempre por vencer.
Não deixará de ser até certo ponto verdadeiro.
De facto, certa vez um punhado de associados do
Círculo de Cultura Teatral/TEP resolveu promover
uma lista de oposição à direcção. Esta era dirigida
por um grande político revolucionário cuja residência estava sempre aberta a quem tivesse qualquer
tipo de fome, quer física quer intelectual. Lá encontrava todas as tendências esquerdistas, bons e grandes amigos, gente conhecida e outra nada recomendável. O Alcino era o contabilista de uma fábrica
de estamparia de Santa Cruz do bispo. Sentado num
extremo da mesa, ele e o seu inseparável cachimbo,
ouvia e falava só do que sabia e lembrava a este ou
aquele que estava a petiscar e a beber pouco. A sua
presença física, rosto e olhos, tornavam-no semelhante a Mao Tse Tung. Pois era contra a direcção
/81
por ele presidida que o tal grupo de associados
organizara uma lista opositora à qual Cardoso
aderira.
Com Orlando Juncal, conhecido advogado do
Porto e mandatário da lista opositora, subiria Júlio
Cardoso a escada para o gabinete da direcção, pedindo Juncal ao Alcino, na sua qualidade de mandatário uma lista ou a forma de contactar a massa
associativa. Resposta pronta do Alcino: “não dou”.
“Tens aí um frasco de álcool?”, pergunta Juncal.
“Não, porquê?”, responde Alcino. –“É porque se
tivesses, dava-te um bofetão, mas depois tinha de
desinfectar a mão por ter tocado em semelhante
orcaria.” Isto era uma conversa entre dois grandes
amigos. –“Olha, Juncal, atalha o Alcino, cachimbando umas fumaças –“Quem está no poder só per de quem é burro. Depois das eleições, se quiseres,
podes impugnar.”
Quando se processava a votação, estava muita
gente na assembleia e, a páginas tantas, há uma
senhora que diz: “Eu queria votar na lista A, o que
devo fazer?” Sucede-se um grande burburinho,
uns defendem a anulação daquele voto outros não.
O António Reis, delegado da lista b, avisa a assembleia que por ele a senhora pode exercer o seu di reito a voto. E assim aconteceu. No final e após
contagem e recontagem o resultado cifrou-se em
107 votos para a lista A e 106 para a b.
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/ UM CONVITE DE VASCO MORGADO
Dizia Jacinto Ramos que Vasco Morgado era
capaz de não fazer a barba durante três ou quatro
dias para contratar um actor que lhe interessasse.
Ora um dia, receberia Júlio Cardoso um telefonema daquele empresário, dizendo-lhe que vinha ao
Porto e necessitava falar-lhe com muita urgência.
As relações entre ambos tinham sido sempre cordiais. Quando a “bernarda” estava em Lisboa, no
“Capitólio”, todos os dias se encontravam para o
chamado encontro de contas e tudo decorrera maravilhosamente.
A pedido de Morgado, Júlio encontra-se com ele,
no início dos anos setenta. Comunica-lhe o empresário que tem apoio para uma companhia permanente no “Sá da bandeira” do Porto. O subsídio
estava garantido. Naturalmente que tal companhia
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só poderia fazer teatro dramático de grande nível,
e esta era a única condição a que estava obrigado.
Essa companhia teria um director artístico e beneficiaria de toda a autonomia. De Lisboa teria 7 ou 8
actores à escolha do director, sendo os restantes elementos do Porto. Morgado citara o nome de Cardoso
e a resposta fora: veja se o convence. Por isso, queria que Júlio aceitasse a proposta. Não esperava
o actor proposta daquele género. Estariam juntos
cerca de três horas, considerando o actor que o Sá
da bandeira era um dos principais pólos lucrativos
da empresa. Naturalmente que haveria peças que
iriam ao Porto, mas tudo isso seria acertado e deveriam fazer o possível para que quando uma companhia lisboeta fosse para o Sá da bandeira, a do Porto
seria recebida em Lisboa. Ficaria combinado Júlio
Cardoso responder passada uma semana.
O actor pediria opiniões, aconselhar-se-ia com
pessoas das suas relações e ligadas ao meio. Não
houve uma única que dissesse para não aceitar.
Algumas até, com entusiasmo desbordante, chegariam a abordar empresários amigos para o projecto.
No dia aprazado, Vasco Morgado telefonou a Cardoso. Este pedir-lhe-ia mais uns dias, enquanto prolongava os seus contactos. Não se tratava de qualquer tipo de timidez, era respeito por si mesmo e
pelo projecto, pois sabia que não abdicava minimamente dos seus princípios e tinha a certeza que, à
mínima discordância, estaria tudo estragado. Assim,
ligaria a Vasco Morgado, comunicando-lhe que era
bom para ambas as partes não aceitar. Acima de tudo,
estaria a sua liberdade.
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/ SUbSTITUIR RAUL SOLNADO
Raul Solnado interpretava “O Tartufo”, de Molière,
dirigido por um grande encenador catalão, Adolfo
Marsillach. Não se recorda Júlio Cardoso porquê,
mas tinha de ser substituído. Então consideraria
Júlio Cardoso o actor ideal e viria ao Porto com
toda a urgência. Calmamente o actor portuense
olhou-o e respondeu: antes de lhe agradecer o convite, digo-lhe que se dissesse que sim, estaria mais
louco que você. Neste contexto, o Raúl é insubstituível. Cerca de duas horas tentaria Morgado convencê-lo, mas Júlio Cardoso não cederia.
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/ JÚLIO CARDOSO E A CRÍTICA
E chega a altura de perguntar ao entrevistado o
que pensa ele sobre a crítica.
A reposta não se faz esperar: “Ao longo de todos
estes anos só considero que existiram dois ou três
críticos. Com efeito, houve uma rapaziada que, de
vez em quando, ocupava uns espaços nos jornais,
pondo-se na ponta dos pés a escrevinhar coisas que
eles consideravam crítica. Antes de mais, um crítico
deve ser íntegro e gostar muito, mas mesmo muito,
do que critica e da sua missão. Depois, ter uma boa
formação intelectual, moral e colocar-se sempre,
mas sempre, numa posição neutral. bom, sobre isso,
se tivesse tido a pachorra de tomar nota de tantas
tolices que presenciei, teria matéria para vários
tomos. Vou tentar seleccionar algumas:
Uma grande orquestra sinfónica veio ao Coliseu
e, no dia seguinte, um crítico referiu-se ao concerto
como um raro momento histórico e escalpelizou
todas as peças do programa. Referiu-se às sonoridades e ao maestro com extraordinários encómios.
Só que o concerto não se realizara porque o avião
que trouxera os músicos e os instrumentos não trouxera as pautas, pelo que o concerto fora adiado…
Para sublinhar o tempo e o local do drama, decidiria Júlio Cardoso que a música deveria dar a impressão que partia da confeitaria existente debaixo
da sala de espectáculos e em limpezas durante a madrugada. Após a colaboração de um dos melhores
técnicos de som da cidade, de se experimentarem
vários tipos de gravações, colunas, altifalantes, etc,
o equipamento seria colocado numa varanda da sala.
Com efeito, o som fora acertado e parecia realmente
um rádio, transmitindo música e palavras de uma
estação francesa. Tinha-se finalmente conseguido o
efeito, mas uma crítica maldizente terminava assim:
“uma parte do som mais parecia um rádio na confeitaria debaixo”.
De “O Tio Vânia”, de António Tchekov, havia
duas traduções portuguesas. Uma era de Armando
bacelar e por esta optariam.
Contactariam o tradutor, velho amigo que de imediato consentiu em que a peça fosse levada à cena,
prescindindo dos direitos de autor. Três pessoas
foram destacadas para a revisão do texto. Uma era o
próprio encenador, latino-americano, estando em
Moscovo durante oito anos, onde se doutorara com
uma tese sobre Tchekov. Possuía uma versão em
russo, duas em castelhano e outra em inglês. As
restantes pessoas possuíam versões em inglês e em
francês. Seria um trabalho rigoroso e aturado.
No final e por consenso e amabilidade de Armando
bacelar, era no programa indicada a sua tradução.
Pois um crítico terminaria o seu arrazoado lamentando que não tivesse havido o trabalho de rever a
tradução, pois a mesma estava muito localizada.
Para terminar, Júlio Cardoso evoca ainda outra
caricatura de crítica: esse grande jornalista Fernando Dacosta, de boa ossatura intelectual e de carácter exemplar, escreveu algumas peças de teatro
das quais muito se havia a esperar. Crê Cardoso que,
na sua segunda obra os “críticos de cartaz” foram
impiedosos.
Dizia o Eça que o “portuga tem na sua formação
a inveja, pelo que, e quando em vez põe-se em
bicos de pés com o dedinho especado no ar e berra:
eu estou aqui – também estou aqui”.
Tempos mais tarde, perguntaram a Dacosta
quando dava à luz nova obra de teatro, ele respondeu: “Os críticos que a escrevam”
Neste meio século, houve muita gentinha que se
permitia proclamar crítico, quando nem sequer tinha
carácter para o ofício e detestava teatro. Pessoas que
preenchiam espaços jornalísticos e que depois desapareciam como chegavam. Críticos, para mim, efectivamente existiam dois ou três. Houve um que na
realidade foi muito importante na crítica do texto:
Teixeira Neves.
Muita gente considerava António Pedro extremamente vaidoso. Poderia sê-lo porque tinha arcaboiço
intelectual, humano e artístico para tal. Se qualquer
elemento da sua Companhia fosse atacado, ele colocava-se à sua frente e assumia a sua responsabilidade.
É conhecida porque foi pública a sua polémica
com Redondo Júnior. Em certa altura o crítico tratá-lo-ia por Sr. Costa, que era de facto o patronímico
de António Pedro que não perdoaria, respondendo:
“Vejamos o que significa Redondo Júnior: Redondo,
coisa que não tem ponta por onde se lhe pegue. Júnior,
a mesma coisa mas em ponto mais pequenino.”
Um dia, subindo Cardoso a Rua de Passos Manuel,
encontraria à porta do Ateneu Emílio Loubet, jornalista e crítico de teatro no “Jornal de Notícias”.
Embora não o considerasse um crítico de grande
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/ “Machbeth”, de Sahkespeare.
fôlego, muito o admirava pela paixão que tinha pelo
teatro. Era um frequentador assíduo e estava sempre
à frente de qualquer organização para iniciativas
teatrais. Os célebres encontros ou as ceias de homenagem a gente de teatro na sua Associação de Jornalistas eram sempre ou a maior parte das vezes por
ele organizadas.
Nessa altura declararia a Júlio: “Eh pá, não sei
como ainda há gente a fazer teatro. Nos últimos
anos as críticas que leio, imediatamente revelam
serem escritas por gente que detesta o teatro. Fiz
crítica durante trinta e cinco anos. Vi muita merda,
não dizia bem, mas nunca dizia mal. Muitas vezes
limitava-me a dar notícia e pouco mais e sabes porquê? Porque o Teatro foi sempre a minha paixão”.
Com efeito, costuma Júlio Cardoso dizer que nos
últimos tempos a crítica fez muito mal ao teatro, por
dizer exageradamente bem de certos sub-produtos.
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/ ANTóNIO REIS
Não saberia Júlio Cardoso responder quantas secções, naquele tempo, tinha o grupo dos “Modestos”.
Ele costumava tomar café no bar do rés-do-chão e
seguir de imediato para a sala do teatro. Havia pessoas que conhecia de vista, cumprimentava, mas
pouco mais. Às vezes ia inquirindo sobre uma ou
outra pessoa. O jovem António Reis que se tornaria,
mais que camarada, um irmão e um artista de exemplar honestidade e verticalidade, chamar-lhe-ia a
atenção pelo seu porte, a forma como tratava e era
tratado pelos demais. Para muita daquela gente era
o Reis ou o Tony, muito querido naquele meio. Falariam a Júlio em muitas das suas habilidades e que
era campeão de ping-pong. Então, um dia, em que
tomava o seu café, repararia num magote de pessoas
seguindo atentamente uma partida de ténis de mesa,
em que um dos contentores era o Reis. Pela técnica
e vitalidade do jogo, também Cardoso se deixou entusiasmar e quando mudaram de campo, como quem
não quer a coisa, disse-lhe ao ouvido: “Queria falar
consigo”. “Comigo?” “Sim, às 11, pode ser?” “Ok”
“Você não quer experimentar teatro?” “Eu? Não sei,
talvez. Vai haver proximamente algum curso?”
E assim foi, pelos anos 63/64 do século passado.
A pouco e pouco, António Reis estava a deixar tudo
para trás e o teatro ia-o absorvendo. Participou naquela experiência maravilhosa do “Arsénico e Rendas Velhas”, dirigida por brunilde Júdice e nunca
mais parou. Lembra-se Júlio Cardoso de um curso
intensivo de pantomina e o Reis, já furriel da Polícia Militar, pondo os soldados de serviço da sua
ronda a jogar bilhar e a tomar café e ele a correr a
despir a farda, pondo a um canto com muito cuidado
a pistola e o espadalhão, e, em calção e tronco nu, a
integrar-se na turma e, depois de um rápido aquecimento a executar a marcha contra o vento, sob a rigorosa direcção de Castronuovo. Pode dizer-se que
entre Júlio Cardoso e António Reis existiu sempre
uma afinidade parecendo mais antiga do que de
facto era. Mais tarde, novamente juntos em mais um
curso dirigido por Angel Faccio tal afinidade ainda
mais se evidenciaria. Talvez nenhum deles sonhasse
sequer que iriam juntos construir obras muito necessárias, algumas delas durando décadas. Assim, de
facto, aconteceu. As obras aí estão. O curioso é que
tanto Cardoso como Reis manteriam as suas perso-
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nalidades que, todavia, produziriam frutos comuns.
As diferenças entre ambos eram notórias, classificando-as alguns de abissais, mas o que é certo é
que conseguiam atingir uma notável harmonia.
Júlio Cardoso lembra ainda uma fundamental
caminhante numa importante fase desta sua marcha.
Seria uma autêntica revelação como actriz, tornando-se uma artista de ímpar solidez. Pela sua inteligência, ritmo e capacidade criativa e de trabalho,
formaria com ele e António Reis um triunvirato de
respeito e de produtividade de inteligência criativa.
Também foi uma contadora de belezas e por onde
passou, especialmente no Porto, deixou indeléveis
marcas de fraterna amizade, criando ambientes de
elevado pendor artístico, cultural e humano. Iria
para Lisboa por quatro meses para fazer parte do
elenco de “D. João e a Máscara”, no Teatro da Politécnica e por lá ficou até hoje. Realmente a cidade
do Porto tem sido uma madrasta para muitos dos
seus melhores filhos. Estrela Novais esteve sempre
inteira com os seus companheiros e ainda hoje, com
a sua vida organizada noutros sentidos, continua a
responder presente a qualquer chamamento que se
lhe faça.
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/ O GRUPO DE TEATRO
INDEPENDENTE “ANTóNIO PEDRO”
Pouca gente tem conhecimento ou fala da existência, embora efémera, do “Grupo de Teatro Independente António Pedro” que existiu na cidade do Porto.
Júlio Cardoso recorda este facto porque participou
em muitas reuniões para a sua fundação. Desde a
primeira que clarificaria a sua posição com a condição de que senão fossem consagrados nos objectivos
do grupo alguns pressupostos por si defendidos, desistiria. E assim aconteceu. Este novo projecto foi
ainda tentado no TEP, mas, mais uma vez, o velho
saiu vencedor.
Do núcleo fundador do Grupo António Pedro,
além de Júlio Cardoso desistiriam Estrela Novais
e José Adriano.
A direcção artística era da responsabilidade de
Angel Faccio e os actores de base seriam Adriano
Rangel, António Reis, Fernando Filipe, Lídia de
Sousa, Manuela de Melo, Márcia breia e outros.
Este grupo apresentou as obras de Mrozek:
“Striptease” e “Karol”.
/ “A Secreta Obscenidade”, de Marco Antó n io de la Parra.
/ “Porto d´Honra”, 1995
/ Júlio Cardoso com António Reis.
..............................................................
/ SEIVA TRUPE
Todos os participantes discutiriam até à exaustão
a filosofia do movimento do teatro independente,
a sua prática, pensamento e, consequentemente, a
estrutura e objectivos deste grupo que iria nascer.
Foi lastimável a sua pouca duração, muito embora
as propostas de Cardoso não tivessem obtido a
maioria, iriam criar desassossego no estado de coisas existente e abrir espaços a novas mentalidades
contemporâneas do teatro.
A partir de 1972 e depois de se ter gorado o projecto do grupo António Pedro, aproveitando toda
a experiência de estudos e participações individual
e colectiva e de toda uma elaborada documentação
para a renovação do TEP e criação do novo grupo,
Júlio e os seus amigos começariam a tentar a formação de uma nova companhia, onde naturalmente se
entroncariam os ideais dos seus fundadores.
Reuniões e mais reuniões extensíssimas se sucederam. Só para o nome do novo projecto surgiram
dezenas de ideias e de todas elas, por unanimidade,
optou-se por SEIVA TRUPE – Teatro vivo, principalmente por que o nome sugeria vida em movimento. Um dos seus objectivos era ir ao encontro
de novos públicos.
Naquela altura, um grupo profissional só poderia
trabalhar devidamente legalizado pelo que a sua
constituição só era permitida através de profissionais habilitados com as suas carteiras para requererem o estatuto de sociedades artísticas. Foi isso o
que fizeram.
/90
Alguns profissionais ou estagiários adeririam de
imediato ao projecto e, para não se perder mais
tempo, juntariam três carteiras profissionais, a de
Júlio Cardoso, de António Reis e de Estrela Novais,
iniciando o processo de legalização e quando Pinochet e os seus próceres pensavam estar a aniquilar a
liberdade e o pensamento, nessa mesma data, noutras partes do mundo, nasciam novas ideias, contrariando tais propósitos. No dia 11 de Setembro de
1973, três jovens actores profissionais do Porto subiam as escadas da “brasileira” e no notário Ponce
de Leão, com toda a documentação em ordem, faziam a escritura de constituição de uma sociedade
artística, com o nome de SEIVA TRUPE – teatro
vivo. A partir daqui começou a louca aventura.
