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MPB NO MERCADO: MEDIADORES CULTURIAS, MÚSICA E INDÚSTRIA
Luisa Quarti Lamarão∗
[email protected]
Resumo
O presente artigo busca apresentar a consolidação da “Música Popular Brasileira”,
a MPB, a partir da atuação dos empresários e produtores culturais do eixo Rio de JaneiroSão Paulo. Para tanto, recupera a trajetória percorrida pela música popular brasileira a partir
da década de 1970, quando da ascensão da indústria cultural no Brasil, trazendo também
uma breve discussão sobre a memória construída por alguns desses mediadores culturais
em suas autobiografias.
Palavras-chave: Música Popular Brasileira – indústria cultural – mediadores culturais
Abstract
The present article seeks to present the consolidation of the "Brazilian Popular
Music", the MPB, from the action of the businessmen and cultural producers of the axis Rio
de Janeiro-São Paulo. For so much, it recuperates the path traversed by the Brazilian
popular song from the decade of 1970, on the occasion of the ascent of the cultural industry
in Brazil, bringing also a short argument about the memory built by some of those cultural
mediators in its autobiographies.
Key-words: “Brazilian Popular Music” - cultural industry - cultural mediators
***
As origens da MPB
No Brasil do final dos anos 1950, a urgência em ser moderno generalizou-se por toda
a sociedade e passou à esfera do domínio da vida cotidiana. Isso porque, no cenário
externo, a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial representara a supremacia da
∗
Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense
1
2
democracia liberal, influenciando, portanto, os países que lutaram a favor dessa aliança.
Dessa forma, o contexto histórico de 1945 a 1964 foi um momento decisivo na constituição
da democracia brasileira: um período fértil no sentido de participação e reivindicações. A
base da idéia de construção de um novo Brasil era o nacionalismo, e as condições para o
progresso passavam por reformas estruturais e uma inserção autônoma do país no sistema
internacional. Assim, desenvolvia-se e consolidava-se no país uma cultura política
identificada com o “nacional-estatismo”.1 O período em questão foi também uma fase de
polarização de interesses, proliferação de organizações políticas e sociais e de profundas
transformações históricas.2
O slogan “Cinqüenta anos em cinco”, do governo de Juscelino Kubitschek,
sintetizava a principal meta desse período: o desenvolvimento econômico. De modo geral,
reinava um clima de euforia, tomando forma a utopia nacionalista que decretaria o fim do
ciclo do atraso no país.3 O espírito ufanista da época arrebatou muitos grupos sociais. Ao
longo dos anos de 1950, partidos políticos, sindicatos e imprensa se uniram em torno do
projeto nacionalista, que tinha seu grande modelo no Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (Iseb). Seus objetivos eram que a burguesia nacional liderasse este processo de
desenvolvimento, mobilizando os demais setores da sociedade. Identificando os interesses
agrários com o capital estrangeiro e os industriais com os da nação, os intelectuais do Iseb
traçariam uma linha divisória entre o que seria a nova e a velha sociedade.4
Assim, nesse período, devido às mudanças no próprio projeto de desenvolvimento
econômico do país, tanto a produção material quanto cultural, no Brasil, passou também a
ter como destino os mercados de massa e ficou ligada às diversas necessidades do dia-a-dia.
Da mesma forma, a idéia de moderno passou a ser relacionada aos estilos de vida,
1
O nacional-estatismo foi um “projeto ambicioso de construir um desenvolvimento nacional autônomo no
contexto do capitalismo internacional, baseado nos seguintes elementos principais: um Estado fortalecido e
intervencionista; um planejamento mais ou menos centralizado; um movimento, ou um partido nacional,
congregando as diferentes classes em torno de uma ideologia nacional e de lideranças carismáticas, baseadas
em uma íntima associação, não apenas imposta, mas também concertada, entre Estado, patrões e
trabalhadores”. In REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2000, pp. 13-14.
2
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. “Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e
conflitos na democracia”. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil
republicano. O tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de
1964. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 151.
3
VELLOSO, Monica. “A dupla face de Jano: romantismo e populismo”. In GOMES, Angela de Castro. O
Brasil de JK. Rio de Janeiro: FGV, 2002 (2ª edição), p. 171.
4
Idem, p. 172.
2
3
comportamentos e hábitos, difundidos mais amplamente pelos meios de comunicação de
massa. Esse movimento, de uma certa referência cultural em padrão mais universal, tomou
formas novas e singulares, dada a própria qualidade plural da cultura.5
No caso específico da música brasileira, o surgimento da bossa nova, em 1959,
marcou uma importante transformação cultural no país. Desvinculando-se de um tipo de
sensibilidade musical associada ao excesso, há muito arraigada na canção popular, os
músicos da bossa nova inventaram um ritmo e uma harmonia inusitados para a época.
Inaugurando uma nova relação do público com a música, “toda uma tradição da música
popular foi rejeitada pelos bossa-novistas”.6
A ruptura proporcionada pelo surgimento da bossa nova representou a entrada de
novos atores sociais no panorama musical, principalmente no plano da criação e no
consumo de música popular. As altas classes médias – mais informadas e freqüentando as
universidades – passaram a enxergar a música como um campo “digno” de criação,
expressão e comunicação, mudando a mentalidade anterior, que colocava a música no
campo restrito do entretenimento.7
O impacto desse novo estilo musical acentuou um conjunto de tensões culturais e
debates estéticos, que lhe eram anteriores, mas que ganharam um novo impulso devido à
inclusão de novos segmentos sociais no cenário musical. Resultado dessa nova realidade foi
a reorganização do mercado musical, parte integrante de um processo de “substituição de
importações” do campo do consumo cultural. Tal reestruturação forneceu as bases
constituintes do que viria posteriormente se consolidar como a “moderna” música popular
brasileira (MPB). Assim, a bossa nova não foi apenas um reflexo do desenvolvimento
capitalista do governo de Juscelino Kubitschek, mas também uma das formas possíveis de
interpretação artístico-cultural deste processo, a maneira com que os segmentos médios da
sociedade assumiram a tarefa de traduzir uma utopia modernizante e reformista, que
desejava “atualizar” o Brasil como nação, perante a cultura ocidental.8
5
MATOS, Maria Izilda Santos de. “Antonio Maria: boêmia, músicas e crônicas.” In: NAVES, Santuza
Cambraia. & DUARTE, Paulo Sérgio. Do samba-canção à tropicália. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.
6
NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.10.
7
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias. A questão da tradição na música popular brasileira. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 67.
8
Idem, p. 68.
3
4
Portanto, é justamente esse ambiente cultural da bossa nova, confrontado com o
surgimento de artistas que não se limitavam aos seus conceitos musicais mais estritos e
ligados a modelos estrangeiros, que acabará por consolidar o conceito de MPB. A bossa
nova foi o filtro pelo qual antigos paradigmas de composição e interpretação foram
assimilados pelo mercado musical renovado dos anos 1960.9 O cosmopolitismo inaugurado
pela bossa nova pareceu ceder terreno a uma linha mais étnica e politizada, voltada para
elementos que pudessem configurar alguns traços da identidade nacional.10
Nesse período, alguns músicos da bossa nova, seguindo uma tendência nacionalista,
passaram a buscar novos materiais para esse estilo musical. Algo que falasse mais da
cultura popular brasileira. O impasse: ampliar materiais sonoros, consolidar o “público
jovem” e conquistar novos públicos, sobretudo as faixas de audiência das rádios populares,
ainda direcionadas para os sambas-canções e intérpretes da velha guarda. Estes objetivos
deveriam convergir para dois pontos básicos: a conscientização ideológica e a “elevação”
do gosto médio (uma meta que os bossa-novistas sempre perseguiram). Portanto, as
temáticas mais românticas ou mais políticas deveriam atender a tais objetivos.
