Professora:
REGINA
DATA: 18 / 05 / 2015
ANALISE LITERÁRIA - UNIRG
Versos Íntimos
sociedade hipócrita à qual estamos condenados desde
o nascimento Por dizer verdades como essas, Augusto
dos Anjos pagou seu preço. Sua poesia, considerada
por muitos impressionista, não agrada à maioria, posto
que seus versos rasgam as principais feridas da
natureza humana, não acostumada a falar da morte sem
estremecer, pouco disposta a observar os erros de sua
maneira absurdamente competitiva de viver. Entretanto,
se nos detivermos mais serenamente sobre sua obra,
encontraremos – não obstante os termos difíceis por
onde esbanja o cientificismo – toda uma mística que lhe
serve de arcabouço, inequívoca função compensatória
para o pessimismo declarado do poeta, sempre a
questionar severamente o sentido de nossas vidas. Em
alguns de seus sonetos e outras partes não tão
popularizadas de seus versos, de paramo-nos com um
caráter filosófico ocultista absolutamente singular em
toda a literatura brasileira. O poeta apresenta genuínas
reflexões à moda esotérica, em versos sublimados por
uma religiosidade espiritualista, voltados para a
libertação e transcendência da nossa alma, que, no
mais das vezes, vive atormentada.
AUGUSTO DOS ANJOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Augusto dos Anjos
Alphonsus de Guimaraens
Esses são “Versos Íntimos”, escritos em 1906 pelo
poeta Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, a
compor um dos mais declamados trabalhos deste
enigmático discípulo de Baudelaire, cuja breve vida
esteve marcada por um intenso questionamento
filosófico, disseminado por toda a sua obra. "Versos
Íntimos" foi incluído no livro "Os Cem Melhores Poemas
Brasileiros do Século", organizado por Ítalo Moriconi
para a Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001, pág.
61Augusto dos Anjos: O Poeta da Espiritualidade
Referendado como o poeta da morte, dos cemitérios,
dos ossos e da carne em putrefação, Augusto dos
Anjos, ao contrário do que muitos imaginam, segreda
em sua obra poética uma filosofia libertária, capaz de
nos guiar pela senda da mais pura transcendência.
"Versos Íntimos” expõem, de modo formal e cruel, a
nossa efêmera condição, fadados que estamos a nos
prostrar na lama sepulcral, não sem antes experimentarmos toda a sorte de sofrimentos advindos do
relacionamento humano. Só mesmo a perfeição faria
toda a filosofia de Hobbes, a considerar o homem lobo
do próprio homem, caber assim metrificada nos
14versos (geralmente dois quartetos e dois tercetos)
decassílabos heroicos (a 6ª e a 10ª sílabas são tônicas),
de um único soneto. O poeta observa laconicamente o
definhar de nossos sonhos, lembra-nos a todos de que
a ingratidão é o presente natural que nossas mãos
estão acostumadas a receber por toda a vida. Ele nos
adverte acerca das traições a que estamos sempre
sujeitos e, por isso, considera inútil qualquer espécie de
remorso que possamos sentir esboçar-se em nosso
peito. São versos realistas, eivados de um pessimismo
desconcertante, a reproduzir o comportamento da
Simbolismo em Alphonsus de Guimaraens poema
“Ismália”
Introdução
Entende-se aqui por Simbolismo, não o conjunto de
manifestações espiritualistas do último quartel do séc.
XIX e o primeiro quartel do séc. XX (como têm
entendido alguns), mas, num sentido mais especificamente histórico-literário, uma escola ou corrente
poética (incluindo a poesia em prosa e a poesia teatral),
que se afirma sobretudo entre 1890 e 1915 e que se
define por um conjunto de aspectos, aliás variáveis de
autor para autor, que dizem respeito às atitudes perante
a vida, à concepção da arte literária, aos motivos e ao
estilo. Sem dúvida esta corrente literária insere-se na
atmosfera mental, antipositivista, de fins do séc. XIX;
mas certos caracteres de técnica literária, de forma, são
inerentes ao conceito de Simbolismo aqui adaptado.
Alphonsus de Guimaraens forma, com Cruz e
Sousa, Eduardo Guimaraens e Emiliano Perneta, a ala
mais representativa de nosso Simbolismo, seja pelo
valor da criação poética, seja pela identidade profunda
com aquele movimento literário.
Diferente de Cruz e Souza, Alphonsus de
Guimaraens,
expressa uma atitude reflexiva e melancólica, fala
praticamente de um único tema – a morte, criando uma
atmosfera indefinida, vaga, plena de sugestões.
1
Contexto Histórico
Após a euforia da Segunda Revolução Industrial,
quando se incrementou a construção de ferrovias, a
economia mundial entra em crise, devido ao aumento da
concorrência e da falta de mercado consumidor.
Como o capitalismo não se desenvolveu de
maneira uniforme no mundo, houve concentração de
capital em países como França, Inglaterra e estados
Unidos (este último aparecendo agora como potência),
que passaram a buscar mercado em países menos
desenvolvidos, dando início ao que hoje conhecemos
como "imperialismo econômico”.
Contrariamente ao cientificismo e objetivismo
anterior, a arte passa a representar o subjetivo, o
inconsciente, buscando a unidade do ser. A esperança
cede lugar à frustração e esta leva à busca do lado
místico, espiritual do universo.
Apesar das diferenças, o Simbolismo é
considerado uma espécie de continuação do
Romantismo, na medida em que anseia por reformas e,
ao mesmo tempo, busca refúgio fora do mundo real. A
burguesia referia-se a esses artistas como boêmios,
decadentes e malditos.
Cisnes Brancos
Ismália
Os Sonetos
Características
Atmosfera mística e litúrgica;
Exploração do tema da morte;
Termos de emprego corriqueiro na
poesia da época: lírios, luar, brancas, brumosas,
pálidas, etc.,
Literatura gótica próximo aos
escritores românticos;
Poesia uniforme e equilibrada;
Ambiente místico da cidade de
Mariana e as chamas sentimentais vivida na
adolescência, não permitem confundir
Alphonsus de Guimaraens com nenhum dos poetas da
época, a cosmovisão timbra-se
por um acendrado espiritualismo.
Biografia
Alphonsus Henriques da Costa Guimaraens
nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais em 1870 e faleceu
em 15 de julho de 1921, em Mariana, em Minas Gerais.
Formou-se bacharel em Direito, em 1894, em Ouro
Preto. Na época dedicou-se ao jornalismo. Em 1895
tornou-se promotor de Justiça em Conceição do Serro
MG e, a partir de 1906, Juiz em Mariana MG.
Sua obra foi intensamente marcada com a
presença de Constança sua prima e amada que faleceu
às vésperas do casamento.
A obra do Autor tem como características o
triângulo: Misticismo, Amor e Morte, é considerado pela
critica literária o poeta mais místico da Literatura
Brasileira. Em cada poesia é revivida a morte de sua
noiva.
Principais Obras
Sentenário das Dores de Nossa Senhora (1899)
Câmara Ardente (1899)
Dona Mística (1899)
Kyriale (1902)
Pauvre Lyre (1921)
Pastoral aos Crentes do Amor e da
Morte (1923)
Mendigos (1920)
No Rio de Janeiro, em 1960,
publicou-se sua obra completa, inéditos e dispersos em
verso e prosa.
Ismália
Alphonsus de Guimaraens
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em
luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava longe do céu…
Estava longe do mar…
E como um anjo pendeu
As asas para voar. . .
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…
Ossa Mea
Pulchra ut Luna
Árias e Canções
Terceira Dor
2
Análise do poema
O poema de Alphonsus de Guimaraens,
composto de 5 estrofes com 4 versos cada, com rimas
alternadas. Numa possível leitura, a personagem-título
enlouquece e se suicida.
Quanto ao aspecto gráfico-formal, encontramos, nas
primeiras 4 estrofes, sempre nos versos 3 e 4 , que se
repete:
viu/viu;
queria/queria;
estava/estava;
queria/queria. A repetição serve para acentuar ideias
contrastantes, já que em cada um desses versos é um
complemento que exprime oposição: céu/mar;
subir/descer; perto/longe; subiu/desceu. Destes, a
oposição céu/mar é constante nas 5 estrofes.
Na primeira estrofe, o poema narra o
enlouquecimento de Ismália que, à janela da torre, viu a
lua a espelhar-se no mar ("Viu uma lua no céu, Viu outra
lua no mar").
Na segunda estrofe, a loucura ("sonho") leva-a
a debruçar-se mais para fora da janela ("Banhou-se toda
em luar") e ter desejos conflitantes – a lua do céu e a lua
do mar, como se estivesse entre duas escolhas.
Na 3ª estrofe, já delirando ("no desvario seu")
ela começa a cantar; na 4ª, é sugerido que Ismália
estendeu os braços para ‘voar’ ("… como um anjo
pendeu/ As asas…"); na 5ª e última estrofe, a imagem
torna-se ambígua: as "asas" dadas por Deus são seus
braços, ou se referem à alma que voou para o céu?
Esse "resumo" exposto é apenas uma
interpretação. Quando lido e relido atentamente, outras
possibilidades se apresentam
A "loucura" de Ismália é também comparada a
um sonho: "No sonho em que se perdeu". A ‘loucura’ é
assim vista de forma poética, não agressiva, e nem
necessariamente negativa: aproximando "loucura" e
"sonho", o poeta pode estar sugerindo que a loucura é
um estado fora do ordinário, do comum da vida, como é
o estado do sonho. Sonhamos dormindo, ou mesmo
acordados, quando imaginamos alguma coisa ou
situação.
Considerações finais
Esta pesquisa foi elaborada em torno do Simbolismo,
sendo mostrado o seu contexto histórico, principais
autores e o Simbolismo no Brasil a partir da análise do
poema “Ismália de Alphonsus de Guimaraens.
Análise - Fogo Morto
Publicado em 1943, Fogo Morto, de José Lins
do Rego é a última obra-prima do regionalismo
neorrealista que surgiu no Brasil na década de 30.
O regionalismo de 1930 A prosa de ficção dos
anos 30 dá continuidade ao projeto político-literário dos
primeiros modernistas – os da chamada fase heróica de
1922 –, utilizando-se de uma Literatura regionalista, de
caráter neorrealista, para mostrar os problemas e as
desigualdades sociais do Brasil. Prevalece, porém, uma
narrativa direta sem as ousadias formais dos romances
de Oswald de Andrade, como Memórias Sentimentais
de João Miramar, ou Macunaíma, de Mário de Andrade.
Linguagem coloquial Os regionalistas de 1930,
como Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do
Rego, enfatizam o uso da linguagem coloquial, popular
na arte literária. Mas, enquanto os modernistas de 1922
procuravam "escrever errado", reproduzindo as
incorreções gramaticais da fala popular, os regionalistas
de 1930, livres das convenções da linguagem
acadêmica, escrevem com simplicidade, apenas
ocasionalmente desrespeitando a norma culta da Língua
Portuguesa.
O ciclo da cana-de-açúcar. Grande contador de
histórias, José Lins do Rego é diretamente influenciado
pelo regionalismo do sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre, autor de Casa Grande e Senzala. O romance
Fogo Morto faz parte dessa literatura regionalista e é,
também, o último suspiro da série de romances a que o
próprio José Lins do Rego chamou de "O Ciclo da Canade-Açúcar". Esse ciclo é formado por obras que têm
como matéria básica o engenho Santa Rosa, do velho
coronel José Paulino, avô do alter ego do autor, Carlos
de Mello.
• Em Menino de Engenho (1932), primeiro romance do
ciclo, José Lins do Rego mostra, de maneira lírica e
saudosista, o ambiente de engenho em que o garoto
Carlinhos vive após seu pai, desequilibrado mental, ter
assassinado a mãe. Criado entre os "moleques de
bagaceira", o garoto cresce sob o poder patriarcal
avassalador do avô José Paulino. Aos 12 anos, conhece
a sexualidade com a "rapariga" Zefa Cajá, de quem
contrai uma "doença do mundo". Por fim, é mandado ao
colégio interno, para "endireitar", perder os hábitos da
"bagaceira", e se tornar um legítimo "senhor de
engenho".