O certo é que arrancariam com uma confiança ilimitada no trabalho que se propunham. Não tinham um
tostão de subsídio. Depois do 25 de Abril, viriam
a descobrir informações por escrito, declarando
que não seria recomendável qualquer apoio.
Foi uma entrega total com um trabalho insano.
Por exemplo, a Estrela tinha arranjado um emprego
muito razoável, como inspectora de seguros e estava
a ter muito sucesso. Largou tudo. Muitos dias levantava-se às 5 da manhã para apanhar camionetas ou
comboios e de pasta na mão ia pelo província tentando vender espectáculos. Naquele tempo, empresas e organismos oficiais não tinham medo das
palavras, pois sabiam que o que era apresentável já
tinha passado, pelo menos duas vezes pelo crivo dos
censores. Na época natalícia, as festas para os filhos
dos trabalhadores eram aos magotes. E assim, numa
/ Primeiro logotipo da Seiva Trupe.
/ Actual.
versão muito especial apresentariam o espectáculo
para crianças “Musicalim na Praça dos brinquedos”.
Foi um êxito em todos os sentidos. Desta maneira
começaram com uma sementeira, hoje já de provecta idade, ombreando com as principais companhias de teatro independente históricas deste país.
..............................................................
/ “CATARINA NA LUTA DO POVO”
No dia 16 de Março de 1974, encontrava-se Júlio
Cardoso em Lisboa com a malta do Grupo de Teatro
de Campolide, onde, para além de elementos do
grupo, como Joaquim benite e Zé Martins, havia
amigos jornalistas. Sempre na ânsia da chegada da
coluna militar das Caldas da Rainha, o grupo andaria durante a noite a pesquisar o percurso entre o
Saldanha e a Rotunda do Relógio. Os primeiros
raios da manhã começaram a clarear a noite e parte
do grupo resolveu ir afogar as mágoas para o bar do
aeroporto que naquele tempo estava aberto toda a
noite. Os rumores que já vinham de trás aumentaram de ritmo e nos dias seguintes havia sempre opiniões e informações, especialmente de madrugada,
entre os rapazes das gazetas, uns melhor informados
que outros. Em certos meios, esperava-se a todo o
momento que a “bernarda” estoirasse. Júlio Cardoso
combinara com Jorge Castro Guedes sair para a
Corunha pelas 6H30. Por volta das quatro da madrugada o telefone toca, Júlio atende e do outro lado
do fio Castro Guedes comunica-lhe que a viagem à
Corunha fica sem efeito. O Castro Guedes era useiro
e vezeiro em partidinhas pela madrugada fora.
/ “Os Amorosos da Foz”, 1985.
Por acaso, Júlio Cardoso não tinha razão de queixa,
mas era conhecedor de muitas destas práticas a ele
devidas e ao seu grupo do café bicové. Portanto
será de calcular a reacção de Júlio face à notícia e
à hora a que ocorrera dando lugar a uma série de
dispautérios. Ele riu-se e passou o auscultador à
mãe e a Senhora confirmou as suas palavras. Depois
de desligar, a desconfiança não abandona Júlio, pelo
que começa a levantar-se, vai ao quarto de banho e
lava a cara como os gatos, veste-se e vai ao Quartel
General, tudo fechado, e quando se dirige para a
porta do lado da Lapa, há um fulano que, ao passar,
lhe sussurra que deve estar a acontecer qualquer coisa
, porque passara por um tanque junto à Câmara. “ó
diabo, deve haver moiro na costa”, pensa Cardoso.
Volta para trás e mete-se no carro. É o 25 de Abril.
Os trabalhos na Companhia são substituídos por
reuniões. O que fazer? Ao fim de dias e com aquela
agitação de dia e de noite, foi deliberado que cada
um pensasse e repensasse o futuro, marcando-se
novo encontro com o fim de prolongar o período por
mais um mês, o que todos aceitaram. Hoje, a esta
distância é difícil compreender o porquê de tanta
excitação. Alguns elementos tinham compromissos
com outras prioridades. A longa noite tinha dado
lugar a uma nova aurora e o grupo tinha-se dividido
por vários caminhos.
Nas reuniões seguintes questionava-se: que teatro? O núcleo tinha consciência que dentro de cada
um havia um censor. Caíram na mesa várias sugestões, algumas totalmente disparatadas, outras absurdas, chegando a provocar gargalhadas, mas também
/91
/ Ensaio de “Catarina na Luta do Povo”.
muitas interessantes que por este ou aquele motivo
não eram oportunas, especialmente pela dimensão
dos custos. A reunião prolongava-se, o cansaço tomava já conta dos participantes, até que uma colega,
com toda a naturalidade, serena e tranquila, começa
a dizer que lera a história de Catarina Eufémia, chegando a pensar que era capaz de dar um bom espectáculo e desata a enumerar as características para
uma boa temática e mais daqui e mais dacolá até
terminar. Silêncio. Olharam todos uns para os outros; um actor rompe o silêncio e pergunta quem
seria capaz de fazer a teatralização ou escrever a
peça. A partir de então, todos se preocupariam com
a resposta a esta pergunta.
Unanimemente, todos veriam uma luz ao fundo
do túnel. No dia seguinte deveriam trazer sugestões
sobre este tema. E assim aconteceu. De todos os
nomes lançados para a mesa e depois de ser cada um
ponderado, analisados dentro da própria perspectiva
os prós e os contras deste e daquele, por consenso
seria resolvido convidar o Luís Humberto Marcos,
jornalista do “Diário de Lisboa”, grande entusiasta
da cultura, estudioso, consumidor e militante das
belezas do pensamento e da alma. Luís Humberto
aceitaria. Vários encontros para delinear metodologias. Após muitas leituras e informações, Luís Humberto e Júlio Cardoso marcham para baleizão. De
gravador em punho, entrevistas e mais entrevistas,
horas e horas com o Carmona – o viúvo – familiares, amigos e conhecidos. Ao fim de uns dias, regressam ao Porto e depois de trocarem várias ideias so bre a estrutura da peça, o Luís isola-se e, pouco a
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pouco vai montando a obra, num diálogo permanente com os actores, cortando aqui, aumentando
acolá, até a encenação ficar concluída: “CATARINA
NA LUTA DO POVO”. A encenação é de Júlio Cardoso e a peça vai ser apresentada nas instalações da
ACM – Associação Cristã da Mocidade – mesmo no
centro do Porto, na Rua José Falcão. Êxito estrondoso. É claro que na génese do grupo estava como
objectivo fundamental o teatro e ir ao encontro de
novo públicos. Júlio Cardoso é de opinião que, só
com esta experiência, a peça sobre Catarina Eufémia dava um livro de memórias de grande interesse.
O espectáculo seria apresentado em colectividades,
garagens, pavilhões, igrejas, adros, campos de futebol, estádios e até em teatros normais. Foi apresentada na Ribeira do Porto, num terreno ao ar livre.
Durante anos e anos, miúdos e adultos chamavam a
Estrela Novais, Catarina. Crianças que cresceram e
casaram, quando Estrela passava iam falar com ela,
tratando-a sempre por Catarina. Era rara a representação em que não acontecessem episódios originais.
Logo nos primeiros espectáculos, havia uma cena
em que pela porta dos espectadores entrava Catarina
com uma pequenina lanterna colocada no peito que
fugazmente lhe iluminava o rosto e distribuía uns
panfletos; logo a seguir, o roncar de um motor, os
faróis de um carro a varrerem a plateia e a cena, o
bater de umas portas de automóvel, três indivíduos
(os actores António Reis, Castro Guedes e João
Guedes) com roupa a condizer (polícia à paisana)
irrompem pela plateia dentro e violentamente arrancam os papéis das mãos dos espectadores, até que
/ Estrela Novais em “Medeia, O Amor de uma Mulher”, de Maricla Boggio, com cenário
de José Rodrigues e enc. de Júlio Cardoso.
uma noite, entre o espanto e o pânico, um espectador engalfinha-se com um polícia, arranca-lhe os
papéis que ele já apreendera. O actor desvia-se rápido e, como um possesso, o tal espectador começa
a gritar “Morte ao Fascismo”!...
Numa terra de pescadores, perguntariam as medidas do palco. Informou-se que teria 6 metros de altura, 7 de largura e 8 de fundo. Quando lá chegaram
pasmaram. Com efeito, tinham construído um palco
a 6 metros de altura do chão ao tablado da representação!
De todo o lado choviam pedidos para representações. Numa aldeia de Vila Nova de Gaia fizeram a
montagem na colectividade de cultura e recreio e
já próximo da hora, Júlio Cardoso perguntou se ia
haver uma enchente. Um membro da comissão organizadora disse-lhe que havia uma grande expectativa, mas que o senhor padre tinha dito na missa
para não irem ao teatro, pois a Catarina nunca tinha
existido, era uma invenção dos comunistas. O início
do espectáculo estava marcado para as 21,45 e já
eram 22,00 horas e a sala estava completamente
vazia. Claro que era uma sensação desagradável para
quem estava habituado às enchentes. Júlio Cardoso
fala com os elementos da comissão e comunica-lhes
que vão começar a desmontar tudo e eles perguntam-lhe se não poderiam representar só para eles.
Cardoso consulta a companhia, pois que no palco
iam estar 16 elementos, e a comissão com mais
alguns amigos não seriam mais que dez. Quando se
dirige aos camarins para reunir com a companhia,
um colega diz-lhe que acabava de entrar um casal.
Questiona Cardoso actores e técnicos e aparece um
elemento da comissão a dizer que está muita gente
a entrar. Já passava das dez e meia quando se iniciou a representação. Todos esperavam que alguém
tivesse a coragem de romper a barreira que o Padre
criara. No final, correria Júlio Cardoso para abraçar
o casal que fora o primeiro a entrar, mas este já
tinha saído.
Uma casa cheia numa aldeia de Santa Maria da
Feira. A “CATARINA NA LUTA DO POVO” tem
lugar num salão paroquial. Quando se aproxima a
hora do espectáculo, um membro da Comissão Fabriqueira avisa-os que é preciso cuidado, pois havia
rumores de incendiarem o palco e o perigo poderia
vir da cave e que alguns seus colegas iriam andar
por ali. Inicia-se o espectáculo e logo começam a
rebentar petardos, nunca no mesmo sítio e sempre
à volta da igreja. Algumas actrizes choravam de
medo. Os actores, sempre que saíam de cena, pegavam num pau de que previamente se tinham munido
e, se pudessem, davam uma volta. Até que rebenta
um petardo na cave. Com todas as dificuldades o
espectáculo lá se ia desenrolando. Na escuridão da
cave, Júlio Cardoso e João Guedes, cada um com
o seu bastão, caminham pé ante pé, até que João
agarra Júlio e diz-lhe num cochicho ao ouvido que
além está um vulto. De bastão no ar cuidadosamente
caminham na sua direcção e quando já estão muito
próximos para malhar, João Guedes tropeça. Claro
que fez barulho e o vulto de indicador no nariz:
“shiu, um facho já levou que contar, já não deve
ter vontade de voltar”.
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/ Primeira carrinha da Seiva Trupe.
Era o padre da freguesia.
Mais tarde, saberiam que um conjunto de jovens
colaborando na montagem e desmontagem dos cenários, na luminotécnica e na segurança durante a representação, fundara um grupo de Teatro dando-lhe
o nome de Liberdade.
..............................................................
/ TRAbALHOS E CANSEIRAS
Naturalmente, o 25 de Abril romperia novas e amplas alamedas, mas em algumas encontraria a companhia muitos escolhos transformando-se em torturas
e barreiras difíceis de vencer. Mas a Catarina não
parava e, incessantemente percorria cidades, vilas,
aldeias, remotos lugarejos.
Alguns episódios interessantes decorreram durante
este período.
Os primeiros dez anos da companhia seriam um
tempo de desgaste físico e mental inconcebível.
Hoje eram actores, amanhã técnicos, sempre carrejões e, muitas vezes, sem tempo para descansar e
dormir. Acabavam uma representação à meia-noite.
Desmontavam e carregavam os cenários, projectores, cabos eléctricos, reóstatos, adereços, guarda-roupa, caixas de ferramentas, tintas, pregos, ripas,
etc., etc. Depois, ainda e por obrigação, mastigar
qualquer coisa e beber um copito e conviver um pouco com aqueles que os tinham convidado. E com
estas e outras seriam 2,30, 3 da madrugada e, muitas
vezes, seria necessário andar mais umas dezenas de
quilómetros – 30,40, 50 – em curvas e contracurvas
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para a residencial-pensão mais próxima, acordar
pelas 10 horas, tomar banho e pequeno almoço, ir
almoçar à próxima localidade, montar, representar
e desempenhar iguais tarefas.
Um dia em que descarregavam as carrinhas,
apoiados por um pequeno grupo de jovens a uns
vinte metros de uma taberna-café à porta da qual
se aglomerava um conjunto de pessoas, uma da
quais chamaria um dos jovens que os ajudavam.
Passado algum tempo esse jovem aproxima-se,
rindo para Júlio Cardoso e conta-lhe: “sabe, um daqueles disse: aqueles estão ali a trabalhar que nem
galegos e logo à hora do teatro chegam os actores
e outro disse-lhe: deixa lá isso. Os que estão ali a
descarregar são actores. Aposto já contigo uma cerveja como aqueles gajos não são actores. Então chamaram-me para perguntar”. O que perdera a aposta
comentaria: oh, então é uma porcaria de teatro.
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/ CORRERIAS E CANSAÇOS
As correrias e os cansaços eram tais que não davam tempo a conhecer suficientemente os espaços,
experimentar a técnica e até quantas vezes teria o
electricista, em desenrascanso rapidíssimo, de salto
em salto, ir buscar corrente à electricidade pública.
Quantas vezes estavam a representar e ia uma fase
ou toda a corrente abaixo.
/ Joã o Guedes, em “Santo Inqué r ito”, com cenário de Joaquim Vieira
e enc. de Joaquim Benite.
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/ UM TOMbO RESPEITÁVEL
Em Espinho, no Teatro S. Pedro, no decorrer da
representação, notam que uma parte do palco e todo
o proscénio estão às escuras. Evidentemente que o
espectáculo continua a desenrolar-se. A certa altura,
de costas para a plateia, a voz de João Guedes parece cava, afunilada. Júlio Cardoso volta-se e não
o vê, aproxima-se da sombra e com muito cuidado
pisa o proscénio e ouve: “ajuda-me a subir”. João
Guedes tinha caído ao fosso da orquestra. A representação continuou e Júlio vai reparando que Guedes está branco, não está bem. No final, depois de
vibrantes aplausos, levam João Guedes ao hospital.
Tinha 7 costelas partidas.
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/ UM PROJECTO GORADO
Estabelecimentos de ensino dos mais variados pontos, colectividades, associações de moradores e de
trabalhadores convidam, insistem, metem cunhas e
Júlio Cardoso tem de negar a maior parte das vezes
por não possuir o dom da ubiquidade.
No meio de toda esta azáfama, é Júlio Cardoso
convidado para um projecto muito interessante no
Inatel. Através da delegação do Porto, iriam estruturar um departamento cultural a nível do Norte, a
exemplo do que iria acontecer nas restantes regiões,
ficando estas sob uma direcção nacional. Foi, segundo Cardoso, um curto período entusiasmante. Um
trabalho insano em rede com os restantes colegas.
Numa reunião da Seiva, declararia Júlio Cardoso
encontrar-se numa experiência interessantíssima
que, se resultasse, teriam de prosseguir, mas sem
ele. Dentro de poucos meses, clarificaria a situação.
Realizar-se-iam iniciativas e projectos de índole
social que estavam em andamento, e embora não
sendo do seu pelouro, estava Júlio Cardoso ao corrente de tudo. Ali, o colectivo dos responsáveis
funcionava mesmo. O Rogério Paulo era Administrador. Ele e Júlio Cardoso andavam pelo Porto a
estudar locais onde pudessem construir a “Casa da
Cultura do Trabalhador”. Foram ao Águia d’Ouro,
ao Nun’Álvares, a terrenos e outros espaços. Estavam inclinados para o complexo do Águia d’Ouro:
cinema e café. Combinariam que os estudos teriam
de ser feitos ao milímetro. A área e a arquitectura
com garantias de receber o programa integrado
de lazer, formação, animação e programação como
complemento a todo o projecto social (restaurantes, turismo, pousadas, etc). Estala o 25 de Novembro e Júlio Cardoso declara que continua com a
protecção dos deuses. Demitiu-se. Quando preparavam a orgia dos saneamentos deram com o vazio.
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/ Júlio Cardoso em “Henrique IV”, de Luigi Pirandello, com enc. de Ulysses Cruz.
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/ UM POEMA PERDIDO
Por essa altura, iria Júlio Cardoso à prisão de
Custóias tentar falar com os militares presos em
nome da associação de apoio aos mesmos. Milhares de pessoas estavam lá concentradas. No largo
da feira ficariam num café a sua mulher e a filha
de cinco anos.
Conseguiria o actor aproximar-se o mais possível
e de longe lá foi falando com alguns presos. Houve
um que lhe atirou um papel, pedindo-lhe que se fosse
possível o entregasse à mulher. Era um poema. O
preso e o autor do poema era um Major cujo nome
não ocorre a Júlio Cardoso. Em determinado momento levanta-se um alvoroço medonho. A cavalaria
sem dó nem piedade avança sobre a multidão. Há
corridas, gritos, pó e tiros. Pessoas atingidas. Mártires. No meio de toda aquela confusão, Júlio Cardoso
encontra a mãe da sua filha que andava a procurá-la. Como? Desaustinadamente, corre Cardoso de
um lado para o outro. Várias pessoas que o conhecem participam nas buscas. Ao fim de uma hora,
exausto com raiva e pensamentos sinistros, vai ao
café onde a deixara. Lá estava a pequenina, calma
e serena, com os seus grandes olhos. Corre para o
pescoço do pai e ficam abraçados muito tempo, sentindo que o momento era miraculoso.
