O Homem e as Ciências da Natureza
1.
Introdução
N a história d o h o m e m sobre este planeta, as ciências da natureza
não representam mais q u e u m episódio de última h o r a .
H á várias centenas de milhar de anos que o h o m e m se c o n f r o n t a
conscientemente c o m a natureza. Mas só há p o u c o mais d e 300 anos
pratica as ciências dessa natureza n o sentido q u e lhes d a m o s hoje.
Isto significa que a racionalidade d o h o m e m , e m cerca de 9 9 , 9 %
d o seu t e m p o de existência, entendeu a natureza, e viveu suficient e m e n t e feliz c o m ela, c m f o r m a s q u e h o j e c h a m a m o s n ã o científicas
ou pré-científicas.
E, m e s m o d e n t r o destes 3 curtos séculos, a visão científica da
natureza j á teve, mais q u e u m a vez, d e se desdizer c recomeçar.
M e s m o assim, este discutível episódio de última h o r a avassala e
ameaça h o j e o m u n d o .
Pretendemos apresentar alguns comentários gerais estruturados
e m t o r n o d u m esquema s u m a m e n t e singelo, e que apenas considera
as relações recíprocas entre os dois t e r m o s d o título:
Homem,
ciências
da
natureza
A todos os níveis da história se verifica u m a causalidade m ú t u a
entre estes dois t e r m o s . O h o m e m é o criador da ciência. M a s esta
torna-se, depois, criadora d u m n o v o h o m e m (na i m a g e m q u e faz
de si p r ó p r i o , e nas novas necessidades q u e lhe cria), o qual, a esse
o u t r o nível, cria u m a ciência n o v a , e assim sucessivamente.
Há, deste m o d o e a níveis sempre irrepetíveis, u m constante fluxo
c refluxo entre o h o m e m (nos seus pressupostos culturais nos seus
XV
(1985)
DIDASKALlA
27-48
28
DIDASKALIA
anseios, m i t o s e medos) e as ciências da natureza (na sua t r i a g e m
desmitificadora, na sua operacionalidade, na sua capacidade de criar
novas linguagens e impulsionar novas sínteses).
Apesar desta causalidade m ú t u a , o u talvez precisamente através
dela e da progressiva intensificação d o seu c o n f r o n t o , é irredutível
a dualidade dos dois pólos. N e m o h o m e m se p o d e r á jamais explicar
t o t a l m e n t e pela ciência, n e m esta p o d e r á ser t o t a l m e n t e absorvida
pelo h o m e m .
Tentarei buscar alguns dados para justificar este esquema.
2.
Como h o m e m e ciências da natureza entram em confronto
A t é ao séc. xvi, na sua visão holista d o universo e na síntese u n a
d o saber, a física aristotélica encontra-se integrada totalmente d o
lado d o h o m e m . A sua racionalidade está h u m a n i z a d a pelo reconhec i m e n t o d o m a r a v i l h o s o e pela abertura imaginativa.
O m é t o d o é a analogia: p o r ela o invisível se t o r n a visível.
Faz-se u m a leitura alegórica e simbólica d o livro da natureza n o
intuito de encontrar, através dos indícios revelados nas semelhanças
dos seres, a intenção e o p l a n o d o C r i a d o r .
A h a r m o n i a d o universo é completa. E o r e i n o da verdade
subconsciente, da e m o ç ã o poética da percepção parabólica, da
alegoria, da lucidez intuitiva, d o c o n h e c i m e n t o vivencial, da amplidão
imaginativa. E o reino d o h u m a n o .
As religiões, c o m as suas cosmologias e cosmogonias, t ê m u m
papel decisivo neste t i p o d e c o m p r e e n s ã o d o m u n d o : da sua o r i g e m ,
dos seus males e bens, d o seu destino. A única excepção, pelo que
e n t e n d o , é Jesus Cristo, q u e n ã o m o s t r o u qualquer interesse, na
sua m e n s a g e m , p o r explicações deste género. Muitas teologias cristãs,
pelo contrário, c e d e r a m às pressões culturais e construíram c o s m o logias e mitos.
M a s o certo é que, até ao séc. xvi, a física se m a n t e v e inteiramente humana.
N o séc. x v n , a cinemática d e Galileu e a dinâmica d e N e w t o n
a r r a n c a m a física à tutela d o h u m a n o e constituem-na, c o m estatuto
p r ó p r i o e a u t ó n o m o , c o m o ciência da natureza.
Estimulada pelo conceito cristão d e q u e o m u n d o foi criado
p o r u m Ser s u m a m e n t e inteligente segundo leis fixas q u e deverão
ser inteligíveis ao h o m e m , a ciência da natureza inicia a busca de
O
H O M E M E AS CIÊNCIAS 1)A
NATUREZA
29
leis constantes e de sistemas de sinais, inteligíveis e m t e r m o s de
matemática, g e o m e t r i a e física.
C o m e ç a então o m é t o d o científico dito «objectivo», q u e deixa
de olhar p o e t i c a m e n t e para o céu, a intuir as intenções invisíveis
de Deus, e se volta f r i a m e n t e para a terra, a decifrar os seres
visíveis e m si m e s m o s , t o r n a n d o - o s inteligíveis à razão h u m a n a .
Esta a u t o n o m i z a ç ã o das ciências da natureza teve d e pagar, inicialm e n t e , o p r e ç o d o isolamento das grandes questões culturais e d e ser
considerada u m a área m e n o r .
François J a c o b c o m e n t a c o m acerto: «De facto, o início da
ciência m o d e r n a data d o m o m e n t o e m q u e as questões gerais f o r a m
substituídas p o r questões limitadas; e m que, e m vez de se p e r g u n t a r :
C o m o foi criado o universo? D e q u e é feita a m a t é r i a ? Q u a l é a
essência da vida?, c o m e ç o u a perguntar-se: C o m o cai u m a p e d r a ?
C o m o corre a água n u m c a n o ? Q u a l é o percurso d o sangue n o
c o r p o ? Esta m u d a n ç a teve u m resultado surpreendente. E n q u a n t o
as questões gerais apenas recebiam respostas limitadas, as questões
limitadas c o n d u z i r a m a respostas cada vez mais gerais» 1 .
Pressupondo que só é v e r d a d e i r a m e n t e inteligível o q u e f o r
interpretável e m t e r m o s d e mecânica, estabelece-se u m m e c a n i s m o
apriorista que terá de atingir os p r ó p r i o s seres vivos. O estudo
da «bomba» d o coração, da «hidráulica» da circulação sanguínea,
da «dinâmica» d o v o o das aves, etc., j u l g a m m o s t r a r q u e os seres
vivos são redutíveis a parâmetros d e mecânica. O animal cartesiano
t e m de ser m á q u i n a para se t o r n a r inteligível, e salvar a u n i d a d e
d o universo.
As ciências iniciam, assim, a desmitificação da natureza, a trivialização d o maravilhoso, a atomização da percepção holista, a m a t e matização d o simbólico, e a cristalização d o belo nos termos técnicos
da química.
Esta desumanização d o real t o r n a - o operacional, d o m i n á v e l e
rentável, e cria u m a euforia mecanicista.
Mas, passado a l g u m t e m p o , o reducionismo cartesiano começa
a manifestar-se i n a d e q u a d o para a explicação d e m u i t o s aspectos dos
seres vivos, e s u r g e m , c o m o reacção, correntes vitalistas q u e corresp o n d e m , d e certo m o d o , a u m regresso saudoso da ciência da vida
ao â m b i t o d o h u m a n o .
