PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Carlos Alberto Menezes
O limite das exculpantes penais:
a inexigibilidade de conduta diversa como topos e solução
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada
como exigência parcial
para obtenção do título de Doutor em Direito
(Direito das Relações Sociais) à comissão julgadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Dr. Dirceu de Mello.
São Paulo – 2008
Comissão Julgadora
Agradecimentos
Este trabalho tem um pouco de muitos. Isto quer dizer que sua elaboração não teria sido
possível sem a contribuição acadêmica oferecida ao longo do curso pelos professores
com os quais convivi: Dirceu de Mello, Haydee Roveratti e Tercio Sampaio Ferraz
Júnior. Não pode deixar de ser inscrita aqui também a dívida com meus colegas do
Departamento de Direito da UFS. Todos eles foram cúmplices dessa empreitada. Há um
tipo de colaboração, contudo, que merece destaque especial. É a que veio de meus pais
(Filadelfo Nunes de Menezes [in memoriam] e Carmozita Oliveira Menezes).
Resumo
Trata-se aqui de pesquisa teórica que tem por objeto a relação entre o tema do limite das
exculpantes penais e o uso da inexigibilidade de conduta diversa como topoi, tendo em vista a
justiça do caso concreto. A idéia é demonstrar que, a partir dessa relação, é possível garantir a
segurança que um dia a razão penal prometeu ao indivíduo. Autônomo, igual, livre, e ainda
dotado de razão e subjetividade, o indivíduo que a razão moderna contempla é aquele que fez
a passagem da dependência para a emancipação e, assim, tornou-se capaz de
responsabilidades. Concebido desse modo, ele se liga, de um lado, ao consenso que gerou o
Estado pela via do contrato social, e, de outro, à legalidade penal que daí resultou. Neste caso
e para justificá-la, o direito penal elegeu a promessa de segurança jurídica como peça central
de seu discurso. Ela seria deduzida, ora dos crimes (e das penas correspondentes) como
previsão determinada e escrita, ora do delito como sistema fundado numa ação
combinadamente típica, ilícita e culpável. A experiência jurídica, no entanto, mostra-se
desapontada com aquela promessa. É o que se dá no setor da culpabilidade, especificamente
com as exculpantes. Fora dos casos–padrão, suas insuficiências [lacunas] ficam evidentes
quando exigências de justiça material se articulam com casos-limite. Assim são considerados
aqueles casos para os quais a lei penal não contempla hipóteses que permitam deduzir todas as
conseqüências de uma ação na qual o indivíduo não pôde, por conta de circunstâncias
anormais, tomar a norma como fonte de inspiração. Nesse ponto, instaura-se um problema
cuja solução é encontrada no conceito de inexigibilidade de conduta diversa. Sem lugar
definido nos domínios da legalidade, seu uso é sustentado, não a partir do sistema penal, mas
do problema concreto, e assim é assumido como topoi, uma categoria emprestada das teorias
da argumentação.
Abstract
What we have here is theoretical research that deals with the relation between the theme of
the limit of penal exculpates and of the use of undemanding diverse conduct as topoi, taking
into consideration the justice of the case itself in a concrete way. The idea is to demonstrate
that from this relation it is possible to guarantee the security that penal reason once promised
the individual. Independent, equal, free, and yet endowed with reason and subjectivity, the
individual that modern reason contemplates is that who made the passage from dependency to
liberation thus becoming capable of responsibilities. Conceived this way, he associates
himself, on one end to the consensus that generated the State through the way of a social
contract and, on the other end, to the penal legality that arose afterwards. In this case and also
to justify it, penal law chose to promise judicial security as the main piece of its speech. Such
promise would be inferred, at times from the felonies (and from the corresponding arbitrated
punishments) as determined and written foresight, and at times from the felony itself as a
founded system within a combined action i.e. typical, illegal and culpable. However, the
judicial experience shows itself disappointed with such promise. This is what happens in the
field of culpability, more specifically with exculpates. Aside from average cases, their
insufficiencies (omissions) are evident when demands from material justice articulate
themselves with borderline cases. This is how cases are considered, those for which the penal
law does not contemplate hypothesis that allow inferring all the consequences of an action in
which the individual was not able, because of abnormal circumstances, to take such norms as
a source of inspiration. At this point, a problem is established and the solution is found in the
concept of undemanding of diverse conduct. Without a defined place in the realms of legality,
its usage is sustainable, not because of the penal system, but of the concrete problem in itself
and thus it is absorbed as topoi, a category borrowed from the theories of argumentation.
SUMÁRIO
Introdução..............................................................................................
10
Primeira parte: o indivíduo como ponto de partida do direito penal
moderno. A segurança como princípio fundador.
Capítulo I
O Problema...........................................................................................
15
1. O limite da resistência humana.....................................................
15
2. O limite da dogmática penal.........................................................
17
3. A carência normativa..................................................................
19
4. O cálculo geométrico..................................................................
22
5. O apelo a soluções fora da rotina................................................
24
Capítulo II
O indivíduo........................................................................................
26
1. Dependência e emancipação....................................................
26
2. A pólis.......................................................................................
30
3. A civitas....................................................................................
34
4. O feudo.....................................................................................
39
5. O Estado Moderno....................................................................
44
Capítulo III
O Contrato Social...............................................................................
49
1. O Estado como efeito de uma premissa.....................................
49
2. A mesma premissa entre os antigos...........................................
50
3. Contrato e escolástica..............................................................
51
4. Contrato e necessidade.............................................................
52
5. Diversidade e estado de natureza.............................................
54
6. Autonomia.................................................................................
58
7. Liberdade...................................................................................
60
8. Igualdade...................................................................................
63
9. Subjetividade.............................................................................
65
10. Razão.........................................................................................
68
Capítulo IV
A razão penal.....................................................................................
72
1. Recepção dos predicados........................................................
72
2. Os predicados e a legalidade penal.........................................
77
3. Insegurança e tradição.............................................................
77
4. A descoberta da segurança......................................................
79
5. O crime como mau negócio....................................................
82
6. A honra contra o terror............................................................
83
7. As armas da razão....................................................................
85
8. Nem rigor, nem indulgência.....................................................
87
9. Segurança como princípio fundador........................................
91
10. As luzes e a lei............................................................................
91
11. As luzes e o pensamento penal..................................................
93
12. Segurança e giro positivista.......................................................
96
Segunda parte: O malogro da promessa de segurança. Que fazer?
Capítulo V
Que é o crime?...................................................................................
100
1. A vontade dos deuses................................................................
101
2. A vontade do soberano..............................................................
102
3. A vontade do legislador.............................................................
104
4. Conceito formal........................................................................
106
5. Conceito substancial.................................................................
109
5.1.O tipo antropológico...........................................................
111
5.2.O tipo sociológico..............................................................
114
5.3.O tipo psicológico..............................................................
116
6. Conceito analítico....................................................................
120
6.1.O sistema causal...............................................................
122
6.2.O sistema finalista............................................................
125
6.3.O sistema social................................................................
129
6.4.Segurança e Interioridade.................................................
133
Capítulo VI
A inexigibilidade como problema..................................................
137
1. Os antigos e a descoberta dos limites da resistência humana..
137
2. Os modernos e a resistência humana como problema jurídico.
139
3. Culpabilidade como reprovabilidade (teoria de FRANK).........
143
4. Culpabilidade como contrariedade ao dever (teoria de
GOLDSCHMIDT)..........................................................................
147
5. Culpabilidade como exigibilidade (teoria de FREUDENTHAL)..
149
5.1. Do otimismo de FREUDENTHAL à semi-indiferença do
legislador.............................................................................
152
5.2. Do otimismo de FREUDENTHAL ao posicionamento tardio da
jurisprudência no Brasil.....................................................
154
5.3.Do otimismo de FREUDENTHAL à oscilante posição da dogmática
penal.....................................................................................
154
Capítulo VII
A inexigibilidade como solução........................................................
163
1. A culpabilidade sob controle (da dogmática tradicional).........
163
2. A culpabilidade sob o fogo inimigo (do funcionalismo)..........
166
3. Crítica ao funcionalismo...........................................................
170
4. A inexigibilidade fora do sistema penal...................................
173
5. A dupla programação do direito................................................
175
6. A tópica não foge de problemas.................................................
176
7. O sistema como risco para a depravação do humano...............
178
8. A tópica como techne (arte) de exaltação do humano..............
179
Conclusão..........................................................................................
182
Obras consultadas...........................................................................
189
10
Introdução
A tese desta pesquisa postula a aplicação do conceito de
inexigibilidade de conduta diversa como topos, num cenário onde o
sistema penal é lacunoso (ou limitado) e não atende bem às expectativas
para uma solução justa do caso concreto. Ela responde ao problema de
saber: como pode o direito penal garantir segurança ao indivíduo, tendo em
vista incertezas provocadas por vazios normativos que são evidentes no
setor das exculpantes? Além disso, sua pretensão de legitimidade (ou
originalidade) é fundada no uso da idéia de indivíduo, tomada no sentido da
acepção que os modernos lhe emprestam. Por outro lado, a ponte que torna
possível efetuar a relação entre inexigibilidade, limite das exculpantes
penais e indivíduo, deduzindo daí conseqüências jurídicas apropriadas,
aparece com o discurso da razão penal, naquele pilar em que se articula
como sua promessa central a noção de segurança para todos e cada um.
Com efeito, a reflexão que segue parte da idéia segundo a qual,
desde que foi constituído, o direito penal moderno assumiu o homem como
indivíduo. Embora as palavras homem e indivíduo refiram-se ao ser
11
humano (sob o aspecto natural), não significam a mesma coisa. O uso da
palavra “homem” aponta para um ser humano ainda dependente; da palavra
“indivíduo”, para alguém já emancipado. Na base dessa passagem, ali onde
foi alterada a posição original do ser humano, mais três passagens se
configuraram. Com a primeira, ora o homem é deslocado do estado de
natureza para o Estado político; ora se desencantou do mundo em que se
encontrava para se instalar num mundo diferente. Com a segunda, ora
abandona a lei da selva para se vincular à lei civil; ora é subtraído da
incidência da lei eterna (outorgada por Deus), para reconhecer apenas a lei
natural (concebida pela razão). Com a terceira, assume diante da nova lei
responsabilidades para cuja medida foram fixadas algumas orientações.
No caso da lei penal, três dessas orientações destacam-se. Em
primeiro lugar, o indivíduo assumido por ela (inclusive como ponto de
partida ou princípio organizador de sua elaboração) é reconhecido segundo
particularidades que conferem relevo à sua dimensão interior. Em segundo
lugar, a recepção do indivíduo com esse perfil pelo direito penal deu-se
segundo promessas que seriam capazes de garantir sua segurança. Assim,
de um lado, as leis passariam a ser escritas com clareza e precisão; de
outro, crime e pena só valeriam como tais depois de legalmente prescritos.
Tudo isso permitiria um cálculo mediante o qual certeza e previsibilidade
jurídicas estariam asseguradas. Em terceiro lugar, para tornar conseqüentes
as orientações precedentes, o direito penal constituiu a esfera interna do
indivíduo como o lugar sem cuja inspeção a crítica de suas ações seria
incompleta. Isso significa que não bastava deduzir a responsabilidade penal
da
configuração
objetiva
do
delito;
tratava-se
de
configurá-lo
subjetivamente também. Para esse fim, funcionou como uma descoberta
que tornou ainda mais efetivas as promessas de segurança já anunciadas
com a legalidade penal, a criação do sistema do delito. Nos seus estágios,
vale dizer, na ação, tipicidade, ilicitude e culpabilidade, foram distribuídos
12
os critérios para um detalhado balanço crítico do comportamento do
indivíduo.
Mas o direito penal, como se verá, não conseguiu deduzir todas as
conseqüências do sistema que criou. É o que ficou evidente no setor da
culpabilidade, particularmente com as exculpantes. Com efeito, elas
mostram-se suficientes para a solução de casos-padrão; diante de casoslimite, no entanto, põem a descoberto suas insuficiências. Os efeitos disso
repercutem junto à práxis e à dogmática penal. Junto à práxis penal eles
projetam-se em dois níveis: em primeiro lugar, justifica a consciência do
juiz que um dia MONTESQUIEU descreveu como a boca que reproduz a
vontade da lei, deixando-o à vontade para apenas fazer justiça formal. Em
segundo lugar, cria um quadro de expectativas desapontadas ali onde o
sentimento de justiça material associado às especificidades do caso
concreto fica defraudado sob a justificativa da inexistência de provisões
normativas apropriadas.
Junto à dogmática penal aqueles efeitos se conectam com modelos
de conhecimento penal ora fechados, ora abertos. Nos dois modelos é
recorrente a discussão em torno do tema da inexigibilidade de conduta
diversa; mas é diferente o modo de abordá-la. A rigor, o problema que a
envolve consiste em saber se há possibilidade de um uso justificado dela
nos domínios do sistema penal. A parte da dogmática penal com orientação
mais fechada tem a compreensão de que somente as exculpantes penais
previstas na lei podem ser aplicadas; as que são criadas fora desse âmbito,
por exemplo, no da doutrina, como é o caso da inexigibilidade, não. A
dogmática de orientação mais aberta, ao contrário, tem a compreensão de
que
circunstâncias
anormais
podem
justificar
a
aplicação
da
inexigibilidade como uma exculpante inespecífica, isto é, sem previsão
legal.
13
Sem embargo, o problema do limite das exculpantes penais e a
correspondente solução pela via da inexigibilidade de conduta diversa não
têm sido objeto de tratamento monográfico pela literatura penal brasileira.
No máximo, tem sido objeto de estudos nos tratados, comentários, ou ainda
lições, cursos e mesmo manuais. Mas os estudos aqui desenvolvidos e a
tese que lhe corresponde não se justificam a partir de eventual economia
aplicada no manejo do tema. Talvez a melhor justificativa corresponda à
ligação de nenhuma forma habitual da inexigibilidade de conduta diversa
com a tópica como um caminho para ir além daqueles limites. De qualquer
forma, nada estaria aqui justificado se o encontro da inexigibilidade com a
tópica não tivesse levado em conta o inexplorado modo como se constituiu
o conceito de indivíduo e sua adoção pela razão penal para constituí-lo
como ponto de partida do direito que lhe corresponde.
Seja como for, a solução do problema do limite das exculpantes
penais mediante o uso da inexigibilidade de conduta diversa, aproximandoa da tópica, sem a rejeição, contudo, do sistema penal, em nada se parece
com um programa que articule a idéia de limitação da lei com a idéia de
sua superfluidade. Trata-se apenas de alargar ou reforçar a própria lei e
conduzi-la para zonas nas quais habitualmente se recusa a penetrar. Aliás, o
uso da inexigibilidade significa apenas isso: superar o receio que toda linha
de fronteira naturalmente provoca. Nesse caso, a linha de fronteira é a lei
positiva.
Convém prevenir, ainda, que as palavras indivíduo, cidadão, sujeito
e pessoa são usadas no texto, todas, com o mesmo sentido. Não são
consideradas diferenças que um uso menos superficial delas poderia
sugerir. Em todo caso talvez não seja dispensável lembrar que o indivíduo
referido nesse trabalho nem se confunde inteiramente com aquele a que o
cogito cartesiano deu expressão, configurando-o numa singularidade que o
14
separa do mundo, nem com aquele socialmente mediado a que ADORNOHORKHEIMER se referem.1 Nenhuma dessas concepções é rejeitada. Mas
aqui o indivíduo é o de carne e osso; não, bem entendido, no sentido
biológico, mas no sentido de um ser, que, dotado de propriedades que certo
consenso científico reconhece (por exemplo, as que se referem à sua
autonomia, igualdade, liberdade, razão e subjetividade), articula-se com o
mundo concreto e sobre o qual, aliás, o direito penal, como ciência da ação,
sempre quis intervir.
Finalmente, cabe a confissão de que não foi possível escapar de certa
interdisciplinaridade. É que, embora, na origem, o problema que liga o
limite das exculpantes penais com a inexigibilidade de conduta diversa
pertença ao campo da dogmática penal, a solução aqui indicada e
justificada com base na tópica exigiu um assédio a outros campos do
conhecimento, por exemplo, a filosofia do direito, a sociologia jurídica, a
história, a psicanálise, etc. Isso, de um lado, denuncia a violação de um
modo de pensar a pesquisa científica sempre referida a domínios bem
demarcados, mas, de outro, denuncia também que a natureza de certos
temas, às vezes, pede demonstrações cujas possibilidades não se justificam
quando se lança mão apenas do repertório de qualquer que seja a disciplina
jurídica tomada isoladamente.
1
Cf. Temas básicos da sociologia, p. 47 ss.
15
Capítulo I
O problema
1. O limite da resistência humana. “SEU JOÃOZINHO” era dono de
um pequeno sítio na cidade de AREIA BRANCA (SE). Alguma coisa em
torno de 60 tarefas nordestinas. Adquiriu aquela terra ainda bem jovem.
Desde então, foi seu local de trabalho e sustento. Foram geradas ali as
condições para garantir a educação dos filhos (três) na capital do Estado
(ARACAJU). Depois que eles cresceram, formaram-se e arranjaram
emprego, “SEU JOÃOZINHO” compreendeu que estava na hora de descansar.
Já tinha 63 anos, a disposição não era tanta, e tratava-se agora de vender a
propriedade. Após tornar pública a intenção, surgiu o comprador. Era um
engenheiro baiano que morava em ARACAJU e freqüentava os salões da
classe média alta. Sua imagem era associada ao gosto com que ostentava
carro, casa e barco de luxo. Fecharam rapidamente o negócio. O velho
entregou a terra, passou a escritura e recebeu como sinal 10% do preço
combinado. O comprador ficou de pagar o restante 30 dias depois. Essa
operação foi realizada sem as formalidades próprias. Nenhuma nota
promissória, nenhum cheque pré-datado, nenhum contrato escrito. Enfim,
16
nada que representasse uma garantia dotada de eficácia jurídica para
enfrentar qualquer contingência adiante. Bastava para o vendedor a crença
de que a palavra do outro era suficiente para imunizá-lo contra as incertezas
do futuro. Afinal, nas suas representações, a ação das pessoas guiava-se por
lealdade, compromisso e honestidade. Por isso mesmo, a confiança ocupou
o lugar da precaução.
Com efeito, no prazo combinado, “SEU JOÃOZINHO” viajou para
ARACAJU a fim de receber o que faltava. Esteve no escritório do devedor,
mas saiu de lá apenas com a explicação de que não havia dinheiro pronto e
um pedido de mais 30 (trinta) dias de prazo. Cedeu, conformado, e voltou a
procurar o devedor na nova data. O velho não teve melhor sorte: outra
desculpa e acertaram o pagamento para o mês seguinte. Na terceira visita, o
engenheiro já não mais recebeu o importuno cobrador. Isso era tarefa para a
secretária. Ela que arranjasse uma desculpa. Assim, o velho ouviu que a
mulher do chefe fora submetida a uma cirurgia em SALVADOR, para onde se
dirigira, e que tivesse um pouco mais de paciência. Nos meses seguintes,
“SEU JOÃOZINHO” procurou pelo engenheiro 6 (seis) vezes. O calvário
durou ao todo 9 (nove) meses.
Naquela altura, percebeu duas coisas: de um lado, o que tinha para
receber já não contava muito, afinal, a inflação corroera grande parte do
valor da dívida; de outro, era muito difícil cobrá-la ou recuperar a terra. Foi
nesse quadro de inquietações que esteve com o engenheiro pela nona vez.
Estava sentado num banco da principal rua da cidade e engraxava os
sapatos quando notou o engenheiro passando. Pagou a conta e saiu
apressado para alcançá-lo. Interpelou-o e disse que estava ali para receber o
que era seu. O engenheiro reagiu dizendo que não havia assunto para tratar
ali e tinha mais o que fazer. Tanta afetação, desprezo e soberba
equivaleram a um ataque. A situação limite para a dignidade de “SEU
JOÃOZINHO,” ali desconstituído como sujeito, desencadeou naquela
17
circunstância uma conduta limite como resposta. O engenheiro pagou com
a vida pela insensibilidade. O velho portava uma faca e golpeou-o nove
vezes. Preso, em flagrante, foi processado e submetido a júri.
2. O limite da dogmática penal. O caso era de natureza especial,
singular, algo fora da rotina penal. Podia ter como desfecho uma solução
punitiva, exasperada ou não. Mas, não excluía a idéia de uma solução
absolutória. Qualquer resultado, contudo, implicaria uma escolha entre
alternativas possíveis e sustentáveis. A primeira alternativa, correspondente
à punição, era sustentável a partir dos marcos da dogmática penal aplicada
no
cotidiano.
O
problema
mesmo
estava
em
como
sustentar
dogmaticamente a segunda alternativa mediante um discurso que garantisse
a solução absolutória. Os caminhos ficavam ora mais, ora menos claros
conforme a linha teórica cogitada. Assim, do ponto de vista da
argumentação (teoria retórica), o caso era dotado de conteúdos fortes,
expressivos, com simetrias bem marcadas (pobre/rico; honra/desonra;
ingenuidade/esperteza; camponês/engenheiro; valores do campo/valores da
cidade; contrato pela palavra/contrato por instrumento, etc.), capazes de
fundamentar uma estratégia em busca do fim que se queria. Do ponto de
vista legal (teoria normativa), contudo, havia riscos. A conduta em questão
era imprópria para subsunção em orações excludente de ilicitude e culpa
indicadas no código penal. Dito de outro modo, as características do fato
não se acomodavam bem, seja nas situações de legítima defesa, estado de
necessidade, exercício regular de direito, estrito cumprimento do dever
legal (excludentes de ilicitude), seja nas de coação irresistível, obediência
hierárquica, inimputabilidade decorrente de doença mental, erro de
proibição (excludentes de culpabilidade). Mesmo o uso do argumento
analógico (sempre possível no direito penal quando é para favorecer o
imputado) seria problemático. A solução estaria em contornar a lei penal,
embora sem perdê-la de vista, pelo caminho da inexigibilidade de conduta
18
diversa.2 O tema era conhecido do pensamento dogmático, mas de
autonomia, localização e visibilidade discutíveis, se referido ao direito
positivo.
Pois bem, lançado no júri e com os debates encerrados, o juiz negou
que pudesse torná-lo objeto de quesitos. Tinha a compreensão de que só
podia formular questões a partir de teses deduzidas da lei. Sob esse aspecto,
revelava outra compreensão, a que tinha do próprio direito e suas fontes.
Numa palavra: nem o costume, nem a jurisprudência, nem a doutrina
pareciam inspirar suas decisões. Para aquele juiz, é como se fora da lei não
houvesse direito. Ora, este era o caso da inexigibilidade (...); logo, cabia à
defesa arranjar outra tese, ali mesmo, naquela reunião. O fato de terem sido
ultrapassadas as etapas correspondentes à réplica e tréplica não seria
problema. Nesse ponto, (curiosamente) ele abriria mão da lei para permitir
outro debate. A solução improvisada foi lançar mão do argumento da
legítima defesa, isto é, de saída tecnicamente imprópria para o caso e, dessa
forma, alcançar a decisão que as exigências de justiça reclamavam. O
reconhecimento pelo júri dessa tese, contudo, só foi possível por conta de
um arranjo retórico que ligava negativamente a legítima defesa à
inexigibilidade de conduta diversa. Em outros termos, mostrava-se para os
jurados que o caso não era de legítima defesa, e sim de inexigibilidade, mas
a solução justa só seria alcançada pela aceitação da excludente de ilicitude,
em razão de exigências técnicas correspondentes à formulação dos
2
Semelhante de algum modo foi o problema prático descrito por Gonzalo Quintero OLIVARES (Derecho
Penal: parte general, p. 490) no qual JIMENEZ DE ASÚA esteve envolvido como advogado, cuja
solução deu-se pelo uso da inexigibilidade de conduta diversa como fundamento de uma causa de
exculpação na falta de qualquer outra prevista na lei ajustável ao caso concreto: “... nos referimos à
defesa que JIMÉNEZ DE ASÚA fez de uma humilde costureira que, dando luz a um filho em uma época da
história espanhola em que isso bastava para sua exclusão social por ser solteira, o deixou abandonado em
um parque público, cometendo o delito descrito no atual artigo 488, terceiro, CP. Nem a obediência
devida, nem o medo, nem o ‘estado de necessidade exculpante’ podiam acolher o caso, o que levou o
ilustre penalista a sustentar que se tratava de um suposto de não exigibilidade, possibilidade que o
Tribunal Supremo, aferrado ao formalismo jurídico da época, rechaçou (...)”.
19
quesitos. “SEU JOÃOZINHO” foi absolvido, mas o episódio abriu caminhos
para problemas.
Com efeito, um deles, além de recorrente, é geral; outros são
específicos. O problema geral está ligado ao tema da relação entre normas e
decisão judicial, sob o aspecto das lacunas ou insuficiências do sistema
penal, tendo em vista a busca de justiça material (efetivar a justiça formal
não constitui um problema nesse sentido, pois ela se basta com a aplicação
do estoque normativo existente). Assim, que fazer diante de um quadro de
lacuna jurídica revelada pela inexistência de norma (exculpante) capaz de
fundamentar decisão que atenda às expectativas de justiça, associadas ao
caso concreto? Os problemas específicos decorrem do tema da
inexigibilidade de conduta diversa e apontam sempre para a relação desse
conceito com a solução de casos-limite, perante os quais o direito penal põe
a descoberto suas aflitivas insuficiências. Assim, como e em que
circunstâncias a inexigibilidade de conduta diversa pode ser tomada em
conta para preencher lacunas ou afastar insuficiências?
3. A carência normativa. Primeiro, então, o problema geral. Com
efeito, os sistemas de direito positivo normalmente são estruturados na base
do esquema regra-exceção. Embora de uso pelo legislador, parece que esse
esquema não terá sido objeto de muita atenção da parte do pensamento
jurídico.3 É na sabedoria popular que pode ser localizada a origem de sua
formulação. Ninguém discorda quanto ao traço de senso comum em torno
do que vem daí, mas todos estão de acordo que algumas máximas criadas
nesse âmbito, embora não constituam ciência no sentido habitual, podem
produzir uma forma de conhecimento que se torna referência em função da
curiosidade que desperta. É o caso daquela que anuncia: “toda regra tem
exceção”.
3
De qualquer modo, Hans-Heinrich JESCHECK (Tratado de Derecho Penal, p. 291) constitui uma
exceção, pois desenvolve breves considerações acerca do tema.
20
Se algum estudioso quiser colher conclusões mais detalhadas sobre o
que isso significa, vai alcançar pelo menos três aspectos: em primeiro
lugar, a máxima reflete a leitura que a opinio poppuli faz das relações
humanas; em segundo lugar, que tais relações envolvem ações às vezes
dotadas de alguma complexidade; em terceiro lugar, que, sendo assim,
aquelas relações não podem ser reguladas segundo princípios inflexíveis,
absolutos, impermeáveis às exceções, cujo papel é o de alterar a regra para
o efeito de torná-la mais eficaz.
O mesmo estudioso, contudo, pode querer ir mais adiante na sua
reflexão. Assim, de um lado, retira do cenário o homem comum e no seu
lugar coloca o legislador; de outro, substitui o objeto da observação que
deixa de ser o amplo conjunto das relações humanas e passa a considerar
somente as relações estritamente jurídicas. Fazendo isso, compreenderá
facilmente que a racionalidade do saber popular, às vezes, está a curta
distância daquela que conduz à produção do saber jurídico.
É disso que se trata quando se observam algumas áreas do direito.
No direito administrativo, por exemplo, a regra geral é que os contratos
administrativos celebrados devem obedecer ao procedimento licitatório; a
exceção é que alguns contratos, tendo em vista características singulares de
um dos celebrantes (como a notoriedade de sua especialização),
prescindem de licitação. Não é diferente no direito constitucional. Neste
setor, uma regra geral bastante conhecida é a de que a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios não podem cobrar tributos no mesmo
exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu (art.
150, III, b, da CF). Mas existem as exceções. Uma delas é a que permite à
União, no caso de guerra externa, instituir impostos extraordinários (art.
154, II, da CF). Semelhante esquema opera no direito civil, ali onde
estabelece genericamente que aos 18 anos completos cessa a menoridade e
a pessoa fica habilitada para a prática de todos os atos da vida civil. Mas,
21
excepciona situações (por exemplo, a do casamento) em que antes daquele
limite acaba para os menores a incapacidade.
O artifício da regra-exceção também é utilizado pelo direito penal.
Funciona à base de um mecanismo que possibilita, de um lado, a descrição
das proibições (por exemplo, o homicídio previsto no artigo 121, CP) e
comandos (por exemplo, a omissão de notificação de doença prevista no
artigo 269, CP), e, de outro, indica as permissões (excludentes de ilicitude)
e exculpantes (excludentes de culpabilidade). A relação entre normas que
proíbem, comandam, permitem e exculpam, entretanto, é problemática.
Para tanto, basta considerar que o número de proibições prescritas no
direito penal é vasto; ao contrário, é reduzido o de permissões e
exculpações. Trata-se, portanto, de uma relação desigual em que aquelas na
parte especial do código penal são em número de 214 (considerados apenas
os tipos na sua forma básica), enquanto as últimas alcançam apenas o total
de 9 (nove). Tais números, claro, excluem a legislação especial e a lei das
contravenções penais. Se incluíssem, os dados seriam outros. Neste caso, a
quantidade de proibições aumentaria, embora não necessariamente a de
permissões e escusas. É que normalmente a lei especial dispensa, na sua
formulação, a incorporação destas, pois constituem matéria geral do código
e aplicam-se aos fatos incriminados por aquela.
Com efeito, é possível uma objeção sinalizando que é incorreto o
ponto de vista segundo o qual existem apenas nove permissões e escusas no
direito penal. Tal objeção procede, mas, em parte. Na verdade, o número
nove considera apenas as hipóteses diretamente contempladas na parte
geral do código. No caso, quatro excludentes de ilicitude − estado de
necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e
exercício regular de direito − e cinco excludentes de culpabilidade – coação
irresistível, obediência hierárquica, erro de tipo, erro de proibição e a
descriminante putativa do art. 20, § 1º.
22
Indiretamente, entretanto (de qualquer forma sempre a partir do
código penal), aquela grade se abre para novas possibilidades. Isso ocorre
por um trabalho que é garantido pela doutrina naquilo que lhe é inerente,
ou seja, a montagem de um conhecimento sistemático que se desdobra, no
geral, em dois níveis. O primeiro nível aparece pela composição de um
quadro teórico cujo conteúdo é capaz de conferir definições, classificação e
ordem ao sistema. O segundo aparece no plano da criação pela descoberta
incessante de diferentes alternativas que o próprio sistema sugere. É o caso,
por exemplo, das novas formulações que surgem da combinação entre cada
uma das causas excludentes de ilicitude e a descriminante do art. 20, § 1º.
Disso resultam conceitos, como o de estado de necessidade putativo,
legítima defesa putativa, exercício regular de direito putativo e estrito
comprimento do dever legal putativo, que são capazes de revelar condutas
também insuscetíveis de censura.
Nesse sentido, o esquema das permissões e escusas no direito penal
não seria tão limitado assim.4 Sua montagem apontaria para a idéia de uma
desejável flexibilidade no seu funcionamento. Com isso, estaria garantida a
segurança jurídica prometida ao indivíduo, cujas expectativas não seriam
desapontadas pela impossibilidade de aplicação ao caso concreto de uma
das causas direta ou indiretamente reveladas de justificação ou exculpação
de sua conduta.
4. O cálculo geométrico. Contudo, as coisas não parecem tão
simples. O impasse que precedeu o desfecho do caso Joãozinho inspira
questões capazes de porem o sistema penal a descoberto, pela revelação de
aspectos que apontam para suas insuficiências. Nesse sentido, as perdas da
4
Num sentido próximo Günter STRATENWERTH (Derecho Penal, p. 226) considera que o direito vigente
conhece um número relativamente amplo de causas de justificação. Também numa linha parecida,
embora tratando apenas da antijuridicidade como violação da ordem jurídica em seu conjunto e no
contexto de uma crítica especifica à teoria das causas de justificação como características negativas do
tipo penal, Hans WELZEL (Derecho Penal, p.117) argumenta que é indiferente saber em que parte da lei
está regulada uma causa de justificação.
23
razão penal são inevitáveis. Afinal, desde os iluministas, sua idéia central é
que o modelo de direito penal para os novos tempos não apenas seria capaz
de garantir a segurança de todos e cada um, mas teria aptidão para
responder a conflitos de qualquer sorte, gerados pela convivência humana.
Assim, o direito penal criado pelos modernos e a partir de BECCARIA
fixou como premissa central a idéia de que a razão, para além da
“prudência ocasional” e “seduções da eloqüência” inerentes à tradição,
seria capaz de definir soluções para problemas penais com “exatidão
geométrica”.5 Para tanto bastava que leis escritas e claras, fundadas no
consenso e não na revelação, fossem instituídas. Isso permitiria ao
indivíduo um cálculo quanto à conveniência de sua conduta, suficiente para
garantir não só a segurança, mas a liberdade também.
O processamento desse cálculo passou a considerar regras que
estipulassem condutas proibidas e ordenadas às quais associava
conseqüências jurídicas. Ao lado disso, incorporou as condutas permitidas
(excludentes de ilicitude) bem como as condutas insuscetíveis de censura
(excludentes de culpabilidade). Essa combinação, montada a partir de
elementos antitéticos, ou seja, condutas que, de um lado, impunham e, de
outro, dispensavam a punição, parecia conferir uma resposta a exigências
de justiça, ora ligadas à sociedade, quando fosse inevitável a aplicação de
sanção, ora ao indivíduo, quando sua aplicação fosse evitável. Constituída
desse modo, a razão penal brindou o homem moderno com a promessa de
que lhe passava um sistema normativo maciço, sólido, sem vazios e apto a
prover as buscas para a solução de quaisquer conflitos.
No entanto, o sistema não é consistente e seus vazios são evidentes.
É o que ocorre mais particularmente com as excludentes de culpabilidade.
Nesse domínio, o déficit de provisões normativas para regular situações5
Cf. Dos delitos e das penas, p. 11 ss.
24
limite mostra, de um lado, o caráter limitado ou inacabado do discurso da
modernidade na área penal; de outro, o indivíduo inseguro diante de
cenários cujos problemas excluem soluções não consagradas pela rotina.
Não se trata, por conta disso, de imaginar que a razão penal esgotou suas
possibilidades. Ela projeta ainda influências fortes no presente e tem como
se estender no futuro. Os vazios paralisantes que exibe podem ser ocupados
por contribuições diferentes.
5. O apelo a soluções fora da rotina. Trata-se, então, de buscar
novos rumos ou recuperar roteiros já percorridos, mas inexplorados em
todas as possibilidades. Um desses roteiros descortina-se no tema da
inexigibilidade de conduta diversa. Mas, o que é a inexigibilidade de
conduta diversa? Quando esse conceito surgiu na dogmática penal? Onde
pode ser localizado no direito penal? Seria causa legal de exculpação e,
assim, dotada de força normativa? Seria causa supralegal de exculpação e,
assim, dotada apenas de força teórica? Acaso são, ao mesmo tempo, ambas
as coisas? Seu uso é reconhecido como termo de referência para a aplicação
analógica das causas legais excludentes de punição? Além dessas questões
gerais, outras mais específicas se impõem; por exemplo, é possível
determinar a medida exata da inexigibilidade? Ela insinua uma porta aberta
para a impunidade? Existem ou não os limites jurídicos capazes de frear tal
impunidade? O juiz, ao aplicá-la, estará criando direito e, desse modo,
usurpando função (legislativa) imprópria?
Cabem ainda indagações quanto a saber que indivíduo é esse,
inseguro diante de uma razão penal que não garante suas promessas? Como
e quando ele surgiu? Qual a importância que tem para a formulação do
direito penal moderno? Suas expectativas de segurança jurídica podem
ficar mais estabilizadas, ali onde o direito penal se deixa penetrar por
conceitos fora da rotina, a exemplo da inexigibilidade?
25
Esses são alguns dos problemas que aqui serão enfrentados. É
possível que, em parte, sejam resolvidos, mas não é improvável que a outra
parte permaneça. O que importa mesmo, pensando bem, é compreender
com ARISTÓTELES que a solução de um problema vale por “uma
descoberta”.6
6
Ética a Nicômacos, p. 132.
26
Capítulo II
O Indivíduo
1. Dependência e emancipação. Na era moderna todos os homens
foram brindados pela chance de tornarem-se sujeitos. Significa que cada
um passou a ser reconhecido de acordo com sua identidade, constituída não
apenas de nome, domicílio, estado civil, mas, sobretudo, de um papel na
sociedade, por exemplo, operando no mercado como empresário, operário,
prestador de serviço; vinculado ao Estado como dirigente ou funcionário;
produzindo conhecimento como intelectual; criando como artista, etc. A
posse da identidade fez de cada homem um ser único, particular, cujos
registros permitiram distingui-lo dos demais. Do processo que tornou o
homem irredutível a outro, nasceu o indivíduo. Seu aparecimento
corresponde a uma ruptura com esquemas de poder sustentados numa
tradição que vinha desde os antigos. Nela, a percepção que no geral o ser
humano tinha de sua condição remetia-o a um fracasso que parecia
inevitável. Incapaz de se viabilizar à custa de sua direção, o homem
submeteu-se durante longo tempo ora às determinações do destino, ora às
exigências da divindade, ora, ainda, à tutela de outro. Assim, encoberto e
27
carente de visibilidade, escapava-lhe a ocasião de se tornar viável pela
assunção de responsabilidades. Isto só seria possível com a posse de uma
consciência de si que ainda não tinha.
Com efeito, a descoberta do indivíduo conferiu ao homem o alvará
de sua emancipação. Para tanto, foi preciso que manejasse alguns
elementos, deslocando-se de posições que ostentavam sua dependência.
Assim, e em primeiro lugar, substituiu a consciência do nós, cuja marca se
exibia ou na identificação com a comunidade, ou na inteira submissão às
instâncias divinas, pela consciência de si (o salto para a autonomia teve sua
origem nesse impulso em direção a si mesmo). Em segundo lugar, assumiu
o sentimento da liberdade e tomou em suas mãos o patrocínio de seu
destino (foi nesse ponto que o livre-arbítrio como condição da
imputabilidade7 se tornou o cânon que orientava no âmbito da moral a
escolha entre o bem e o mal e, no âmbito do direito, entre o lícito e o
ilícito). Em terceiro lugar, elevou a razão à condição de guia, não só para
conhecer e dominar a natureza,8 mas para ordenar o mundo. Finalmente,
consagrou a idéia de igualdade como aquela que deve pautar a relação do
indivíduo com os outros.
Mas foi longo, complexo e, por isso mesmo, de difícil apreensão o
percurso que conduziu o homem a transformar-se em indivíduo. Por conta
disso, constitui lugar comum na Filosofia e nas Ciências Sociais a idéia de
que o conceito de indivíduo tem uma história.9 Incomum é localizar o
começo dela. De qualquer forma sempre é possível a montagem de um
roteiro, ainda que insuficiente e genérico, que dê conta da questão aqui.
7
Arthur SCHOPENHAUER (Fragmentos para a história da filosofia, p. 110) considera criticamente que o
livre-arbítrio foi inventado para se esquivar da dificuldade inerente ao teísmo, que suprime a liberdade e a
imputabilidade pela consideração de que o homem é obra de Deus, “pois não se pode crer na culpa e no
mérito de um ser que quanto à sua existentia e essentia é obra de um outro.”
8
Francis BACON (Novo organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza, p. 98)
não só conclamou o gênero humano a recuperar “os seus direitos sobre a natureza”, mas reconheceu que
isso só será possível se for “guiado por uma razão reta (...) liberta de todos os obstáculos” que se
localizam na “superstição e impostura”.
9
Ver, nesse sentido, Max HORKHEIMER, Eclipse da razão, p. 131.