Um dia, contaria Júlio ao professor Rui Luís Gomes
que tinha um sentimento de culpa por ter naquele dia
perdido o poema de um ex-Ministro da Educação.
O professor revelar-lhe-ia a sua profunda admiração
por aquele militar. Dir-lhe-ia que era um homem de
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vistas largas e que fora ele, quando responsável pela
Educação, que o tinha apoiado entusiasticamente
no sentido de criar um estabelecimento de Ensino
Superior de Medicina para formar o médico novo.
Seria o Instituto de Ciências biomédicas Abel Salazar. – Oh professor, com a sua opinião ainda fiquei
pior…, declararia Júlio. – Não, não fique, aconselharia o professor, vá falar com ele, será bom para
ambos e creia que ele ficará muito satisfeito.
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/ JÚLIO CARDOSO E LUIZ PACHECO
Andava Luiz Pacheco a lançar a Antologia do
Humor Português quando se encontraram no Café
Ceuta e o escritor pediu a Júlio Cardoso cinco paus
emprestados. Quando este pôs o dinheiro sobre a
mesa, Luiz Pacheco tirou um papelinho do bolso,
escreveu umas coisas e depois mostrou-o. Dizia:
“devo 5 paus ao Júlio Cardoso”. Toda a gente se
riu, mas, depois, um silêncio sepulcral abateu-se
no café. Passados uns meses, recebe Júlio Cardoso
o livro “Um libertino passeia por braga” com o
papelinho declarando a dívida.
/ Homenagem a Jorge de Sena - Cartaz da Seiva Trupe.
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/ CONTOS CRUÉIS
“Contos Cruéis” foi uma teatralização sobre o
fascismo, através de textos de Jorge de Sena. Sem
receio de exagero, pensa Júlio Cardoso que foi a
primeira grande peça, mostrando toda a nudez e
crueza de tão execrável sistema, feita por Norberto
barroca.
Numa cena do conto ”Gran-Canaria”, quando um
marinheiro português (António Capelo) está na
cama com uma jovem prostituta (Estrela Novais),
ela conta-lhe a morte do avô. Era uma cena de antologia. Crê Júlio Cardoso que qualquer que seja o
grau de sensibilidade qualquer ser humano se sentiria petrificado. A Estrela que interiormente devia
estar banhada em lágrimas de sangue, levantava-se
da cama e ia a um biombo buscar um robe. O percurso entre a cama e o biombo teria 2,5 m e talvez
ela o fizesse em três segundos. Pois em Joane, terra
do Teatro Construção – Associação com um grande
trabalho cultural e social, o padre que demolira um
templo religioso, considerado património nacional,
referindo-se ao espectáculo ”Contos Cruéis” foi dizendo que naquele sítio (local do teatro) desfilavam
nus, mais parecendo uma vacaria. Ainda hoje em
Joane se se perguntar a certas pessoas onde fica a
vacaria, indicarão aquele local.
Por causa da autorização e dos direitos autorais,
havia a necessidade de falar com Jorge de Sena e
aproveitando uma passagem do autor pelo Porto,
conseguiriam obter uma entrevista na casa de seu
cunhado, também figura nacional das letras e do
ensino, professor óscar Lopes. Alguns colegas e
amigos não se cansavam de os avisar para serem
muito cuidadosos, pois Sena era uma pessoa muito
difícil e se ligasse o complicador, seriam capazes
de cair numa teia da qual dificilmente escapariam.
Algumas dessas pessoas já desapareceram e outras
que ainda por cá andam seriam nomes importantes
das artes e das letras.
Para lá se dirigiriam, Cardoso e Estrela Novais,
recomendando-se mutuamente o máximo cuidado,
pois apenas pretendiam algumas facilidades.
Uns anos antes, assistira Júlio Cardoso a um colóquio de Jorge de Sena nas instalações da Associação
Industrial Portuense, em Mousinho da Silveira,
onde, entre outras coisas, retivera uma intervenção
do escritor em que ele dizia: “Nós não somos pequenos, como constantemente nos querem fazer crer,
devemos estar e agir como cidadãos de dimensão
universal “. Isto fora dito ainda no tempo da outra
senhora.
Tanto Júlio como Estrela conheciam alguma coisa
da obra de Jorge de Sena e isso já era suficiente
para respeitarem o seu génio. Começariam por lhe
dizer que não lhe ocupariam mais que uns poucos
minutos. Quando saíram, olhando para o relógio,
constatariam que tinham estado mais de duas horas
com Jorge de Sena! Que maravilha de pessoa. Imediatamente perceberiam estar perante uma inteligência superior. Sena era um homem de uma simplicidade exemplar e de saberes muitos que de uma
forma natural emergiam de um conversador nato,
envolvendo os interlocutores numa empatia de
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serenidade e de prazer, por tão lhana comunicação
de um grande senhor da inteligência. Para além de
um ou outro encontro fortuito, teriam em encontros
marcados a sorte de falar duas vezes com este importante homem português, de profundíssimos pensamentos, poeta e escritor de craveira universal.
Ficariam admirados, pois em certos assuntos, abrir-se-ia totalmente, especialmente no que se referia a
certos ratos de bibliotecas… Na despedida, dir-lhes-ia: “havemos de nos encontrar mais vezes. Talvez
vocês sejam os culpados de eu me reconciliar com o
teatro português. Um texto de teatro não pode ficar
na gaveta, só podemos aferir a sua validade em cima
de um palco.”
Considera Júlio Cardoso que “O Indesejado” é dos
melhores textos da literatura dramática portuguesa.
Há dias, comenta Júlio Cardoso, efectuou-se a
trasladação das suas cinzas e a cerimónia de doação
do seu espólio à biblioteca Nacional. Até parece
que foi um funeral clandestino. Por aqui se pode ver
a mediocridade reinante na Tutela da cultura portuguesa. Foram precisas três décadas para tão pindérica cerimónia!
Manuel Alegre tem razão quando disse que os
seus restos mortais deviam repousar no Panteão
Nacional.
..............................................................
/ UM PERÍODO DA VIDA
E sucede-se um período em que a vida de Júlio
Cardoso palpita nos limites máximos, para o bem
e para o mal. Este, especialmente, atingindo-lhe a
saúde. Na verdade, começa a ficar farto de enfartes.
Para que o ritmo profissional, cívico, cultural e social continue, tem de regressar à estaca zero. Assim,
imporia a si próprio um curto retiro, eliminando certos grandes vícios – agora é fácil dizê-lo, mas vivê-los na altura bem mais difícil – como eliminar o tabaco, o whisky e a leitura até alta madrugada.
A eliminação da última seria fácil, pois os afazeres
ocupavam-lhe o tempo todo. Divorciar-se-ia, mas
teria coragem para que nos oito anos seguintes as
suas amigas ou namoradas não arrumassem a casa e
não mexessem uma palha. Amiudadas vezes juntava
em sua casa grupos que confeccionavam refeições,
de um sabor especial pela inventiva e intimidade
das mesmas. Que prazer sentia quando a sua interlocutora era inteligente e culta e, após uma breve e
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delicada experiência gastronómica, se sucedia um
diálogo de interessante teor, acompanhado por um
whisky leve e curto, tendo por fundo uma música
que os transportava a tranquilos oceanos. E depois,
podia acontecer o concreto, o sono, o sonho, o acordar… e mais um esforço para pagar a uma empregada, mas nunca aceitar o favor dos arrumos de quem
partilhara o contentamento, o ditoso prazer e a ventura, por amizade, consideração, respeito e nunca
por obrigação moral.
..............................................................
/ A ESCOLA SUPERIOR ARTÍSTICA
DO PORTO
Um dia receberia Júlio Cardoso um telefonema do
professor Calvet de Magalhães, então um dos dirigentes da “Árvore”, solicitando-lhe um encontro
urgente. Nele, comunicar-lhe-ia haver fortes possibilidades de a “Árvore” conseguir o primeiro alvará
para um curso superior de teatro e desejavam que
Cardoso fizesse parte de uma comissão instaladora,
tendo pensado que os restantes elementos fossem,
para já, José Oliveira barata e Deniz Jacinto. Talvez
fossem mais, mas Júlio não se recorda. Lembra-se,
porém, que nas reuniões seguintes era difícil estarem todos, mas ele, Calvet e Deniz Jacinto seriam
os mais assíduos.
Numa dessas reuniões e depois de muitas sugestões, Júlio Cardoso foi dizendo que tinha consultado
alguns juristas amigos e que concluíra que, pelo
menos no papel, conceberiam um dos melhores cursos do mundo e que isso nenhum código proibia.
Podia ser uma altura soberana para tentarem contribuir para a formação do actor novo, com uma escola que tivesse a coragem de ultrapassar os
cânones oficiais e entusiasmar uma boa parte do
corpo docente a transformar-se em Mestres. Era preciso que os jovens alunos tivessem gosto em aprofundar permanentemente o seu pensamento e toda
uma gramática gestual, expressiva e corporal. No
teatro, ser verdadeiro é parecê-lo e a distância entre
um e outro é o infinito. A efemeridade e o percurso
é a grande tragédia do actor consciente. Como meio
de comunicação e transformação, o actor jamais poderá parar. Para além das suas possibilidades histriónicas, o aluno deve absorver do Mestre o prazer
costumeiro de sempre aprender a saber. São ilimitadas as ferramentas que pode ir adquirindo que lhe
permitam entender minimamente a complexidade do
seu estado morfopsíquico para o estudo da impersonação da panóplia das personagens que abordará na
sua carreira, pois que os outros “eus” são sempre
um labirinto de complexo e difícil percurso e, como
actor moderno, de mente sempre aberta e trabalhada
para propor e compreender teses cosmopolitas.
Os professores de teatro não podem limitar-se a
serem razoáveis ou até bons funcionários públicos;
devem ter a alegria e o desejo de caminharem constantemente na aprendizagem de uma Mestria Socrática.
Para além das obrigações curriculares, proporia
Júlio Cardoso, entre outras cadeiras, iniciação à
economia política e filosofia, e, optativas, esgrima
artística, hipismo e judo. A ortofonia em várias vertentes, sendo fundamentais a musical e a dramatical.
Observava Júlio Cardoso ter a simpatia geral, embora por alguns fosse considerado lírico, conquanto
tal não acontecesse com Deniz Jacinto que tinha a
paciência de o ouvir e de aprofundar as suas propostas.
Abriu o curso e as primeiras aulas tiveram lugar
nas instalações da Associação de Moradores da exEscola Académica e hoje, a Escola Superior Artística do Porto é uma realidade, instalada em amplas
instalações e pelo curso de Teatro já passaram muitas dezenas de alunos que ali terminaram os seus
cursos, sendo alguns deles nomes sólidos do teatro
e do audiovisual português, o que é muito importante, vivendo permanentemente os seus responsáveis em desassossego para que a Escola continue
na vanguarda do ensino.
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/ AUTO EXAME bREVE
Foi e tem sido um tempo rico em todos os sentidos, no trabalho, na criatividade, na convivência,
afirma Júlio Cardoso. Em muitas aventuras em que
se meteu ou para onde foi empurrado, teve geralmente a seu lado gente de uma genialidade, de uma
entrega total e com a férrea vontade de ao mínimo
esmorecimento, um abraço irmão, forte e de esperança, o erguer para a caminhada necessária. Felizmente muitos têm sido os amigos, as bóias-de-salvação que tem encontrado, mas como fazendo parte
de uma sacrossanta trindade, destaca três: António/
/Estrela/Júlio. Os três em um e um em três.
Sem falsa modéstia, pode Júlio Cardoso dizer que
construíram obra e das grandes. Foram pioneiros em
muitas coisas. Desafiem-nos, perguntem que imediatamente responderão. Após a partida de Estrela
Novais, Cardoso e Reis aguentariam mais um terço
do peso, mas nunca cederam, antes pelo contrário,
buscaram mais peso e mantiveram-se de pé, firmes
como o aço.
Os alvarinhos de tão pequeninos e tão débeis, não
conseguem destruir as construções de interesse público e, para desgraça deles, já nem podem com a
sua própria inveja, porque esta os destruiu, nem com
a maledicência, pois já não encontram ouvidos, limitando-se a arrastarem-se na peugadas dos fortes
construtores de excelências.
Importa dizer que a Seiva promoveu o primeiro
concerto de rock em português. O que Júlio Cardoso
ouviria, Santo Deus! Lições de sonoridades das pa lavras em português, até manifestação pública de
parolismo, foi de tudo sem dó nem piedade. E isto
não se passou na época medieval, aconteceu nos
anos 70, no Porto, segunda cidade de um país
europeu.
..............................................................
/ O TEATRO DE S. JOãO
A companhia promoveria de forma continuada
actividades paralelas, estando e continuando a estar
em organizações das mais variadas índoles.
Há tempos, dizia Zé Rodrigues a Júlio Cardoso:
“Tu poderias encabeçar uma comissão para a compra do Sá da bandeira”.
O que fez Júlio Cardoso para a compra do S. João!
Desde colocar faixas nas árvores, nos candeeiros e
na fachada do edifício dos correios, até visitas, no
âmbito do FITEI, com críticos, actores e autores,
nacionais e estrangeiros ao S. João. Na altura os
bancos estavam viciados em comprar prédios de
referência e quando mostraram as toneladas de pó
no sub-palco do S. João, o Zé Cayolla gritou: “isto
é autêntica pólvora, em breve haverá um incêndio
e depois um banco comprará as paredes”.
Depois da compra, Santana Lopes trouxe muita
gente de Lisboa e no mesmo avião vieram muitos
colegas. Houve uma pequena festa no salão nobre e
quando Júlio Cardoso entrou muitos colegas o cumprimentaram, dando-lhe os parabéns e quando saudava o Secretário de Estado, em voz projectada,
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/ Em “A Peliça”, de Nicolau Gogol com Augusto Leal e José Pinto.
quase em grito teatral, exclamou que agora seria
necessário arranjar uns milhões para a sua reconstrução.
Na inauguração, deleitadamente e de olhos fechados, grávido de felicidade, ouvia Júlio uma orquestra inglesa, quando, abruptamente, num camarote,
toca um telemóvel; pensaria Cardoso que alguém
se esquecera de desligar; o certo é que o bruta-montes começaria a atender o telefone, como se a música nada lhe dissesse. Irritou-se e ainda os nervos
não tinham passado, quando um repórter de microfone dispara: “Oh Júlio Cardoso não acha que há
dourados a mais?” Sem respirar, despejaria Cardoso
uma série de argumentos, terminando por declarar:
“O que é certo é que o Porto e o País estão mais
ricos, têm mais um teatro”.
Hoje em dia já se vai respirando sobre equipamentos culturais, reconstrução e novos teatros de raiz.
Pouca gente imagina algumas situações no país
real no 25 de Abril. José Martins Vieira, o primeiro
presidente da Câmara Municipal de Almada, dir-lhe-ia: “Acredita, Júlio Cardoso, logo que termine certas obras básicas como o saneamento (parecia impossível, mas aquela grande cidade era um dormitório sem saneamento) de imediato pensarei na construção de um novo teatro.”
Por isso, alguns amigos se admirariam com a
comoção de Júlio Cardoso ao entrar no novo teatro
de Almada.
Aliás, Júlio tem esperança de que alguns teatros,
como o de Penamacor, de barcelos, de Caminha e
muitos outros ainda irão renascer.
/100
Vai sendo mais que tempo, declara Cardoso, de se
pensar no aprofundamento democrático. É evidente
que o actual sistema esgotou. Só interessa aos profissionais da política e só eles é que têm a faca e o
queijo na mão para alterarem este estado de coisas.
Mas a continuar isto como está sujeitam-se a serem
a escumalha de um povo. Então haverá que pensar
em dar-lhes o pontapé de saída. Vem isto a propósito de as tentativas não terem resultado. As alterações têm sido feitas para perverter a democracia.
Os concelhos culturais concelhios nem foram obrigatórios pela Constituição, daí que fosse efémera
a sua existência.
Actualmente existem os chamados programadores, que do ofício pouco percebem nem tentam perceber; alguns preocupam-se apenas em serem mais
uns comissários políticos dos presidentes.
..............................................................
/ A CRIAÇãO DO FITEI
Num ritmo verdadeiramente alucinante, com o
núcleo base da Seiva Trupe a trabalhar três períodos
diários: manhã, tarde e noite, ainda hoje sendo os
períodos de trabalho normal da Companhia, embora
só em casos excepcionais desempenhados pelas
mesmas pessoas. Mas de facto sempre das 9,30 às
24,00 horas funcionam os vários serviços.
Ora os principais elementos não se limitavam a
ser bons artistas executivos, eram também pró-activos e de vez em quando, tinham ideias verdadeiramente luminosas. Perante tal turbilhão de propostas,
/ Abertura IV FITEI - 1981.
começa Júlio Cardoso a pensar na organização de
um festival. Tenha-se, porém, em conta o complexo
de imitação usual entre nós: um município organiza
uma feira de queijos e enchidos e logo outros lhe
seguem o exemplo. Uma câmara organiza uma feira
de gastronomia e de artesanato e logo aparecem outras a organizarem semelhantes festivais. bem dizia
brecht: plagiem mas plagiem bem. De facto há feirinhas que acabam por desvalorizar as mais conceituadas.
O mesmo se passa com os festivais. Hoje há festivais para tudo e alguns até internacionais. Há, de
facto, uma enorme inflação de tais eventos. Em teatro, então, é patente esse fenómeno. Embora possam
ser boas as intenções de os realizar, há festivais demais, sendo necessário lembrar que festivais internacionais de teatro há dois e, se voltar o Ponti, haverá três.
Pensaria Júlio numa forma estruturante a organização de um festival de teatro de expressão ibérica,
para não chocar com as várias línguas existentes
no país vizinho. Numa primeira fase eventualmente
novos países poderiam apresentar-se, visto alguns
terem perdido o estatuto de colónia havia pouco
tempo. O evento seria inicialmente organizado com
a estrutura da Seiva Trupe e, mais tarde, quando
estivessem reunidas as condições, tornar-se-ia independente, passando a ser um ponto de encontro
europeu de estudo e divulgação de todos os povos
falando línguas ibéricas. Pormenorizaria todo o fundamento passando para dezenas de folhas A4 apontamentos e pró-memória.
