Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
POR UMA ANÁLISE HISTÓRICO- RELIGIOSA DA PRIMEIRA TRADUÇÃO DO NOVO
TESTAMENTO EM LÍNGUA PORTUGUESA
(AMSTERDAM, 1681)
Luis Henrique Menezes FERNANDES 1
RESUMO: Intentaremos apresentar suscintamente os meandros relativos à tradução e
publicação da primeira versão do Novo Testamento em língua portuguesa, impressa em
Amsterdam no ano de 1681. Deixando em segundo plano os seus aspectos literários,
focalizamos em nossa pesquisa os conflitos religiosos subjacentes ao seu processo de tradução,
ocorrido nas Índias Orientais holandesas, ao longo da segunda metade do século XVII. Talvez
não haja, em termos históricos, melhor forma de identificar o significado de determinados
acontecimentos do que aprofundar-se no universo conflitivo relacionado ao seu processo de
produção. O objetivo central de nossa proposta é, portanto, identificar as particularidades
históricas desse conflito doutrinário, visando compreender o significado histórico-religioso da
primeira versão completa dos escritos bíblicos neotestamentários em língua portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: tradução da Bíblia; conflitos religiosos; João Ferreira de Almeida.
Não há pensamento religioso (nem pensamento
simplesmente), por mais puro e desinteressado que
seja, que não seja colorido em sua massa pela
atmosfera de uma época. (FEBVRE, 2009, p. 32).
Na segunda metade do século XVII, foram publicadas, nos domínios holandeses
orientais, algumas edições de um panfleto intitulado Differença d’a Christandade . Esse
“livrinho”, carregado de ataques ao papado romano, materializava-se como representação
literária exemplar dos constantes embates doutrinários travados entre católicos e protestantes,
desde o alvorecer da Idade Moderna, na Europa Ocidental e, posteriormente, nos seus
domínios ultramarinos. Esse escrito polemista, publicado numa conjuntura de expansão do
Império Holandês no Oriente – graças às repetidas investidas perpetradas desde princípios do
século XVII contra as possessões portuguesas –, consistia num eloquente discurso apologético
da Reforma protestante, elaborado em direta oposição à ortodoxia doutrinária católica, firmada
e reafirmada no Concílio de Trento (1545-1563).
O fato, à primeira vista curioso, de haver sido publicado em língua portuguesa, apesar
de impresso em território holandês no Oriente, se justifica, em primeiro lugar, pela importância
global adquirida por esse idioma nas chamadas “Índias Orientais”, mesmo em um período em
que Portugal perdia a primazia diante da abrupta ascensão dos holandeses (os quais, por vezes,
obstinadamente, tentaram, sempre em vão, extinguir a língua portuguesa de seus domínios
1
Doutorando em História Social pela FFLCH-USP, pesquisador financiado pela FAPESP, e-mail:
[email protected].
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
1
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
coloniais). Além disso, o panfleto apologético da Reforma fora traduzido, anotado e impresso
sob os auspícios de um até então desconhecido calvinista português – João Ferreira A.
d'Almeida (1628-1691) –, ministro pregador da Igreja Reformada Holandesa da comunidade de
língua portuguesa em Batávia, na ilha de Java. O seu nome, porém, permaneceria
inexoravelmente associado ao pioneiro trabalho de tradução das Escrituras Sagradas do
cristianismo para a língua portuguesa.
João Ferreira de Almeida nasceu provavelmente no ano de 1628, em Torre de
Tavares, pequeno vilarejo do Conselho de Mangualde, norte de Portugal. Não se sabe por qual
motivo, emigrou para a Holanda entre 1641 e 1642, então com quatorze anos de idade,
passando posteriormente aos domínios holandeses orientais. Converteu-se à religião cristã
reformada neste período, quando em viagem de Batávia para Malaca (empório comercial
estratégico no Oriente,
conquistado pelos
holandeses
aos portugueses e m 1641). Aí
permaneceu até 1651, havendo desde então iniciado seus esforços para traduzir as Escrituras
para a língua portuguesa. Durante os cinco anos posteriores, residiu em Batávia, trabalhando
junto ao presbitério da
Igreja
Reformada
Holandesa. Após desenvolver trabalhos de
missionação no Ceilão e na Índia entre 1656 e 1663, retornou para Batávia, onde permaneceu
até a sua morte, provavelmente no ano de 1691.