28
Trata-se, para tanto, apenas de escolher uma das duas premissas já
consolidadas em torno do tema. A primeira é desenvolvida na Dialética do
Esclarecimento, onde ADORNO e HORKHEIMER conseguem enxergar o
indivíduo já na epopéia homérica. Ali, o personagem mais emblemático
daquela condição é retratado em ULISSES. Ele é o símile grego do homem
moderno, vale dizer: “o protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem
origem naquela auto-afirmação unitária que encontra seu modelo mais
antigo no herói errante”.10A segunda é desenvolvida por AGNES HELLER,
para quem o indivíduo somente se constitui quando pode escolher (ainda
que idealmente) a comunidade em que quer viver. Isso não era possível
com os antigos, mas, de algum modo, se tornou possível com os modernos.
Entre os antigos, a relação do indivíduo com a comunidade derivava de
uma necessidade exterior (por exemplo, do nascimento); entre os
modernos, de uma necessidade interna (por exemplo, de uma decisão
pessoal).11
A distinção entre as duas teses para o que interessa aqui está na
exploração mais ou menos ampla do passado, isto é, do movimento que
conduziu o homem à posição de indivíduo. Como, em todo caso, esse
movimento parece corresponder a diversos estágios da organização social e
política, conforme, aliás, algumas indicações da literatura especializada,12 a
primeira tese é preferível. Cabe observar, contudo, que a investigação que
segue não inclui aqueles estágios mais primitivos, seja o do clã, seja o da
tribo (salvo para mostrar que nesses cenários o indivíduo ainda não havia
se instalado); inclui apenas os mais avançados, vale dizer, a pólis, a civitas,
os feudos e o Estado Moderno.
10
Ibid., p. 53.
O cotidiano e a história, p. 65 ss.
12
Niklas LUHMANN (Sociologia do direito I, p.184 ss) desenvolve o tema da relação entre direito e
sociedade, tomando em consideração, também, o desenvolvimento das formas históricas do direito, onde
distingue o direito arcaico, o direito das altas culturas antigas e o direito positivo da sociedade moderna,
de modo que no direito arcaico o acesso do indivíduo a outras possibilidades dependia da parentela, mas
já em Roma, cujo direito situa no contexto das altas culturas antigas, é criada “... a instituição de um
‘direito político privado (‘direito civil’) do qual o indivíduo participa enquanto cidadão político”.
11
29
Com efeito, o clã e a tribo são formas de associação onde o homem
se diluía na totalidade a que estava vinculado. Ninguém se distinguia pelo
domínio de um espaço particular para a ação. O clã, por exemplo, era
constituído de membros que tinham em comum, além do sangue de
gerações ancestrais, o interesse em segurança e proteção. LUHMANN
esclarece como isso se dava na prática a partir dos conceitos de represália e
reciprocidade. A segurança era garantida em nome do princípio da
represália (exercida por todos em favor do ofendido); a proteção pelo
princípio da reciprocidade (em que a operação de dar e receber funcionava
como compensação das necessidades). Tais eram as noções básicas que,
para LUHMANN, constituíam o direito das sociedades arcaicas das quais o
clã é uma das expressões.13 Como se vê, aí prevalecia a espécie de ação
comunitária, e não a particular. Mais do que isso: o lugar do espírito
próprio era ocupado pelo espírito coletivo. Sempre que um (membro) era
ofendido, correspondia a solidária defesa do clã. Nesse caso, havia a
crença de que a ofensa violava o interesse comum. A propósito disso, a
prática do homicídio é representativa e implicava duas conseqüências. Em
primeiro lugar, transformava o clã a que pertencia o infrator em portador de
uma forma coletiva de culpabilidade;14 em segundo lugar, impunha ao clã
do ofendido a vingança como expressão de um dever coletivo que se
materializava numa declaração de guerra contra aquele, agora considerado
inimigo.15 Essa guerra se explicava ou era justificada pelo compromisso de
fidelidade que unia a todos. Assim, o ataque do inimigo, mais do que
13
Cf. Sociologia do direito, p. 190 ss.
Nesse sentido ver Franz Von LISZT (A idéia do fim no direito penal, p. 23). Ver também Hans KELSEN
(Teoria pura do direito, p. 180) para quem “a responsabilidade coletiva é um elemento característico da
ordem jurídica primitiva e está em estreita conexão com o pensamento e o sentir identificadores dos
primitivos. À falta de uma consciência do eu suficientemente acusada, o primitivo sente-se de tal modo
uno com os membros do seu grupo que interpreta todo o feito, por qualquer forma notável, de um
membro do grupo, como feito do grupo - como algo que nós fizemos -; e, por isso, assim como aceita a
recompensa para o grupo, assim aceita, de igual modo, a pena como algo que impende sobre todo o
grupo”.
15
Cf. Max WEBER, Economia e sociedade, vol. I, p. 250 s.
14
30
ofensivo a um membro qualquer, ofendia o próprio clã.16 Já a tribo,
alojando no seu interior diversos clãs, não passava de uma forma social
mais ampla, pelo que incorporava as práticas próprias deste.
2. A pólis. Os gregos constituíram pela pólis o vestígio mais remoto
do indivíduo. Para justificar esse ponto de partida, basta admitir que ali ele
fosse o cidadão.17 Mas essa condição incluía poucos, ou seja, apenas
aqueles que, segundo ARISTÓTELES, estavam em condições de exercer
“funções públicas”,18 pois “a maioria era escravizada”.19 A posição de
cidadão “dependia − acrescenta ARISTÓTELES − do nascimento e da
riqueza”,20 o que não só garantia a “elegibilidade”21 para os cargos do
governo, mas o dispensava de “viver uma vida de trabalho trivial”.22 Com
efeito, o trabalho era exercido pelo escravo que, embora sob o aspecto
natural fosse um ser humano, não passava de um bem, sob o aspecto
político. Assim, para o filósofo, escravo é aquele que, não sendo dono de
si, pertence a outro. Isso é suficiente para transformá-lo num bem, num
instrumento (embora animado) a serviço do senhor e separável dele.23
Nesse ponto, parece se articular a idéia, ainda que por negação, acerca do
que seja o indivíduo para o grego: é o ser humano que pertence a si mesmo,
não a outro.
Uma sociedade na qual prevalece a visão de mundo que associa
alguns humanos à condição de bens permite 3 (três) observações: em
16
Günther JAKOBS (Estudios de derecho penal, p. 104) tem o entendimento de que nos casos de
responsabilidade por pertencer a um grupo tribal “... tanto o autor como a vítima não se define como
sujeitos autônomos, mas como membros de um grupo tribal”.
17
Tércio Sampaio FERRAZ JÚNIOR (Hobbes e a teoria normativa do direito, in: Estudos de filosofia do
direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito, p. 272) aponta para a relação entre a
pólis e o nascimento do indivíduo: “A pólis representava um momento de transformação das sociedades
arcaicas, aparecendo nela o homem como indivíduo, que pode agir em face de boas e más possibilidades,
escolhendo racionalmente...”.
18
ARISTÓTELES, Política, p. 78 (1275b).
19
Idem, A constituição de Atenas, p. 258.
20
Ibid., p. 255.
21
Ibid.
22
ARISTÓTELES, Política, p. 239 (1329a).
23
Cf. ibid. p. 18 (1254a).
31
primeiro lugar, justifica a servidão, com base numa desigualdade natural
entre os homens. Isso não quer dizer que o pensamento grego
desconhecesse a noção de igualdade. Mesmo ARISTÓTELES reconhecia sua
existência, mas somente ali onde “... igualdade significa igualdade de
posições para pessoas equivalentes...”,24 pelo que escravo e cidadão só têm
como símiles, respectivamente, outro escravo e outro cidadão. Em segundo
lugar, não é improvável que nessa visão esteja contido o antecedente mais
antigo acerca do que seja o indivíduo: é o ser humano dono de si, senhor de
suas ações e titular das escolhas que define. Em terceiro lugar, torna
possível a compreensão de que, numa sociedade como a grega, marcada
pela divisão dos seres humanos, onde alguns, sendo independentes, fazem
dos outros seus dependentes, a questão da liberdade pode ser examinada do
ponto de vista de quantos tinham acesso a ela.
Antes de responder se nenhum, poucos ou muitos gozaram dela,
convém esclarecer que os filósofos gregos fizeram da palavra “liberdade”
um uso meramente discursivo,25 sem, no entanto, constituí-la num
problema. Assim, ela aparece em textos de PLATÃO e ARISTÓTELES
relacionados ao tema dos governos democráticos. PLATÃO reproduz um
diálogo entre SÓCRATES e ADIMANTO no qual a liberdade é colocada sob
suspeita. O dialogo começa com SÓCRATES:
― (...) não é o desejo insaciável daquilo que a democracia considera
como o seu bem supremo que a perde?
― E que bem é esse?
― A liberdade.26
24
Ibid., p. 253.
Ver nesse sentido Tércio Sampaio FERRAZ JÚNIOR, Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o
poder, a liberdade, a justiça e o direito, p. 76.
26
A República, p. 280.
25
32
Já na política, a palavra liberdade é empregada por ARISTÓTELES
quando considera que “um princípio fundamental de toda forma
democrática de governo é a liberdade”.27 Como se vê, a palavra “liberdade”
cumpre, nas passagens destacadas, a função que o contexto discursivo
reclama. Ora é referida como um bem que, desejado em excesso, coloca em
risco a democracia, ora é referida como um princípio sem o qual a
democracia não se funda. Mas o sentido em si e a palavra mesma em
nenhum momento foram alvos de atenção.
Aliás, FUSTEL
DE
COULANGES sustenta o ponto de vista de que
nenhum grego gozou da liberdade. Para ele, a dominação que a cidade
grega exercia sobre seus membros era absoluta. A vida das pessoas era
submetida à lógica da onipotência e força do Estado. Este era o senhor da
fortuna, da vida, dos sentimentos e das crenças de todos os homens. Assim,
se precisasse de dinheiro, podia expropriá-lo; se a criança nascesse com
defeito, ordenava ao pai que a matasse; se os jovens morriam na guerra, os
pais tinham que mostrar alegria em público; se os deuses fossem colocados
em questão, condenava-se o insolente [SÓCRATES]. Num quadro como esse
é difícil, segundo COULANGES, acreditar que o homem pudesse ter sentido o
gosto da liberdade.28 O argumento de COULANGES, no mínimo, é discutível.
Tem como defeito principal a distinção que não faz entre as instituições de
ESPARTA e ATENAS, as principais cidades gregas. O espartano e o ateniense
tinham deveres que os tornavam menos ou mais livres.29 Mas isso aponta
apenas para o caráter limitado da liberdade entre os gregos, em proporções
sempre dependentes do modo como organizavam politicamente suas
cidades. O sentimento mesmo da liberdade parece ter sempre existido e
pode ser identificado na GRÉCIA ainda encantada pelos mitos.
27
ARISTÓTELES, Política, p. 204 (1317 b).
Cf. A cidade antiga, p. 248 ss.
29
Próximo disso é o argumento de Bertrand RUSSEL (A autoridade e o indivíduo, p. 36) ao considerar que
“as cidades gregas diferiam enormemente quanto ao grau de liberdade permitida aos cidadãos; na maioria
delas havia muita, mas em Esparta, um mínimo absoluto”.
28
33
A GRÉCIA mitológica é um espaço ocupado por deuses e heróis. O
poder que tais personagens exercem é bem distinto. Os deuses podem
muito, mas não tudo; os heróis podem bem menos. Os deuses sabem, por
exemplo, que nada podem contra a natureza e que a sorte de todos (deuses
e heróis) está traçada pelo destino. Trata-se de um ser diante de quem o
próprio Zeus se submete. Isso implica que as determinações do destino não
podem ser alteradas, pelo que os deuses se conformam e não se sentem
livres, pois não podem fazer nada. A atitude dos heróis é diferente. Como
os deuses, sabem que sua sorte está programada, mas não se conformam.
Preferem combater o destino, na ânsia para escapar do seu jugo, embora
não tenham chances. Na audácia desse gesto repousa não só a origem da
tragédia grega, mas também do sentimento da liberdade como expressão de
um ideal ainda cultivado por poucos 30
Já o ponto de vista de HANNA ARENDT relaciona o homem grego com
a liberdade, mas como um fato da vida cotidiana, da política, e não como
questão filosófica. Mas de que liberdade se trata aí? Aquela que se torna
visível pelo agir conjunto dos homens. Essa ação, no entanto, só pode ser
desenvolvida pelos homens livres e no espaço da pólis. A liberdade, então,
é algo que se confunde com o exercício da política, cuja prática é vedada
aos escravos. Nesse sentido, o exercício da liberdade é limitado,
estamental. O acesso à ação política era permitido ao grego livre; ao
escravo, não. Mas a liberdade referida à política não é um atributo da
vontade e sim do intelecto. O homem é livre enquanto age, não segundo um
motivo ou desígnio e sim de acordo com princípios (dignidade, honra,
excelência, etc.). A ação segundo o princípio da excelência, por exemplo,
conduziu à fundação da pólis. Ali era o domínio onde os homens
30
Para Friedrich Von SCHELLING (Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo, In: Os
Pensadores, p. 34), “a tragédia grega honrava a liberdade humana, fazendo que seu herói lutasse contra a
potência superior do destino”. Tércio Sampaio FERRAZ JÚNIOR (op. cit., p. 78) também considera que o
herói homérico, quando tenta superar suas próprias limitações, torna-se “... um ser até ‘mais livre’ que os
próprios deuses...”.
34
desfrutavam da companhia de outros, após terem sido liberados das
necessidades da vida.31 Mas esse era um privilégio dos cidadãos gregos,
que eram muitos, pelo menos se comparados aos heróis, que eram poucos.
3. A civitas. A cisão que a pólis grega fez entre os homens,
distinguindo-os segundo privilégios que ostentavam, de tal modo que
alguns tinham muitos, e outros, nenhum, foi reproduzido na civitas romana.
É possível que nesse âmbito tal processo tenha sido mais complexo. Afinal,
sua história envolve um período que gira em torno de pouco mais de 1.200
anos. Durante esse tempo, ROMA experimentou processos políticos que
desaguaram na Realeza, República e Império, sucessivamente. Nesse
percurso, a posição do cidadão não sofreu qualquer mudança. Era
reconhecido como tal “... todo aquele que tomava parte no culto da cidade,
e dessa participação lhe derivavam todos os seus direitos civis e
políticos”.32 O que se constituía em objeto de mudança eram os critérios
para o acesso àquela condição.
Realeza. Assim, na realeza só era cidadão o patrício. Sua distinção
ficava garantida pelo exercício de pelo menos duas prerrogativas: de um
lado, o “direito de votar e obter justiça perante as cortes”,33 e, de outro, a
circunstância de que ninguém, além dele, podia administrar a cidade.34
Mas, o patriciato era um espaço privativo das famílias nobres de ROMA.
Aquelas que, constituindo a gens, eram unidas pelo antepassado comum. O
laço de sangue, portanto, gerado na figura de um ancestral fundador,
representava até então o único critério que a ROMA dos reis adotava para
identificar seu cidadão.
A plebe ficava à margem desse circuito. Era formada por
estrangeiros, clientes, libertos e, de algum modo, por escravos (tratados ali
31
Entre o passado e o futuro, p. 191 ss.
Fustel de COULANGES , op. cit., p. 213.
33
J. M. ROBERTS, O Livro de ouro da história do mundo, p. 219 s.
34
Cf. Alberto MALET, Roma, p. 21.
32
35
como se fossem um bem, uma coisa, uma mercadoria) que não podiam ser
cidadãos. Ocupavam assim, o espaço social reservado aos excluídos, sob o
controle de uma interdição que lhes negava acesso ao culto religioso, ao
voto nas assembléias, à ocupação dos cargos públicos e à justiça. (A
posição das mulheres era um pouco diferente. Embora não contassem
“como membros da comunidade”35 – afinal não podiam ser proprietárias e
eram proibidas de exercer a política e reclamarem direitos –,
compartilhavam das “honras” tributadas ao esposo, apareciam com ele em
público, nas cerimônias e nos jogos, estavam rodeadas de considerações36
e, ainda, tomavam “parte no culto”37). Aliás, o acesso à justiça, permitido
ao cidadão e proibido à plebe, mostra a extensão limitada das relações
jurídicas entre os romanos. Estas eram reconhecidas apenas no estreito
domínio ocupado pelos homens livres e nunca se estendiam para aqueles
que ficavam de fora. Isso quer dizer que a lei romana, se, de um lado,
regulava as relações entre os iguais, isto é, entre os patrícios,38 de outro,
mantinha-se, no geral, indiferente quanto às relações entre os desiguais, isto
é, entre os patrícios versus seus dependentes (mulheres, filhos, escravos,
etc.),39 fenômeno que explica a potestade punitiva representada pelo jus
vitae et necis conferida ao paterfamilias. As condições políticas da
República, no entanto, alteraram esse quadro.
República. Nesse período, o ingresso na cidadania romana passa por
critérios que vão além das relações de sangue. Dito de outro modo, a
aristocracia fundada no nascimento deixa-se penetrar por novos
contingentes. É o que ocorre quando o seleto e engessado estrato de
35
Theodor MOMMSEN, História de Roma (Excertos), p. 68.
Alberto MALET, op. cit. p. 38 s.
37
Fustel de COULANGES, op. cit. p. 46.
38
Ver, sob esse aspecto, WEBER (Economia e sociedade, vol. II, p. 42), para quem “Nenhuma lex romana
tinha vigência fora do círculo dos cidadãos”.
39
Para BODENHEIMER (Teoria del derecho, p. 36) “O direito romano (...) reconhecia relações jurídicas
unicamente entre as cabeças de famílias livres e independentes: não reconhecia relações jurídicas entre
um paterfamilias e seus filhos nem entre um amo e seus escravos.”
36
36
cidadãos ganha volume com a incorporação dos plebeus distinguidos pela
riqueza. O alistamento militar e o comércio foram os caminhos que
conduziram parte da plebe ao sucesso econômico e, como conseqüência, à
mobilidade social e política, assegurada agora pelo exercício de
prerrogativas que eram exclusivas do varão de ROMA.
Com efeito, no tempo dos reis, o exército era formado tão-somente
de cidadãos romanos. Eles não constituíam um corpo militar permanente e,
com o término da guerra, voltavam para suas ocupações habituais. Além
disso, assumiam os custos das armas e alimentos de que necessitavam, não
recebendo qualquer soldo. Desse modo e até “por espírito de justiça (...) os
pobres ficavam excluídos”,40 pois, afinal, não podiam se viabilizar no
empreendimento por conta própria.
Entre a queda dos reis e o início da República, contudo, a
composição do exército foi redefinida pela infiltração de setores da plebe.
O novo arranjo terá sido o resultado do impulso conquistador das legiões,
espalhadas pelo mundo e carentes agora de reforços. Ao êxito militar
sucedeu dúplice efeito: os territórios do inimigo foram anexados e a
riqueza, pela via do botim, expandiu-se. Com isso, a plebe também passava
a ser beneficiária de vantagens antes reservadas aos patrícios.
Por outro lado, a expansão de ROMA, definida pela sujeição de
diferentes povos vencidos na guerra, fez dali uma referência mundial com
reflexos na área dos negócios. A riqueza, antes fundada apenas na
propriedade da terra e dos escravos, encontrava no comércio outra fonte
para sua geração. O universo dos negociantes, contudo, não terá sido
constituído pelo antigo aristocrata romano, mas, sobretudo, pelo estrangeiro
(não necessariamente aquele derrotado no campo de batalha), possuído
40
MALET, op. cit. p. 58.
37
agora de sentimentos que, rejeitando a condição de plebeu, ambicionava
um espaço, afinal aberto, no patriciato.
Para além desses cenários – guerra e comércio –, a República foi
marcada por eventos políticos, cuja particularidade foi a de abrir caminhos
na busca da redução das diferenças entre patrícios e plebeus. Parece certo
que a idéia de igualdade, em que todos pudessem conviver no espaço da
cidadania, não tivesse sido claramente formulada no espírito da época, mas
não parece menos certo que em nenhum momento da Antigüidade tanto se
tenha lutado contra a desigualdade. Como resultado, tais lutas favoreceram
a criação dos tribunos da plebe e a lei das doze tábuas. (Antes disso,
porém, a desigualdade já fora alvo de um ataque, cujo êxito foi capaz de
abalar a estrutura que sustentava a família gentilícia de ROMA. Ele foi
desferido contra o princípio da primogenitura e seus efeitos, por exemplo,
aquele que garantia na sucessão toda a propriedade para o primeiro filho
nascido do casamento.)
O tribuno da plebe foi um personagem singular no âmbito da
representação política. Não há nada na história das instituições que lembre
o modo e alcance da ação que desenvolvia. Sua escolha era feita pelos
plebeus, mas podia recair tanto no oriundi, como num patrício.41 A lei
investiu-lhe de um caráter sacrossanto, garantindo seu desempenho contra
represálias. Assim, ninguém podia tocá-lo, nada podia ser feito contra ele,
e, nesse sentido, era inviolável. Tal privilégio “... alcançava até onde o
corpo do tribuno pudesse estender sua ação direta”.42 A conseqüência
prática disso estava em que, se um plebeu fosse agredido por um cidadão,
“... o tribuno se apresentava, colocava-se entre os dois (intercessio) e
detinha a mão patrícia”.43 Ali onde paralisava a força, o tribuno humilhava
41
Cf. MONTESQUIEU, Grandeza e decadência dos romanos, p. 64. Ver também MAQUIAVEL, Discursos
sobre la primera década de Tito Lívio, livro I, 13, p. 75.
42
Fustel de COULANGES, op. cit. p. 321.
43
Ibid.
38
o patrício, contido pelo medo de se tornar impuro ou de “cometer grave
impiedade”,44 se o tocasse. Isto permitiu que tivesse uma desenvoltura para
além das atribuições conferidas, na origem, ao seu papel.45 É o que explica
suas intervenções desassombradas, enfrentando não apenas os senadores,
mas os cônsules também.
Já a lei das doze tábuas rompeu com os limites que isolavam o
direito num espaço freqüentado por poucos. Ali penetravam apenas o
sacerdote e o cidadão. O passaporte que exibiam era, no caso do sacerdote,
o monopólio da arte dos rituais e o conhecimento das fórmulas sagradas; no
caso do cidadão, a circunstância de a cidade ter sido fundada por seus
ancestrais. Afastada desse círculo, a plebe agiu em busca de inclusão.
Nesse sentido, “pediu não só leis escritas e tornadas públicas, mas que
fossem igualmente aplicáveis a patrícios e a plebeus”.46 Não é o caso de
examinar aqui os contratempos que sucederam a essa reivindicação. O que
importa mesmo é assinalar que, depois de atendida, finalmente “o plebeu
compareceu perante o mesmo tribunal que o patrício (...) e foi julgado pela
mesma lei”.47 Como se vê, as luzes brilham não apenas para os modernos; à
sua maneira, os antigos também fizeram uso delas.
Império. O curso dos conflitos entre patrícios e plebeus prosseguiu
no Império. Não com a intensidade que marcou a luta social durante a
República, mas o suficiente para adicionar pelo menos novos elementos na
luta contra a desigualdade. Com efeito, ao longo do Império, a posição da
plebe terá sido afetada por pelo menos duas alterações. Uma alcançou os
escravos; outra, os demais plebeus. Desse modo, a mão-de-obra escrava
oscilou quanto à sua importância para a economia entre o início do império
44
Ibid., p. 320.
Segundo MONTESQUIEU (op. cit, p. 63), “os plebeus, tendo obtido tribunos para se defender, deles se
valeram para atacar”.
46
Fustel de COULANGES, op. cit. p. 326.
47
Ibid., p. 327.
45
39
e o século III.48 Com efeito, o governo de OTÁVIO AUGUSTO favoreceu a
escravidão. Sua política social funcionou como contraponto a algumas
concessões da República. Sob esse aspecto impôs limites e restrições à
liberdade (dos escravos). Nada disso, contudo, teria sentido três séculos
depois. Por essa época, o trabalho escravo já não tinha tanta importância no
mundo romano. Era o começo da erosão do escravismo como um dos
pilares que sustentava a Antigüidade.
Já os plebeus que não eram escravos garantiram sua emancipação
pelo edito de CARACALA (212 d.C.). Esse Imperador estendeu os
privilégios da cidadania para além do círculo da antiga família gentilícia.
Com isso, quebrou o critério que instituía Roma como único reduto capaz
de produzir cidadãos. A geração da cidadania agora passava a ser
reconhecida nos confins territoriais daquela civilização, nas mais remotas
províncias, o que brindava “os homens livres do império” com vantagens
nas esferas política (direito de acesso às magistraturas), jurídica (direito de
acesso à lei) e social (direito de acesso à propriedade) conferidas tãosomente a quem fazia parte do populus romanum. Era a materialização do
sonho da época, afinal “nada no mundo tinha mais valor que ser cidadão
romano”.49
4. O feudo. Mas o império romano desabou (476 d.C.). O episódio
transformou em ruínas aquele que terá sido o mais ambicioso, consistente e
duradouro arranjo econômico, militar e político que os antigos conheceram.
Nenhum historiador parece discordar disso. Aliás, GIBBON conta que foi “a
maior, talvez, a mais espantosa cena da história da humanidade”,50 pelo
menos tendo em consideração os efeitos que provocou, sobretudo, o de
espalhar por toda a Europa Ocidental os estilhaços de autoridade, força e
48
Cf. Rubin S. L.de AQUINO, Denize de AZEVEDO FRANCO, Oscar G. P. CAMPOS LOPES, História das
sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais, p. 251ss.
49
Fustel de COULANGES, op. cit., p. 409.
50
The decline and Fall of Roman Empire, vol. II, p. 598.
40
pompa que ROMA concentrou durante tanto tempo. Sob esse aspecto,
WELLS assinala que tal processo de desestruturação permitiu que as Ilhas
Britânicas, por exemplo, ficassem divididas entre vários governantes,
fenômeno que se reproduziu na ESPANHA cujo estado de fragmentação
política lembrava a ITÁLIA, a FRANÇA e grande parte do mundo ocidental.
Como conseqüência de um panorama em que o poder foi repartido
em pedaços, instalou-se um período de desordem no qual o crime e a
impunidade geraram um sentimento de universal insegurança, o que torna
possível identificar “nessa desordem generalizada os primeiros começos de
uma nova ordem”.51 A nova ordem anunciada por WELLS é o feudalismo,
identificado na linguagem de WEBER como uma forma de associação
baseada em “relações de fidelidade puramente pessoais entre o senhor e
seus vassalos”.52 Nela [a nova ordem], o indivíduo é menos livre e,
portanto, mais fraco do que seu símile [cidadão] romano, mas não
desaparece de cena (de qualquer forma, o ingresso nessa condição
permanece como um privilégio que distingue a nova elite, agora composta
de senhores cujos títulos − por exemplo, o de cavaleiro, visconde, conde,
duque, etc. − são inacessíveis aos artesões, mercadores, servos da gleba e,
menos ainda, aos escravos). Mas, como explicar a permanência do
indivíduo na etapa que se inaugura, embora com menor liberdade? Ora, o
ambiente de desamparo, vulnerabilidade e temor diante do inimigo, interno
e externo, parece ter mobilizado a muitos na busca de proteção e segurança.
Para isso, formaram-se alianças nas quais ninguém era completamente
senhor de si. A autonomia dos interessados nesse tipo de acordo era
relativa, ou seja, de um lado, o senhor era autárquico na condução política,
jurídica e econômica dos domínios de que se apossava, mas, de outro,
51
52
História universal, vol. VI, p. 354.
Economia e sociedade, vol. I, p.168.
41
ficava vinculado a um mecanismo de sujeição que lhe retirava grande parte
da independência.
Com efeito, todos se organizavam segundo um sistema de
dependências cruzadas, fundado no princípio da vassalagem. De acordo
com esse princípio, tornava-se vassalo quem era beneficiado pelo senhor
com um feudo, isto é, uma concessão de terras no interior das quais era
exercido o governo local. Mas a relação feudal, envolvendo senhor e
vassalo, implicava compromissos. Um e outro se obrigavam com o
suprimento das respectivas carências. O senhor necessitava da lealdade dos
homens que agregava em torno de si; os vassalos necessitavam da mão
forte, da proteção e da defesa do senhor.
Em todo caso, algumas particularidades ligadas a essa época podem
até sugerir a idéia de que, embora ocupada por poucos, a posição do
indivíduo nunca esteve tão forte. Elas se distribuem nas esferas do
comportamento, da legalidade e da política. Todas se revestem de
significados capazes de elevar o aristocrata feudal a um ponto onde sua
independência, liberdade e autonomia, mesmo que à custa dos que lhe
serviam, estariam acima de questionamentos.
A esfera do comportamento é onde se articula um dos privilégios
característicos da época, o jus primae noctis. Era o direito que o senhor
feudal tinha de dispor da noiva do vassalo na primeira noite. Embora
prescrito, isto é, validado pelo costume, não se sabe se o cavaleiro medieval
lançava mão de suas prerrogativas e se deitava habitualmente com a mulher
do homem que lhe servia, mas sabe-se que, nesse caso, a invasão da
intimidade alheia não chegava a ser um ataque, agressão ou violência.
Afinal, a precedência do gozo sexual pelo senhor, se e quando realizada,
menos do que um ato de força, decorria de renúncia e consentimento do
servo que, dessa forma, mostrava sua devoção àquele. Mais ainda, ao
42
vassalo era garantido o acesso exclusivo à mulher que escolheu como
parceira e, para esse fim, “tinha permissão de redimir a noiva pagando uma
taxa ao senhor”.53 O tributo previsto, muito aquém de liberar o vassalo de
compromissos, tinha o sentido de dupla, embora alternativa, sujeição: não
apenas sexo, o dinheiro igualmente satisfazia a vontade do senhor.
Sob o aspecto da legalidade,54 a energia normativa do mundo feudal
foi deslocada da esfera pública para se alojar no castelo. Com isso, o que
havia de público na lei do mundo romano teria sido eliminado e seu lugar
passou a ser ocupado pela lei particular, agora criada, aplicada e executada
pelo senhor. Tal fenômeno não escapou a MONTESQUIEU. Ele considera as
leis feudais dotadas de duas características: de um lado, inclinam-se para a
anarquia; de outro, conferem à anarquia certa ordem e harmonia, e por isso
mesmo “constituem um belo espetáculo”.55 A anarquia legal como
espetáculo parece dar sentido à idéia, em primeiro lugar, da existência de
múltiplos, diferentes e particulares sistemas jurídicos e, em segundo, que
cada um desses sistemas tinha a pretensão de garantir a paz e a segurança
de todos. Dito de outro modo, a ordem feudal desconheceu e não atuou
segundo um sistema centralizado de leis; ao contrário, suas leis eram
completamente descentralizadas. Em cada feudo o senhor monopolizava
seu uso e, dessa forma, distribuía justiça.
Já no âmbito da política, desenvolveu-se com o feudalismo a prática
do governo local. Isto significa que cada feudo tinha governo próprio,
autárquico, pelo que “... era um ‘Estado’ em si mesmo, tendo à frente seu
pequeno cavaleiro como senhor independente”.56 O espaço da dominação aí
sofreu uma inversão e teve suas fronteiras reduzidas. A inversão deu-se ali
53
Will DURANT, História da civilização, tomo 3, p. 6.
Note-se que a noção de legalidade no período medieval em nada se parece com a noção moderna; por
exemplo, para Will DURANT (Ibid., p. 21), “no regime feudal (...), o costume e a lei constituíam uma só
coisa”.
55
O espírito das leis, p. 475.
56
Norbert ELIAS, O processo civilizador, vol. 2, p. 84.
54
43
onde o exercício do mando se desprendeu da autoridade central para se
acomodar na figura do senhor, reproduzida e espalhada em vários pontos
da Europa. Sua ação, no entanto, era comprimida nos limites do território
enfeudado, pelo que as fronteiras para o exercício da dominação se
reduziam. Mas, na área em que dominava, “... todas as funções de governo
eram enfeixadas em suas mãos”,57 de modo que “todos os barões, todos os
viscondes, todos seigneurs, controlavam sua terra ou suas terras a partir de
seu castelo, ou castelos, tal como o governante controlava o Estado”.58
Nenhuma dessas particularidades, contudo, tomada isoladamente ou
em conjunto, é suficiente para revelar na plenitude o indivíduo. É que o
dignitário feudal era um personagem cindido pela circunstância de
concentrar em si papéis que se anulavam no que continham de antinômicos:
o de senhor e vassalo. Isto se tornava possível pela natureza do
compromisso que deu origem à ordem feudal: em troca de fidelidade, o
senhor dava terra e proteção ao vassalo. A cerimônia de sagração dessa
aliança simbolizava renúncia, entrega e submissão. Nela, sob juramento,
um homem prometia pertencer a outro homem:
Um homem demasiado orgulhoso ou poderoso para ser um servo, porém muito limitado
para prover sua própria segurança militar, realizava um ato de “homenagem” a um barão feudal:
ajoelhava-se descalço e desarmado perante ele, colocava suas mãos nas do senhor, declarava-se
homme ou homem do senhor (embora conservando os seus direitos de homem livre), e por um
juramento sobre relíquias sacras ou a Bíblia prometia lealdade eterna. O senhor fazia-o levantarse, beijava-o, investia-o com um feudo (*), e dava-lhe, como símbolo, uma palha, uma bengala,
lança ou luva. Daí por diante o senhor dava ao seu vassalo proteção, amizade, fidelidade e
auxílio econômico e legal.
59
Acontece que o vassalo “se as circunstâncias assim o exigiam,
[podia] tomar sob sua proteção guerreiros ainda mais fracos em troca de
57
Ibid., p. 25.
Ibid., p. 65.
59
Will DURANT, op.cit., tomo 3, p. 17. Sobre o tema e comentando essa cerimônia, Thomas HOBBES
(diálogo entre um filósofo e um jurista, p. 109) considera que esse ritual e a homenagem que o constitui
representam “a maior submissão que um homem pode impor a outro”.
58
44
serviços”,60 e, em relação a estes, assumia a posição de senhor. Com a
repartição do vínculo vassálico original em outros, num processo em que a
terra era subenfeudada, instaurava-se uma associação de cavaleiros,
matizada por gradações e desníveis em que todos podiam depender de
todos.61 Nesse cenário, ninguém estava acima da possibilidade de ser
vassalo, nem mesmo o rei. A rigor, nada impedia que agregasse em si o
duplo papel de soberano no seu país e vassalo no estrangeiro, onde era
submetido às determinações de outro rei.62 De outro lado, o poder mesmo
que o rei exercia era justificado não apenas por razões terrenas, mas,
sobretudo, por inspirações sacras, divinas, religiosas. Assim, para além do
rei, havia o Deus cristão a quem cabia distribuir o mando, não só nas mãos
do soberano, mas do papa também.63
5. O Estado Moderno. À desconcentração do poder, representada
por feudos que nasciam e se multiplicavam, sucedeu o fenômeno de sua
concentração. É como se tivesse havido um retorno ao modo como o poder
se enfeixava na ROMA imperial, embora em proporções menos vastas. O
Estado aparece como desfecho dessa mudança. O nascimento do Estado,
celebrado por HEGEL como o “mais prodigioso espetáculo jamais visto
desde que há uma raça humana”,64 funcionou como uma resposta diante de
60
Norbert ELIAS, op. cit. p. 61.
A esse respeito Max SAVELLE (História da civilização mundial, p.149) afirma o seguinte: “Quase todos
os senhores feudais deviam submissão a outro senhor, que era chamado suserano, ou super senhor, tendo,
porém outros senhores conhecidos como seus vassalos que lhes prestava obediência”.
62
Em outra passagem Max SAVELLE (Ibid., p. 149 s) diz: “Por exemplo, Guilherme, o conquistador, era
ao mesmo tempo Rei da Inglaterra e Duque da Normandia. Como Rei da Inglaterra, era independente do
Rei da França, igual a ele em prestígio social, e todos os grandes senhores feudais da Inglaterra eram seus
vassalos. Como Duque da Normandia, Guilherme era vassalo do Rei da França, tendo a Normandia como
um feudo da coroa francesa”.
63
Ver nesse sentido Bertrand RUSSEL (História da filosofia ocidental, livro I, p. 16) onde sustenta que “a
Idade Média (...) era dominada (...) por uma teoria muito precisa do poder político. Todo poder político
procede, em última análise de Deus; Ele delegou poder ao papa nos assuntos sagrados, e ao imperador nos
assuntos seculares”.
64
G. W .F. HEGEL, Princípios da filosofia do direito, 219.
61
45
transformações que foram capazes de abalar a Europa Ocidental na
passagem do período medieval da história para o moderno.65
Com efeito, nada então escapou de minuciosa, exaustiva e radical
revisão. Arte, ciência, religião e política foram colocadas às avessas. Tudo
agora se apresentava sob outra perspectiva, diferentes articulações, novos
fundamentos. A arte (pintura, escultura, literatura, etc.) abandona em
grande parte sua inspiração religiosa e promove uma retomada dos valores
correspondentes à Antigüidade clássica, sobretudo a greco-romana. A
ciência despede-se da fé (religião), da superstição (magia), da revelação
(Sagradas Escrituras), do encantamento enfim, e no lugar de tudo isso
coloca a razão. A religião, mediante a reforma protestante, tal como já se
dera no ambiente das artes, busca um contato com o passado, articulandose com o início do cristianismo.66 Isso se dá mediante a proposta formulada
por LUTERO de retorno à igreja primitiva, na qual, de um lado, a fé ocupava
lugar privilegiado (em detrimento dos sacramentos), e de outro, o papa
assumia a posição de pastor, não de tirano. Paralelamente a isso, a reforma
promoveu a defesa da liberdade religiosa, de tal modo que não apenas os
sacerdotes, mas os leigos também podiam livremente interpretar a palavra
de Deus revelada nas Sagradas Escrituras.67 É nesse ponto, pela conquista
da liberdade de consciência, que o indivíduo ganha foco, nitidez e
dimensão, pois, segundo NIETZSCHE, “quer alcançar a liberdade
[evangélica]; ‘cada um [ser] seu sacerdote’”.68 Finalmente, a política muda
o lugar onde se alojavam os fundamentos para o exercício da soberania (o
poder não mais é exercido em nome da vontade divina, mas da vontade do
povo).
65
Ver, nesse sentido, François CHÂTELET, Olivier DUHAMEL e Eveline PISIER-KHOUCHNER, História das
idéias políticas, p. 37.
66
Cf. ibid., p. 37.
67
Martinho LUTERO, Do cativeiro babilônico da Igreja, p. 64 ss.
68
NIETZSCHE, Vontade de potência, p. 100.
46
A nova configuração do mundo só se tornou possível porque, ao lado
da transição da era feudal para a moderna, ocorria também a transição que
deslocava o homem para a condição de indivíduo.69 Com essa passagem, o
ser humano agrega em torno de si elementos que garantem sua
emancipação, pois, livre do medo, da tutela, da direção alheia, cada um se
transforma em senhor de si mesmo e, assim, como observam ADORNO e
HORKEIMER, fica “... diferente de todos os outros”.70 Não podia ser de outro
modo. Os novos tempos requeriam um tipo humano único, singular,
autônomo, dotado de audácia, arrojo, atrevimento, capaz de dar um salto
para além dos horizontes então conhecidos e de responder aos novos papéis
colocados para cada um no interior de uma sociedade funcionalmente
diferenciada, organizada segundo funções e não segmentos, que substituía
o modelo estratificado, baseado na vassalagem, da sociedade precedente.