Encontrar-se-ia com João Maia na “brasileira”,
dizendo-lhe este que se queria deitar cedo, pois,
no dia seguinte teria uma reportagem da parte da
manhã. Cardoso exporia por alto o seu projecto,
ouvindo-o o jornalista até a “brasileira” fechar.
Combinar-se-ia uma reunião em casa dele no dia
seguinte depois da meia-noite. Assim se faria. Falariam, ceariam, trocariam sugestões, refundiria Júlio
algumas ideias, concluindo que tal organização no
período do Festival precisaria, no mínimo, de trinta
pessoas. Doze a catorze elementos da Seiva representariam vinte e tal pessoas, sendo necessário confiar no voluntariado.
Toda a gente sabe, mas será bom não esquecer
que, no tempo da fundação do “Fitei” não havia
Internet nem telemóveis, pelo que as comunicações
eram tradicionalmente demoradas e difíceis.
Na reunião seguinte, estariam quatro pessoas:
os três elementos da Seiva Trupe e João Maia. Foi
Júlio Cardoso destacado para contagiar paixões.
Meteu-se a caminho e falou com a Secretária de
Estado Teresa Santa Clara Gomes e na Gulbenkian
com Carlos Wallenstein, contactando no regresso de
Lisboa Armando Alves para criar o logótipo e alugariam uma sala na Rua do Paraíso.
Chegaria 1978 e a Comissão Central iria reunindo
periodicamente, deliberando-se que havia de se tentar tudo por tudo para que o primeiro festival se iniciasse no ano seguinte.
De reunião em reunião ir-se-ia aperfeiçoando
a organização e quando já percorriam de novo os
gabinetes lisboetas, havendo já múltiplos contactos
/101
com vários países, proporia João Maia para se aceitar o TEP como co-organizador. Foi aceite imediatamente e mais uma vez foi sublinhado que, no futuro,
o FITEI deveria tornar-se um organismo autónomo,
prosseguindo sempre num movimento ascensional
da associativismo, privilegiando gente das artes e
das letras, particularmente agentes teatrais, devendo
ser um Centro Cultural de todo o mundo de expressão ibérica.
António Reis, deixando vincado o seu habitual
pragmatismo, declararia estar absolutamente de
acordo mas que, nas comissões organizadoras e nas
futuras direcções do organismo que viesse a ser
constituído, deveriam ser avisadas as pessoas que
em tais tarefas deviam as suas capacidades de trabalho ser postas à prova.
Em meados do ano de setenta e oito, a perseverança e o magnifico projecto elaborado e apresentado às entidades já mencionadas, seria aprovado
e, curiosamente, para o ano em curso.
Considerados os prós e os contras de não se realizar naquele ano o primeiro festival, decidiria Júlio
Cardoso que seria então ou nunca. Não gozaria as
férias a que tinha direito. Deixaria a família em
Viana e ficaria no Porto a trabalhar na organização
do FITEI. Ele e o Sousa, um dactilógrafo de primeira, noite e dia a trabalharem e a concretizarem
projectos.
É claro que no estrangeiro havia interesses de
toda a ordem na participação do Festival e, especialmente, curiosidades múltiplas de conhecerem o país
do 25 de Abril. Grupos e pessoas fizeram sacrifícios
sem conta para estarem presentes.
Todo um escol alicerçando o Fitei fez nascer uma
criatividade mais parecendo uma alta competição
neurónica entre todos os elementos, sugerindo, ou
melhor conseguindo, os locais mais baratos para
comer e dormir. Nos primeiros anos houve verdadeiras ideias luminosas, mas algumas viriam a revelar-se não muito recomendáveis, embora as mais em
conta naqueles tempos: camaratas de instituições
particulares e oficiais, cantinas estudantis e da cooperativa das empregadas domésticas, enfim, tudo
o que permitisse ser liquidado no fim do Festival
e criar futuras estruturas.
Era absolutamente impensáveis ficarem dívidas
no final. Todos os dias se sucediam as reuniões com
os mais diversos grupos de trabalho: Administração,
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Tesouraria, Relações Públicas, Técnica, bilheteiras,
etc.
O sentido da responsabilidade e, porque não, o receio do erro, trazia também a alegria de considerarem a competência.
Com o aproximar do período do festival e para espanto da companhia, das mais variadas localidades
do mundo falando línguas ibéricas mandavam informações pormenorizadas sobre a história das Companhias e, em especial, sobre o trabalho que se propunham apresentar e muitas delas com recomendações de críticos e de teatrólogos, que eram enviadas
através das embaixadas ou dos consulados. Evidentemente que não podiam ser consideradas por a programação já se encontrar fechada. Isto para dizer
que naquela correria constante o interesse no nosso
Portugal europeu era enormíssimo e foi uma das
principais causas do maravilhoso arranque do Fitei.
O actor evoca então uma situação demonstrando
a velocidade com que assistimos a certas tecnologias. Logo a seguir ao primeiro Festival, a organização iria arrancar com uma videoteca como vertente
formativa-informativa do evento junto de grupos
amadores. Os espectáculos eram gravados e depois
um animador-actor devidamente preparado visitaria
as colectividades interessadas onde determinado espectáculo seria visionado e em seguida analisado.
O projecto estava pronto a arrancar com apoio da
Fundação Gulbenkian. Quando, porém, em Lisboa
se discutia e se analisava este assunto com a presença de Pedro Tamen/Carlos Walenstein e Júlio
Cardoso decidiu-se adiar o mesmo, visto não haver
ainda know how suficiente garantindo a assistência
tecnológica ao projecto!...
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/ O PRIMEIRO FITEI E OS
PRObLEMAS INERENTES
Nos meses de Outubro e Novembro de 1978, abre
o primeiro Fitei: Festival Internacional de Teatro
de Expressão Ibérica.
Tudo tinha de ser novidade e, se possível, perturbante. O que passaria Estrela Novais, junto do Governador Civil, para que este autorizasse que uma
junta de bois enormes ostentassem nos cornos dois
artísticos balões com a inscrição Fitei! O bom do
Cal brandão dizia que por ele não se importava,
mas a estranha publicidade poderia trazer problemas
de trânsito. O certo é que lá autorizou e como não
estava na moda a economia nas forças de segurança,
com dois polícias discretamente ao lado. Os mareantes do rio Douro com muitos dias de antecedência alertavam a cidade para o Festival. Um avião
com sirene e uma colorida faixa percorria várias
vezes os céus do grande Porto, anunciando o Fitei.
Jovens voluntários colocavam nos pára-brisas dos
automóveis milhares de flyer’s. Caravanas com dezenas de automóveis de amigos do Fitei percorriam
as ruas da cidade e concelhos vizinhos, divulgando
o festival. Os jornais, a rádio e a televisão também o
divulgavam. Resultado: salas a abarrotar, espectáculos limitando entradas aos participantes, discussões,
arrelias, apelos para a compreensão. Espectáculos
houve que obrigariam Júlio Cardoso a desligar o
telefone de casa, pois, durante a madrugada, lhe telefonavam com muito pedidos de desculpa, solicitando o impossível: bilhetes. Durante alguns Fiteis,
chegou Júlio Cardoso a ter um gabinete de trabalho
fora dos serviços centrais, com pessoas que, para
além de o secretariarem, vigiavam para que pudesse
entregar-se às suas funções.
Falar da primeira década do Fitei, da sua complexidade, das propostas e dos encómios recebidos de
vários continentes, dos êxitos e das frustrações e,
principalmente, das inerentes e monstruosas atribulações, daria vasta matéria. Júlio Cardoso tem consciência de que perdeu anos de vida, mas, apesar de
tudo valeu a pena.
De uma vez, viriam ter com ele, dizendo que o
director do grupo mexicano não largava os serviços
há dois dias, declarando mesmo que exigia falar
com ele. Ninguém sabia o que ele queria, falava,
falava, mas só se percebia dizer que ninguém lhe
resolvia o problema. Problema? Oh diabo! Oh Maria
Antónia, por favor vê na agenda se tenho algum
tempo disponível. Se demorares só quinze minutos
com o jornalista de bilbau que só te quer tirar uma
foto, tens aqui um espaço das seis e trinta às sete
menos um quarto. Então reserva já aí. E, por favor,
diz ao mexicano que o atendo a essa hora.
– ó Júlio, está ali o mexicano.
– Manda-o entrar, por favor.
– Então, fizeram boa viagem? Está a correr tudo
bem?
– Comigo não.
– Não, porquê?
– Sou casado com uma actriz do grupo e puseram
a minha mulher a dormir numa camarata de homens.
– Eh pá, desculpe lá, isso resolve-se já. Vai para
os serviços, senta-te lá um bocado, descansa que o
assunto vai ser já resolvido.
– Oh, Maria Antónia, por favor, vai aos serviços
e resolve já este assunto, enquanto telefono para o
Nelson para saber se a miúda angolana está melhor.
Onde é que estão os telefones dos médicos?
– À direita, na segunda gaveta. Oh Júlio, disseram-me que ela abortou, é verdade?
– É, é: vai depressa, um pé lá outro cá.
– Sim, estou. Como? Não há lugares? Eh pá,
desenrasca-te já. Marca já um quarto de casal no
Peninsular ou na Aviz ou…ou…. Está bem, está
bem, eu sei que já estamos em negativo há muito
tempo. Resolve já isso, que eu falo com o João ou
com o Reis
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/ O INCÊNDIO DA CARRINHA
Nessa altura a carrinha Volkswagen que trazia as
miúdas para as bilheteiras e controlo de salas seria
incendiada na Rua da Constituição, encontrando-se
já lá a polícia.
Pego no telefone:
– O Armindo que venha falar comigo.
– Quem foi que telefonou?
– Foi a Armanda, disse que as outras estavam a
chorar, e que conhece dois dos atacantes.
– Oh Armindo, temos aí algum carro disponível?
Não. Então mete-te já num taxi, vai lá e logo que
possas pergunta se podes tirar a carrinha. Chama
um pronto-socorro da garagem da Lapa e leva-a
para lá. Não quero espectáculo público. Depois,
vou à polícia saber o ponto da situação.
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/ Em “Desperta e Canta”, de Clifford Odets, enc. de Ernesto de Sousa.
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/ MAIS PRObLEMAS
Oh Júlio, a bilheteira vendeu a colecção dos bilhetes todos do Carlos Alberto.
– Ai sim. E agora?
– E agora devem estar cá ainda cerca de 60 participantes, com mais 140 de todo o Fitei temos 200
espectadores a mais na lotação.
– Pronto. Arranja duas miúdas com apresentação
e desenrascadas para ficarem à porta e tentarem convencer as pessoas com bilhetes do Todo o Fitei e
dos participantes que seria um favor muito grande
eles irem ao espectáculo amanhã. É claro que vai ser
difícil e todas essas pessoas vão querer ver hoje o
espectáculo, já sei, já sei. De qualquer maneira, nós
vamos tentar.
Anteontem, o Dr. Ribeiro dizia que se voltasse a
acontecer estar mais público do que a lotação, cancelava o espectáculo. - Estamos a fazer o possível
para melhorar as coisas. Se o espectáculo for cancelado, a partir daí tentaremos melhorar a situação.
– Oh Júlio, o telefone não pára de tocar para comprarem bilhetes para o espectáculo de Angola.
– Oh Júlio, a lotação dos Modestos ao fim de uma
hora esgotou e já passaram por aqui dezenas e dezenas de pessoas.
– Oh Júlio, telefonaram duas vezes a dizerem que
vão pôr uma bomba.
– Oh Júlio, já é a quarta vez que telefonam para
os serviços a dizerem que vão incendiar os Modestos!
– Oh João, a que horas vais hoje para “O Comércio”? Às duas horas? Então podíamos almoçar todos
e ao mesmo tempo fazíamos uma reunião. O assunto é muito urgente. Combinado. À meia hora estamos lá.
– Proponho que nos metamos numa loucura. O Reis
iria falar com o Manuel João para ver as melhores
condições do aluguer do Sá da bandeira para amanhã. Se concretizássemos o assunto até às 4 da tarde,
faríamos tarjetas e anúncios amanhã e julgo que poderíamos conseguir uma boa casa.
– Este gajo é maluco. Estamos hoje atrapalhados
com a segurança para os Modestos e já estamos a
pensar noutro inferno.
– Pois, mas era a melhor resposta…E sobre a segurança para amanhã, amanhã mesmo pensaremos
no assunto.
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No final do espectáculo dos Modestos, já se tinham
vendido dezenas de bilhetes para o do Sá da bandeira.
No dia seguinte, às dezasseis horas, o teatro estava esgotado. E conseguir-se-iam arranjar cerca de
vinte elementos amigos do Fitei para a segurança.
Tudo correu em paz e sossego. Foi ouro sobre azul e
deram-se passos importantes no degelo das relações
com Angola.
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/ A DEDICAÇãO E O PRAZER
DO TEATRO
A profissão ligada a muitas tarefas correlativas,
absorviam de tal maneira o núcleo base da Seiva
Trupe que a dedicação e o prazer do Teatro ofuscavam o excesso. Durante o dia trabalhava-se afincadamente nas várias tarefas da organização do Fitei,
isto até à meia-noite, depois, iam ensaiar até às quatro da manhã, porque a Companhia apresentava-se
no Festival em estreia com a obra de bernardo Santareno “A Confissão”.
Nesta altura e já sem quaisquer barreiras, o gran de Ruggero Jaccobi honrou-nos com a sua presença.
Já conhecia duas obras de bernardo Santareno e
“A Confissão” deu-lhe muita vontade de conhecer
o autor pessoalmente, só que no dia seguinte tinha
de partir para Roma.
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/ DESAPARECE UM ELEMENTO
O FESTIVAL INTERNACIONAL
DE TEATRO LATINO-AMERICANO
O Teatro Estúdio de Havana nas duas sessões que
apresentou no Carlos Alberto esgotou completamente
a sala. Os cerca de 700 lugares foram muito poucos
para a enorme procura que teve e, no final das representações de “As bodas de Sangue”, todo o público
aplaudia de pé com gritos de bravo.
Chamam Júlio Cardoso.
– Júlio, a Raquel Revuelta ao telefone.
– Oh diabo, aconteceu qualquer coisa. Até pensava
que já estavam a voar.
– Oh Júlio é para te dizer que um elemento da
Companhia desapareceu. Ainda pensámos que tivesse
vindo directamente para o aeroporto. A Companhia
já está toda no avião, só falto eu e ficas preparado
para o que vai acontecer.
Júlio Cardoso marca uma reunião com toda a direcção e outros elementos da Comissão Central,
comunica-lhes o sucedido e, em plena guerra-fria,
comunica-lhes a sua opinião. O assunto vai ser
muito explorado e é necessário encarar o caso com
a maior das naturalidades, com um distanciamento
político que preserve o Fitei. Considera que o festival não deve ser minimamente beliscado. É claro
que as coisas não eram tão lineares como pareciam
e o caso deu-lhe noites sem dormir.
Quatro dias após, recebe Júlio um telefonema de
Espanha em que o director de um grupo começa por
se congratular pela participação do seu grupo no
festival, louvar a organização, sendo ouvido com
uma paciência beneditina e um desejo de o despachar o mais rapidamente possível, até que, já próximo do fim, o sujeito revela esta notícia: sabes,
veio connosco um cubano que se apaixonou por
um colega actor do nosso grupo e agora estão muito
felizes, vivendo uma lua-de-mel.
O Fitei numa velocidade progressiva provoca uma
necessidade de organização permanente pois, dia a
dia, há montanhas de correspondência na caixa do
correio, não só do mundo de expressão ibérica, mas
de toda a parte. Convites para representantes do Fitei
estarem presentes em vários eventos, propostas e insistências que evidentemente a vida e a responsabilidade da Companhia não permitem. Com países
ibero-americanos é marcado um encontro em Nova
Iorque no Festival Internacional de Teatro Latino-Americano, organizado por um grupo de Portorriquenhos que viera ao Fitei.
Curiosidades aos magotes. Num quarteirão da
5.ª Avenida onde estavam hospedados, Júlio e Reis
cruzam-se com Julian becket, fundador e director
do Living Theatre e actor de cinema, que dias antes
tinha estado no Teatro do Campo Alegre.
Um curso de Teatro dirigido por Enrique boaventura, colombiano e um dos patriarcas mundiais de
teatro popular latino-americano. Na primeira aula
analisa-se muita coisa, especialmente os horários.
Por unanimidade acorda-se que só haveria um período da parte da manhã. O mestre pergunta qual o
horário desejado e aparecem as mais variadas propostas. Os elementos do Fitei propuseram das 9,30h
às 14,00h, mas a maioria propunha das 10,30h às
14,00h. Surgem várias opiniões, até que se levanta
um mexicano, com voz tonitroante diz que todos
estão ali para trabalhar e que, independentemente
de todas as actividades à noite – e muitas eram – no
máximo as aulas deviam iniciar-se às 9,00h. Assim
ficou. O curso realizava-se numa universidade em
pleno bairro de portorriquenhos. Havia elementos
que moravam longe e que teriam de se levantar cedíssimo, o mais tardar por volta das 7,00h. Todos os
dias, às 9,00h da manhã, lá estavam Júlio e Reis,
mais alguns e o professor. O curioso é que o tal mexicano que impusera a hora nunca apareceria.
No meio de toda a chusma de actividades paralelas, houve um debate com todos os directores de
festivais presentes. Havia uma mesa com três elementos e o moderador ia chamando director por director. Fazia-se a apresentação pessoal, a colectiva,
designava-se o país, a localidade, a organização, os
orçamentos, etc, até que chamaram Júlio e este iniciou a apresentação. A determinada altura, estabelece-se um burburinho. Cardoso não perceberia o
que se estava a passar e continuaria a falar, até que
a mesa intervém e pede-lhe que interrompa. Continuam as vozes, Cardoso continua sem compreender,
até que o moderador o convida a repetir os últimos
minutos. Júlio recomeça, mas daí a instantes volta
o burburinho e então é o orador que pretende saber
o que se passa. Então várias vozes lhe pedem para
repetir o orçamento do Fitei. Júlio Cardoso repete.