A década de 1960, assistiu, dessa forma, o retorno de novas questões relacionadas às
perspectivas desenvolvimentista e nacionalista no debate político e cultural e fez efervescer
o cenário cultural no Brasil. A União Nacional dos Estudantes (UNE), por exemplo, com o
intuito de intervir cada vez mais nas discussões abrangentes sobre os rumos da cultura do
país, criou os Centros Populares de Cultura (CPC) em 1961. Tais órgãos tinham o objetivo
de abrigar jovens artistas e universitários comprometidos com uma política cultural voltada
para um movimento de conscientização e transformação da sociedade brasileira.11 O
anteprojeto do Manifesto do CPC, escrito pelo sociólogo do Iseb Carlos Estevam Martins
em 1962, ressaltava a necessidade da “atitude revolucionária conseqüente” do artista. Por
isso, rejeitava perspectivas estéticas mais formalistas, já que estas, em sua opinião, atingiam
apenas um público composto por minorias privilegiadas.
Tal percepção política, denominada por Michael Löwy “romantismo revolucionário”,
enaltecia “acima de tudo a vontade de transformação, a ação dos seres humanos para mudar
9
Idem, p. 70.
NAVES, Santuza Cambraia. Op. cit, p. 26.
11
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro, Record, 2000.
10
4
5
a História, num processo de construção do homem novo”12, cuja raiz estaria no passado, no
homem do povo, com origens rurais, supostamente não absorvido pela modernidade urbana
capitalista. Os diferentes grupos que seguiam a vertente romântica vivenciaram essa
atmosfera cultural e política do período, marcados pela defesa do povo, da libertação e da
identidade nacional.
É importante frisar que esse romantismo das esquerdas brasileiras apresentava,
também, um forte viés modernizador, pois buscava “no passado elementos para a
construção da utopia do futuro”.13 Portanto, associava o homem do povo à verdadeira alma
nacional, capaz de conduzir o país a uma realidade mais justa. Para além de um combate
anticapitalista reducionista, acreditavam que uma vanguarda iria guiá-los ao seu verdadeiro
destino: a revolução. Nas palavras de Sérgio Ricardo, eram “guerrilheiros sem armas”.14
Entretanto, a implantação do regime militar no ano de 1964, resultante da
radicalização das direitas e esquerdas brasileiras15, foi um divisor de águas para a História
do país. Não somente pelas modificações sofridas pela estrutura do Estado com a ascensão
política das forças militares e a modernização conservadora16 baseada na racionalização do
planejamento, como também pela atividade cultural e artística que se renovou e refletiu a
suspensão das liberdades civis. Assim, apesar de o projeto nacionalista ter perdido a
batalha, não havia perdido a guerra: a forte politização de parte da sociedade no período de
1945 a 1964 se tornou solo fértil sobre o qual nasceram importantes iniciativas culturais
que nos auxiliam a compreender a atuação da sociedade civil – e suas nuances – durante o
regime militar.
Os novos rumos da música brasileira
12
Idem, p. 24.
Idem, p. 25.
14
RICARDO, Sérgio. Quem quebrou meu violão – uma análise da cultura brasileira nas décadas de 40 a 90.
Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 52
15
Ver FERREIRA, Jorge. “O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964”. In FERREIRA, Jorge e
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática:
da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
16
Ver NAPOLITANO, Marcos. Cultura e poder no Brasil contemporâneo. Curitiba: Juruá Editora, 2002.
13
5
6
Em 1964, o ciclo aberto pela Revolução de 1930 havia sofrido uma reversão. João
Goulart, último representante do varguismo, havia sido derrubado por forças de direita.
Diante de tal realidade, foi iniciada uma longa discussão no seio das esquerdas para
explicar essa derrota. Surgiram, então, duas conclusões opostas que passaram a orientar a
oposição ao regime militar. Para Daniel Aarão Reis Filho,
“de um lado, alinharam-se aqueles que afirmavam a inviabilidade da política de
alianças praticada naquele período, devido a uma radicalização que não avaliou
corretamente a correlação de forças. (...) De outro lado, agrupou-se uma corrente
composta por diversos segmentos que, pelas razões estratégicas mais diferentes,
confluíram na crítica à política de alianças, considerada como um equívoco, uma
mistificação, que servira para desvirtuar a consciência de classe do proletariado ao
colocá-lo à reboque de uma burguesia nacional já integrada ao capitalismo
internacional e, portanto, desinteressada no projeto nacional-desenvolvimentista e
contrária às reformas de base. Para essa corrente, não se tratava de refazer a política
de alianças (o ‘populismo’) para ‘derrotar’ o regime militar e, sim, desenvolver uma
estratégia revolucionária para derrubar a ditadura.” 17
Esse debate teve também desdobramentos no campo cultural. Isso porque a cultura,
no Brasil, há muito é vista como um mecanismo de resistência popular18. Logo, num
momento conturbado como o do golpe civil-militar de 1964, as esquerdas viram nessa
arena a possibilidade de mobilizar o povo contra o regime. Sobre esse período, Carlos
Nelson Coutinho afirmou:
“As pessoas que tinham forte interesse pela política terminaram levando esse interesse
para a área da cultura. Isso teve um lado positivo. Claramente a cultura tem uma
dimensão política. Mas, às vezes, também teve um lado negativo, no sentido de que se
politizaram excessivamente disputas que na verdade são mais culturais que
partidariamente políticas. A esquerda era forte na cultura e em mais nada. É uma
coisa muito estranha. Os sindicatos reprimidos, a imprensa partidária completamente
ausente. E onde a esquerda era forte? Na cultura.”19
17
REIS FILHO, Daniel Aarão. “Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória”. In: REIS FILHO,
Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & PATTO, Rodrigo (orgs.) O golpe e a ditadura 40 anos depois. Bauru:
EDUSC, 2004. p. 35.
18
Ver SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de
Vargas. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
19
RIDENTI, Marcelo. 2000. Op. cit. p. 55.
6
7
A partir daí, a cultura “nacional-popular” buscou novas referências estéticas e novas
perspectivas de afirmação ideológica na música popular. O impasse político-ideológico da
esquerda estimulou ainda mais o debate e a busca de novos paradigmas numa arena musical
cada vez mais organizada em função do mercado. Esse foi um dos paradoxos da grande
popularização, no imediato pós-golpe, e uma das variantes que marcou o nascimento da
MPB renovada. O desafio era redefinir um estilo musical brasileiro e comercial para um
público renovado, dentro do contraditório processo de modernização do país. Novas
questões se colocavam para a canção brasileira engajada: como, onde e para quem cantar?
Onde estaria o “povo”, receptor idealizado das mensagens conscientizadoras? Tal debate
foi acompanhado pela reestruturação da indústria cultural brasileira e por uma ampla
redefinição do sentido da tradição musical e cultural para os artistas de esquerda.