• Após descrever a vida de Carlos de Mello no colégio
interno em Doidinho (1933), José Lins do Rego mostranos o seu retorno ao Santa Rosa, aos 24 anos, já
formado em Direito, no romance seguinte, Bangüê
(1934). Carlinhos tenta, então, readaptar-se ao
engenho, sempre permeado por uma sensação de
impotência frente ao espírito autoritário de seu velho
avô. Após a morte do velho José Paulino, Carlos acaba
por levar o Santa Rosa à ruína, vende o engenho ao tio
Juca e abandona para sempre as suas terras.
• Considerado pelo autor o último livro do
ciclo, Usina (1936) apresenta o engenho transformado
na usina Bom Jesus. Dirigida pelo doutor Juca, a usina
vai perdendo sua força. Pressionada por interesses
estrangeiros e pela usina Santa Fé, que domina toda a
região, a Bom Jesus acaba invadida por miseráveis em
busca de alimentos e, por fim, doutor Juca acaba por
vender e abandonar a usina melancolicamente.
• Mas o engenho Santa Rosa, assim como alguns de
seus moradores, voltaria a aparecer na obra-prima de
José Lins do Rego, Fogo Morto.
Anote!
O ciclo apresenta o processo de decadência dos
engenhos da Zona da Mata nordestina que perdem seu
poder e são engolidos pelas forças emergentes da usina
e do capitalismo moderno.
3
O ciclo, segundo o autor- Em nota à primeira
edição de Usina, o próprio escritor nos explica suas
intenções ao realizar esse ciclo de romances:
"Com Usina termina a série de romances que
chamei um tanto enfaticamente de 'Ciclo da Cana-deAçúcar'. A história desses livros é bem simples –
comecei querendo apenas escrever umas memórias
que fossem as de todos os meninos criados nas casasgrandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um
pedaço de vida o que eu queria contar. Sucede, porém,
que um romancista é muitas vezes o instrumento
apenas de forças que se acham escondidas no seu
interior. Veio, após o Menino de Engenho, Doidinho, em
seguida Bangüê. Carlos de Mello havia crescido, sofrido
e fracassado. Mas o mundo do Santa Rosa não era só
Carlos de Mello. Ao lado dos meninos de engenho havia
os que nem o nome de menino podiam usar, os
chamados "moleques de bagaceira", os Ricardos.
Ricardo foi viver por fora do Santa Rosa a sua história
que é tão triste quanto a do seu companheiro Carlinhos.
Foi ele do Recife a Fernando de Noronha. Muita gente
achou-o parecido com Carlos de Mello. Pode ser que se
pareçam. Viveram tão juntos um do outro, foram tão
íntimos na infância, tão pegados (muitos Carlos
beberam do mesmo leite materno dos Ricardos) que
não seria de espantar que Ricardo e Carlinhos se
assemelhassem. Pelo contrário. Depois do Moleque
Ricardo veio Usina, a história do Santa Rosa arrancado
de suas bases, espatifado, com máquinas de fábrica,
com ferramentas enormes, com moendas gigantes
devorando a cana madura que as suas terras fizeram
acamar pelas várzeas. Carlos de Mello, Ricardo e o
Santa Rosa se acabam, têm o mesmo destino, estão tão
intimamente ligados que a vida de um tem muito da vida
do outro. Uma grande melancolia os envolve de
sombras. Carlinhos foge, Ricardo morre pelos seus e o
Santa Rosa perde até o nome, se escraviza." Rio de
Janeiro, 1936 J. L. R.
A obra-prima
Embora o autor tenha dado o ciclo por
encerrado com a publicação de Usina, em 1936, ele
lançaria Fogo Morto sete anos mais tarde. Nessa obra,
retoma a mesma ideia nuclear dos romances anteriores,
assim como o engenho Santa Rosa e a figura do
coronel José Paulino, ainda que de maneira periférica.
Para lembrar - O romance Fogo Morto pode ser
considerado como um integrante tardio do "Ciclo da
Cana-de-Açúcar", embora o próprio autor tenha
afirmado que a série se encerrava com o romance
Usina.
Além disso, Fogo Morto é considerada a obra-prima
do ciclo. O autor minimiza o caráter autobiográfico e
nostálgico das obras precedentes e acrescenta à sua
extraordinária facilidade de narrar, que mais lembra a de
um contador de histórias, oralidade, naturalidade,
objetividade e consciência compositiva que o caráter
sentimental e espontâneo das obras anteriores
encobria.
Anote!
Em Fogo Morto, o romancista maduro e
consciente sobrepõe-se ao memorialista nostálgico para
construir sua obra-prima, que sintetiza, aprofunda e
condensa os outros romances do ciclo. Caricatura de
José Lins do Rego.
O espaço e o tempo- O romance se passa no
município de Pilar, na Zona da Mata paraibana, às
margens do rio Paraíba, distante cerca de 50
quilômetros de João Pessoa, próximo a Itabaiana. A
maior parte da ação se desenvolve nas terras do
engenho Santa Fé, nos arredores de Pilar, e apenas a
última seção tem uma boa parte que se passa na
cidade.
A trama desenrola-se durante os primeiros anos do
século XX, com uma regressão temporal à época da
fundação do engenho Santa Fé, em 1850. E, embora
seja traçada rapidamente a história do engenho até o
momento narrado, as ações em si não duram mais do
que alguns meses.
O títuloOs
"engenhos"
do
Nordeste
eram,
originalmente, estabelecimentos agrícolas destinados à
cultura da cana e à fabricação do açúcar. Com o tempo,
surgem as usinas, estabelecimentos especializados
apenas no processamento da cana para a produção do
açúcar. As usinas não plantam a cana. Elas compram
dos engenhos a cana-de-açúcar ainda não-processada.
Anote!
Com o surgimento das usinas, os engenhos vão
deixando de "botar", ou seja, moer a cana para a
fabricação do açúcar, tornando-se engenhos "de fogo
morto" – que apenas vendem matéria-prima às usinas.
Perdem, assim, boa parte de seu poder,
tornando-se reféns dos preços pagos pelas usinas. É
como se encontra, ao final de Fogo Morto, o decadente
engenho Santa Fé.
Estrutura triangular- Fogo Morto é dividido em
três partes. Cada uma delas traz no título o nome de um
dos três personagens principais do romance. Mas as
três partes se entrecruzam e os personagens aparecem
ao longo de todo o livro: o coronel Lula de Holanda,
senhor de engenho inepto e decadente; o mestre José
Amaro, seleiro pobre e orgulhoso; e Vitorino Carneiro da
Cunha, o "Papa-Rabo", um estabanado defensor dos
oprimidos.
Anote!
Mistura de D. Quixote e Sancho Pança, Vitorino,
em sua busca ingênua por justiça, estabelece as
relações entre todos os personagens, servindo como
ponto central da narrativa.
Primeira parte: o mestre José Amaro
A primeira parte do romance centra-se na casa,
à beira da estrada, no engenho Santa Fé, do mestre
José Amaro. Orgulhoso e machista, recusa-se a ser
dominado por qualquer um, só trabalha para quem
escolhe e admira o cangaceiro Antônio Silvino. Boa
parte desse trecho da obra é construída por meio dos
diálogos travados por José Amaro com os passantes,
entre eles, o compadre Vitorino Carneiro da Cunha,
apelidado pelas crianças de "Papa-Rabo".
O mestre irrita-se com o coronel Lula de
Holanda, dono das terras em que mora, a quem sempre
4
vê cruzando a estrada em seu cabriolé sem jamais parar
para cumprimentá-lo. Vai adiando, portanto, atender ao
chamado do coronel para que vá com ele conversar na
casa-grande. Nessa parte, pode-se acompanhar o lento
processo de enlouquecimento de Marta, sua filha, que
José Amaro bate para tentar curar.
O mestre recebe uma encomenda de compras
de Antônio Silvino e sente-se muito orgulhoso em poder
ajudá-lo. Seu caráter fechado e ranzinza vale-lhe a fama
de se transformar em "lobisomem" e as pessoas temem
encontrá-lo à noite. Por fim, tem de mandar a filha para
o hospício no Recife e acaba por atender ao chamado
do coronel Lula, que lhe ordena que se retire de suas
terras.
Segunda parte: o engenho de "seu" Lula
No início da segunda parte do livro, temos uma
regressão temporal, com o narrador retornando a 1850
ao contar a fundação do engenho Santa Fé pelo capitão
Tomás Cabral de Melo. Mudando-se para a região antes
de 1848, ele compra as terras e funda o engenho, o qual
faz prosperar. Casa sua filha Amélia com Lula Chacon
de Holanda, seu primo, que pouco interesse ou aptidão
tem para dirigir o engenho. Adoentado, deixa sua
mulher, dona Mariquinha, dirigir os negócios. Quando
morre, Lula entra em disputa com a sogra e acaba por
tomar-lhe as terras e o poder.
Castigando os escravos com requintes de
crueldade, andando com seu cabriolé para cima e para
baixo, "seu" Lula vai se afastando cada vez mais do
povo de Pilar e seu engenho entra em total decadência
quando vem a abolição e seus escravos debandam.
Autoritário, impede os homens de se aproximar da filha.
Epiléptico, tem um ataque na igreja e passa a se dedicar
com fervor à religião. Empobrecido, gasta até as últimas
moedas de ouro que lhe deixou o sogro. Sente uma
inveja enorme de seu vizinho José Paulino e de seu
engenho Santa Rosa e despreza o espírito quixotesco
de Vitorino Carneiro da Cunha. Essa parte encerra-se
com a frase melancólica: "Acabara-se o Santa Fé".
Terceira parte: o capitão Vitorino
A primeira edição de Fogo Morto, capa e
frontispício. Na terceira e última parte do romance,
predomina a ação. O capitão Antônio Silvino invade a
cidade de Pilar, saqueando casas e lojas. Invade o
engenho Santa Fé, ameaça os moradores em busca do
ouro escondido. Tentando defender o engenho, Vitorino
é agredido e só a intervenção de José Paulino faz com
que os cangaceiros desistam. Vitorino apanha também
da polícia. Mestre José Amaro e seus companheiros são
presos e agredidos.
No final, após serem libertados, Vitorino e o
mestre José Amaro seguem rumos diferentes. O
primeiro pensa em influir politicamente na região. O
segundo, abandonado pela mulher, com a filha louca e
expulso de sua casa, acaba por cometer suicídio,
enquanto o cabriolé de "seu" Lula passa pela estrada e
o Santa Fé vira "engenho de fogo morto".
As mulheres: filhas e esposas
Há uma sinistra simetria entre a sofredora filha
de José Amaro, Marta, solteirona que aos poucos
enlouquece, e as duas filhas dos senhores do engenho
Santa Fé, seus antagonistas. A filha mais nova do
capitão Tomás Cabral de Melo, Olívia, enlouquece e
perturba o silêncio áspero da casa-grande com seus
gritos. Já a filha do coronel Lula de Holanda, Neném,
impedida pelo pai de casar-se, é melancólica e soturna.
Sem filhos homens, os opositores, ensimesmados,
machistas e teimosos, acabam destruindo suas filhas.
As mulheres dos protagonistas também assemelham-se
muito. Sinhá Velha e Sinhá Adriana são mais práticas e
racionais do que os maridos José Amaro e Vitorino,
respectivamente, mas pouco podem contra o machismo
e a teimosia dos homens.
No engenho Santa Fé, as esposas sempre se
mostram mais decididas e práticas do que o impotente
Lula Chacon. Sua sogra, dona Mariquinha, comanda o
engenho até a morte do marido, quando é passada para
trás por Lula, que se mostra muito menos competente
no comando do engenho e acaba por ser dirigido,
sutilmente, por sua mulher, dona Amélia.
Polícia ou bandido
Polícia e bandido também assemelham-se
muito. Tanto o capitão Antônio Silvino, o cangaceiro,
quanto o tenente Maurício, chefe das tropas policiais,
abusam da violência, ameaçam a todos, espancam o
sonhador Vitorino e espalham o terror por onde passam.
Mesmo se o povo, representado por José Amaro,
respeita mais o cangaceiro. Suas ações, porém,
comprovam, como constata Vitorino, que ele utiliza
métodos abusivos e muito próximos do terror implantado
por seu opositor.