Por outro lado, e muito além desses atributos, a conversão do homem
ao estatuto do indivíduo tem o sentido de uma despedida da menoridade,
percebida por KANT como “incapacidade de fazer uso de seu entendimento
sem a direção de outro indivíduo”.71 Nesse momento de ruptura, ali onde
dispensa a supervisão do outro, o indivíduo assume seu destino como algo
próprio, reconhecendo-se na posição de sujeito não apenas capaz de
entender o mundo (pelo uso da razão), mas de pautar suas ações de acordo
com esse entendimento (pelo uso da vontade). Assim, em um ambiente
onde todos são iguais, ele se declara livre e autônomo, além de exibir uma
subjetividade, escorada em motivos, intenções, paixões e vontade. É com
base nesses elementos – igualdade, liberdade, autonomia, subjetividade e
razão – que o indivíduo é reconhecido pela era que se inaugura e passa a
ser distribuído em vários lugares. Na economia – o empreendedor é o
principal agente do mercado; na política – o acesso a ela dispensa o berço
69
Ver num sentido próximo Tercio Sampaio FERRAZ JÚNIOR, Direito, Retórica e Comunicação, p. 153 s.
Dialética do esclarecimento, p. 27.
71
Resposta à pergunta: que é “Esclarecimento”? In: Textos Seletos, p. 63.
70
47
aristocrático ou estamental e é comum a todos, mas o líder mesmo não
dispensa predicados como audácia, bravura, competência; na literatura − o
personagem, seja herói (Jean Valjean em Os Miseráveis de VICTOR HUGO),
seja aventureiro (Jean Sorel em O Vermelho e o Negro de STHENDAL), seja
vilão (Raskólhnikov em Crime e Castigo de DOSTOIEVSKI), com seus
desejos, suas paixões, seus sonhos, é quem polariza a trama do romance; na
arte – o retrato aparece na pintura para tornar único e eterno aquele que ali
é objeto de figuração.72 Não tinha que ser diferente no direito. Aí também o
indivíduo é o ponto de partida e o centro em torno do qual se articula o
conteúdo regulador da norma.
Desse cenário, combinado com os do mundo antigo e medieval, pelo
menos seis dicotomias podem ser extraídas. Todas apontam para
sentimentos que foram revirados nos novos tempos. Algumas são
abrangentes e opõem: 1. o sentimento da dependência ao sentimento da
autonomia; 2. o sentimento do valor coletivo ao sentimento do valor
pessoal; 3. o sentimento de devoção à divindade ao sentimento de devoção
a si mesmo. Outras são ligadas, no geral, à esfera político-jurídica e opõem:
4. o sentimento da desigualdade ao sentimento da igualdade; 5. o
sentimento da liberdade de poucos ao sentimento da liberdade de todos; 6.
o sentimento da responsabilidade como destino ao sentimento da
responsabilidade como consciência de si.73
Como se vê, o indivíduo é o resultado de superações que vêm de
longe num processo que, tendo recebido a discreta contribuição da
experiência dos antigos e, ainda, o ambíguo impulso dos medievais,
72
Segundo Alan TOURAINE (Crítica da modernidade, p. 281), “à primeira modernidade correspondeu o
sucesso do retrato, principalmente no coração da civilização moderna, Flandres e na Holanda, mas
também nas cidades italianas. O retrato, que já havia aparecido em Roma, mostra a correspondência entre
um indivíduo e um papel social: é o imperador, o mercador ou o doador, mas individualizado (...) o
sucesso alcançado pelo retrato prova que esse papel não é somente assimilável a uma categoria ou uma
função, como na sociedade pré-moderna, mas a uma atividade que exige força e imaginação, que
mobiliza a ambição ou a fé”.
73
As dicotomias 1, 3, 4, 5 e 6 foram aqui concebidas com inspiração na de número 2 cujo crédito
pertence a NIETZSCHE (Vontade de potência, p. 263).
48
alcança seu desfecho com a radical participação dos modernos. Mas, qual o
conjunto de idéias que deu origem ao conceito de indivíduo? Quando
surgiram? Quem as formulou?
49
Capítulo III
O Contrato Social
1. O Estado como efeito de uma premissa. A passagem do homem
para a posição de indivíduo deu-se no mesmo processo que substituiu o
estado de natureza pelo Estado político, isto é, no interior das formulações
que deram corpo à doutrina jusnaturalista do contrato social. A partir da
idéia do contrato social ficou constituído o núcleo em torno do qual se
agregaram distintas orientações no pensamento dos séculos XVII e XVIII.
Ela funcionou como uma espécie de premissa justificadora do Estado
moderno, a expressão de um consenso original, embora fora da história e
articulado apenas no campo das idéias, cuja evidência promoveu-a à
condição de axioma. Foi assim, como hipótese capaz de iluminar a origem
do Estado que a noção de contrato uniu o pensamento da época. Mas essa
unidade não se estendeu além desse ponto. Nem alcançou a identificação
dos conteúdos do estado de natureza, entendido como cenário que precedeu
o contrato; nem, ainda menos, as conseqüências derivadas da “assinatura”
deste. Isto, contudo, será objeto de atenção adiante. Convém, antes,
50
examinar que a idéia do contrato para explicar a gênese da organização
política dos homens não é uma criação dos modernos. Sob dois aspectos
pelo menos, o espírito dos antigos projeta-se nela. Em primeiro lugar, a
partir do uso inaugural que fizeram do termo; em segundo lugar, a partir da
concepção de indivíduo como um ser que se torna livre ali onde é guiado
pela razão.
2. A mesma premissa entre os antigos. Com efeito, a idéia de
contrato, referida também com as palavras convenção ou pacto, era
conhecida na Antigüidade. Seu uso revelava um esforço no sentido de
explicar o fundamento da origem do Estado, da justiça e do direito. Tudo
isso seria o resultado de um acordo envolvendo indivíduos livres e iguais. É
o que consta em algumas das máximas de EPICURO. Para ele, a justiça não
existe por si só, mas decorre de uma convenção cujo fim é o de evitar que
ninguém cause dano a outrem. Além disso, o direito (convencionado por
homens que se uniram em territórios de extensões diversas) é o mesmo
para todos e atua na comunidade em proveito de relações recíprocas.74 Tais
formulações foram suficientes para que BLOCH, num comentário acerca de
EPICURO, sustentasse, de um lado, que ele “foi o primeiro que falou do
Estado como contrato”,75 embora de outro, esclarecesse que os escravos
estavam fora disso. Afinal, o direito ao prazer que EPICURO reivindicava
não tinha por que dispensar – segundo BLOCH − as mãos calosas daqueles
que eram considerados numa sociedade escravista como a grega apenas
como coisas.76
Por outro lado, a concepção moderna do contrato social encontra nos
estóicos, particularmente com SÊNECA, um valioso precedente. Trata-se da
formulação segundo a qual somente é feliz o indivíduo cuja alma é livre e
entrega à razão a direção de sua vida. A dignidade consiste nisso: na busca
74
Pensamentos, p.68 s.
Ernst BLOCH, Derecho natural y dignidad humana, p. 38.
76
Ibid., p. 13
75
51
da liberdade lá onde esta significa obedecer ao próprio juízo.77 Estavam
lançadas aí as bases de um discurso que empolgou os novos tempos. A
propósito da contribuição do pensamento estóico em geral junto aos
modernos, CASSIRER destaca, de um lado, a promessa ali feita de recuperar
a dignidade ética do homem, fundada no valor que atribui a si mesmo e, de
outro, o princípio da suficiência e autonomia da razão humana, capaz de
encontrar, por ela mesma, seus caminhos e apostar na sua força.78
Como se vê, a idéia de um contrato como instrumento constituinte e
justificador do Estado já incorporava na Antigüidade alguns conceitos que
serão centrais nos novos tempos. É assim que, segundo ROUSSEAU, “os
modernos só reconhecem como lei uma regra prescrita a um ser moral, isto
é, inteligente, livre e (...) dotado de razão”.79 Aliás, o pensamento que se
desenvolveu nesse período não teria nada de especial se não tivesse
associado ao ser humano os elementos da liberdade, autonomia, razão,
igualdade e subjetividade, tornando-o sujeito livre para renunciar (quando
se despede do estado de natureza), autônomo na iniciativa (quando cria o
Estado), racional no compromisso (quando se submete à lei civil), igual na
sujeição (todos são submissos à lei) e dotado de subjetividade (a
consciência de si leva-o a ser responsável por sua conduta). Não foram
poucos os que trataram do tema. Isso envolve GROTIUS (1583-1645),
HOBBES (1588-1679), ESPINOSA (1632-1677), LOCKE (1632-1704),
ROUSSEAU (1712-1778), KANT (1724-1804) e outros.
3. Contrato e escolástica. Com efeito, o contrato social, seja pela
resposta que oferece ao problema de como se deu a origem do Estado, seja
pela função justificadora do exercício do poder, parece ter migrado do
pensamento antigo para o moderno apenas com breve passagem na idade
77
VidaFeliz, p. 38 ss.
O mito do Estado, p. 186 ss.
79
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 229.
78
52
média,80 mas sem a contribuição do tipo de reflexão que marcou esse
período. Dito de outro modo, o pensamento escolástico, hegemônico então,
prescindiu do contrato como categoria capaz de explicar, mediar ou
justificar as relações de poder entre DEUS e o homem. O exercício do poder
divino justificava-se tão-somente pelo ato de criação do mundo, descrito
em textos cuja sacralidade derivava de constituírem a palavra de DEUS. O
que ali era revelado ou prescrito valia pela autoridade de seu Autor. Ocorre
que este, nas palavras de TOMÁS DE AQUINO, era alguém de poder infinito,
cuja natureza, além de anteceder todas as coisas, constitui a causa motora
de tudo.81 Além disso, quando Ele cria as coisas, “opera livremente”82
apenas porque o deseja, “e não por necessidade”.83 Ora, quem está além da
necessidade não depende de nada ou de ninguém. Com isso, ficaria sem
sentido para a escolástica ligar o poder divino a um pacto em que Ele e suas
criaturas tivessem transigido quanto aos termos de sua convivência.
Inseparáveis da vontade de DEUS, as prescrições ou mandamentos valiam
por si mesmos e aos homens só restava a tarefa de obedecê-los. Para
cumpri-los, era dispensável a existência de um acordo original que selasse
as escolhas, desejos ou preferências da divindade e do homem.
4. Contrato e necessidade. Mas tudo se passa de modo diferente na
relação de poder que vincula o indivíduo ao Estado. São três as razões que
esclarecem isso. Em primeiro lugar, o ato de criação do Estado,
patrocinado por múltiplos indivíduos, tornou-o poder constituído (em
oposição ao poder divino que se autoconstituiu); em segundo lugar, foi a
necessidade, e não apenas o espírito livre e a vontade humana, que inspirou
a montagem do Estado; finalmente, longe de infinito, o poder de quem
80
Ver, num sentido próximo, Giorgio DEL VECCHIO (Lições de filosofia do direito, p. 70 s) para quem a
teoria do contrato social ocupa “um lugar importante na história da filosofia do direito”, e já tinha sido
delineada por MARCÍLIO DE PÁDUA na obra Defensor Pacis, de 1324.
81
TOMÁS DE AQUINO, Súmula contra os gentios. In: Coleção Os Pensadores, p.164.
82
Ibid., p. 198.
83
Ibid.
53
criou o Estado era finito, pois encontrava seu limite ali onde o outro
também o tinha.
Reduzido a necessidades e limitações, o indivíduo, ao criar o Estado,
reconhece no outro alguém idêntico a si mesmo. É nesse ponto que escolhe
não dispensar, mas atrair o consentimento alheio. Como fez isso? Bem, a
hipótese que o pensamento filosófico apresentou, sobretudo a partir do
século XVII, e cujos desdobramentos, apesar de algumas objeções,84 se
estendem até hoje, é a de que na origem da fundação do poder político
houve um contrato. A concepção deste teria nascido do sentimento de que
era útil e vantajoso para todos se entenderem. Somente assim estaria
garantida, em GROTIUS,85 a tranqüilidade de cada um; em HOBBES,86
ESPINOSA87 e KANT,88 a segurança; em LOCKE,89 a vida e a propriedade; em
ROUSSEAU,90 a pessoa e os bens. Tudo isso se encontrava comprometido no
estado de natureza, ali onde ninguém precisa de ninguém, ou porque, como
em HOBBES, o homem é lobo do próprio homem, ou porque, como em
ROUSSEAU, é indiferente ao outro.91
Mas, que é o estado de natureza?
84
É o caso de G. W. HEGEL (Princípios da filosofia do direito, p. 72) cujo ponto de vista é o de que “a
natureza do Estado não consiste em relações de contrato, quer de um contrato de todos com todos, quer de
todos com o príncipe ou com o governo”.
85
GROTIUS (O Direito da guerra e da paz: de jure belli ac pacis, vol. I, p. 234) no capítulo em que
discute o direito de resistência, assume a posição de que o Estado pode interditá-lo, pois se subsistisse
“não teríamos mais uma sociedade civil”, a qual foi “...estabelecida para manter a tranqüilidade”.
86
HOBBES (Do cidadão, p. 117) coloca a noção de segurança como “o fim pelo qual nos submetemos uns
aos outros”, pela via do contrato social. Ainda sobre o tema da segurança, ver também Leviatã, p. 80.
87
ESPINOSA (Tratado teológico-político, p. 237) considera que “(...) para viver em segurança e o melhor
possível, eles [os homens] tiveram forçosamente de unir-se (...)”.
88
KANT (Doutrina do direito, p. 150) afirma que “(...) a idéia racional a priori de semelhante estado (não
jurídico) implica a da falta de segurança (...)”.
89
LOCKE (Segundo tratado sobre o governo, p. 265) compreende que “[o homem] procura de boa
vontade juntar-se em sociedade com outros (...) para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos
bens (...)”.
90
ROUSSEAU (Contrato social, p. 30) sustenta que “o problema fundamental cuja solução é dada pelo
contrato social” consiste em “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força
comum à pessoa e os bens de cada associado (...)”.
91
Idem (Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens, p. 246 s) defende a
idéia de um sentimento de indiferença do homem em relação ao outro, admitindo que no primeiro estado
de natureza, os homens não tinham “qualquer correspondência entre si, e nem necessidade alguma de têla”, e ainda que não tinham “necessidade uns dos outros”, pois “se encontravam talvez, somente duas
vezes na vida, sem se conhecer e sem se falar”.
54
5. Diversidade e estado de natureza. Os contratualistas pouco se
entendem acerca disso. A rigor, nenhum esclarece bem do que se trata.
Todos, contudo, apontam para indicações, ainda que gerais, em torno de
como se dava a relação entre os humanos naquele cenário. É o caso do
estado de natureza imaginado por HOBBES. Ali todos podem ter e cometer
tudo, legalmente. Acontece que esse direito comum a tudo não implica
benefícios, ao contrário, trata-se de um direito inútil, pois todos podem
dizer isto é meu. Essa possibilidade e, com ela, o sentimento da “vã estima”
que os homens têm por si mesmos levam à guerra de todos contra todos.92
A configuração dessa guerra − esclarece HOBBES em outro texto
93
− não
consiste necessariamente em lutas e batalhas, mas no impulso, na vontade,
numa conhecida disposição para tanto. Nesse ambiente, justiça e injustiça
são qualidades desconhecidas, enquanto força e fraude são virtudes
centrais. É o bastante para Hobbes concluir em passagem famosa que a
vida ali “... é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”.94
Nada disso se parece com a visão que ROUSSEAU apresenta do estado
de natureza. A diferença repousa em pelo menos duas razões. Em primeiro
lugar, ROUSSEAU desconstitui o estado de natureza como fato, para
constituí-lo apenas como hipótese: “[trata-se de] um estado que não mais
existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais
existirá...”.95 Em segundo lugar, o homem interagia muito bem com os
outros, seja do ponto de vista físico, seja moral (político), obtendo sempre
respostas adequadas à sua conservação. Sob o aspecto físico, isso se explica
por uma compleição robusta, vigorosa e ágil − excluídos os estágios da
infância e da velhice − capaz de garantir as condições apropriadas para o
ataque e a defesa. A fraqueza, o medo e a subserviência são características
92
Cf. Do cidadão, p. 37 s.
Cf. Leviatã, p. 76 s.
94
Leviatã, p. 76
95
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, in: Os pensadores, p.
93
228.
55
aí desconhecidas e somente identificáveis quando o homem se torna
sociável. Já sob o aspecto moral, a explicação consiste em que as condições
para a dominação não estavam presentes. Afinal, no estado de natureza,
faltavam ao homem: 1. linguagem− o que se esclarece pela ausência de
necessidades mútuas (requisito da sociabilidade); 2. paixões intensas – pelo
que não entrava em disputas perigosas; 3. propriedade – pelo que não tinha
necessidade de protegê-la contra outros; 4. educação – pelo que o homem
não se diferenciava na cultura e espírito. Além disso, nesse estado o
homem possuía o sentimento de piedade (comum aos animais em geral),
capaz de limitar impulsos egoístas, o que concorreu para a conservação da
espécie.96
É nesse ponto então que cabe indagar: se as coisas parecem correr
tão bem para o homem no estado de natureza, por que retirá-lo daí e
introduzi-lo no Estado político? Bem, a resposta consiste em que o estado
natural de ROUSSEAU abrange dois períodos, um primitivo (ou puro) e outro
avançado (ou corrupto). Com efeito, o estado de natureza no seu estágio
mais primitivo não é o antecedente imediato do contrato social. A rigor, o
contrato social é concebido como modelo para inspirar as mudanças num
segundo estado de natureza, quando a sociedade civil já se instalara e onde
todas as arbitrariedades são conhecidas. Desse modo, o contrato viabiliza
que o lugar do estado de coerção seja ocupado pelo estado de razão e que a
sociedade, obra da necessidade cega, se transforme numa obra de liberdade.
Distante de HOBBES em muitos pontos e próximo de ROUSSEAU em
outros, KANT admite a idéia do estado natural não como fato, mas como a
priori. KANT não parte da experiência de acordo com a qual o homem tem a
violência como máxima e de que a maldade o levaria inevitavelmente à
96
Cf. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, in: Os pensadores, p.
238 ss.
56
guerra “antes de haver constituído um poder legislativo exterior”.97 Para
ele, então, o estado natural não é um fato, mas apenas uma “... idéia
racional a priori...”98 que “... implica a da falta de segurança contra a
violência antes de os homens terem se reunido (...) num estado puramente
jurídico”.99
Em todo caso, o estado natural deve ser entendido não como um
“estado de injustiça”,100 mas de “justiça negativa (...), no qual, se o direito
fosse controvertido, não haveria juiz competente para ditar uma sentença
legítima...”.101 Assim, “se o homem não quer renunciar a todas as suas
noções de direito”,102 deve ser decretado como princípio:
É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função dos seus próprios
caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável) em submeter-se a
uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte entrar num estado em que
tudo o que deve ser reconhecido como o seu de cada qual é determinado pela lei e atribuído a
cada um por um poder suficiente, que não é o do indivíduo e sim um poder exterior. Em outros
103
termos, é preciso antes de tudo entrar num estado civil.
A instauração do estado civil resulta então do que KANT denomina
de “contrato primitivo”.104 Trata-se de um acordo em que todos “... se
desprendem de sua liberdade (...) para tornar a recobrá-la (...) como
membros (...) de uma comunidade (...)”.105 Mais ainda, os homens não
sacrificaram apenas parte de sua liberdade natural, e sim deixaram “...
inteiramente sua liberdade selvagem e sem freio para encontrar toda a sua
liberdade na dependência legal, isto é, no estado jurídico; porque esta
dependência é o fato de sua vontade legislativa própria”.106
97
Emmanuel KANT, Doutrina do direito, p. 150.
Ibid., p. 150.
99
Ibid.
100
Ibid., p. 151.
101
Ibid.
102
Ibid., p. 150.
103
Emmanuel KANT, Doutrina do direito, p. 150.
104
Ibid., p. 155.
105
Ibid.
106
Ibid., p. 155.
98
57
Seja como for, nesse estado de natureza, que, de resto, como se viu
até aqui, nenhum contratualista esclarece bem o que é, e sob cujo império
vive o homem, a conduta deste, sem excluir a razão, parece ser guiada por
uma lei interna igualmente poderosa. Com ESPINOSA essa lei é a do
instinto, do desejo, da força, e tudo isso constitui o direito natural “que não
proíbe nada a não ser o que ninguém deseja e ninguém pode”.107 Note-se
que a noção de direito natural que aparece em ESPINOSA em nada lembra o
entendimento que prevalece entre outros filósofos da área que ligam o
direito natural e o contrato como seu principal instrumento a uma criação
da razão, e não a outros aspectos da subjetividade. Por outro lado, ali onde
o pensamento moderno fez do contrato não apenas a chave para abrir as
portas do Estado, mas a idéia capaz de dar-lhe um sentido, fez também uma
série de leis, deduzidas da natureza humana, que formam o direito natural.
Em HOBBES, por exemplo, uma dessas leis, a fundamental, consiste na
busca, se possível, da paz, se não, da guerra, tendo como fim a defesa, isto
é, a conservação e a segurança. Tudo se deu como se não fosse possível o
direito natural sem o contrato e o contrato sem o direito natural. Ambos são
produtos da razão. Numa ou noutra perspectiva, isto é, seja ligado às leis do
instinto ou da razão, o direito natural sempre conduz ao contrato de que o
Estado é resultado.
Em suma, na base da iniciativa que montou o Estado pela via do
contrato a idéia central é colocar no lugar da guerra, do caos e da natureza,
a paz, a ordem e a regra e, com essa mudança, salvar o homem que, já
indivíduo, renuncia à lei da selva e adota a lei civil. O objetivo explícito é a
busca de segurança. Com essa mudança, ali onde o estatuto é outro, outros
também são os valores consagrados, de modo que os seres humanos agora
agregam autonomia, liberdade, igualdade, e também são dotados de
subjetividade e razão. Nada mais é como antes. Mesmo a igualdade e a
107
Tratado teológico-político, p. 236.
58
liberdade, já conhecidas no estado de natureza, desembarcam no Estado
político com perfis alterados.
6. Autonomia. O uso do termo autonomia tem sido dependente,
isto é, vinculado a diferentes orientações do pensamento moderno. Ora
aparece como um aspecto da liberdade (liberdade como autonomia), ora
como predicado da vontade (vontade autônoma) e da razão (razão
autônoma). Seja como for, a autonomia é um dos valores que revela o
indivíduo. Seu significado, contudo, no âmbito do contratualismo, não é
diretamente deduzido do esquema que substitui o estado de natureza pelo
Estado político. Nessa passagem, a rigor, o indivíduo no Estado político
não é mais autônomo do que o homem no estado de natureza. Contudo,
num e noutro cenários a noção de autonomia tem sentido diverso.
No estado de natureza, o homem dependia muito pouco do outro. Ou
se aproximavam por conta da hostilidade mútua, mas, nesse caso, o
ambiente era de guerra e o objetivo era matar para viver, ou ficavam
distantes pela indiferença recíproca, num cenário de paz. Hostilidade e
indiferença em relação aos demais são indícios de um sentimento de
suficiência que prescinde da ajuda alheia. Bastando-se a si mesmo, na
guerra ou na paz, o homem parece dotado de autonomia no estado de
natureza.
Já no Estado político, autonomia tem o sentido de aptidão do
indivíduo para dirigir seu próprio destino. A criação por ele mesmo da
ordem sob a qual quer viver corresponde a uma ruptura com o mundo que
decidiu abandonar. Para demonstrá-lo, convém antes distinguir entre os
aspectos racional e histórico que estão na base dessa idéia. Assim, sob o
aspecto racional, a ruptura do homem é com o mundo da natureza do qual
escapa para fundar outro; sob o aspecto histórico, no entanto, a ruptura é,
também, com uma concepção que durante muito tempo justificou o
59
exercício do poder como manifestação da vontade divina. Esta criou seu
próprio estatuto e nele inscreveu as regras a que todos deveriam obedecer.
Embora na idade média tais regras fossem consideradas de direito natural −
o que se explica pela ligação entre a lex divina e a lex naturalis concebida
pela escolástica −, descendiam da revelação e não da razão, cabendo a esta
apenas o papel de criada daquela, pelo que a lei natural permanece
subordinada à lei divina. Acontece que a vontade divina descrita naquele
estatuto era mediada pela Igreja, de cuja inspeção e julgamento ninguém
escapava, nem mesmo os reis. Com isso, não há dificuldade em
compreender que o maior desejo deles era se safar de tal jugo.108
Nesse contexto, a doutrina contratualista aparece para fazer uma
inversão e uma supressão. Inverte o lugar onde a lei tem origem − agora
ela nasce da vontade dos indivíduos; suprime a autoridade política que a
Igreja sempre teve para alojá-la no Estado. Fez isto pela via do direito
natural. Dessa forma, ali onde o direito natural estava a serviço e era criado
por Deus, passou a funcionar a serviço do indivíduo e por este foi criado.
Aliás, atribui-se a HUGO GROTIUS a retirada do direito natural do domínio
completo da Providência para inseri-lo no da razão.109 Com efeito, sem
negar que Deus é o autor da natureza, GROTIUS parece separar Dele o
direito natural: “... é ela [a natureza] a própria mãe do direito natural...”110
entendido como um direito “...ditado pela reta razão”.111
Lá onde desqualifica Deus como criador do direito natural e atribui
sua autoria à razão humana, o contratualismo qualifica o indivíduo como
capaz não somente de ter “um ponto de vista próprio”,112 mas de criar sua
108
Nessa linha, Alain TOURAINE (Crítica da modernidade, p. 43) tem o ponto de vista segundo o qual “é
para apoiar o imperador na sua luta contra o papa que se formará o pensamento moderno”.
109
Segundo Alain TOURAINE (op. cit., p. 55) é de GROTIUS a idéia de um direito natural definido “...
como um conjunto de idéias, de princípios jurídicos preexistentes a toda situação e mesmo à existência de
Deus.”
110
O direito da guerra e da paz, p. 43.
111
Ibid., p. 79.
112
Ver, num sentido parecido, Alfonso M. CACONO, PLATÃO, KANT e o problema da autonomia, p. 56.
60
própria lei. É assim, pela dispensa do legislador divino para se tornar
legislador de si mesmo, que o indivíduo conquista sua autonomia e, com
isso, ganha a liberdade.
7. Liberdade. Não foi possível deduzir o sentido de autonomia do
esquema que opõe estado de natureza e Estado político. Isso não se dá com
o termo liberdade. No geral, os contratualistas reconhecem que no estado
de natureza os homens são livres e permanecem assim, embora, segundo
graus distintos, no Estado político. HOBBES, por exemplo, qualifica a
liberdade como completa no estado de natureza e incompleta no Estado
político. A liberdade completa nasce da idéia de que todos podem tudo no
estado de natureza. Embora completa, pois tudo o que se quer pode ser
feito, tal liberdade é “estéril, porque, se devido a essa liberdade alguém
pode fazer de tudo a seu arbítrio, deve porém, pela mesma liberdade, sofrer
de tudo, devido a igual arbítrio dos outros”.113 No Estado político a
liberdade é incompleta e seu uso é vinculado a três cenários. No primeiro,
dá-se o silêncio da lei; no segundo, a lei existe e condutas são permitidas;
no terceiro, dá-se uma ordem pela qual o soberano põe em perigo a vida do
indivíduo. No primeiro caso, como o Estado não pode regular todas as
ações, “os homens têm a liberdade de fazer o que a razão de cada um
sugerir”;114 no segundo, “a liberdade do indivíduo consiste apenas naquelas
coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu”;115 no terceiro, o
indivíduo pode desobedecer ao soberano, se este “ordenar a alguém
(mesmo que justamente condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si
mesmo”.116
LOCKE não reconhece, contra HOBBES, o impulso bélico, sem limites
e comum a todos os homens, capaz de favorecer a liberdade completa no
113
Do cidadão, p. 178.
Leviatã, p. 130.
115
Ibid., p.131.
116
Ibid., p.133.
114
61
estado de natureza. Os homens, no estado de natureza imaginado por
LOCKE, se não têm uma autoridade para obedecer, têm limites, ditados pela
razão, para observar. A liberdade aí, ao invés de completa, ilimitada, é
perfeita. Ninguém pede permissão a outro para orientar suas ações
conforme as conveniências, e o único limite é o da lei da razão.117 Mas, no
estado de natureza também existem “homens [que] não estão subordinados
à lei comum da razão, não tendo outra regra que não a da força e da
violência”.118 Quando a força é empregada contra outrem e não há “juízes
com autoridade para os quais se apele”,119 o homem se torna árbitro de suas
próprias paixões, e disso resulta o que LOCKE chama de estado de
guerra.120 Para evitá-lo, os “... homens se reúnem em sociedade deixando o
estado de natureza”.121 A passagem desse estado para o estado social
permite a LOCKE estabelecer em que consiste a liberdade num e noutro
lugar. Assim, no estado de natureza
A liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior na terra,
e não sob a vontade ou autoridade legislativa do homem, tendo somente a lei da natureza como
122
regra.
Por seu turno,
... a liberdade dos homens sob governo importa em ter regra permanente pela qual viva, comum
a todos os membros dessa sociedade e feita pelo poder legislativo nela erigido: liberdade de
seguir a minha própria vontade em tudo o quanto a regra não prescreve, não ficando sujeita à
vontade inconstante, incerta e arbitrária de qualquer homem...
123
Diferentemente de HOBBES, para quem a paixão ocupa o lugar de
guia do homem no estado de natureza, e de LOCKE, que, expulsando-a, põe
117
CF. Segundo tratado sobre o governo, p. 217 s.
Ibid., p. 222.
119
Ibid., p. 223.
120
BOBBIO (Locke e o direito natural, p.179) enfrenta o problema de saber se LOCKE segue HOBBES, para
quem “o estado de natureza é um estado de guerra”, ou PUFENDORF, “para quem, ao contrário, é um
estado de paz”, e dá como solução a idéia de que o estado de natureza de LOCKE, não é “um estado de
guerra, mas pode tomar esse rumo. Isto significa que, embora não o seja atualmente, o é potencialmente”.
121
LOCKE, op. cit. p. 224.
122
Ibid., p. 225
123
Ibid.
118
62
ali a razão, ROUSSEAU elegeu a consciência da liberdade para esse fim. É o
que demonstra a seguinte passagem:
Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo
homem que constitui entre os animais a distinção específica daquele. A natureza manda em
todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre
para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a
espiritualidade de sua alma.124
Acontece que dessa liberdade o homem só fez uso no estado de
natureza, portanto, ao longo da “juventude do mundo”,125 e em cujo ocaso
“a espécie já era velha e o homem continuava criança”.126 Nesse estado e
enquanto apenas dependeu de si mesmo, podendo, assim, viver sem o
outro, o homem, além de feliz, estava “livre do jugo” e com isso tornava
“inútil a lei do mais forte”.127 É o primeiro estado de natureza, a que
ROUSSEAU dá o nome de estado de natureza puro. Por oposição, o segundo
estado de natureza é corrupto. Seu aparecimento se associa às origens da
sociedade, criada naquele instante em que “um homem sentiu a necessidade
do socorro do outro”128 e “de livre e independente que antes era (...) passou
a estar sujeito (...) a seus semelhantes”,129 pelo que a lei do mais forte se
tornou útil.
As formulações de O Contrato Social vieram para suprimir esse
quadro. Na sociedade aí concebida por ROUSSEAU, a lei do mais forte
desaparece. No espaço vazio que deixa, penetra a lei da razão posta no
mundo por uma vontade geral constituída no instante em que indivíduos
livres na origem, mas acorrentados na sociedade existente, decidiram
romper com tudo que os prendiam e, ao mesmo tempo, recuperar a
liberdade primitiva para fruí-la de outro modo, nos termos de uma
124
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 243.
Ibid., p. 264.
126
Ibid., p. 257.
127
Ibid., p. 258.
128
Ibid., p. 265.
129
Ibid., p. 267.
125
63
orientação ditada pela lei. A liberdade, então, dá um salto e pousa noutro
ponto, mas não se separa da vontade do indivíduo, pois afinal em alguma
medida a vontade geral não passa de uma expressão coletiva daquilo que
aquela determina.
8.
Igualdade.
Os
modernos
fizeram
da
universalidade
a
característica da igualdade. Nisso são diferentes dos antigos. A igualdade
entre estes é uma particularidade de poucos, reconhecida apenas entre os
bem nascidos, que, tornados cidadãos, estavam aptos para a ocupação dos
cargos públicos. Fora desse circuito, habitavam os outros, isto é, os
excluídos do poder de decidir na pólis e na civitas.
O pensamento moderno rompeu com a idéia de que o nascimento
pudesse justificar aquela distribuição seletiva de privilégios, de modo que
para alguns, tudo, e, para muitos, nada. Mas atribuiu ao nascimento a fonte
de uma justificação oposta. HOBBES, por exemplo, começa o capítulo XIII
do Leviatã, afirmando que “A natureza fez os homens (...) iguais, quanto às
faculdades do corpo e do espírito”,130 e explica no Do Cidadão, capítulo III,
9, ser necessário que os homens “sejam considerados iguais”, pois é nessa
igualdade que identifica a “causa do medo recíproco” capaz de mobilizar os
homens para o acordo em busca de segurança, afinal cada um sente no
outro uma ameaça e capacidade de dano semelhante à sua, capaz de instalar
o sentimento da conveniência em se livrar disso que é o estado de natureza
para ingressar no Estado Civil, no qual todos, excluído o soberano,
continuarão iguais, isto na medida em que “os direitos que um homem
reivindique para si, os mesmos ele reconheça serem devidos a todos os
demais”.131 Já em LOCKE, no estado de natureza os homens são “... todos
providos de faculdades iguais”,132 não foram “... feitos para uso uns dos
130
P. 74.
Cf. P.71s.
132
Segundo tratado sobre o governo, p. 218.
131
64
outros”133 e não há “qualquer subordinação”134 entre eles. Nesse estado, “...
é recíproco qualquer poder e jurisdição, ninguém tendo mais do qualquer
outro”.135 O que torna isso evidente é a circunstância de que “... criaturas da
mesma espécie e da mesma ordem, nascidas promiscuamente a todas as
mesmas vantagens e ao uso das mesmas faculdades, terão também de ser
iguais umas às outras”.136 A igualdade como o poder de cada um afirmar
seu próprio direito é objeto de renúncia quando o homem entra em
sociedade. Mas, embora LOCKE não deixe isso muito claro, ela parece
reaparecer ali onde todos, por acordo, ficam obrigados “... a se refugiarem
sob as leis estabelecidas de governo...”.137 Com LOCKE, então, na lei, a
igualdade encontraria o abrigo que a todos nivela.138
O tema da igualdade é examinado por ROUSSEAU segundo três
cenários bem distintos. No cenário do estado de natureza, todos nascem
iguais; no da sociedade civil, instala-se a desigualdade; no cenário do
Estado que propõe no contrato social, a igualdade é resgatada.
No estado de natureza todos nascem iguais e como selvagens levam
ali uma vida simples e uniforme. Pequenas diferenças até existem entre
eles, mas a desigualdade que daí resulta “está longe de ter nesse estado
tanta realidade e influência”,139 o que se explica pela escassa relação que
era própria dos humanos ali, de modo que eventuais vantagens de um sobre
o outro, por exemplo, beleza, espírito e força, são de pouca serventia. Não é
bem assim com a sociedade, aquela cuja origem é vinculada aos episódios
que fundaram a propriedade e o governo (corpo político). A fundação da
propriedade deu-se ali onde alguém disse isto é meu e não foi contestado. A
133
Ibid.
Ibid.
135
Ibid., p. 217.
136
Ibid.
137
Segundo tratado sobre o governo, p. 265.
138
Semelhante é a interpretação de BOBBIO (Locke e o direito natural, p. 180) para quem “a igualdade de
que fala LOCKE, não é a igualdade de forças, física ou material, a que se referia HOBBES, mas
essencialmente uma igualdade jurídica”.
139
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 257.
134
65
desigualdade é efeito disso e tem por reflexo o par rico e pobre. Pela
oposição que daí resultou instalou-se um ambiente de pilhagens e
banditismo que deixou o rico com medo e inseguro. Foi então que,
“forçado pela necessidade”,140 concebeu o projeto de “... empregar em seu
favor as próprias forças daqueles que o atacavam, fazer de seus adversários
seus defensores”141 e, para esse fim, disse-lhes: “Unamo-nos”(sic!),142 pelo
que “todos correram ao encontro de seus grilhões”.143 Tal foi assim porque
a sociedade e as leis que nasceram desse modo “deram novos entraves ao
fraco e novas forças ao rico, fixaram para sempre a lei da propriedade e da
desigualdade (...) e (...) daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao
trabalho, à servidão e à miséria”.144
A superação desse quadro é formulada no Estado que deve nascer
com o contrato social. Nele, contudo, a igualdade é resgatada. Não mais
segundo os padrões do estado de natureza. Nas palavras de ROUSSEAU:
...
o pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrário substitui por
uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre
os homens, que, podendo ser desiguais na força ou no gênio, todos se tornam iguais por
145
convenção e direito.
9. Subjetividade. A palavra subjetividade tem sido associada à
descoberta de que o homem é capaz de olhar para dentro de si, de
inspecionar suas entranhas psíquicas, examinar como elas se dispõem e
funcionam, enfim, que nele há um espaço interior em cujos limites se
alojam a consciência, a vontade, as paixões em suas variadas formas, a
razão, etc. É a posse desses elementos, em geral, que o faz tomar o destino
nas mãos e forjá-lo, dar-lhe uma direção, um rumo. Não parece haver quem
duvide disso. O problema está no caráter encoberto dessa posse durante
140
Ibid., p. 268 s.
Ibid., p. 269.
142
Ibid.
143
Ibid.
144
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, p. 269 s.
145
Do contrato social, p. 39.
141
66
longo tempo. Entre os antigos ela se desvelou para poucos. É o caso, por
exemplo, dos gregos. Ali, apenas o herói146 e o cidadão147 foram
contemplados. Para escapar da fatalidade que lhe impunha o destino, o
herói sempre manobrou no esforço de definir seus caminhos, embora sem
êxito. Mas o herói é um personagem dos mitos. Seu espaço é o da narrativa,
ora articulada nos poemas de HOMERO, ora nas tragédias de ÉSQUILO,
EURÍPIDES e SÓFOCLES. De qualquer modo, o herói é bem próximo dos
deuses, o que o distingue do grego comum, e constitui nesse sentido uma
minoria. É a uma minoria que também pertence o cidadão, aquele cujo
acesso ao espaço da pólis era exclusivo e no qual dialogava apenas com os
iguais. Quem ficava fora desse espaço, tinha como causa de sua ação
motivos não gerados em si, mas em outros sujeitos, divinos ou humanos.
No âmbito da filosofia cristã, o homem é dotado de corpo e alma, e
esta habita no seu interior. É o que pensa, por exemplo, SANTO AGOSTINHO.
Para ele a alma é o lugar da “razão e inteligência”,148 e não só possui a
sabedoria149 como é dotada de vontade.150 Tudo isso forma o que chama de
“homem interior”151 que funciona como se fosse um sentido capaz de
perceber o justo e o injusto e pelo qual “estou certo de existir, de conhecer
isto, de amar isso e igualmente certo de amar”.152 Acontece que, para
SANTO AGOSTINHO, a alma tem um criador, ou seja, “a pátria de origem da
alma é Deus que a criou”153 e dele depende, pois, segundo a lei “com a qual
146
Para SCHELLING (op .cit., in: Os Pensadores, p. 34) o herói grego é dotado de vontade [um dos
aspectos da subjetividade] livre. Isso o “mantém ereto contra a potência da fatalidade”, de tal modo que
“Era um grande pensamento – prossegue SCHELLING – suportar voluntariamente mesmo a punição por
um crime inevitável, para, desse modo, pela própria perda de sua liberdade, provar essa mesma liberdade
e sucumbir fazendo ainda uma declaração de vontade livre”.
147
ADORNO (Mínima moralia, p. 162) considera que o cidadão grego era dotado de uma interioridade, ou
melhor, de valor interior, de uma substância moral que se confundia com a posse, a riqueza, o status, a
influência de cada um na pólis. Já segundo o ponto de vista de ALAIN TOURAINE (Crítica da
modernidade, p. 48) a subjetividade é considerada como algo estranho “à tradição greco-romana”.
148
A cidade de Deus, parte II, p. 89.