Espetáculos como Opinião, Arena canta Zumbi, Rosas de ouro, Morte e vida
Severina ilustravam a busca pela expressividade e a aproximação com formas musicais e
poéticas mais próximas da cultura popular – rural ou urbana. A música era o meio
privilegiado para mostrar o debate ideológico e estético proposto, dando novas formas ao
conceito do nacional-popular – que já não era mais visto como arma reformista, mas agora
um “núcleo ético e político para a construção da resistência ao regime militar. Tratava-se de
fazer com que o elemento popular desse sentido ao nacional, e não com que o elemento
nacional educasse o popular”.20
A modernização da televisão e da indústria fonográfica também exerceu um
importante papel na consolidação da MPB. Em meados de 1960, surgiram dois programas
televisivos que capitanearam o público jovem até então restrito aos rádios e ávido pelo
consumo de música: O fino da bossa e Jovem Guarda. Além disso, os festivais de música
ganharam um grande espaço na mídia e reforçaram a nova cara da música popular naquele
momento, remontando à tradição dos grandes espetáculos teatrais que impulsionaram o
sucesso da MPB entre o público jovem.
Já o panorama fonográfico passou a incentivar o consumo de canções criadas,
produzidas e interpretadas no próprio país, ao criar, em 1965, a Associação Brasileira de
Produtores de Disco – ABPD. Com o sucesso alcançado pela música brasileira nesse
período, a venda de LPs de artistas nacionais aumentou drasticamente em 1969 – apenas
20
NAPOLITANO, Marcos. 2007. Op. cit. p. 86.
7
8
dez anos antes, em 1959, de cada dez discos comprados, sete eram estrangeiros. “Havia um
nítido processo de ‘substituição de importações’ em curso: o mercado brasileiro passou a
consumir canções compostas, interpretadas e produzidas no próprio país, comercializadas
pelas grandes gravadoras multinacionais”.21 A consolidação da sigla MPB, “misto de
agregado de gêneros musicais com instituição sociocultural”22, esteve, portanto,
intimamente ligada ao fortalecimento da indústria de massa no Brasil.
Nas palavras de Marcos Napolitano:
“Este jogo de interesses – comerciais e ideológicos ao mesmo tempo – definiu o lugar
social da música popular. Nascia a Música Popular Brasileira, que passaria a ser
escrita com maiúsculas, sintetizada no acrônimo MPB, misto de agregado de gêneros
musicais com instituição sociocultural. A MPB sintetizava a busca da conciliação da
tradição com a modernidade e foi gestada nos programas musicais da TV, assumida
pela audiência, sobretudo pela classe média, por empresários, artistas e
patrocinadores”.23
A música brasileira se tornou, assim, o palco de disputas culturais por excelência. O
movimento contra as guitarras elétricas foi um exemplo disso. Em julho de 1967 ocorreu
em São Paulo uma passeata, de caráter aparentemente contestatório e nacionalista, “pela
MPB e contra as guitarras elétricas”, organizada pela TV Record com o objetivo, na
realidade, de chamar a atenção popular para o lançamento de um novo programa musical
que se chamaria “Frente Única – Noite da MPB” (alusão ao movimento de oposição
política ao regime militar chamado Frente Ampla, lançado no mesmo ano).24 À frente dessa
passeata, estavam Edu Lobo, Elis Regina, MPB-4, Zimbo Trio e outros, formando a “frente
da música popular contra o iê-iê-iê”.
Pautando sua consolidação no ambíguo objetivo de tornar-se comercial, difundindo
uma ideologia nacionalista e engajada, a moderna MPB, definiu sua forma “final” na
relação com o movimento da Jovem Guarda. Havia os que a negavam por completo,
associando sua música à alienação e à pobreza formal; outros, como os cantores Caetano
Veloso e Gilberto Gil ressaltavam que a riqueza da música brasileira estaria justamente na
21
NAPOLITANO, Marcos. 2007. Op. cit. p. 87.
Idem.
23
Idem, p. 89.
24
VILLAÇA. Mariana. “A passeata contra as guitarras.” In www.artemusical.com.br acessado em
28.07.2008.
22
8
9
fusão de diversos estilos – pensamento este que irá embasar o surgimento do movimento da
Tropicália, no final da década de 1960.25
Assim, a crescente presença da indústria cultural no panorama musical brasileiro
acentuava ainda mais esses debates e a relação do engajamento musical e da vanguarda
estética com o mercado. As duas posições conflitantes ficavam cada vez mais claras: os
chamados “nacionalistas” visavam fortalecer os “gêneros convencionais de raiz” e o
conteúdo nacional-popular da música brasileira, dentro da indústria cultural; já os
“vanguardistas” questionavam o código cultural vigente na MPB, recuperando alguns
parâmetros formais da bossa nova, mas aproveitando, e ampliando, o mercado conquistado
até aquele momento.
Entretanto, antes de se excluírem, as duas tendências iluminavam duas faces do
mesmo impasse político-ideológico da cultura de esquerda pós-1964: a crise de organização
e liderança, em busca de um povo ausente. Além disso, ambas as vertentes convergiram
para a indústria cultural, no sentido de acreditar na possibilidade de uma inserção ativa do
artista nas suas estruturas.26 O processo de reorganização estrutural da indústria fonográfica
e do público consumidor reforçou ainda mais esta perspectiva. A crescente demanda da
indústria – em busca de novas obras, novos gêneros e artistas – e as redefinições do perfil
da recepção e do consumo musicais e a busca de novos paradigmas criativos para retomar a
“ofensiva” da MPB diante do avanço da Jovem Guarda e do rock internacional se
concentraram num conjunto de eventos comerciais que viraram o grande símbolo da
transição da MPB: os festivais da canção, iniciados em 1965. Tais eventos representaram
novos espaços de criação e também trincheiras de resistência cultural, num movimento
estimulado pela indústria fonográfica em transformação.
Segundo Marcos Napolitano,
“O ano de 1967 seria decisivo na reorganização radical do panorama musical
brasileiro, iniciando o ciclo final de institucionalização da MPB renovada. Com o
25
A partir da defesa de que a música popular engajada deveria incorporar novos temas e procedimentos
estéticos, a fim de veicular um conteúdo crítico, a música tropicalista foi uma tentativa de conciliar os
desafios da nova MPB. Tendo se configurado como um movimento cultural, apresentou uma predisposição,
por parte de seus idealizadores como Caetano Veloso e Gilberto Gil, de pensar criticamente a arte e cultura
brasileiras. Adotaram uma atitude incorporativa em relação ao repertório da música popular, com um viés
modernista, antropofágico. Com humor e ironia, a estética tropicalista trata das disparidades sociais advindas
do desenvolvimento desigual do capitalismo. Ver NAVES, Santuza. 2004. Op. cit e CALDAS, Waldenyr.
Iniciação à música popular brasileira. São Paulo: Ática, 1989.
26
NAPOLITANO, Marcos. 2007. Op. cit. p. 120.