Vida e obra Um grande contador de histórias
José Lins do Rego Cavalcanti nasceu no
engenho Corredor, município de Pilar (Paraíba), em 3
de junho de 1901 e morreu no Rio de Janeiro em 1957.
Órfão de mãe e com o pai ausente, foi criado (como seu
personagem Carlos de Mello) no engenho do avô
materno. Estudou inicialmente no interior da Paraíba,
em Itabaiana, e depois na capital. Fez o curso superior
na Faculdade de Direito em Recife, Pernambuco.
Começou a escrever contos e artigos de
temática política ainda estudante. Nessa época, iniciou
sua amizade com José Américo de Almeida e Olívio
Montenegro. Em 1923, conheceu Gilberto Freyre (1900l987), recém-chegado da Europa. Junto com eles,
integrou o chamado "Grupo Modernista do Recife". José
Lins dizia que, após conhecer Gilberto Freyre –
sociólogo e escritor, autor de Casa-Grande e
Senzala (1933) –, sua vida nunca mais foi a mesma: "De
lá pra cá foram outras as minhas preocupações, [...] os
meus planos, as minhas leituras, os meus entusiasmos".
Sob a influência de Gilberto Freyre começou a escrever
romances regionalistas. Caricatura de José Lins do
Rego.
Em 1924, casou-se com Philomena Massa
(dona Naná). Teve três filhas: Maria Elizabeth, Maria da
Glória e Maria Cristina.
Em 1925, foi promotor público em Minas Gerais.
Em 1926, transferiu-se para Maceió (Alagoas), onde
trabalhou como fiscal de bancos por nove anos e
conviveu com Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz,
Aurélio Buarque de Holanda, Jorge de Lima e outros. O
contato com estes e outros artistas formou uma
consciência regionalista em torno da vida nordestina,
5
que marcou a obra de todos eles, especialmente a de
José Lins do Rego. Em Maceió, escreveu os três
primeiros romances: Menino de Engenho, Doidinho e
Bangüê. Seu livro de estreia, Menino de Engenho, foi
publicado em 1932 e recebeu o prêmio da Fundação
Graça Aranha. Muito bem recebida pela crítica, a edição
de 2.000 exemplares foi quase totalmente vendida no
Rio de Janeiro.
Em 1935, nomeado fiscal do Imposto de Consumo,
foi para o Rio de Janeiro, onde passou o resto de sua
vida. Esteve em países sul-americanos, na Europa e no
Oriente. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras
em 15 de setembro de 1955. Dois anos depois, em 12
de setembro de 1957, morreu e foi enterrado no
mausoléu da Academia, no cemitério São João Batista,
no Rio de Janeiro.
José Lins do Rego publicou 12 romances, um
volume de memórias (Meus Verdes Anos), um de
literatura infantil (Histórias da Velha Totônia), além de
livros de viagem, conferências e crônicas. Seus
romances são normalmente classificados em "ciclos" –
séries de obras versando sobre os mesmos temas. O
"Ciclo
da
Cana-de-Açúcar"
incluiMenino
de
Engenho, Doidinho, Bangüê, Usina e Fogo Morto. O
"Ciclo do Cangaço, Misticismo e Seca" inclui Pedra
Bonita e Cangaceiros. Algumas obras têm implicações
nos
dois
ciclos,
como O
Moleque
Ricardo, Pureza, Riacho Doce; outras não participam de
séries, como Água-Mãe e Eurídice.
A aridez agreste e a exuberância da zona da mata
Graciliano Ramos (1892-1953), um dos grandes
escritores regionalistas surgidos na década de 30, foi
grande amigo e admirador de José Lins do Rego, desde
o primeiro encontro em Maceió, no início dos anos 30.
Mesmo quando, em 1945, eles polemizaram pelos
jornais sobre o Partido Comunista. Graciliano Ramos,
que ingressara no partido, encerrou seu artigo com
estas palavras de amizade: "Sinto discordar do meu
velho amigo José Lins, grande cabeça e enorme
coração". O "velho Graça" jamais esqueceria que, ao
ser preso pela ditadura Vargas durante o ano de 1936,
José Lins do Rego fora um dos brasileiros mais
empenhados em conseguir sua libertação. Mas suas
diferenças não foram apenas políticas.
Para lembrar
Enquanto a escrita de Graciliano era seca e
contida como o sertão que descreve em Vidas Secas, a
de José Lins era exuberante e derramada, como a
natureza pródiga da Zona da Mata que abriga os
engenhos de seus romances. Mas Fogo Morto, o mais
contido e elaborado romance de José Lins, aproxima-se
do colega alagoano ao apresentar a desumanização do
homem nordestino.
No
romance São
Bernardo (1934),
de
Graciliano Ramos, o narrador Paulo Honório,
trabalhador braçal semi-alfabetizado, enriquece e
compra, além da fazenda São Bernardo, sua esposa, a
professora Madalena. Com um ciúme que remete
a Dom Casmurro, de Machado de Assis, Paulo Honório
é abandonado por todos após o suicídio da esposa.
Descreve-se, então, como "um aleijado. Devo ter um
coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes
dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma
boca enorme, dedos enormes". Esse homem que se
destrói na incapacidade de refletir ou de sentir além da
ganância e dos instintos básicos, descreve-se como um
"lobisomem". É assim que o povo da região vê o mestre
José Amaro. E é como um "Papa-Rabo" que vêem o
capitão Vitorino.
FOGO
MAL DA LEITURA EM A CARNE DE JÚLIO RIBEIRO
JEOVÁ SANTANA
O ano de 1888 tem na palavra liberdade um dos motivos
para ser lembrado quando se entra nos arquivos da
história. Neste recorte temporal, também a literatura foi
marcada por substantivos acontecimentos. Estes
contribuem para que ela se destaque quando utilizada
como instrumento de pesquisa para se entender os
mecanismos da formação nacional.
Na trincheira da teoria literária, Sílvio Romero ergue os
pilares de sua crítica; na ficção, Raul Pompéia se desvia
da "fôrmas" naturalistas para imprimir embates
psicológicos entre as paredes de O Atheneu; inaugurase o Gabinete Português de Leitura com a presença do
escritor lusitano Ramalho Ortigão; funda-se a
revista/jornal A família por Josephina, irmã de Álvares
de Azevedo, com a instigante chamada: "mulher
instruída é mulher emancipada". Estes são alguns
tópicos que ajudam a enriquecer o clima cultural e
político daquele momento.
Neste ambiente movimentado, um respeitável professor
e poliglota do Curso anexo da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, resolveu voltar à cena da
vida literária. Depois da discreta publicação de O padre
Belchior de Pontes, feita onze anos antes, Júlio Ribeiro
marca em definitivo seu nome na história da literatura
com o romance A carne.
Parece que o mote lançado pela irmã do autor de A lira
dos vintes anos estava a merecer auxílio das malhas da
ficção. Daí Júlio Ribeiro ter confeccionado sua
personagem Lenita com uma profunda inclinação para
transitar no mundo dos livros e exibir a invejável
condição de pessoa culta.
Se o autor tivesse ficado só na atribuição das
qualidades raras à sua criatura, estaria sujeito aos
parâmetros da crítica mas iria usufruir, posto em
sossego, as carícias da glória. Seu problema é ter
buscado no arsenal da escola naturalista os
ingredientes para mostrar a moça atravessando os
infortúnios da histeria, submetendo-a ao que Flora
Sussekind
chamou
de
"medicalização
da
linguagem". (nota 1)
Este breve ensaio tem dois objetivos: primeiro, catalogar
as diferentes situações em que a principal personagem
de A carne está às voltas com práticas da leitura, e qual
o efeito destas para o desdobramento da trama
romanesca. Em segundo, arrolar as opiniões que a
crítica literária destilou em relação ao texto de Júlio
Ribeiro desde sua publicação até nossos dias.
O romance se abre com uma frase sobre Lopes Matoso,
pai de Lenita. O narrador nos diz que ele não foi um
homem feliz, pois perdera pai e mãe muito cedo, num
curto espaço do tempo. Esta fatalidade, contudo, não o
impediu de angariar uma condição acima da média. Ele
6
perdera seus progenitores "quando apenas tinha
completado o seu curso de preparatórios"(nota 2) , mas
o destino permitiu-lhe continuar o destino de estudante
através de "um amigo da família, o coronel Barbosa, que
o fez continuar com os estudos e formar-se em
direito." (nota 3)A tragédia, porém, voltará a seu
caminho, ao perder a esposa no terceiro ano de
casamento.
A temática da filha sozinha no mundo já havia
frequentado outras vezes a culinária da literatura,
principalmente nas receitas do Naturalismo, cujo efeito
orgânico imediato era a vítima cair nas garras da
histeria. O homem, O mulato e A normalista são
exemplos dessa tendência.
Lenita vive sem mãe e vai perder o pai no desenrolar do
romance. Mas recebe do genitor - ao contrário de suas
companheiras de infortúnio - o legado de uma educação
especial. Atado à viuvez precoce, o doutor Lopes
Matoso, ameniza sua existência casmurra e faz da
dedicação à filha sua única finalidade na vida:
"Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra,
geometria, geografia, história, francês, espanhol,
natação, equitação, ginástica, música, em tudo isso
Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era
perito: com ela leu os clássicos portugueses, os autores
estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto havia de
mais seleto na literatura do tempo." (nota 4)
Este perfil feminino não encontrava oponente, tanto no
bojo de outras páginas literárias, quanto nas ruas da
São Paulo de então. Talvez fosse uma atitude de ironia
por parte do autor, pois a educação feminina estava
muito longe de degustar tantos e tão variados acepipes
ligados ao corpo e ao espírito:
"Lenita teve ótimos professores de línguas e de
ciências; estudou o italiano, o alemão, o inglês, o latim,
o grego; fez curso muito completos de matemáticas, de
ciências físicas, e não se conservou estranha às mais
complexas ciências sociológicas. Tudo lhe era fácil,
nenhum campo parecia fechado a seu vasto
talento." (nota 5)
Este procedimento estético abre-lhe a guarda para o
olhar afiado da crítica. O primeiro adversário é o padre
Senna Freitas que, através dos jornais, irá desfiar
golpes impiedosos contra o autor de A carne. Ás vezes
sem levar em conta que o cerne da questão deveria ser
centrada no fato de se estar diante de uma obra
ficcional, o litigante de batinas busca elementos
externos para embasar seu parecer crítico:
"Se eu lograsse ter notícia do fojo encantado onde
residia essa Aspásia do século XIX, ia lá fazer-lhe a
minha romaria de amante das ciências. Vocação
insólita, inaudita em S. Paulo, onde as moças, mesmo
puramente literatas, só se podem descobrir com o olhar
telescópico de um bom observador." (nota 6)
Mas o opositor de Júlio Ribeiro também teve seus
momentos de fino trato ao mover o bisturi de analista.
Tentando se desvencilhar da esfera do meramente
pessoal – a atitude do escritor atingido é muito mais
agressiva – ele oferece uma importante contribuição
para que se possam averiguar as condições materiais
existentes em torno do livro em questão:
"A carne é um romance de 278 páginas, elegantemente
impresso em Portugal e editado em S. Paulo pelo
livreiro Teixeira, emérito comprador em grosso de
charqueada. Meus parabéns calorosos...
O livro custa 3$000, como já disse. É provável que a
ª
2 edição, se aparecer, e aparecer expurgada, custe o
ª
dobro. Não será caro. Eu não comprei a 1 edição e
dava 6$ por aquele incontestável primor de estilo, com a
placenta de menos. Mas neste caso o romance reduzido
às meras descrições aberrantes do âmago do enredo, à
dedicatória e à capa."(nota 7)
Estes detalhes externos se tornam relevantes quando
se observa que o êxito da personagem passa pelo crivo
da economia. Depois de formar seu rico cabedal e se
encontrar sozinha, Lenita vai em busca do ex-tutor de
seu pai - o velho coronel Barbosa, que agora cuida da
velhice, da fazenda e do reumatismo da esposa. Na sua
bagagem, o narrador destaca os objetos formadores de
sua sensibilidade, destacando os que ela aprendeu a
amar na companhia do pai: "tinha levado consigo o seu
piano, alguns bronzes artísticos, algum bibelots curiosos
e muitos livros."(nota 8) Nesta lista é significativa a falta
de referência a índices consagrados à vaidade feminina
como joias, roupas e perfumes.