149
Ibid., p. 30.
150
Confissões, p. 209.
151
A cidade de Deus, Parte II, p. 48.
152
Ibid., p. 49.
153
Sobre a potencialidade da alma, p. 22.
67
dirige tudo o que criou, submete o corpo à alma, e esta a Deus, e desta
maneira submete tudo ao poder divino”.154
Somente na era moderna, com DESCARTES, o homem revela-se para
si mesmo. É quando descobre que pode duvidar de tudo, menos de sua
existência. Ninguém pode duvidar de que existe, pois, ao colocar tal
circunstância em questão − existo ou não? −, já aciona o ato de pensar,
fenômeno suficiente para garantir a certeza da existência do Eu. Mas, “o
que sou eu?”, pergunta DESCARTES, nas Meditações, para na seqüência
responder: “[sou] uma coisa que pensa”, isto é, “aquilo que duvida, que
concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina
também e que sente”.155 Dir-se-á, contudo, que DESCARTES não nega Deus
como criador da existência e isto faz o homem dependente Dele. A objeção
procede, mas em parte. A rigor, para DESCARTES, Deus não é necessário
para pôr no espírito pensamentos que se refiram às dúvidas e ao modo de
resolvê-las, “pois talvez seja eu capaz de produzi-las por mim mesmo”.156
A consciência de fazer “por mim mesmo” anuncia a subjetividade157 (a
palavra não é empregada por DESCARTES), cuja estrutura se funda em
predicados próprios de um sujeito agora capaz de questionar, de fazer uso
da razão, de exercer sua vontade, de imaginar e de sentir.
O tema do homem interior, preparando a subjetividade, é retomado
por HOBBES no âmbito da reflexão contratualista. Ele parte da idéia de que
as faculdades do homem são de “dois tipos: faculdades do corpo e
faculdades da mente”.158 A soma delas constitui a natureza do homem. Mas
não é a anatomia do corpo o alvo de sua atenção, e sim a da mente. É a
existência desta que torna possível dizer que o homem é capaz de conceber,
154
Ibid., p. 166.
Meditações, p. 177.
156
Ibid., p. 173.
157
Cf. Homero SANTIAGO, Penso, logo existo. Discutindo filosofia. Ano I, n. I, p. 8-9, para quem: “Não é
exagero dizer que, com o cogito, nasce a subjetividade moderna tal como a entendemos ainda hoje”.
158
Os elementos da lei natural e política, p. 20.
155
68
sonhar, imaginar, de articular um discurso, de ter consciência, vontade,
paixões e de ser tomado pela loucura.
Enfim, os modernos fizeram da subjetividade uma característica
fundamental dos novos tempos. Sem ela não teria sido possível indivíduo,
Estado e direito (na forma hoje conhecida). A propósito disso, HABERMAS
destaca o lugar próprio da subjetividade, ao atribuir a HEGEL a descoberta
dela como “o princípio dos novos tempos”, projetando-se na sociedade
pelo direito privado naquilo que garante os interesses próprios; no Estado
pelo que requer de vontade política; na esfera privada como autonomia.159
Antes de HEGEL, porém, os contratualistas já asseguravam para alguns
elementos da subjetividade, por exemplo, a razão, um espaço na formação
do direito e do Estado.
10. Razão. O contrato social, ao fazer o indivíduo ingressar no
estado político pela despedida do estado de natureza, exibe sua dupla face:
de um lado, promove a ruptura com a lei do lobo, fundada na paixão; de
outro, articula o compromisso de todos na sujeição à lei civil, fundada na
razão. Aliás, mesmo antes dos contratualistas, já no século XVI, ERASMO
DE ROTERDAN
desenvolveu algumas reflexões acerca do uso da razão como
caminho para a emancipação. Estabeleceu como premissa de seu
pensamento a idéia de que “os povos primitivos, sem lei alguma (...) eram
antes feras que seres humanos”.160 Num cenário assim, sem a direção da
razão, de acordo com ERASMO, nenhum “... animal é tão ferino quanto o
homem, quando arrastado por ímpetos de ambição, de cupidez, de ira, de
inveja, de luxúria e de lascívia”.161 O salto para a felicidade supõe o
abandono desses sentimentos. Mas isto, ao lado de outras coisas, depende
da razão que designa como “sendo a instância doutrinal que adverte e
159
O discurso filosófico da modernidade, p. 25.
De Pueris, p. 31.
161
Ibid., p. 32.
160
69
preceitua”.162 Os homens serão o resultado da modelagem promovida por
essa instância. É que, sendo incompleto e inacabado, diz ERASMO, “a razão
faz o homem”163 e viver, segundo ela, torna-o singular, portanto, indivíduo.
Mais tarde, o tema da razão como algo que avaliza a distinção entre o
animal e o homem torna-se lugar comum na filosofia. É retomado por
DESCARTES: “[a razão] é a única coisa que nos torna homens e nos
distingue dos animais”;164 por LOCKE: “é a faculdade pela qual o homem é
suposto distinguir-se das bestas, e pela qual é evidente que ele as
ultrapassa”;165 por LEIBNIZ: “[a razão] pertence ao homem cá na terra não
se manifestando nos outros animais terrestres”.166
Como se vê, a razão aparece nesse âmbito como a instância que
decreta um duplo divórcio. De um lado, afasta o homem do animal em
geral; de outro, distingue-o do selvagem, aqui entendido como aquele que
ignora e ainda não aderiu ao contrato ou mesmo, para usar a linguagem de
DWORKIN, não se tornou nem súdito “do império do direito”, nem vassalo
“de seus métodos e ideais”.167 Mas, além de marcar diferenças, a razão
ocupa o lugar de guia da ação humana. Assim, destitui dessa condição a
paixão, o instinto, o apetite, e com isso transforma um ser, cuja natureza era
rude, intolerável e medonha, num outro, agora capaz de gestos elaborados,
tolerantes e refinados. A ação humana que a razão inspira projeta seus
efeitos, sobretudo, em rearticulações que introduzem no conhecimento e na
política. O conhecimento passa a se aparelhar numa nova ciência; a
política, no Estado.
A nova ciência entra em cena sob múltiplas faces. Ora seus traços
são fixados por BACON, ora por GALILEU; adiante, por DESCARTES. Com
162
Ibid., p. 43.
Ibid., p. 31.
164
Discurso do método, p. 29.
165
Ensaio acerca do entendimento humano, p. 198.
166
Novos ensaios sobre o entendimento humano, p. 341.
167
Ronald DWORKIN, O império do direito, p. XI.
163
70
BACON, o método indutivo é o caminho que leva à descoberta da verdade.
O homem “só entende tanto quanto constata”,168 vale dizer, “não sabe nem
pode mais”,169 se não pela observação dos fatos. Apenas desse modo seria
possível interpretar corretamente a natureza. Já para GALILEU, na leitura
que faz da natureza, os fatos não parecem ter tanta relevância. Vale mais o
estudo das formas, linhas, medidas, etc., que, de resto, constituem o objeto
da geometria, a cujas demonstrações, quem se opuser, estará a “negar
abertamente a verdade”.170 Enquanto isso, DESCARTES confessa nas
primeiras páginas do Discurso do método desapontamento com o resultado
de seus estudos na escola. Saiu dali “com tantas dúvidas e erros”171 que
nisso estava a causa da descoberta de sua ignorância. Foi assim que
colocou sob suspeita a História, a Filosofia, a Teologia, a Medicina, a
Jurisprudência, etc., como disciplinas que, tal qual ensinadas, fossem
capazes de alcançar o conhecimento verdadeiro. Desse modo, fez da dúvida
uma arma de combate à tradição e, ao mesmo tempo, um instrumento a
serviço da razão para, assim, “atender seu imenso desejo de distinguir o
verdadeiro do falso”.172
Ao contrário da nova ciência, a configuração do Estado foi montada
nos termos de um arranjo teórico mais simples, a saber, o do contrato.
Nesse ponto, a razão desafogou seu anseio de encontrar um princípio,
aplicável a todos os sistemas de direito natural, que pudesse explicar a
origem das relações de poder entre os homens. Tanto melhor se tal
princípio, segundo o que imaginou HOBBES, pelo que tem de claro e
evidente, tornasse a “natureza das ações humanas (...) tão bem conhecida
como, na geometria, a natureza da quantidade”.173 Assim, o pensamento de
168
Novo organum, p. 33.
Ibid.
170
O ensaiador, p. 22.
171
Discurso do método, p. 30.
172
Ibid., p. 33.
173
HOBBES, Do cidadão, p. 6.
169
71
HOBBES fez da geometria o modelo que inspirava suas investigações, e se
os geômetras que “se desincumbiram admiravelmente de seu papel”
puderam contribuir “para melhor ajudar a vida do homem”, igualmente os
escritores da política ou ainda os filósofos morais poderiam fazê-lo.174 É
isso o que explica o projeto de GROTIUS, que quis fazer uma “matemática
do direito”,175 ou o de ESPINOSA, que desenvolveu um sistema de ética pelo
método geométrico, tendo considerado “... as acções e os apetites humanos
como se tratasse de linhas, de superfícies ou de volumes”.176 Em outras
palavras, à maneira dos geômetras na interpretação que faziam da natureza,
era possível conhecer o homem e o conjunto das relações sociais, políticas
e jurídicas nas quais se envolvia, se as demonstrações nesse sentido
tivessem por base o discernimento, o raciocínio e o cálculo. Na era
moderna, nenhuma área do conhecimento escapou das novas orientações. O
direito penal muito menos. Aliás, não apenas a razão enquanto atributo ou
predicado do indivíduo projetou-se nos domínios do direito penal. Algo
semelhante ocorreu com a autonomia, igualdade, liberdade e subjetividade.
Como isto se deu?
174
Ibid.
Nos prolegômanos de sua obra, GROTIUS (O direito da guerra e da paz, vol. I, p. 64 s) justificava
como se segue seu projeto metodológico: “... afirmo que, assim como os matemáticos consideram as
figuras, abstração feita de corpos, de igual modo, tratando do direito, eu afastei meu pensamento de todo
fato particular”.
176
Ética, p. 265.
175
72
Capítulo IV
A razão penal
1. Recepção dos predicados. A descoberta do indivíduo virou a lei
penal pelo avesso. Isto significa que ela se deixou conduzir e penetrar pelos
predicados que fizeram do homem um ser moral, capaz de assumir
responsabilidades, pois, dotado de vontade e consciência, age segundo um
arbítrio e uma percepção que pertencem a si e a ninguém mais. Tais
predicados, ou seja, a autonomia, a liberdade, a igualdade, a subjetividade e
a razão, cada um a seu modo, foram recepcionados pelo direito penal dos
novos tempos sob dois aspectos, um externo e outro interno. Sob o aspecto
externo, vinculam-se ao direito penal como valores, pressionando-o de
fora; sob o interno, como regras, pressionando-o de dentro.
Em primeiro lugar, a razão. Na longa pré-história do homem, nas
origens de sua história e ainda durante muito tempo (Antigüidade clássica e
Idade Média) o conteúdo das práticas punitivas exprimiu articulações com
o mito, o sagrado e a fé. Ao renunciar a esses elementos, o direito penal dos
novos tempos elegeu a razão para uma aliança diferente e tomou as
73
diretrizes dela como motivo para sua construção. É sob esse aspecto que se
dá a relação externa do direito penal com a razão. A relação interna tem
outras conexões. Nesse âmbito, o direito penal coloca a razão, de um lado,
a serviço de sua sistematização, ora favorecendo uma estrutura que o divide
numa parte geral e outra especial, ora classificando os crimes segundo os
bens jurídicos que devem ser protegidos; de outro, cria institutos jurídicos
cuja lógica contempla a razão como elemento indispensável na avaliação
do injusto punível, por exemplo, o dolo (naquilo que implica de percepção,
discernimento, conhecimento, etc.) e a culpabilidade (a consciência do
significado da ilicitude é um de seus elementos, de modo que corresponde à
sua falta, quando inevitável, o erro de proibição como causa de
exculpação).
Em segundo, a autonomia. O valor externo que a autonomia agrega
é de natureza política. Assim, o direito de punir articula-se agora com a
vontade de um legislador que atua em nome dos indivíduos e se separa do
legislador divino cuja atuação se dava em nome de si mesmo. Os artigos de
fé transformam-se em artigos de lei e quem violava aqueles, de pecador,
passa a ser criminoso, se violar os últimos. A projeção da autonomia como
regra exprime-se no caráter individualizado da responsabilidade penal.
Com isso, a família e a comunidade ficam imunes ao contra-ataque
representado pela punição, ali onde apenas um (o indivíduo) deu causa à
ofensa.
Em terceiro, a igualdade. Com a igualdade a distribuição dos
favores legais é redefinida. As hierarquias são niveladas e agora todos
ficam sujeitos à lei. Nenhuma exclusão que a torne inacessível; nenhum
privilégio que impeça sua aplicação. A nova orientação resolveu dois
problemas recorrentes: de um lado, incluiu na esfera de influência e
proteção da lei em geral e da penal em particular aqueles para quem, desde
a Antiguidade, a lei negara acesso, por exemplo, os escravos, os
74
estrangeiros, as mulheres, etc.; de outro, submeteu à sua aplicação, portanto
a seus efeitos, aqueles a quem a lei não tinha acesso. É o caso do soberano
que, nos termos do arranjo consagrado no legibus solutus, considerava-se, e
assim era reconhecido, fora do alcance dela. Mas esses são problemas que,
ligados à igualdade, orbitam na zona externa ou contígua ao direito penal.
A projeção da igualdade no interior dessa área do direito é outra. Ela se dá
ora pela supressão nos códigos modernos dos tipos penais de autor, por
exemplo, os hereges, apostatas, feiticeiros, referidos nos títulos I e III do
livro V das Ordenações Filipinas, ou, segundo BAUMANN, o ladrão referido
no “Espejo de Sajonia de 1225” para quem o castigo previsto era a forca:
“al ladrón hay que ahorcalo”,177 onde era manifesto o caráter concreto e
discriminatório dessa técnica de criminalização;178 ora ainda pela criação
dos tipos que descrevem as características gerais e abstratas da ação, nos
quais não se distinguem qualidades pessoais e todos ficam subordinados à
mesma previsão normativa; ora, por último, pela idéia de que a pena de
prisão, embora desigual sob muitos aspectos, possui uma natureza sob cujo
jugo todos são iguais: “ninguém é insensível à privação da liberdade,
ninguém interrompe todos os seus hábitos, especialmente os hábitos
sociais, sem violência”.179
Depois, a liberdade. O uso da palavra “liberdade” em sua dupla face
− liberdade negativa (ausência de impedimento) e liberdade positiva
(autodeterminação) − constitui aqui o ponto de partida para ligá-la ao
direito penal. A relação da liberdade negativa com a lei penal dá-se nos
âmbitos externo e interno. No primeiro âmbito (externo) é o que se verifica
pelo princípio da legalidade dos crimes e das penas, que, antes de se
177
Cf.BAUMANN, Derecho Penal: conceptos fundamentales y sistema, p. 60.
FERRAJOLI (Derecho y razón, p.101) tem o entendimento de que o tipo penal de autor não proíbe, nem
regula comportamentos, tendo apenas função constitutiva dos pressupostos da pena e sob esse aspecto
representa uma técnica punitiva de “... caráter explicitamente discriminatório e antiliberal”.
179
BENTHAM, Teoria das penas legais, p. 88.
178
75
constituir a regra vestibular dos códigos penais modernos, já aparecia como
princípio na declaração de Direitos Humanos de 1789 e, dessa maneira, foi
recepcionado nos capítulos dos direitos fundamentais do indivíduo na
maioria das cartas constitucionais fundadoras do Estado democrático de
direito. O princípio nega ao Estado o poder de tudo fazer e impõe limites ao
exercício da coação contra o indivíduo. Somente a proibição estabelecida
na lei escrita justifica a punição e assim nada do que a lei não proíba é
punível. No segundo âmbito (interno) a liberdade negativa é constituída ora
como objeto da punição, ora como objeto de proteção jurídica. No primeiro
caso, isso ocorre quando a liberdade é o bem jurídico supresso pela prisão
do indivíduo como conseqüência da prática de conduta proibida ou omissão
da ordenada. No segundo, quando a liberdade é especialmente protegida
em alguns tipos penais, por exemplo, os que descrevem o Seqüestro e a
Redução a condição análoga à de escravo previstos nos artigos 148 e 149
do Código Penal brasileiro. Por seu turno, a liberdade positiva mantém a
relação com o direito penal igualmente nos dois âmbitos. No âmbito
externo, a relação decorre da existência de uma lei que o homem dá a si
mesmo (de qualquer forma nesse caso já se trata de liberdade como
autonomia). Já no âmbito interno, a relação se dá pela posição que ocupa o
livre-arbítrio na lógica do sistema. Toda imputação só se justifica se na
base de sua ação o indivíduo for capaz de autodeterminação.
Finalmente, a subjetividade. Entre os antigos a responsabilidade era
objetiva. Num sistema como o de Talião, a regra do olho por olho, dente
por dente não comportava indagações acerca do conhecimento e da
vontade de quem violava a lei. Desconhecia o problema da intenção do
agente e era indiferente quanto a saber sob o impulso de que motivo este
agira. Nem mesmo a casualidade excluía a punição pela prática da ação
proibida. Aplicava-se o castigo não como efeito da culpa, mas em função
do resultado de que o crime era a expressão. Daí que coisas, animais e
76
pessoas, indistintamente, pudessem ser alcançados pela reação criminal.180
Os gregos conheceram a lógica que excluía a culpa e elegia o resultado
como princípio da punição. Ela pode ser localizada no fantástico mundo
dos mitos, das fábulas, das narrativas, revelado no texto das tragédias. A
idéia ali é de que o homem é joguete do destino, entendido como uma
espécie de força cega da qual ninguém escapava. A ação humana em
nenhum momento era autodirigida, mas determinada por um poder
(cósmico talvez) diante do qual a escolha de outra alternativa estava
destinada ao fracasso.181 Nesse contexto, a justificação para o castigo
recorria à força (externa) do destino. Os modernos quebram essa
orientação.182 Passam a considerar que na origem do fenômeno do crime
intervêm os impulsos de seu autor, agora dotado de consciência e cuja
vontade é livre, sendo, por isso mesmo, capaz de cálculo e escolhas. Nem a
ação humana se encontra previamente decidida, nem ninguém mais é alvo
ou manipulado por determinações estranhas a si mesmo; todos (salvo os
que não estão na posse plena de suas faculdades) se autodeterminam. Com
isso, agora é a força (interna) da culpa que justifica o castigo. Dir-se-ia que
a uma causalidade mítica, fundada no destino, sucedeu uma causalidade
moral, fundada na vontade livre. O reflexo disso no interior do direito penal
é a exclusão da esfera da punição não só das ações decorrentes de caso
fortuito, mas das coisas, animais e pessoas jurídicas, para incluir tão-
180
Segundo Max WEBER (Economia e sociedade, vol. II, p. 6), uma das peculiaridades do direito
primitivo consiste “na ausência da consideração da ‘culpa’ e também, portanto, do grau de culpabilidade
definido pela ‘intenção’. Quem tem sede de vingança não se preocupa com o motivo subjetivo, mas
apenas com o resultado objetivo (...). Sua cólera desencadeia-se indiferentemente sobre objetos mortos da
natureza (...), sobre animais (...) e sobre pessoas (...)”.
181
Para Tércio Sampaio FERRAZ JÚNIOR (Estudos de filosofia do direito, p. 78), o herói homérico
constitui de algum modo o modelo de um “...ser até ‘mais livre’ que os próprios deuses”, pois, enquanto
estes se resignavam, aquele lutava contra o destino, embora, finalmente, sempre fracassasse”.
182
Günther JAKOBS (Estudios de derecho penal, p.368 s) tem a visão de que “o conceito moderno de
culpabilidade é filho do mundo desmitificado”. Neste cenário onde predomina a razão e o cálculo antes
“eram forças – continua o autor – ‘misteriosas e incalculáveis’ que determinavam as condições de vida e
com isso o sentido da existência humana”. É assim que, para JAKOBS, segundo “esta concepção de
realidade, ninguém podia escapar do destino”.
77
somente as pessoas capazes de responsabilidade, imputáveis, portanto, a
título de dolo (consciência e vontade) ou culpa.
2. Os predicados e a legalidade penal. Mas é no aforismo da
legalidade penal (Nullum crimen, nulla poena sine lege) que de algum
modo a recepção desses predicados encontra sua síntese. A demonstração
disso é possível quando se toma em consideração algumas variações (entre
outras) que se projetaram dali. É o caso 1. do Nullum crimen sine actio; 2.
do nullum crimen sine tipo; 3. do nullum crimen sine culpa. Pois bem, na
primeira variante encaixa-se a liberdade (sem determinação livre, aquela
fundada no livre-arbítrio, não há ação); na segunda, a igualdade (o direito
penal do fato e não do autor submete todos a tipos penais de características
impessoais e abstratas, eliminando privilégios); na terceira, finalmente, a
razão,
a
subjetividade
e
a
autonomia
(naquilo
que
implicam,
respectivamente, de consciência, vontade e responsabilidade individual).
Com efeito, a legalidade penal, tratada aqui como síntese da distribuição e
recepção pelo direito penal dos predicados que transformaram o homem em
indivíduo, tem, por outro lado, o sentido de garantia contra o arbítrio e foi
concebida para a tarefa de impor limites ao Estado. Sob esse aspecto, ela
revela suas promessas de segurança para todos e cada um. Mas esse é um
tema para mais adiante. Interessa agora investigar como se desenvolveu,
desde a aurora da modernidade, o esforço das idéias penais para contemplar
o homem na sua particularidade de indivíduo.
3. Insegurança e tradição. Já se sabe do lugar que a razão passou a
ocupar como guia do conhecimento e da montagem da ordem política e
jurídica reclamada na conjuntura dos novos tempos; igualmente se sabe que
o volume de crédito que conquistou atingiu proporções insólitas. Aliás, é o
que parece ter permitido a GADAMER compreender muito depois que “a fé
na razão e no seu poder triunfante é a convicção fundamental de todo o
78
iluminismo”183 (não é o caso de desenvolver aqui considerações acerca do
conceito de iluminismo; basta situá-lo como movimento geral de idéias
que, embora amplamente desenvolvido no século XVIII, tem como ponto
de partida, sobretudo, o século precedente).184 Esse sentimento de
confiança também envolveu a reflexão em torno dos temas penais. Nesse
domínio, a crítica à tradição esteve sempre combinada com a formulação
das estratégias discursivas que estão na origem do direito penal moderno.
A tradição sob ataque era aquela que justificava em bases teocráticas
o direito de punir (a imputação decorria não da autoridade da lei, mas da lei
da autoridade, identificada nas Sagradas Escrituras); conferia direito
desigual ao infrator pelos privilégios reconhecidos para poucos (o
tratamento diferenciado decorria da desigualdade como princípio regulador
da sociedade estamental); associava o terror à punição por conta de
castigos sem qualquer proporção com a gravidade do crime (a pena
desligada da idéia de medida tinha por fim a retribuição, mas, sobretudo, a
intimidação geral, pela impressão que seria capaz de gerar na sensibilidade
humana); formulava leis na base de palavras confusas, vagas e obscuras
(isto dificultava a exata apreensão do seu alcance e significado); estendia a
punição não apenas ao autor do delito, mas a seus familiares também (o
âmbito da responsabilidade não era pessoal, pois, para além do infrator,
alcançava a comunidade doméstica, pela infâmia transmissível aos
membros da família). A expressão legal de tudo isso era representada, por
exemplo, na ALEMANHA, pela Constitutio Criminalis Carolina (1532); na
FRANÇA, pelas Ordenações Criminais de Francisco I (1539); em PORTUGAL
e suas colônias (BRASIL inclusive), no livro V das Ordenações Filipinas
(1603). À margem dessas leis, foram institucionalizadas práticas punitivas
igualmente atacadas. É o caso da Lettre-de-cachet. Tratava-se, segundo
183
184
Elogio da teoria, p. 41.
Cf.Iluminismo: in: ABBAGNANO, Dicionário de filosofia, p. 534 s.
79
MICHEL FOUCAULT, de um temível instrumento de punição manejado pela
monarquia absoluta na FRANÇA. Ela funcionava como “uma ordem do rei −
esclarece FOUCAULT − que concernia a uma pessoa, individualmente
(...)”185 e que podia, entre outras coisas, mandar prendê-la “por um tempo
não fixado previamente”.186 Assim, se uma nova ordem não fosse enviada
para liberar o detido, ficava para sempre nessa condição. É que a Lettre-decachet raramente “dizia que alguém deveria ficar preso por seis meses ou
um ano, por exemplo”.187
O desmonte dessa tradição exigiu um esforço de séculos. Nessa
tarefa se envolveram, de um lado e mais remotamente, o pensamento ligado
ao direito natural (jusnaturalismo), que, de resto, se confunde com o
próprio contratualismo, e, de outro, pensadores articulados com o período
mais mobilizado da ilustração, o século XVIII. Nessas vertentes do
pensamento moderno algumas idéias-força ocupavam posição central. Uma
delas é a de segurança. Sua descoberta coincidiu com a passagem do
homem para a condição de indivíduo, mediada por predicados (autonomia,
liberdade, igualdade, subjetividade e razão) desconhecidos (em parte)
naquele e reconhecidos neste. Já se sabe que tudo isso terá permitido não
apenas criar o Estado, mas torná-lo viável por uma atuação capaz de
contemplar seus fins. Sabe-se também que um deles, o mais fundamental, é
a busca de segurança. Aqui, então, cabe indagar: que sentido tem essa
palavra? Quem é seu destinatário? Como alcançá-la? Qual sua relação com
a liberdade?
4. A descoberta da segurança. HOBBES e LOCKE foram alguns dos
autores que no âmbito do contratualismo e ainda na perspectiva do direito
natural problematizaram a idéia de segurança. HOBBES assinala algumas
185
A verdade e as formas jurídicas, p. 95.
Ibid., p. 98.
187
Ibid.
186
80
indicações para iluminar o tema. A idéia que desenvolve no Do cidadão é a
de que a segurança do povo, isto é, dos governados, é a suprema lei. Com
base nisso, duas conseqüências podem ser deduzidas do seu pensamento: a.
o objetivo fundamental do Estado é a segurança; b. o destinatário dela é o
povo. O meio pelo qual se viabiliza a segurança é a lei, sempre universal.
Mas segurança não significa apenas preservar a vida, mas garantir a
felicidade. É que os homens instituíram o governo também para viver
agradavelmente, com abundância e conforto. As comodidades que
asseguram a felicidade dos súditos são: 1. serem defendidos contra
inimigos externos; 2. ter preservada a paz em seu país; 3.enriquecerem-se
tanto quanto for compatível com a segurança pública; 4. poderem desfrutar
de uma liberdade inofensiva. Convém examinar aqui o significado dessa
comodidade. HOBBES entende por liberdade inofensiva aquela praticada no
âmbito das ações que a lei deixa de regular, pois considera haver “um
número infinito de casos que não são ordenados, nem proibidos, mas nos
quais cada um pode fazer ou deixar de fazer o que bem entender”.188 Mas,
para HOBBES, não basta a indiferença da lei em relação a um sem-número
de ações que o súdito pode desenvolver para que haja liberdade e desfrute
dela com alguma segurança. É preciso algo mais e referido a um
sentimento de ausência de medo quanto a ser punido pela prática de uma
daquelas ações. O vazio punitivo ou a expectativa em torno dele provoca
um sentimento de desassombro, pelo qual se projeta ainda outro aspecto da
segurança. É disso que trata HOBBES quando assegura que
... constitui parte substancial dessa liberdade, que é inofensiva ao governo civil, e necessária para
que cada um viva em felicidade [segurança], que não haja penalidades a temer, a não ser as que
189
ele possa tanto antever quanto esperar.
Essa
passagem
somente
aponta
para
uma
relação
entre
previsibilidade e segurança, mas num quadro em que inexistem punições,
188
189
P. 232 s.
Ibid., p. 233 s.
81
por serem desnecessárias. A segurança associada a uma previsibilidade que
decorre de punições estabelecidas, portanto, necessárias, é de outro matiz e
vincula-se ao cânon da legalidade penal. Mas HOBBES não cuida disso. De
qualquer forma, no capítulo XXVIII do Leviatã, quando trata do tema da
pena, define-a. Assim, para ele,
...
uma pena é um dano infligido pela autoridade pública, a quem fez ou omitiu o que pela
mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos homens
190
fique mais disposta à obediência.
Dessa definição HOBBES retira onze conseqüências. Aqui interessa
apenas a nona. Segundo ela,
... os danos infligidos por um ato praticado antes de haver uma lei que o proibisse não são penas,
mas atos de hostilidade. Porque antes da lei não há transgressão da lei, e a pena supõe um ato
191
julgado como transgressão de uma lei.
Convém anotar, contudo, que a lei referida por HOBBES não é
caracteristicamente a penal (para ele toda lei é lei civil, pois é ligada à
palavra civitas que significa Estado, o que permite distingui-la da lei
natural). Ela ainda pode ser oral ou escrita e o legislador que a produz é o
soberano, seja ele um homem ou uma assembléia. Sem embargo, na ligação
que faz entre pena e lei prévia, HOBBES prepara o caminho em direção ao
princípio da legalidade penal como garantia do indivíduo. Paralelamente
antecipa, de alguma forma, o que mais tarde vai se constituir num dos
desdobramentos desse princípio, o nullum crimen sine culpa. Com efeito,
no Diálogo entre um filósofo e um jurista, HOBBES considera muito severa
a punição de um homem que matou “... outro homem apenas por
infortúnio, sem nenhuma intenção maligna...”,192 de modo que num cenário
como esse é “... preciso que o ato causador da morte seja (...) voluntário, do
190
Leviatã, p. 187.
Ibid., p. 187.
192
Ibid., p. 169.
191
82
contrário não é, pela lei da razão, assassinato”.193 Mas esse é um tema para
mais adiante.
5. O crime como mau negócio. Se em HOBBES a idéia de segurança
é associada, entre outras coisas, a um domínio sem regras, ali onde não há
lugar para o medo de ser punido, em LOCKE segurança decorre de regras
que são estabelecidas:
...
o poder que o governo tem (...) não deve ser arbitrário ou caprichoso (...) deve ser exercido
mediante leis estabelecidas e promulgadas, para que (...) os homens possam saber qual o seu
194
dever, achando-se garantidos e seguros dentro dos limites da lei...
Assim, é no interior da lei e não ao largo dela que segurança pode ser
encontrada.
Por outro lado, segurança em LOCKE aparece como algo cujo sentido
está na superação de formas de arbítrio que o homem no estado de natureza
pratica e que não pode ser praticada por quem exerce o mando no Estado
social. Com efeito, ao abandonar o estado de natureza, os indivíduos
queriam escapar de inconvenientes, um deles representado pela
circunstância de que todos eram juízes de todos, isto é, todo mundo tinha
“o poder executivo da lei da natureza”195 e as infrações desta, mesmo as
menores, podiam ser castigadas com a morte: “Qualquer transgressão pode
ser castigada a esse ponto e com tanta severidade que baste para torná-la
mau negócio para o ofensor (...)”.196 Mas, ao escapar do arbítrio de todos e
de cada um, os indivíduos não pretenderam se submeter ao arbítrio de
ninguém mais quando fundaram a sociedade, e sim às orientações da lei,
pois, se o mando for exercido “... por prescrições extemporâneas e
resoluções indeterminadas (...) os homens ficarão em condição muito pior
193
P.170.
Segundo tratado sobre o governo, p. 270.
195
Ibid., p. 220.
196
Ibid.
194
83
que o estado de natureza...”,197 pois estarão obrigados a obedecer “... aos
decretos exorbitantes e ilimitados de pensamentos repentinos ou vontades
irrestritas e, até o momento desconhecidas...”198
6. A honra contra o terror. O tema da segurança, já agora referido
(em geral) à lei escrita e dotada de efeitos especificamente penais, é
retomado pelo iluminismo a partir (entre outros) de MONTESQUIEU,
BECCARIA e VOLTAIRE. MONTESQUIEU trata da questão quando examina a
relação entre o fenômeno punitivo com a natureza e o princípio de cada
governo. Sua investigação, sob vários aspectos, parte de uma série de
negações. Assim, para ele, nem a criação dependeu de qualquer ato
arbitrário, nem o mundo se explica por uma fatalidade cega, nem os
homens são unicamente orientados por seus caprichos. Tudo tem suas leis e
estas “no seu sentido mais amplo − explica MONTESQUIEU − são relações
necessárias que derivam da natureza das coisas”.199 A razão é a lei geral
que orienta o homem e as leis “... civis de cada nação devem ser apenas os
casos particulares em que se aplica essa razão (...)”.200 Estas leis, contudo,
devem se relacionar à natureza e ao princípio de cada governo, seja
republicano, monárquico ou despótico. A natureza do governo republicano
revela-se na posse que o povo tem do poder soberano e seu princípio é a
virtude política, entendida como igualdade; a natureza do governo
monárquico é o poder exercido apenas por um, mas sempre segundo a lei, e
seu princípio é a honra; a natureza do governo despótico é também o poder
exercido por um, que, a despeito da lei, guia-se pela vontade e capricho, e
seu princípio é o medo.
Para MONTESQUIEU, a segurança é o objetivo central das leis. É disso
que se trata quando diz que num governo orientado por elas cumpre que “...
197
Ibid., p. 270
Ibid.
199
O espírito das leis, p. 25.
200
Ibid., p. 28.
198
84
provejam, tanto quanto possam, a segurança dos cidadãos”.201 Esta será
tanto mais garantida quanto mais formalidades a lei contemplar e tanto
menos quanto menos ou inexistentes forem tais formalidades. O governo
monárquico [e republicano também] não comporta leis tão simples como o
despótico. Enquanto isso, “... nas repúblicas, são necessárias pelo menos
tantas formalidades quanto nas monarquias”.202 A projeção dessas
considerações no âmbito das penalidades se articula ali onde MONTESQUIEU
considera que “os Estados despóticos que apreciam as leis simples utilizam
amiúde a lei de talião”.203 Já “os Estados moderados [república e
monarquia] aceitam-nas algumas vezes”.204 Mas há uma diferença: “os
primeiros a exercem
rigorosamente, e os segundos a utilizam
moderadamente”.205 Por outro lado, “a severidade das penas convém
melhor ao governo, cujo princípio é o terror, do que à monarquia ou à
república, que têm por moda a honra e a virtude”.206 Acontece que em
governos cujos castigos são demasiado rigorosos há problemas na execução
deles, ou seja, tal é a desproporção entre crime e pena que “freqüentemente
se é obrigado a optar pela impunidade”.207
Em MONTESQUIEU, como se vê, o objeto de investigação da pena,
seja severa ou moderada, é constituído pelas relações inevitáveis ou
necessárias que a vinculam à natureza do Estado. Nesse sentido, sua
reflexão não recomenda (embora pareça) a adoção de um padrão, máximo
ou mínimo, de penalidade. Apenas reconhece a pena como ela é e os efeitos
que implica se aplicada ou não (sempre segundo aquilo que observou): “A
experiência tem mostrado que nos países onde as penas são leves o espírito
201
Ibid., p. 84.
Ibid., p.82 s.
203
Ibid., p. 94.
204
Ibid.
205
Ibid. p.94.
206
Ibid., p. 87.
207
Ibid., p. 90.
202
85
do cidadão é atingido por elas como o é alhures pelas leis severas”.208 Além
disso, considera que é na impunidade, e não na moderação das penas, que
se encontra a causa do relaxamento perante o crime. Por outro lado, tão
objetiva é a relação que vincula o castigo à forma e natureza do Estado que,
para ele, “seria fácil provar que, em todos ou quase todos os Estados da
Europa, os castigos diminuíram ou aumentaram à medida que se aproximou
ou se afastou da liberdade”.209 Bem, o tema da punição referido à liberdade
(não a de ir e vir, mas a de fazer ou não fazer), tendo em vista a segurança
do indivíduo, recebe um enfoque menos relacional e mais postulante em
BECCARIA.
7. As armas da razão. Para garantir a segurança, pelo menos três
medidas gerais são indicadas por BECCARIA no programa de direito penal
para os novos tempos que delineia no livro Dos delitos e das penas. Tratase em primeiro lugar de atacar o uso generalizado da força, regulando-o.
Nasce daí o que chama de “exercício legítimo da força”, um efeito de
pactos e convenções firmados entre homens que agora dispensam a
mediação divina. Por essa via, a força (ou violência) deixa de ser o
fenômeno de que todos lançavam mão e o acesso a seu manejo se constitui
numa exclusividade do soberano. (MAX WEBER vai dizer, mais tarde, que é
disso que se trata quando o Estado reivindica para si e alcança “... o
monopólio da coação física legítima”.210) Como conseqüência e em
segundo lugar, fazer do uso ilegítimo
da força
(embora
não
exclusivamente) um delito segundo estipulações claras e precisas descritas
na lei. Em terceiro lugar, a lei de que se fala é positiva (escrita) e não a
revelada ou natural.
Se esse é o tripé que sustenta a idéia de segurança, trata-se aqui de
saber como BECCARIA chegou até ela. Isto implica no exame do curso de
208
Ibid., p. 88.
Ibid., p. 87.
210
Economia e sociedade, vol. II, p. 525.
209
86
seu pensamento. Este é constituído por estágios na seqüência dos quais
examinou a soberania, o fundamento do direito de punir e a legalidade
penal. (Foi nesse contexto que inseriu a relação entre segurança e liberdade,
tendo em vista a punição. Desse modo, a pena aparece como manifestação
do anseio por punição, sim, mas sem perder de mira que, aplicada além da
medida, compromete a liberdade.) Nele, a soberania é o resultado
aritmético de uma adição. O percurso que leva até ela lembra o do contrato
social. Precedeu-a um “... permanente estado de beligerância”.211 Os
homens se cansaram disso e de uma liberdade cuja manutenção era incerta.
Sacrificaram parte dela em troca de segurança. Foi, então, que a soma das
partes da liberdade de cada um formou o poder soberano. Nesse ponto
BECCARIA encontrou o fundamento do direito de punir, de tal modo que,
instituída a soberania, na seqüência ficou estabelecido que as penas
constituam os meios de garanti-la contra “... a força das paixões
particulares, em geral opostas ao bem comum”.212 Mas ninguém sacrificou
de graça sua liberdade, “visando ao bem público”,213 nem se desfez
completamente dela. A necessidade justificou o sacrifício. Somente a
necessidade pode justificar a pena. Sob esse aspecto a necessidade é a
medida da punição e, para além dela, toda pena será injusta. Isso significa
que será tanto mais justa “... quão mais sagrada e inviolável for a segurança
e maior a liberdade que o soberano propiciar aos súditos”.214 Mas como
garantir segurança e liberdade para todos e cada um? BECCARIA responde
que “apenas as leis [escritas] podem indicar as penas de cada delito”;215 que
cabe ao legislador estabelecê-las e ao magistrado aplicá-las; que elas são
gerais e todos devem obedecê-las. É aqui e pela primeira vez que o
pensamento penal moderno anuncia (embora ainda sem as nuances que só
211
Dos delitos e das penas, p. 14.
Ibid., p. 15.
213
Ibid., p. 14.
214
Ibid., p. 15.
215
Ibid.
212
87
mais tarde FEUERBACH acrescenta) seu compromisso com a legalidade
como promessa de segurança.