9
10
esgotamento dos programas musicais seriados, não só a carreira de muitos astros foi
abalada, mas novos hábitos de consumo musical foram consolidados, dotados de um
lastro comum: a massificação do público consumidor de música popular de tipo
renovado, entre os quais as referências à bossa nova se cruzavam com parâmetros
musicais anteriores a ela, em meio a um contexto político e ideológico cada vez mais
radicalizado.”27
No cenário internacional, o despertar da década de 1970 marcou o surgimento de
diversos movimentos, grupos, organizações e partidos de esquerda que tentaram “reinventar
a política” feita até então. Fazendo uma crítica dos partidos comunistas e socialistas
tradicionais bem como à burocratização da política, buscavam soluções alternativas para a
transformação social. Assim, “a cena política de esquerda se renovava e ganhava novos
contornos”.28 Nesse período, a valorização teórica e política da cultura e da ideologia
foram a marca da renovação do marxismo. Essa ênfase seria ainda reforçada nas obras de
alguns de seus mais notáveis representantes, como Herbert Marcuse, Pierre Bourdieu,
Edward Thompson, Christopher Hill e Eric Hobsbawm.
No Brasil, os anos de 1970 foram também uma tentativa de se reformular a política.
Em grande parte, tal realidade era refratária dos anos de 1960 e, principalmente, 1968.
Alguns eventos históricos – como o Maio de 1968 na França, a invasão de Praga e a
Revolução Cultural Chinesa – haviam transformado intensamente os conceitos de
“política”, “participação política” e especialmente de “esquerda”. Entretanto, o cenário
brasileiro de tais renovações conceituais era o da ditadura militar, o que dificultava a
militância dos jovens então engajados.
Nesse contexto, perdeu-se a proximidade imaginativa da revolução social,
paralelamente à modernização conservadora da sociedade brasileira e à constatação de que
o acesso às novas tecnologias não correspondeu às esperanças libertárias no progresso
técnico em si. Logo, ficou claro que o florescimento cultural também não seria eterno; “e o
ensaio geral de socialização da cultura frustrou-se antes da realização da esperada
27
Idem, p. 108.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada – as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000. p. 9
28
10
11
revolução brasileira, que se realizou pelas avessas, sob a bota dos militares, que depois
promoveriam a transição lenta, gradual e segura para a democracia”.29
Logo, em sua origem, a MPB guardou uma contradição básica que marcaria o cenário
cultural da década de 1970: as dificuldades em conciliar a difusão de certa ideologia
nacionalista e realizar-se como produto de mercado, utilizando-se dos meios técnicos e
organizacionais do mercado à sua disposição. Para Marcos Napolitano, “tratava-se de
redefinir o popular, arrastando consigo a definição de nacional”.30
Este foi, dessa forma, um momento no qual houve uma rearticulação das esquerdas
brasileiras em torno da cultura nacional-popular, a partir de dois pólos: o Estado e o
mercado. Cada um desses pólos representava um palco de atuação dessa “nova esquerda”
reorganizada após o golpe civil-militar de 1964. Derrotadas no campo político, buscavam
na cultura uma arena de atuação. Contudo, para complexificar esse cenário, é importante
ressaltar a atuação ambígua do regime militar em relação à questão cultural.31
O mercado, a fim de se adaptar a essa nova demanda por produtos “críticos” –
especialmente depois da derrota da guerrilha armada – incorporou (obedecendo a algumas
normas do Estado militar) certos comportamentos e opiniões até então considerados
“resistentes” ao regime. As regras determinadas pelo Estado, por sua vez, estabeleciam a
valorização da cultura nacional, sem nenhuma espécie de politização que comprometesse a
“qualidade estética” das obras. Por outro lado, tal aproximação foi extremamente
importante para que a cultura engajada de esquerda ampliasse sua atuação na sociedade
civil. Os canais de comunicação até então utilizados – como o CPC – haviam sido
inviabilizados pela censura, logo era preciso encontrar novas formas de se aproximar “do
povo”.
A questão da “integração nacional”, [por exemplo], era um dos pilares da Doutrina de
Segurança Nacional e o mercado tinha um papel fundamental neste “objetivo
permanente” do Estado, pois a cultura nacional era vista como circuito de consumo
de produtos de conteúdo “brasileiro”, complementado pelo estímulo ao acesso a
29
RIDENTI, Marcelo. “Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança”. In: FERREIRA, Jorge e
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática:
da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. p. 154
30
NAPOLITANO, Marcos. 2007. Op. cit. p.87.
31
NAPOLITANO, Marcos. “Engenheiros da alma ou vendedores da utopia? A inserção do artista-intelectual
engajado nos anos 70”. In: Anais do Seminário 40 anos do Golpe de 1964 (2004: Niterói e Rio de Janeiro).
1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
11
12
produtos de conteúdo universal, consagrados como cânones da cultura ocidental. Para
a esquerda nacionalista, a questão da cultura nacional era vista como tática de defesa
contra o imperialismo norte-americano e meio de conscientização das camadas
populares, projeto acalentado desde antes do golpe militar. Assim, o Estado de direita
e os intelectuais de esquerda puderam compartilhar certos valores simbólicos que
convergiam para a defesa da nação, ainda que sob signos ideológicos trocados.32
Vemos, assim, que a tradição nacional-popular surge como um provável campo de
aproximação entre pólos supostamente opostos – governos militares e agentes culturais. A
política cultural do regime militar conseguiu que o discurso nacional-popular – antes visto
como o “guarda-chuva ideológico da esquerda” e agora “amainado” pelas políticas
culturais – se unisse à idéia de modernidade, associada naquele momento à incipiente
“indústria de massa” que se consolidava no país. Dessa maneira, ambos os lados
desfrutaram de benefícios concretos.
“Houve”, na concepção de Napolitano, “uma mistura assimétrica e de movimento
irregular, de mecenato oficial, vigilância de eventos e personalidades, repressão policial
direta e controle censório, qualificando uma política cultural muito peculiar.”33 Tal situação
revela, desse modo, a existência de cisões e discordâncias no Estado autoritário,
especialmente num momento em que o chamado “inimigo interno”34 já se encontrava
neutralizado – já que os primeiros anos da década de 197035 foram marcados pela derrota
da luta armada, obrigando as esquerdas a reverem suas estratégias e sua relação com a
democracia. Assim,
“A agenda do regime já não priorizava o combate à luta armada e apontava,
estrategicamente, para uma política de liberalização, na qual as artes, por uma série de
circunstâncias, acabavam por servir de busca de apoio do regime junto à sociedade
civil. O terrorismo cultural se misturava à política de cooptação ou neutralização das
vozes dissonantes. Neste jogo perigoso, o artista-intelectual, porta-voz das classes
médias, tinha um papel fundamental.”36
32
NAPOLITANO, Marcos. 2006.Op. cit. p.8.
NAPOLITANO, Marcos. 2004. Op. cit. p. 313.
34
BORGES, Nilson. “A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares”. In: FERREIRA, Jorge e
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática:
da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
35
Sobre luta armada, ver ROLLEMBERG, Denise. “Esquerdas revolucionárias e luta armada.” In:
FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. V.
4. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
36
NAPOLITANO, Marcos. 2004. Op. cit. p. 313.
33
12
13
A consolidação da variante nacional-popular de esquerda como um dos pilares da
moderna indústria cultural brasileira ocorreu num mosaico cultural complexo no qual
participaram outras tradições: modernismos e vanguardas formalistas, folclorismo,
resquícios de uma cultura letrada e humanista, cultura de massa norte-americana.