Levanta-se um sujeito louro que vai sendo traduzido. Disse representar o Festival de berlim e que
por todo o lado em que tinha passado, toda a gente
falava do Fitei e que, agora, através do próprio presidente, viera a saber que o orçamento era menor
que o custo de uma companhia no Festival de berlim, e voltando-se para Cardoso pergunta porquê.
Júlio Cardoso esclarece que no Fitei qualquer
grupo participante faz parte da essência do festival
e que em alguns festivais certos participantes eram
apresentados como coisas exóticas, significando
isto que aceitavam de boa vontade o máximo que
o Fitei podia dar, e que era o mínimo dos mínimos.
(Aplausos).
Os representantes de El Salvador pediram que se
fosse à Catedral de Nova Iorque distribuir uns panfletos apelando à solidariedade dos Estados Unidos
com o povo salvadorenho. Assim, num domingo de
manhã, lá iria Júlio cumprir a sua obrigação. Ficaria
admirado com duas coisas que observara: em cada
altar da catedral havia uma bandeira americana e,
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na distribuição dos panfletos, além de Júlio, os
salvadorenhos e só mais dois elementos de outros
países.
Em todo aquele ambiente arranjou Cardoso muitos amigos, mas dois seriam os mais importantes.
Um tinha um pequeno bar em pleno bairro portorriquenho, mesmo em frente aos escritórios da organização, o outro era um engenheiro, filho de um casal
de gusanos (gusano é termo execrável e todos os
cubanos que foram para os Estados Unidos depois
da queda de baptista ficaram assim conhecidos), casado e com um filho ainda criança. Quando marcava
encontro nos Serviços Centrais, dizia Júlio que se o
viessem procurar, estaria no bar em frente. Quando
lá chegavam e perguntavam por ele, invariavelmente
respondiam: está ali no bar do guzano.
Não costumava Júlio Cardoso beber Coca-Cola,
dita também água suja do imperialismo, mas em
Nova Iorque estava sempre com sede e como o guzano não lhe servia cuba-livre, habituou-se (e viciou-se) em pepsi com muito gelo e uma rodela de
limão que bebia enquanto o este lhe enchia os ouvidos com as virtudes do baptista e as atribulações do
Fidel. Referindo-se a este último, acusava-o a América de não deixar sair ninguém de Cuba e para provar ao mundo que quem quisesse o podia fazer
livremente, mandara para Miami um barco de loucos. De loucos, inquiria Júlio, mordendo os lábios
para não se rir – Sim, sim, de loucos, todos doentes
mentais, sublinhava o barman.
O engenheiro, que falava como chorando as suas
mágoas, tinha um dilema. Os pais (guzanos) eram
declaradamente anti-Fidel; ele já nascera nos Estados Unidos, fora várias vezes a Cuba e o seu sonho
era ter dupla nacionalidade, não existindo quaisquer
barreiras políticas. Júlio acompanhá-lo-ia várias
vezes à martirizada Casa das Américas em Nova
Iorque. Martirizada porque, segundo constava, fora
bombardeada várias vezes. O engenheiro era lá
muito querido e respeitado e tornou-se um grande
amigo porque Júlio Cardoso o ouvia com toda a
atenção. Para ele, a sua situação era mesmo de tragédia: “Aqui nasci, aqui trabalho, aqui vivo com a
minha família, mas lá estão as minhas raízes. Entre
les deux mon coeur balance”.
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/ “AbAJO EL IMPERIALISMO
YANKEE!”
Todas as noites, num magnífico Teatro em Greenville, cuja maioria da assistência mais parecia estar
num encontro social ou numa passagem de modelos,
quando acontecia o blackout para iniciar o espectáculo (todas as noites estreava um) ouvia-se sempre
em pontos diversos um grito feminino:
- Abajo el imperialismo yankee! Viva la Raza!
As fotografias e filmagens sucediam-se. Ironicamente, Júlio costumava dizer: isto serve para a actualização das fichas policiais, mas frequentemente
lhe respondiam que Nova Iorque era a cidade mais
aberta da América.
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/ JÚLIO CARDOSO NA ONU
Realizar-se-iam vários fóruns sobre os mais diversos assuntos, havendo sempre votações para os mais
diversos temas. Na agenda de trabalhos de um desses
fóruns, encontrava-se a solidariedade do Festival
com o povo portorriquenho, sendo no dia seguinte o
assunto discutido na Assembleia das Nações Unidas,
pelo que uma delegação se devia deslocar a essa
Assembleia, levando um documento que iria ser
aprovado. Após a sua aprovação com algumas
emendas, procedeu-se à votação dos três elementos
que deviam formar a delegação. Um dos eleitos seria Júlio Cardoso. E no dia seguinte lá iria ele às
Nações Unidas. Experiência única. Depois das naturais identificações, apalpadelas e mais revistas, de
elevadores e corredores, quando se preparava para
entrar no hemiciclo seria apresentado a um homenzarrão, espadaúdo e de farto bigode que, de repente,
fazia lembrar José Staline.
Se bem se lembra, disseram-lhe que era Cancel
Miranda, saído há dois dias das masmorras norteamericanas, onde estivera vinte e sete anos por ter
tentado lançar uma bomba sobre a Casa branca.
Também lhe disseram tratar-se de um independentista portorriquenho.
Há uns anos atrás, Júlio foi reconhecido num
espectáculo do Fitei por um latino-americano, tendo
falado muito daquela estadia em Nova Iorque. A
determinada altura quereria Júlio Cardoso saber
o que seria feito do grupo de Porto Rico. Acabara,
porque viriam a descobrir estar ligado à Cia!
/ “Leonardo Da Vinci” - RTP.
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/ PARÊNTESIS
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/ UM HOMEM SENTADO
E abre-se aqui um parêntesis para dar notícia de
uma das paixões de Júlio Cardoso. Vem ela da adolescência quando visitou a Casa Museu Guerra Junqueiro e ficou vivamente impressionado com a sua
colecção de crucifixos. Um dia, na Polónia, visitando
um museu encontrou dois crucifixos portugueses e
teve a felicidade de receber uma lição sobre a importância dos crucifixos do nosso país, pois soube
que a maior parte deles se encontra no estrangeiro e
que ao desbarato desapareceram. A determinada altura, Júlio Cardoso começou a coleccionar crucifixos de artesanato, possuindo hoje algumas dezenas.
A melhor prenda que lhe podem oferecer é uma peça
que não possua. É claro que de pouco custo. Das de
ferro, madeira e coisas assim, nem pensar.
Para fechar o parêntesis, relate-se este episódio: uma
vez, no Chile, deparou-se Cardoso com uma cruz tendo
pregada uma mulher.”Uma mulher?”, inquiriu, surpreendido. “Senhor, todos os dias, em todo o mundo, há
mulheres crucificadas”, respondeu a índia vendedora.
Ainda em Santiago do Chile, caberia a Cardoso
pelo sorteio das marcações um pequeno hotel residencial, com uma arquitectura fazendo lembrar as
moradias do tempo de Salazar, mas, em verdade,
muito confortável. Pedindo na recepção um mapa
do metro, dir-lhe-iam ser a rede muito pequena o
que poderia observar mesmo em frente numa estação chamada Santa Lucia. Muito se admiraria o actor
ao verificar que a azulejaria decorando aquela estação era da autoria do grande artista português
Rogério Ribeiro.
Durante um Fitei, dirigiu-se Júlio à hora do almoço a uma sala de teatro para ver se o cenário do
Teatro Lautaro, do Chile, já estava montado. Este
grupo era formado por profissionais de artes cénicas
exilados na Alemanha. Cenário montado, uma luz de
ensaios acesa, um silêncio absoluto e na plateia um
homem sentado. Pensando que tivesse perdido o autocarro do Festival, Júlio Cardoso foi ter com ele,
perguntando-lhe se tal tinha sucedido. O desconhecido disse-lhe que não, não tinha fome e que toda
a sua vida fora em cima de um palco e agora, como
exilado isso já não sucedia. Estar sentado num teatro e a olhar para um palco era o seu principal alimento. Convidá-lo-ia Cardoso para tomar um café.
Na rua, passariam pelo chileno-português Roberto
Merino, professor, autor e director de teatro, há muitos anos radicado no nosso país e cumprimentar-seiam afavelmente. No café entre outros temas de conversa com o chileno, perguntou este se acaso Cardoso
conhecia pessoalmente Carlos Paredes. Recebendo
resposta afirmativa, pedir-lhe-ia para lhe dizer que
um chileno tinha um disco dele, que adorava a sua
música e até coreografara uma delas com bailarinas
chilenas e alemãs. À noite, num espectáculo do
Festival, Merino aproxima-se de Júlio e diz-lhe:
“Espero que tenhas gostado de falar com Patrício.”
“Com quem?”, perguntaria Cardoso. “Com Patricio
bunster, aquele chileno que à tarde ia contigo”,
“Ah muito, muito mesmo, suponho que esteja ligado
à dança”, responderia Júlio. “Pensei que o conhecias
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/ Teleteatro em directo Júlio Cardoso, João Guedes e Fernanda Alves, anos 60.
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/ Em Camões, no espectáculo “Quanto vale um Poeta”, com enc. de Norberto Barroca.
bem, comentaria Merino, “Deve ser o maior coreógrafo de toda a América Latina.”
Tendo citado Carlos Paredes, lembrou-se Júlio de
uma cena passada com o célebre guitarrista. Uma
vez, após um recital dele no Porto, convidá-lo-ia a
acompanhá-lo à “Árvore”onde havia uma festa denominada “Carnaval do Artista” ou coisa do género.
Chegando lá, haveria imensos pedidos para o artista
ir buscar a guitarra. Assim aconteceu. A sala estava
completamente cheia, mas ao fim do segundo número com toda agente a aplaudir entusiasticamente,
Carlos Paredes a desequilibrar-se, a ir contra as pessoas, a correr, abraçando a guitarra como se fosse
um bebé de poucas horas, aflitivamente pediria a
Cardoso que o levasse dali, pois a humidade do bafo
de toda aquela gente dava-lhe cabo da guitarra
..............................................................
/ AS COSTAS EM bRASA
Naturalmente que ao longo de toda a carreira,
muitos acidentes e incidentes seriam testemunhados
e vividos por Júlio Cardoso. Certa vez foi vítima de
um acidente que podia ter causas gravíssimas. Gravando uma cena que seria várias vezes repetida num
solário, tudo correria normalmente. Depois de um
dia de trabalho intenso, iria, altas horas da noite,
jantar, sentindo uma sensação esquisita e desusada.
Acabada a refeição e antes de se deitar, entraria na
casa de banho para iniciar os hábitos nocturnos de
higiene e qual não seria o seu espanto ao verificar
que estava todo torrado, com as marcas das poucas
peça de roupa que vestia aquando das filmagens.
Não dormiria toda a noite. Logo de manhã apresentar-se-ia nos estúdios do Monte da Virgem onde
ocorrera a sessão e toda a gente lhe apresentaria
desculpas. O que é certo é que o culpado foi que
ligou as máquinas, fazendo aquilo convencido que
a cena tinha de ser real. Nada ou muito pouco perceberia de teatro tal sujeito!
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/ “QUANTO VALE UM POETA”
É vulgar, no final de uma representação, havendo
alguém esperando para se referir ao espectáculo ou
simplesmente para cumprimentar o actor. Acontece
porém que em duas obras em que Júlio Cardoso participou sucederam episódios que recorda de forma
especial e até com certa emoção.
No final da peça “Quanto vale um poeta”, espectáculo sobre a vida e obra de Camões em que eram
focadas três fases da sua vida – juventude, meia
ida de e velhice – interpretava Júlio a fase final, em
que a mãe, a actriz Aurora Gaia, insistia com o filho para ir ao Paço tentar uma tença. O espectáculo
teria lugar no antigo barracão, pomposamente denominado Teatro do Campo Alegre e, no fim da peça,
na calçada-corredor dando para a rua, Cardoso
numa esquina, curvado e decrépito, com uma criança
ao lado e tendo na mão uns manuscritos com poemas camoneanos, ia dizendo “Quem quer versos de
Camões”. Acontecia então que havia sempre pessoas aproximando-se do actor e sussurrando belíssimas frases. Houve, porém, um espectador que lhe
/111
/ Júlio Cardoso dirigindo um ensaio.
murmurou palavras que para sempre conservaria.
Tratava-se dum velho que confessou ser metalúrgico, declarando que durante toda a vida ignorara
o vate, só por escárnio pronunciando o seu nome.
Agora, chorando, pedia desculpa por isso, agradecendo tudo o que o poeta lhe deixara.
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/ ANTóNIO REIS E A SANITA
QUEbRADA
Talvez num período de três, quatro anos dirigiria
Júlio Cardoso espectáculos integrados no ciclo de teatro maldito, do qual fariam parte as obras “Perdidos
Numa Noite Suja”, de Plínio Marques, “A Confissão”
e “Os Restos”, de bernardo Santareno. Na primeira,
os protagonistas eram António Reis e António Capelo.
Uma noite, Reis, antes de se preparar para a função,
iria à casa de banho. Sossegada e descansadamente
lia um vespertino da época quando, inesperada e
bruscamente a sanita se quebrou, ficando Reis com
golpes profundíssimos nas nádegas. Toda a gente o
aconselhava a não fazer o espectáculo, que era de
uma violência indescritível, porque trazia pensos
enormes e arrastava os pés. Mas, pelas 22 horas e lá
no fundo do poço da morte – cenário do espectáculo
– a luz começou a crescer sobre o corpo do actor.
Não se poderá imaginar o sofrimento de António
Reis durante as quase duas horas de duração do espectáculo. Depois de horas na urgência, os médicos
proibiram-no de fazer espectáculos em dez dias.
No dia seguinte o actor exigiu que o espectáculo
se realizasse. E assim continuou.
/112
A peça foi para Lisboa, para o espaço da Comuna,
e lá obteve o mesmo êxito.
Vários afazeres levariam Júlio à capital, Uma noite,
olhando o relógio depois de jantar, concluiria que
ainda chegaria a tempo de encontrar os participantes
no fim da representação. Quando chegou estava o
público a sair, e duas senhoras dirigir-se-iam a ele,
perguntando-lhe se sabia se o encenador estava presente.
– Para quê, minha senhora?, perguntaria ele.
– Tenho de lhe dar uma descompostura, aliás ele
deve ser um sadomasoquista. Os pobres actores
tiveram movimentos e lutas que nos obrigaram a
fechar os olhos e a cerrar os dentes. Aquilo não
se faz.
– Se a senhora esperar um bocado, redarguiu
Cardoso, eles vão sair e poderá ver que vêm frescos
que nem uma alface. Foram muito preparados para
aquilo: é como se tivessem bebido um copo de água.
Ah, é verdade, o encenador sou eu.
/ Ensaio de “Dois perdidos numa noite Suja”, de Plínio Marcos, com cenário de José Rodrigues..
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/ “MISTÉRIO bUFO” EM PENAMACOR
“Mistério bufo” de Dario Fo chegaria a ter mais
de duzentas representações. Uma delas seria em
Penamacor, localidade que até então, Júlio Cardoso
apenas conhecia por aí se localizar uma prisão-quartel de tenebrosas histórias. Naquela altura, a temática do espectáculo deveria ser só aconselhada para
um certo público urbano e com determinada abertura. Acontecia que em qualquer lado o êxito era
verdadeiramente retumbante, embora houvesse sempre o cuidado de dosear o conteúdo. O espectáculo
poderia demorar hora e meia, duas, duas e meia e
até três.
Estrela Novais, grande entusiasta da literatura
dramática italiana e, especialmente da obra de Dario
Fo era a responsável pela colocação do espectáculo
e às vezes, acontecia topar Júlio com locais verdadeiramente insólitos e até perigosos. Enfim, ela achava que Dario Fo deveria ser espalhado por esse país
fora.
Em Penamacor a organização coube a um bancário, muito interessado na animação e desenvolvimento cultural, que, com um grupo de amigos, abriria um teatrinho, verdadeira jóia da história da arquitectura teatral, que há mais de quarenta anos não
era aberto. Andariam num carro com altifalantes a
anunciar o espectáculo e o seu actor como o Rei do
Riso. Ao entrar em cena, verificaria Júlio que a plateia era composta por uma maioria de senhoras com
mantos e capas pretas sobre as cabeças, dificilmente
se distinguindo olhos e narizes. Então Cardoso gastaria hora e meia a improvisar sobre o milagre do
Menino Jesus, entroncando o texto original com
uma reportagem que lera nessa tarde no “Expresso”,
sobre a presença do padre Loff e da Teologia da
Libertação.
No final houve festa e a lauta ceia foi oferecida
por um jovem que, ficando pobre após um infeliz
acidente num braço, estava agora a fazer sucesso como próspero empresário de azeitonas e que ficara
entusiasmado com o espectáculo.
/ “Misté r io Có m ico”, de Dá r io Fó.
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/ AINDA O “MISTÉRIO bUFO”
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O FITEI E A SUA EXPANSãO
Ainda numa das representações de “Mistério
bufo” na Sala Povo Portuense, aconteceria que
tendo por assistente apenas um técnico, Américo
Teixeira, que, aliás, chegava perfeitamente, ocorreria uma “branca” a Júlio Cardoso. Decididamente
perderia a noção de tempo e de espaço, não sabendo
que fazer. Então, calmamente, chamou pelo colega:
“Américo, Oh Américo…” É claro que após tantas
representações, o colega entra em pânico e até nem
tem a certeza de estar a ouvir bem. Timidamente
aparece e Júlio, calmamente pede-lhe que lhe traga
o texto porque teve uma falha. O outro, espantadíssimo vai à sua mesa de operações e traz-lhe a peça.
Cardoso orienta-se e recomeça o espectáculo. No
final e como vulgarmente acontece, estavam alguns
espectadores à sua espera. Dois deles vivamente o
felicitariam, achando excelente a “Representação”
do esquecimento.
Durante a primeira década de vida do Fitei, Júlio
Cardoso tentou constantemente que o festival deixasse de ser um evento anual e se transformasse rapidamente num organismo europeu de cultura ibérica.