1
FRANÇOIS JACOB, O Jogo dos Possíveis, p. 26, Ed. Gradiva, Lisboa, 1981.
30
DIDASKALIA
E é esse vitalismo d o final d o séc. x v i n que, valorizando suficientemente a originalidade dos seres viventes, justifica o estabelec i m e n t o e o r e c o n h e c i m e n t o d u m a n o v a ciência da natureza
— a biologia2.
Desde então a história das ciências da vida p o d e ler-se e m
termos d u m impulso p e n d u l a r entre correntes mecanicistas e vitalistas, alternando e n t r e si a níveis s e m p r e novos.
A atitude mecanicista está geralmente associada à euforia d u m a
fase d e avanço experimental, e alterna c o m períodos e m q u e u m
d e t e r m i n a d o p a r a d i g m a mecanicista, j á incapaz de satisfazer a necessidade d e explicação global da vida e da sua originalidade, ocasiona
o surgir d u m a n o v a intuição vitalista, que acaba depois p o r construir
o m o d e l o para n o v o progresso experimental, c o m a consequente
atitude mecanicista, e assim p o r d i a n t e 3 .
As fases mecanicistas são operacionais e produtivas, mas desumanizadoras, desmitificadoras e trivializadoras d o maravilhoso. As
fases vitalistas são revitalizadoras, 110 sentido da r e f o r m u l a ç ã o da
força mítica que está n o h o m e m e impulsiona o progresso das
ciências.
Esta alternância, para sempre imparável e nunca repetível, entre
mecanicismos c vitalismos exemplifica a tensão dinamizadora e a
inspiração m ú t u a entre o h o m e m e as ciências da natureza. N o
esquema desta exposição, os vitalismos estão d o lado d o h o m e m , e os
mecanicismos d o lado das ciências da natureza.
A o a u t o n o m i z a r a ciência, o h o m e m passou a defrontar-se c o m
u m interlocutor. A história desse diálogo contará tanto c o m o
sol d e muitas colheitas, c o m o c o m os fantasmas de muitas noites.
E o que resta, ao fim e ao cabo, é q u e o h o m e m j á nunca mais
será o m e s m o .
3.
O homem que se projecta nas ciências da natureza
Sugeriu-se, 11a secção anterior, que as ciências se a l i m e n t a m da
digestão dos próprios mitos q u e elas a j u d a m a recriar. E, de
facto, os deuses d o O l i m p o t ê m sido engolidos u m a u m pelas
2 JACQUES ROGER, Les Sciences de lit Vie dans la Pensée Française du XVIII' Siècle, Ed.
Armand Colin, Paris, 1963.
3
MADELEINE BARTHÎLEMY-MADAULE, L'idéologie du hasard et de la nécessité, Ed. du
Seuil, Paris, 1972, pp. 93-110.
O H O M E M E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
31
ciências da natureza, que, alimentadas pelo seu n u m e , t ê m p r o d u z i d o
novos paradigmas de lógica científica.
As cosmogonias primitivas f o r a m desmitificadas e trivializadas
110 «big bang» d e há 15 mil milhões de anos.
O s m i t o s dos deuses Geo, Eros e Caos, sobre a o r i g e m da vida
110 Planeta, reincarnaram e m moléculas pré-bióticas ( b e m conhecidas
e banais) que, através de amores electrónicos, g e r a r a m estruturas
auto-reprodutoras.
O s mitos sobre a o r i g e m d o c o r p o h u m a n o f o r a m digeridos
e reduzidos, pela biologia molecular, à frieza trivial d u m m e c a n i s m o
químico de m u t a ç ã o .
Os mitos sobre a o r i g e m d o espírito e c o m p o r t a m e n t o h u m a n o s
estão a ser desmitificados, pela sociobiologia, e m genes ancestrais de
animais b e m despretenciosos.
O s segredos insondáveis da vida f o r a m trivializados n u m a m o l é cula escorreita de D N A — q u e não t e m mistérios n e m complicações.
O m i t o alquimista da transmutação universal, assim c o m o as
quimeras, os hipocentauros, os carontes c outras figuras da m e l h o r
mitologia grega, reincarnaram n u m a engenharia genética que, c o m
toda a naturalidade, transfere genes d u m a s espécies para outras sem
ter que invocar quaisquer deuses d o O l i m p o .
O m i t o d o m e l h o r a m e n t o orientado da espécie h u m a n a , j á
intuído p o r Licurgo e pelos alquimistas, vai realizar-se pela e n g e nharia genética d o f u t u r o .
Os deuses d o a m o r , d o ódio, d o r e m o r s o e d o sentimento,
reincarnaram na trivialidade química e na acessibilidade das drogas
psicotrópicas.
O mistério ú l t i m o d o p e n s a m e n t o h u m a n o é simplificado pela
inteligência artificial, pela simulação d e m o d e l o s cognoscitivos e pela
cerebralização robótica da sociedade.
Estes são apenas alguns dos exemplos de conquistas reducionistas
que as ciências da natureza f o r a m a c u m u l a n d o q u a n d o , nas voltas
da história, passaram pela fase mecanicista.
E, n o entanto, se tivéssemos t e m p o de c o m p a r a r e m p o r m e n o r
as feições d e alguns dos mitos antigos c o m as expressões das actuais
ciências da natureza, encontraríamos razão para lhes atribuir u m
autor c o m u m . O m e s m o h o m e m que constrói os m i t o s é o q u e
faz a ciência.
E claro que as ciências da natureza i m p õ e m severas constrições aos mitos h u m a n o s . E p o r isso, muitas dezenas de séculos d e
32
D I D ASK AILA
trabalho á r d u o se t i v e r a m d e suceder para conseguir subjugar a
natureza ao p o n t o d e ela consentir naquilo que, pela engenharia
genética, d e a l g u m m o d o se a p r o x i m a da tese central dos alquimistas, o u das quimeras mitológicas.
Mas o certo é que, das possibilidades imensas e jamais esgotadas
da natureza, o h o m e m selecciona j u s t a m e n t e aquelas q u e interessam
para u m a ciência q u e é sua.
O s caminhos trilhados pelas ciências da natureza são os caminhos
d o h o m e m , e q u e da natureza só t ê m u m c o n s e n t i m e n t o e x t o r q u i d o .
N o entanto, até m e a d o s d o nosso século, as ciências da natureza
n ã o e r a m pensadas assim. A sua história, s o b r e t u d o a da física, era
lida e m t e r m o s d u m a sequência linear e cumulativa de aquisições
progressivas, graduais e s e m p r e objectivas.
A partir da física d e Galileu e N e w t o n , a mecânica dos fluidos
d e Euler, a mecânica celeste de Laplace, e as sucessivas formulações
da mecânica analítica de Lagrange, H a m i l t o n e Jacobi viam-se c o m o
a progressão gradual na elucidação objectiva da natureza e n a cada
vez mais ampla extensão d o seu c a m p o d e aplicação. P o r isso o
cientismo d o século passado acreditava n u m a vitória sem r e t o r n o
d o mecanicismo reducionista.