Em 1681, viu o primeiro fruto do seu trabalho como tradutor das Escrituras sair à luz,
com a publicação, em Amsterdam, do primeiro Novo Testamento completo em língua
portuguesa, com o seguinte título: O Novo Testamento, isto he, todos os sacro sanctos livros e
escritos evangelicos e apostolicos do novo concerto de nosso fiel Senhor Salvador e Redemptor
Iesu Christo, agora traduzido em portugues pelo Padre Joaõ Ferreira A d'Almeida. Quanto à sua
tradução do Antigo Testamento, deixou o trabalho inacabado até os versículos finais das
profecias de Ezequiel. A tradução dos demais livros do Velho Testamento foi finalizada em 1694
por outro ministro da Igreja Reformada Holandesa, companheiro de Almeida na comunidade de
língua portuguesa de Batávia: o holandês Jacob op den Akker. Entretanto, a tradução completa
do Velho Testamento foi publicada pela primeira vez somente em 1748 e 1753, em dois tomos,
na imprensa tipográfica de Batávia, embora grande parte dessa tradução já tivesse sido
impressa pela Missão Luterana Dinamarquesa de Tranquebar, na Índia. Diante dessas
especificidades,
focalizaremos
neste
texto apenas
a
questão da
publicação do Novo
Testamento, embora os conflitos religiosos subjacentes às traduções sejam os mesmos. Além
disso, analisaremos neste artigo, por uma questão de espaço, apenas dois escritos polemistas
referentes a esse contexto de tradução.
A bibliografia existente sobre o surgimento da primeira tradução do Novo Testamento
em língua portuguesa privilegia, de modo geral, a singular trajetória individual de seu principal
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
2
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
tradutor – João Ferreira de Almeida –, com ênfase nas dificuldades circunstanciais por ele
encontradas na consumação desse trabalho. Os estudos existentes sobre o assunto podem ser,
assim, organizados a partir de duas vertentes principais. Primeiramente, encontra -se a
literatura de tendência confessional, que visa enaltecer o calvinista português por seu
pioneirismo no trabalho de tradução e divulgação do texto bíblico em língua portuguesa. Dentre
estes, destacam-se Guilherme Ferreira, Eduardo Moreira, Ian Swellengrebel e António Barata.
Além destes, há também as pesquisas que procuram elencar sistematicamente as inúmeras
edições da tradução bíblica de João Ferreira de Almeida, publicadas ao longo dos últimos quatro
séculos. Neste caso, os principais autores são António Ribeiro dos Santos, Inocêncio Francisco
da Silva, Cunha Rivara, Pedro de Azevedo e, mais recentemente, Herculano Alves.
É possível perceber, todavia, que a bibliografia produzida especificamente sobre o
conflituoso contexto de tradução do Novo Testamento em língua portuguesa carece de uma
maior profundidade analítica e de uma mais densa problematização histórica. Essa “defasagem”
historiográfica – diante das ricas fontes primárias disponíveis – decorre, primeiramente, do fato
de não haver sido dada a devida ênfase à relação intrínseca existente entre o processo histórico
de elaboração da primeira tradução da Bíblia em português e os conflitos doutrinários católico calvinistas a ele subjacentes, manifestos abundantemente nos diversos escritos polemistas
vinculados diretamente ao ambiente da tradução. Além desse as pecto evidente – ou melhor,
como decorrência dele –, a historiografia acabou não analisando com a atenção necessária as
diversas fontes relacionadas ao tema, todas indispensáveis ao seu satisfatório entendimento
histórico.
Supomos, em vista disso, que a formação da primeira tradução do Novo Testamento
em língua portuguesa, em sua singularidade e importância histórica, não poderá ser
satisfatoriamente compreendida se não forem analisados rigorosamente os diversos escritos
apologéticos,
catequéticos
e
polemistas
relacionados
diretamente
ao contexto de sua
elaboração (os quais, como vimos, permanecem apenas superficialmente explorados pela
bibliografia especializada). Neste sentido, visando uma compreensão histórica aprofundada da
tradução bíblica de João Ferreira de Almeida no Oriente seiscentista, torna-se indispensável
proceder-se a uma análise minuciosa dos conflitos católico-calvinistas subjacentes ao processo
de sua elaboração.