Gradativamente, o artista-intelectual foi denominado porta-voz das “classes médias” ou da
“sociedade civil organizada”, cada vez mais distantes das camadas populares excluídas. O
conceito de “povo” apareceu cada vez mais esvaziado, ainda que reivindicado em nome da
noção de “sociedade civil”. Diante disso, a chamada “cultura de massa” foi se fortalecendo
e até se sobrepondo aos ideais da vanguarda intelectual de esquerda. E assim o cenário
cultural brasileiro foi tomando novas formas.
Dessa forma, o advento do regime militar permitiu a concretização da indústria
cultural no Brasil, consolidando o capitalismo brasileiro através do crescimento do parque
industrial e do mercado de bens de consumo materiais. Esse fortalecimento do parque
industrial atingiu também o cerne da produção de cultura e mercado de bens culturais.37
Gravadoras, rádio, televisão e imprensa viam nesse produto MPB uma mercadoria com
potencial de vendagem suficiente para alavancar esses setores. O surpreendente resultado
foi que a cultura e as artes daquele período incorporaram, a um só tempo, formas de
resistência e formas de cooptação e colaboração, diluídas num gradiente amplo de projetos
ideológicos e graus de combatividade e crítica, entre um e outro pólo.38
A MPB no mercado: a importância dos mediadores culturais
A música popular, após 1964, ocupou cada vez mais um espaço “midiático”, e foi a
partir dele que seu público cresceu de maneira exponencial. Ironicamente, a MPB ampliou
bastante seu público, sobretudo ao longo dos anos 1970, não somente pela atuação das
entidades civis, estudantis e sindicais, ligadas à militância de esquerda (como se projetava
37
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
38
NAPOLITANO, Marcos. “‘Vencer satã só com orações’: políticas culturais e cultura de oposição no Brasil
dos anos 1970”, 2006, p. 1
13
14
nos tempos do CPC), e sim pela penetração crescente na televisão e na indústria
fonográfica, atingindo faixas de consumo mais amplas.
As transformações políticas e culturais que atingiram o Brasil nas décadas de 1960 e
1970 – resultantes da modernização conservadora da economia a partir do golpe civilmilitar de 1964 – alcançaram também o mundo das artes e da comunicação de massa. A
indústria do disco, dos livros e especialmente da televisão, deu um grande salto.
Primeiramente, a produção e comercialização em série de bens culturais abriram espaço
para que elas se tornassem objetos a serem produzidos e vendidos em larga escala,
inclusive obras com uma forma ou conteúdo supostamente revolucionários. Criou-se um
jogo ambíguo: as idéias e a cultura de esquerda circulavam com objeto da indústria cultural
capitalista. Junto com o “milagre econômico”39, e para além de sua vigência, viu-se crescer
e consolidar uma indústria cultural brasileira autolegitimada pela ideologia do “nacionalpopular-de-mercado”, herança depurada das propostas político-estéticas anteriores a 1968.40
O caráter específico do capitalismo brasileiro, cujo pólo mais dinâmico se realizou
historicamente num mercado relativamente mais restrito (automobilístico), proporcionou
nesse momento uma certa estabilidade a indústria fonográfica. Isso porque a MPB “culta”,
que se consolidou na década de 1970, ofereceu a esta indústria a possibilidade de
consolidar um catálogo de artistas e obras de realização comercial mais duradoura e
inserção no mercado de forma mais estável e planejada. Mesmo vendendo menos do que as
músicas mais “comerciais”, a relativa liberdade de criação resultava em discos mais
acabados, complexos e sofisticados, com um público consumidor garantido. Envolvendo
um conjunto de componentes tecnológicos e musicais consumidos por essa elite
sociocultural, tal mercado tornou-se também dinâmico. Ao mesmo tempo, aproveitando-se
de uma capacidade ociosa de produção, as gravadoras produziam álbuns de custos
reduzidos, de artistas populares de menor prestígio, além das coletâneas (sobretudo as
trilhas sonoras de novelas), garantindo um lucro de crescimento vertiginoso nos anos 1970.
Portanto, não havia concorrência entre artistas da MPB e os chamados artistas da “música
39
Ver PRADO, Luiz Carlos Delorme & EARP, Fábio Sá. “O ‘milagre’ brasileiro: crescimento acelerado,
integração internacional e concentração de renda (1967-1973)”. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia
de Almeida Neves (orgs.). O Brasil republicano. O tempo da experiência democrática: da democratização de
1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
40
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: EDUSP, 1993. p. 94.
14
15
brega”41. Na lógica da indústria cultural sob o capitalismo, estes dois segmentos se
alimentavam reciprocamente, sendo complementares, dada a lógica de divisão do mercado.
Como o sucesso do chamado pólo “popular-quantitativo”42 não conseguia compensar
os riscos de não possuir um elenco estável de compositores-intérpretes (algo como um pólo
“popular-qualitativo”), a procura dessas gravadoras por um conjunto de obras de catálogo,
de vendas mais estáveis ao longo do tempo, permaneceu. O exílio e a censura interferiram
no fortalecimento justamente dessa faixa de mercado, inibida em plena consolidação de
uma audiência renovada. Entre 1969 e 1973 criou-se uma espécie de “demanda reprimida”
que, em parte, irá explicar o boom da canção brasileira a partir de 1975, quando as
condições de criação e circulação do produto irão melhorar significativamente, com a
perspectiva da abertura política. A política de “descompressão” do regime militar exigia
uma certa tolerância com o consumo da chamada música de protesto.
Por volta de 1978, a MPB era o setor mais dinâmico da indústria fonográfica
brasileira, reafirmando seu caráter enquanto instituição sociocultural e aglutinadora dos
sentimentos de oposição civil ao regime. As altas vendagens de discos dos principais
nomes da MPB (Chico Buarque, Maria Bethânia, Elis Regina, entre outros) comprovam tal
afirmação. Paralelamente, sua penetração em faixas de público mais amplas, fora dos
extratos intelectualizados e exclusivamente universitários da classe média alta,
desempenhou um importante papel na “educação sentimental” e política naquela geração de
jovens pejorativamente conhecida como “geração AI-5”43. No último terço da década de
1970, a conjunção de popularidade comercial e requinte estético marcou a história da MPB.
Até o começo da década de 1980, a MPB manteve intacta sua fama de música de bom gosto
e trilha sonora da resistência; porém, teve de compartilhar o mercado fonográfico com o
41
Sobre a inserção da “música brega” no mercado brasileiro, ver ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou
cachorro não. In: São Paulo: Record. 2003.
42
NAPOLITANO, Marcos. “Música Popular Brasileira nos anos 70: entre a resistência política e o consumo
cultural.” In: IV Congresso Latino Americano de IASPM, 2002, México. Actas del V Congresso. Chile :
IASPM, 2002.
43
O ensaio “Geração AI-5”, escrito em 1978 por Luciano Martins (sociólogo ligado ao CPC) avalia a
produção cultural do período 1969-74 e detecta um vazio cultural. Segundo o autor, a geração que se tornou
adolescente nesse período, tendo visto o absurdo da ditadura perpetuar-se no cotidiano e vivido a
impossibilidade de lutar contra o avanço da repressão, teria se dedicado a várias formas de escapismo. Ver
MARTINS, Luciano. A "Geração AI-5" e Maio de 68. Rio de Janeiro: Argumento, 2007.