Mas, j á depois disso, s u r g i r a m Faraday e M a x w e l l a desbancar,
c o m a n o ç ã o d e c a m p o electromagnético, os conceitos n e w t o n i a n o s
da electrodinâmica d e A m p è r e . Einstein revoluciona, depois, os c o n ceitos clássicos d e espaço e t e m p o relacionando-os entre si na relativid a d e espacial. Essa relatividade converte-se depois n u m a o u t r a mais
geral, e recebe u m a c o n f i r m a ç ã o espectacular d u r a n t e o eclipse d o sol
de 1919. E d d i n g t o n anuncia, na R o y a i Society, q u e Einstein tinha razão
e N e w t o n não. Finalmente v e m , e m 1928, a g r a n d e revolução da m e c â nica quântica, q u e p õ e e m questão a p r ó p r i a objectividade da física.
Estas repetidas desilusões acerca da «verdade» das ciências lançaram
u m a justificada suspeita d e falibilidade sobre as mais sólidas conquistas
das nossas actuais e futuras ciências da natureza.
T a m b é m na biologia o d a r w i n i s m o r e v o l u c i o n o u a visão d o
m u n d o vivo, da o r i g e m das espécies e d o p r ó p r i o h o m e m .
E talvez se esteja a p r e p a r a r u m a m u d a n ç a d e p a r a d i g m a
biológico ainda mais drástica. U m conhecido cientista inglês publicou
u m l i v r o 4 , q u e d e f e n d e a existência de «campos morfogenéticos»
4
R . SHELDRAKE, A Neii> Science of Life.
& Brigs, London, 1981.
The Hypothesis of Formative Causation, Blond
O
HOMEM
E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
33
que g o v e r n a m a organização das células, tecidos, órgãos e organismos
através d u m a ressonância m ó r f i c a q u e se transmite à distância d e
uns organismos para outros p o r u m a via n ã o química.
Esta n o v a hipótese n ã o nega q u e o D N A especifique q u i m i c a m e n t e a composição das proteínas. Só que, se os testes a c o n f i r m a r e m ,
o p a r a d i g m a actual da biologia molecular perderá terreno e m m u i t a s
das suas actuais generalizações remotas, e debater-se-á c o m u m
m o d e l o que é mais d o t i p o vitalista.
D a necessidade d e explicar este repetido colapso d e d o g m a s
científicos surgiu, nos m e a d o s d o nosso século, a g r a n d e revolução
epistemológica, liderada p o r T h o m a s S. K ü h n e pela sua n o v a
historiografia das ciências 5 .
Nesta n o v a concepção o progresso histórico das ciências n a t u rais verifica-se através da sucessão de «paradigmas» diferentes.
D a extrapolação e síntese d u m a ampla variedade d e resultados
experimentais esparsos e e m c o n e x ã o c o m o c o n t e x t o cultural e
científico d e cada época, surge p r i m e i r o u m a hipótese d e trabalho
ou m o d e l o , q u e t e m d e se s u b m e t e r aos testes experimentais possíveis na época. Se daí sair a p o i a d o c o m suficiente generalização, esse
m o d e l o é aceite, pela c o m u n i d a d e científica, c o m o «paradigma».
Entra-se e n t ã o na fase da «ciência normal» q u e concentra todos os
seus esforços e m solucionar «puzzles» d e n t r o da lógica d o p a r a d i g m a ,
e p o r isso t o m a e m relação a ele, u m a atitude a t r o z m e n t e d o g m á t i c a ,
apesar da sua falibilidade.
P o r isso, nós lavamos o cérebro aos nossos j o v e n s estudantes,
controlamos-lhes as leituras, e só d a m o s boas notas, bolsas de estudo e o
privilégio de se t o r n a r e m nossos colaboradores, àqueles q u e a d e r e m
ao nosso esquema e f u n c i o n a m nos t e r m o s d o nosso sistema m e n t a l .
Mais tarde, c o m e ç a m a acumular-se anomalias a o p a r a d i g m a ,
e ele entra a vacilar e a p e r d e r credibilidade. V e m a fase revolucionária
da «ciência extraordinária», q u e levará a n o v o p a r a d i g m a e n o v o
d o g m a t i s m o . E o processo recomeça.
Esta n o v a epistemologia das ciências, apesar d e m u i t o c o n t r o vertida n o p o r m e n o r , c o m e ç a a ser g e r a l m e n t e aceite nas suas linhas
gerais, p o r corresponder d e facto à estrutura das recentes revoluções
científicas.
I m p o r t a n t e é n o t a r q u e ela m o d i f i c a a racionalidade das ciências,
transferindo a sua f u n d a m e n t a ç ã o d u m a base lógica para o u t r a q u e
3
T. KÎÎHN, The Structure of Scientific Révolutions,
3
Univ. Chicago Press, 1962.
34
DIDASKALIA
p o d e m o s c h a m a r valorativa. Deste m o d o , torna-a mais p r ó x i m a
da racionalidade típica das ciências d o espírito, e p o r t a n t o mais
h u m a n a . N o nosso esquema geral, este é u m factor que, nos m e a d o s
d o nosso século inclina as ciências da natureza mais para o lado
do homem.
C o m o disse Heisenberg: « W h a t w e observe is not nature itself
b u t n a t u r e exposed t o o u r m e t h o d o f questioning». T a m b é m a biologia, s e g u n d o François Jacob, há m u i t o desistiu de buscar a verdade.
Trata, sim, d e c o n t r u i r a sua verdade, n u m critério de operacionalidade6.
Afinal, a natureza n ã o é u m livro escrito p o r Deus na nossa
língua. N ã o está escrito e m n e n h u m idioma. O h o m e m é que
f o r m u l a as perguntas na sua p r ó p r i a l i n g u a g e m , a qual varia m u i t o
ao l o n g o dos t e m p o s . E a natureza vai respondendo, c o m o pode,
e m cada u m a dessas línguas.
Para estudar a natureza, o h o m e m projecta sobre ela a sua p r ó p r i a
s o m b r a . E, p o r isso, a natureza talvez seja, mais d o que u m t e x t o
a ler, u m a língua a falar.
Mas este «homem» que se projecta n a natureza n ã o deve ser
entendido, n o caso das ciências naturais, c o m o u m indivíduo, mas
sim u m a entidade supra-individual.
E que, c o n t r a r i a m e n t e ao que sucede e m arte e literatura, a criação
científica t e m u m a dependência apenas í n f i m a da personalidade individual d o seu criador. E certo que o progresso científico se deve,
antes d e t u d o , à imaginativa e originalidade d o cientista e m conceber
u m m o d e l o de inteligibilidade d o real. Mas o sucesso desse m o d e l o
não se m e d e pela sua genialidade, mas sim pela sua oportunidade.
C o m o diz François Jacob, « U m a das maiores qualidades d u m
cientista consiste e m saber j u l g a r quais os problemas que estão
amadurecidos para a análise, decidir q u a n d o é altura de explorar
de n o v o u m a velha área e r e t o m a r questões p o u c o t e m p o antes consideradas resolvidas ou insolúveis. E, e m g r a n d e parte, à segurança
de j u l g a m e n t o neste d o m í n i o que corresponde a criatividade da
ciência» 1 .
Q u a n d o , s e g u n d o o r i t m o p r ó p r i o da ciência, o t e m p o está
m a d u r o para u m a dada descoberta, o q u e se verifica é que são
6
7
F. JACOB, A Lógica da Vida, Pub. Dora Quixote, Lisboa, 1971, p. 30.
F. JACOB, O Jogo dos Possíveis, Ed. Gradiva, Lisboa, 1981, p. 26.
O HOMEM
E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
35
vários a apresentá-la simultânea e i n d e p e n d e n t e m e n t e , sem q u e
tenha g r a n d e i m p o r t â n c i a o perfil individual dos descobridores.