Ao se instalar em seu novo ambiente, começa o ritual de
valorização da leitura. Entre as lembranças do pai presentificadas nos livros em pequenos sinais como
"passagem marcada a unha" e "folha dobrada" – e o
esforço inútil de se fazer entender pela mulher do
coronel, Lenita começa uma tensa relação com os
textos que poderiam diminuir sua solidão.
"Tal entretenimento cansava a moça, e ela recolhia-se
logo aos seu cômodos para ler, para procurar distrair-se.
Tomava um livro, deixava; tomava outro, deixava; era
impossível a leitura" (nota 9)
Esta falta de sintonia é o prenúncio dos distúrbios físicos
que se tornarão o empecilho para que os livros recebam
a mesma atenção de antes. A falta de novas leituras é
uma ameaça à condição espiritual da personagem.
"Uma languidez crescente, um esgotamento de forças,
uma prostração quase completa ia-se apoderando de
todo o seu ser: não lia, o piano conservava-se
mudo"(nota 10)
Após a primeira crise de histerismo e do diagnóstico
médico, o repouso irá normalizar as funções do corpo e
trazer de novo o apetite pela leitura. Mas agora o
narrador aponta uma novidade: a heroína não quer mais
saber de leituras densas, voltadas para informações
científicas. Em troca desses livros "masculinos", Lenita
agora se sente atraída por leituras mais "femininas".
Nestas estão incluídas obras como Paulo e Virgínia, de
Bernardim de Sainte Pierre (1737-1814). Trata-se de um
dos romances mais consumidos no século XIX, com seu
lacrimoso enredo entre dois jovens criados como irmãos
numa ilha das Antilhas. Eles descobrem o amor na
adolescência e terão a morte como inimiga do desfecho
amoroso. É interessante notar que tal receituário
adocicado passe a fazer parte da leitura de uma
personagem que tinha ido muito além do acervo
permitido aos olhos femininos do seu tempo. Há, no
discurso deste narrador, a marcação ideológica das
etiquetas
a
serem
timbradas
nas
"leituras"
ecomendadas para ambos os sexos. Aqui se instaura a
pata do romantismo como a única a ser acariciada pelas
gazelas urbanas.
7
"E Lenita sentia-se outra, feminizava-se. Não tinha mais
os gostos viris de outros tempos, perdera a sede de
ciência: de entre os livros que trouxera procurava os
mais sentimentais. Releu Paulo e Virgínia, o livro quarto
da Eneida, o sétimo de Telêmaco. A fome picaresca de
Lazarilho de Tormes fê-la chorar." (nota 11)
A leitura torna-se, então, um agente modificador da
conduta da personagem. Se antes, ela invadira a sala
de conhecimentos mais consagrados ao homem, "os
gostos viris", agora se purga desse ato, tentando se
situar no perfil de leitora de coisas amenas. Sua fome
de leitura, portanto, só pode ser saciada no gabinete do
romantismo.
Um outro confronto sugestivo se dá entre seu corpo,
espicaçado pelo desejo, e sua mente. Esta tenta
sublimá-lo através do nível intelectual que havia
alcançado. Podemos citar como exemplo desse embate
uma passagem do terceiro capítulo, quando Lenita
começa a observar os contornos de uma estátua
intitulada "Gladiador Borghese". A virilidade com que as
formas masculinas são apresentadas acaba por
perturbar seu pensamento. Ela acha que todo seu
conhecimento é inútil, pois se sente humilhada diante da
força que a imagem esculpida tem ao despertar seus
desejos carnais. Reconhecer tal volúpia é diminuir o
valor de um cérebro que andara às voltas, inclusive,
com matemática transcendental:
"Não passava, na espécie, de uma simples fêmea, e
que o que sentia era o desejo, era a necessidade
orgânica do macho."(nota 12)
Amenizar o braseiro dos instintos através de
sentimentos mais nobres vai ser uma constante na
trajetória da personagem; os livros não podem abarcar
todas as explicações para os fenômenos da vida, mas
ela vai buscá-las sempre que possível em suas páginas.
Assim, diante do pavor da primeira menstruação,
mesmo com as informações dadas pelo pai, são os
livros encarregados em fornecer detalhes mais precisos.
O narrador se arma com tintas do ateliê do naturalismo
para adensar o texto, sapecando-lhe a terminologia
médica.
"Com o tempo, os livros de fisiologia acabaram de a
edificar; em Püss aprendera que a menstruação é um
muda epitelial do útero, conjunta por simpatia com a
ovulação, e que o terrorífero e caluniado corrimento é
apenas uma consequência natural dessa muda." (nota
13)
A volta da saúde e os diferentes rumos da leitura trarão
para Lenita a consciência de sua condição de mulher.
Além de se integrar com a natureza através de idílicos
passeios e caças, passa a cuidar melhor do item
vaidade, aprumando melhor os vestidos e os cabelos e
encharcando-se de perfumes.
A entrada em cena de Barbosa, filho do coronel, que
também vivia metido com livros, é o reforço para que a
leitura não se perca naqueles devaneios e continue
sendo um dos fundamentos básicos para o
encaminhamento do romance. Antes de conhecê-lo,
Lenita traça um retrato idealizado de sua figura, calcada
no recente contato com leituras e releituras mais leves.
Por causa disso, estas novamente ficam suspensas:
"Voltava à casa, estendia-se na rede, com uma perna
estirada sobre a outra, com um livro que não lia caído
sobre o peito, com a cabeça muito pendida para trás,
com os olhos meio cerrados, e assim quedava-se horas
e horas em um lugar cheio de encantos." (nota 14)
Depois do primeiro encontro, desanuvia-se seu castelo,
pois a moça se decepciona com os modos rudes do
cavalheiro. Mas os gosto pela leitura será a razão para
que as falhas de etiqueta e indumentária sejam
relevadas:
"Daí em diante Lenita e Barbosa não se deixaram: liam
juntos, estudavam juntos, passeavam juntos, tocavam
piano a quatro mãos." (nota 15)
São vários os caminhos didáticos que se desdobram a
partir daí. Barbosa vai se tornar o tutor intelectual de
Lenita. Traz para ela conhecimentos que ainda não
haviam entrado em seu considerável bordado de
leituras. O leitor vai junto neste périplo pedagógico, que
nada mais é do que uma amostra grátis da bagagem
intelectual do autor de A carne. O lastro em que as
personagens se amparam é prova cabal disso, pois são
informações extra-literárias que ajudam o texto se
manter dentro dos moldes da escola naturalista:
"Satisfeita a curiosidade científica de Lenita quanto ao
estudo experimental da eletrologia, que ela dantes só
aprendera teoricamente, passaram à química e à
fisiologia. Depois foram à glótica, estudaram línguas,
grego e latim com especialidade: traduziram os
fragmentos de Epicuro, o De Natura Rerum de
Lucrécio." (nota 16)
Esta convivência, entre um homem separado e uma
rapariga em flor, como era se esperar, termina por ser
brindada com o colírio da paixão. A leitura enquanto
fruição é outra vez obrigada ao silêncio:
"Deitava-se, procurava ler, mas debalde. A imagem de
Lenita interpunha-se entre ele e o impresso. Via-o junto
de si, absorvia-se em contemplá-la nessa semialucinação, falava-lhe em voz alta, desesperava,
depunha o livro ou o jornal, estendia-se, virava-se,
adormecia, acordava, riscava o fósforo, olhava o relógio,
via que era noite, tornava a adormecer, tornava a
acordar, e assim continuava até que amanhecia, até que
chegava a hora de levantar-se." (nota 17)
Enquanto isso, Lenita entra numa fase mais aguda entre
indisposição e leituras. Passa o dia "encorujada na
rede", lendo a maior parte do dia, "friorenta, aborrecida,
esplenética", se torturando para definir se seu problema
era "patológico" ou "fisiológico".
Pensando na "voz da carne", Lenita sente-se parte do
elenco das mulheres devassas que circularam pelas
alcovas da história como Pasifae, Fedra, Júlia,
Messalina, Teodora, Impéria, Lucrécia Borgia, Catarina
da Rússia. Tais companhias brotam de sua convivência
com o ritmo alucinante da "lascívia da flora" e do "furor
erótico da fauna".
Com a chegada de Barbosa, suas crises de histerismo e
sua solidão por não ter com que dividir a paixão pelos
livros tiveram um intervalo. E no seu desejo de
ultrapassar limites desafiava, inclusive, o crivo do
casamento como álibi para se obter felicidade. Por isso,
não sente o menor pudor em se imaginar ao lado do seu
amado e de quantos cruzassem seu caminho. Esta
atitude só poderia nascer de uma mente acostumada ao
uso dos mecanismos da lógica:
"Teria amantes, por que não? Que lhe importava a ela
as murmurações, os diz-que-diz-ques da sociedade
brasileira, hipócrita maldizente. Era moça, sensual, rica
8
–
gozava.
Escandalizavam-se,
pois
que
se
escandalizassem." (nota 18)
Barbosa tem um discurso marcado pelo meio termo.
Posiciona-se contra a sociedade, mas cataloga almeja
ficar com Lenita sem afrontar as regras sociais:
"Casar com Lenita não podia, era casado. Tomá-la por
amante? Certo que não. Preconceitos íntimos não os
tinha; para ele o casamento era uma instituição
egoística,
hipócrita,
profundamente
imoral,
soberanamente estúpida. Todavia era uma instituição
velha de milhares de anos, e nada demais perigoso do
que arrostar, contrariar de chofre as velhas instituições;
elas hão de cair, sim, mas com o tempo, com a mesma
lentidão com que se formaram, e não de chofre, como
um relâmpago. A sociedade estigmatizava o amor livre,
o amor ficará fora do casamento; força era aceitar o
decreto da sociedade." (nota 19)
Ao criar personagens com tão alta linhagem intelectual,
Júlio Ribeiro vai além de contar uma simples história de
amor. Inserir o tema do histerismo foi a pitada suficiente
para que o livro ganhasse o rótulo de leitura perigosa
para as relações entre o leitor e sua sociedade. Mas
antes da literatura, os padrões morais tinham sofrido o
ataque arrasador vindo das descobertas científicas. No
afã de dar seu testemunho estético em época tão
tumultuada, o autor logrou os resultados que estariam
ao alcance de sua proposta, embora muitas vezes, ele
pareça se esquecer do leitor ao esmiuçar tanta
erudição:
"A árvore é autóctone da China e do Japão, onde vive
em estado selvagem, é a eribotria, mespilus japonica.
Está destinada a um grande papel no futuro, quando
este país se tornar industrial. A geléia que produz não
tem competidora, e a sua aguardente, coobada, levará
de vencida a famosa kirchwasser." (nota 20)
Dentro da perspectiva anti-romântica em que a obra se
situa, há certamente momentos de exagero. Um deles é
a longa carta que Barbosa envia para Lenita, quando vai
a Santos resolver uma pendência jurídica do pai.
A angústia com que ela procura declarações mais
íntimas – que só aparecem depois de uma exaustiva
descrição da paisagem santista – deve ter sido
compartilhada pelas leitoras da época, já acostumadas
com a rapidez das cartas e bilhetes da dupla AlencarMachado. Nada mais enfadonho do que aquela
enxurrada de palavras a deslizar numa carta escrita em
"muitas folhas de papel paquete, pelure d’oignon
cobertas de letras cursivas em todas as laudas, tudo
numerado muito em ordem." (nota 21)
No momento em que a carta se torna mais pessoal, o
dedo do anti-romantismo se faz presente para dizer que
estas personagens são de outra estirpe, com menos
camada de fantasia no molde que lhes dá forma. Daí a
crueza com que Barbosa expõe seu sentimento em
relação à ausência de Lenita, arrefecendo quaisquer
possibilidades de ser fisgado pelos chavões que
marcam os pares românticos:
"Não sinto saudade da nossa convivência, de nossas
palestras aí no sítio: a expressão saudade tem poesia
demais e realismo de menos. O que há é necessidade ,
é fome, é sede de companhia de quem me compreenda,
de quem me faça pensar... da sua companhia." (nota
22)
O reencontro, que deveria ser consumido em redizer
juras de amor, é marcado pelas considerações em torno
das lições que foram interrompidas por causa da
viagem, criando-se um clima totalmente artificial, como
se os dois enamorados estivessem numa sala de aula:
"- Diga-me, perguntou-lhe a moça, como se chamam
estes pássaros verdes de bico redondo?