15
16
rock brasileiro e sua linguagem nova e adequada à demanda pop que surge naquele
momento.44
Ao contrário do que ainda se afirma, sobretudo no plano da memória dos
protagonistas, não foram a música estrangeira ou os segmentos mais populares da música
brasileira (como a Jovem Guarda) que mais concorreram para consolidar o mercado
fonográfico em nosso país, criando um novo “sistema” de produção/consumo de canções.
Foi a MPB que sintetizou a tradição da grande música da “era do rádio”, nos anos 1930,
com a renovação proposta pela bossa nova, no início dos anos 60. A “abertura” do público
original de música popular, de raiz nacionalista e engajada, se deu via mercado, com todas
as contradições que este processo acarretou na assimilação da experiência do ouvinte (em
outras palavras, a tensão entre “diversão” e “conscientização”).45
Percebemos, dessa forma, que os novos contornos tomados pela MPB a partir,
especialmente, da década de 1970, buscavam alcançar o mercado consumidor. A música
popular brasileira, com o longo processo de abertura política do regime militar, também foi
perdendo sua “aura politizada”, uma vez que seu público também estava se modificando.
Nesse contexto, a atuação de produtores culturais e empresários das grandes gravadoras
exerceu um papel fundamental nessa transformação. Por terem sido aqueles que orientavam
as carreiras dos artistas da MPB, podemos dizer que também criaram os critérios para que
esse estilo musical se consolidasse na indústria cultural – por meio do lançamento dos
discos, aparições na televisão, jornal e rádio, por exemplo.
Nesse sentido, a recuperação das estratégias destes mediadores culturais na
construção da MPB nos ajuda a compreender os rumos tomados pelo próprio capitalismo
brasileiro na década de 1970. Além disso, o ouvinte padrão da MPB, o jovem universitário
de classe média, projetou no consumo dessas canções códigos de comportamento, crenças e
valores de sua classe social. Logo, a MPB não é apenas um estilo musical, mas também um
porta-voz dos anseios dessa geração que vivenciou as transformações políticas e culturais
no Brasil das décadas de 1960 e 197046, e, portanto, seu estudo nos auxilia também a
compreender a formação da cultura política da classe média no período em questão.
44
NAPOLITANO, Marcos. 2002. Op. cit.
NAPOLITANO, Marcos. “A arte engajada e seus públicos (1955-1068)” In: Revista Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, n.28, 2001.
46
Delimitado temporalmente entre 1968 e 1982, a pesquisa acompanha a periodização da “longa década de
1970 da MPB” proposta por Marcos Napolitano, que “começa sob o signo do Ato Institucional nº 5, um
45
16
17
O peculiar caminho da arte engajada brasileira nos oferece, assim, um campo de
estudo altamente instigante, que deve ser pensado para além do jogo “cooptaçãoresistência” do artista engajado em relação ao “sistema”: um lado associa a MPB como
“resistência” político-cultural ao regime militar, longe de qualquer interesse mercantil; o
outro defende a “cooptação” do gênero pelo sistema de canções veiculadas pelo mercado
fonográfico. Deve-se ter cuidado com a excessiva idealização do processo histórico: a MPB
não foi um mero veículo de idéias e ações sociais extramusicais, mas ajudou a dar sentido
simbólico e cultural a essas atitudes. Portanto, a dita “hegemonia cultural” da esquerda
pode ser pensada, assim, como o centro de problemas mais amplos na área da cultura,
reveladores de processos estruturais que mudaram as formas de consumo da cultura no
Brasil.
Uma breve análise das autobiografias de Solano Ribeiro, Nelson Motta e Marco
Mazzola
Para um estudo mais abrangente da indústria cultural brasileira na década de 1970, é
preciso partir das experiências e expectativas desse público consumidor, avaliando como
isso foi reinterpretado pelos mediadores culturais (tais como produtores e empresários) na
consolidação da MPB.
Os primeiros anos do século XXI assistiram a um interessante revival das eletrizantes
décadas de 1960 e 1970, com a publicação de três autobiografias de importantes produtores
culturais do período: Noites tropicais, de Nelson Motta (2001); Prepare seu coração – A
história dos grandes festivais, de Solano Ribeiro (2002) e Ouvindo estrelas: a luta, a
ousadia e a glória de um dos maiores produtores musicais do Brasil, de Marco Mazzola
marco do ‘fim do sonho’ no Brasil, e termina com a consolidação do processo de abertura do regime militar,
que, por coincidência ou não, marca o fim de um tipo de audiência musical e cultural e o começo de outra,
mais jovem e ligada ao rock e ao pop brasileiros”. Tal recorte temporal abarca ainda eventos que marcam a
consolidação da MPB no mercado, como em 1968, com o IV Festival da Record e o surgimento do
Tropicalismo, movimento cultural que pela primeira vez expõe a questão mercadológica como um fator
relevante para a música. O autor ressalta, entretanto, que “periodizar a MPB dessa maneira não significa
reduzir a vida musical e cultural aos fatos propriamente políticos, tendência teórico-metodológica que
prejudicou os estudos culturais como um todo no Brasil. Mas devemos reconhecer que à medida que a música
popular, particularmente o campo da MPB, é um dos foros privilegiados de expressão pública de um
sentimento de oposição ao regime militar implantado em 1964, a homologia com a vida sociopolítica mais
ampla torna-se inevitável.”Ver NAPOLITANO, Marcos. “MPB: Totem-tabu da Vida Musical Brasileira.” In:
Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2005.
17
18
(2007)47. Mesmo com repercussões distintas na mídia, é revelador perceber que, num curto
espaço de tempo, um número considerável de livros tenha surgido com o objetivo de contar
sua versão sobre o nascimento da MPB. 48
Diante deste boom de publicações, surgem algumas questões: o que estimulou estes
profissionais a contar sua história de vida? Há uma demanda para esse tipo de
autobiografia? Nessa perspectiva, Denise Rollemberg nos auxilia a responder a algumas
dessas perguntas, ao tratar do encontro entre a necessidade de contar e do querer ouvir a
história. Embora estivesse tratando das autobiografias dos ex-guerrilheiros
49
– um tema
doloroso na história recente do Brasil – seu raciocínio também pode ser aplicado ao caso
em questão. Isso porque falar sobre o construto MPB é tratar da cultura política da classe
média do eixo Rio – São Paulo, que construiu sua identidade também por meio da difusão
deste estilo musical. A curiosidade por este tema continua. Para Denise:
“[Aqueles que escrevem], enquanto lembram e contam o passado, o elaboram, dão um
sentido a si mesmo, aos outros, ao passado e ao presente. Da parte dos leitores das
autobiografias, a quantidade responde – ou responderia – ao interesse de se conhecer
uma história silenciada. (...) Em seguida, vieram as novas gerações. Assim, eis a
explicação para a quantidade de autobiografias; um ponto de intersecção entre
segmentos da sociedade que seguiram caminhos diferentes e, não raro, opostos.”
[grifos da autora]
Nesse sentido, as palavras de Solano Ribeiro, idealizador dos festivais de música que
marcaram a década de 1960, nos ajuda a compreender a necessidade desses profissionais de
serem ouvidos.