E significativo q u e seja u m P r é m i o N o b e l (a q u e m p o r t a n t o
foi reconhecido u m papel d e relevo n o progresso da ciência) a a f i r m a r 8
que se D a r w i n tivesse ficado afogado, j o v e m , n u m dos seus cruzeiros,
Wallace teria anunciado o m e s m o evolucionismo a q u e h o j e c h a m a m o s d a r w i n i s m o . E que se Einstein tivesse sido o canalizador q u e
disse preferiria ser p o r profissão, teríamos h o j e a m e s m a teoria da
relatividade que de facto temos.
Aliás, basta consultar a lista dos Prémios N o b e l . E n q u a n t o o
de Literatura é e v i d e n t e m e n t e concedido, e m cada ano, a u m a só
personalidade, o de Medicina e Fisiologia é s e m p r e atribuído f o r ç o samente a várias.
E q u a n d o há u m génio, c o m o M e n d e l , que, s e g u n d o o calendário d o progresso científico, faz u m a descoberta c e d o d e mais,
ela é ignorada pela ciência d u r a n t e vários decénios, e n ã o contribui
para o seu progresso. A ciência t e m os seus mecanismos e r i t m o
próprios de evolução, os quais não se alteram n e m v e r g a m perante
u m h o m e m isolado, m e s m o q u e seja génio e possa ter razão.
O fazer da ciência, apesar d e ser o b v i a m e n t e u m processo
h u m a n o , parece estar assim d e p e n d e n t e d u m a n o r m a supraindividual.
N ã o é a expressão livre d o cientista. N ã o é criação q u e reflicta
p r i m o r d i a l m e n t e a sua personalidade. E muitas vezes criação i m a g i nativa, mas s e m p r e f o r t e m e n t e condicionada à censura d e paradigmas
científicos.
4.
As ciências da natureza que se projectam no h o m e m
Se é verdade, c o m o acabámos d e considerar, q u e o h o m e m se
projecta nas ciências da natureza, não é m e n o s v e r d a d e q u e estas
constantemente se p r o j e c t a m sobre o h o m e m e lhe m o d i f i c a m a
i m a g e m que ele tinha de si p r ó p r i o .
As ciências da natureza f o r a m alterando p o r c o m p l e t o a r e p r e sentação q u e o h o m e m tinha da sua o r i g e m , da sua posição n o
cosmos, da sua natureza, d o seu c o m p o r t a m e n t o especificamente
h u m a n o e d o seu relacionamento c o m os outros seres vivos.
Igualmente m o d i f i c a r a m a sua atitude perante o seu p r ó p r i o c o r p o
8
F. JACOB, A Lógica da Vida, Publ. D o m Quixote, Lisboa, 1971, p. 25.
36
D1DASKALIA
c perante a doença, assim c o m o p e r a n t e a maneira de utilizar, na
sua vida, certos seres vivos c o m o os microrganismos.
As ciências da natureza criaram, n o h o m e m , necessidades novas
e n o v o s anseios q u e antes n ã o sentia. E f o r a m responsáveis p o r
i m p o r t a n t e s modificações sociais na família, nos costumes, na d e m o grafia, na indústria, na e c o n o m i a , n o direito, e na convivência internacional 9 .
O h o m e m entende-se, agora, c o m o mais radicalmente inserido
na terra d o q u e antes j u l g a v a o u até gostaria de se imaginar. N ã o
há, n o seu c o r p o , u m só e l e m e n t o q u í m i c o original, que não
existisse j á , m u i t o antes dele, n o cosmos
C o m p a r t i l h a , c o m os
outros seres vivos, a m e s m a l o n g a história evolutiva. A análise
molecular da biologia h u m a n a n ã o revela nele qualquer diferença
básica e m relação aos outros primatas. O seu c o m p o r t a m e n t o , m e s m o
n a q u i l o q u e ele considerava mais g e n u i n a m e n t e espiritual e h u m a n o ,
radica-se, afinal, c o m o nos ensina a Sociobiologia, e m genes ancestrais d o r e i n o animal.
M a s o certo é que, n o m e i o d o o r g u l h o evolutivo das espécies,
que, p e r a n t e a selecção natural, todas l u t a m p o r serem as mais fortes
e as mais dotadas, o homo scientijicus parece ter sido o único animal
q u e teve a h u m i l d a d e d e confessar a trivialidade da sua o r i g e m e
da sua c o n t e x t u r a .
E n o dia e m q u e as ciências da natureza conseguiram finalm e n t e desintegrar o o r g u l h o filosófico d o homo sapiens até a o ú l t i m o
á t o m o d o l o d o bíblico d o n d e p r o v e i o e d o «pó levantado» que ele é,
nesse dia f o r a m dados, a essas ciências da natureza, o p o d e r e o
d o m í n i o sobre os mistérios da vida. D e p o r m e n o r e m p o r m e n o r ,
d e reacção e m reacção, n u m a sequência rigorosa da o r d e m pela qual
as pesquisas t i n h a m de ser conduzidas, a bioquímica foi desvend a n d o , u m a u m , os mecanismos químicos da vida. E a biologia
molecular conseguiu, nos últimos 30 anos, identificar e caracterizar
q u i m i c a m e n t e e n a sua estrutura física, os m u i t o s genes que são os
determinantes das várias características dos seres vivos. E ao analisar
e m p o r m e n o r o seu f u n c i o n a m e n t o , e n c o n t r o u a explicação da
perpetuação, expressão e regulação da vida n o nosso planeta.
Este c o n h e c i m e n t o dos mecanismos moleculares da vida chegou,
mais r e c e n t e m e n t e a tal p o r m e n o r , q u e p e r m i t i u passar à fase sintética
da construção de novas f o r m a s d e vida.
9
F . GROS, F . JACOB e P . ROYER, Sciences
française», Paris, 1979.
de la vie
et société,
«La
Documentation
O H O M E M E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
37
É j á possível sintetizar alguns genes p o r p u r a química orgânica,
e introduzi-los depois n u m o r g a n i s m o d e m o d o a q u e aí f u n c i o n e m
c se p e r p e t u e m . Deste m o d o se conseguiram, e j á estão c o m e r c i a lizadas, bactérias q u e p r o d u z e m , e m condições a l t a m e n t e económicas,
insulina h u m a n a e outras h o r m o n a s h u m a n a s de interesse terapêutico
e comercial.
É possível, p o r u m a cirurgia genética e x t r e m a m e n t e precisa,
que se c h a m a engenharia genética, transferir genes d e u m ser v i v o
para o u t r o tão diferente dele c o m o u m a bactéria o é d u m h o m e m .
Está a ser possível, p o r estas técnicas, t r a n s f o r m a r hereditariam e n t e plantas e animais de acordo c o m interesses da p r o d u ç ã o e
da indústria.
Vai ser possível, 110 ano 2000, fazer terapia genética n o caso
de algumas enfermidades humanas, i n t r o d u z i n d o genes bons e m
células d u m indivíduo q u e os tinha deficientes.
Através da engenharia genética, m u i t o s c o m p o s t o s d e e n o r m e
interesse comercial e industrial estão j á a ser p r o d u z i d o s , e m c o n d i ções altamente económicas, p o r bactérias e outros m i c r o r g a n i s m o s .