• Chamam-se sabiacis.
• No Brasil os psitacídios serão representados
sempre por arás e papagaios?
• Em São Paulo, pelo menos, são.
• Quantas espécies temos de papagaios?
• Ao certo, que eu saiba, seis: tuins, periquitos,
cuiús, sabiacis, que são estes, baitacas e
papagaios propriamente ditos."(nota 23)
São recursos dessa ordem que fizeram da obra de Júlio
Ribeiro um alvo fácil para muitas críticas corrosivas. O
casamento de Lenita para dar um pai ao filho que era de
Barbosa e o suicídio deste, acabaram por fragilizar de
vez a estrutura do romance que tinha no histerismo seu
grande trunfo. O que se salva, então, é a alta dosagem
de erotismo que marca o encontro entre as duas
personagens. A celebração da carne se torna muito
mais forte que o discurso que questiona os valores
burgueses.
"No amor enorme de que se via repassada, Lenita
reconheceu o sentimento tão ridiculamente guindado ao
sublime pelo romantismo piegas, e todavia tão egoístico,
tão animal – a maternidade." (nota 24)
Como ficou estabelecido na primeira parte, procuramos
captar o papel que a leitura exerceu dentro romance.
Ela foi o instrumento que serviu para a edificação
espiritual das personagens, mas não pôde salvá-las de
sua ruína como atestam estas palavras de Lenita em
sua última carta para Barbosa:
"Qual tem sido a minha vida desde que vim da fazenda?
Nem eu mesma sei. Estudar não tenho estudado; fui
sábia, fui preciosa tanto tempo, que achei de justiça darme ao luxo de ser ignorante, de ser mulher um
poucochinho." (nota 25)
Com as exceções do padre Senna Freitas e de Silvio
Romero, que vêem no excesso de conhecimentos de
Lenita um dos defeitos capitais da obra de Júlio Ribeiro,
a maior parte dos críticos volta-se para o histerismo e a
relação deste com os pressupostos naturalistas. O
primeiro a tomar esta direção foi José Veríssimo:
"A carne, nos mais apertados moldes do zolismo e cujo
título por si indica a feição voluntária e
escandalosamente obscena do romance. Salva-o,
entretanto, de completo malogro o vigor de certas
descrições. Mas A carne vinha ao cabo confirmar a
incapacidade do distinto gramático para obras de
imaginação já provada em Padre Belchior de Pontes. É
como ela descrevi em 1889, ainda vivo o autor, o parto
monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo
(138). Mas ainda assim no nosso mofino naturalismo
sectário, um livro que merece lembrado (sic) e que, com
todos os seus defeitos, seguramente revela
talento." (nota 26)
Caminho não muito diferente é seguido por Araripe Jr.,
que dedica ao livro um capítulo no segundo volume de
sua obra crítica onde, entre algumas considerações de
estética, nega a tese do histerismo apresentada no
romance:
9
"O autor apaixonou-se por essa tese difícil de uma
mulher que, de súbito acordando da inocência,
entregou-se às fúrias da carne. Passou-lhe por diante
dos olhos a imagem da Fedra moderna; e o seu pincel,
lançando-se de um lado para outro da tela fulgurante,
fê-la surgir em toda a sua beleza e consciente
hediondez. Não foi, porém, como a muitos outros tem
parecido, a Fedra histérica, mas a Fedra literária. Não é
um caso mórbido de uma outra Magda, mas um caso
perfeitamente fisiológico. E, para isto, basta atender às
cenas críticas, aos pontos culminantes do livro, em que
as pujanças eróticas dessa moça, ilustrada como a quis
fazer o romancista, e, portanto, inacessível aos
prejuízos e pudores extemporâneos, erguem-se,
desenvolvem-se, atingem ao acume, descambam e
resolvem-se por um modo frio, filosófico, - progresão e
resolução
inteiramente
incompatíveis
com
a
fenomenalidade mórbida da histeria maior que se tem
querido atribuir à amante de Barbosa." (nota 27)
Saindo um pouco da discussão clínica, Ronald de
Carvalho lembra que os dois romances de Júlio
Riberiro, A carne e O padre Belchior de Pontes, não
estiveram à altura do seu talento. Em relação ao livro
aqui discutido, ele contrabalança seus aspectos
positivos e negativos:
"A carne é um livro de exaltação, um hino dionisíaco ao
prazer, ao gosto relativista, ao aproveitamento do
momento que passa. Apesar do processo zolista,
evidente que no arranjo das cenas, no exagero das
paixões, na brutalidade das criaturas, e, até, num certo
propósito de confundir o leitor ingênuo; apesar da
grosseria da palavra e do gesto, notadamente violentos
e estranhos, ásperos e pesados, há na Carne uma
poesia instintiva, um penetrante perfume de selva
exuberante e selvagem. É uma obra comprometida pelo
tom geral e escandaloso e atrevido, mas onde, não se
pode negar, sobressaem muitas qualidades apreciáveis
e um forte lirismo." (nota 28)
Agripino Grieco retorna à linha do escândalo em sua
análise sobre a evolução da ficção brasileira e a posição
da obra de Júlio Ribeiro dentro da mesma:
"Com as patifarias de Lenita, esse professor da
Paulicéia serviu pastilhas afrodisíacas aos estudantes
ginasianos, embora depois lhes esfriasse o ânimo com
as austeras lições de complicadíssima gramática.
Pedagogo atacado de delírio erótico, Julio Ribeiro, pôs o
seu casal frascário a vagar por entre as mais lindas
paisagens, à maneira de um magarefe idílico, de um
charcuteiro que amasse as árvores e as flores. Mas,
examinando-se bem, haveria na publicação desse
romance uma espécie de provocação aos puritanos da
província que irritavam o evocador do padre Belchior de
Pontes." (nota 29)
Na mesma linha concisa trabalha Antonio Soares
Amora, que contrapões o tom polêmico do livro e seus
deslizes estéticos:
"Desde o momento do seu aparecimento teve, A carne,
como não podia deixar de ser, o condão de despertar
violentas críticas: é que o romance, intencionalmente
naturalista, dedicado a Emilio Zola, vinha de consagrado
mestre da língua; no entanto chocava, como ainda hoje
choca, pela concepção materialista da vida, onde são
falsos os caracteres, sobretudo Lenita, a protagonista, e
má a tecedura gramatical. Boa no romance apenas a
expressão literária, que é de um admirável escritor.
Apesar de tudo o que evidentemente tem de mau o
romance, enquanto romance, continua a despertar
interesse de certo público, pelo que oferece, já no título,
dos "segredos materialistas" da patologia sexual."(nota
30)
Bem mais cortante é a avaliação de Lúcia Miguel
Pereira. Ela não ameniza os defeitos do livro e encontra
nele qualidades mínimas. Lenita, em sua opinião, é a
causa maior para o desarranjo estrutural da trama
elaborada por Júlio Ribeiro:
"O caso de Júlio Ribeiro é típico. Filólogo e polemista de
valor, autor de um romance histórico do mais
desmarcado romantismo, com cenas à Eurico, deixouse empolgar pelos famosos ‘estudos de temperamento’.
E malgrado seu poder descritivo, só conseguiu compor
um livro ridículo.
(...)
Lenita
é
tão
inexistente,
com
seu
corpo
demasiadamente exigente, como as incorpóreas
heroínas românticas. Como a maior parte das
personagens do nosso naturalismo, foi uma romântica
às avessas, isto é, construída, não segundo a
observação,
mas
de
acordo
com
fórmulas
preestabelecidas, que prescreviam a substituição dos
sentimentos pelos instintos." (nota 31)
A personagem mais famosa de Júlio Ribeiro também
recebeu as agudas considerações de Silvio Romero. Ao
comentar os livros naturalistas lançados em 1888, o
eminente crítico chama a atenção para o papel da
leitura na formação da personalidade difusa da amante
de Barbosa:
"Lenita é uma preciosa de truz, uma pedantesca moça,
a quem a leitura e o estudo desorientado não puderam
sofrear os ímpetos da carne e que se prostituiu
sofregamente com o primeiro que lhe apareceu e que
lhe dava lições." (nota 32)
Como se pôde observar a crítica é unânime em apontar
os defeitos estampados em A carne. Mas ele continua a
ser um romance de referência a certo momento da
cronologia literária brasileira. Conseguiu sobreviver com
a mesmo marcado pela precariedade estética, como
exemplifica estas duas citações de Nelson Werneck
Sodré. A primeira quando diz que " A carne terá longa
vida, apesar de todas as suas deficências."(nota 33) A
Segunda, bem mais ácida, quando explica como o livro
atingiria tal longevidade, mesmo sendo a criação de
Júlio Ribeiro "marginal nas letras, não resiste à menor
análise, seja de forma, seja de conteúdo"(nota 34). O
fato de o romancista ser um conhecedor da língua
serviu, segundo Werneck, para que existissem no texto
"fragmentos aproveitáveis. Isso não importa, entretanto,
para a sua conceituação, não altera o problema
fundamental."(nota 35)
Uma voz um pouco mais solidária vem de Flora
Sussekind ao rebater as opiniões de José Veríssimo e
Lúcia Miguel Pereira. Estes vêem inconsistência nos
romances que abordavam casos de doenças, pois tal
tema estaria distanciado da realidade nacional:
"Seriam, no entanto, tais estudos de temperamento tão
fora de propósito, tão afastados da sociedade brasileira?
Por que fizeram escola? Por que a prefer6encia pelas
‘nevropatas’ em detrimento de personagens coletivos ou
romances cujo cenário fosse mais amplo do que uma
10
típica casa de família? Seria possível, ainda,
considerarmos
gratuita
tal refer6encia quando
associamos à voga cientificista e ao desenvolvimento de
uma medicina do comportamento no final do
século?"(nota 36)
Outro parecer importante veio nas notas homeopáticas
de Alfredo Bosi em sua História concisa da literatura
brasileira. Segundo ele, a criação de romances como A
carne em obediência rígida aos princípios naturalistas,
fez com eles fossem marcados "por desvios
melodramáticos
ou
distorções
psicológicas
grosseiras"(nota 37). Tanto o romance de Júlio Ribeiro
quanto O missionário, de Inglês de Sousa e A
normalista, de Adolfo Caminha, "caíram sob o peso de
esquemas preconcebidos, pouco vindo a salvar-se do
ponto de vista ficcional"(nota 38). Para arrematar , Bosi
diz que A carne, ao lado de O cromo, de Horácio
Carvalho, são "meros apêndices do naturalismo" (nota
39)
É salutar que tanta divergência tenha sido causado por
este ato aparentemente simples: a leitura de um texto. A
análise que o "mal" que a leitura pode provocar, usandose a própria literatura como paciente, não deixa de ser
uma experiência ímpar. Se o legado de Júlio Ribeiro
suscita tanta controvérsia, apesar dos defeitos que tanto
são unânimes em apontar em seu livro, imagine os
tesouros se serem obtidos se tal empreitada
investigativa for feita, por exemplo, em Madame
Bovary e Dom Quixote, dois ícones da relação entre o
prazer e a ruína provocados pela leitura .
Mas isso já é uma outra história, isto é, uma outra
página. Por enquanto, fiquemos com os fragmentos que
o discurso de Júlio Ribeiro foi capaz de fazer para a
construção amorosa deste ensaio.
Campinas, sexta-feira, 13 de novembro de 1998.
12:25
BIBLIOGRAFIA
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brasileira. São Paulo: Edição Saraiva, 1958.
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brasileira. São Paulo: Cultrix, 1993.
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literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguet &
Cia., Editores, 1935.
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Rio de janeiro: Ariel, 1933.
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MEC/Casa de Rui Barbosa, 1960.
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brasileira. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1950
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Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1954.
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no Brasil, Belo Horizonte: Oficina de Livros,
1992.