8. Nem rigor, nem indulgência. O discurso iluminista voltado para
os domínios da punição incorporou novos elementos com VOLTAIRE. Sua
contribuição, no entanto, para além das idéias, articulou-se à prática
(interveio no caso JEAN CALAS e estimulou em alguma medida a
investigação científica na área penal). VOLTAIRE compreendia que, longe
de moderadas e conduzidas pela razão, as práticas penais ligadas à tradição
distinguiam-se, de um lado, pelo extremo rigor, e de outro, pelas paixões
que as inspiravam, representadas ora na intolerância [religiosa], ora no
fanatismo e na superstição. A crítica dessas paixões foi articulada por
Voltaire em pelo menos duas das obras que escreveu, a saber, Tratado
sobre a tolerância e O preço da justiça. Nelas, descreve a posição insegura
do indivíduo diante de ações punitivas ora arbitrárias, ora injustas. Para
ele, são arbitrárias as punições ordenadas pelos homens e não deduzidas da
lei. Acontece que “assim não deveriam ser; que é a lei, e não os homens,
que deve punir”.216 Dá como exemplo desse arbítrio a posição da FRANÇA
em relação à sodomia, no período em que são queimados “vivos os poucos
infelizes culpados dessa abjeção”,217 embora não existisse no país lei “para
a sua investigação e punição”.218 Enquanto isso são injustas as punições
avaliáveis segundo a medida do Summum jus, Summa injuria, capaz de
exprimir a relação de causa e efeito, portanto de correspondência, entre um
direito rigoroso, extremo, máximo (summum jus) e as ofensas semelhantes
em grandeza que provoca (summa injuria). Dá como exemplos de injustiça
dois cenários, um real e outro abstrato. Pelo primeiro, considerou injusta a
condenação à morte de JEAN CALAS (um comerciante huguenote acusado
de filicídio) motivada pelo ambiente de conflito religioso que polarizava a
216
O preço da justiça, p. 76.
Ibid., p. 75 s.
218
Ibid., p. 75
217
88
FRANÇA e com base tão-somente em indícios e presunções. Pelo segundo,
compreendeu ser igualmente injusto condenar ao suplício extremo quem,
no máximo, merece apenas três meses de prisão. Numa situação, VOLTAIRE
coloca em xeque o procedimento penal e mostra como este pode ser
manipulado por indesejáveis sentimentos de intolerância.219 Na outra,
postula que o esquema crime e punição seja fundado na idéia de proporção.
Este é o ponto que aqui interessa ser examinado, por conta de seu
significado como uma das premissas que estruturou o direito penal
moderno.
Sem embargo, cabe previamente anotar que, a rigor, o pensamento
de VOLTAIRE não ultrapassou os limites de uma proposta de política
criminal. Aquilo que projetou e contribuiu com o direito penal pertence
mais ao espaço das premissas. Mas isso não é pouco. Afinal não há direito
penal descolado delas. Sem premissas, sobram apenas práticas penais
contingentes e circunstanciais que oscilam entre o arbítrio e o acaso. Como
premissas, tais práticas tomam um rumo e se transformam em direito penal,
pelo que contém de regras com efeitos previsíveis e capazes de orientar o
indivíduo.
Com efeito, o vínculo de VOLTAIRE com a matéria penal aparece,
sobretudo, no livro O preço da justiça. Escreveu-o em conseqüência de um
concurso promovido na cidade de BERNA, do qual parece não ter
participado como concorrente, e, sim, como agitador de idéias ou dúvidas
postas a serviço de quem apresentasse trabalhos “sobre assunto tão
importante”.220 Seria premiada a melhor dissertação que tivesse por objeto:
Compor e redigir um plano completo e minucioso de legislação sobre as matérias
criminais, a partir de três pontos de vista: 1º) dos crimes e das penas proporcionais que convenha
219
Quando, no Tratado sobre a tolerância, VOLTAIRE questiona as práticas penais, revelando suas
relações com a intolerância religiosa, o objeto que leva em conta é sempre referido ao procedimento. É
que naquela época as matérias processual e penal eram ordenadas no interior da mesma legislação, sem
distinção.
220
O preço da justiça, p. 7.
89
aplicar-lhes; 2°)da natureza e da força das provas e das presunções; 3º) da maneira de constituílas por via do procedimento criminal, de tal modo que a moderação da instrução e das penas seja
conciliada com a certeza de uma punição pronta e exemplar, e que a sociedade civil encontre a
maior segurança221 possível para a liberdade e a humanidade.222
Como se vê, a busca de segurança na sua relação com a liberdade,
tendo em vista a lei penal, mobilizava as inquietações da época. É nesse
contexto que VOLTAIRE elaborou sua reflexão. Na base dela, pelo menos
três dicotomias se destacam, opondo as características da velha lei penal
àquelas próprias de uma nova. Assim, se aquela era orientada para a ruína
do indivíduo, esta seria para a segurança; se aquela era fundada na
superstição, esta seria na razão; se naquela a punição era cega (não fazia
distinções necessárias entre crimes de gravidade diferente) e tinha por
objetivo espalhar o medo, o horror, nesta o objetivo era a utilidade.
A opinião de VOLTAIRE acerca da lei penal aplicada na FRANÇA não
era nada lisonjeira: “os livros que fazem as vezes de código (...) parece (...)
que foram escritos pelo carrasco”.223 Naquele país “o código criminal
parece orientado para a ruína dos cidadãos”224 e sob esse aspecto invoca
como contraponto a INGLATERRA onde, além do cidadão, “também o
estrangeiro encontra segurança (...) na lei (...)”.225 Não enxerga qualquer
vantagem nos castigos severos, pois a experiência mostra “... que os países
onde a rotina da lei ostenta os mais horrendos castigos são aqueles onde os
crimes se multiplicam”.226 Atribui à Igreja um papel importante na
distribuição desses castigos, pois:
E durante esses séculos de ignorância, superstição, fraude e barbárie, a igreja que sabia
ler e escrever ditou leis a toda a Europa, que só sabia beber, brigar e confessar-se aos monges.
Aos príncipes que ungia, a igreja impunha o juramento do extermínio de todos os hereges; ou
221
Grifo nosso.
O preço da justiça, p. 6.
223
Ibid., p. 97.
224
Ibid., p. 95.
225
Ibid.
226
Ibid, p. 105 s.
222
90
seja, os soberanos deviam jurar, em sua sagração, que matariam quase todos os habitantes do
universo, pois quase todos tinham religião diferente da sua.
Enquanto isso, a “canalha” gera dificuldade para a mudança desse
quadro:
O mundo está melhorando um pouco; sim, o mundo pensante, mas o mundo bruto será
ainda por muito tempo um composto de ursos e macacos, e a canalha será sempre de cem para
um. É para ela que tantos homens, mesmo com desdém, mostram compostura e dissimulam; é a
ela que todos querem agradar; é dela que todos querem arrancar vivas; é para ela que se realizam
cerimônias pomposas; é só para ela, enfim, que se faz do suplício de um infeliz um grande e
soberbo espetáculo.
VOLTAIRE percebe que não é tarefa simples elaborar um código
penal. Existe “dificuldade quase intransponível de compor um bom código
penal, que esteja tão distante do rigor quanto da indulgência”.227 Entre esses
extremos o equilíbrio se encontra em atribuir à pena um caráter utilitário:
“cumpre punir, mas não às cegas. Punir, mas utilmente. Se a justiça é
pintada com uma venda nos olhos, é mister que a razão seja seu guia”.228
Daí sua objeção à pena de morte, pois, não há nada de “racional que, para
ensinar os homens a detestar o homicídio, os magistrados sejam homicidas
e matem um homem em grande aparato”.229 Do mesmo modo não há nada
de racional em punir com igual rigor ilícitos diferentes quanto à gravidade:
“acaso caberá lançar ao fundo da mesma enxovia um infeliz devedor
insolvente e um celerado sobre o qual há fortes suspeitas de parricídio? Há
graus para tudo, distinções que devem ser feitas em cada gênero”.230
VOLTAIRE adverte que tais distinções devem ser observadas não apenas sob
o aspecto objetivo, mas subjetivo também, pelo exame dos motivos, da
intenção e da consciência do indivíduo em sua atuação. Nesse ponto, a face
interior do delito começa a ser descoberta. É o que se depreende da
passagem:
227
Ibid., p. 9.
Ibid., p. 15.
229
Ibid., p. 18.
230
Ibid., p. 100 s.
228
91
Em quase todos os países católicos, para o roubo de um cálice, um cibório, um
ostensório, a pena comum é a fogueira (...).
Ninguém examina se, em tempos de fome, algum pai de família terá furtado esses
ornamentos para alimentar a família agonizante, se o culpado teve a intenção de cometer um
231
ultraje contra Deus (...), se o ladrão sabia o que era um cibório (...), o que atenuaria o delito.
9. Segurança como princípio fundador. Em resumo, o programa da
ilustração para a área penal, cujas bases em parte foram preparadas pelo
contratualismo, adotou a segurança do indivíduo como seu princípio (sem
perder de vista, naturalmente, as relações delicadas com o problema da
liberdade). A partir e em torno deste princípio cristalizaram-se
fundamentos que estão na origem da razão penal moderna, especialmente a
legalidade dos crimes e das penas (isso pela conexão que mantém com a
liberdade); a moderação dos castigos (pela conexão da resposta penal e sua
medida com a gravidade da infração); a responsabilidade pessoal (pela
conexão com o livre-arbítrio enquanto pressuposto da culpabilidade
[também decorrente daquilo que internamente conduz o indivíduo −
consciência, vontade, intenção, motivos, etc. − ao crime]). A lei e o
pensamento jurídico, cada um a seu modo, repercutiram em seus domínios
os temas então descobertos.
10. As luzes e a lei. No domínio da lei, com efeito, a Declaração dos
direitos do homem e do cidadão (1789),232 em dois dos dezessete artigos
que contém, elege a segurança como direito natural e imprescritível do
homem;233 estabelece, além disso, que somente as penas necessárias devam
ser prescritas na lei (o que remete à idéia de moderação dos castigos);
destaca, enfim, que a punição tenha como requisito uma lei promulgada
231
Ibid., p. 12.
Aqui a declaração é lei no sentido que lhe empresta CANOTILHO (Direito constitucional, p. 95.) para
quem ela era “simultaneamente, uma ‘supraconstituição’ e uma ‘pré-constituição’: supra-constituição
porque estabelecia uma disciplina vinculativa para a própria constituição (1791); pré-constituição porque,
cronologicamente, precedeu mesmo a primeira lei superior”.
233
Art. 2º: O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do
homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
232
92
antes do delito (o que remete ao princípio da legalidade).234 Por seu turno, o
Código Penal da Baviera (1813) é concebido sob o impulso humanista do
Aufklärung. Comentando-o, MAURACH assinala que nele é característico o
respeito aos princípios do Estado de direito. Um desses princípios é o da
legalidade penal. Assim ficou proibida a analogia e, apesar do caráter
graduado das penas ali previstas (prevaleciam as privativas de liberdade),
restringiu-se amplamente a margem de arbítrio deixada ao juiz para fixação
da pena. Além disso, a parte especial limitou o círculo de ações
merecedoras das penas criminais.235
Alguns dos efeitos do programa penal iluminista ficaram impressos
no Código Criminal do Império do Brasil, de 1830. É o caso da legalidade
dos crimes e das penas, cuja previsão foi distribuída nos títulos I e II da
parte I. Assim, no título I (setor dos crimes) o artigo 1º estabelecia que:
“Não haverá crime ou delito [palavras synonimas neste código] sem uma
lei anterior que o qualifique”. É o nullum crimen sine lege. Mais adiante,
no título II (setor das penas), o artigo 33 fixava: “Nenhum crime será
punido com penas que não estejão estabelecidas nas leis (...)”. É o nulla
poena sine lege. Esse mesmo dispositivo contém na segunda parte
determinações que proíbem o arbítrio judicial, salvo em casos expressos,236
e incorporam a idéia de proporção entre crime e pena. Esta será aplicada no
grau máximo, médio ou mínimo, a depender das circunstâncias que
envolvem o crime. Se forem agravantes, a pena será em grau máximo; se
atenuantes, em grau mínimo; se inexistirem, em grau médio. Além disso, o
código contempla as disposições anímicas do indivíduo, reconhecendo, ao
234
Art. 8º: A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser
punido se não em virtude de uma lei estabelecida promulgada antes do delito e legalmente aplicada.
235
Cf. Derecho Penal: parte general, p. 67.
236
Para Thomaz A. JÚNIOR (Annotações Theoricas e Praticas ao Código Criminal, tomo I, v. II, p. 469):
“Só em dous casos esse arbítrio é permitido, e vem a ser:1º Na 2ª parte do art. 18 § 10º em que se diz que
quando o réo fôr menor de 17 annos e maior de 14 poderá o juiz, parecendo-lhe justo, impôr a pena da
complicidade. 2º No art.60, em que se determina que ao escravo, quando não for condemnado á morte ou
a galés, se imponha açoutes, cujo número será fixado na sentença pelo juiz”.
93
contrário das Ordenações, o lugar especial que os impulsos internos, as
determinações psíquicas, passaram a ocupar na avaliação da conduta
humana ali regulada. É o caso da consciência (discernimento) e da vontade,
sem cujo concurso não há responsabilidade moral. Por conta disso, segundo
o art. 10, “Não se julgarão criminosos:” a. “os menores de quatorze anos;”
b. “os loucos de todo o gênero;” c. os que agem “violentados, por força ou
por medos irresistíveis”. Nos casos a e b falta consciência; no c falta
vontade. Paralelamente, levam-se em conta o motivo e a intenção do agente
no setor das agravantes e atenuantes. Assim, é agravante a circunstância de
(art. 16, §4º) “ter sido o delinqüente impelido por um motivo reprovado ou
frívolo”, do mesmo modo que, inversamente, é atenuante a circunstância de
o agente não ter (art. 18, §1º) “a directa intenção” de praticar o crime.
11. As luzes e o pensamento penal. No domínio do pensamento
penal, por seu turno, merecem registro aqui as reflexões de FEUERBACH e
CARRARA, desenvolvidas na primeira metade do século XIX. Acerca de
FEUERBACH, a compreensão de BLOCH é que ele inaugura formulações de
caráter original para o direito penal moderno. É o caso da relação entre
indivíduo, Estado e direito. O indivíduo tinha no Estado e no direito fontes
de garantias. Desse modo, o Estado era menos um fim em si mesmo e mais
um meio de garantir o indivíduo. Não era menos garantidor o papel do
direito, mais próximo, ainda segundo BLOCH, de uma suma de direitos que
de proibições, vale dizer, o direito à vida, segurança, liberdade, não se
define como uma concessão negativa, como uma isenção no âmbito da
submissão, senão como capacidade jurídica, como poder sancionado
positivamente.237
Também original é o caso da forma lingüística que FEUERBACH
confere ao princípio da legalidade dos crimes e das penas. Recorre ao
latim e o anuncia numa fórmula até então desconhecida e que passou a ser
237
Cf. Derecho natural y dignidad humana, p. 93.
94
consagrada pelo uso. Trata-se do nullum crimen, nulla poena sine lege.
Nesse enunciado a segurança encontrou sua síntese definitiva. Pela via de
um raciocínio a contrário (sine lege) a lei é sacramentada como a fronteira
que separa domínios bem diferentes: de um lado o Estado pode criminalizar
e punir (e até tem o monopólio disso), mas não pode fazê-lo hic et nunc,
caso a caso, sob o impulso da contingência. Cabe-lhe anunciar antes a
conduta que proíbe ou ordena e como vai puni-la se cometida ou omitida.
De outro, o indivíduo pode agir e se mover segundo cálculos que lhe
permitem neutralizar a força do Estado.
Ligado ainda ao direito natural e menos ao direito positivo,
CARRARA adotou como guias de seu pensamento Deus, ARISTÓTELES e
HEGEL. A partir de Deus assumiu a idéia de que “todo direito procede”
Dele.238 A partir de ARISTÓTELES, a idéia de que “o estado de associação
foi coetâneo com o nascimento do gênero humano”.239 A partir de HEGEL, a
idéia de que “o delito é a negação do direito e a pena sua reafirmação”.240
Com Deus teve a pretensão de que os princípios da ciência penal fossem
deduzidos não do direito positivo (obra do homem), mas do “código
imutável da razão” (obra do Criador).241 Isso lhe permitiu reduzir o direito a
um fenômeno jurídico, pois, se Deus deu o direito à humanidade desde a
criação, trata-se, então, de algo congênito ao homem, o que justifica revelálo na condição de “animal jurídico”.242 Assim, “o delito não é um ente de
fato, mas um ente jurídico”,243 pois sua essência consiste “necessariamente
na violação de um direito”.244 Com ARISTÓTELES considerou a doutrina do
contrato social um erro.245 Isso lhe permitiu enxergar na pena não o produto
de um consenso entre os homens, mas a necessidade de manutenção da
238
Programa de derecho penal: parte especial,vol. I, p. 5.
Programa de derecho penal: parte general, vol. I, p. 15.
240
Ibid., vol. II, p. 7.
241
Ibid., parte general, vol. I, p. 26.
242
Reminiscencias de cátedra y foro, p. 12.
243
Programa de derecho penal: parte general, vol. I, p. 4
244
Ibid., p. 5.
245
Cf. ibid., p. 11.
239
95
ordem. Com HEGEL (e assim contra FEUERBACH) estabeleceu que o fim da
pena não é intimidar, mas tranqüilizar.246 Isso lhe permitiu desenvolver a
idéia da pena irrogada como defesa do direito, o que se dá por uma
operação de retorno à “paz anterior” (ao delito), de tal modo que faz
renascer “em todos o sentimento de sua própria segurança”.247 É esse o
ponto que aqui interessa. Com efeito, CARRARA enfrenta o tema da
segurança como um direito, isto é, a segurança de que fala é entendida não
apenas como um efeito da pena cominada ou imposta, mas, sobretudo,
como um direito que a precede: “A segurança e o sentimento da segurança,
como direitos, os dá a natureza”.248 Acontece que, sem a proteção da
autoridade, do governo, tal segurança é precária. Para torná-la consistente,
foi constituída a sociedade civil, cuja “missão única, absoluta” é a defesa
da segurança e do sentimento que lhe corresponde como direitos.
A segurança como garantia contra o arbítrio expressa no nullum
crimen, nulla poena sine lege não mereceu maiores desenvolvimentos na
obra de CARRARA (embora conhecesse a matéria). Nele, com efeito, o tema
da segurança, longe de considerar o Estado e o indivíduo em termos de
uma relação na qual aquele fizesse deste uma presa fácil (desprotegida da
lei), foi tratado na perspectiva de um direito que acompanha o indivíduo
desde sempre, isto é, não apenas a partir da sociedade civil constituída, mas
já no interior do que ele chama de “período primitivo de associação
patriarcal ou (...) natural”.249 Por isso mesmo, a função da lei penal é a de
proteger os direitos que a infração viola, aplicando-se o castigo. Mas há
limites nisso, pois constitui também um direito não ser punido com
excesso. Toda pena que vá além da necessidade (à defesa de direitos) é
abuso. Daí CARRARA lança mão da idéia de justiça para afirmar que nela se
246
Ibid., parte especial, vol. I, p. 16.
Ibid.
248
Ibid., parte general, vol. I, p. 95.
249
Programa de derecho penal: parte general, vol. I, p. 12.
247
96
encontra o limite para o exercício do direito punitivo. Mas a justiça como
limite da punição não é algo externo, que se agrega à tutela jurídica ou
defesa do direito; é algo, sim, que lhe é próprio e indestacável:
...
na fórmula da defesa do direito [ao contrário, portanto da tese da defesa social] o limite da
justiça é congênito, intrínseco, inseparável, porque quando se diz que a autoridade deve defender
o Direito, se diz que o deve defender tanto no ofendido como no ofensor, isto é, que deve
castigar este em defesa daquele, mas não castigá-lo mais além do que requer tal defesa, porque
ao fazê-lo assim violaria o direito do ofensor, e a pena, ao fazer-se injusta, por seu caráter
excessivo, não encontraria já apoio na suprema razão da tutela jurídica.250
Parece provável que, nessa passagem, CARRARA enxergue (embora
sem dizê-lo expressamente) na idéia de justiça como limite da punição,
outra face da segurança e do sentimento que lhe corresponde como direitos.
Dito de outro modo, a segurança de todos e cada um é garantida não apenas
com a punição e naquilo que implica como restauração da fé no direito,
mas, ainda, na sua aplicação segundo a medida necessária à defesa, sem o
que se cai no excesso e “todo excesso não é proteção, mas violação de
direito”.251
12. Segurança e giro positivista. Como se vê, com o iluminismo e
no pensamento penal de base ainda jusnaturalista (cujas formulações deram
identidade à escola clássica), o indivíduo representava o lugar onde era
mais visível o acento da segurança. Mais tarde, porém, com o positivismo
filosófico (cujas formulações adaptadas e aplicadas à área penal deram
identidade à escola positiva ou, por outra, ao positivismo criminológico)
opera-se um giro e aquele acento pousa na sociedade. Não se trata mais de
conferir à lei penal a tarefa de defesa do direito, mas de defesa social. Isso
não significa, no entanto, o abandono do indivíduo ou o desfazimento da
rede de garantias sob cuja tutela ficou embalado até pelo menos a primeira
metade do século XIX. Significou apenas o enfraquecimento daquela rede.
250
251
Ibid., vol. II, p. 63.
Programa de derecho penal: parte general, vol. I, p. 7.
97
Não é possível falar de abandono se não foi colocada em questão a validade
(aqui no sentido de vigência) do princípio da legalidade penal.252 No
BRASIL mesmo, a reforma penal de 1890 recepcionou-o sem restrições e
algo semelhante ocorreu com o código penal alemão de 1871. Enquanto
isso, o código ZANARDELLI, na ITÁLIA, incorporou-o. Mas de
enfraquecimento é possível falar, sim, particularmente no esforço
desenvolvido para o exame do crime como fenômeno e não como
abstração. (Era a despedida da nascente ciência penal de sua vocação
metafísica para se submeter ao império dos fatos e, dessa forma,
corresponder ao cânon epistemológico que empolgou a segunda metade do
século XIX, segundo o qual qualquer conhecimento científico [salvo o da
lógica e da matemática] só encontrava validade na experiência da
observação.) Isso deslocou o foco do pensamento penal, antes concentrado
no delito como ente jurídico, para o sujeito da ação criminosa, isto é, o
delinqüente. O resultado foi, de algum modo, a objetivação do delito pelo
relevo atribuído às determinações, sejam biológicas (LOMBROSO),
psicológicas (GAROFALO) ou sociais (FERRI) das quais o delinqüente não
tinha como escapar, pelo que não se tratava de puni-lo (afinal não tinha
livre-arbítrio e, portanto, culpa), mas de excluí-lo (já que se tratava de um
anormal ou doente), seja com o isolamento (pela detenção perpétua que
LOMBROSO postulou), seja com a eliminação (pela pena de morte ou
deportação postuladas por GAROFALO). Aqui a segurança do indivíduo sob
o aspecto da exclusão da culpa e seu correspondente grau na avaliação do
delito sofre um abalo cujos desdobramentos, no entanto, na esfera legal
foram de extensão reduzida. Numa palavra: a idéia de exclusão do
252
A propósito da relação dos positivistas com o princípio da legalidade, BETTIOL (Direito penal, vol. I,
p. 138) é de opinião que “... se não foi expressamente pleiteada pelos positivistas a sua ab-rogação, foi
devido ao ambiente ainda não preparado para acolher passivamente o ocaso de uma regra tão fundamental
da civilização européia e tão ligada, malgrado tudo, à mentalidade e educação liberal dos próprios
positivistas”.
98
delinqüente pela via da pena de morte ou prisão perpétua não foi capaz de
sensibilizar (em geral) o legislador; mas sensibilizou-o algo que não foi
objeto de formulação pelos positivistas, ou seja, ligar ao delinqüente como
doente a busca da cura pela via das medidas de segurança. Nesse caso,
contudo, seriam alcançados tão-somente os inimputáveis (loucos e [em
parte] os semiloucos), não os delinqüentes em geral. Mas esse é um tema
cujo desenvolvimento, com outras particularidades, será retomado adiante.
Até aqui o discurso da razão penal foi examinado sob o aspecto de
sua promessa central, aquela que constituiu a segurança do indivíduo como
o objetivo, o fim do direito penal. Parece ter ficado claro que o uso da
palavra “segurança”, ora tem o sentido de um sentimento a que a lei penal
dá expressão pelo que contém de prontidão para reagir ao delito,
recuperando em todos e cada um a confiança em seus mandamentos; ora
tem o sentido de garantia do indivíduo pelo limite que estabelece à atuação
do Estado no nullum crimen sine lege; ora ainda tem o sentido de uma
punição sempre proporcional à gravidade do crime, garantindo ao
indivíduo a avaliação adequada do grau da culpa e, portanto, de sua
responsabilidade numa escala que envolve desde o juízo de nenhuma até o
de máxima reprovação (nullum crimen sine culpa).
A partir daqui interessa apenas o exame da promessa da razão penal
quanto ao último sentido. Logo, não se trata de saber acerca do caráter
eficaz ou não da promessa de segurança que a razão associou à lei penal,
seja no sentido de sua aptidão para reagir ao delito, confirmando o direito e
assim as expectativas formadas em torno dele, seja no sentido de proteção
ao indivíduo contra o arbítrio estatal. Trata-se de indagar se – e até que
ponto – as provisões normativas do direito penal têm sido suficientes para
garantir a segurança do indivíduo em suas expectativas de justiça no
domínio da culpabilidade, especificamente no manejo das causas de sua
exclusão. A resposta para esta questão implica no exame de como se tem
99
configurado o conceito de crime, desde sua primitiva apreensão até as mais
recentes formulações.
100
Capítulo V
Que é o crime?
Todos sabem que o crime é algo fora da rotina e, nesse sentido, um
evento; mas poucos sabem o que significa como conceito referido ao direito
penal. Se um pesquisador curioso, por exemplo, quiser saber a opinião do
homem comum acerca do sentido da palavra “crime” provavelmente ouvirá
como resposta que ela reflete a situação na qual “alguém mata outro” ou
mesmo aquela na qual “alguém viola uma lei”. No primeiro caso a resposta
é bem primária e se limita a descrever uma espécie de crime (o homicídio);
no segundo, o grau de abstração é maior, entretanto, o ato de violar a lei
nem sempre responde bem à idéia de crime.
Com efeito, não é difícil compreender que o resultado dessa
sondagem tem pouco de animador. Apenas confirma uma antiga suspeita.
Segundo ela, a opinio communi percebe o significado de crime nos termos
de uma leitura muito simples, vaga, superficial. Seu horizonte consiste em
saber que se trata de um fenômeno do mundo real e que sua realização é
proibida. Mas não há razão para espanto nisso. Pensando bem, o homem
101
comum quando se comunica emite opiniões, crenças, impressões, e, sob
esse aspecto, é dotado de um nível de conhecimento que não tem a
pretensão de reivindicar para si a posição de um saber que se distingue pelo
rigor de suas observações.
Se a mesma sondagem, contudo, for conduzida no âmbito daqueles
que lidam com o direito penal, vai chegar a outros resultados. Nesse
universo, o padrão de exigência é distinto e isso explica que surjam
respostas, ora menos, ora mais consistentes; mas refletindo, todas elas,
conteúdos capazes de atribuir à idéia de crime referências mais elaboradas.
Essa circunstância, porém, indica tão-somente que o termo em questão
recebe entre os juristas tratamento diferente, o que se explica pelo grau de
abstração e generalidade em que se funda. Não indica, porém, que tem sido
objeto ao longo do tempo de uma leitura unívoca. Ao contrário, o conceito
de crime é dotado hoje de uma acepção que em nada se parece com
significados habituais de sua história no pensamento penal. Assim é que
sua idéia tem variado conforme se refira a condutas que ofendem a vontade
dos deuses, do soberano e do legislador.
1. A vontade dos deuses. Fala-se de crime como ofensa à vontade
dos deuses quando se tem em vista uma época primitiva, fora da história e
sem lei, para a qual, em geral, dá-se o nome de estado de natureza, onde o
princípio da autoridade era desconhecido e a relação mando obediência era
resolvida à base da força. Como não havia nenhuma autoridade terrena a
ser temida e reverenciada, o homem primitivo buscou-a na divindade. Foi
lá, na instância do pensamento mágico, mediante o apelo à vontade divina,
que nasceu a primeira forma justificada de exercício do poder. Nesse
âmbito é que surgiram dois mecanismos, o totem e o tabu, a partir e no
limite dos quais foi montado o primeiro sistema penal conhecido entre os
humanos.
102
Não é fácil explicar com precisão o que é totem, mas seu conteúdo
pode ser compreendido a partir dos dois sentidos que a psicanálise lhe
confere. Assim e em primeiro lugar, totem é um animal (pode ser comível e
inofensivo ou perigoso e temível) e mais raramente um vegetal ou um
fenômeno natural (como a chuva ou a água) que mantém relação peculiar
com o clã. Em segundo lugar, tal relação peculiar é de autoridade, na
medida em que o totem é o antepassado comum do clã bem como o seu
espírito guardião e auxiliar, portanto, capaz de oferecer proteção, mas de
retirá-la também, se sua vontade não for acatada.253
A vontade do totem manifesta-se pelo tabu, palavra que num dos
sentidos assinalados por FREUD significa “proibido”. À violação de um
tabu pela realização da conduta proibida correspondia a aplicação da
punição. Dessa forma, o tabu é o símile mais remoto dos códigos penais
modernos e revelava por um procedimento não escrito o que o homem
devia evitar para não ficar sujeito à sobrenatural coerção totêmica.254
2. A vontade do soberano. A passagem de uma concepção de crime,
que deixa de ofender os deuses, para outra na qual o ofendido doravante é o
soberano, parece coincidir com a transição que, submergindo o mundo
“mágico-animista”255 da sociedade tribal, permitiu o nascimento das
sociedades imperiais representadas pelas civilizações que floresceram na
MESOPOTÂMIA, CHINA, ÍNDIA, EGITO, etc. Nesse novo cenário, onde é
interrompida (em grande parte) a banalização das divindades pela
dessacralização da natureza, os deuses continuam a produzir influência,
mas sofrem modificação na sua identidade e no meio de que se utilizam
para o exercício do poder.
253
Cf. Sigmund FREUD, Totem e tabu e outros trabalhos, p. 21.
Ibid., p. 38.
255
Cf. Jurgen HABERMAS (Para a reconstrução do materialismo histórico, p. 19 s) nas considerações que
desenvolve em torno de como se deu a ruptura com o mundo mítico das sociedades tribais mediante a
passagem para “sociedades organizadas de modo estatal” e que serviram de modelo adaptado para os
desenvolvimentos acima.
254
103
À totemização dos fenômenos da natureza, permitindo que os mitos
divinos fossem associados a animais, vegetais, pedras, trovões, etc.,
sucedeu o estágio no qual a divindade é visualizada segundo a forma
humana. O movimento que desloca a identidade dos deuses (fixada agora
em seres antropomórficos e não mais em seres inanimados), contudo,
provavelmente se dá segundo etapas muito fluídas e sobrepostas.256 Nesse
sentido, a ruptura não terá ocorrido num plano linear e contínuo e sim
segundo linhas sinuosas e descontínuas. Mas o que importa aqui é tratar
menos da nova silhueta divina e mais de como no período que se inaugura
dá-se a relação entre os deuses e o poder, bem como as conseqüências aí
geradas, tendo em vista o binômio crime–punição.
Nesse período, terá ocorrido uma autonomia do mundo secular em
relação ao mágico, sem que isso signifique, porém, uma diferenciação total
entre os dois domínios. É tanto que pelo menos num ponto foi celebrada
uma aliança que ligava deuses e soberano. Não importa se nascida na
necessidade que o soberano tinha de justificar a origem do seu poder.
Importa que por meio dela estivesse selado um pacto que os associavam ao
padrão de legalidade então conhecido. De acordo com isso, o “código legal
mais antigo que se conhece é o de HAMURABI, rei da BABILÔNIA, cerca de
2100 a.C. O rei afirmou que esse código lhe fora entregue por MARDUK”.257
Na tradição bíblica MOISÉS recebeu de JEOVÁ idêntica delegação quando
desceu do Sinai, ostentando a lei escrita por Deus nas Tábuas de Pedra.
Ficou sacramentada assim a coalizão que reservou a MOISÉS o papel de
representante de Deus junto ao povo judeu. Entre os gregos, reis e heróis
tinham com os deuses mais do que uma representação. Para além dela, a
conjunção que os ligava era mais íntima, pois passava pelos laços da
descendência direta.
256
257
Num sentido parecido ver Sigmund FREUD, Moisés e o totemismo, p. 157.
Bertrand RUSSELL, História da filosofia ocidental, livro primeiro, p. 7 s.
104
É muito limitado, então, o sentido do papel que se atribui ao
soberano de ofendido pela prática da conduta proibida. Com efeito, o
soberano era apenas a ponta visível de um jogo de poder repartido, no qual
a outra ponta era estrategicamente mantida invisível ao olho humano. Essa
visão dualista do exercício do poder retira de cena a divindade como
ofendida pela prática do dano e põe no seu lugar o soberano, mas não se
pode negar que no limite ambos se colocam na posição de alvos finais da
ofensa. Durante longo tempo prevaleceu essa idéia, atravessando
civilizações clássicas – por exemplo, a romana258 −, a Idade Média259, os
séculos XVI e XVII, só perdendo seu vigor no século XVIII pela criação de
novas bases teóricas justificadoras do exercício do poder.
3. A vontade do legislador. Nesse ponto opera-se uma inversão
radical. A nova visão do mundo que se impõe, com base na idéia do
contrato social, percebe o fenômeno do poder como algo que se justifica
não mais a partir de inspirações mágicas, divinas, religiosas, e sim a partir
do princípio da soberania popular. Nasce, assim, uma concepção de poder
em que a legitimidade para seu exercício é adquirida numa vontade comum
a todos e, segundo a qual, cada um dos indivíduos abdica de uma quota de
sua liberdade, de seu poder pessoal, para depositá-la nas mãos do soberano,
entendido como sendo o próprio Estado. Não se trata mais do Estado do
período imediatamente precedente, seja ele de natureza, como pretendem
os contratualistas, seja absoluto, como foi interpretado pela história. Tratase agora do Estado moderno que, explicando sua origem na premissa do
contrato, procura efetivá-lo, ora pela garantia das liberdades do indivíduo
(também chamado de cidadão) com a aplicação da lei geral e abstrata por
parte de juízes independentes, ora pela separação e distribuição do poder.
258
259
Cf. Michel FOUCAULT, A verdade e as formas jurídicas, p. 51 s.
Cf. Bertrand RUSSELL, op. cit., p. 16.
105
Pela visão de um poder que se exerce de forma repartida, cria-se o
mecanismo segundo o qual o Estado passa a ser estruturado em cima do
Legislativo, Judiciário e Executivo, abrindo-se, assim, os caminhos para o
exercício diferenciado da tríplice função que lhe concerne, a de criar,
aplicar e executar leis. O legislador aparece como peça central desse
esquema e a ele cabe a tarefa de produzir originariamente a legalidade que
corresponde às exigências do Estado que se inaugura.
No âmbito do direito penal tais exigências cristalizam-se em pelo
menos três fundamentos. O primeiro refere-se à separação entre direito
natural e direito positivo.260 Com isso, nasce a recusa em aplicar a norma
cuja fonte é a vontade de Deus, pois, no Estado social, produto de uma
convenção, não mais se requer “a missão especial do ser supremo”.261 Por
oposição, instaura-se a supremacia das leis positivas, ditadas pelo
legislador e substitutivas daquelas reveladas pela majestade divina. O
Estado assume o monopólio da produção jurídica e rompe o pacto que
submeteu o homem, durante longo tempo, à ambivalência de práticas
sacro-jurídicas.
O segundo fundamento é centrado na mudança do papel atribuído ao
juiz. Sua posição é deslocada da esfera de influência do soberano e ganha
autonomia pelo exercício independente da função judicante no interior do
poder judiciário. Além disso, o arbítrio que distinguia seu trabalho passa a
ser contido pela proibição de alcançar o justo segundo regras do costume,
eqüidade e razão natural. Assim, resta-lhe a tarefa de encaixar
mecanicamente a lei ao caso concreto. Foi esta concepção que prevaleceu a
partir de MONTESQUIEU, a quem é atribuída a frase segundo a qual o juiz é
260
A concepção de Thomas HOBBES (Do cidadão, p. 85), por exemplo, é a de que a mesma lei que é
natural e moral também é necessariamente chamada divina.
261
BECCARIA, op. cit., p. 9.
106
apenas a boca que reproduz a vontade da lei,262 até BECCARIA, cujo
entendimento era o de que
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação
conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for obrigado a elaborar
263
um raciocínio a mais, ou se o fizer por sua conta, tudo se torna incerto e obscuro.
O terceiro fundamento reside no princípio da legalidade. Antes do
período das luzes o que valia era a indeterminação penal do que constituía
o crime e a pena correspondente. Por esta via, remetia-se o indivíduo a uma
desconcertante posição de insegurança diante da autoridade. Suas
expectativas não podiam ser estruturadas diante de um modo de produção
da justiça que consagrava o capricho, a fantasia e a extravagância de
qualquer que seja a personagem que movimentava a engrenagem judicial: o
juiz, o rei ou o sacerdote. O limite da atuação de cada um deles tinha por
referência apenas sentimentos pessoais de justiçamento que dispensavam o
dever de obediência a regras conhecidas.
O nullum crimem nulla poena sine lege interrompe essa tradição e
consagra um padrão diferente de resposta contra quem, mediante conduta
reprovável, se contrapõe ao pacto. Crime e pena doravante passam a ser
gerados no espaço de reserva legal e escapam assim das determinações
cogitadas no arbítrio judicial, superpoder do soberano e superstição do
sacerdote. Nessa travessia, parece certo que o indivíduo terá alcançado a
mais importante conquista formal na história das práticas punitivas. É que
sua recorrente luta em busca de segurança e certezas jurídicas tinha
finalmente encontrado um padrão adequado de referência.
4. O conceito formal. A conjuntura que gerou a legalidade penal e
constituiu o legislador como fonte exclusiva de sua criação, inaugura um
262
A frase parece não constar da tradução em língua portuguesa realizada por Fernando Henrique
CARDOSO do livro O espírito das leis; em todo caso seu conteúdo ou sentido está claramente delineado no
livro VI, cap. III, p.83.
263
Op. cit., p. 17.
107
novo marco para a reflexão em torno do conceito do crime. É o da lei. Com
efeito, no livro Dos delitos e das penas (1764), BECCARIA abre o capítulo
que trata da divisão dos delitos (§ XXV), considerando-os “atos que
contrariam ao que a lei determina ou proíbe (...)”, pelo que todo ato não
ajustável nesse esquema “não pode ser tido − continua BECCARIA − como
delito, nem castigado como tal”.264 Assim formulada, essa definição
contempla pelo menos uma inconsistência. Omite a natureza da lei que tem
de ser contrariada para que haja crime. Por conta disso, sugere que
qualquer lei, sendo desobedecida, permite o conhecimento da conduta
criminosa. Logo se percebe, entretanto, que, para este fim, vale somente a
rejeição à lei penal. Ela passa a funcionar como ponto de partida para a
idéia de que será crime todo ato que contradiga seus mandamentos ou
proibições.
A hegemonia dessa visão corresponde ao período que se estende da
segunda metade do século XVIII até a primeira metade do século XIX.
Além disso, coincide com os procedimentos de positivação do direito, cuja
principal característica se revela no fenômeno da codificação.265 Assim, seu
triunfo operou-se não apenas no espaço da doutrina, mas nos códigos
penais também.
Com efeito, alguns códigos adotaram a prática de definir que coisa é
o crime. Fizeram-no de modo simples, mas não inteiramente vago. É o caso
do código criminal do Império do Brasil (1830). Ali, o art. 2° dizia:
julgar-se-á crime ou delito: § 1° toda acção ou omissão voluntária contrária às leis penaes.
Semelhante é a fórmula usada no código penal espanhol de 1848,
onde consta:
“És delito o falta la accion ou omission voluntária penada por la lei.”
264
P. 65.
Acerca da experiência da codificação durante o período ver o trabalho de Norberto BOBBIO, O
posivismo jurídico, p. 63.