A hipótese central de nossa investigação é a ideia de que o contexto espacial e m que
esses conflitos tomaram corpo (as então chamadas “Índias Orientais”) incidiu sobre eles de
forma expressiva, tornando-os singulares em termos doutrinários, literários e missiológicos. Em
outras palavras, a proximidade geográfica desse choque doutrinal em relação à alteridade
cultural do Oriente luso-holandês e suas circunvizinhanças (especialmente em relação aos
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
3
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
povos nativos da ilha de Java, de Ceilão, da Índia, da China e do Japão) parece ter levado os
contendores religiosos europeus a compreendê-la – após absorverem sub specie religionis as
culturas locais, ou seja, interpretá-las de acordo com seu particular código ocidental de
“religião” – pelo prisma privilegiado do embate doutrinário no qual estavam de todo inseridos.
Nessa conjuntura delicada, teriam sido produzidos não somente os escritos catequéticoapologéticos já delineados, mas também a própria tradução pioneira do Novo Testamento em
língua portuguesa.
Assim, não nos interessa exatamente analisar e descrever a alteridade cultural das
Índias Orientais seiscentistas em si, conforme as indicações que, porventura, apareçam na
documentação analisada. Estamos buscando, fundamentalmente, analisar de que forma essa
alteridade cultural foi absorvida e instrumentalizada por católicos e calvinistas em suas disputas
teológicas, para podermos identificar as singularidades dos produtos religiosos resultantes
desse processo. Portanto, não nos interessa, neste caso, analisar o que aquelas culturas
“realmente eram” – para depois lamentarmos como teriam sido distorcidas pelas interpretações
ocidentais –, mas queremos, justamente, enfatizar no que elas se transformaram no interior do
debate
teológico
católico-calvinista,
tornando
possível,
assim,
a
identificação
das
particularidades desse conflito religioso específico das Índias luso-holandesas orientais.
Além disso, devemos destacar que a questão das particularidades relativas ao embate
religioso analisado é fruto espontâneo do caráter histórico que fundamenta nossa pesquisa. Em
outras palavras, o domínio histórico é, em si mesmo, ciência das particularidades – não por ser
um apanhado de curiosidades sobre o passado, mas por focalizar inexoravelmente as
transformações no tempo, decorrentes de certos contextos específicos –, de tal sorte que o
imutável, o uno, o eterno, etc., como apontamos acima, são objeto de reflexão, não do
historiador enquanto tal, mas do filósofo, do teólogo ou do místico. Assim, uma análise, de fato,
histórica desses conflitos religiosos só será tal na medida em que for, sobretudo, estudo de
suas particularidades, e não apenas de sua homogeneidade em relação a outros contextos
similares.
A documentação relativa ao contexto de elaboração da primeira edição do Novo
Testamento em língua portuguesa demonstra que este trabalho de tradução não se r esume a
um esforço apenas literário de divulgação das Escrituras judaico-cristãs em língua vulgar, mas é
parte integrante de toda uma postura religiosa, espiritual e missiológica, diante do mundo de
sua época, destinada especialmente (mas não exclusivamente) à sociedade portuguesa católica
do século XVII. Isso podemos apreender pela leitura do prefácio escrito pelo próprio João
Ferreira de Almeida, em 1668, ao tratado Differença da Christandade, traduzido por ele em
português a partir de uma versão original castelhana. Nesse prólogo, intitulado “Ao discreto
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
4
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
leitor”, Almeida dirige-se explicitamente “a todos os senhores católicos romanos da nação
portuguesa, de qualquer estado, qualidade e condição que sejam, com todos os demais que da
língua portuguesa usam, e juntamente deveras desejam e procuram sua salvação ”. (ALMEIDA,
1684, p. 19).