• _____________________. História da literatura
brasileira. São Paulo: Difel, 1982
• SUSSEKIND,
Flora. Tal
Brasil,
qual
romance? Rio de janeiro: Achiamé, 1984.
•
VERÍSSIMO,
José. História
da
literatura
brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1954
A obra A carne, de Júlio Ribeiro, é um romance
naturalista publicado em 1888 que aborda temas até
então ignorados pela literatura da época, como divórcio,
amor livre e um novo papel para a mulher na sociedade.
O lançamento de A Carne, em 1888, fez grande
sucesso e causou escândalo entre as famílias
paulistanas tradicionais. As jovens eram proibidas de ler
a obra e muitos pediam segredo ao comprar.
O romance por muito tempo lhe figurou de obsceno,
mas o livro é mais do que um mero escândalo sexual.
Foi um dos livros mais discutidos e populares do país, e
ainda hoje são vendidas edições antigas (porém
mutiladas) da obra. A maior qualidade do romancista
não está precisamente em sua ficção, mas em sua
disposição para chocar uma sociedade moralmente
hipócrita que veio por décadas lhe aprisionar à margem
da grande Literatura.
A divergência de opiniões a respeito do romance tem
fundamento. A temática naturalista de Júlio Ribeiro
explicita manifestações de desejo sexual, sadismo,
ninfomania, perversões, nudez e sexo. O olhar sobre o
livro, enfim, sempre se dividiu entre a apreciação
estética e o julgamento moral. Foram vários os vetos
feitos ao livro, entre os quais o mais categórico partiu de
Álvaro Lins que, em 1941, classificou a obra como
"mediocridade intelectual". Manuel Bandeira lhe rendeu
uma análise biográfica cercada de integridade moral,
mas foi um dos poucos a lhe render glórias por sua
posição didática e combativa.
Com uma personagem diferente, ativa com intensos
desejos sexuais, Júlio Ribeiro foi alvo de infinitas
ofensas e injúrias. Por causa de uma mulher "perigosa",
quiçá, as outras denúncias de Júlio Ribeiro ficassem
despercebidas ou os críticos não as queriam ver. A
personagem principal Helena Matoso, mais conhecida
pela alcunha de Lenita, sente fortes concupiscências.
Para muitos críticos, esse intenso desejo, provocado
pela carne, será considerado um “histerismo”, qualidade
que advém de Magdá, a histérica personagem do
romance de Aluísio Azevedo: O homem (1887). Muitos
estudos tecem essa semelhança devido à irritabilidade
ou ao nervosismo excessivo causado pela força da
carne – do desejo sexual – em ambas. Para Magdá,
seria certa a tese da histeria. Para Lenita, não.
A personagem Lenita chocou a sociedade do final do
século XIX, causando-lhe incômodo, que ainda via a
mulher como ser passivo, devendo ser sempre inferior
aos homens. A Carne recebeu vários predicativos à
época, a maioria depreciativos, por causa de cenas
lúbricas. Ademais, o espanto se deu não só por causa
do erotismo da trama, mas também por causa de uma
mulher independente, rica e inteligente – mesmo que
esta estivesse atrás da máscara do sexo apresentado
no romance, sendo difícil sua aceitação para o mundo
de então; essa mulher de vanguarda foi vista pela
miopia enferma da sociedade cujas dimensões
ultrapassavam o natural, e esta, querendo perenizar
conceitos e tabus ultrapassados, deixou que os
momentos eróticos e exóticos fossem o único ponto
11
máximo do romance, encobrindo a importância da
heroína ao contexto social brasileiro e mundial.
A cegueira da sociedade foi contaminada pelo tom
“obsceno” do livro, e o mais importante foi esquecido: o
surgimento de uma mulher independente, em todos os
sentidos, mesmo que seja em romances. O livro era
dissidente e, por isso, obteve alguns poucos panegíricos
e muitas depreciações. Não houve parcimônia a Júlio
Ribeiro. Ele foi um escritor que causou uma espécie de
cissiparidade nos leitores: ao mesmo tempo em que
desdenhavam o romance, liam-no em solipsismo.
Todavia,
mais
tardar,
as
críticas
de
tom
exageradamente leviano tão-somente ajudariam a
promover a obra, pois, através dos julgamentos ferinos,
A Carne foi ganhando mais e mais popularidade. Se não
pelo seu “valor literário”, como julgavam e ainda julgam,
pelo menos, pela polêmica que causou a obra,
introduzindo aos leitores, mesmo sendo com suaves
matizes, ideais progressistas que tanto defendia Júlio
Ribeiro: modernização do Brasil, abolição da
escravatura, a República, entre outros. Assim, até
mesmo aqueles que repudiavam a obra, liam-na às
escondidas, intencionando descobrir o proibido,
querendo ter acesso ao que, socialmente, não era
permitido.
Enredo
O livro conta a história da garota Lenita, cuja mãe
morrera em seu nascimento e o pai educara-a
ministrando-lhe instrução acima do comum. Lenita era
uma garota especial, inteligente e cheia de vida. No
entanto, aos 22 anos, após a morte de seu pai, tornouse uma jovem extremamente sensível e teve sua saúde
abalada. Com o intuito de sentir-se melhor, Lenita
decide ir viver no interior de São Paulo, na fazenda do
coronel Barbosa, velho que havia criado seu pai. Lá,
conhece Manuel Barbosa, o filho do coronel. Manuel era
um homem já maduro e exímio conhecedor das coisas
da vida, vivia trancado no quarto com seus livros e
periodicamente partia para longas caçadas; vivera por
dez anos na Europa, onde se casara com uma francesa
de quem separara-se há muito tempo. Lenita firmara
uma sólida amizade com Manuel, que, aos poucos, vai
se revelando uma tórrida paixão, no início, repelida por
ambos, mas depois consolidada com fervor em nome do
forte desejo da "carne".
O livro narra a ardente trajetória desse romance
singular, marcado por encontros e desencontros, prazer
e violência, desejo e sadismo, batalha entre mente e
carne. A história caminha para um trágico desfecho a
partir do momento em que Lenita, encontrando cartas
de outras mulheres guardadas por Manuel, sente-se
traída e resolve abandoná-lo; estando grávida de três
meses, casa-se com outro homem. Manuel, não
suportando tamanha traição, suicida-se, o que
comprova o resultado final da batalha "mente versus
carne". No início, triunfam os prazeres da carne, no
trágico final, os desenganos da mente.
Comentários
Ronald de Carvalho lembra que o romance A Carne,
não esteve à altura do seu talento. Ele contrabalança
seus aspectos positivos e negativos:
"A Carne é um livro de exaltação, um hino dionisíaco ao
prazer, ao gosto relativista, ao aproveitamento do
momento que passa. Apesar do processo zolista,
evidente que no arranjo das cenas, no exagero das
paixões, na brutalidade das criaturas, e, até, num certo
propósito de confundir o leitor ingênuo; apesar da
grosseria da palavra e do gesto, notadamente violentos
e estranhos, ásperos e pesados, há na Carne uma
poesia instintiva, um penetrante perfume de selva
exuberante e selvagem. É uma obra comprometida pelo
tom geral e escandaloso e atrevido, mas onde, não se
pode negar, sobressaem muitas qualidades apreciáveis
e um forte lirismo."
Agripino Grieco retorna à linha do escândalo em sua
análise sobre a evolução da ficção brasileira e a posição
da obra de Júlio Ribeiro dentro da mesma:
"Com as patifarias de Lenita, esse professor da
Paulicéia serviu pastilhas afrodisíacas aos estudantes
ginasianos, embora depois lhes esfriasse o ânimo com
as austeras lições de complicadíssima gramática.
Pedagogo atacado de delírio erótico, Júlio Ribeiro pôs o
seu casal frascário a vagar por entre as mais lindas
paisagens, à maneira de um magarefe idílico, de um
charcuteiro que amasse as árvores e as flores. Mas,
examinando-se bem, haveria na publicação desse
romance uma espécie de provocação aos puritanos da
província que irritavam o evocador do padre Belchior de
Pontes."
Na mesma linha concisa trabalha Antonio Soares
Amora, que contrapões o tom polêmico do livro e seus
deslizes estéticos:
"Desde o momento do seu aparecimento teve, A Carne,
como não podia deixar de ser, o condão de despertar
violentas críticas: é que o romance, intencionalmente
naturalista, dedicado a Emilio Zola, vinha de consagrado
mestre da língua; no entanto chocava, como ainda hoje
choca, pela concepção materialista da vida, onde são
falsos os caracteres, sobretudo Lenita, a protagonista, e
má a tecedura gramatical. Boa no romance apenas a
expressão literária, que é de um admirável escritor.
Apesar de tudo o que evidentemente tem de mau o
romance, enquanto romance, continua a despertar
interesse de certo público, pelo que oferece, já no título,
dos "segredos materialistas" da patologia sexual."
Bem mais cortante é a avaliação de Lúcia Miguel
Pereira. Ela não ameniza os defeitos do livro e encontra
nele qualidades mínimas. Lenita, em sua opinião, é a
causa maior para o desarranjo estrutural da trama
elaborada por Júlio Ribeiro:
"O caso de Júlio Ribeiro é típico. Filólogo e polemista de
valor, autor de um romance histórico do mais
desmarcado romantismo, com cenas à Eurico, deixouse empolgar pelos famosos ‘estudos de temperamento’.
E malgrado seu poder descritivo, só conseguiu compor
um livro ridículo.
(...)
Lenita
é
tão
inexistente,
com
seu
corpo
demasiadamente exigente, como as incorpóreas
heroínas românticas. Como a maior parte das
personagens do nosso naturalismo, foi uma romântica
às avessas, isto é, construída, não segundo a
12
observação,
mas
de
acordo
com
fórmulas
preestabelecidas, que prescreviam a substituição dos
sentimentos pelos instintos."
A personagem mais famosa de Júlio Ribeiro também
recebeu as agudas considerações de Silvio Romero. Ao
comentar os livros naturalistas lançados em 1888, o
eminente crítico chama a atenção para o papel da
leitura na formação da personalidade difusa da amante
de Barbosa:
"Lenita é uma preciosa de truz, uma pedantesca moça,
a quem a leitura e o estudo desorientado não puderam
sofrear os ímpetos da carne e que se prostituiu
sofregamente com o primeiro que lhe apareceu e que
lhe dava lições."
A estética romântica em Lucíola, de
José de Alencar
Marília Couto*
Introdução
Toda forma literária é, até certo ponto, tradução do
pensamento e do comportamento de uma época, quer
seja para enfatizá-los ou criticá-los. Durante o
Romantismo brasileiro, principalmente em José de
Alencar, vê-se que as obras apresentam essas duas
facetas: criticam, por meio de diversas situações, a
sociedade burguesa, mas permitem a influência da
estética vigente no século XIX no desenrolar do enredo
e nas atitudes dos personagens. Em Lucíola (1862), não
acontece diferente; Alencar constrói uma personagem
(Maria da Glória/Lucíola) que ora simboliza a
degradação burguesa – movida pela importância e força
do dinheiro –, ora é o protótipo da mulher romântica –
movida pelo amor.
A sociedade do tempo de Lúcia é distinguida por
algumas características bastante peculiares, conforme é
possível notar no texto a seguir.
1. A sociedade imperial
Alencar, com seus “perfis de mulheres” (como são
consideradas
as
obras Cinco
Minutos, A
viuvinha, Lucíola, Diva, A pata da gazela, Sonhos
d’ouro, Senhora e Encarnação), retrata o Rio de Janeiro
de meados do século XIX, com seus suntuosos bailes –
polo de exibição da riqueza burguesa, suas belas
mulheres e seus galantes homens.
No Brasil, desde 1822, dá-se início ao regime imperial,
marcado pela Proclamação da Independência (em
1822) e pela Proclamação da República (em 1889).
Nesse período, em que a escravidão (e, portanto, a
compra e venda de escravos) era um tema
extremamente preponderante, a sociedade chamada
burguesa, que havia enriquecido e se fortalecido a ponto
de “dominar a vida política, social e econômica a partir
da Revolução Francesa, se tornava o referencial do
pensamento e dos costumes de uma época”, segundo
Ferreira (1980, p. 108).