Logo na primeira oportunidade proporia a sua internacionalização, deixando de ser uma comissão organizadora de uma ou duas companhias, para ser uma
cooperativa cultural aberta a todos, especialmente
captando associados ligados às artes e letras.
O Fitei editaria um jornal, “O Festival”, talvez o
primeiro órgão da imprensa com distribuição gratuita,
sendo os seus custos suportados pela publicidade.
Organizaria também o FITEIZINHO, totalmente
dedicado às crianças, o FITEI-CINE, o primeiro
Festival de Cinema de Expressão Ibérica que se
realizou na península.
É difícil imaginar a quantidade de filmes que se
produzem no vasto mundo de línguas ibéricas e a
necessidade de um diálogo e de um cruzamento de
experiências que urge encontrar. Levariam ainda a
efeito a Festa da Poesia que se realizou na freguesia
de Afife (Viana do Castelo). E ainda uma outra iniciativa que teve muita repercussão: O FITEI/CANTO
Em todas estas organizações estiveram presentes
pessoas da especialidade. Especialmente quanto ao
cinema e à poesia buscariam informações pormenorizadas noutras organizações congéneres, tendo, por
exemplo, no encontro de poetas entrado em contacto com eventos do género realizados no México,
Holanda e Galiza.
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/ TELEFONEMAS A DESORAS
Nunca imaginaria Júlio Cardoso receber telefonemas às quatro ou cinco da manhã e entabular uma
conversa como se fosse a meio da tarde. Mas com
António Martinho (bernardo Santareno), isso acontecia amiúde. Ele, além de um excelente dramaturgo
e médico, devia conhecer a causa das suas insónias.
Júlio atribui-las-ia à hipersensibilidade. Após a sua
morte, perceber-se-ia das causas.
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/ Bernardo Santareno.
Seriam experiências riquíssimas e ainda hoje se
fala nessas realizações. Naturalmente que havia algumas coisas a corrigir, mas, depois dos primeiros conhecimentos práticos, estava descoberto o caminho
para o aperfeiçoamento dos próximos eventos.
Por exemplo, durante os três dias da Festa da Poesia os objectivos foram alcançados.
Pretendia-se a presença de muitos jovens e, com
efeito, assim aconteceu. Milhares de jovens participaram avidamente com a poesia e os seus autores.
Um poeta da Venezuela chegou a propor que Afife
fosse considerada a Aldeia da Poesia e que os rochedos, as paredes e os caminhos se enchessem de poemas e de inscrições poéticas. A proposta seria apro vada para próximo festival.
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/ A VENDA DO COLISEU DO PORTO
Toca o telefone. Júlio Cardoso atende. É Avelino
Tavares que lhe diz terem de fazer qualquer coisa,
embora ainda não saibam o quê. Júlio marca uma
reunião para a manhã do dia seguinte no escritório
de Tavares.
No dia seguinte, um pequeno grupo de amigos, nortenhos e tripeiros ferrenhos, encontra-se nos escritórios do “Mundo da Canção”, ali para a Duque de
Saldanha, entre as Fontainhas e o Prado do Repouso.
O Coliseu do Porto fora vendido à Igreja Universal do Reino de Deus, passando a ser a Matriz daquela
religião, e, naturalmente, deixando de ser a sala de
visitas do Norte, ponto de encontro de actividades
/ Festa da Poesia. 1983.
únicas nas artes, nas acções sociais e cívicas, enfim,
num espaço absolutamente necessário à região.
Na reunião choveram as mais variadas propostas,
desde estrambólicas a razoáveis.
No final, e já cerca das 13 horas, comunicariam
ao magote de jornalistas que esperava à porta da
entrada que às18 horas do dia seguinte iriam fazer
uma conferência de imprensa à porta do Coliseu e
que desde já convidavam as pessoas profissionais,
amadoras e com alguma habilidade para aparecerem, apresentando os seus ofícios.
Os promotores entre eles distribuiriam tarefas, marcando uma reunião para a cave do “Café Majestic”.
O Dr. Fernando Gomes, Presidente da Câmara,
encontrava-se ausente no brasil, mas esteve sempre
em permanente contacto e em total sintonia com a
comissão ad hoc. O seu substituto, engenheiro Nuno
Cardoso, seria incansável no atendimento e na colaboração pessoal e institucional. Tudo o que pediram
lhes seria concedido.
No dia seguinte, lá se encontrariam na cave do
Majestic e lá apareceriam mais alguns nomes da
cidade. Quando, por volta das cinco e meia da tarde,
saíram para a tal conferência de imprensa, já não
se rompia pela Passos Manuel. O núcleo duro desta
comissão, a partir de certa altura começou a preocupar-se com a segurança dos bens dessa tal religião, especialmente com o Teatro Vale Formoso.
A estas preocupações juntou-se Nuno Cardoso e
com apelos e conselhos, conseguiriam que eles
não fossem atingidos.
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/ Curso de Teatro, 1989.
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/ O ENSINO DO TEATRO
Decide agora Júlio Cardoso falar sobre o ensino
do Teatro.
A Seiva Trupe chegou a ter um departamento
de formação, isto por absoluta necessidade. O crescimento da Companhia era tal que sentiam, efectivamente falta de actores. Organizariam então Cursos
Práticos Intensivos de Iniciação Teatral. Aulas póslaboral das 18,30 às 23,30 todos os dias e aos fins-de-semana com extensão cultural, durante meio
ano. Foram um êxito. Abriam as inscrições só durante uma semana e, no fim tinham uns 180 a 200
interessados. É claro que um júri composto por três
elementos fazia uma prova de selecção, sendo admitidos 20. Passados dois anos, fariam um protocolo
com a Universidade de S. Paulo e durante seis meses
um professor daquele estabelecimento de ensino
seria o director do curso, com mais quatro professores para as diversas cadeiras. A Escola Artística
da Seiva teria instalações próprias na Rua 5 de
Outubro.
Certa vez, falando com Dario Fo acerca da formação teatral diria este ter sempre privilegiado a
formação contínua e que, quando de madrugada chegava a casa, havia sempre um ou outro canal transmitindo vida selvagem e então, enquanto mastigava
uma sanduíche e bebia um copo de leite, ele atentamente observava o comportamento dos animais que,
naquela altura, eram as suas grandes lições.
Um dia Jorge Pinto, presidente do sindicato do
/118
comércio e dos escritórios lançaria um repto a Júlio
Cardoso:
– Eu sei que vocês andam sempre atrapalhados
com falta de pessoal, de amplas instalações, enfim
vocês desejam que a vossa Escola cresça, mas estão
amarrados por falta de condições. Se fosse a vocês,
estudava todo o processo de criação dos cursos profissionais, eu e mais outras pessoas podemos dar-vos uma ajuda, porque o processo tem de ser bem
estudado e organizado, sendo necessário rodearmo-nos de gente muito bem preparada para um projecto
destes. Sobre isso estou à vontade, porque nisso são
vocês peritos e por isso mesmo vos estou a sugerir
a transformação da vossa escola numa escola de
ensino profissional.
Jorge Pinto cederia a Júlio toda a documentação
que possuía sobre o assunto para ser estudado. Após
ser apreciada e debatida internamente, a proposta de
Júlio Cardoso para convidarem outras estruturas e
profissionais da cidade a aderirem, seria aceite.
Ao fim de um mês e após árduo trabalho, a falar
e a tentar convencer outros colegas profissionais,
Júlio Cardoso só encontraria um que anuiu imediatamente, que no dia seguinte lhe telefonou entusiasmadíssimo, mas ressalvando ter de convencer outros
elementos da sua estrutura.
O tempo a passar e tudo pronto para entregar o
volumoso processo, só faltando a identificação dos
promotores, com as pessoas que estavam metidas
nisto e muito tinham colaborado num enquadramento essencial em todo o complexo sistema na elaboração do mesmo, a dizerem-lhe porque é que ele
/ Um encenador deve dominar razoavelmente uma “caixa de teatro”.
Trabalhando numa teia teatral.
não entrava só com a Seiva promotora? Era vontade
da Seiva que na fundação da Academia Contemporânea do Espectáculo constassem outros nomes além
dos deles.
Enfim, à última hora lá entrou todo o processo,
o mesmo foi aprovado, a secretaria e as primeiras
inscrições tiveram lugar numas instalações da Seiva
Trupe na Rua do bonjardim, cedidas para o efeito.
Hoje, felizmente a Academia Contemporânea do
Espectáculo é uma bela realidade, um dos orgulhos
do Porto e um exemplo do ensino profissional.
A este respeito, sabe Jorge Pinto quanto Júlio
Cardoso lhe agradeceu pela sua preciosa colaboração, mas nunca será demais relembrar três figuras
que muito se interessaram pela concretização do
projecto que, naquela altura, constituía uma proposta inovadora e de muito importância para a região: Prof. Joaquim Moreira Azevedo, Dr. Fernando
Aguiar branco e Dr. Mário Cerqueira Correia,
Governador Civil.
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/ PRONÚNCIA DO NORTE
Houve uma tentativa de um movimento para sublinhar o carácter e a importância económica e sócio-cultural do Norte, como motor de desenvolvimento
do país. Por proposta de Jorge Castro Guedes esse
movimento foi designado “Pronúncia do Norte”; evidentemente que já nessa altura se sentia tremendamente o agravamento da macrocefalia com o Porto
e o Norte a definharem e Lisboa a rebentar pelas
costuras.
O “Pronúncia do Norte” promoveu um debate que
teve lugar na Cooperativa Árvore e onde estiveram
presentes o Dr. Rui Vieira Nery, Secretário de Estado da Cultura e a Dra. Manuela Melo, Vereadora
da Cultura da Câmara Municipal do Porto. Durante
uma sessão acesa sobre a escandalosa protecção da
capital perante o resto do país e quando se abordava
a realização de um ou outro evento colocando a cidade no mapa europeu, Júlio Cardoso, no uso da
palavra, lembra a proposta da actriz grega Melina
Mercouri e propõe que se comece desde logo a trabalhar no sentido de candidatar o Porto a Capital
Europeia da Cultura. Perante a perplexidade de uns
e o aplauso de outros e uma breve referência ao assunto na comunicação social, isso seria o bastante
para, nos dias seguintes, o actor ser saudado na rua
por gente anónima. Felizmente que a Câmara Municipal do Porto em boa hora resolveria meter os pés
a caminho, organizando a respectiva candidatura,
antes mesmo de o Movimento desencadear várias
acções para o efeito.
Hoje Cardoso lamenta profundamente que o
Movimento não tivesse tido continuidade.
Os resultados estão à vista.
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/ Construç ã o Teatro do Campo Alegre.
/ Assinatura Contrato Teatro Campo Alegre. Fevereiro de 2000.
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/ “TEATRO DO CAMPO ALEGRE”
Um barracão municipal abandonado, num matagal
absolutamente impenetrável, numa zona periférica
do centro e que toda a gente apontava como o cemitério da companhia, depararia com a perseverança
do trio fundador da Seiva Trupe, tentando, numa
epopeia indescritível, contrariar todos os pessimismos, afincadamente trabalhando os actores interessados na instalação eléctrica, nas canalizações e
casas de banho, etc, etc, etc, até transformarem
aquele inóspito barracão no pomposamente intitulado “Teatro do Campo Alegre”
No inverno com um frio medonho, apesar dos
aquecedores gigantes da Gazcidla, tendo os espectadores cobertores nos joelhos; aquando das chuvadas
e saraivadas no telhado de zinco interrompendo as
representações; no pino do verão onde tudo servia
para leques, por ali passariam milhares e milhares
de espectadores, não só para as produções da companhia, mas ainda para vários géneros de espectá-culos, com as mais diversas iniciativas como
concertos, recitais, colóquios, bailados, canto e
outros.
Certa vez, muito se surpreenderia Júlio Cardoso
quando essa personalidade ímpar, Fernando Lopes
Graça, depois de um ensaio para um concerto, declarar possuir o espaço uma acústica maravilhosa
para música.
A história do Teatro do Campo Alegre é também
uma narrativa da cidade e da grandeza de homens
íntegros e de altivo carácter como tripeiros.
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Júlio Cardoso esteve metido nesta obra até às
entranhas, podendo assim fornecer-nos alguns dos
seus episódios mais marcantes.
Um dia, o Presidente da Câmara, Dr. Fernando
Cabral, pessoa possuindo um forte orgulho portuense,
velho amigo desde os tempos do seu escri-tório na
Rua Ramalho Ortigão, procurou-os dizendo-lhes uma
coisa que parece que ninguém sabia: aqueles terrenos
do Campo Alegre tinham sido vendidos, na década
de 50 do século passado ao Ministério da Educação,
tendo sido ele, Presidente da Câmara procurado pelo
Reitor, por naquele local estar projectada a futura
Faculdade de Ciências. Estivessem, porém, à vontade, porque de imediato iria estudar uma alternativa, pois, para além dos direitos da Companhia,
esta constituía um orgulho da cidade. O remédio
seria aguardar.
Passados meses, o dinâmico Reitor, Professor
Alberto Amaral, procura-os e num diálogo amigo
e compreensível, comunica-lhes que tem urgência
na resolução do caso e que seria a Câmara a ter
de resolver aquele imbróglio.
Nova tentativa do Dr. Fernando Cabral, comunicando que o terreno será no Campo Alegre e enquanto
o mesmo não for construído, está em negociações
com um prédio para ali instalar uns serviços camarários e que todo o rés-do-chão e cave poderão se
utilizados pela Companhia, enquanto o seu Teatro
estiver a ser construído e que, naturalmente, a instalação e adaptação daqueles espaços seriam da responsabilidade da própria Câmara. O prédio era na
Rua Dr. Alfredo Magalhães. A Companhia conti-
/ Visita Guiada Teatro Campo Alegre, para importantes
encenadores e teatrólogos espanhóis.
/ Maquete do Teatro Campo Alegre.
nuava aguardando, mas, entretanto, ir-se-ia aconselhando com dezenas senão centenas de pessoas e
advogados amigos. Todos eram unânimes: só com
uma sólida e transparente alternativa. Acontece que
o custo do prédio andava à volta de um milhão de
contos e a oposição não autorizava.
Aproximavam-se as eleições autárquicas e num
espectáculo da Seiva Trupe no Teatro Sá da bandeira, a Companhia seria surpreendida pela equipa candidata do Dr. Fernando Gomes, cujos elementos iriam aos camarins, esclarecendo terem
conhecimento do compromisso do Dr. Fernando
Cabral, mantendo-o religiosamente no caso de
ganharem.
A partir daqui a questão tornou-se pública. A Companhia iria para o Auditório Nacional Carlos Alberto,
utilizando aquele espaço seis meses por ano. A lotação era de 700 pessoas; só a plateia levava 400 espectadores. Ali permaneceriam oito anos com êxitos
estrondosos a esgotar lotações. Evidentemente que
durante este período foram construindo o seu Teatro
do Campo Alegre. De início, acordaram em convidar um arquitecto que não pertencesse ao seu cír culo. Indicaram-lhes o arquitecto Rogério Cavaca que
não conheciam, embora possuíssem as melhores
referências. Nessa altura não havia tradição alguma
na construção de novos teatros.
Poriam como condição um diálogo permanente.
E assim aconteceu. O Teatro do Campo Alegre foi
durante anos uma referência nacional e internacional para a construção de teatros, mas para isso fora
alvo de constantes preocupações.
Ele aí está. Foi programado para ficar concluído
em três fases. Infelizmente, ao fim de uma dúzia de
anos da sua abertura, ainda nem a primeira foi concluída, apesar de ser a primeira casa da cidade à
entrada da sua ponte principal. Apesar de tudo, o
Teatro e a Companhia serão sempre um orgulho
do Porto.
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/ PROTESTO
Júlio Cardoso não quer ser politicamente correcto.
Mas, perante certos amigos/irmãos e instituição, é
obrigado a sê-lo.
O Engenheiro Paulo Valada, Presidente da Câmara Municipal do Porto e uma direcção do FITEI
presidida por Júlio assinaram um Protocolo em cerimónia pública de cedência do terreno do Largo Régulo Meguanha para ali ser construída a Sede
(Centro de Cultura de Expressão Ibérica) e o Teatro
do FITEI. O arquitecto Mestre Viana de Lima fez
um estudo que esteve exposto no átrio da entrada
dos Paços do Concelho. A cerimónia do Protocolo
foi amplamente noticiada pela comunicação social.
O tempo passa, as sucessivas direcções cruzam os
braços e os desenhos do mestre não se encontram no
FITEI. Júlio Cardoso disse várias vezes para irem
ao atelier do arquitecto, trazendo uma cópia. Nem
isso… Afinal, Cardoso considera-se politicamente
correcto.
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/ S. JOãO E PRÉMIO DE MELHOR
ESPECTÁCULO
Orgulhosamente tripeiro, Júlio Cardoso é um
grande apreciador do S. João. Não o passa sem uma
bela planta de alho-porro na mão e de umas costeletitas de cabrito bem passadas e, é claro, nas ruas
com as suas lutas de ervas, cidreira, martelinhos.
Num dia anterior à festa receberia o telefonema
de Celso Parada, hoje um dos mais conceituados e
populares actores da Galiza, dizendo-lhe que vinha
ao Porto na noite seguinte para conversarem.
Combinariam o encontro em nada mais pensando
Júlio, senão em ter a companhia do amigo na noite
grande da cidade. Qual não é o seu espanto ao constatar que o amigo recebera o Prémio do Melhor
Espectáculo do ano, atribuído a uma peça de Dario
Fo, em que participava como protagonista tendo
sido dirigido por Cardoso. Com efeito, tempos atrás,
num dos seus telefonemas, ele falara, falara em muitas coisas, perante a prodigiosa distracção do seu interlocutor. À pergunta: “Vens ou não vens?” de
Celso Parada, respondera Júlio que não, não podia.
Então Parada declarou-lhe ter estado perto de um
quarto de hora, referindo o Prémio, esclarecendo
que a sua entrega se faria em cerimónia pública, devendo Cardoso estar presente. bom, a sua tremenda
distracção, tinha-o desviado de uma cerimónia que
devia ter sido importante. De qualquer forma, aquele
S. João foi de arromba e dessa romaria nem Parada
nem o grupo que o acompanhava tinham até então
conhecimento.