265
108
Nessas disposições são recortados três indicativos para que algo
configure o delito. Em primeiro lugar, as ações ou omissões devem estar
punidas pela lei; em segundo lugar, tais ações e omissões devem ser
voluntárias; finalmente, a lei contrariada é a penal.
A redução da idéia de crime ao ato ou omissão voluntária e hostil à
lei penal contou com a bênção de muitos, mas foi censurada também. A
crítica sustentou sua posição na denúncia de alguns defeitos. Ora a
definição é carente de objetivo prático, pois não favorece “um caminho
lógico”266 para afirmar ou descartar a criminalidade das condutas concretas;
ora naufraga num círculo vicioso, afinal, “o que a lei deve proibir?”,267
mantendo desconhecidos seus termos; ora é tautológica, eis que “dizer do
delito que é um ato punido pela lei (...) e ainda acrescentar que é a negação
do direito, supõe fazer um juízo a posteriori, o que é exato, conquanto nada
adicione ao que já se sabe”.268
Para além das limitações mencionadas, a contribuição de CARRARA
na definição de crime é ponto de referência já cristalizado na história das
idéias penais. Ele procurou aclarar o significado do termo pela designação
daquilo a que se refere. Para isto aproveitou da tradição precedente a idéia
de lei. Fez alguns acréscimos (um dos quais consiste na descrição da face
interna do crime), todos eles, porém, constituem elementos sem cujo
concurso não se alcança saber o que é crime. Segundo ele, este é “a
infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos
cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo,
moralmente imputável e politicamente danoso”.269 Com efeito, a lei de que
fala CARRARA, cuja infração constitui o crime, é laica, estatal, positiva e
fundada, portanto, na autoridade humana. Embora pareça, nessa passagem
266
Eugenio Raúl ZAFFARONI, Tratado de Derecho Penal, vol. III, p. 15.
Federico PUIG PENA, Derecho penal: parte geral. Tomo I, 1969, p. 181.
268
Luis JIMÉNEZ DE ASÚA, Principios de Derecho Penal: la ley y el delito, p. 201.
269
Programa de Derecho Penal: parte general, vol.I, p .43.
267
109
não se dá o abandono do jusnaturalismo (a escolha metodológica que
adotou segundo o que foi observado acima) cuja causa estaria na despedida
da divindade como criadora de um direito penal absoluto, imutável e
eterno. Longe disso, pois, como ele mesmo explica, o pressuposto da lei
estatal é ter “sido ditada de conformidade com a suprema lei natural
jurídica”,270 entendida como aquela que preexiste “a todas as leis humanas
e que obriga ainda os legisladores”.271 O caráter obrigatório dessa lei
decorre de ter sido promulgada, isto é, tornada pública e conhecida de
todos e seu fim consiste em garantir a segurança pública e privada dos
cidadãos. Mas até aqui o crime aparece apenas na sua manifestação
extrínseca [= externa], tomada a lei como referência. Somente quando a
referência é deslocada para o sujeito (ativo) da infração aparece sua face
intrínseca [= interna], revelando as propriedades que o constituem. Assim,
a infração resulta de um ato externo do homem (pensamento, desejo,
projeto e determinação não pertencem ao domínio da lei penal), positivo
(comissivo)
ou
negativo
(omissivo),
moralmente
imputável
(a
responsabilidade decorre da natureza moral do ser humano, que, dotado de
livre-arbítrio, é capaz de culpa) e socialmente danoso (pois perturba o
sentimento de segurança dos cidadãos).272
5. Conceito substancial. Na segunda metade do século XIX a lei foi
retirada do lugar que ocupava como referência para definir o crime, sendo
substituída pelos fatos. (Isso correspondeu a uma virada metodológica no
âmbito da filosofia, de que deu conta o positivismo, com nítidas
repercussões na ciência como um todo, portanto, no direito também, e, de
modo particular, no direito penal [com a escola positiva]. Não se tratava
mais de recorrer a um princípio ou fundamento [seja Deus, seja a razão] a
270
Ibid., p. 43 s.
Ibid., p. 5.
272
Cf. Programa de Derecho Penal: parte general, vol.I, p. 45 ss.
271
110
partir do qual o conhecimento pudesse ser deduzido. Tratava-se agora de
construir o conhecimento a partir da observação dos fatos e indutivamente
relacioná-los, a fim de descobrir não suas causas, seus segredos, sua
natureza íntima, mas as leis que os explicam e ordenam.) Dessa forma, a
idéia de crime como alguma coisa que violava a lei, ou, mais tarde, como
ente jurídico, exibindo sua anatomia ou partes constitutivas, deixa de
responder às exigências do novo modelo de ciência que a área penal passou
a incorporar. Importa agora investigá-lo como fenômeno real, natural,
humano e revelar sua gênese com base em explicações antropológicas,
sociológicas e psicológicas. Nessa perspectiva, o homem é colocado como
centro de referência na explicação do crime para o qual, aliás, se move
segundo determinações anatômicas (físicas), sociais e psíquicas, sob cujo
jugo fica reduzido o espaço para escolhas, alterando, dessa forma, o sentido
de sua responsabilidade (antes fundada no livre-arbítrio; agora na
temibilidade [GAROFALO] ou periculosidade [FERRI]) e a natureza da
resposta punitiva (antes com penas determinadas quanto à duração; agora
ligadas tão-somente à lógica da exclusão social do delinqüente). Dito de
outro modo, com o abandono do livre-arbítrio como idéia capaz de
justificar a culpa moral, a responsabilidade passa a ser subordinada ao
modo de agir do delinqüente, naquilo que é o sintoma de um indivíduo
perigoso, qualquer que seja sua condição psíquica ao praticar o crime.
Perde sentido, com isso, a tradicional distinção entre responsáveis e
irresponsáveis, sempre dependente da avaliação que se atribuía ao infrator
de ser ou não capaz de culpa, portanto, de escolhas. Afinal, o delinqüente é
um produto da natureza e o crime, nele, tem o significado de um fato que
nem controla, nem pratica livremente. Por isso mesmo é considerado como
um anormal; seja, como quer LOMBROSO, por conta dos caracteres
anatômicos, fisiológico e psíquico que carrega e o distingue, predispondo-o
para tanto; seja, ainda, como quer FERRI, “... por condições congênitas ou
111
adquiridas, permanentes ou transitórias, por anormalidade morfológica, ou
biopsíquica, ou por doença...”273 ou mesmo por determinações sociais; seja,
finalmente, como quer GAROFALO, por conta de sua degenerada fisionomia
psíquica ou moral, fazendo-o incapaz para o exercício dos sentimentos
altruístas de piedade e probidade que impedem a atividade criminosa. É o
que basta para justificar a defesa social segundo o rigor de seus padrões
punitivos. (Dá-se aqui, em grande parte, o retorno de uma concepção
objetiva de crime em que o resultado, per si, era suficiente para justificar a
punição, como foi assinalado atrás. A diferença, naturalmente, está em que
não são mais forças cósmicas, descontroladas, estranhas e constitutivas de
uma causalidade mítica que tornam certos homens predestinados a cometêlo. As forças agora são conhecidas e, embora ligadas à natureza, são
cientificamente controláveis, mas não desconstituem o delito como destino,
o que faz dele uma obra da necessidade e não da liberdade.)
Com efeito, diante de um quadro de referências (teóricas) assim
delineadas, ali onde os fatos inspiram o novo modelo de estudo da
criminalidade e, ao mesmo tempo, se procede à desconstrução de
categorias centrais do modelo antigo − por exemplo, livre-arbítrio, culpa
moral, punição −, o conceito de crime até se constitui em objeto de algumas
formulações, mas, ao lado ou para além dele, o que se destaca mesmo é a
descrição dos caracteres que constituem a tipologia dos delinqüentes.
5.1. O tipo antropológico. Em nenhuma passagem de seu livro, O
Homem criminoso, LOMBROSO operou com o conceito de delito. Passou ao
largo disso como se desdenhasse de uma tradição intelectual, de que os
penalistas clássicos foram os representantes, ocupados em estudar,
conforme diz no prefácio, “... o crime sem estudar o culpado...”.274 Foi
direto ao ponto que lhe interessava, pois, para ele se tratava apenas de saber
273
274
Princípios de Direito Criminal, p. 201.
P. XXVI.
112
da existência ou não de um tipo humano dotado de propriedades ou
características em função das quais o crime pudesse ser explicado como
destino, fatalidade, enfim, uma determinação a que não se pode resistir.
Suas pesquisas permitiram a descoberta, justificada pela estatística, de que
há um tipo particular de criminoso, cujas anomalias portadas e distribuídas
em conjunto na sua anatomia, fisiologia e psicologia fazem dele um
delinqüente nato. Para descrevê-lo, sob o aspecto anatômico, LOMBROSO
maneja com palavras, por exemplo, a. peso, b. diâmetro, c. altura, d.
largura, e. ângulo, f. circunferência, g. superfície, h. curva (onde a e b
referem-se a mandíbulas, c, d e e ao rosto, f, g e h ao crânio), cuja função é
a de apontar para particularidades incomuns de sua compleição ou o que
chama de “atipia nas medidas da face”,275 obtendo-se assim, no geral, um
retrato que o mostra feio e deformado, sem que isso autorize, contudo,
qualquer conclusão que dê conta da impossibilidade de um delinqüente
nato ser contemplado pela beleza, não importa se homem ou mulher.276 Já
sob o aspecto fisiológico, LOMBROSO investigou anomalias do a. cérebro,
b. coração e c. fígado do delinqüente nato, tendo constatado em a.
alterações representadas por inflamações, tumores, abscessos, pontos
hemorrágicos, amolecimentos, etc.;277 em b. tal quantidade de afecções
“que demonstra nos delinqüentes curiosa superioridade em insuficiências
valvulares e atrofias cardíacas”,278 se comparadas às pessoas normais; do
mesmo modo em c. parece que afecções hepáticas como cirroses, hepatite,
infiltrações, etc. “... predominam com freqüência nos delinqüentes”.279
Finalmente, sob o aspecto psicológico, LOMBROSO examina o delinqüente
na dupla perspectiva da a. sensibilidade (física e afetiva) e b. inteligência.
Quanto a a. é reduzida a sensibilidade (física) do criminoso, o que o torna
275
O homem criminoso, p. 123.
Ibid., p. 166 e 177.
277
Ibid., p. 147 e 148.
278
Ibid., p. 150.
279
Ibid., p. 152.
276
113
capaz de suportar a dor decorrente, por exemplo, de ferimentos diante dos
quais “... qualquer outra pessoa sucumbiria”. Do mesmo modo é
enfraquecida sua sensibilidade afetiva, o que se constata não somente pela
“... indiferença completa diante de sua vítima e na presença dos
instrumentos ensangüentados que serviram para perpetrar o crime”,280
como igualmente pela apatia e tranqüilidade quando arrastado ao cadafalso
para o qual foi condenado (aliás LOMBROSO encontra nesse ponto o
fundamento para suas objeções à pena de morte). Quanto a b. LOMBROSO
faz uma aposta e um enunciado. A aposta consta da passagem em que
reconhece a dificuldade em “... estabelecer uma média da potência
intelectual dos delinqüentes com a precisão que preside as observações
craniológicas”, pois, se assim pudesse, crê que “encontraria uma média
inferior à normal, com exageros de superioridade e inferioridade”.281 Ou
seja, considera que na média a inteligência do delinqüente é inferior à do
homem normal, o que não exclui casos de delinqüentes com inteligência
superior ou inferior. O enunciado liga-se à passagem onde diz: “... em
todos, mesmo nos criminosos geniais, a inteligência apresenta um lado
defeituoso”.282 LOMBROSO tem a compreensão de que a inteligência
defeituosa
é
aquela
representada
pela
preguiça,
inconstância
e
imprevidência que distinguem o espírito do delinqüente.
Em suma, para LOMBROSO, o delinqüente nato como parto da
natureza ou o efeito de um arranjo molecular qualquer é um fracasso da
espécie humana e nada pode ser feito para corrigi-lo. Sua ação é movida
por um legado orgânico sobre cuja força não tem controle e não pode
resistir. Além disso, diante do crime que comete mostra, no geral, completa
indiferença. Isso permite que se reconheçam nele índices extremos de
insensibilidade afetiva e moral. O que fazer para reprimi-lo? A solução que
280
Ibid., p. 244.
O homem criminoso, p. 316.
282
Ibid., p. 318.
281
114
LOMBROSO oferece para o problema é direta: “... detenção perpétua em uma
prisão que teria outro nome”.283 Para tanto é dispensável a pesquisa da
culpa e seus graus a fim de fixar a responsabilidade, pois, afinal, no
delinqüente nato a culpa é nenhuma como nenhuma também é a
responsabilidade.
5.2. O tipo sociológico. Numa linha parecida com a de LOMBROSO,
mas não necessariamente idêntica, FERRI investe muito pouco na busca de
uma resposta para saber o que é o crime, definindo-o. Sob o aspecto
jurídico, assinala que é sem valor a tarefa de oferecer uma “definição legal
dos atos humanos”284 considerados criminosos e de modo lacônico concede
apenas em reconhecê-los como algo que constitui “violação da lei
penal”;285 sob o aspecto natural, também não sente necessidade de uma tal
definição, mas, tendo em vista que considerou “positiva e completa” a
fórmula de BERENINI para definir o delito natural,286 acabou de algum
modo assumindo-a como sua, pois nela estão contemplados alguns
elementos ou contribuições de que é o autor. Disso resultou a definição
FERRI-BERENINI para o delito natural: “São ações puníveis (crimes) as
determinadas por móbeis individuais (egoístas) e anti-sociais, que
perturbam as condições de vida e vão de encontro à moralidade média de
um dado povo num dado momento”.287
Por outro lado, o que aproxima FERRI de LOMBROSO é que aquele
segue a tradição inaugurada por este de submeter o tema do crime à
observação dos caracteres do sujeito de que é o resultado.288 Para FERRI, o
283
P. XIII.
Enrico FERRI, La Sociologie Criminelle, p. 84.
285
Idem, Princípios de Direito Criminal, p. 355.
286
Cf. idem, La Sociologie Criminelle, p. 90.
287
Idem, Princípios de Direito Criminal, p. 353.
288
No seu livro Princípios de direito criminal (p. 93s), FERRI faz a seguinte confissão: “Nos primeiros
anos da minha vida científica, obriguei-me a fazer antropologia criminal, examinando, um por um, mais
de 700 presos e confrontando-os com cerca de 300 loucos, como anormais diferentes dos delinqüentes e
com mais de 700 soldados, como tipos normais da respectiva província e fiz psicologia e psicopatologia
criminal, notando os dados psicológicos nos 700 presos e resumindo algumas centenas de pareceres sobre
284
115
objeto da lei penal é duplo. Não se trata apenas de percebê-lo na
perspectiva da ação proibida, mas de quem a pratica. O crime é a ação
proibida; o delinqüente é quem a pratica. Os dois, crime e delinqüente, são
os “... objetos inseparáveis da lei penal”.289 Embora inseparáveis − pois,
afinal, é impróprio destacar o crime do sujeito que lhe dá causa −, no
pensamento de FERRI, o foco da ciência criminal sofre um deslocamento:
ao invés do estudo concentrado das relações jurídicas implicadas a partir da
infração penal e da atenção secundária atribuída a seu autor (sempre
tratado pelos clássicos, segundo FERRI, “... na penumbra de suas
sistematizações jurídicas como uma figura simbólica”290 ou como um tipo
humano normal), a concentração agora é no protagonista número um da
justiça penal: o delinqüente. Este é menos o inimigo, o fora da lei, o
extraviado (embora “tendo ‘normalidade de consciência e de vontade’ ou
‘capacidade de entender e de querer’”
291
) e mais o degenerado, o doente, o
anormal (em quem não se nega a vontade, nem mesmo a consciência, mas
uma e outra sempre se manifestam sob o jugo de um quadro psíquico ou
social marcado pela anormalidade, assim entendido porque nele
predominam ora o impulso fisiopsíquico, ora as condições do ambiente,
consideradas respectivamente causas endógena e exógena do crime). Seja
anormal ou alguém que age sob condições anormais, o delinqüente é
induzido ao crime não porque é livre, mas porque não pode “agir de outra
forma”,292 vale dizer, é incapaz de “resistir aos impulsos, pelo menos no
momento do fato”.293 É nesse ponto que nasce o conceito de periculosidade,
sempre associado a um homem cuja conduta criminal é determinada por
forças que não pode controlar.
delinqüentes loucos: e fiz estatística criminal, resumindo e analisando os 52 volumes de estatísticas
criminais francesas”.
289
Ibid., p. 143.
290
Enrico FERRI, Princípios de Direito Criminal, p. 141.
291
Ibid., p. 250.
292
Ibid., p. 250.
293
Ibid., p. 227.
116
Como conseqüência dessas observações, FERRI estabelece as bases
de uma nova concepção de responsabilidade aplicada ao direito penal, que,
deixa de ser moral para ser social ou legal. Para tanto, a culpa moral e, com
ela, a imputabilidade é desconstruída (“... o Estado − e por isso o juiz,
nascido de mulher − não tem possibilidade de medir a culpa moral (...) de
uma criatura humana”294). Seu lugar é ocupado pela idéia que FERRI resume
assim: “O homem é sempre responsável de todo o seu ato, somente porque
e até que vive em sociedade”. Isso significa que “qualquer que seja a
condição psíquica da (...) pessoa ao praticar o crime”295 será sempre
responsável “... desde que o ato seja seu, isto é, expressão da sua
personalidade”.296 Sendo suficiente viver em sociedade e, nela, praticar o
crime como coisa sua para configurar um quadro de responsabilidade
penal, resta saber qual a função jurídica da periculosidade. Esta função,
esclarece FERRI, “não é de justificar a responsabilidade penal do
delinqüente”, mas em “... fazer adaptar – na lei, na sentença, na execução –
a sanção repressiva à personalidade do delinqüente em razão do crime
cometido e em vista de sua readaptabilidade à vida livre”.297
5.3. O tipo psicológico. O conceito de delito recuperou com
GAROFALO o lugar de destaque que perdera com LOMBROSO e FERRI.
GAROFALO considerava um erro dos naturalistas, em geral, falar do
delinqüente sem antes explicar o que entendiam por delito: “Só quando o
naturalista – diz ele – souber dizer-nos o que entende por delicto é que nós
poderemos saber quem são os delinqüentes”.298 Na busca de seu conceito
de delito, formula o problema central: “Existirá o delicto natural ou, o que
vale o mesmo, haverá um certo número de actos que a consciência popular
294
Ibid., p. 231.
Ibid., p. 221.
296
Ibid., p. 230.
297
Ibid., p. 287.
298
GAROFALO, Criminologia, p. 26.
295
117
em determinadas condições considere sempre criminosos?”.299 Para
solucioná-lo, esclarece que o ponto não é saber se todos os atos que a
sociedade de seu tempo considera criminosos “tiveram ou deixaram de ter
em todos os tempos e em todos os logares a mesma significação”, mas, “...
saber se, entre os delictos previstos pelas nossa leis actuaes, há alguns que
em todos os tempos e logares fossem considerados puníveis”.300 A rigor,
não é possível, segundo GAROFALO, chegar à noção de delito natural,
naquilo que tem de vinculado com a consciência pública e não com a
consciência jurídica (cujos juízos são sempre dependentes das leis
positivas), pela pesquisa de atos criminosos puníveis, assim reconhecidos
universalmente; mas é possível fazê-lo, se, ao invés dos atos, em seu lugar
for feita a análise dos sentimentos. É que, no conceito de delito, “apparece
sempre a lesão de um d’aqueles sentimentos mais profundamente radicados
no espírito humano”301 e que podem ser considerados “... definitivamente
adquiridos pela parte civilizada da humanidade...”.302 São os sentimentos,
ora de piedade, ora de probidade, constitutivos da medida média do senso
moral e cuja nota característica é o altruísmo. A aversão às ações cruéis e a
recusa em provocar a dor nos outros, isto é, nos semelhantes, revelam o
sentimento de piedade; o respeito pela propriedade alheia revela o
sentimento de probidade. De tudo isso resulta que o delito natural
... é a offensa feita á parte do senso moral formado pelos sentimentos altruistas de piedade e de
probidade ― não, bem entendido, á parte superior e mais delicada d’este sentimento, mas á mais
commum, á que se considera patrimonio moral indispensavel de todos os individuos em
303
sociedade. Essa offensa é precisamente o que nós chamaremos delicto natural.
Como conseqüência dessa concepção de delito, o delinqüente de
GAROFALO é diferente daquele projetado por LOMBROSO e FERRI. Ele agora
299
Ibid.
Ibid., p. 27.
301
GAROFALO, Criminologia p. 28.
302
Ibid., p. 32.
303
Ibid., p. 59.
300
118
se revela ou age (sempre), não mais sob o predomínio de específicas
características anatômicas ou determinações sociais e do ambiente físico,
mas como expressão de uma anomalia psicológica (no geral herdada) que
não se confunde, a rigor, seja com estados mórbidos, seja com a loucura
moral, nada tendo, portanto, de doentia ou patológica. Mas a diferença de
que se trata consiste apenas no tratamento dominante que GAROFALO
confere à questão psicológica. Isso, contudo, não significa exclusão das
contribuições antropológica e sociológica.
Com efeito, GAROFALO tem o ponto de vista, justificado ora na
observação pessoal, ora nos dados da estatística, que o delinqüente em
geral ostenta sinais físicos que o tornam portador de uma fisionomia
especial e a cujo respeito a ciência não pode ficar indiferente:
Se é verdade que certos caracteres se observam nos malfeitores mais frequentemente que
nos outros indivíduos, tal facto deve necessariamente ter uma significação, porque seria
304
antiscientífico attribuir a mera accidentalidade àquillo que constantemente se repete.
Apesar disso, seu delinqüente típico não se distingue por uma
anatomia deformada, fora de lugar, teratológica. Nele, o que há de
teratológico, fora de lugar, deformado é o caráter, o senso moral, incapaz
de se orientar pelos sentimentos de piedade e probidade.
Por outro lado, GAROFALO também não exclui (pelo menos
totalmente) os fatores sociais e do ambiente físico na origem do crime. Mas
não são eles que o determina; no máximo giram em torno do crime como
contexto, circunstância, ocasião: “[o crime] está sempre no indivíduo”305 e
não fora dele. Nesse sentido, “o verdadeiro factor do delito deve procurarse no modo de ser especial do indivíduo, que a natureza creou
delinqüente”.306
304
GAROFALO, Criminologia, p. 96.
Ibid. 123.
306
Ibid. 123.
305
119
A idéia do delinqüente como obra da natureza põe em xeque,
segundo GAROFALO, a ilusão socialista, reformista e correcionalista. Assim,
nem o crime tem como causa a desigualdade econômica, nem as reformas
sociais do legislador são suficientes para extingui-lo, nem a educação é
capaz de corrigir seu autor. Como conseqüência disso, não se trata de
transformar a economia, o ambiente social ou, ainda, os delinqüentes e,
sim, de “eliminar esses últimos”.307 A eliminação que GAROFALO postula
aponta em duas direções: uma absoluta; outra, relativa. A absoluta consiste
na repressão pela morte do delinqüente e a relativa pela deportação. Mas
nem todo crime implica na necessidade de eliminação do delinqüente.
Nesse caso, basta a coerção reparadora308 representada por uma
indenização material e moral dos danos causados à vítima e à sociedade.
De todo modo, qualquer que seja o mecanismo da resposta penal é
dispensável o uso de inspeções para medir o grau de culpa do malfeitor.
Acerca dele basta que se tome em conta se é temível ou não.
Mas a apreensão do delito como fenômeno ligado à ordem dos fatos
e, nesse sentido, sujeito à observação foi de extensão limitada no tempo.
LOMBROSO, FERRI e GAROFALO perdem a hegemonia no pensamento penal
e seus titulares agora são outros. A ironia naturalista (já referida),309
segundo a qual os clássicos estudavam o crime sem estudar o culpado, é
substituída e parafraseada pela ironia neoclássica, segundo a qual o
fracasso é o que alcança quem chegar “... a um direito penal... sem
direito!”.310 Isso abre caminho para a construção de um conceito de delito
que toma em consideração não apenas a lei, mas o direito penal como um
todo.
307
Ibid., p. 224.
GAROFALO, Criminologia, p. 276.
309
Cf. supra, p. 105.
310
Arturo ROCCO, El problema y el método de la ciencia del Derecho Penal, p. 6
308
120
6. Conceito analítico. Com efeito, o discurso penal fundado na idéia
de um delinqüente sempre subordinado à necessidade ou a um destino
antropológico, sociológico ou psicológico foi interrompido e, na seqüência
(sobretudo no início da primeira metade do século XX), recupera a idéia de
liberdade para nela ou a partir dela se justificar. Nesse instante o crime
deixa de ser o efeito de uma vontade determinada ou submetida pela força
da anatomia, do ambiente e dos instintos para ser (novamente) obra da
consciência e de uma vontade livre. A responsabilidade subjetiva recupera
seu lugar e, assim, o crime reaparece como expressão da conduta de um
indivíduo (sujeito) senhor de suas iniciativas. Por outro lado, o declínio da
responsabilidade objetiva e a ascensão renovada da responsabilidade
subjetiva correspondem ao enfraquecimento e revitalização de duas idéias.
Desse modo, torna-se fraca a idéia de um infrator que atua sob a força de
um destino inexorável, cego e diante do qual não resta à lei penal senão o
conformismo, a resignação e o ceticismo quanto às possibilidades de
reconhecê-lo como dono de si, senhor de suas iniciativas ou como
suscetível a qualquer transformação se lhe for aplicada uma pena;
paralelamente, torna-se forte a idéia de que o infrator é um homem livre,
movido por uma energia interna a que a lei penal ora dá o nome de
motivos, ora de intenção, ora de consciência, ora de vontade e, por isso
mesmo, capaz de orientar sua conduta conforme a norma ou, se não o fizer,
de ser submetido a uma pedagogia transformadora (prevenção especial)
mediante a aplicação da pena. Nesse sentido, a subjetivação da conduta
criminal torna-se a característica central de qualquer que seja a teoria do
delito sob cujo paradigma o pensamento penal passou a desenvolver suas
reflexões, não importa se causal, finalista ou social da ação. A implicação
disso na noção de delito passou por uma reelaboração (= redefinição) que
toma como ponto de partida não mais o delinqüente, mas a ação que pratica
considerada nos seus nos aspectos externo e interno.
121
É assim que a ação praticada pelo infrator (comissiva ou omissiva),
agora separada de uma causalidade objetiva que não controla e passando a
ser associada a uma causalidade subjetiva que é capaz de controlar, para ser
reconhecida pelo direito penal como delito, depende de ser mediada pelos
elementos da tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Isso implica na
concepção de delito como ação típica, ilícita e culpável. Na base desse tripé
conceitual, cuja nota prévia é constituída pela ação, o indivíduo volta a
ocupar seu posto diante do direito penal, tal como se projetara no início dos
tempos modernos. Dessa forma, o homem é reinvestido no papel de sujeito
do direito penal, pois, como ser moral e capaz de culpa, torna-se
responsável, se e quando cometer o injusto. É assim que a configuração do
delito exibe agora uma plástica interna que em nada se confunde com
perversões e anomalias morais, sejam aquelas explicadas segundo
particulares conformações anatômicas e psíquicas ou as que têm como
causa, genéricas determinações externas. Além disso, tudo na nova
concepção de delito difere das concepções precedentes. É que, ao dispensar
a lei (ao contrário do que fez o conceito formal) e o delinqüente (ao
contrário do conceito substancial) como referências, coloca em seu lugar
estágios escalonados de conduta que, juntos, conferem ao delito unidade,
significação jurídica e sistema. A unidade é garantida pela circunstância de
que o delito é uma totalidade que exclui ser reconhecido pelo exame
isolado ou separado de qualquer que seja o estágio em que se sustenta; a
significação jurídica aparece pela relação que todos os estágios do delito,
embora exprimam uma construção dogmática, têm com a lei penal; o
sistema decorre da ordem lógica na qual são distribuídos aqueles estágios,
permitindo subsumir em cada um deles os fatos, sob o aspecto objetivo ou
subjetivo. É nesse ponto, onde o delito é concebido como um sistema
logicamente ordenado, que o pensamento penal teve a pretensão de reforçar
122
a garantia de segurança prometida ao indivíduo já formulada no princípio
da legalidade penal. Como isso se deu?
A segurança cuja promessa o nullum crimen, nulla poena sine lege
exprime, se articula no conceito de delito ali onde toma em conta cada uma
de suas etapas, de modo que à ação corresponde o nullum crimen, nulla
poena sine actio; ao tipo corresponde o nullum crimen sine tipo; à ilicitude
corresponde o nullum crimen sine inúria; à culpabilidade corresponde o
nullum crimen sine culpa. Ação, tipo, ilicitude e culpabilidade como etapas
do delito passam por um escrutínio no qual se apura a configuração ou não
das esferas externa e interna de cada uma. Mas não interessa aqui o exame
do delito sob seu aspecto externo, e sim o interno. Com efeito, o percurso
que leva da ação à culpabilidade, constitutivo da responsabilidade penal do
sujeito, é pavimentado por um estoque de disposições anímicas, cuja
pesquisa permite o levantamento do mapa interior da conduta humana.
Trata-se de uma cartografia onde pontos como consciência, vontade,
previsão, motivos, intenção, etc. constituem o roteiro para justificar a
decisão que pune (em qualquer medida) ou inocenta, sob o ponto de vista
do direito material.
6.1. O sistema causal. Dir-se-á, contudo, que não é bem assim; que
no sistema do delito formulado pela teoria causal, particularmente com
LISZT e BELING, os estágios correspondentes ao injusto, isto é, na ação,
tipicidade e ilicitude não estão contempladas as disposições anímicas do
agente e que elas, todas, estariam distribuídas e alojadas no setor da
culpabilidade. Esta é uma objeção que implica dificuldades e da qual
ninguém discorda totalmente. Convém assinalar, no entanto, que, embora
limitadamente, a vontade tem articulações claras com o estágio da ação no
sistema LISZT-BELING, pois, mesmo que sustentada apenas por um impulso
muscular e desligada de qualquer fim (cujo exame dá-se no setor da
culpabilidade), é dominável e, por esse aspecto, sujeita ao controle do
123
agente. De qualquer modo, a dificuldade permanece. É que tal controle se
processa não na esfera interna, psicológica, mas na externa, física, afinal a
voluntariedade não passa de uma enervação. Aqui, então, é melhor recorrer
a um desvio para o qual JUAREZ TAVARES chamou a atenção, assinalando
que o sistema causal sofreu modificações na composição de seus elementos
originais.311
Assim, um causalista como MEZGER que substitui o uso da palavra
“delito” pelo da expressão fato punível tem o ponto de vista de que este
contém “... necessariamente relações objetivas e subjetivas”.312 Desse
contraste, isto é, da oposição entre o objetivo e o subjetivo, nasceu a
discussão própria da teoria do delito acerca de saber − acrescenta MEZGER
− “... se o direito penal deve ser ‘direito penal de resultado’ ou ‘direito
penal da vontade’; se existe uma ‘antijuridicidade objetiva’ ou um ‘injusto
pessoal’; se a não exigibilidade ‘subjetiva’ exclui a culpabilidade...”.313
Enfim, “todo fato punível apresenta um aspecto concreto (objetivo) e
pessoal (subjetivo)”.314 Sob esse aspecto então, para MEZGER, a
subjetivação do fato punível penetra tanto nas formas gerais de sua
estrutura, a saber: na ação, antijuridicidade e culpabilidade, como nas suas
formas especiais, isto é, na tentativa e no concurso de pessoas. No primeiro
caso e diferentemente de BELING, para quem a vontade ou voluntariedade
na ação era apenas uma enervação muscular,315 ou de LISZT, que, mesmo
considerando-a determinada por idéias e representações, não deixa de
assumi-la como mera tensão ou contração muscular,316 MEZGER examinava
uma ação que tinha por fundamento interno a vontade como ato psíquico,
de tal modo que nela não há nada de cego, ao contrário “toda ação é uma
311
Cf. Teorias do delito: variações e tendências, p. 35 ss.
Derecho Penal: parte general, p. 78.
313
Ibid., p. 79.
314
Ibid.
315
Esquema de Derecho Penal, p. 19 s.
316
Cf. Tratado de direito penal alemão, tomo 1, p. 221s.
312
124
conduta conduzida por uma vontade, por isso, necessariamente, é uma
conduta dirigida a um fim, a uma meta”.317 De qualquer modo, MEZGER
atribui a seu conceito de ação um caráter neutro.318 Isso significa que,
embora a partir dela se torne possível saber o que quis e a que se propôs o
autor,319 nessa etapa fica excluída qualquer apreciação normativa. Esta deve
ser efetivada no setor do injusto (antijuridicidade) ou da culpabilidade.320
Ademais, se, de um lado, a vontade constitui a face interna da ação, de
outro, o injusto exibe uma face interna que contempla elementos
subjetivos, acentuadamente nos delitos de intenção, de tendência e de
expressão.321 Mas os elementos subjetivos, além de fundamentar o injusto,
também estão presentes nas causas de sua exclusão. São exemplos disso o
consentimento [do ofendido] e a legítima defesa. No consentimento, que,
de resto, resulta da manifestação da vontade, exclui-se a antijuridicidade
em situações específicas de lesão corporal (salvo quando forem contra os
bons costumes, de tal modo que “uma lesão corporal causada, por exemplo,
com fins sádicos é punível, apesar de consentida”322), o que analogamente
pode ser aplicado em casos, por exemplo, de adultério e de crimes contra o
patrimônio. Na legítima defesa, igualmente, a vontade é exigida como
causa de justificação.
Já a culpabilidade (que em MEZGER é normativa e não psicológica
como se dava com LISZT-BELING) é repleta de elementos subjetivos. Estes
se articulam em cada uma de suas características, isto é, na imputabilidade,
nas formas em que se apresenta (seja no dolo, seja na culpa) e nas causas
que a excluem.323 O elemento subjetivo da imputabilidade consiste na
normalidade das “... circunstâncias internas e da personalidade do autor,”
317
Derecho Penal: parte general, p. 88.
Cf. ibid., p. 89.
319
Cf. ibid., p. 88.
320
Cf. ibid., p. 89.
321
Cf. ibid., p. 136.
322
Derecho Penal: parte general, p. 164.
323
Cf . ibid., p. 199.
318
125
permitindo que este possa “... compreender a ilicitude do fato e agir
segundo essa compreensão”;324 das formas de culpabilidade consiste no
conhecimento e na vontade do fato no caso do dolo, bem como da
previsibilidade no caso da culpa, isto é, o autor ali onde desatende o dever
de precaução não prevê as conseqüências do fato (culpa inconsciente) ou
prevê tais conseqüências mas confia em que não se produzam (culpa
consciente);325 o elemento subjetivo das causas de exclusão de
culpabilidade é identificado em pelo menos duas delas, vale dizer, na
situação de coação [coação irresistível] e no estado de necessidade. A
vontade é o que está em jogo nos dois casos. Assim, trata-se de uma
vontade incapaz de resistir à força (vis compulsiva) para o caso da
coação,326 e de uma vontade que sempre é exigida no estado de
necessidade, pois, sem ela, sem a atitude subjetiva de quem age para se
salvar de perigo, a exculpante não se configura.327
6.2.O sistema finalista. Também com a teoria finalista, assinada na
ALEMANHA por WELZEL, MAURACH, STRATENWERTH, etc., e no BRASIL,
entre outros, por FRAGOSO, TOLEDO, MESTIERE, sendo, de resto, adotada
(embora não exclusivamente) pelo código penal de 1984, a subjetivação do
injusto culpável é levada em conta e penetra em todos os estágios do
sistema, mesmo (em alguma medida) na culpabilidade. Mas há diferença.
Ela consiste no tratamento que alterou a distribuição dos elementos
anímicos e, portanto, a composição de cada um dos escalões que formam o
delito. Essa alteração terá sido radical ou moderada quando se tem em vista
as duas versões do causalismo, a saber, a clássica (com LISZT e BELING) e a
neoclássica (com MEZGER). Se a referência for a versão clássica, as
alterações processadas pela teoria finalista foram radicais. É que a ênfase
324
Ibid., p. 218.
Cf. ibid., p. 257.
326
Cf. Derecho Penal: parte general, p. 264.
327
Cf. ibid., p. 270
325
126
conferida às particularidades internas do delito desloca-se da culpabilidade
para os setores da ação (onde a vontade renuncia à cegueira e passa a ser,
além de consciente, final) e do tipo (agora enriquecido pelo dolo e culpa no
sentido estrito). Se a referência, no entanto, for a versão neoclássica as
alterações foram moderadas. A explicação disso está em que os
neoclássicos já tinham processado alterações no causalismo clássico a
partir de algumas descobertas, por exemplo, a introdução na ação da idéia
de uma vontade consciente (embora sem conteúdo) e no tipo de alguns
elementos subjetivos especiais. Restou ao finalismo acrescentar na ação a
finalidade (como expressão de uma vontade dotada de conteúdo, pois, ali
onde esta antecipa as conseqüências é capaz de configurar “...
objetivamente o acontecer externo”),328 e no tipo, o dolo (como expressão
da consciência e da vontade) e a culpa (como expressão da quebra do dever
de cuidado).
O ponto de partida de tudo isso se esclarece no processo em que se
deu a substituição do paradigma causal e suas articulações (na origem) com
as ciências naturais329 e (depois) com o neokantismo pelo paradigma
finalista. O paradigma para a ação que o finalismo constrói é de base
fenomenológica. Isso significa que a conduta humana é tomada como
fenômeno real, observável, cuja estrutura é descrita a partir de elementos
que muito pouco se confundem com aquele impulso cego, sem rumo,
direção ou plano (descoberto pela reflexão causal) capaz de alterar a
realidade. Nesse sentido, ela (a ação final) é recolhida do mundo do ser e
apresentada como se tivesse uma essência, uma natureza particular que o
mundo do dever–ser (portanto, do direito penal) toma em consideração: “A
estrutura final da ação humana é necessariamente constitutiva para as
328
329
WELZEL, Derecho Penal Aleman, p. 54.
Sob esse aspecto ver BAUMANN, Derecho Penal, p. 107.
127
normas de direito penal”.330 A essência da ação é retratada pela idéia de que
o fim, o objetivo, a meta constituem aquilo que a orienta. Em outras
palavras, o homem dirige sua atividade conforme um rumo, uma direção,
um plano. Por isso mesmo, “a atividade final é um fazer orientado
conscientemente a partir de um fim”.331 Ao lado da vontade final (na ação)
e do dolo e culpa (no tipo), aparece a idéia da orientação de ânimo como
elemento subjetivo da ilicitude, embora alojada no setor das excludentes,
isto é, nas causas que justificam o delito ou tipos permissivos. (Note-se,
contudo, que mesmo na definição de ilicitude, pelo menos naquela proposta
por FRANCISCO
DE
ASSIS TOLEDO, a presença do elemento subjetivo é
considerada, ainda que de alguma forma tomado de empréstimo do setor da
ação: “ilicitude é a relação de antagonismo que se estabelece entre uma
conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar
lesão ou expor ao perigo de lesão um bem jurídico tutelado”.332 Como se
vê, TOLEDO recorre na primeira parte de sua definição de ilicitude à
conduta humana voluntária como aquilo que, contrariando o direito, revelalhe a essência.) É assim que, por exemplo, no estado de necessidade “o fato
necessário deve ser praticado com o intuito de salvar o bem em perigo”333 e
na legítima defesa “a orientação de ânimo do agente [é] no sentido de
praticar atos defensivos”.334 Por último, a culpabilidade. A idéia geral é a
de que, no finalismo, a culpabilidade não passa de um juízo de valor que se
apresenta como censura ou reprovação contra o sujeito que podia agir de
outro modo (mas, ao invés, pratica a ação proibida ou omite a ordenada) e,
como tal, representa um escalão lógico–objetivo do delito imune a qualquer
subjetivação. Tratar-se-ia de um setor vazio do injusto. É como se um
deslocamento radical tivesse sido processado: no injusto, todas as
330
Hans WELZEL, Derecho Penal Aleman, p. 59.