Além da escravidão, outro importante aspecto do
período imperial é a influência europeia, principalmente
da França, conforme afirma Alencastro (1997):
Entretanto, o estabelecimento do Segundo
Império na França (1852-70) dá ao Segundo
Reinado um novo tom de modernidade e
confirma o francesismo das elites brasileiras.
Francesismo que ia além da cópia das modas
parisienses expostas nas lojas da Rua do
Ouvidor […] (p. 43).
Uma das influências francesas no campo musical
brasileiro é o apreço ao piano, que se constitui na
“mercadoria fetiche” dessa fase (ALENCASTRO, 1997,
p. 46). Mesmo sem saber dedilhar um teclado, o
importante era ostentar essa peça, que representava
modernidade, requinte e riqueza. A sociedade burguesa
preocupava-se demasiadamente com a exposição de
seus tão desejados objetos.
Mas de que adiantava ter um piano se não houvesse
oportunidade de exibi-lo?
Coincidentemente, o baile, durante o Romantismo, é
hiper valorizado:
Ora, se os romancistas e os poetas assim se
inspiravam no baile era porque ele se
constituía o lixo da nossa vida social e
sentimental no século passado. Vivendo as
mulheres reclusas no âmbito doméstico sob a
vigilância doas pais, sem baile dificilmente
poderia haver namoro. E quando os pais não
arranjavam o casamento da filha ou até do
filho, sem consultá-los, o que se dava com
frequência na época, o baile é que
desempenhava essa função. (BROCA, 1979,
p. 137)
Daí entende-se por que exibir-se era tão importante:
quanto mais riquezas fossem mostradas, em maior nível
de consideração estariam as famílias e, sendo assim,
seus filhos fariam melhores casamentos (ou seja,
somariam riquezas), portanto, a importância da família
em nada seria diminuída.
A sociedade burguesa caracteriza-se por ser dotada de
moral irrepreensível em público, exigia-se das mulheres
que fossem pudicas e recatadas e dos homens que
fossem galantes, distintos, justos e honestos, o menor
desvio de conduta criava oportunidade para comentários
sem fim; porém, esse rígido costume burguês limitavase ao convívio coletivo, pois o íntimo escondia delicados
segredos.
Era assim o tempo das aparências, no qual não
importava exatamente ser, mas parecer ser,
características que tempos depois se vê desembocar na
sociedade contemporânea do Pré-Modernismo.
Não é de se admirar que a protagonista de Lucíola seja
uma prostituta. O Rio de Janeiro imperial era recheado
de bordéis e, ainda que a obra tenha causado impacto
na época em que foi publicada, ela retratava um cenário
absolutamente real. Santos Moraes (1997), importante
crítico literário que se debruçou sobre as personagens
femininas da literatura brasileira, analisa a recepção da
obraLucíola em meados de 1800:
Lucíola foi um romance ousado para a época,
seu tema escandalizou os leitores e a
sociedade de então, pois contava a história
ainda não colocada – até então – em termos
de literatura entre nós – o da prostituição.
Apesar das roupagens românticas, pois a
13
personagem
era
boa
de
coração,
demonstrando uso na abnegação e no
estoicismo com que se sacrificou por sua
família, não seria tão fácil a aceitação de um
livro como esse, que desvendava, em cenas
íntimas e descrições bem marcantes, a vida
de uma famosa mundana. (SANTOS
MORAES, 1971, p. 25)
Alencastro (1997) observa o estado da prostituição no
Rio de Janeiro nessa mesma época e aponta que Lúcia
é uma representação de mulheres reais que se
entregavam à vida nos bordéis ou que se gerenciavam
independentemente:
Com efeito, uma estatística da polícia
observava, em 1859, que na Freguesia do
Sacramento, no centro do Rio, havia perto de
mil prostitutas, das quais novecentas eram
estrangeiras. O bordel mais célebre da corte
em meados do século deve ter sido o da
“Barbada” […] Fora as marafonas de luxo, do
tipo da personagem de Lucíola (1862), no
romance de José de Alencar, houve, primeiro,
uma rede de tráfico de mulheres dos Açores
e, da Madeira […] (op. cit., p. 74)
1.1 A questão do exibicionismo em Lucíola
São várias as passagens que indiciam quanto há na
obra a necessidade de revelar a condição financeira por
meio dos objetos ou trajes. Sabendo-se do grande
refinamento que um piano representava na época, o
mínimo que se espera é que Lúcia, como uma mulher
bastante afortunada, possua um.
Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se
ao espelho para dar os últimos toques ao seu
traje, que se compunha de um vestido
escarlate com largos folhos de renda preta,
bastante decotado para deixar ver as suas
belas espáduas, de um filó alvo e transparente
que flutuava-lhe pelo seio cingindo o colo, e
de uma profusão de brilhantes magníficos
capaz de tentar Eva, se ela tivesse resistido
ao fruto proibido. (ALENCAR, 1987, p. 71)
No momento em que Lúcia resolve viver de forma mais
reservada, sem grandes ostentações, inevitavelmente a
sociedade volta seus olhos para isso e não aceita, que
alguém, tendo o que exibir, queira viver discretamente.
– Não tens sido vista nos teatros e passeios,
já não tens um carro; não és enfim a mulher
do
tom
que
eu
ainda
conheci!
–
Aborreci-me
de
tudo
isto!
– Não te podes aborrecer sem que o mundo
repare!
– Como! Não sou senhora de viver a seu
modo, desde que com isso não faço mal a
ninguém? Se apareço; é um escândalo; se
fico no meu canto, ainda se ocupam comigo.
– Que queres! Há certas vidas que não se
pertencem, mas à sociedade onde existem.
(Id., ibid., p.67)
Ao perceber a exigência da sociedade de que ela
expusesse toda a sua gama de riquezas, Lúcia
imediatamente manda fazer vestidos, compra cavalos,
joias e um camarote no teatro para que todos possam
ver sua volta triunfal às passarelas burguesas. Porém,
esse ato bastante a desagrada, pois não é voluntário, é
apenas um capricho do meio em que ela está inserida.
O
trecho
citado
demonstra
ainda como
Lúcia, mesmo
pertencendo
à
classe
burguesa, é
desprendida
de
bens
materiais
e
da exibição
dos mesmos.
Já
despontam
nela
princípios
que estão na
José de Alencar (1829-1877) constrói
contramão do
uma personagem que ora simboliza a
padrão
do
degradação burguesa – movida pela
século XIX.
importância e força do dinheiro –, ora
é o protótipo da mulher romântica –
2. Lúcia e o
movida pelo amor.
protótipo da
mulher
romântica
Ao contrário do protótipo da mulher típica do
Romantismo, sempre bela, casta, submissa, defensora
da moral e dos bons costumes, as personagens
femininas de José de Alencar se destacam por seu
comportamento
nada
comum:
Aurélia,
de Senhora (1875), é a mulher que, mesmo amando
intensamente Seixas, se deixa dominar pelo desejo de
vingança e vê no casamento a oportunidade perfeita
para chegar ao auge de sua pretensão. Emília,
de Diva (1864), comporta-se de forma semelhante a
Aurélia: ama Augusto (ocultamente), mas diante dele
mantém sua postura altiva e fria a fim de desprezá-lo.
Lúcia, deLucíola (1862), em oposição à castidade
exigida das mulheres na estética romântica, é a meretriz
desejada pelos homens que se entrega a eles como
forma de punição a seus desvios de conduta.
Mesmo contendo aspectos pouco recorrentes nas obras
românticas, na prosa alencariana o amor é o fio
condutor que perpassa todo o enredo nas obras citadas,
é ele que, ao final, ainda diante de todas as
contrariedades, vence.
Em Lucíola, ainda que o autor explore a vida íntima de
uma mulher devassa e desprezível segundo os padrões
comportamentais vigentes na época, a personagem
Lúcia se redime de todos seus pecados pela força e
pureza do amor, segundo é possível observar no trecho
que se segue, de Santos Moraes (1971):
História no mais puro estilo romântico,
fantasiosa, baseada numa idealização de
natureza humana, versava o tema tão caro ao
romantismo, o da mocinha pura e inocente
arrastada à prostituição por um homem mau,
que vendia seu corpo para ajudar a família, e
afinal, quando encontrou um verdadeiro amor
personificado em um homem que a
compreendesse e aceitasse, redimiu-se. (p.
14
28-29)
Note-se que Lúcia não opta pela prostituição, é levada a
ela por conta da sua condição financeira, a força do
dinheiro e a necessidade dele afeta seu destino e a
arrasta à perdição. Porém, a perdição que se apresenta
na obra é apenas física e não espiritual ou emocional,
pois, como uma boa protagonista de um romance
romântico, Lúcia jamais deixa de ser a mulher de
sentimentos e honradez (mesmo que intimamente)
irrepreensíveis.
2.1 Lucíola e a burguesia
À burguesia da época pertencia não só a adoração à
exibição, mas também a rigidez de sua aparente
conduta irrepreensível, limitada à esfera social, jamais à
íntima.
Em Lucíola não acontece diferente, os distintos homens
que de dia passavam elegantemente pela Rua do
Ouvidor, à noite perdiam completamente a compostura
e entregavam-se à toda sorte de prazeres.
– Procedamos em regra. Às duas horas
portanto pára-se a pêndula. Abolição completa
da razão, do tempo, da luz; e inauguração
solene do reinado das trevas e da loucura. Até
lá liberdade completa dentro dos limites da
decência; tudo quanto possa alegrar, como o
gracejo, a cantiga, o brinde ou o discurso, é
permitido; salvo o direito ao respeitável
público feminino e masculino de patear as
sensaborias. (Id., ibid., p. 36)
Evidentemente, a decência e os bons costumes estão
associados à luz, bem como o canto, o cortejo e a
bebida às trevas.
Aos homens, a quem em seu círculo social seria
indecente fazer gracejos a cortesãs, são permitidas
diversas liberalidades.
O embate entre o exterior e o interior dá-se também na
própria personagem Lúcia, que em seu íntimo era pura
e verdadeira, porém, por conta da força da necessidade,
é levada a viver uma situação devassa e imunda, que
em nada coaduna com seu tão casto interior.
Nestes trechos, Lúcia conta a Paulo como foi arrastada
até a prostituição:
– Tudo quanto era possível, meu Deus, sinto
que o fiz. Já não dormia; sustentava-me com
uma xícara de café. Nalgum momento de
repouso ia à porta e pedia aos que passavam.
Pedia para meu pai enfermo, e para minha
mãe moribunda, não tinha vexame. Uma tarde
perdi a coragem; meu irmão estava na agonia,
minha mãe despedira-se de mim, e Ana,
minha irmãzinha, que eu tinha criado e amara
como minha filha, já não dava acordo de si.
Passou um vizinho. Falei-lhe; ele me consolou
e disse-me que o acompanhasse à sua casa.
A inocência e a dor me cegaram: acompanheio.
Lúcia fez um esforço para continuar:
–
Esse
homem
era
o
Couto...
–
Ah!
– Ele tirou do bolso algumas moedas de ouro,
sobre as quais me precipitei, pedindo-lhe de
joelhos que mas desse para salvar minha
mãe; mas senti os seus lábios que me
tocavam, e fugi. Oh! Não posso contar-lhe que
luta foi a minha: três vezes corri espavorida
até à casa, e diante daquela agonia sentia
renascer a coragem, e voltava. Não sabia o
que queria esse homem; ignorava então o que
é a honra e a virtude da mulher, o que se
revoltava em mim era o pudor ofendido.
Desde que os meus véus se despedaçavam,
cuidei que morria; não senti nada mais, nada,
senão o contato frio das moedas de ouro que
eu cerrava na minha mão crispada. O meu
pensamento estava junto do leito de dor, onde
gemia tudo o que eu amava neste mundo. (Id.,
ibid., p. 10)
Lúcia então é justificada por meio de sua história, que a
redime de toda e qualquer culpa que a quisessem
imputar.
3. Marcas românticas em Lucíola
José de Alencar, como bom escritor romântico, possuía
a licença para fantasiar a realidade com o toque surreal
e sentimental da época literária do Romantismo, mas,
ao contrário do que se espera, o autor vai na direção
oposta dessa atitude.