Outro actor galego, tão distraído como Júlio é
Celso bugalho. Estes dois Celsos actores foram já
dirigidos por Cardoso no “Macbeth” de Ionesco.
Enquanto o Parada todos os dias ou quase grava
para a televisão, o bugalho vive em Madrid em
constantes filmagens, sendo senhor de alguns prémios cinematográficos.
Em “Mar Adentro”, com Javier bardem no protagonista, Celso bugalho obteria o Prémio Nacional
para o melhor actor secundário.
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/ O HORROR ÀS PROFUNDIDADES
Um caso que vivamente impressionaria Júlio
Cardoso seria a morte do único filho de um seu
velho amigo, na pesca submarina.
As profundidades sempre o abalariam. Quando a
imprensa informava que o mais moderno submarino
nuclear russo estava encalhado no fundo do mar, o
trágico cenário por muito tempo perturbaria Júlio.
Um dia, andando ele por Vila Real numa formação
teatral, um seu aluno oferecer-se-ia para num fim-de-semana o levar às minas de Jales que eram e
são minas de ouro. Quando desceu às profundezas
e depois de ver e pensar na dureza, nas doenças, na
angústia e no sofrimento dos mineiros numa luta diária pela sobrevivência e perante toda aquela parafernália de escoras que para ele não passavam de uma
fragilidade atroz, pediria para subir o mais depressa
possível. Chegando à superfície, os seus amigos,
muito pressurosos e preocupados constatando que
estava muito branco, e perguntavam-lhe se estava
bem. “Muito bem, obrigado”, responderia pensando
que se até então nunca usara ouro, a sua simpatia por
este metal descera vertiginosamente. Isto em contraponto a uma visita que fizera a umas minas desactivadas na Alemanha do Leste, onde a engenharia e
a arquitectura tinham transformado profundidades
idênticas num moderno e confortável teatro.
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/ ESPECTÁCULOS FORA DE HORAS
“Ribadávia é uma simpática localidade situada na
Galiza, onde se cultivam bom vinho e pimentos únicos que só a riqueza dos componentes de fertilização daquelas terras é capaz”, diz-nos Júlio Cardoso.
“Além dos sinais de uma modernização, naturalmente discutível, também tem uma pequena mas
muito interessante judiaria”, prossegue o actor que
também nos informa que ali se organiza um interessante festival de teatro. Diz-nos ainda que durante o
franquismo andou por lá e, para além dos espectáculos, discutia-se e gritava-se quando um ou outro
grupo galego apresentava o seu trabalho em castelhano. Por aqueles sítios conheceu e conviveu
com alguma gente das artes e letras, como Manuel
Maria, blanco Amor, etc. Pois, a seguir ao 25 de
Abril, quando se dirigia para um espectáculo do
Festival, reparou que não estava ninguém e disse-
/ De uma lata de ó l eo faz-se uma viola.
/ O Teatro e a Padaria.
ram-lhe que começava mais tarde. Júlio ripostou
dizendo que era aquela hora que estava no programa.
Tinha sido amplamente divulgado que a função começava mais tarde por causa da televisão portuguesa.
Perplexo, perguntaria Cardoso: “Tele-visão portuguesa? –“Sim, sim, responder-lhe-iam. Há muitas
casas que puseram antenas especiais para verem a
televisão de Portugal e há programas que muita
gente não quer perder”.
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/ “SISTEMA” EM SENTIDO LATO
Em Angola, com a guerra civil no auge, teria
Júlio Cardoso o privilégio de trabalhar em Luanda.
Simpatizaria com tudo, menos com a palavra “sistema” que era aplicada a torto e a direito. Isto deu
lugar a várias discussões correndo o actor o risco
de ser apodado de colonialista.
Depois de uma representação do monólogo “Mistério bufo”, de Dario Fo, ao chegar ao seu camarim
não encontra Cardoso os seus sapatos. Havia um
grande grupo de jovens, sequiosos de teatro que o
esperavam com alguns portugueses que lá continuavam com as suas vidas. Em determinada altura alguém pergunta “Então, Júlio, é verdade que lhe fanaram os sapatos?” ao que Cardoso responderia: “Foi
o sistema”.
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/ SObRE MOÇAMbIQUE
Júlio Cardoso foi a Moçambique com a Seiva
Trupe. Lá conheceu muita e boa gente. Mas espantou-o um pormenor que desconhecia. Era para ele
inimaginável observar um arreigado moçambiquis mo pela parte dos descendentes brancos, nascidos
naquele país. Também por, talvez, achar que o nosso
patriotismo anda muito por baixo. Mas a razão deste
parágrafo será o exemplo de dois amigos já conhecidos por Júlio, do Fitei, e que eram e são os responsáveis pelo Teatro Avenida em Maputo e pelo grupo
residente Motumbela Gogo. Nos espectáculos que
este grupo dava naquele teatro é indescritível o prazer e a necessidade que aquela gente sentia pelo teatro. O Avenida estava sempre a abarrotar de espectadores, pessoas pobres, de poucos meticais, mas sempre de roupinha lavada. Os espectáculos estavam para
elas como um complemento alimentar.
Pois a Manuela Soeiro e o branquinho, quando
estiveram no Porto repararam na modalidade do
pão fresco.
Observaram pormenorizadamente, olhando aqui,
vendo acolá, perguntando àquele, conversando com
este outro. Aprenderam, tiraram a especialidade,
importaram a maquinaria. Mesmo junto ao Teatro
Avenida, abriram uma moderna padaria. Júlio Cardoso viu filas permanentes para comprarem pão.
Na última fornada, ao cair da noite, telefonemas e
mais telefonemas com novas encomendas. branquinho dizia-lhe que uma boa parte era do chamado
corpo diplomático.
/123
Conversando com Manuela, declarava ela a Júlio
Cardoso que aquele negócio dava emprego a dezenas de pessoas que trabalhavam no Teatro, na cozedura e na venda do pão, permitindo ao grupo praticar preços verdadeiramente populares para os seus
espectáculos.
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/ NA FIGUEIRA DA FOZ
Entrava Júlio Cardoso num café da Figueira da
Foz e logo um desconhecido se aproxima e pergunta:
“Porque é que o senhor acabou com o basquete?”
“Com o quê?”, pergunta surpreendido o actor. “Com
o basquete”, insiste o outro. Rindo, diz-lhe Júlio
que deve haver confusão. “Então o senhor não é o
João Rocha do Sporting?” Nova gargalhada e nova
negativa.
Júlio senta-se, pede qualquer coisa e calmamente
vai lendo uns matutinos. Mas o dia seria de surpresas. Uma voz soava perto: “Olha lá, não comas tudo,
deixa-me ficar algumas letras.” Era o pequeno-grande
Raul. O Solnado. Rindo, reflectindo, propondo, contrapropondo, com o Raul os neurónios saltam, correm, nunca param.
A determinada altura veio à baila a Casa do Artista.
– Eh pá, tens de arrancar com essa obra no Porto”.
Passaram-se anos e sempre onde Cardoso fosse e
nas mais variadas conversas, atirava-lhe essa a cara.
Uma vez, responderia Júlio com um grito. Insistia
Raul: “Se nós em Lisboa fizemos uma Casa do Artista,
vocês lá em cima podem fazer três ou quatro.” A gritaria começaria aqui. “Estás enganado, agora está
tudo em Lisboa.” “Porra, então faz meia ou um
quarto, mas faz!”
Passados tempos, Cardoso e Pedro Abrunhosa resolvem dar os primeiros passos. Naturalmente que
Cardoso tinha a seu lado António Reis. Pensando
no assunto, lembra-se Júlio de uma pessoa que seria
fundamental para o projecto, sabendo que ela iria
aderir. Seria Carlos borges, economista sempre
ligado ao teatro, tendo começado pelo Grupo Campolide e sendo agora um dos directores do Centro
Dramático de Viana. Depois da sua adesão adeririam Reininho, Castro Guedes, Álvaro Salazar,
Né barros, Rui Madeira, Mário Moutinho e mais
alguns. Em vez de associação, resolveriam enveredar por uma mútua. No grupo de sócios fundadores,
estaria naturalmente Raul Solnado.
/124
Um dia Júlio Cardoso contactaria formalmente
por escrito o Presidente da Apoiarte (Casa do Artista
de Lisboa) comunicando-lhe que a direcção seria
composta por sete elementos. Em resposta recebeu
o seguinte telefonema: “Venham os que vierem, mas
para arrancarem, acho gente a mais. Julgo que tu
chegarás. Vá lá, talvez mais meio. Tu e meio. Um
e meio”.
Naturalmente que era uma “blague” de Raul. Serão
necessários milhares e todos muito participativos.
Nesta primeira década do século XXI, onde o individualismo e o imediato contam, o tempo que passa
é muito adverso, apesar de os associados já terem
uma lista muito razoável de benefícios. Toda a gente
aplaude a ideia, mas esquecendo-se de entregar a
proposta e de pagar as módicas quotas. O grande
passo já foi dado. Já existe um bonito terreno, numa
zona privilegiada de Matosinhos, o projecto para
a primeira fase está de pé, é preciso portanto que
a roda se alargue para que muitos concretizem o
sonho.
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/ UM TEATRO EM MOSCOVO
Durante estes cinquenta anos, muitas viagens
preencheram a existência de Júlio Cardoso.
Considera o actor que valeria a pena recordar
o movimento de renovação do teatro no brasil, a
sua resistência à ditadura militar; a origem do movimento do teatro independente na Argentina ou na
Colômbia e também a resistência aos militares no
teatro argentino; a organização, apetência e necessidade dos públicos nos países de leste, nomeadamente na Polónia e na Rússia.
Em Moscovo tomaria Júlio Cardoso conhecimento
de uma obra que classifica de singular, verdadeiramente extraordinária. Tratava-se de um teatro moderníssimo, construído especialmente para óperas
infanto-juvenis. As casas de banho, os bares, etc,
possuíam vários tamanhos para as diversas idades.
Os espectáculos eram feitos com todo o rigor artístico-cultural e pedagógico, sujeitos às mais exigentes e fundamentadas críticas. Para os espectáculos
apenas era admitido o público a quem a ópera era
dirigida. Familiares ou outros acompanhantes adultos ficariam nas instalações circundantes seguindo
as sessões em ecrãs televisivos. Ali é tudo pago,
desde as entradas ao simples consumo de um refri-
gerante, mas todos os preços são simbólicos. Assim
começa a pedagogia. Os actores-cantores são de primeiríssima água. Um vasto reportório se desdobra
em representações diárias e as lotações estão sempre
esgotadas.
Com muito interesse, visitaria ainda em Moscovo
várias escolas de formação teatral (Cursos superiores). Apreciaria sobremaneira a organização bem
como todo o ambiente de interesse e aplicação aos
ensinamentos ministrados. Numa escola, assistiria
a um exercício de representação por alunos do segundo ano. Para além da exactidão e do talento demonstrados, verificaria que todos os futuros actores
e actrizes eram de uma rara beleza física. Num encontro com o reitor, referir-se-ia a este pormenor,
respondendo aquele que tal se devia por certo ao
rigor posto na admissão a que concorriam milhares
de alunos. Claro que, evidentemente também desempenhava fundamental importância o talento, o jogo
histriónico, pois, como já dizia Jaime Valverde, se
não houver “jeitinho”, o melhor é desistir. (Esclareça-se que isto se passava num tempo em que não
existia a imprensa cor-de-rosa e toda essa parafernália de tecnologia, muito ajudando a vender gato por
lebre. Quando se revelava um actor quase sempre
tinha de ser quimicamente puro.)
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/ O CIRCO DE MOSCOVO E O TEATRO
bOLSHOI
Seria profunda e inesquecível a impressão que
estas organizações que Júlio Cardoso visitaria com
um pequeno grupo de gente de teatro interessada
na sua observação e estudo deixaria no actor. Conquanto não afirme que seja indescritível todo o ambiente que em tais universos se respira, considera
difícil demonstrar o que são no seu cerne estes dois
centros artísticos de renome mundial. Na verdade,
acha-os únicos. Sendo de realçar um comportamento
aparentemente simples considerado detalhadamente
o significado do mesmo, talvez se possam encontrar
muitas respostas para os dramas que vão acontecendo em muitos sectores do ensino e das profissões. São autênticos mundos à parte, tanto em relação ao espaço como em quantidade e qualidade dos
seus componentes. Ora em grupo, ora a solo, o estudo e o exercício são feitos numa perspectiva de
excelência, tendo sempre em vista a perfeição.
Pode parecer que o esforço, a exaustão não tiveram
lugar, mas, o que é facto é que se notam perfeitamente a responsabilidade e a alegria da aprendizagem. Este clima , aliás, observa-se por todos os
lados: nos ba-res, nos restaurantes, nos corredores.
Toda aquela gente vive com um importante sentido
de vida, com uma alegria e uma dedicação dignas
de destaque e constituindo uma inesquecível lição.
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/ POLóNIA
Na Polónia – que o actor considera uma das Pátrias
do Teatro – numa cinzenta manhã de domingo, surpreende-se Júlio com as filas de pessoas postadas
às portas de certos edifícios. São avós, pais e filhos,
famílias e grupos de amigos esperando a sua vez
para entrarem em museus.
Também ali observou Cardoso em vários teatros
o desenvolvimento do grafismo e arte nos cartazes
dos espectáculos, tendo a oportunidade e a alegria
de assistir a uma exposição de cartazes teatrais.
Numa tarde de um dia da semana, entraria Júlio na
Catedral de Cracóvia – ainda no tempo do Cardeal
Woitila de cuja ascensão a Papa ainda não se falava
publicamente – e qual não seria o seu espanto ao
encontrar no templo dezenas de jovens convivendo
e cantando ao som de vários instrumentos. Dir-lhe-iam então que era habitual ser a igreja um local de
liberdade e resistência.
Perguntar-lhe – ia um polaco daquelas paragens
se em Portugal a igreja gozava de influência na vida
política, respondendo Cardoso o que pensava sobre
tal problema. Passados meses essa pessoa visitaria o
nosso país e encontrando-se com o actor referir-lheia o seu espanto por encontrar vazias as igrejas de
Lisboa e Porto.
Quando visitava a casa de Copérnico, quereria o
Presidente da Câmara saber se Júlio tinha uma filha
e com que idade, contando-lhe uma lenda sobre um
bolo especial daquela região, devendo ser adquirido
ou manufacturado durante a infância de uma rapariga e só ser comido no dia da sua boda. Qual seria
a surpresa do actor quando, no hotel e numa grande
caixa o esperava tal bolo, oferecido pelo edil. Muito
trabalho teria Júlio em o transportar até ao Porto.
Aí colocá-lo-ia num quarto de arrumos, nunca mais
o lembrando. Num sábado ou domingo do mês de
Novembro de 2000, quando Cardoso se preparava
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para seguir para a Pousada de Santa Maria de bouro
para o casamento de sua filha, lembrou-se daquele
bolo. Quando chegou o momento de cortar o bolo
de noiva, Júlio narraria a famosa história do bolo
polaco que acabaria os seus dias rolando pela serra
do Gerês.
Acompanhado por Jorge Castro Guedes assistiria
Cardoso a um espectáculo de Teatro no bairro
Na Woli (julga o actor que a tradução é Vontade).
Aí teve lugar um episódio deveras interessante.
No fim do espectáculo, o director-encenador, sabendo que se encontravam presentes dois portugueses profissionais de teatro, resolveu pedir-lhes para
lhe falarem um pouco da sua experiência e do panorama do teatro português. Castro Guedes, num tom
cadenciado e calmo, lá foi, paciente e inteligentemente falando sobre o assunto. Quando acabou, talvez ao fim de uns quarenta e cinco minutos, Tadeusz
Lomnicki soergueu-se reverentemente e com a sua
natural voz de peito, de cabeça baixa e em tom humilde, mas também majestoso disse: “Levanto-me
respeitosamente perante dois colegas, pois não imaginava que em pleno século XX fosse possível trabalhar profissionalmente em teatro em tais condições”.
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/ bARCELONA
Numa fase da sua vida, ainda no tempo do franquismo, sempre que podia, Júlio Cardoso dava um
salto a barcelona. Para ele a Europa começava ali.
Era uma cidade aberta onde com prazer encontrava
muitos amigos catalães. Fala no passado, pois hoje
é muito diferente. Talvez mais frustrante, actualmente! Nesses já recuados tempos receberia um dia,
no hotel, um telefonema do grande teatrólogo, professor e crítico teatral Xavier Fábregas convidando-o
para a inauguração de um espaço teatral-cabaret-restaurante-bar, chamado Scala. Lá iria. Com ele,
bonim, na altura director do Instituto de Teatro, uma
das mais conceituadas escolas espanholas e hoje um
importante actor, e também Jordi Coca, na altura uma
revelação nas letras catalãs, já com vários livros
publicados.
Foi, de facto uma noite memorável.
Passados anos, porém, o Scala desapareceu com,
a explosão de uma bomba.
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/ KIEV
No centro de Kiev, visitaria Júlio Cardoso o
Memorial num edifício moderníssimo, inaugurado
há relativamente pouco tempo. Ali pesquisou o actor
vária obras. Perante uma simples foto, estaria mais
de meia hora reflectindo e tomando notas. Lembrar-se-ia da novela “A Mãe” de Maximo Gorgy e da
peça de b. brecht. Nessa foto estariam Lenine, sua
mãe e Gorky.
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/ bUENOS AIRES
“buenos Aires querido” tem mesmo maravilhas de
espantar: desde um bairro luxuoso para mortos onde
não existe, por falta de espaço, segundo dizem, um
palmo de terra devoluto. Eva Peron descansa, segundo informaram Júlio Cardoso, num jazigo emprestado. Tal necrópole faz parte do roteiro turístico da
cidade a que pertencem também as livrarias abertas
à noite. Precisamente à noite, entraria Cardoso numa
livraria e, depois de consultar um catálogo com obras
de teatro, seleccionaria alguns volumes, dizendo-lhe
o livreiro não os ter de momento, mas os conseguiria pelas onze horas da manhã, mandando o “Pibe”
buscá-los. “El Pibe” era a alcunha de Maradona.