Esta n o v a revolução biológica implica grandes reconversões da
Indústria, acarreta importantes m o v i m e n t a ç õ e s económicas e sociais
internacionais, levanta novos problemas legais e éticos, obriga a
Sociedade a opções fundamentais, e constitui-se n u m a n o v a f o r m a
de P o d e r q u e está a forçar os g o v e r n o s dos p o v o s a investir nesta
área e a definir u m a política científica e tecnológica.
Para justificar estas últimas afirmações n ã o se t o r n a necessária
u m a longa exposição, pois os factos são b e m c o n h e c i d o s 1 0 . L i m i t e m o - n o s a e n u m e r a r os mais salientes q u a n t o às influências das
ciências da natureza.
á) na r e p r o d u ç ã o h u m a n a e família: j á há mais d e 30 000
rapazes e raparigas q u e f o r a m originados n ã o p o r u m acto
sexual mas p o r u m acto científico-tecnológico; mães h o s p e deiras; experiências e m embriões;
h) n o ambiente: i n t r o d u ç ã o deliberada, n o a m b i e n t e , de m i c r o r ganismos, plantas e animais, modificados p o r engenharia
genética; equilíbrios ecológicos; novos p r o d u t o s potencialm e n t e mutagénicos;
c) n o d o m í n i o jurídico-social: n o v o direito de patentes; r e f o r mulação d o direito de sucessão, paternidade, direito dos
10
Ver Revista Commutiio, todo o n.° 6 do ano I, Lisboa, 1984.
38
DIDASKALIA
d)
e)
/)
nascituros. N o v o s equilíbrios Universidade-Industria e investigação básica-investigação aplicada. Exploração social dos
p r o b l e m a s d e segurança;
e m E c o n o m i a : revolução bio-industrial, novas empresas e
absorção p o r multinacionais; p r o b l e m a s da conversão de
tecnologias produtivas, desequilíbrios económicos internacionais, neo-colonialismos industriais e m o n o p ó l i o s tecnológicos. Alterações na repartição económica, na p r o d u ç ã o
de m u i t o s bens, sua transformação, transporte, troca e custo,
assim c o m o na distribuição de postos de trabalho. N o v a s
políticas económicas;
n o p o d e r político: k n o w - h o w genético passou a significar
P o d e r . P l a n o francês 1983-1985 investe, e m biotecnologia,
2 , 5 % d o p r o d u t o nacional b r u t o . Necessidade, para construir E u r o p a una, de investir na periferia e m investigação
científica;
e m Ética: n o C o n s e l h o da E u r o p a : «Ad hoc C o m m i t t e e of
experts o n ethical and legal p r o b l e m s relating to h u m a n
genetics». N a O . C . D . E . : «Ad h o c g r o u p o n safety and
regulations in Biotechnology». Várias comissões internacionais e nacionais d e Bioética.
Para lá de todos estes factos que tão p r o f u n d a m e n t e afectam
a vida social d o h o m e m , há outros q u e vão directamente modificar
a sua vida biológica d o f u t u r o .
U m deles t e m a ver c o m o serem transferidas para as possibilidades da técnica (e, p o r t a n t o , para o d o m í n i o d o h o m e m ) muitas
opções q u e até agora e r a m exclusivamente tomadas pela natureza.
D e entre os vários exemplos, o u j á dados o u que se p o d e r i a m
acrescentar, fixemo-nos n a capacidade d e interferir na evolução
f u t u r a da espécie h u m a n a .
Para a l é m dos casos j á citados de terapia génica (em q u e se
alteram genes para erradicar u m a doença), p o d e pensar-se n u m a
engenharia genética d e «melhoramento», q u e reduza as limitações
h u m a n a s o u a u m e n t e capacidades daqueles que n ã o são p r o p r i a m e n t e
e n f e r m o s (apesar da e n o r m e dificuldade e m d e m a r c a r c o m exactidão
o n d e acaba u m a e n f e r m i d a d e e o n d e começa u m a limitação).
O i m p o r t a n t e é que, para a definição daquilo q u e p o r v e n t u r a
signifique «melhorar» a nossa espécie, vai a população h u m a n a
dividir-se necessariamente, s e g u n d o as tão diferentes concepções c o m
O H O M E M E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
39
respeito ao sentido, significado, e destino d a vida h u m a n a . Essas
diferenças passarão, nos anos 2000, d o a c a d e m i s m o dos filósofos c
d o segredo pacífico das intenções, para a rua, para as grandes decisões sobre quais, e c o m q u e características, v ã o ser os seres h u m a n o s
d o p r ó x i m o século.
Já há bancos de espermatozóides h u m a n o s congelados, e óvulos
h u m a n o s recém-fertilizados in vitro, t a m b é m congelados, à espera
de modificações p o r engenharia genética. Pela sua posterior i n t r o dução e m mães hospedeiras, p o d e r i a vir a ser m o n t a d a u m a indústria
de fabricação de seres h u m a n o s c o m as características consideradas
desejáveis. Quais serão elas, é o g r a n d e p r o b l e m a .
N ã o é impensável, p o r e x e m p l o que a l g u é m estivesse interessado
e m lançar u m tipo de h o m e m , fisicamente são e c o m apetência para
o trabalho, mas d i m i n u í d o nas capacidades de decisão e d e protesto.
Seria u m a neo-escravatura de desenho biológico. N o p ó l o oposto,
eugenismos de tipo racista e c o m agressividade hipertrofiada seriam,
p r o v a v e l m e n t e , t a m b é m p r o g r a m á v e i s , e p o d e r i a m , precisamente
p o r essa hiperagressividade, eliminar as outras raças e d o m i n a r o
planeta. M u i t o s outros cenários d e v e m t a m b é m ser considerados.
Para discutir c tentar regular estas e outras situações, estabeleceram-se comissões internacionais n o Conselho da E u r o p a , O . C . D . E . ,
c outras instituições. M a s q u e m as f r e q u e n t a , c o m o eu, conhece a
dificuldade e m vencer a força d o c h a m a d o a u t o m a t i s m o tecnológico
que tende a que t u d o o q u e se t o r n a tecnicamente viável seja
executado, antes m e s m o de os juristas t e r e m t e r m i n a d o as suas
longas discussões sobre novas explicitações dos Direitos d o H o m e m 1 1 .
T e n t a n d o resumir, talvez pudéssemos dizer q u e as ciências da
natureza, ao projectarem-se sobre o h o m e m , acabaram p o r transferir,
para ele, m u i t o s poderes q u e p e r t e n c i a m só à natureza.
D e r a m - l h e o p o d e r de desintegrar o á t o m o , e de reintegrar a
sua energia e m n o v o s p r o g r a m a s energéticos.
D e r a m - l h e o p o d e r de desintegrar os genes, e d e os reintegrar,
pela engenharia genética, e m novas f o r m a s recombinadas d e vida.
D e r a m - l h e o p o d e r de desintegrar o processo da r e p r o d u ç ã o
h u m a n a , e de reintegrar alguns dos seus e l e m e n t o s e m bébés
p r o v e t a que, d o u t r o m o d o , n ã o existiriam.
11
Ver todo o numéro 195 da Revista Project: Vers la «procréatique» — une société
ou les enfants viennent par la science, Paris, 1985.
40
DIDASKALIA
D e r a m - l h e o p o d e r d e desintegrar a bricolagem lenta da
evolução das espécies (incluindo d o p r ó p r i o h o m e m ) , e d e reintegrar
os seus elementos, pela engenharia genética, n u m a evolução artificial mais rápida e orientada.