Escritor romântico, José de Alencar tinha o
direito de falsificar a realidade, mas acontece
que não admitia ele esse direito, querendo
provar que se documentava para escrever os
seus romances e que neles não se afastava a
linha justa da verdade. (BROCA, 1979, p. 243)
Por estar tão convicto de sua postura, Alencar vive um
embate entre seu caráter e o comportamento da época;
por conta disso, em suas obras, procura mostrar como o
meio social pode alterar o curso de uma vida,
característica que se adianta gritantemente na escola
literária do Realismo.
José de Alencar intenta mostrar a vida
doméstica e pública de seus protagonistas em
estreita relação com o mundo econômico e
social [...]. A força do dinheiro, na sociedade
urbana do século XIX, que se organiza a parte
de modelos culturais europeus, começa a
exigir padrões de comportamento e de
atitudes que não combinam com o caráter
íntegro do escritor, tão cioso de suas
convicções morais e éticas. (MORAES, 2004,
p. 73)
A forma que Alencar encontra para deter o poder do
dinheiro é a força arrebatadora do amor.
Sob
uma
perspectiva
sociológica,
as
personagens dos romances urbanos de José de
Alencar, frequentemente, são corrompidas pela
desumanização capitalista. Isso ocorre até o
momento em que a dialética romântica do amor
tinha condições de recuperar a normalidade
convencional dessas personagens. (Id., ibid, p.
73)
José de Alencar trabalha sob a ideia de que o amor não
só transforma o ser, mas também o redime e o recupera
de todas as faltas cometidas pelo amor ao dinheiro e ao
poder. O amor constitui-se na saída e na solução para
os personagens aprisionados aos costumes burgueses
e capitalistas.
15
Nos personagens de Lucíola, é possível perceber
semelhante preceito. Paulo, por ter chegado
recentemente ao Rio de Janeiro, ainda não teve sua
visão contaminada pelo conto burguês, conforme é
notável nos trechos que se seguem:
A lua vinha assomando pelo cimo das
montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião,
a alguns passos de mim, uma linda moça, que
parara um instante para contemplar no
horizonte as nuvens brancas esgarçadas
sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do
primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema
elegância. O vestido que o moldava era
cinzento com orlas de veludo castanho e dava
esquisito realce a um desses rostos suaves,
puros e diáfanos, que parecem não desfazerse ao menor sopro, como os tênues vapores
da alvorada. Ressumbrava na sua muda
contemplação doce melancolia e não sei que
laivos de tão ingênua castidade, que o meu
olhar repousou calmo e sereno na mimosa
aparição.
(ALENCAR,
1987,
p.
13)
O primeiro encontro é rápido e ocasional. O
rapaz é recém chegado ao Rio de Janeiro.
Será, portanto, seu olhar sem os preconceitos
da corte que, transcendendo o aspecto físico,
descortinará em Lúcia, Maria de Glória.
(OSTERNE, 2004, p. 83)
Somente quando Lúcia é olhada com amor é que é
possível se ver sua ingenuidade e castidade tão
contrárias às suas atitudes de cortesã; o amor tem o
poder de desvendar o obscuro.
Paulo então se encontra em meio a uma imensa
contradição, aquilo que a sociedade via em Lúcia era
absolutamente diferente da sua visão quanto a ela.
A obra, aliás, é repleta de contradições, principalmente
quanto à fisionomia e às atitudes de Lúcia. Paulo, em
diversas passagens, parece não acreditar no
descompasso entre o ofício de sua amada e sua pura
expressão.
A expressão cândida do rosto e a graciosa
modéstia do gesto, ainda mesmo quando os
lábios dessa mulher revelavam a cortesã
franca e imprudente; o contraste inexplicável
da palavra e da fisionomia, junto à vaga
reminiscência
do
meu
espírito,
me
preocupavam sem querer. (ALENCAR, 1987,
p.
14)
– Que linda menina! Exclamei para meu
companheiro, que também admirava. Como
deve ser pura a alma que mora naquele rosto
mimoso! (Id., ibid, p. 15)
Até mesmo Lúcia, sabendo-se cortesã, nos momentos
em que não está a serviço dos cavalheiros que a
cortejavam, comporta-se como uma senhora casta e
pudica, chegando a corar por conta de um contorno de
seio.
O que porém continuava a surpreender-me ao
último ponto, era o casto e ingênuo perfume
que respirava de toda a sua pessoa. Uma
ocasião, sentados no sofá, a gola de seu
roupão azul abriu-se com um movimento
involuntário, deixando ver o contorno nascente
de um seio branco e, puro, que o meu olhar
ávido devorou com ardente voluptuosidade.
Acompanhando a direção desse olhar, ela
enrubesceu como uma menina e fechou o
roupão; mas doce e brandamente, sem
nenhuma afetação pretensiosa. (Id., ibid., p.
18)
O descompasso entre uma mulher pura no íntimo, mas
imoral no meio social, é uma característica bastante
acentuada no Romantismo, pois o espírito elevado,
fantasioso e apaixonado da época em nada combina
com uma sociedade capaz de julgar apenas com base
naquilo que supostamente enxerga. Como a burguesia
tem seus olhos forrados pelos princípios do capitalismo,
isso bloqueia uma percepção mais emocional.
Destaca-se no enredo outra característica bastante
particular do Romantismo: a evasão. Por meio dela
procura-se “fugir para um mundo imaginário, idealizado
a partir dos sonhos e das emoções pessoais”
(PROENÇA FILHO, 1989, p. 217). Paulo, nas ocasiões
em que está junto de Lúcia, esquece-se das atitudes
promíscuas do amante, chegando até mesmo a
considerá-la como um anjo:
Lúcia concluindo essa narração que a fatigava
em extremo, enxugou as lágrimas e deu
algumas
voltas
pela
sala.
– Se eu ainda tivesse junto de mim todos os
entes queridos que perdi, disse-me com
lentidão, veria morrerem um a um diante de
meus olhos, e não os salvaria por tal preço.
Tive força para sacrificar-lhes outrora o meu
corpo virgem; hoje depois de cinco anos de
infâmia, sinto que não teria a coragem de
profanar a castidade de minha alma. Não sei o
que sou, sei que começo a viver, que
ressuscitei agora. Ainda duvidará de mim?
– Tu és um anjo, minha Lúcia! (ALENCAR,
1987, p. 113)
Dá-se aqui também a idealização da mulher. Lúcia é, na
verdade, um “anjo” que foi levado a praticar atitudes
imorais pela força exclusivamente da necessidade,
jamais por vontade própria.
Lúcia é ainda capaz de transformar a vida de Paulo, faz
dele, de um simples homem vindo da província, um
senhor apaixonado e devotado: é a força da mulher do
Romantismo.
Nasce em Paulo o desejo de reformar e ajustar a
percepção de todos os que o cercam quanto a Lúcia. Há
uma insistência por parte de Paulo em se enfatizar que
Lúcia é alguém respeitável, assemelhada a uma
senhora burguesa da época.
O amor na obra está altamente atrelado à religiosidade.
No instante em que Lúcia percebe que de fato ama
Paulo, ela volta-se para Deus e passa a se chamar
Maria da Glória, nome obviamente pertencente a uma
cultura religiosa.
Importante papel desempenha também o ambiente no
enredo de Lucíola. Lúcia resolve abandonar sua vida de
cortesã e para tanto se muda de sua luxuosa casa na
cidade para um lar modesto num vilarejo afastado. O
contato com a pureza da natureza influencia o
16
comportamento da agora Maria da Glória, que em sua
nova residência esquece-se do passado.
A bondade do amor faz com que Maria da Glória, antes
em trevas, seja repleta de luz, o amor age sobre ela
com poder transformador.
Mas mesmo toda essa luminosidade não é suficiente
para salvar Maria da Glória e seu filho da morte.
Sabendo-se grávida, tem a idéia clara de que
aquela criança não viverá, afinal é feito de um
ventre impuro e de um relacionamento ilícito
(eles não possuem uma união sacramentada).
Adivinha também que esta materialização do
amor a levara à morte. (OSTERNE, 2004, p. 85)
A própria personagem, antes mesmo de ter ciência de
seu estado, prevê a desgraça que seria caso gerasse
um filho em seu ventre.
Tornou-se
lívida,
a
voz
encobriu-se:
– Quando me lembro, que um filho pode gerar
das minhas entranhas, tenho horror de mim
mesma!
A
característica
mais
– Não diga isso,manifesta
Lúcia! Que mulher
deseja
do nãoenredo
gozar
desse de sublime
da
Lucíola é sentimento
a contradição:
maternidade! entre uma sociedade movida
– Oh! Um filho,pelo
se Deus
seria o
capitalmoe desse,
um espírito
perdão da minhamovido
culpa! pelo
Mas sentimento,
sinto que ele
não
entre
poderia viver noum
meu
seio!
o mataria,
eu,
autor
queEuprocura
revelar
depois
de a realidade
o
ter das concebido!
esferas
Não compreendia
essedignas
fenômeno;
ainda
hoje
menos
do meio
social
não a posso explicar
senão pública
por alguma
e uma moral
rígida das
e,
misteriosas afinidades
do corpo
espírito
finalmente,
entrecom
umao mulher
que o habita. (ALENCAR,
103) casta.
impudica e1987,
uma p.
amante
Por fim, Maria da Glória, já em estado de agonia,
confessa que o filho era mais de Paulo do que dela
mesma, já que esse fruto simbolizava um amor justo e
digno como ela não achava capaz de sentir enquanto
cortesã.
4. Considerações finais
Após analisar minuciosamente a obra Lucíola, a
característica mais manifesta do enredo é a contradição:
contradição entre uma sociedade movida pelo capital e
um espírito movido pelo sentimento, entre um autor que
procura revelar a realidade das esferas menos dignas
do meio social e uma moral pública rígida e, finalmente,
entre uma mulher impudica e uma amante casta.
Porém, mesmo diante de tantas diferenças gritantes, o
que vence no final é a luz (advinda do amor) sobre as
trevas, a pureza sobre a devassidão.
É possível perceber nessa obra certos princípios
bíblicos. Lúcia só deixa sua vida como cortesã quando
se volta para Deus e redescobre nela a menina Maria da
Glória; sua pura irmã, Ana, também adentra o enredo
para enfatizar o processo de regeneração de Maria.
Lúcia, por intermédio da morte, é salva de sua vida de
máculas levando com ela o fruto do mais verdadeiro
amor, converte-se, afinal, no anjo que Paulo já previra
que ela era.
Novaes. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
1997, 523 p.
BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultraromânticos. Volume I. São Paulo: Editora Polis, 1979
(Coleção estética: Série obras reunidas de Brito Broca).
FERREIRA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio
Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 1988.
MORAES, Vera Lúcia de. “Uma leitura de Senhora:
embate entre a condição econômica do império e o
idealismo artístico de José de Alencar”. Revista de
Letras. São Paulo, nº 26, volume 1/2, p. 73-78, jan./dez.
2004.
OSTERNE, Ana Maria Remígio. “O universo simbólico
em Lucíola: do paganismo ao cristianismo”. Revista de
Letras. São Paulo, nº 26, volume 1/2, p. 82-87, jan./dez.
2004.
PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na
literatura. 11ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1989, 407 p.
SANTOS MORAES, Antônio dos. Heroínas do romance
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura,
1971.
6. Obras consultadas
ABDALA JÚNIOR, Benjamin e CAMPEDELLI, Samira
Youssef. Tempos da Literatura Brasileira. São Paulo:
Editora Ática, 1988.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira.
34ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1994, 528 p.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio
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______. A formação da literatura brasileira: momentos
decisivos. 1836-1880. Volume 2. Belo Horizonte: Editora
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D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental. Autores e
obras fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática,
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MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira:
romantismo. 4ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2000, 321
p.
* Marília Couto é graduada em Letras pelo Centro
Universitário Fundação Santo André e pós-graduanda
no curso de especialização em Português-Língua e
Literatura da Universidade Metodista de São Paulo.
5. Referências bibliográficas
ALENCAR, José de. Lucíola. 10ª ed. São Paulo: Editora
Ática, 1987, 128 p. (Série Bom Livro).
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida
privada no Brasil 2. Império: a corte e a modernidade
nacional. 5ª reimpressão. Coleção dirigida por Fernando
17
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