Nesse mesmo prefácio, podemos encontrar grande parte das informações sobre a
passagem de João Ferreira de Almeida à Igreja Reformada Holandesa, em 1642, justamente a
partir da leitura desse folheto em língua castelhana, cuja autoria tem gerado dúvidas e
hipóteses entre os especialistas. O propósito de tradução desse “livrinho” em língua portuguesa
seria possibilitar, segundo João Ferreira de Almeida, a “ conversão e salvação dos que outra
nenhuma língua sabem, senão a portuguesa” , enquanto não houvesse tradução das próprias
Escrituras Sagradas nesse idioma. (p. 10). Assim, portanto, os esforços de Almeida na
divulgação da doutrina da Igreja Reformada em língua portuguesa – esforço este que engloba
todo o seu trabalho de tradução das Escrituras – se destina, não somente ao Reino de Portugal,
mas também às populações de língua portuguesa que habitavam as Índias Orientais naquele
período, especialmente os fiéis católicos romanos. Neste mesmo prefácio, o tradutor português
apresenta sua indignação diante da situação de Portugal em relação a essa matéria:
Que seja possível que não haja já hoje, em toda a nossa Europa, a mínima
nação, que em sua própria língua tenha já impressa toda a Escritura Sagrada,
e que só a portuguesa não tenha ainda, na sua, impresso nem um só
evangelho? E só ela, entre tantas, careça de um tamanho, inefável,
incompreensível e salutário bem! Que seja esta nação, em tudo o demais,
uma das primeiras e principais, e no que, sobretudo, mais lhe importa,
chegue a tanta miséria, que ela só venha a ser a última e ínfima! Que todas
as outras deem entrada e abram os olhos a esta divina luz, e que só esta, tão
pertinazmente, lhe resista e se lhe oponha! (ALMEIDA, 1684, p. 25 -26).
Em seguida, vemos João Ferreira de Almeida tratando do seu propósito pessoal de
tradução da Bíblia em português – trabalho por ele iniciado já em 1642, ano de sua conversão
ao cristianismo reformado, contando com apenas quatorze anos de idade –, dando-lhe todo o
significado espiritual e sagrado, que desejamos enfatizar nesse momento:
[Por enquanto], vos podeis servir e ajudar da versão castelhana [da Bíblia],
uma das melhores que, até o presente, tenha saído à luz, [...] até que,
mediante o divino favor, acabe de alimpar, e bem conferir com o texto
original, uma tradução do Novo Testamento que, já vai por alguns anos,
tenho preparada. E, o mais presto que puder, pretendo fazer sair à luz. Como
também (dando-me Deus, nosso Senhor, vida, tempo e saúde), com todas
minhas forças, ainda que bem poucas (que, enfim, quando os homens calam,
faz Deus que as pedras falem), espero, em poucos anos, fazer o mesmo com
o Velho, e dar-vos, assim, em breve, toda a Escritura Sagrada em vossa
própria língua. Que é a maior dádiva, e o mais precioso tesouro, que nunca
ninguém, que eu saiba, até o presente, vos tenha dado. (p. 26 -27).
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
5
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
É possível, desde já, perceber que tentar reduzir a compreensão histórica do processo
de formação dessa primeira tradução completa do Novo Testamento em língua portuguesa aos
seus aspectos sociais, literários ou políticos, por exemplo, constituiria indevida simplificação da
matéria, desviando o objeto analisado de seu aspecto central: os conflitos religiosos a ele
subjacentes e, portanto, circunscritos ao domínio autônomo da perspectiva histórico-religiosa.
Os fatos religiosos devem ser estudados historicamente com ênfase naquilo que trazem de
peculiar às sociedades em que se constroem e nas quais se manifestam: sua sacralidade,
construída, porém, historicamente.
Em relação ao conteúdo da Differença d’a Christandade , focalizamos nossa análise
sobre as muitas notas que compõem o texto, por serem escritas pelo próprio João Ferreira de
Almeida, sendo portadoras, portanto, de algumas particularidades provenientes de seu contexto
específico de produção. O tom é, como em todos os seus escritos, de franco ataque às
doutrinas católicas, reafirmadas veementemente, no século anterior, pelo Concílio Tridentino.
Em relação às acusações de que os reformados seriam hereges, Almeida responde dizendo que
“por heresia, não entendem outra coisa, senão a verdadeira, divina e antiga doutrina católica e
apostólica cristã de nossas igrejas reformadas”, as quais, segundo ele, “pela graça e
misericórdia de Deus, nosso Senhor, já do papismo e do anticristianismo estão purgadas e
purificadas”. (p. 46).