D e r a m - l h e o p o d e r d e desintegrar órgãos (ou parte deles) d o
c o r p o animal o u h u m a n o , e d e os reintegrar, através de transplantes,
n o u t r o s organismos.
D e r a m - l h e o p o d e r d e desintegrar os processos cognoscitivos,
a l i n g u a g e m e a m e m ó r i a , e d e reintegrar os seus elementos i n f o r m a t i v o s e m sistemas c o m p u t o r i z a d o s de linguagens mais rápidas
e m e m ó r i a s mais eficientes.
Mas, ao m e s m o t e m p o q u e a ciência transfere para o h o m e m
t o d o este p o d e r da natureza ensina-lhe t a m b é m que, n o seu p r ó p r i o
interesse, o seu d o m í n i o n ã o deverá ser despótico mas sim respeitador
dos delicados equilíbrios ecológicos, orgânicos e celulares que caracter i z a m a vida sobre a terra. O f o g o d o O l i m p o , r o u b a d o violentam e n t e , trará grilhões a P r o m e t e u . O h o m e m não é o Senhor absoluto
d a natureza, e terá q u e se abster d e c o m e r os f r u t o s d u m a dada
á r v o r e , se n ã o quiser ser expulso d o Paraíso.
O s cientistas são m u i t o mais conscientes e m u i t o mais cuidadosos destes aspectos d o q u e pensa certo p ú b l i c o e certos jornalistas.
Só que, para e n t e n d e r isto m e s m o , seria preciso u m p r o f u n d o c o n h e c i m e n t o d e especialização científica e u m l o n g o treino laboratorial
q u e desse a i m a g e m d e c o m o se faz a ciência. E essas actividades
seriam desmobilizadoras da exploração jornalística dos grandes m e d o s
ancestrais e das grandes ignorâncias públicas, q u e são atitudes m u i t o
m a i s populares.
P o d e r i a julgar-se que aqui ficasse esgotado este capítulo sobre
a projecção das ciências naturais sobre o h o m e m — sobre a sua
i m a g e m d e criador, sobre o d o m í n i o das suas coordenadas sociais
e d o seu f u t u r o genético.
M a s h á mais. E isso refere-se às pretensas incursões libertadoras
q u e as ciências da natureza a n u n c i a m , p a r a lá d o h o m e m , na
p r ó p r i a área das ciências humanas, c o m o sociologia, ética, e até
religião.
O f u n d a d o r da Sociobiologia, E d w a r d O . W i l s o n , diz, quase
t e x t u a l m e n t e , q u e os filósofos, sociólogos, teólogos, e moralistas
p o d e m pedir a r e f o r m a e ir descansar e m paz, p o r q u e os problemas
q u e eles l o n g a m e n t e p r o c u r a v a m resolver c o m os seus m é t o d o s
O H O M E M E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
41
primitivos, vão agora ser cientificamente explicados a partir da
herança h u m a n a d e genes animais que e v o l u í r a m s e g u n d o leis h o j e
conhecidas. Só u m a o u o u t r a citação para e x e m p l o : « W e h a v e c o m e
to the crucial stage in the history o f b i o l o g y w h e n religion itself
is subject t o the explanations o f the natural sciences. As I h a v e
tried to s h o w , sociobiology can account f o r t h e v e r y origin o f
m y t h o l o g y b y t h e principle of natural selection acting o n the
genetically evolving material structure o f the h u m a n brain» 1 2 .
«I believe that religious practices can be m a p p e d o n t o the t w o
dimensions o f genetic advantage a n d e v o l u t i o n a r y c h a n g e » 1 3 .
E patente q u e esta euforia pan-biologizante n ã o está a ter n e m
vai ter a adesão universal dos que p e n s a m e m p r o f u n d i d a d e os grandes
problemas. M e s m o assim, a Sociobiologia t e m , na pena d e W i l s o n ,
a t r e m e n d a força de ser l i n d a m e n t e descrita nos t e r m o s d u m a
fascinante épica libertadora q u e se constitui e m m i t o .
A l é m disso, a Sociobiologia terá p r o v a v e l m e n t e u m lugar válido
entre as ciências d o a n o 2000. O estudo científico d o c o m p o r t a m e n t o
animal, que t e m p r o g r e d i d o espectacularmente nos últimos dez anos,
p õ e e m relevo q u e m u i t o s tipos de c o m p o r t a m e n t o h u m a n o q u e se
j u l g a v a serem apanágio da espiritualidade da nossa espécie, e n c o n t r a m flagrantes paralelos n o c o m p o r t a m e n t o animal.
A partir desse paralelismo, e d o c o n h e c i m e n t o da base genética
de m u i t o s c o m p o r t a m e n t o s animais (por ter sido eliminada a possibilidade de aprendizagem o u imitação), a Sociobiologia a r g u m e n t a
que os nossos genes de o r i g e m animal t ê m , e m contraposição ao
a m b i e n t e social, u m a acção d e t e r m i n a n t e d o nosso c o m p o r t a m e n t o
g e n u i n a m e n t e h u m a n o m u i t o m a i o r d o q u e aquela q u e nós j u l g a ríamos o u gostaríamos q u e tivessem.
5. H o m e m e ciências da natureza em interprojecção: o futuro
Para m a i o r clareza de exposição, separei e m capítulos diferentes
(os dois anteriores) aquilo que, na realidade, se passa e m subtil
simultaneidade. S o b r e t u d o aos níveis mais recentes desta c o n f r o n tação, h o m e m e ciências da natureza estão e m interacção tão constante
»2 E. O . WILSON, OU Human Nature, Harvard Univ Press U S A , 1978 p. 192.
13
Ibid., p. 172.
42
DIDASKALIA
e conjunta, que p o r vezes é difícil distinguir os dois sentidos dessa
influência m ú t u a .
Q u a n d o a ciência, n o decurso d o seu c a m i n h o p r ó p r i o d e
evolução (a que j á aludi) o b t é m resultados que, i n d e p e n d e n t e m e n t e
d o objectivo q u e os m o t i v o u , dão esperanças de serem aplicáveis à
satisfação d u m anseio ancestral e p r o f u n d o (mas talvez inconsciente)
da h u m a n i d a d e , há e n t ã o u m a f o r t e pressão h u m a n a para inflectir
a ciência nesse sentido. E e m consequência da viabilidade técnica,
o anseio torna-se necessidade.
A descoberta das enzimas de restrição, p o r e x e m p l o , fez-se n u m
c o n t e x t o científico que não visava qualquer engenharia genética.
Visava sim a análise mais fina d o material genético c a busca, para
isso, de enzimas que cortassem o D N A e m pontos específicos. Mas
q u a n d o se verificou o m o d o c o m o algumas dessas enzimas c o r t a m
o D N A , vislumbrou-se a possibilidade d u m a operação diferente,
que é a de transferir genes de u m o r g a n i s m o para o u t r o . E c o m o
isso estava inscrito n u m anseio ancestral de construir novas f o r m a s
d e vida, l o g o a ciência fatalmente inflectiu para a engenharia genética.
O m i t o t o r n o u - s e ciência, c o anseio necessidade.
Foi sobre possibilidades entrevistas pelas ciências médicas que
interesses da indústria e da publicidade a c t u a r a m de m o d o a transf o r m a r finalmente o desejo d e saúde n o r e c o n h e c i m e n t o público
d o «direito à saúde».