“(...) creio ter a possibilidade de fazer este relato com uma visão privilegiada sobre
uma geração que conviveu com um sonho que o tempo transformou em pesadelo e
acabou sendo testemunha e protagonista de um processo que continua em curso. No
espaço de duas décadas, a agilidade nas informações fez surgir uma interação de
47
Nelson Motta é jornalista, produtor cultural, compositor, diretor artístico e crítico musical, e acompanhou
de perto o surgimento de grandes artistas da MPB, tendo também batizado, em sua coluna de jornal, o
movimento tropicalista. Solano Ribeiro foi o idealizador dos grandes festivais de música que ocorreram na
Rede Record, no final dos anos 1960, onde se consolidou o nome MPB. Marco Mazzola foi produtor musical
de importantes LPs da MPB e foi diretor executivo de grandes gravadoras internacionais nas décadas de 1970
e 80.
48
André Midani, grande executivo das gravadoras internacionais que se consolidaram no Brasil na década de
1970, publicou sua autobiografia em setembro de 2008, intitulada Música, ídolos e poder: do vinil ao
download. Ver “Executivo com alma de artista.” In: Jornal O Globo, Segundo Caderno (13.09.2008). pp. 1-2.
49
ROLLEMBERG, Denise. “Esquecimento das memórias”. In: MARTINS FILHO, João Roberto (org.) O
golpe de 1964 e o regime militar: Novas perspectivas. São Carlos: EdUFSCar, 2006.
18
19
valores estéticos, políticos, econômicos e de comportamento que transformou o tecido
social brasileiro em um painel complexo e multifacetado que ainda não adquiriu uma
feição definida.”50[grifos meus]
O produtor cultural Solano Ribeiro demonstra a relevância de se contar, portanto, uma
“parte da história” da MPB ainda não conhecida e que auxilia a compreender os rumos que
ela tomou. Fica claro em seu depoimento que esse novo caminho o desagradou – “virou
pesadelo”.
Nesse sentido, as três autobiografias parecem ter o objetivo de mostrar que, se hoje a
música brasileira já não tem mais aquela qualidade melódica e sofisticação das letras que
marcaram o surgimento da MPB, eles já não podem ser considerados culpados, pois
“fizeram a parte” deles na construção desta que ficou na memória como um dos grandes
símbolos da resistência cultural ao regime militar.
Solano Ribeiro comenta o papel dos mediadores culturais neste processo:
“‘Lançador’ ou ‘descobridor’ de novos valores, papel que comumente me atribuem, é,
antes de tudo, um exagero. Na verdade, em um momento político peculiar, para uma
platéia necessitada e musicalmente mais exigente, o enorme talento de um novo
elenco e a força de uma nova música fizeram o sucesso e a história dos festivais que
realizei. O papel de produtor seria mais o de um arquiteto / construtor de momentos
emocionais, com a preocupação de colocar o artista diante do público certo no
momento certo, buscando manter coerência com o que estabeleci como princípios”51
[grifos meus]
E Marco Mazzola explicita os motivos que o levaram a escrever o livro:
“Este livro conta histórias dos últimos trinta e poucos anos da Música Popular
Brasileira. Histórias, algumas ainda desconhecidas do público, que eu vivi, ou
acompanhei, assim como tive o privilégio e a bênção de participar diretamente de
várias das mudanças desse período tão importante que vai do início da década de
1970 até hoje – o surgimento de novos artistas que fizeram e ainda fazem sucesso, a
introdução de tecnologias que se mostraram oportunas. Há muita coisa para ser
recordada. Muitos artistas e profissionais do mundo da música que precisam ser
celebrados. (...) É bom sentir que tenho tanta coisa para contar.”52 [grifos meus]
50
RIBEIRO, Solano. Prepare o seu coração – A história dos grandes festivais. São Paulo: Geração Editorial,
2002. p. 14.
51
RIBEIRO, Solano. Op. cit., p.16.
52
MAZZOLA, Marco. Ouvindo estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtores musicais
do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. pp. 9-10.
19
20
Fica claro que há uma necessidade de contar suas versões, para não serem
confundidos com uma nova geração da MPB – apolítica – e também para mostrar a
importância de suas atuações no cenário cultural brasileiro.
É interessante perceber, na leitura dessas autobiografias, que, no relato sobre suas
trajetórias, os autores descrevem suas vidas como algo que inexoravelmente caminhava
para o trabalho com a música. Para justificar as escolhas feitas no presente, reconta-se a
história de maneira que tudo pareça linear, coerente. O próprio narrador, ao se dispor a
narrar sua vida, deu a ela o encaminhamento que melhor lhe pareceu e deteve o controle
sobre os meios de registro.53
Embora seja fascinante ter contato com o discurso vindo diretamente do interessado,
aos pesquisadores cabe a missão de ficar atento à validação e contextualização do
documento e também o estabelecimento do interlocutor imaginário ao qual se dirige o
escrito autobiográfico. As autobiografias são também interpretações de uma realidade,
mesmo que escritas diretamente por aqueles que viveram. “Os relatos autobiográficos,
evidentemente, não são escritos somente para ‘transmitir a memória’ (...). Eles são o lugar
onde se elabora, se reproduz e se transforma uma identidade coletiva (...).”54
Uma vez conhecidas as condições de produção de uma autobiografia e,
principalmente, o quadro social de sua constituição, passa-se, então, a analisá-la como uma
tentativa de dar determinada imagem de si a certo público ou a determinada pessoa em
particular. A partir daí, é possível compreender a lógica dada pelo narrador ao desenrolar de
fatos individuais, bem como o princípio de sua seleção: “as zonas de sombras e de luz, a
saliência de certos pontos da existência julgados fortes, e o esquecimento de certos outros
considerados pouco lisonjeiros ou secundários.”55
Tal lógica está presente de maneira marcante nas autobiografias em questão. Tanto
Solano Ribeiro, Marco Mazzola e Nelson Motta escrevem um relato cuja temática central é
seu talento em lidar com artistas, resolver problemas dos bastidores – e sempre coerentes
com as questões políticas que permearam a construção da MPB. Para ilustrar a preocupação
53
PEREIRA, Lígia Maria Leite. “Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e autobiografias.” In:
Revista História Oral 3. Associação Brasileira de historia oral, Rio de Janeiro, 2000, p. 118.
54
Idem, p. 121.
55
Idem, p. 126.
20
21
dos autores em ressaltar sua atuação política, usemos as palavras de Nelson Motta sobre sua
participação na famosa “Passeata dos cem mil”.