No entanto, o aspecto mais interessante dessas notas explicativas – acrescentadas
por João Ferreira de Almeida ao texto original castelhano, visando adaptar, ao que parece, s uas
informações ao contexto específico português – corresponde, para nossa proposta, às
comparações estabelecidas entre a missa romana e as cerimônias gentílicas das Índias
Orientais, especialmente chinesas e japonesas. Em dado momento de seu texto, o trad utor
calvinista defende que “quem for à China e ao Japão, pode bem coligir quão grande
conveniência tenha a missa com as cerimônias e superstições ridículas e idolátricas daquelas
partes, e de toda a demais gentilidade” . (p. 111). Segundo sua visão, as cerimônias católicas
devem ser consideradas não mais que “ uma pura gentilidade, e uma mera, abominável e
gentílica idolatria ”. (Idem). Intentando comprovar tal afirmativa, refere-se ao relato de um fato
histórico:
Bem claro se viu naquele tão notório e abominável exemplo de Dom Vasco da
Gama e seus companheiros, quando foram a descobrir a Índia. Pois, entrando
em Calicute num pagode dos gentios, se ajoelharam e adoraram aos ídolos
que nele estavam, cuidando que eram imagens a seu modo, ou, para melhor
dizer, ídolos à romanesca. Tanta é a semelhança que entre uns e outros há, e
tanta a conformidade entre as cerimônias e superstições gentílicas e as
romanas. (p. 130).
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
6
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
Concluindo seu raciocínio, afirma que “a mesma semelhança se acha também entre a
uma e a outra idolatria, assim dos infiéis gentios, como dos cegos e pertinazes papistas; entre
os ídolos dos uns e dos outros, e o modo e maneira de os adorar”. Por fim, faz referência
específica aos casos chinês e japonês, onde, segundo ele, “ a semelhança é tanta, que a muitos
faz ficar atônitos”. (p. 131).
Parece elemento distintivo de seu discurso, também, a comparação estabelecida por
João
Ferreira
de
Almeida
entre
a
missa
católica
e
expressões
como “feitiçarias”,
“encantamento” e “agouro”. Em sua estrutura discursiva, as cerimônias católicas encontram-se,
portanto, num degrau abaixo da “religião”, sendo identificadas às magias do paganismo. Em
seus próprios termos, o clero católico romano acabou, ao longo dos séculos, por “ corromper e
falsificar a sacrossanta e salutífera doutrina do Santo Evangelho, convertendo-a e mudando-a,
assim, em puros e meros agouros, superstições, feitiçarias e encantamentos” . (p. 144-145) A
aparência exterior da missa lhe parece elaborada para “ entreter o povo em ignorância,
superstição e idolatria, trazendo-o assim embebido, enguiçado e como que encantado e
enfeitiçado com aquelas mostras de pompa exterior ”. (Idem).
Há ainda, no fim da obra, um anexo bastante curioso, intitulado “ Corolário”, onde se
estabelece uma equiparação, em forma de verso, entre o Papa e Maomé (a quem chama
Mafoma, conforme a grafia da época). (p. 199). De fato, os elementos do Islã são
instrumentalizados diversas vezes nesse embate, por ambos os lados, para defenderem suas
posições doutrinárias e atacarem seus opositores. Neste caso, não há referências ao autor do
poema, que não podemos deixar de supor que seja o próprio João Ferreira, pelo seu conteúdo
polemista. O trecho reza assim:
Pergunta.
Digam-me, pois, que diferença
Há entre o Papa e Mafoma?
Se, em Roma, em tanta eminência,
Se entroniza assim Sodoma!
Resposta.
Não há nenhuma, e há muita.
Mas parece contradiz?
Não: espremei esta fruta;
Sereis então bom juiz.
Conclusão Provante.
Nenhuma, pois alto prega
Roma inteira tudo isto.
Muita, pois Mafoma nega,
E o Papa simula a Cristo.
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
7
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
Outro documento, relativo a esse contexto de embates doutrinários, fundamental para
a compreensão histórico-religiosa do processo de surgimento da Bíblia em português, intitula-se
Carta Apologetica em defenção da Religião Catholica Romana contra João Ferreira de Almeida,
predicante da secta calvinista. Foi escrito por volta de 1670 pelo frade agostiniano Jerônimo de
Siqueira, cujo nome verdadeiro era Antônio Dias. Trata-se do único texto apologético católico
escrito explicitamente contra João Ferreira de Almeida. O único exemplar dessa Carta
Apologética é um manuscrito e encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT).