Ibid., p. 53.
332
Princípios básicos de direito penal, p. 163.
333
Ibid., p. 188.
334
Ibid., p. 193.
331
128
disposições anímicas; na culpabilidade, nenhuma. A rigor, se tomada
isoladamente a culpabilidade parece despsicologizada no finalismo;335 se
tomada, contudo, nas conexões inevitáveis com seus elementos, vale dizer,
a imputabilidade, a consciência potencial da ilicitude, a exigibilidade de
conduta diversa, bem como com as causas de sua exclusão, não é bem
assim. Cada um desses elementos e assim cada uma das causas de exclusão
sempre se reconduzem a processos internos do agente. Nesse sentido, a
imputabilidade é a característica que acompanha todo aquele que é capaz
de internalizar a norma e faz dela o motivo de sua ação. Isso implica que se
reconhece no agente aptidão para tomar a norma como referência, pelo que
entende o caráter ilícito de sua conduta e, apesar disso, quer se conduzir
assim. Por seu turno, a consciência potencial da ilicitude somente pode ser
portada ou atribuída àquele que é capaz de processar representações
valorativas da sua conduta em confronto com as determinações normativas
ou nas palavras de WELZEL: “o autor tem que poder ser consciente da
contradição de sua conduta com a ordem da comunidade...”.336 Finalmente,
a exigência de conduta conforme a norma somente pode ser feita àquele
que se encontra envolvido num quadro de normal motivação e, por isso
mesmo, imune à perturbação de sua vontade. Internalizar a norma,
processar representações e o estado de normal motivação são disposições
anímicas próprias de quem atua, mas ali onde cada uma delas está referida
a cada um dos elementos da culpabilidade, a esta se refere também.
335
O uso da expressão “parece despsicologizada”, ao invés de “é despsicologizada”, põe em questão o
caráter puramente normativo da culpabilidade. Isso se justifica porque mesmo WELZEL (Derecho penal,
p. 221) não descarta do seu conceito de culpabilidade como reprovabilidade a idéia de vontade e, assim,
as implicações desta como algo cuja sede é na psicologia do indivíduo. Pelo contrário, WELZEL
compreende que a culpabilidade também é “... um fracasso da direção da vontade conforme um sentido...”
de tal modo que se reprova no autor “...estruturação antijurídica da vontade...” quando podia “...construir
sua vontade de ação conforme o direito...”.
336
Derecho Penal, p. 239. Reyes ECHANDÍA (Culpabilidad, p. 19), ao examinar a consciência da ilicitude
como elemento da culpabilidade, critica o finalismo e considera que é falido seu propósito de alcançar um
conceito puro de culpabilidade, pois não dá para fugir da natureza psicológica do fenômeno da
consciência potencial da ilicitude, por conta de sua articulação com “a esfera cognitiva da personalidade”.
129
Se o entendimento (consciência) e o querer (vontade) sustentam os
elementos da culpabilidade, sustentam também (embora em função dos
defeitos
que
exibem)
situações
que
permitem
excluí-la;
mais
especificamente nos casos de inimputabilidade, erro de proibição inevitável
e inexigibilidade de conduta diversa. Na inimputabilidade o agente carece
de maturidade psíquica, seja por conta de perturbações mentais, seja por
conta da idade; no erro de proibição inevitável o agente atua na suposição
de que o que faz, ao invés de proibido, é permitido. Na verdade, age
segundo “... falsa representação, senão também falta de representação
acerca da antijuridicidade do fato”.337 Na inexigibilidade de conduta
diversa o agente não consegue tomar a norma como motivo de sua ação em
função, por exemplo, de estados emocionais gerados em situação de medo.
Nesse caso, considera-se que o medo é um componente subjetivo capaz de
afetar o estado psíquico de quem o sofre.338
Desse modo, embora a culpabilidade como conceito seja destacável
de seus elementos e mais ainda das causas de sua exclusão, há uma relação
tão estreita entre todos eles que torna possível sustentar que a culpabilidade
no finalismo não é de todo vazia de conteúdos psicológicos. Isto, aliás, fica
mais nítido quando se considera que mesmo o poder agir de outro modo
como fundamento da culpabilidade traz encoberta a idéia de liberdade na
formação da vontade.
6.3. O sistema social. Aqui a idéia de ação contempla contribuições
das teorias causal e final e agrega a descoberta da relevância social. O
caráter conciliador da nova teoria é assumido por WESSELS, para quem esta
“não exclui, mas inclui os conceitos final e causal da ação”.339
Criticamente, entretanto, WESSELS tem o ponto de vista de que o
337
WELZEL, Derecho Penal, p. 233.
MUNÕZ CONDE, Teoria general del delito, p. 51.
339
Direito Penal: parte geral, p. 22.
338
130
“fundamento puramente causal” fracassa, pois é incapaz de compreender o
“... significado social e pessoal da atuação humana...”.340 Já a teoria final,
embora analise “...de modo correto a estrutura da ação antecipada em
pensamento”,341 é questionável quanto a seu alcance limitado e estreito.
Nem sempre o homem antecipa “... em cada situação, primeiramente o
objetivo de sua conduta, para depois conduzi-la planificadamente através
de uma refletida mobilização dos fatores causais”.342 Pelo contrário,
inexiste direção finalista na maioria dos casos: “são formas de conduta
determinadas pelo subconsciente e omissões, nas quais falta (...) uma
direção finalística do acontecer causal”343 É o caso, por exemplo, da “...
mãe que permanece imóvel, em desconhecimento negligente-inconsciente
da situação de perigo, e não impede que seu filho, em conseqüência de
engano, tome um líquido mortal para satisfazer a sede”. Aí, “faltará a
finalidade e não, porém, a relevância social da conduta”.344 Diante desses
questionamentos, WESSELS formula seu conceito de ação como a “conduta
socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana”.345
Este conceito de ação favorece a compreensão do “... sentido social do
acontecimento (...) sob a consideração do fim subjetivo do autor e da
expectativa de conduta da comunidade jurídica”.346
Se, na teoria social, a vontade revela a característica interna da ação,
o tipo é revelado internamente, tal como se dá no finalismo, pelo dolo,
como núcleo de sua parte subjetiva, “... frente ao qual, como negação, se
situa, o erro de tipo”, e também pelos elementos subjetivos, os quais
“permitem uma mais concreta caracterização da vontade típica de ação”.347
340
Ibid., p. 21.
Ibid.
342
Ibid.
343
Ibid.
344
Ibid., p. 21.
345
Direito Penal: parte geral, p.22.
346
Ibid.
347
JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 246.
341
131
Distingue-os as notas da generalidade e especialidade. Assim, para
JESCHECK, o dolo é o elemento subjetivo geral do tipo e, ao lado dele,
aparecem, com freqüência, especiais elementos subjetivos do tipo,
caracterizando “mais detalhadamente a vontade de ação do autor”.348
Embora situados no campo interno do autor, dolo e elemento subjetivos do
tipo preservam sua autonomia. Com efeito, segundo WESSELS, o que
assinala o dolo é a circunstância de que contém um elemento intelectivo e
outro volitivo, bem como assinala os elementos subjetivos do tipo a
circunstância de conter “uma representação especial do resultado ou do fim
[que] deve ser acrescentada à ação típica executiva como ‘tendência interna
transcendente’” sobretudo nos “delitos de intenção”.349 Parece, então,
consistir nessa diferença a justificativa que WESSELS encontra para afirmar
que os elementos subjetivos do tipo são “elementos de caráter próprio [e]
se situam eles autonomamente ao lado do dolo do tipo (...)”.
A face interna do delito também é contemplada na antijuridicidade
pela teoria social. A justificativa disso resulta de duas observações: uma de
JESCHECK; outra de WESSELS. JESCHECK, embora destaque a importância
objetiva da antijuridicidade [magnitud objetiva],350 concede que a vontade
está no núcleo desse conceito: “... a vontade de ação deve ser o núcleo da
antijuridicidade de um fato, pois a vontade humana oposta ao ordenado
pelo direito é a que vulnera o mandato ou a proibição contidos na
norma”,351 pelo que o exame do fato antijurídico implica perguntar: “Que
quis e o que realizou o autor?”352 WESSELS, na conexão que estabelece
entre o setor das causas de justificação (cuja existência, aliás, segundo
JESCHECK, permite formular negativamente a antijuridicidade, no sentido
348
Ibid, p. 284 s.
Cf.P.34.
350
JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 220.
351
IIbid., p. 214.
352
Ibid., p. 220.
349
132
da exclusão desta por aquelas353) com os elementos subjetivos, conclui : “...
como o tipo em sentido estrito constitui-se de elementos objetivos e
subjetivos (...), o tipo permissivo compõe-se de elementos objetivos e
subjetivos de justificação”,354 de tal modo que “... só atua ‘juridicamente’
quem, com fundamento no tipo permissivo, quer atuar juridicamente”.355
Sem embargo, é na culpabilidade que a teoria social confere ênfase
especial às determinações subjetivas do delito. Ao contrário do finalismo,
assume claramente o homem como “ser espiritual”, psicologizado, em cuja
“estrutura estratificada da personalidade” − assinala JESCHECK −
“concorrem forças corporais e psíquicas que intervêm no sentir, pensar,
valorar, querer e atuar do homem”. Personalidade estratificada é aquela que
possui duas camadas: uma camada profunda, inconsciente, e outra
consciente. Aquela contém os impulsos, as atitudes anímicas básicas
(herdadas ou adquiridas), os talentos, as aspirações; a outra contém o
centro do eu, em que se “acha a instância de controle dos impulsos da
camada profunda”.356 Dessa forma − assinala ainda JESCHECK −, “o juízo de
culpabilidade está relacionado com a totalidade dos processos que intervêm
na formação [deficiente] da vontade”.357 Trata-se, assim, na culpabilidade,
de uma censura emitida contra “... uma pessoa de carne e osso”358 cuja “...
atitude interna a respeito do direito encontra expressão em uma ação típica
e antijurídica”,359 e nisto consiste seu objeto. O fundamento da
culpabilidade, agora segundo WESSELS, descansa na liberdade e na
consciência do indivíduo, em seu poder, “de se decidir livre e corretamente
entre o direito e o injusto”.360 Assim, enquanto a liberdade, de um lado,
353
Cf. p. 223.
WESSELS, Direito Penal, p. 62.
355
Ibid., p. 63.
356
Cf. WESSELS, Direito Penal, p. 374.
357
Ibid., p. 375.
358
Ibid., p. 364.
359
Ibid., p. 384.
360
Direito Penal, p. 83.
354
133
torna própria a atuação do indivíduo,361 a consciência o capacita, de outro,
para distinguir, valorar, enfim, perceber os conceitos valorativos e julgar as
ações próprias.362
6.4. Segurança e Interioridade. Como se vê, todos os escalões dos
diversos sistemas de delito contemplam, grosso modo, as disposições
internas do agente. Isso implica conseqüências, tendo em vista
especialmente a segurança do indivíduo. A justificação para esse ponto de
vista concentra-se naquele ponto onde o direito penal reconhece
amplamente o estado anímico do sujeito no resultado a que deu causa,
fazendo disso um requisito sem cuja configuração o delito não se
aperfeiçoa, favorecendo a liberdade como expectativa que pode ser
garantida. É o que ocorre pela aplicação de procedimentos negativos que
permitem concluir pela inexistência de ação, em que é impossível articular
a esfera interna do agente com o sucesso (= evento) externo, concretamente
nos casos de atuação inconsciente, vis absoluta e movimentos reflexos
(ninguém executa uma ação no sentido do direito penal movido apenas por
determinações externas); pela inexistência de tipicidade nas situações em
que dolo e culpa, bem como os elementos subjetivos do tipo, não são
reconhecidos (ninguém consegue aperfeiçoar e assim fazer reconhecer uma
ação típica sem ajustá-la às características [inclusive subjetivas] do tipo
legal); pela inexistência de ilicitude nas situações em que a conduta
proibida é autorizada por tipos permissivos que contemplam a vontade de
uma atuação lícita (ninguém atua ilicitamente se é movido por uma vontade
que confirma a vigência da norma); pela inexistência de culpabilidade
quando é impraticável fazer da norma o motivo da conduta humana
(ninguém tem como motivar corretamente sua conduta ao se encontrar
361
362
JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, p. 371.
Ibid., p. 372.
134
desfalcado nos âmbitos cognitivo [falta consciência do injusto] e volitivo
[falta vontade livre]).
A experiência jurídica tem revelado, no entanto, situações para as
quais o sistema do delito, apesar de seu alto grau de racionalidade, não
oferece saídas adequadas. Dito de outro modo, para casos-padrão a
racionalidade do sistema do delito parece responder bem às expectativas de
sua solução (e assim, de algum modo, garantir a segurança jurídica). Não é
bem
assim,
contudo,
para
casos-limite.
Isso
se
verifica,
mais
particularmente, quando o exame da situação de fato já tenha percorrido as
etapas da ação, tipicidade e ilicitude, reconhecendo a configuração de cada
uma delas, mas, na seqüência, ao avançar para a culpabilidade, reconhece o
caráter impróprio da aplicação de um juízo de censura e, por oposição, o
caráter apropriado de um juízo exculpante. Nesse ponto, contudo, aparece
uma dificuldade. Ela tem origem no reconhecimento de que juízos
exculpantes são montados, em geral, com base na subjetivação do delito
ou, em outros termos, tomando-se em conta o coeficiente psíquico do
agente, sua esfera interior, sua subjetividade, enfim. É o caso do juízo
conectado com o erro de proibição inevitável (onde falta consciência); com
a coação irresistível (onde falta vontade). Sem consciência, ninguém se
orienta; sem vontade (livre), ninguém se autodetermina. Logo, aí é
impossível uma atitude motivada pela norma, seja porque seu significado
escapa do conhecimento, seja porque não há liberdade para escolhê-la.
Neutralizado na sua aptidão para se conduzir tendo a norma como motivo,
o agente fica imunizado contra seus efeitos penais, pelo que é declarado
impune.
Ocorre que as exculpantes penais, embora projetadas para alcançar
situações nas quais não dá para exigir do ser humano comportamento
diverso, mostraram-se insuficientes ou impróprias para a solução de casos
135
que escapam da normalidade [= casos-padrão] e se aproximam da exceção
[= casos-limite], instaurando, assim, um quadro de lacunas. (Aqui as
lacunas são axiológicas, isto é praeter legem, entendidas no sentido de
expectativas do intérprete ou aplicador da lei quanto a soluções para as
quais o sistema penal não dá respostas.363) Dito de outro modo, as
exculpantes legalmente previstas são estruturadas de tal forma que não
permitem deduzir todas as conseqüências de um cenário de fato em que o
indivíduo atua sob o regime de circunstâncias nas quais sua subjetividade
não pode ser inspirada na norma. Sob esse aspecto, então, insinua-se o
malogro da razão penal, tendo em vista sua promessa de segurança para o
indivíduo nas suas expectativas de justiça. Tem muito de aparente, no
entanto, esse malogro. Afinal, existem dois caminhos para contornar
lacunas ou insuficiências normativas. O primeiro consiste no uso da
analogia (in bonam partem). O alcance dela, contudo, é limitado. (Aqui
ainda não é o lugar para desenvolver esse ponto.) O segundo consiste no
uso da inexigibilidade de conduta diversa. A vantagem, nesse caso, deriva
de seu alcance mais abrangente. Isso se explica pela posição que ocupa de
princípio geral que fundamenta cada uma das exculpantes. Assim, a
inexigibilidade de conduta diversa, transformada pela razão jurídica num
ponto de vista extraído do próprio direito penal (esse tema será abordado
adiante), pode e tem sido o meio adequado para o suprimento daquelas
lacunas. Surge aqui, então, um problema. Ele consiste em que a
inexigibilidade de conduta diversa não se constitui como regra (stricto
sensu), ou seja, não possui a qualidade de uma exculpante legal. Ocorre que
o juiz, na sua atividade, costuma em geral fazer da regra guia de sua
decisão. Como surgiu, então, a idéia que tornou possível em casos
excepcionais [= casos-limite ou de exceção] tomar a inexigibilidade de
363
Para exame detalhado do sentido das três espécies tradicionais de lacunas, vale dizer, lacunas intra
legem, praeter legem, contra legem, ver PERELMAN (Lógica jurídica, p. 66 s).
136
conduta diversa em conta e transformá-la na razão que fundamenta a
solução do caso concreto?
137
Capítulo VI
A inexigibilidade como problema
1. Os antigos e a descoberta dos limites da resistência humana. A
idéia de que a inexigibilidade de conduta diversa constitui um tema
moderno é consensual; ninguém a refuta se referida ao direito penal. Se, no
entanto, for referida ao pensamento em geral, remonta aos antigos a
questão de saber o que é exigível ou não do indivíduo para censura e
punição de suas ações. Com efeito, a expressão mesma inexigibilidade de
conduta diversa era completamente estranha à Antigüidade, mas seu
conteúdo, próximo (no geral) das formulações modernas, não. É o que
parece evidente na Ética a Nicômacos, livro III, em que ARISTÓTELES
discute o problema das ações que devem ser censuradas ou perdoadas. O
propósito de sua reflexão é iluminar o tema da excelência moral, mas
considera as distinções que elabora como úteis também “... aos legisladores
com vistas à atribuição (...) e (...) aplicação de punições”.364 Ao dizer que
364
P.49.
138
“o homem é a origem de suas ações”,365 ARISTÓTELES fixa a premissa
central de suas reflexões. Isso significa que as ações não têm outras origens
(no destino, por exemplo) “... que não sejam as que estão dentro de nós
mesmos”,366 de modo que “ações cujas origens estão em nós devem
também depender de nós”,367 Nestas passagens e contra a lição dos mitos,
não é mais o destino que decide sobre a responsabilidade dos homens e sim
suas ações. Acontece que estas, segundo ARISTÓTELES, podem ser
voluntárias e involuntárias. As ações voluntárias devem ser censuradas,
enquanto as involuntárias devem ser perdoadas. Existem ações, no entanto,
acerca das quais é discutível se são voluntárias ou não. Tais ações,
conforme esclarece, são “... praticadas em conseqüência do medo de males
maiores ou com vistas a algum objetivo elevado”.368 ARISTÓTELES dá como
exemplo de ação movida pelo medo de mal maior o “lançamento ao mar da
carga de uma nau durante uma tempestade (...) como condição para
assegurar a própria salvação”,369 e de ação movida por objetivo elevado
aquela em que “um tirano, tendo em seu poder os pais e filhos de uma
pessoa, desse ordem a esta pessoa para praticar ação ignóbil, e se a prática
de tal ação fosse a salvação dos reféns, que de outro modo seriam
mortos”.370 Com efeito, ações assim “são mistas”, isto é, por um lado,
voluntárias, “pois são objeto de uma escolha no momento de serem
praticadas”,371 e, por outro, involuntárias, desde que “... consideradas de
maneira global, pois ninguém escolheria qualquer destes atos por si
mesmos”.372 Ainda, segundo ARISTÓTELES, ações ignóbeis implicam três
reações: podem ser louvadas, censuradas ou perdoadas. Serão louvadas
365
Ibid., p. 55.
Ética a Nicômacos, p. 57.
367
Ibid.
368
Ibid., p. 49.
369
Ibid.
370
Ibid.
371
Ibid.
372
Ibid., p. 50.
366
139
quando praticadas “em troca de algo importante e nobilitante”;373
censuradas, quando praticadas “sem nenhum objetivo nobilitante”;374
perdoadas, quando praticadas “sob pressões que violentam demais a
natureza humana e que ninguém pode suportar”.375
No caso das ações que devem ser perdoadas, duas propriedades são
comuns aos exemplos que ARISTÓTELES oferece: a. seu caráter voluntário e
o fato de terem sido objeto de uma escolha, b. o medo “... como expectativa
de um mal”376 e, assim, um sentimento a ser levado em conta para explicar
seu caráter também involuntário, tornando-as, desse modo, objeto de
perdão. Naturalmente, em b, aquilo que produz o medo, ou melhor, o que é
temível varia e “não é a mesma coisa para todas as pessoas”,377 mas “... há
coisas temíveis além da resistência humana”.378 Enfim, parece residir nisso,
na idéia de alguma coisa que se localiza nos confins da “resistência
humana”, decorrente de “pressões que ninguém pode suportar”, em que o
indivíduo atua a um só tempo com e sem vontade, que ARISTÓTELES
formulou o símile no pensamento antigo daquilo que os modernos
penalistas chamam de inexigibilidade de conduta diversa.
2. Os modernos e a resistência humana como problema jurídico.
Sem embargo, apenas a partir do final do século XIX, o tema da
inexigibilidade de conduta diversa passou a constar da pauta de discussões
que o direito penal moderno recortou como objeto de seu interesse. Tudo
começou na ALEMANHA e com a necessidade de que fosse encontrada
solução adequada para o problema que a lei penal ali apresentava e que
consistia na falta de provisões normativas dotadas de aptidão para resolver
casos específicos. Com isso, a prática e o pensamento penal mudaram o
373
Ibid.
Ibid.
375
Ética a Nicômacos, p. 50.
376
Ibid., p. 60.
377
Ibid., p. 61.
378
Ibid.
374
140
campo no qual habitualmente focavam atenções. Tratava-se agora de erguer
as vistas em direção a uma zona de fronteira, localizada além do
tipicamente exculpável e, assim, distinta dos domínios limitados pelo texto
da lei penal, onde fosse possível cravar posições ou novos pontos de
referência que permitissem ao juiz se mover com mais desenvoltura na
tomada de decisão.
JIMÉNEZ
DE
ASÚA descreve dois casos levados ao Tribunal do
império alemão e que são ilustrativos a esse respeito.379 O primeiro
envolvia o proprietário de um cavalo perigoso e um trabalhador com
função de cocheiro. Aquele determinou que este fosse com o animal até a
cidade. O trabalhador, contudo, resistiu, ponderando que era previsível um
acidente se o cavalo desembestasse. O proprietário reagiu com a ameaça de
despedi-lo se não cumprisse a ordem. O trabalhador cedeu e, já na cidade, o
animal desvencilhou-se das rédeas de quem o mantinha sob controle,
causando lesões a um transeunte. O Tribunal rejeitou a imputação de
conduta culposa e fundamentou a decisão no argumento de que não se
podia exigir do trabalhador que perdesse seu emprego e seu pão, negandose a executar a ação perigosa.
O segundo envolvia os trabalhadores e a parteira de um distrito
mineiro na ALEMANHA. Tudo começou quando a empresa que explorava as
minas prometeu: todo mineiro será dispensado do trabalho no dia do parto
de sua mulher. O problema dessa promessa estava em que, se o parto
ocorresse num domingo, o benefício não seria aplicável. Afinal, domingo é
o dia no qual todos já são naturalmente dispensados de trabalhar. A solução
que os trabalhadores encontraram consistiu em pressionar a parteira do
distrito, ameaçando-a de destituí-la da posição se não anotasse no registro,
caso o parto ocorresse num domingo, que o nascimento da criança se dera
379
Princípios de Derecho Penal: la lei y el delito, p. 410 s.
141
em dia de trabalho normal. A parteira sucumbiu às pressões e fez uma série
de inscrições falsas no registro. O Tribunal decidiu que a parteira não era
culpada da conduta dolosa que lhe fora imputada, e, também aqui, lançou
mão da inexigibilidade de conduta diversa para sustentar a posição.
Quebrava-se, desse modo, uma tradição e uma identidade. A tradição
quebrada consistia na remoção da premissa-guia das decisões na área penal
e cuja particularidade era anunciada na idéia de que o código continha as
regras das quais juiz nenhum podia afastar-se e delas seriam sacados os
fundamentos para a solução de todas as questões; enfim, a lei como fetiche
estava desnuda e o efeito das limitações que exibia foi de desencanto. Já a
quebra de identidade se deu ali onde passado mais de um século e meio o
papel de juiz não mais se identificava com aquele que MONTESQUIEU e
BECCARIA lhe atribuíram: um ser que não cria, interpreta ou pensa e que
apenas reproduz a vontade da lei. Neste percurso, o legislador e o
pensamento jurídico conferiram ao juiz outro papel, cuja marca é o da
atuação criadora, transformando-o num ser pensante e capaz de manter um
diálogo fecundo com a lei, não apenas mediante a interpretação do seu
sentido (pelo uso, por exemplo, de acordo com o modelo proposto por
SAVIGNY [já na primeira metade do século XIX] dos métodos lógico,
gramatical e histórico380), mas, sobretudo, pela descoberta de saídas sempre
impostas pela necessidade (decorrente, por exemplo, de um quadro de
lacunas). Isso significa que o direito passou a ter à disposição elementos
capazes de prover sua própria carência.
Com efeito, o Tribunal percebeu que, naqueles casos, as exigências
de justiça apontavam para a absolvição dos acusados, mas, para esse fim,
faltava no código penal alemão (1871) a norma correspondente. As
hipóteses de coação e estado de necessidade previstas nos § 52 e § 54,
380
Metodologia jurídica, p.25 s.
142
embora dotadas de alguns dos elementos aplicáveis aos casos, eram
insuficientes no todo. A ameaça, por exemplo, prevista na estrutura da
coação ou, ainda, a salvação de perigo atual, própria do estado de
necessidade, tinham que ser ligadas a um perigo para o corpo ou a vida do
próprio autor ou de um de seus familiares. Ora, nem o cocheiro, nem a
parteira, menos ainda seus parentes, estavam com o corpo ou a vida sob
qualquer risco. Para ambos, o risco que contava era perder o emprego.
Assim, o desemprego e o medo que implicava parecem ter constituído na
sentença os elementos decisivos na fixação da fronteira entre o exigível e o
inexigível. Sob esse aspecto, a prática jurídica consagrou duas idéias: em
primeiro lugar, os limites da experiência da codificação, tão celebrada pelo
pensamento jurídico da época; em segundo lugar, o reconhecimento de que
limites de outra ordem, isto é, referidos à capacidade de resistência do
indivíduo não tinham de ser medidos ou avaliados apenas com referência à
vida e Liberdade como bens (jurídicos) sob ameaça, mas levar em conta
situações (nas quais bens diferentes estivessem igualmente ameaçados, por
exemplo, o emprego do trabalhador) que somente as particularidades do
caso concreto podem revelar.
Aliás, parece ter sido a conjuntura de crise econômica que se abateu
sobre a ALEMANHA do início do século XX o que deu causa ao incremento
dos estudos acerca da inexigibilidade de conduta diversa, os quais
definiram como ponto de partida e objeto de reflexão os precedentes em
questão.381 Diante da nova sensibilidade jurídica revelada pelos juízes, onde
à vida e à liberdade (sob ameaça ou perigo) adicionava-se o emprego (=
posto de trabalho) como bens tomados em conta para exonerar de pena
aqueles que, submetidos à pressão de tais circunstâncias, cometessem o
delito, surgiram teorias que alteraram os marcos da culpabilidade agora
incorporando, além de outros elementos, o par exigibilidade/inexigibilidade
381
Cf. nesse sentido Santiago MIR PUIG, Derecho Penal: parte general, p. 610.
143
de conduta diversa. Cada parte deste par tinha sua função: cabia à
exigibilidade a função positiva de operar como fundamento da
culpabilidade; à inexigibilidade a função negativa de excluí-la. O
pensamento penal, até então blindado ou, conforme KAUFMANN assinala,
investido no dever de “deixar de lado” as “fantasias jusnaturalistas ” que
BINDING considerava como inimigas da ciência jurídica,382 não ficou
indiferente aos novos aportes na área. Antes de demonstrar como isso se
deu, convém examinar o conteúdo das novas teorias.
3. Culpabilidade como reprovabilidade (teoria de FRANK). Menos
do que redefinida, a culpabilidade foi revista por FRANK. Significa: FRANK
não desconheceu, desdenhou ou destruiu criticamente a premissa
psicológica (configurada no dolo e na imprudência) que dava sustentação à
idéia de culpabilidade para, assim, defini-la de novo. Sua pretensão foi a de
resolver um problema, que, para ele, fora mal solucionado pelos que o
precederam, ligados à teoria da culpabilidade psicológica. O problema era
o de saber em que circunstância alguém deve ser considerado responsável
[culpado] pela justiça? A solução que propôs partiu da crítica cujo alvo foi
a idéia (cara à doutrina dominante) de que a premissa psicológica era
suficiente para explicar a culpabilidade. Por conta disso, FRANK adicionou à
estrutura da culpabilidade outros elementos. Assim, ela não é mais um
conceito genérico que se explica tão-somente a partir do dolo e da
imprudência como espécies ou graus que permitem medir a atitude anímica
do autor em relação ao fato. Ao lado do dolo e da imprudência (não mais
como espécies, mas como elementos), agora a culpabilidade agrega as
circunstâncias concomitantes (e a imputabilidade). A conseqüência que
FRANK extrai daí está em que, mesmo agindo com dolo ou culpa, o autor
pode não ser culpado, pois, fora ou para além daqueles âmbitos, trata-se de
382
KAUFMANN, A teoria da norma jurídica, p. 29.
144
tomar em conta, também, as circunstâncias em que se encontrava. De posse
desses elementos, FRANK elabora seu conceito de culpabilidade e diz que
ela é reprovabilidade, tornando-a, desse modo, normativa pelo que contém
de juízo de valor sobre o injusto. Nisso consistiu a revista.
FRANK encontra no senso comum o ponto de partida para suas
observações. Assim, segundo ele, o uso da linguagem cotidiana confirma
certos fatores, localizados fora do dolo, para medir a culpabilidade. Dá
como exemplo a posição do caixa de uma loja e a do portador de valores
que praticam, por conta de cada um, defraudações. O primeiro ganha a vida
com dificuldades, tem família constituída de uma mulher enferma e
numerosos filhos; o segundo goza bem a vida, não tem família e suas
mulheres são magníficas. Ambos sabem do caráter ilícito da ação praticada.
Logo, não há dúvida acerca do dolo. Neste caso, porém, todos dirão que a
culpabilidade de um é menor que a do outro. A diferença numa avaliação
como essa toma por base, naturalmente, as circunstancias desfavoráveis ou
favoráveis no interior das quais a ação se desenvolve. Tais circunstâncias,
que, segundo FRANK, são concomitantes, medem a culpabilidade não
apenas no âmbito da linguagem cotidiana, mas também no da lei e na
prática dos tribunais.
Por outro lado, se as circunstâncias concomitantes medem a
culpabilidade, por exemplo, para atenuá-la, podem, igualmente −
acrescenta FRANK −, ser reconhecidas na capacidade de excluí-la. Nesse
ponto, FRANK coloca o problema da incompatibilidade entre o conceito de
causas de exclusão da culpabilidade e o conceito dominante de
culpabilidade (fundada no dolo e na imprudência), cuja essência é
associada à esfera psíquica do agente:
Se o conceito de culpabilidade não alcança nada mais que a soma de dolo e imprudência
(...) resulta absolutamente incompreensível como pode excluir-se a culpabilidade no caso de
145
estado de necessidade, posto que também o autor que atua em estado de necessidade sabe o que
faz.383
Sob esse aspecto, para FRANK, as relações psíquicas que o direito
penal traduz nos verbetes dolo e imprudência [culpa] até permanecem na
culpabilidade, mas, por si mesmas, já não esclarecem seu conteúdo. A
título de exemplo: quem age sob a pressão do estado de necessidade sabe o
que faz, portanto, age dolosamente; no entanto, não é culpável. Mais do
que o dolo, o que importa considerar nesse caso é o perigo como
circunstância concomitante. Vale dizer, é o contexto, a situação concreta e
a pressão que nela se exprime, instaurando o que mais tarde FRANK
denomina de motivação anormal, aquilo que constitui o objeto central da
valoração.
O terceiro elemento da culpabilidade é a imputabilidade. Contra a
concepção dominante, FRANK considera que o lugar desta agora é dentro e
não fora da culpabilidade. Trata-se de um “fantasma errante” se alojada
neste lugar, operando como pressuposto da culpabilidade:
...
não se entende de que maneira a imputabilidade pode ser um pressuposto do dolo
[portanto, da culpabilidade], posto que também um enfermo mental pode querer a ação e assim
384
representar-se os elementos que a fazem delitiva e até pode saber que é um delito.
Agora descrita segundo uma estrutura cravada na a. imputabilidade,
b. dolo e imprudência e c. circunstâncias concomitantes, a culpabilidade é
associada à idéia de reprovabilidade: “culpabilidade − diz FRANK − é
reprovabilidade”.385 Mas o que significa reprovabilidade como conceito
capaz de traduzir a idéia de culpabilidade? Bem, se considerado
isoladamente, em si mesmo − continua FRANK −, tem pouco ou nenhum
significado, mas, se referido ao que quer caracterizar, isto é, saber “quando
383
Sobre la estructura del concepto de culpabilidad, p. 30.
Ibid., p. 34.
385
Ibid., p.39.
384
146
se pode reprovar a alguém por seu comportamento?” ou “que é necessário
para isso?”, o conceito de reprovabilidade permite ao observador [juiz]
valorar se o comportamento de alguém é censurável ou não, tendo em vista
tríplice pressuposto:
1. uma atitude espiritual normal, denominada imputabilidade, que, reconhecida numa
pessoa, permite no geral converter seu comportamento antijurídico em censura. Mas para que tal
censura seja aplicada no caso particular é necessário ademais:
2. Uma concreta relação psíquica do autor com o fato em questão, particularizada no
dolo ou na imprudência. Mesmo com esse elemento, a censura não está fundada. Para tanto é
necessário que concorra ainda:
3. A normalidade das circunstâncias sob as quais age o autor. Assim, será alvo de
censura, em geral, o comportamento antijurídico de quem, sendo imputável, tem consciência ou
podia tê-la das conseqüências do que pratica. Mas o que é possível no geral, em um caso
particular pode ser impossível, por exemplo, não cabe reprovabilidade quando a circunstância
concomitante é representada por uma situação de perigo para o autor ou terceira pessoa e a ação
386
(proibida) executada podia salvá-los.
Com efeito, uma situação de perigo, no pensamento de FRANK, pode
configurar um cenário de anormalidade e “não se pode censurar o autor por
ações realizadas sob circunstâncias de certa anormalidade”.387 Enfim, se à
culpabilidade corresponde a normal constituição das circunstâncias
concomitantes, corresponde à sua negação a constituição de circunstâncias
concomitantes anormais. Desse modo, a normalidade das circunstâncias
afirma a culpabilidade; a anormalidade nega. É neste ponto que a
expressão “causas de exclusão da culpabilidade”, incompreensível ou
incompatível no âmbito da teoria psicológica (da culpabilidade), passa a ter
sentido com sua teoria (normativa), pelo menos “como expressão de
reconhecimento, segundo a qual certas realidades para o direito penal só
têm o significado de uma negação (...) da culpabilidade”.388 Enfim, quando
386
Cf. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad, p.40 s.
Ibid., p. 42.
388
Ibid., p. 45.
387
147
FRANK atribuiu ao conceito de circunstâncias concomitantes anormais
(transformado por ele mesmo finalmente num deficiente domínio do fato
por conta da falta ou limitação da liberdade, depois de tê-lo substituído pela
expressão motivação anormal) o poder de negar a culpabilidade, deixou
implícita a característica da inexigibilidade de conduta diversa implicada
nelas. Mas não a nomeou. Essa tarefa coube a FREUDENTHAL389. Antes,
porém, GOLDSCHMIDT iluminou a seu modo o tema.
4. Culpabilidade como contrariedade ao dever (teoria de
GOLDSCHMIDT). O ponto de partida da reflexão de GOLDSCHMIDT é duplo:
tem raízes no pensamento de KANT (não necessariamente encobertas) e na
obra de FRANK (conforme confessa).390 Serviu-se de KANT com a idéia de
“representação do dever”,391 na qual “dever” é entendido como “...
necessidade de uma ação com respeito à lei”,392 por cujo caminho parece
ter chegado à noção de norma de dever; de FRANK com o conceito de
motivação anormal. O conceito de motivação anormal permitiu a
GOLDSCHMIDT
identificá-lo
como
a
“característica
negativa
da
culpabilidade”, atribuindo-lhe “... o valor de uma causa de desculpa
geral”393 e a posição de “... único pressuposto da não exigibilidade”.394 De
posse desses conceitos − norma de dever e motivação anormal −,
GOLDSCHMIDT desenvolveu sua idéia central: a de que ninguém tem como
cumprir a norma de dever à qual todos se obrigam em condições normais,
se estiver sob o jugo de um quadro de motivação anormal. Nesse caso, a
representação correta da norma de dever fica prejudicada. Foi o quanto lhe
bastou para justificar a doutrina da não exigibilidade.
389
Segundo ZAFFARONI (Tratado de Derecho Penal. Vol.IV. p. 24), com FREUDENTHAL “estas
circunstâncias podem determinar a inexigibilidade e, portanto, a culpabilidade”.
390
La concepción normativa de la culpabilidad, p. 86.
391
Fundamentos da metafísica dos costumes, p. 56.
392
Ibid., p. 45.
393
La concepción normativa de la culpabilidad, p. 86.
394
Ibid., p. 112.
148
Com efeito, segundo GOLDSCHMIDT, a não exigibilidade pertence ao
domínio da motivação anormal e seu oposto, a exigibilidade, ao da
motivação normal. Diferentes domínios de motivação implicam diferentes
valorações. Com motivação normal, a conduta contraria uma norma de
dever; com motivação anormal, a norma de dever é preservada. Não há
como exigir seu cumprimento. Em GOLDSCHMIDT, a norma de dever
aparece ao lado da norma de direito. Elas cumprem, no entanto, funções
diferentes e são independentes. A diferença consiste em que a norma de
direito determina a conduta exterior; a norma de dever exige uma
correspondente conduta interior. Dito brevemente: uma é norma de ação;
outra, de motivação. Mais ainda: a norma de direito pode ser uma proibição
ou ordem; a norma de dever só pode ser ordem. A título de exemplo: assim
como a norma de direito prescreve (como proibição): “Tu não deves
matar”, a norma de dever também prescreve (como ordem): “Faz-te deter
desta atuação da vontade por conta da representação de que ela causaria a
morte de outro”.395 Já a independência da norma de dever está ligada ao
fato (ação) que conduz ao seu reconhecimento. Isso significa que, se, para
GOLDSCHMIDT, a norma de dever somente é exigível no domínio da
motivação normal, por oposição, no domínio da motivação anormal passa a
ser não exigível. É aqui, na motivação anormal, que se estabelece a relação
entre as causas de exculpação e as normas de dever (como exceções).
Enfim, é inexigível a conduta conforme o dever num quadro motivado pela
anormalidade. Falta, nesse caso, poder, e, com ele, o pressuposto que torna
exigível uma conduta segundo a representação do dever. Ali onde implica
motivação anormal com falta de poder, GOLDSCHMIDT parece implicá-la
também com falta de liberdade, entendida como “fonte real das normas de
395
Ibid., La concepción normativa de la culpabilidad, p. 101.
149
‘autoconservação’, cuja consideração leva à limitação da exigibilidade e,
por conseguinte, da reprovabilidade”396
5. Culpabilidade como exigibilidade (teoria de FREUDENTHAL).
FREUDENTHAL parte
não
de
KANT
(como,
sob
certo
aspecto,
GOLDSCHMIDT), nem do senso comum (como FRANK) para falar da
culpabilidade, mas do povo, da opinião pública [de resto, também senso
comum], de seu sentimento ou suscetibilidade à pena que recai sobre um
homem, sem merecê-la: “Ela [a opinião pública] considera insuportável a
condenação de um homem inocente”.397 Em todo caso, mesmo
insuportável, semelhante condenação acaba sendo aceita e não se torna alvo
de crítica. É com base na linguagem que FREUDENTHAL procura explicar
por que isso acontece. Para o povo, a linguagem dos penalistas é
inacessível e sua ciência, oculta. Além disso, (o povo) não ousa criticar as
categorias da especialidade científica, por conta do respeito e do receio que
tem diante dela. Isso cria um abismo entre povo e direito. (Assim, o jurista
considera culpável aquele que comete o fato dolosamente, isto é, com
consciência e vontade; o povo, no entanto, quer apenas saber, se, conforme
a situação geral do caso, qualquer um agiria como fizera o autor, enfim, se
era possível esperar algo distinto do fato cometido. Mesmo quem “nada
podia” fazer para evitar o fato ou quem “atuou como qualquer outro em seu
lugar” pode ser censurado pelo jurista; pelo povo, não. Dessa forma, aquele
que, para o jurista, é culpado, para o povo, é inocente: “a concepção
cultural do povo rechaça (..) considerar culpado aquele a quem,
razoavelmente, não era [possível] exigir que se abstivesse de realizar a
ação”.398) Trata-se, então, de evitar tal abismo. Para tanto, a solução
consiste em formular um conceito próprio de culpabilidade.