Foi sobre a antevista viabilidade científica d e sintetizar c o n t r a ceptivos químicos, que o anseio de limitação da natalidade desenc a d e o u a investigação nessa área e apressou o caminhar para o
direito à p a t e r n i d a d e responsável e à libertação da m u l h e r .
Foi perante fertilizações in vitro e m animais, que o i n c o n f o r m i s m o
h u m a n o e m face da infertilidade i m p u l s i o n o u a intensa investigação
conducente ao bébé proveta. U m a vez que este se t o r n o u tecnic a m e n t e possível, vai-se t r a n s f o r m a n d o e m necessidade e «direito»
o anseio dos inférteis de t e r e m u m filho.
Bastem estes poucos exemplos para inculcar a ideia de que as
influências m ú t u a s entre h o m e m e ciências da natureza são múltiplas,
subtis, e se d ã o p o r vezes e m cadeia.
Seria i n g e n u i d a d e pensar r o m a n t i c a m e n t e que o principal m ó b i l
d o progresso das ciências naturais fosse h o j e o desejo cândido de
conhecer o m u n d o . M u i t o s progressos das ciências da natureza vão
despertar n o coração d o h o m e m u m desejo adormecido, c transf o r m á - l o e m necessidade.
O H O M E M E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
43
Mas sucede que n e m sempre esses anseios ancestrais estão isentos
de crítica.
O s ódios da guerra, os interesses económicos exacerbados m u i t o
para lá da justiça m í n i m a , as concorrências desleais, são alguns dos
muitos exemplos d e anseios ancestrais que, p o r u m lado, t ê m sido
potenciados pelo progresso científico e, p o r o u t r o , t ê m i m p u l s i o n a d o
importantes descobertas da ciência.
H o j e , que a investigação científica c m áreas de fronteira é u m
e m p r e e n d i m e n t o m u i t o dispendioso, altamente sofisticado e m aparelhagem, t r e m e n d a m e n t e exigente c m preparação e k n o w - h o w , e f o r t e m e n t e competitivo, cada vez se torna m e n o s viável que o fazer da
ciência seja u m processo individual, isolado e independente.
Só e possível dar u m a válida contribuição científica t e n d o u m a
forte inserção 110 c o n t e x t o social da c o m u n i d a d e científica internacional e da sua maquinaria. E preciso ter e n t r a d o nos seus «clubes».
E p o r q u e a ciência t e m hoje fortes repercussões sociais a vários
níveis, c interessa p o r vezes ao P o d e r e às multinacionais, a c o m u n i d a d e
científica está cada vez mais enredada na política científica e nas suas
estratégias. E estas estão fatalmente entretecidas d e todos os cultos
pagãos d o nosso t e m p o , c o m o o egoísmo, o interesse, o curriculismo, a ambição, a ganância, a c o r r u p ç ã o d o p o d e r , o o r g u l h o d e
m u d a r a face da Terra e d o m i n a r o m u n d o .
Apesar da rectidão de m u i t o s indivíduos, e da inocência d e classes
inteiras que, absorvidas pela intensidade d o trabalho d u r o , n e m
sequer p o d e m pensar nestas coisas, a estrutura d o m i n a n t e está
viciada, n o alicerce das suas motivações, p o r este i m p é r i o d o M a l
que reina, subterrâneo, n o coração d o h o m e m .
O q u e acontece é que o rápido d e s e n v o l v i m e n t o científico-tecnológico das últimas décadas veio, mais d o q u e a elucidar a
natureza, a revelar o h o m e m e desenterrar os seus anseios subconscientes. F. essa revelação n ã o foi p r o p r i a m e n t e lisonjeira.
E p o r isso, certo público reage, rejeita esta v e r d a d e d o h o m e m ,
e investe e m anti-cientismo. E entra e m pânico.
Mas o mal não está na ciência, n e m devia estar e m que se diga
a verdade. O mal está n o h o m e m .
O f u t u r o não parece brilhante. C o m e ç a a entender-se que o
desenvolvimento científico desencadeia u m apetite d e bens m a t e riais q u e não p o d e saciar. A ciência cria mais necessidades d o q u e
aquelas que p o d e satisfazer.
44
DIDASKALIA
A lógica d o «quanto mais melhor» é u m a corrida imparável.
Acumular-se-á. E a acumulação alimenta a c o m p u l s ã o a consumir.
N u n c a chegará o m o m e n t o e m que, e m vez d e c o m p e t i r , se
compartilhe.
As tecnologias d e p o n t a t e n d e m a acentuar a desigualdade
económica. Esta converte-se n o símbolo da diferenciação individual,
c o p o d e r d e possuir sobrepõe-se a toda a proclamação académica
de igualdade.
A lógica da tecnologia leva a situações e m que a pessoa fica
sacrificada à sociedade, a criatividade aos p r o g r a m a s , o t e m p o vivido
ao t e m p o m e d i d o , a imaginação ao d o m í n i o d o perito, o significado à f u n ç ã o , a vida vivida à vida ganha.
T e m e - s e a cerebralização robótica da sociedade e a aporia radical
da tecnologia.
E c o m este m u n d o técnico — o «Tecnocosmos» 1 4 — t o r n a d o
a u t ó n o m o e d o m i n a d o r q u e o h o m e m se vai c o n f r o n t a r n o n o v o
m i l é n i o que j á desponta.
C o n c r e t a m e n t e , os factos passam-se, e m geral, de a c o r d o c o m
o esquema seguinte:
1. O s progressos científicos e técnicos t o r n a m viável, p o r
e x e m p l o , a r e p r o d u ç ã o h u m a n a artificial.
2. E m face dessa exequibilidade, há q u e m requeira, nos hospitais, q u e essas técnicas lhe sejam aplicadas. O u inseminação artificial
c o m o esperma d o m a r i d o d e f u n t o . O u m u l h e r e s solteiras q u e
reivindicam o «direito» à m a t e r n i d a d e sem intervenção directa d u m
c o m p a n h e i r o masculino. O u mulheres q u e p r e t e n d e m u m filho sem
p o d e r e m o u q u e r e r e m passar pela gravidez e parto.
3. O s médicos interrogam-se, e m consciência, sobre as razões
q u e p o d e r ã o aduzir para se n e g a r e m . U m a vez q u e se trata, n o
sentido a m p l o , d u m s u p r i m e n t o d e infertilidade, e há viabilidade
técmca, acedem.
4. Surge e n t ã o u m a n o v a área de interesse e c o n ó m i c o para
intermediários, q u e r a p i d a m e n t e se apresentam a conquistar esse
mercado.
5. M u i t o mais tarde, apela-se e n t ã o para comissões de ética,
legislação apropriada e n o r m a s morais. Mas, entretanto, j á alguns
14
GTTBEKT HOTTOIS, Le Sígtie et la Technique, Ed. Aubier, Paris, 1984.
O H O M E M E AS CIÊNCIAS
1)A
NATUREZA
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factos criaram precedentes e se t o r n a r a m práticas c o m u n s , e n q u a n t o ,
p o r o u t r o lado, velhos princípios e disposições jurídicas p e r d e r a m
aplicabilidade.