Numa madrugada na capital da Argentina, uma
jovem portuguesa reconhecê-los-ia num restaurante,
vindo cumprimentá-los e dizendo que se encontrava
com Mário Laginha e Maria João que, no dia seguinte,
dariam um concerto.
Lá iriam, dando por bem empregue o tempo.
A sala estava cheia e seria indescritível a alegria
que sentiriam no final. Suceder-se-iam os encores e,
após o último, os argentinos continuariam a aplaudir, numa contínua gritaria pedindo mais. Tal espectáculo encheria Cardoso de um grande orgulho de
ser português.
Ainda na capital Argentina, reservariam Cardoso
e António Reis bilhetes para um espectáculo no
célebre Teatro Colon, com esse monstro do Teatro,
do Cinema e da arte da vida que dava pelo nome
de Vittorio Gassman. Esse italiano tinha ainda uma
escola de teatro pela qual passaria essa grande actriz
e companheira de sempre Estrela Novais nos anos
que viveu em Itália estudando o seu ofício. O Teatro
Colon estava completamente esgotado, mas no dia
aprazado para a estreia de Gassman, os trabalhado-
res daquele teatro iniciaram uma greve. À última
hora, o espectáculo seria transferido para uma outra
sala, cuja lotação era de 900 lugares, manifestamente
inferior à do Colon. Grande balbúrdia com centenas
de espectadores a reclamarem e então destaca-se a
elevada consideração em que era tido o Fitei, sendo
religiosamente guardada a reserva feita em seu nome.
Com as coxias a abarrotarem de pessoas em pé, para
o teatro alternativo se dirigiriam Reis e Cardoso.
Está Júlio em crer que era a quarta vez que Vitorio
Gassman passava por buenos Aires. Inicia-se o espectáculo. Gassman entra em palco. O público todo
de pé bate emocionadamente palmas e grita Vittorio,
Vittorio, Vittorio. Os minutos passam e todos aqueles cérebros e corações se entusiasmam. Comovido,
Júlio Cardoso várias vezes secou com o lenço os
olhos. Eram, de facto, emocionantes a grandeza de
um comediante e o reconhecimento e admiração de
um público não se cansando de agradecer todo o bem
que ele lhe dera com a sua arte. Após longos minutos, a cena começou a abrandar. Depois de um silêncio, o actor disse que os médicos o haviam proibido
de fumar, mas perante tão caloroso acolhimento, iria
tentar conter a emoção e para isso teria de fumar.
Pediu um cigarro. Várias pessoas se dirigiram ao
palco e a primeira a chegar foi uma senhora que se
esquecera do isqueiro na carteira. Imediatamente,
muitas luzinhas se acenderam. Ao fim de algumas
fumaças, o actor declarou ir alterar o espectáculo,
resumindo-se o mesmo a uma aula de teatro. Pediu
para subirem ao palco alguns voluntários.
Seriam quase duas horas de indescritível beleza.
O aparecimento daquele gigante começara com emoção e com emoção terminaria.
Nos camarins, Gassman sentiu-se mal. Foi transportado ao hospital. Passados dias, regressaria à sua
Itália onde morreria.
/ “Quarteto - Relaç õ e s Perigosas”, de Heiner Mü l ler,
com encenação, cenário e guarda-roupa de Gabriel Villela.
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/ E AGORA FUTEbOL
Espectador assíduo de desafios futebolísticos,
Júlio Cardoso possui várias histórias relacionadas
com esse desporto ao qual tece também as suas críticas.
Lembrando Frederico barigana, célebre guardaredes do F. C. do Porto, homem de uma simplicidade
e generosidade únicas conta que, certa noite no
“Ginjal” com jornalistas e gente do Teatro, se falava
do treinador Meirim, na altura desfrutando de grande
popularidade. Dizia o guarda-redes que só queria ter
50% do “patuá” do treinador, devendo este possuir
50% do que o narrador sabia de futebol. De tal mistura resultaria o melhor treinador português.
Treinando barrigana um pequeno clube trasmontano, perguntar-lhe-ia Cardoso como ia tal colectividade, ao que, puxando os punhos da camisa, o
guarda-redes prontamente responderia: “Vai, Vai,
vai descer de divisão que é uma maravilha!”
Aquando de um importante jogo com o Sporting
no Estádio do bessa, no tempo em que o boavista
era uma das glórias europeias, o indefectível boavisteiro padre italiano Júlio Carrara, antes do jogo e a
caminho da tribuna VIP, apresentaria ao actor o então bispo auxiliar do Porto. No decorrer do jogo,
perante um clamoroso erro do árbitro, em prejuízo
da sua querida equipa, enquanto mastigava cigarros,
vociferaria um axadrezado de gema vitupérios em
portentoso calão contra o juiz do desafio. Embaraçado, tentaria Júlio Cardoso chamar-lhe a atenção
para a presença do bispo e, então, no mesmo ritmo
o querido amigo boavisteiro, colocando os braços
nos ombros daquele dignitário, vai pedindo desculpa
da desabrida linguagem, ao que o bom eclesiástico
retorquirá: “ó meu amigo, se nós não pronunciamos
essas palavras, alguém terá de as dizer para a língua
continuar viva”. brilhante comentário de uma figura
portuense e sportinguista!
Na actual cultura portuguesa futebolística, prossegue Júlio Cardoso, quem conhece um pouco os
meandros das competições conclui com facilidade
que nas regras da competição, directa ou indirectamente, a trafulhice tem de ser jogada, caso contrário
perde. São ditames que, acredito sinceramente, numa
boa parte dos casos vão acontecendo como fazendo
parte de uma verdade canónica dos desafios. Uma
boa parte dos futeboleiros, passa neste ambiente
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como que amarrados a um vício, daí emergindo um
jogo como um abastardamento da vida, sem espaço
para a consciencialização exacta da perversão das
atitudes. É como pensar que só se será grande se se
conseguir corromper. Quanto mais os dados forem
adulterados muito maiores seremos. Estas fraquezas
humanas não impedem estas figuras de serem solidárias e possuírem um forte conceito de amizade.
Aqui muitas vezes atingindo o limite da integridade,
dando a impressão que nem se apercebem de toda
esta confusão, pois a lotaria só pode beneficiar muito
poucos, não passando o resto de umas pobres e desgraçadas marionetas que, em muitos casos, se autodestroem.
Evidentemente, esclarece o actor, estas minhas
simples observações são apenas resultados de meras
constatações e têm como finalidade apontar o dedo
acusatório aos sucessivos governos que por incapacidade, oportunismo, inépcia e medo, nada têm feito
para alterar todos estes terríveis e sedutores regulamentos futebolísticos que vão permitindo um pervertida existência Os governos limitam-se a assobiar
para o lado. E a respectiva tutela cada vez mais é
uma caixa de correio que fica muito cara ao contribuinte, com o velho argumento que no futebol ninguém se deve meter. É lá com eles. Aqui, até o
chamado Estado de Direito é proibido. Chego a pensar que haverá públicas regras anticonstitucionais.
bom e assim vamos andando com a indústria do
pontapé na bola sempre mascavada. Agora quando
os resultados só dependem dos principais actores que
estão no rectângulo, acontecem por vezes jogadas,
saltos ou movimentos tão belos como um salto de
Nijinsky. E então, eu aplaudo.
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/ EVOCAÇãO DE JAYME VALVERDE
Esse grande actor, Jayme Valverde, um dos mestres de Júlio Cardoso, era um grande conhecedor e
fã de Anton Tchékov. Havia quem dissesse que
Tchekov, passando pelo Porto, entraria certa vez no
Café Leão d’Ouro, reparando, ao fundo e no canto
esquerdo, num homem completamente calvo, fumando uns cigarros a seguir aos outros, mas retirando-os do maço, acendendo-os, levando-os aos
lábios, aspirando-os como se uma música lhe acompanhasse os gestos. Esse som era o pigarrear constante daquele honrado e nobre cavalheiro, solitário/
/ Jú l io Cardoso em “O Tio Vâ n ia”, de Anton Tchecov.
/solidário. Então, Tchekov, qual perdigueiro perseguindo perdiz, em pensamento vai dizendo: “Olha,
aqui está o Ivan Ivanovich Nioukhine. Finalmente
encontramo-nos”. Essa figura de Nioukhine nunca
mais o largou e nessa noite e de um jacto escreveria
essa obra-prima que é “Os Malefícios do Tabaco”.
Havia quem afirmasse que debaixo do sol era impossível aparecer um actor que representasse melhor
esta obra Tchekoviana.
Se alguém, lendo agora este texto teve a felicidade de ver Valverde representando Ivan Ivanovich
Nioukhine talvez se lembre do botão da casaca a do
vício de estar sempre a mexer-lhe, enquanto faz a
conferência. Pois bem, quando, pela primeira vez,
Júlio Cardoso se sentou no Teatro de Arte de Moscovo para assistir a uma obra de Tchekov, todo
aquele ambiente lhe seria familiar. Naqueles instantes todas as aulas de Jayme Valverde, explicando
Tchekov envolveriam o actor, uma aura de saudade
e gratidão.
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/ E AINDA SEIVA TRUPE
Costumam dizer os seus fundadores que, de há
uns anos a esta parte “Seiva Trupe” vive uma crise
de crescimento. E porquê? Porque todos os dias,
pelas mais diversas formas e dos mais diversos pontos do país e do estrangeiro, se lhe colocam circunstâncias de espécies várias, que exigem resposta e
exigem mais administrativos.
Vários episódios lhe estão ligados. Assim, ainda
no tempo do escudo, houve um espectador que por
um simples bilhete passou um cheque de 85.000$00.
Curiosamente, só no final do espectáculo o facto foi
conhecido. Evidentemente logo se puseram em acção
para agradecer. Então, receberam com certa emoção
a seguinte resposta: “Vou várias vezes à Seiva Trupe.
E eu, é que vos estou grato”.
Noutra ocasião, um padre muito conhecido e
apreciado não só pela sua cultura geral, mas ainda
pela sua obra social, também deixaria um cheque
com umas dezenas de contos que logo lhe seria
devolvido para a sua obra paroquial.
Em certa altura estabeleceu-se um burburinho.
Houve vozes chamando um médico. No palco há
uma ligeira suspensão, mas logo se deduz que o
caso já foi solucionado. No final do espectáculo,
soube-se que uma espectadora se sentira mal. Para
ela, teria sido chamado o 115 (era ainda o tempo
dele). Quando a ambulância chegou à porta do teatro, havia um transeunte necessitando de assistência.
Seria levado para o hospital. Mas a ambulância destinava-se à tal espectadora, tendo provocado tal confusão com a central de chamadas e as pessoas que
prestavam auxílio à senhora.
Em barcelona, num festival de teatro, a “Seiva
Trupe” iniciou a sua apresentação com “Confissão”,
de Santareno. A sala estava cheia. De súbito, há o
aviso de uma bomba. Acorrem várias secções da
Guarda Civil com equipamentos de choque. Irrompendo pela sala. Como um foguete um colega salta
do palco para a rua, de olhos esgazeados: Uma
bomba! F…
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/ EU SOU A MINHA PRóPRIA MULHER
Durante as sete semanas em que esteve em cena
“Eu sou a minha própria mulher”, a obra que Júlio
Cardoso representou e coroou os cinquenta anos da
sua actividade, quase sempre no final dos espectáculos, o actor recebia lembranças. Mas a maior parte
das mesmas, e eram várias por cada representação,
seriam, efectuadas por espectadores anónimos ou
completamente desconhecidos.
Júlio Cardoso tem agora a palavra: “ bem, no fim
de contas, penso que falei muito pouco do projecto
que faz parte integrante da minha vida. Andei e andarei por muitos lados, estive em núcleos base de
coisas lindas que apareceram, mas, agora, olhando
para trás, interrogo-me como foi possível chegar até
aqui. Com altos e baixos, com uns a latir, a esganiçarem-se, a molestar, a perseguir, a ladrar, e vencendo escolhos de todo o género, a caravana lá vai
sendo conduzida, prosseguindo, prosseguindo sempre em frente. Já há muito sabemos e sentimos que
“Seiva Trupe” se tornou um orgulho do Porto e de
toda a região. A cidade, a região e a “Seiva” identificaram-se como irmãos gémeos. Se acontece estar
uma em baixo, a outra também o está e o contrário
também se verifica. Também acontece que, de
quando em vez e ao longo da sua história a cidade
se torna madrasta no pior sentido do termo. Mas é,
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/ Foto António Alves
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/ UM PROJECTO DE VIDA
/ “Eu Sou a Minha Pró p ria Mulher”, de Doug Wright, com enc. de João Mota, 2010.
/ Foto António Alves
/ “Eu Sou a Minha Pró p ria Mulher”, de Doug Wright, com enc. de João Mota, 2010
outrossim, verdade que na maior parte da sua existência esta Invicta cidade se vangloria dos êxitos da
sua “Seiva Trupe”.
Muitas vezes penso que se fizéssemos desde a
primeira hora um diário da vida e obra da “Seiva
Trupe” poderia resultar um volume de inusitado interesse público. Penso que seria mesmo inconcebível as pessoas fora deste círculo pensarem no que
se passará num centro de criatividade, numa fábrica
de ideias, onde um grupo de pessoas, para além das
suas horas de sono, soltam os neurónios em busca
de sonhos e depois se lançam nos difíceis caminhos
da sua concretização. É claro que durante todo o
projecto, de uma forma directa ou subrepticiamente,
tem havido muitas tentativas de cópias, mas se ainda
ao menos fossem bem feitas poderíamos aplicar-lhes
as palavras de brecht: “copiem, mas copiem bem”.
Para glosar certos métodos também é preciso talento,
trabalho e organização. Adiante…
Para além das suas criativas ocupações diárias,
todos os elementos do núcleo base da Seiva lutam
encarniçadamente contra a falta de tempo e roubam
aos seus preciosos momentos de lazer e descanso
estas poucas ocasiões para o estudo e pesquisa no
sentido de se manter a implementação de uma sólida
prática que desague em produções e nas mais variadas iniciativas de visíveis e participadas comunicações como fonte de uma consistente modernidade,
de acordo com as exigências dos públicos conscientes e identificados com o tempo que passa.
E assim vamos andando. Por muitos e axiomáticos elogios que recebamos, continuaremos sempre
insatisfeitos, inquietos, desassossegados e sequiosos, buscando a essência. Desesperadamente ao
encontro da Verdade. Essa é a nossa missão.”
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/ NOTA FINAL
Finalmente, desabafa Júlio Cardoso: “Fiz um esforço enorme para me ocorrerem coisas simples e,
como se diz, ao alcance de todos. Neste caminho, à
minha pobre memória vieram casos que, nos tempos
que passam, seriam dinheiro em caixa. Não sou
desse tempo. Evidentemente que durante o percurso
muitas coisas me ocorreram mas, de certeza que
iriam estoirar como bombas de fragmentação atingindo coisas e pessoas. No que me diz respeito,
às vezes senti os parâmetros tão estreitos, como
músculos rijos apertando prensa em grainha de uvas,
mas sempre fui reagindo, estrebuchando agora e saltando depois, dando sempre a minha cara ao vento,
reagindo às vezes como minhocas cortadas, tentando sempre não parar, procurando constantemente
saídas como besouro num frasco de vidro. E devo
isso à minha forte personalidade de humildemente
procurar saber, saber mais. Se aqui e ali vou contrbuindo para que as pessoas sejam melhores, essa é
a minha obrigação. Por muitos bravos e aplausos,
elogios ou prémios que tenha recebido, o meu ethos
não me deixava conhecer êxitos, porque me acompanharam sempre os insubstituíveis desassossego
e insatisfação. Aplausos só para os que aprendem
e ensinam e esses são muito poucos. São os eleitos.
São os génios que se fizeram e que talvez só no
último sopro é que sentem o dever cumprido.
Sinceramente, muitas vezes me ocorre o pensamento de que não sou desta época; ou estou muito
atrás ou muito à frente. Tenho a aguda certeza socrática de que nada sei. (Ainda há dias, em conversa com uma senhora goesa, soube que a palavra
cui não era concanim: era de origem portuguesa.
Os queixos abriram-se-me até ao peito. Sim, sim.
E com vários significados. – Então pergunto eu “ensosserant songlen cui” o que quer dizer? – Pode ser:
neste mundo tudo é trapaça; vão; enganador ou nada
ou merda). Pela primeira vez vou utilizar um termo
que me é caro. A minha vida, especialmente estes
cinquenta anos, foram simplesmente um voo. Um
voo curto e sem importância.
Para acabar, somente isto: tudo o que disse foram
uns simples fragmentos de um quimérico voo”.
“Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto.”
Reinaldo Ferreira
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DIRECÇãO GERAL
DO PROJECTO
COORDENAÇãO GERAL
E DIRECÇãO EDITORIAL
LIVRO
AGRADECIMENTOS
António Reis
Nina Teodoro
Júlio Filipe
António Reis
Marta Tavares
Nina Teodoro
JÚLIO CARDOSO
NO PALCO DA VIDA
50 ANOS DE TEATRO
A todos aqueles que com o
seu trabalho contribuíram
para o êxito desta iniciativa.
Organização e Execução
Seiva Trupe - Teatro Vivo
Texto
António Rebordão Navarro
Edição
Seiva Trupe - Teatro Vivo
Pinturas
Paulo Carteiro
págs. 14, 16, 17, 18,
20, 32, 34, 36, 85, 87
Créditos Fotográficos
Seiva Trupe - Teatro Vivo
Design
Humberto Nelson
Produção
Pagella, Atelier de Design
e Edições, Lda.
Impressão e acabamento
Greca - Artes Gráficas
Deste livro foi feita uma edição
de 1000 exemplares
em Junho de 2010
Depósito Legal 000000000
ISbN 978-972-98440-1-0
Seiva Trupe -Teatro Vivo – Teatro do Campo Alegre
Rua das Estrelas, s/n – 4150 -762 Porto - Portugal
Tel. 226 001 000 – [email protected]
www.seivatrupe.pt
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Apresentação 1