“Chico [Buarque] e eu éramos do mesmo grupo, com Jards Macalé, Edu Lobo, Zé
Rodrix, Mauricio Maestro e outros, e nosso ponto de encontro era na escadaria da
Biblioteca Nacional, na Cinelândia. Chegamos quase juntos, olhando para os lados,
disfarçando, dando bandeira. Como ainda faltava bastante tempo para a hora marcada
para a passeata decidiu-se por unanimidade ir ao Bar Luiz, na Rua da Carioca, tomar
um chope para aliviar a tensão. Voltamos a tempo ao ponto, mas mais tensos ainda:
eu tinha medo de apanhar da polícia, de levar um tiro, de ser preso, e não ousava
imaginar que íamos viver um dia de glória.”56[grifos meus]
Nesse sentido, é válido evidenciar a relevância do estudo da memória nas análises das
autobiografias. Maurice Halbwachs foi o pioneiro em explorar, no âmbito das Ciências
Humanas, a questão da memória. Socialmente construída, ela surge como uma
reconstituição do passado a partir de um conjunto de recordações de um mesmo grupo
social. As lembranças de fatos, episódios ou processos fazem sentido se relacionadas a um
conjunto maior de rememorações.57 A memória atua como uma reinvenção do passado em
comum, mas determinada por contextos sociais e políticos, historicamente datados. Neste
sentido, ela é, por definição, coletiva. Michael Pollak, seguindo as indicações de
Halbwachs, ressalta as funções positivas desempenhadas pela memória, como a de reforçar
a coesão social, sem atuar necessariamente pela coerção, mas pela adesão afetiva ao
grupo.58
Contudo, como adverte Alessandro Portelli, embora a memória possa ser definida
como coletiva, o ato de lembrar é sempre individual. Mesmo uma atividade peculiar da
memória, o esquecimento, é individual. Provocando o debate, afirma que, se toda memória
fosse coletiva, bastaria um único depoimento para representar uma cultura inteira, o que
sabemos ser equivocado. Cada indivíduo, diz Portelli, extrai lembranças de uma variedade
de grupos e as organiza de maneira idiossincrática. No entanto, ela somente se torna
56
MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: 2001. p. 178.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
58
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In Estudos Históricos, n.3. Rio de Janeiro, FGV,
1989, p. 3.
57
21
22
memória coletiva quando é abstraída e separada do próprio indivíduo.59 Seja como for, as
relações entre história e memória referem-se, também, ao processo de formulação de
identidades. A memória permite manter a coesão dos grupos, defendendo o que eles têm em
comum, consolida tradições, reforça crenças, bem como resgata idéias que aludem à
conservação ou à ruptura. O ato de lembrar pressupõe possibilidades múltiplas na
elaboração de representações e de afirmação de identidades construídas historicamente.
No entanto, as reminiscências do passado se alteram, dependendo das mudanças
sofridas por nossa própria identidade pessoal. Como afirma, com razão, Alistair Thomson,
trata-se da “necessidade de compor um passado com o qual possamos conviver”.60 Para o
autor, nossas identidades – termo mais apropriado para dar conta da natureza multifacetada
e contraditória da subjetividade –, são a consciência do próprio eu que, ao longo do tempo,
é construída pela interação com outras pessoas e com as experiências que se vivem. “Ao
narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos
que somos no presente e o que gostaríamos de ser”, defende Thomson.
Nessa perspectiva, quando entramos no campo específico da memória das esquerdas
no Brasil, percebemos que certos relatos atuais foram construídos de maneira proposital.
Como afirmou Daniel Aarão Reis Filho61, a sociedade brasileira, após ter aderido aos
valores e instituições democráticas – quando do ocaso da experiência de um regime
autoritário – enfrenta ainda grandes dificuldades em compreender como participou, num
passado ainda recente, da consolidação de uma ditadura, que definiu a tortura como política
de Estado. Embora derrotadas no campo político, as esquerdas brasileiras foram vitoriosas
na consolidação da memória sobre este momento. Portanto, a partir do período da
redemocratização, atuaram de maneira incisiva para que tal memória não fosse obstruída.
59
PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito,
política, luto e senso comum) ”. In FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996, p. 127.
60
THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória. Questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias”. In Projeto História. Revista do Programa de pós-graduação em História e do Departamento de
História da PUC/SP, n. 15, abril de 1997, p. 57.
61
REIS FILHO, Daniel Aarão. “Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória”. In: REIS FILHO,
Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & PATTO, Rodrigo (orgs.) O golpe e a ditadura 40 anos depois. Bauru:
EDUSC, 2004. pp. 45-50.
22
23
De acordo com Celso Frederico, “falar sobre o golpe de 1964 implica necessariamente em
tomar partido nas querelas do presente.”62
O início dos anos 1960 conheceu um dos momentos da história do Brasil de maior
participação política da sociedade, organizada e atuante em diversos níveis, num embate
radicalizado. Instituições, associações, manifestações atuavam em função de projetos e
propostas de esquerda, mas igualmente de direita, que também alcançavam simpatias e
adesões de parcelas significativas da sociedade.
No entanto, as esquerdas têm recuperado este passado – ou construído sua memória –
a partir do princípio de que a sociedade foi submetida, no momento do golpe e ao longo da
ditadura, à força da repressão: as perseguições aos movimentos sociais, às instituições
políticas e sindicais e às lideranças e aos militares; os atos institucionais, a censura, os
órgãos de informação, a prisão política, a tortura, os assassinatos, o exílio, o medo. Diante
da arbitrariedade, a sociedade resistiu. O fim do regime fora resultado da luta dos
movimentos sociais, desejosos de restaurar a democracia. A sociedade repudiava, enfim, os
valores autoritários dos militares.63
Pautadas no discurso da “resistência democrática”, as esquerdas daquele período
tentaram soar unânimes nesse tema. Portanto, os depoimentos destes produtores culturais –
com uma trajetória de envolvimento com os artistas de esquerda – tendem a reforçar a idéia
de um estilo musical de resistência, que ajudou no processo de abertura política do Brasil.
A contradição, entretanto, está presente nesses mesmos relatos, quando demonstram sua
preocupação com a inserção capitalista da música no mercado. Podemos afirmar que estes
mediadores eram verdadeiros “equilibristas”, símbolo dos anos 1970 no Brasil (aberturarepressão): circulavam por ambientes de esquerda e de direita com o objetivo de fazer a
MPB aumentar suas vendas, sem perder sua “aura politizada”. Novamente Nelson Motta:
“Além do afeto pessoal e do prazer da companhia, a necessidade profissional de
manter boas fontes com todos os protagonistas daquele momento me obrigou a fazer
malabarismos dialéticos para manter uma convivência harmônica com Chico, Edu,
Gil, Caetano, Dory, Francis, Ronaldo e Elis ao mesmo tempo, evitando brigas e
discussões acaloradas, conciliando, tentando harmonizar, procurando pontos em
62
FREDERICO, Celso. “40 anos depois.” In: REIS FILHO, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo & PATTO,
Rodrigo (orgs.) Op. cit. p. 104.
63
ROLLEMBERG, Denise. “Esquerdas revolucionárias e luta armada.” In: FERREIRA, Jorge e DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura. V. 4. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2003. p. 47.
23
24
comum.”64[grifos meus]
Portanto, o longo caminho percorrido pela MPB em seu processo de construção
toma sua forma final devido à atuação destes profissionais, que, conscientes das
transformações econômicas e culturais por que passava o Brasil no início da década de
1970, apresentaram estratégias de venda bem-sucedidas que tornaram este estilo musical
símbolo da música de boa qualidade. Evidentemente que a publicação de suas
autobiografias apresentam o objetivo de reforçar suas trajetórias heróicas no cenário
cultural brasileiro. Vimos que tal discurso ia ao encontro da construção da memória de
esquerda no pós-regime militar, que insiste em vangloriar os grupos como protagonistas da
abertura, em um processo de resistência democrática, omitindo o fato de que o regime
militar já existia há quase vinte anos. Onde eles estavam antes? Se toda luta precisa de um
hino, a MPB se configurou como trilha sonora perfeita. Para que isso fosse reforçado na
memória das esquerdas, temos as autobiografias aqui mencionadas.
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