Foi através dessa fonte que se descobriu o local de nascimento de Almeida – Torre de Tavares,
no Concelho de Mangualde, norte de Portugal –, até então desconhecido e geralmente citado
como tendo nascido em Lisboa.
Interessante notar, a partir da análise deste escrito, primeiramente, o fato de o seu
autor parecer desconhecer a relação entre João Ferreira de Almeida e o seu propósito de
tradução da Bíblia em língua portuguesa (até este momento, não havia sido publicado ainda a
primeira edição do Novo Testamento, de 1681, e as versões portuguesas neotestamentárias de
Almeida circulavam apenas em versões manuscritas, especialmente em Malaca, Ceilão e
Batávia). O frade agostiniano se levanta, por um lado, contra o panfleto sobre a Differença d’a
Christandade e, por outro, mais especialmente, contra uma carta de João Ferreira de Almeida –
enviada a João Correia de Mesquita, fidalgo da Ordem de Cristo – sobre um encontro conflitivo
entre ambos, que teria ocorrido em Batávia, em meados da década de 1660. Nesse encontro,
marcado por intensos debates teológicos, conforme
podemos coligir desse e de outros
documentos analisados, o centro da controvérsia entre ambos foi a seguinte questão: é possível
ou não aos homens guardar perfeitamente os preceitos de Deus?
A partir daí, a tônica do texto é uma tentativa de degradação, não apenas doutrinária,
mas especialmente moral, do calvinista português e de seus correligionários. Segundo Siqueira,
João Ferreira de Almeida “traz em sua carta a fábula tão mal composta, autorizada com vinho,
como se os portugueses se criassem em tavernas, como hereges fazem, sendo estas suas
escolas”. (SIQUEIRA, 1670, p. 42). Têm especial relevância, porém, para nossa análise, as
comparações estabelecidas pelo agostiniano entre João Ferreira de Almeida e Maomé. No final
de seu texto, Jerônimo de Siqueira estabelece um paralelo entre a biografia do profeta do Islã e
a trajetória de Almeida, desde seu nascimento até a renegação da fé católica, em 1642 (daí ser
o documento rico em informações biográficas sobre o tradutor português). Conforme os termos
de Siqueira, convém essa comparação:
Porque o vejo na vida mui semelhante a Mafoma. Porque, se Mafoma foi
precursor do anticristo, João Ferreira foi o que seus passos seguiu muito ao
claro. [...] Aquele, amigo leitor, foi Mafoma; este é João Ferreira. Aquele,
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
8
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
legislador da mais infame seita, e este, predicante da ne fanda religião
calvinística. (p. 148-149).
Essa equiparação entre Islã e Reforma é bastante recorrente na documentação
católica
contra
as
doutrinas
do cristianismo reformado.
Do mesmo modo, como já
demonstramos, João Ferreira de Almeida também instrumentalizou componentes da religião
islâmica em seu discurso, utilizando-os, por sua vez, contra o catolicismo romano. Por outro
lado, Jerônimo de Siqueira estabelece também algumas relações entre as doutrinas reformadas
e a chamada “obstinação judaica”. Já no início de sua carta, pondera que “ de hebreus a
hereges, vai pouca diferença”. (p. 5). Citando uma profecia do Antigo Testamento, escrita
expressamente contra a Casa de Israel, Siqueira expressa que:
não só dos hebreus entendo eu essa profecia, mas também o desatino da
calvinística seita o profeta com ela chora, porque igreja mais dissoluta, a que
Vossas Mercês chamam reformada, não mostra só [em] enganar a fé de
Cristo sua malícia, mas também em blasfemarem dela mostram sua pouca
vergonha. (Idem).
Assim, segundo seus argumentos, o que se diz dos hebreus no Velho Testamento, no
tocante a sua desobediência aos preceitos divinos, exatamente o mesmo “ se pode dizer dos da
família calvinística, pois chamando a sua igreja ‘reformada’, são os mais ímpios na vida; na
doutrina, os mais blasfemos; no político, os mais tiranos; e contra a divina lei, os mais cegos” .
(p. 6). Finalmente, Jerônimo de Siqueira acusa João Ferreira de Almeida, juntamente com toda
a Igreja Reformada, de ateísmo, devido, primeiramente, ao apego dos calvinistas aos seus
escritos catequéticos – citando explicitamente o Catecismo de Heidelberg –, bem como pelo não
reconhecimento dos escritos deuterocanônicos do Velho Testamento.