Perante raras situações consideradas gritantes pela sociedade,
passam-se condenações o u até penalizações. Mas e m todos os o u t r o s
casos, o que c o n d u z a evolução das sociedades n ã o são «princípios»
estabelecidos n u m passado q u e n e m sequer suspeitava das realidades
actuais. O que a c o n d u z é a viabilidade técnica, a operacionalidade
d o Tecnocosmos, e m realizações q u e c o r r e s p o n d e m a desejos ancestrais e p r o f u n d o s da h u m a n i d a d e . O s princípios só virão mais tarde,
c o m o racionalização das reacções da sociedade à c o n f r o n t a ç ã o d o
Tecnocosmos c o m o sentido p r o f u n d o d o h u m a n o .
E esta a g r a n d e c o n f r o n t a ç ã o q u e se debate agora.
O h o m e m , depois de d u p l a m e n t e reflectido na desmitificação
científica e na remitificação técnica, recebe de si m e s m o e d o seu
p r ó p r i o olhar u m a i m a g e m n o v a , mais c o m p l e x a e a u t ó n o m a . A sua
i m a g e m assumiu alteridade. M a s o d i á l o g o não é fácil, p o r q u e as
linguagens são basicamente diferentes. U m a , e x p r i m e a percepção
imediata que o h o m e m inevitavelmente t e m de si. A o u t r a é mediada
pelo Tecnocosmos.
O s axiomas d o n o v o m i t o são, entre outros, os seguintes: «Tudo
o que f o r tecnicamente viável será realizado», m e s m o aquilo que o
h o m e m diga que não lhe é útil ou q u e as Comissões de Ética
r e p r o v a r a m . E «tudo, a seu t e m p o , será tecnicamente viável», desde
que se espere suficientemente e se tenha a paciência cósmica de q u e
a evolução nos dá e x e m p l o .
C o m o todos os axiomas, t a m b é m estes não se p r o v a m n e m se
justificam. Eles i m p õ e m - s e . São u m facto. Esta fatalidade e a m o r a lidade essenciais d o Tecnocosmos, m o s t r a m c o m o ele n ã o p o d e ser
inserido n u m a n t r o p o l o g i s m o instrumentalista 1 5 , e mais facilmente
devia ser considerado, na expressão d e j . B r u n 1 6 , c o m o «manipulação
ontológica» da vida e d o h o m e m .
O T e c n o c o s m o s estrutura-se, logo à partida, c o m o excluindo
o simbólico, o interpretativo e o axiológico. Torna-se, d e estrutura
básica, afilosofante.
15
M . HEIDEGGER, Die Frage nach der Technik, in «Vorträge und Aufsätze», Pfullingen,
Neske, 1967.
16
J. BRUN, Les Masques du Désir, Paris, Buchet-Chastel, 1981, p. 208.
46
D1DASKAL1A
T o m a n d o a sério, e até ao fim, esta sua essência não vejo que
seja possível elaborar u m a filosofia a partir d o interior m e s m o d o
Tecnocosmos, que esteja m i n i m a m e n t e n o p r o l o n g a m e n t o da sua
estrutura. Isto é, não creio q u e o T e c n o c o s m o s possa ter u m p a r a lelo d o que t e m sido a filosofia das ciências.
E qualquer discurso que inconscientemente se tornasse e m ficção
logoteórica e axiológica ao serviço d o Tecnocosmos, levaria e m
g e r m e u m desenlace suicida dessa filosofia!
P o r o u t r o lado, qualquer a n t r o p o l o g i s m o instrumentalista que,
v i n d o de fora, tentasse integrar o T e c n o c o s m o s e constituir-se e m
n o r m a e p a d r ã o a que ele devesse ficar sujeito, n ã o estaria a
entender o p r o b l e m a , n e m a lidar c o m a mentalidade tecnocientífica real.
O T e c n o c o s m o s é necessariamente refractário às elaborações
culturais e filosóficas que lhe são anteriores o u exteriores. Ele criou
o seu p r ó p r i o universo de p e n s a m e n t o , a sua lógica, a sua sintaxe
e a sua l i n g u a g e m . Ele reelaborou, através da lenta mas segura
acumulação de dados científicos, u m a n o v a e insuspeitada i m a g e m
das questões d e f u n d o , c o m o a «natureza» d o h o m e m e da vida, a sua
o r i g e m e finalidade, a ética da sua convivência c o m o resto d o
Planeta e d o cosmos, a biologia evolutiva da m e n t e consciente c
a base genética d o m a l .
E o p r o b l e m a está e m que essa i m a g e m não p o d e ser correctam e n t e perspectivada de f o r a d o sistema, mas só d o seu interior.
O seu c o n t e ú d o n ã o é p o r isso dialogante n e m dialogável c o m as
filosofias e culturas tradicionais, c o m o b e m se n o t a de cada vez
que u m a comissão reúne, a alto nível, cientistas e pensadores. Mas
apesar disso, e tal c o m o temos acentuado, é o Tecnocosmos e não
a cultura tradicional q u e h o j e arrasta os factos e os hábitos (que
u m dia se t o r n a r ã o costumes), e leva atrás de si, e m elaboração
lenta, os moralistas, os juristas, e os pensadores.
Apesar de não se vislumbrar, deste m o d o , u m p o n t o de partida
n e m f o r a n e m d e n t r o d o Tecnocosmos, p o d e esperar-se q u e u m
h u m a n i s m o n ã o p r o p r i a m e n t e antropologista mas vivencialista venha
a ser, nesta c o n f r o n t a ç ã o , u m m e d i a n e i r o construtivo d e diálogo.
Ele terá, p r i m e i r o , de viver na p r ó p r i a carne, a experiência da
aniquilação d o h u m a n o na fidelidade ao anaxiológico e assimbólico
d o T e c n o c o s m o s . P e r a n t e esse ser lançado para fora d o h u m a n o ,
brotará então u m i n c o n f o r m i s m o essencial, o qual irá p ô r e m
evidência, identificar e reelaborar aquela zona d o h u m a n o q u e não
O H O M E M E AS CIÊNCIAS
1)A
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NATUREZA
c absorvível pelo Tecnocosmos. Essa zona clamará então pela transcendência salvadora d u m n o v o h u m a n i s m o .
Esse, não p o d e r á ser acusado de vir n e m de fora d o T e c n o cosmos, pois resultou da experiência vivencial da sua tutela, n e m
de d e n t r o dele, na m e d i d a e m que se rebela contra a coerência
interna d o sistema. Ele brota d o interior d o h o m e m concreto,
totalmente exposto e entregue à vivência tecnocósmica. Mas, para
isso, terá de percorrer, p o r d e n t r o d o sistema tecnocientífico, todos
os m e a n d r o s da sua lógica e da sua l i n g u a g e m . T e r á q u e assumir
os seus pressupostos e i n c o r p o r a r o seu universo. N ã o p o d e r á
brotar da inflexão terminal d u m o u t r o h u m a n i s m o , pela c o n f r o n tação superficial c o m as novas técnicas. Terá q u e fazer p o r extenso
t o d o o circuito da projecção m ú t u a entre h o m e m e ciências da
natureza que aqui se esquissou.
Isto significa, a nível f o r m a t i v o , q u e as ciências e as técnicas
terão de ser transferidas da posição de e l e m e n t o adicional e c o m p l e m e n t a r n o m u n d o d o p e n s a m e n t o e da cultura para o lugar de
alfabeto básico, que t e m de ser a p r e n d i d o c o m as primeiras letras,
assimilado c o m profissionalismo, e c o n d u z i d o até ao b r o t a r d u m a
reflexão humanista q u e possa salvar o h o m e m d o p r ó x i m o milénio.
Luís
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O Homem e as Ciências da Natureza