Assim, pudemos demonstrar, de maneira bastante breve, alguns meandros históricoreligiosos desse conflito doutrinário, subjacente à primeira tradução do Novo Testamento em
língua portuguesa, identificando também, ainda que preliminarmente, não apenas o seu valor
de homogeneidade/recorrência no âmbito da história das religiões, mas também, e acima de
tudo, sua particularidade enquanto processo religioso singular, resultante de sua ocorrência em
um contexto histórico e cultural particularizado. Amparados por parte da documentação
selecionada, pudemos demonstrar, por um lado, o caráter religioso desse trabalho de tradução,
a partir da análise dos conflitos relativos ao seu ambiente de produção, e por outro, algumas
das suas particularidades, relativas ao seu contexto específico de produção. Evidentemente, há
inúmeras outras particularidades que não foram tratadas neste artigo, por conta de sua
brevidade, mas em outra oportunidade poderemos destacar a maneira como este conflito
doutrinário, a princípio intra-europeu, se manifestou de forma sui generis em um novo contexto
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
9
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
espacial e cultural, trazendo consigo não apenas singulares produtos doutrinais, mas também
missiológicos e literários.
Referências Bibliográficas
ALVES, Herculano. A Bíblia de João Ferreira Annes d'Almeida . Lisboa: Sociedade Bíblica, 2007.
AZEVEDO, Pedro de. O calvinista português, Ferreira de Almeida. Boletim de Segunda Classe da
Academia de Ciências de Lisboa, vol. XII. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1919.
BARATA, António da Costa. João Ferreira de Almeida: o homem e a sua obra. Imago Dei. n. 7,
1.º semestre, 2003/04.
FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
FERREIRA, Guilherme Luís Santos. A Bíblia em Portugal: apontamentos para uma monografia
(1495 - 1850). Lisboa: Tipografia de Ferreira de Medeiros, 1906.
MATOS, Manuel Cadafaz de (ed.). Uma edição de Batávia em português do ultimo quartel do
século XVII. Lisboa: Edições Távola Redonda, 2002.
MOREIRA, Eduardo. O Defensor da Verdade: João Ferreira de Almeida, o primeiro tradutor da
Bíblia em língua portuguesa. Lisboa: Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, 1928
RIVARA, Joaquim Heliodoro da Cunha. João Ferreira de Almeida e a sua Traducção Portugueza
da Bíblia. O Chronista de Tissuary, periódico mensal, vol. I, n. 3, Março, Nova Goa: Imprensa
Nacional, 1866.
SANTOS, Antônio Ribeiro dos. Memorias sobre algumas traduccções, edições biblicas menos
vulgares; em lingua portuguesa... Memorias de litteratura portugueza , Tomo VII. Lisboa:
Academia Real das Sciencias, 1806.
SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário bibliográfico português , III, Lisboa, 1859.
TEIXEIRA, Manuel. João Ferreira de Almeida, tradutor da Bíblia em português. Macau:
Imprensa Nacional, 1975.
Fontes Citadas
ALMEIDA, João Ferreira de. Differença d’a Christandade, em que claramente se manifesta a
grande Disconformidade entre a Verdadeira e Antiga Doctrina de Deus, e a Falsa e nova d’os
homens... Batávia, 1684.
SIQUEIRA, Hieronymo. Carta Apologetica em defenção da Religião Catholica Romana contra
João Ferreira de Almeida, predicante da secta calvinista, feita em Bangalla pello muito
Reverendo Pe. Hieronymo de Siqueira, Portugues Theologo Pregador . Anno? 1670.
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
10
Revista Acta
Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil
colonial e suas relações ”
Acta, Assis, v. 2, 2013.
O NOVO TESTAMENTO, isto he, Todos os Sacro Santos Livros e Escritos Evangelicos e
Apostolicos do Novo Concerto de nosso Fiel Senhor Salvador e Redemptor IESU CHRISTO.
Agora traduzido en Portugues Pelo Padre João Ferreira A d’Almeida, Ministro Pregador do
Sancto Evangelho. Em Amsterdam: Por viuva de J. V. Someren. Anno 1681.
Revista Acta, Assis, v. 2, 2013. ISSN: 2237-1109
11
Download

glossário eletrônico do português colonial paranaense