396
397
398
Ibid., p. 106.
Culpabilidad y reproche en el derecho penal, p. 63.
Ibid., p. 75.
150
O núcleo da reflexão de FREUDENTHAL gira em torno da idéia de que
culpabilidade expressa sempre um juízo de reprovabilidade emitido sobre
um autor “que agiu assim, embora devesse e pudesse agir de outra
maneira”.399 De acordo com essa visão, o juízo acerca da culpa (lato sensu)
contempla as noções de dever e poder. Se o autor devia e podia, era
exigível dele um comportamento conforme o direito. Isso significa que “é
elemento geral da culpabilidade” a circunstância de que a “representação
do resultado”400 devia e podia funcionar como contramotivo da ação. Nesse
sentido, culpabilidade é exigibilidade. Por oposição, é possível “... rechaçar
a culpabilidade, uma vez que se negue a exigibilidade de outra conduta.”401
Como se vê, FREUDENTHAL parte da exigibilidade para chegar à
inexigibilidade. Esse percurso tem como justificativa o argumento de que
nem sempre é possível uma atuação segundo o dever. É que, de um lado, “o
dever de evitar − diz FREUDENTHAL, citando VON HIPPEL − pressupõe
poder
evitar”,402
e,
de
outro,
o
poder
de
evitar
pressupõe
“indeterminismo”403 [portanto, liberdade]. Logo, sem liberdade não há
poder; sem poder não há dever. Sem nada disso, não cabe “... exigir do
autor uma conduta distinta, adequada ao dever social”.404
Por outro lado, somente o caso concreto, individualizado, é capaz de
revelar se faltou poder ao autor. É este o ponto no qual se articulam as
circunstâncias concomitantes, que, examinadas, permitem que a justiça
seja efetivada, sendo, então, “decisivas para a questão de [saber] se o autor
é culpado ou não, se deve ser condenado ou absolvido”.405 Elas “existem
em concreto, de sorte que, se para a não execução do fato punível fosse
necessária uma medida de resistência que a ninguém se pode exigir
399
Culpabilidad y reproche en el derecho penal, p. 71.
Ibid.
401
Ibid., p. 88.
402
Ibid.
403
Ibid., p. 71.
404
Ibid., p. 72.
405
Ibid., p. 69.
400
151
normalmente, então estarão ausentes, junto ao poder, a censura e, com a
censura, a culpabilidade”.406
Além disso, para FREUDENTHAL, as circunstâncias concomitantes,
onde negam a culpabilidade, tornando inexigível a conduta, alcançam, não
apenas a culpa (stricto sensu), mas o próprio dolo: “Aquilo que é justo para
a culpa” − diz FREUDENTHAL − “não deve resultar injusto para o dolo”.407
Daí, então, pergunta: “Como se pode exigir à forma mais grave da
culpabilidade menos do que se exige à mais tênue?”, para, em seguida,
responder: “Se a inevitabilidade [como expressão das circunstâncias
concomitantes] exclui a culpa, tanto mais haverá de excluir o dolo”.408
Finalmente, o lugar da inexigibilidade. Na doutrina penal é comum
vincular Freudenthal à inexigibilidade como causa supralegal de exclusão
da culpa. Em nenhum ponto da reflexão dele, contudo, algo assim é
sustentado, pelo menos de forma clara e direta. Nem também, por oposição,
é sustentada qualquer idéia que lembre a inexigibilidade como uma
exculpante legal. Na verdade foi ela mesma, a doutrina penal, aquela que
estabeleceu a relação direta entre a inexigibilidade e sua posição como
causa supralegal de exculpação. Trata-se aí, em todo caso, de conclusão
que implica uma leitura completamente legítima dos termos em que
FREUDENTHAL colocou a questão. Com efeito, FREUDENTHAL parece retirar
a inexigibilidade de três fontes: em primeiro lugar, do conceito mesmo de
culpabilidade (pela função que cumpre de negá-la); em segundo lugar, da
jurisprudência do Supremo Tribunal na ALEMANHA (onde cumpriu a
função de suprir limitações normativas, tendo em vista a solução de casos
nos quais, apesar do dolo ou da culpa, era imprópria a reprovação do autor,
pois atuara num quadro de circunstâncias concretas que implicava na
406
Ibid., p.72.
Culpabilidad y reproche en el derecho penal, p. 83.
408
Ibid.
407
152
inevitabilidade de sua ação); por último, do princípio fundamental
impossibilium nulla est obligatio (no qual o direito penal também se apóia,
pelo que ali reflete da “... mais funda natureza das coisas”409).
Apesar de tudo, FREUDENTHAL jamais desdenhou nem do legislador,
nem da lei. Aliás, tinha a esperança de que o direito penal do futuro
incorporasse suas idéias: “Chegará o dia – diz ele – em que o legislador
estabelecerá expressamente que não merece pena criminal quem não pode
evitar, segundo as circunstâncias do fato, sua execução”.410 Nesse dia, seria
alcançada a conciliação entre a consciência do jurista e a consciência do
povo, e isso representaria “... um fausto acontecimento, tanto para o Estado
como
para
o
particular
[indivíduo]”.411
Com
efeito,
o
“fausto
acontecimento” de FREUDENTHAL sofreu toda sorte de boicote. (Na
verdade, outro acontecimento, desta vez, infausto [o nazismo], interrompeu
o sonho de FREUDENTHAL. Foi aí que o pensamento penal alemão prestou
continência à nova ordem, recolheu as asas que abrira nas primeiras
décadas do século XX, e a inexigibilidade de conduta diversa sofreu golpes
de que ainda hoje se ressente.412) Da parte do legislador, sua atitude básica
(no geral) foi a de recusa em promovê-lo; a jurisprudência (pelo menos no
BRASIL) foi tardia em recepcioná-lo; a dogmática jurídica oscilou acerca de
como concebê-lo.
5.1. Do otimismo de FREUDENTHAL à semi-indiferença do legislador.
A rigor, a legislação jamais incorporou o “fausto acontecimento” segundo o
projeto, o lugar no sistema do delito e as proporções talvez imaginadas por
409
Culpabilidad y reproche en el derecho penal, p. 98.
Ibid., p. 97.
411
Ibid., p.100.
412
Cf. HENKEL, Exigibilidad e inexigibilidad como principio jurídico regulativo, p. 58 s. Próximo disso,
ver também HUNGRIA (Comentários ao código penal, vol. I, tomo II, p. 476 s) para quem no Estado
totalitário de que o nazismo era expressão, a doutrina penal alemã criou “uma nova concepção de
culpabilidade”, na base da qual está a idéia de que o “o indivíduo pertence, todo inteiro, ao Estado”. Isso
permite que responda não apenas pela ação ilícita que pratica, mas até pelo seu modo de ser, pelo seu
passado, etc.
410
153
FREUDENTHAL. Na ALEMANHA mesmo, o princípio da inexigibilidade
jamais foi transformado em lei.413 Em todo caso, a lei adotou seu conteúdo
nas exculpantes do estado de necessidade e do excesso na legítima defesa.
Algo semelhante ocorreu na ESPANHA. O código penal desse país
respondeu à idéia de inexigibilidade naquele ponto em que regula o medo
insuperável e declara isento de responsabilidade aquele que age sob seu
domínio.414 Também em PORTUGAL, ainda que à luz e sob a epígrafe do
Estado de necessidade desculpante, o código penal dali tratou do tema na
parte final do artigo 35:
1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e
não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do
agente ou de terceiro, quando não seja razoável exigir dele, segundo as circunstâncias do caso,
comportamento diferente.
No BRASIL, a inexigibilidade mereceu a atenção do anteprojeto de
Código Penal (1963) elaborado por NELSON HUNGRIA. Também no Código
Penal de 1969. Seu tratamento aí, no entanto, carece da autonomia. É que
está alojada na estrutura do estado de necessidade exculpante, onde opera
como fundamento:
Art. 25 - Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou de pessoa a
quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que
não provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao
direito protegido, desde que não lhe era razoavelmente exigível conduta diversa.
Por outro lado, o Código Penal de 1984 reconhece a inexigibilidade
em pelo menos três cenários: dois deles indicados na parte geral e o outro
na especial. Aos cenários da parte geral correspondem a Coação irresistível
e a Obediência hierárquica (artigo 22); ao da parte especial, corresponde o
413
É o que fica claro a partir de BAUMANN (Derecho Penal, p. 226) para quem “a lei não dita normas, por
exemplo, no sentido de que desaparecem a culpabilidade e responsabilidade do autor no caso em que não
pode exigir-se outra conduta”.
414
Cf. Francisco MUÑOZ CONDE, Teoria general del delito, p.151.
154
crime de Favorecimento pessoal (artigo 348, parágrafo 2º). Nada mais do
que isso. De qualquer modo ainda, embora como excludente de ilicitude, o
tema aparece de forma limitada e secundariamente na estrutura do Estado
de necessidade regulado no Código Penal de 1984:
Art. 24- Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de
perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio
ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.
Aplica-se aí, pois a regra é a mesma, o comentário que HUNGRIA
desenvolveu acerca do estado de necessidade como excludente de ilicitude
e sua conexão com a inexigibilidade, tendo em vista o artigo 20 do código
de 1940: “... a inexigibilidade é, precisamente, o fundamento central da
ilicitude que na espécie se reconhece e declara”.415
5.2. Do otimismo de FREUDENTHAL ao posicionamento tardio da
jurisprudência no BRASIL. Foi da jurisprudência que a inexigibilidade
nasceu. Ali é acolhida ainda hoje. Na ALEMANHA com alcance limitado
(não há objeções quanto a seu uso referido à culpa [stricto sensu]); no
BRASIL, com alcance mais amplo, pois tem se estendido ao dolo. Malgrado
tardio, com alguma freqüência faz-se uso da inexigibilidade como
fundamento para solução de problemas concretos submetidos à decisão
judicial. FRANCISCO
DE
ASSIS TOLEDO dá conta de acórdão no STJ, num
recurso do qual foi relator quando era ministro daquela Corte, onde a tese
da inexigibilidade foi admitida para crime de homicídio doloso.416
5.3. Do otimismo de FREUDENTHAL à oscilante posição da dogmática
penal. Na doutrina, os aportes de FREUDENTHAL, que, no geral, são os
aportes de toda a culpabilidade normativa, naquilo que sacrificaram (em
415
Comentários ao código penal, vol. I, Tomo II, p. 271.
Princípios básicos de Direito Penal, p. 329. Também Djalma MARTINS DA COSTA (Inexigibilidade de
conduta diversa, p. 33 ss) dá conta de inúmeros acórdãos nos quais o tema da inexigibilidade de conduta
diversa é recepcionado por alguns Tribunais de Justiça do Brasil, embora rechaçado pelo STF.
416
155
parte) as contribuições da culpabilidade psicológica, foram causa de toda
sorte de discussão. Não podia ser diferente. É que irromperam na área
penal com o vigor de um modelo teórico, que, com pretensões de fundar
uma nova hegemonia, por isso mesmo foi alvo de refutações, embora
também de algum reconhecimento.
Com efeito, no domínio das refutações não foram poucas as críticas
[questões] lançadas contra a inexigibilidade. Elas se agrupam, basicamente,
em torno de três argumentos: um, de corte político; outro, lingüístico; o
último, psicológico. No primeiro aparece a idéia de que a inexigibilidade
representa um atentado ao princípio da divisão dos poderes (ROXIN 417); no
segundo, o enfoque é quanto a seu caráter vazio e indeterminado
(ANTOLISEI418); no terceiro, o apelo é para o sentimento de insegurança
jurídica que provoca (JESCHECK419).
Com o argumento segundo o qual o juiz, ao aplicar a inexigibilidade
como fundamento de sua decisão, atenta contra a divisão dos poderes,
ROXIN remete aquele princípio para os domínios da supralegalidade. A
decisão acerca da punibilidade ou não de uma conduta independe – pensa
ele − da política criminal do juiz; depende, sim, “... das hipóteses
preventivas que têm por base a lei”.420 Com isso, ROXIN quer dizer que está
fora das atribuições do judiciário a criação de lei. Somente lhe compete
aplicá-la. Assim, fora da gramática legal, nenhuma decisão tem como se
sustentar. Por outro lado, ROXIN argumenta ainda que seja possível “...
fundamentar uma isenção de pena imediatamente a partir do princípio da
culpabilidade, inclusive sem necessidade de uma causa legal de
exculpação”.421 Os dois aspectos da argumentação de ROXIN são
417
Derecho Penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito, p. 961.
Ma nuale di Diritto Penale, p. 375.
419
Tratado de Derecho Penal, p. 457.
420
Op. cit., p. 793.
421
Op. cit., p. 960.
418
156
criticáveis. Em primeiro lugar, não parece atentar contra a divisão de
poderes aquele que, embora sem o amparo de uma lei positiva qualquer, faz
a justiça do caso concreto com base na lei da necessidade, que, para além
dos tipos excludentes de ilicitude e exculpantes, só pode ser deduzida a
partir da situação extraordinária vivida pelo autor e que o legislador não
previu, dado que lhe falta o atributo (divino) da onisciência. Assim, é a
excepcionalidade do caso concreto que dá fundamento à lei da necessidade.
Ao argumento de que é inválida porque sua fonte não é o legislador, cabe a
resposta de que ao legislador compete fazer leis de cunho geral e abstrato;
para o caso particular, não. Nesse âmbito, é o juiz que edita (no sentido de
KELSEN) a lei, que, em todo caso, só vale para as partes envolvidas. Se,
como objeção, for levantada a hipótese de que, em KELSEN, mesmo a lei do
Juiz vale apenas quando se apóia numa outra de escalão superior, cabe
ainda responder a partir do próprio KELSEN que a validade da norma
individual não está implícita na validade da norma geral.422 Em segundo
lugar, chegar à isenção de pena a partir mesmo da culpabilidade, sem lançar
mão de uma causa legal de exculpação, apenas repete e reforça
FREUDENTHAL no ponto em que ROXIN pretende refutá-lo. É que, se, para
FREUDENTHAL, culpabilidade é exigibilidade, a negação desta sempre
corresponde à negação daquela. Logo, recorrer ao argumento da falta de
culpa equivale a recorrer ao argumento da inexigibilidade.
Entre os críticos da inexigibilidade é comum questioná-la também
por seu caráter indeterminado ou vazio. Justificam seu ponto de vista sob o
argumento de que lhe faltam limites e pressupostos. É o caso, por exemplo,
de ANTOLISEI. Ele refuta a inexigibilidade pela falta da consistência
necessária para constituir um princípio jurídico superior ao qual possam ser
reconduzidos casos não expressamente contemplados na lei. Assim, o vício
fundamental da teoria da inexigibilidade − acrescenta − localiza-se ali onde
422
Cf. Teoria geral das normas, p. 57 ss; p. 302 s.
157
não arrisca determinar quais são as circunstâncias sob cuja presença dá-se a
inexigibilidade da conduta do agente conforme o preceito, e, na
impossibilidade de reconduzir a um critério unitário as variadíssimas
hipóteses que alcança, recorre a expressões mais vagas ainda, como
“humanamente”, “razoavelmente”, as quais apelam menos à inteligência e
mais ao sentimento do intérprete.
Na base do argumento de ANTOLISEI tem algo de fantasioso. Como
todo bom dogmático, ele rejeita a característica da indeterminação da
norma jurídica como um vício que tem cura. Nem Deus acredita nisso, e ri
dos que professam essa fé. A propósito disso, TEUBNER narra um episódio
na primeira página do seu livro O direito como sistema autopoiético. Num
debate de rabinos acerca de um problema levantado pela interpretação do
Talmude, o rabino ELIEZER, conhecido pelo rigor de seu raciocínio jurídico,
não conseguia a adesão da maioria dos presentes para seus argumentos.
Diante disso, afirmou que um ulmeiro situado fora da sinagoga se
deslocaria, se seu raciocínio estivesse correto. O ulmeiro se deslocou.
Ninguém ficou impressionado. ELIEZER insistiu e disse que, se estivesse
com a razão, o curso de um rio vizinho se inverteria. O curso do rio se
inverteu. ELIEZER ainda disse que os muros da escola rabínica se
desmoronariam. Os muros desmoronaram. Nada disso impressionou os
rabinos. ELIEZER, então, apelou e disse que o Céu faria a prova de sua
razão. Uma voz celeste confirmou a opinião dele. Novo fracasso. Os
rabinos também discordaram da voz divina, sob o argumento de que Ela
mesma escrevera no Torah, no MONTE SINAI, que todos devem se inclinar
perante a opinião da maioria. Não restou a Deus senão rir, dizendo: “Os
meus filhos venceram-me, os meus filhos venceram-me (...)”.423
423
P. 1.
158
Enfim, a inexigibilidade também é atacada pelo que implica de
insegurança jurídica. Este é o argumento de JESCHECK. Para ele, o risco,
nesse caso, está ligado à criação de uma jurisprudência desigual, portanto,
sem uniformidade, debilitando o efeito de prevenção geral do direito penal.
O ponto de vista de JESCHECK resiste pouco a uma crítica. Na base dele está
a idéia de que os tribunais podem partilhar entre si representações
inequívocas acerca das regras que orientam suas decisões, desde que sejam
claras, objetivas, de conteúdo bem determinado. É o ideal que deriva da
velha crença no in claris cessat interpretátio. Contudo, não é bem assim.
Regras claras ou determinadas não eliminam, nem regras indeterminadas
conduzem à insegurança jurídica. (Nenhuma lei é fechada à exploração do
seu sentido, porque dela irradia a luz da certeza. A linguagem da lei é
formada de palavras que são naturalmente ambíguas e, desse modo,
impróprias para descreverem com precisão aquilo que regula. Talvez HART
tivesse pensado nisso ao afirmar que “... todas as leis têm uma penumbra de
incerteza em que o juiz tem de escolher entre alternativas”.424) A
insegurança é produzida mesmo pela inexistência da regra.
Já no domínio do reconhecimento ou daqueles que aderiram à
inexigibilidade 2 (dois) argumentos podem ser destacados. Um, é jurídico;
o outro, embora jurídico também, tem fortes raízes na lógica. O primeiro
identifica na inexigibilidade um princípio regulativo (HENKEL). O segundo
percebe nela possibilidades de uso apenas pela via da analogia (SCARANO).
Aqui será examinado apenas o argumento jurídico.
Com HENKEL o par exigibilidade/inexigibilidade foi objeto de novos
desenvolvimentos. Ele não parte do senso comum (como FRANK), das
categorias kantianas (como GOLDSCHMIDT425) ou do povo (como
424
O conceito de direito, p. 17.
Sem embargo desse aspecto, ali onde HENKEL distingue o normativo do regulativo tomou a distinção
kantiana entre princípios constitutivos e regulativos por modelo, segundo observam José Luiz GUZMÁN
425
159
FREUDENTHAL); parte da idéia de que aquele par cumpre um papel nos
diversos setores do direito, entre eles o civil e o administrativo. Esse papel
tem como fundamento a compreensão de que as regras do direito só têm
força obrigatória nos casos previsíveis; nos imprevisíveis, não. Os casos
previsíveis tornam exigível o dever de prestar, tolerar, etc.; isso não se
aplica, no entanto, aos imprevisíveis. Dessa forma, a exigibilidade vinculase ao campo dos limites do dever, para determiná-los; e seu oposto, a
inexigibilidade, ao campo em que o dever não pode mais ser cobrado. Com
efeito, o uso da fórmula da exigibilidade – sustenta HENKEL – verifica-se
nos âmbitos da doutrina, da aplicação da lei e da atividade do legislador.
No âmbito da doutrina, a fórmula ajudou no afrouxamento da regra pacta
sunt servanda. Isso se deu – argumenta ele − quando a esta máxima foi
oposto o entendimento de que, se entre a celebração do contrato e a data do
cumprimento de uma obrigação em curso se produz uma alteração radical
da base real do contrato, por exemplo, como conseqüência de uma guerra,
uma revolução, um transtorno econômico (...), o dever de prestação de um
devedor teria de ser limitado ou francamente negado, quando e até o ponto
em que o conteúdo da prestação, devido à mudança imprevisível do
vinculo, se considere como inexigível. Do mesmo modo, no âmbito da
aplicação da lei, o uso da exigibilidade ocorre mais particularmente quando
aquela emprega clausulas gerais, por exemplo, a de justa causa. Isso
implica a necessidade de uma delimitação mais concreta de seu sentido. É o
que se dá quando a lei admite uma revogação extraordinária de certos
contratos, por justa causa. Saber e decidir se há ou não justa causa no caso
concreto demanda o manejo do critério da exigibilidade. Também o
legislador faz uso desse critério e “com isso revela – pensa HENKEL – que
lhe é impossível delimitar (...) o regime de deveres em âmbitos duvidosos,
DALBORA E GONZALO D. FERNANDEZ no estudo introdutório do livro de HENKEL, Exigibilidad e
inexigibilidad como princípio jurídico regulativo.
160
deixando a cargo do juiz a determinação segundo a circunstância do caso
concreto”.426
Depois de articular o uso da exigibilidade com os âmbitos centrais da
atuação do direito – criação da lei (pelo legislador), aplicação da lei (pelo
juiz), doutrina da lei (pelo jurista) –, HENKEL considera ter demonstrado o
significado metodológico do conceito de exigibilidade. Trata-se − segundo
ele − de um princípio regulativo, que como tal não indica o conteúdo
preciso da decisão, mas sim o caminho que leva a ela, orientando para que
se estabeleçam os limites dos deveres jurídicos segundo o conjunto das
circunstâncias do caso singular. Se for esta a significação da exigibilidade
para o direito em geral, não parece haver dúvida – conclui HENKEL − de
que o direito penal igualmente a tem.427
Mas, aplicada ao direito penal, a exigibilidade (como princípio
regulativo) já não ocupa mais entre as formas e no sistema do delito o
mesmo lugar que lhe atribuíram os pioneiros da doutrina. Com efeito,
HENKEL redimensionou o espaço da exigibilidade. Para tanto, de um lado,
estendeu-a a todas as formas delitivas, sejam comissivas (dolosas e
culposas), sejam omissivas (próprias [dever de ajuda] e impróprias [dever
de garante]) e nisso é diferente, pelo menos de Frank; de outro, processou
um duplo deslocamento no sistema do delito. Em primeiro lugar, trouxe a
exigibilidade de fora para dentro do direito penal. Assim, o reverso dela,
isto é, a inexigibilidade, deixa de ser causa supralegal de exculpação. Em
segundo lugar, distribuiu a exigibilidade em todos os escalões do sistema
do delito. Em outras palavras, tirou-a da culpabilidade, na qual sempre
esteve alojada, para servir também aos escalões do injusto, correspondentes
à tipicidade e ilicitude. Justificou essa operação com idéia de que a
426
427
Exigibilidad e inexigibilidad como principio jurídico regulativo, p. 67.
Ibid., p. 73.
161
exigibilidade é menos e mais do que foi concebida. Ela é menos porque não
ocupa a hierarquia de causa supralegal de exculpação; ela é mais porque
está a serviço não de um, mas de todos os escalões do delito.
O estatuto de princípio regulativo conferido à exigibilidade é
deduzido de uma aproximação que HENKEL faz dele com as cláusulas
gerais. Assim, segundo HENKEL, detrás do conceito de cláusula geral se
ocultam dois fenômenos basicamente distintos e contrapostos, a saber, o
normativo e o regulativo. Normativa é a fórmula que contempla um
conteúdo de valor e uma medida de julgamento; regulativa é a fórmula que
não contempla conteúdo de valor nem medida de julgamento, ao contrário
é neutra e formal. Partindo daí, a exigibilidade – finaliza HENKEL – “não é
um conceito normativo, mas um princípio regulativo no sentido
assinalado”.428
Crítica ao vazio de HENKEL. O defeito da teoria de HENKEL não
parece ligado à extensão dos horizontes que reivindica para a
inexigibilidade, fazendo-a escapar dos marcos da culpabilidade, para inserila também nos domínios da tipicidade e ilicitude, nem, de igual modo, às
articulações com todas as formas do delito. Ele se manifesta quando
HENKEL aproxima a inexigibilidade da idéia de cláusula geral para, em
seguida, negando-lhe qualquer conteúdo, afirmá-la como alguma coisa
neutra, formal e vazia. Com efeito, para salvar a inexigibilidade, HENKEL
desarmou a rede em que se amparava e da qual é inseparável, pois é
constituída de conceitos a ela conexos como liberdade, poder,
autodeterminação, vontade, resistência humana, etc.
Ora, para salvar a inexigibilidade, parece dispensável declará-la
vazia. Afinal, o vazio se aproxima do nada e consta que, do nada, nada se
428
Exigibilidad e inexigibilidad como principio jurídico regulativo, p. 127.
162
cria. Para salvá-la, é suficiente reconhecê-la como categoria ainda sem
lugar definido nos domínios da legalidade estrita, cujo uso, no entanto, é
sustentável no âmbito da argumentação jurídica. Como isso é possível?
163
Capítulo VII
A inexigibilidade como solução
1. A culpabilidade sob controle (da dogmática tradicional). O
direito penal se move numa via de mão dupla: de um lado, sua atenção é
voltada para a comunidade; de outro, para o indivíduo. No primeiro caso,
proíbe e ordena condutas, bem como pune a comissão daquelas e a omissão
destas, tendo em vista a segurança geral; no segundo, descreve permissões
e exculpantes, tendo em vista a segurança individual. (Segurança geral e
segurança individual implicam aqui o sentido, respectivamente, de uma
liberdade programada como possível para todos e para um.) As permissões
negam a ilicitude do fato típico. Na história do direito penal o registro delas
é recorrente, por exemplo, as correspondentes à legítima defesa e ao estado
de necessidade. As exculpantes negam censura ao autor, apesar do fato
típico (e ilícito). O registro das exculpantes, no entanto, é mais tardio. Data
do nascimento do conceito de culpabilidade. A descoberta (no sistema do
delito) da culpabilidade tornou possível, como conseqüência, a descoberta
164
das exculpantes. Estas, ao cumprirem a função de negar aquela, garantem
também a segurança como proteção da liberdade individual.
Ocorre que o conceito de culpabilidade opera num domínio que
envolve pessoas normais (= sadios), anormais (= enfermos ou mais
exatamente neuróticos e psicóticos) e menores. Os normais são capazes de
culpa; os anormais (assim considerados sempre segundo o grau da
enfermidade) e menores, não. Contudo, mesmo os normais podem ser
exonerados de culpa, na hipótese de terem praticado um ilícito, se lhes falta
ou consciência (do injusto) ou vontade (livre). O consenso em torno deste
ponto é bastante amplo. O dissenso se instaura em duas esferas: primeiro,
quando a dogmática penal examina e discute sob que pressupostos pessoas
normais podem reivindicar exoneração de culpa; segundo, quando a técnica
jurídica fixa as condições ou regras em que dita exoneração se opera. Não é
o caso de tratar aqui em detalhe a configuração do dissenso. É suficiente
referir que o tratamento da culpabilidade, sob o aspecto das causas de sua
exclusão, seja no âmbito da legalidade, seja no da dogmática, varia
conforme variam respectivamente os códigos penais de diferentes países e
os diversos modelos teóricos. Sem embargo, ainda sobra algum espaço para
discutir não acerca de códigos penais (e suas variações), mas de modelos, a
saber, o psicológico, o normativo e o finalista.
No modelo psicológico, onde o que liga o agente ao fato é a
disposição interna daquele, a culpabilidade é reconhecida quando há dolo
ou culpa como espécies dela. Nesse caso, as exculpantes são concebidas
tomando-se por base situações nas quais não se configura nenhuma
daquelas espécies. Exemplos disso são: o caso fortuito, a força maior, o
erro de fato, etc. Já com o giro processado pelo modelo normativo [em que,
de um lado, o dolo e a culpa, de espécies, passam a ser elementos e, de
outro, a ligação entre o agente e o fato passa a ser feita pela
165
reprovabilidade], seus teóricos ganharam dois problemas: o primeiro
consistia em mostrar que a culpabilidade não podia ser esgotada nos
conceitos de dolo e culpa. Havia outras situações em que, apesar do dolo e
da culpa, o agente não era culpável. A partir disso, o segundo problema
consistia em como identificar tais situações e qual o caminho para declarar
o agente exculpado. O primeiro problema ficou bem resolvido: aquele que
pratica o fato nos marcos do estado de necessidade o faz com dolo ou
culpa; no entanto, não é culpado. Em torno desse ponto a dogmática penal
se uniu. Mas não se uniu ou formou qualquer consenso em torno da solução
apresentada para o segundo problema, isto é, aquela que fez das
circunstâncias concomitantes e seus reflexos na criação de um quadro de
motivação anormal, pressupostos para um juízo de inculpabilidade com
apoio na inexigibilidade. Mesmo os normativistas puros (ligados à teoria
finalista da ação), assim chamados porque depuraram a culpabilidade do
dolo e da culpa, embora tivessem levado em conta a exigibilidade para
conceber a culpabilidade, não levaram em conta a inexigibilidade para
excluí-la, salvo como um princípio imanente nas causas previstas na lei.
Tudo isso permite considerar que a dogmática penal, quando se volta
para o tema da culpabilidade, costuma armar algo como uma cilada. De um
lado, sustenta a tese de que a culpabilidade ainda é um campo aberto para
descobertas; de outro, sua atitude é de reserva quando, por exemplo, o tema
da inexigibilidade de conduta diversa é objeto de pesquisas conducentes a
situá-la no posto das exculpantes. É como se, por um estranho propósito,
objeção ou desconfiança quanto aos fundamentos capazes de justificá-la e,
assim, garantir-lhe um lugar na ciência penal, sinalizasse para limites que
de nenhum modo devem ser questionados. Isso ocorre, apesar da crença
generalizada de que não são raras as situações para as quais as demandas
por soluções justas restam insatisfeitas por falta de provisões normativas
apropriadas.
166
2. A culpabilidade sob o fogo inimigo (do funcionalismo). À
margem dessa discussão, mais recentemente instaurou-se outra cuja linha
orienta-se para pôr em xeque (embora de forma semi-encoberta) a própria
culpabilidade. Funcionalistas como CLAUS ROXIN e GÜNTHER JAKOBS são
representativos dessa tendência; cada um deles, no entanto, se apóia em
diferentes argumentos. ROXIN parte da premissa de que cada categoria do
delito − tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade − deve ser examinada
“sob o ângulo de sua função político-criminal”.429 Nesse sentido, os tipos
servem para concretizar a idéia do nullum crimen; a antijuridicidade
constitui o âmbito da “solução social de conflitos”; a culpabilidade serve
para responder à questão de saber “até que ponto é preciso aplicar a
pena”.430 Aqui interessa examinar apenas a função da culpabilidade. A
rigor, a concepção de culpabilidade e aquilo que fundamenta sua exclusão
foram bastante alteradas no sistema de ROXIN. O clássico “poder agir de
outro modo”, em cuja base se conecta a idéia de liberdade, não serve mais
para afirmá-la ou excluí-la. É que, sob esse aspecto, ROXIN se declara um
agnóstico, pois recusa a solução do livre-arbítrio, tendo em vista sua
natureza indemonstrável, para aceitar apenas aquilo que denomina de
exeqüibilidade normativa (um conceito cujo conteúdo aponta para a idéia
de capacidade de controle e possibilidade de comportamento conforme a
norma) por sua qualidade de fenômeno empírico e, como tal,
demonstrável.431 Com efeito, a culpabilidade e sua função para ROXIN são
associadas às necessidades de prevenção (geral e especial). Mas a
culpabilidade, por ela mesma, não implica já na resposta punitiva; ela atua
em conjunto com considerações político-criminais, apoiadas na idéia de fim
da pena. Desse modo, somente a combinação entre culpabilidade e
necessidade preventiva conduz à responsabilidade jurídico-penal. A
429
Política criminal e sistema jurídico-penal, p. 29.
Ibid., p. 30.
431
Cf. Derecho Penal, p. 807 ss.
430
167
conseqüência disso consiste numa inversão da posição da culpabilidade: de
um conceito autônomo no sistema do delito passa à condição de
pressuposto da responsabilidade. Por outro lado, as considerações acerca
das necessidades preventivas não se vinculam às representações políticocriminais do juiz, mas a parâmetros que se extraem da própria lei.432 A
repercussão desse ponto de vista no âmbito da exclusão de culpabilidade
pela via da inexigibilidade é direta:
... a inexigibilidade não poderá ser considerada como causa geral de exclusão de culpabilidade
nos delitos dolosos, porque, neste campo, o legislador regulou individualmente as situações de
responsabilidade excluída, tomando uma decisão (segundo o seu entendimento dos fins da pena)
433
que não pode ser corrigida pelo juiz.
JAKOBS adota como ponto de partida a idéia de que normas
configuram a sociedade como meio de comunicação entre pessoas
[personas]. Normas − para ele – constituem um “esquema determinante de
interpretação do mundo”,434 permitindo que expectativas (não de indivíduos
como natureza, mas de pessoas como construção social) sejam orientadas
no âmbito dos contatos sociais. A orientação só resulta possível se não se
toma em conta topar “a cada momento com qualquer comportamento
imprevisível de outra pessoa”, pois, “do contrário – completa JAKOBS –
cada contato social se converte em um risco imprevisível”.435 Apesar das
normas orientando os contatos, as decepções sempre são possíveis. Isso
afeta a expectativa de que a outra parte “respeitará as normas vigentes”.436
Por isso mesmo, no caso de decepção, não cabe renunciar a uma
expectativa normativa. Esta deve ser mantida contrafaticamente. Afinal, “o
decisivo como falha não está na expectativa do decepcionado, mas na
432
Cf. ibid., p. 793.
Política criminal e sistema jurídico penal, p. 95.
434
Sobre la génesis de la obligación jurídica, p. 40.
435
Derecho penal: parte general. Fundamento y teoria de la imputación, p. 9.
436
Ibid., p. 10.
433
168
infração da norma por parte de quem decepciona”.437 Daí, o determinante
no significado da pena − para JAKOBS – não é o comportamento do infrator,
mas a própria norma. Ela, a pena, é uma réplica à infração da norma, e “sua
missão é reafirmar a vigência da norma”.438
No modelo teórico concebido por JAKOBS, a sociedade então foi
criada por normas, mantém as normas e vê-se garantida por elas. Sob esse
aspecto, a função do direito penal é garantir, não bens jurídicos, mas a
identidade normativa da sociedade. O delito provoca a quebra dessa
identidade. Dito de outro modo, quem o pratica contradiz a norma e a pena
surge como a resposta capaz de confirmá-la. Para descrever esse percurso
dialético, JAKOBS recorre à metáfora bíblica do pecado original. Deus
proibiu que Adão e Eva comessem do fruto da árvore do bem e do mal. A
desobediência do casal contradisse a prescrição divina. Não restou ao
Criador, para garantir sua identidade normativa, senão reagir com a
punição.439 O episódio, embora extraído de um contexto religioso, permitiu
a JAKOBS mostrar como a pena cumpre a função de mecanismo capaz de
corrigir um defeito de comunicação (num contexto social). O crime é um
defeito de comunicação (dá-se, com ele, que a norma deixou de ser
reconhecida como orientação), e, como tal, uma manifestação de
infidelidade ao direito. É nesse ponto que JAKOBS articula a idéia de
culpabilidade: “o juízo de culpabilidade só pode ser um juízo acerca da
falta de consideração da norma por parte do autor, isto é, acerca de sua falta
de fidelidade ao ordenamento jurídico”.440 Na culpabilidade como
infidelidade ao direito, os estados psíquicos do autor – dolo e consciência
da ilicitude, por exemplo – são pouco relevantes para a formação de um
juízo acerca dela, salvo na posição de indicadores de um déficit de
437
Ibid., p.10.
Ibid., p. 13.
439
A imputação objetiva no Direito Penal, 2000, p. 13.
440
Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal, p. 23.
438
169
lealdade. O decisivo para o conteúdo do conceito de culpabilidade é regido
pelo contexto normativo, pela concreta estrutura social, e não pelo contexto
dos fatos psíquicos.441
Além de exonerar a dimensão psíquica de tarefas centrais na
culpabilidade, JAKOBS exonera também o livre-arbítrio, pois se trata de
conceito que carece − segundo ele − de dimensão social. Com efeito,
JAKOBS explica que há uma plausibilidade psicológico-social na inculpação
ou renúncia dela, isso no sentido de que existe uma disposição geral de
aceitar ou não a responsabilidade na situação em que o autor se encontra:
“Esta disposição se apóia na tolerabilidade do alcance da responsabilidade,
e existe com independência de suposições sobre se o autor, no momento do
fato, está dotado de livre-arbítrio”.442 Sem embargo, JAKOBS não resiste e
ironiza a relação entre culpabilidade e liberdade; afinal, segundo ele,
“aquilo pelo que o autor responde não necessita de supervisão alguma por
parte de outras pessoas”, e deduz daí que o âmbito em que o autor pode ser
culpável é “... âmbito livre, de autodeterminação, não no sentido de livrearbítrio, mas no sentido de falta de obstáculos juridicamente relevantes para
seus atos...”.443 Por outro lado, um juízo de culpabilidade (um juízo ideal,
que não é de ninguém e sim da norma) como infidelidade ao direito implica
na falta de um contexto exculpante: “um contexto exculpante existe quando
não se pode exigir que se obedeça à norma...”.444 O reconhecimento de tal
contexto, no entanto, não toma em conta o autor perturbado em seu
coeficiente psíquico, toma em conta apenas a situação na qual atuou
injustamente:
A obediência à norma é inexigível quando a motivação não jurídica do autor imputável, e
que não respeita o fundamento de validez da norma, pode ser explicada por uma situação que
441
Ibid.
Derecho Penal: parte general. Fundamentos y teoria de la imputación, p. 584.
443
Ibid., p. 586.
444
Ibid., p. 567.
442
170
para ele autor constitui uma desgraça, e que também em geral se pode definir como
445
desgraça...
E na origem da qual, aliás, o autor de nenhum modo interveio.
JAKOBS dá como exemplo de situações assim o estado de necessidade
exculpante e o excesso na legítima defesa, previstos no código penal
alemão. Ademais, acerca daquilo que denomina de inexigibilidade
inespecífica como causa de exculpação, JAKOBS tem a compreensão de que
é compatível com seu conceito funcional de culpabilidade. É que, segundo
ele, pode dar-se uma exclusão geral de culpabilidade com os seguintes
requisitos: 1. deve existir uma situação de conflito; 2. que faz aparecer o
fato, valorando-o objetivamente, como solução adequada; 3. sem que o
autor tenha sido o responsável pela situação do conflito. Tendo em conta
tais limitações, nada se opõe à analogia com os § 33 e § 35 do código
alemão. Não vê nisso, no entanto, qualquer efeito prático. Afinal, falta-lhe
âmbito de aplicação, já que a regulação legal cobre de modo
suficientemente elástico os âmbitos relevantes.446
3. Crítica ao funcionalismo. O modelo de ROXIN, partindo da
norma jurídica, como o de JAKOBS, partindo do sistema social, implica num
retorno à responsabilidade pelo resultado. Mais particularmente no caso de
JAKOBS, tal retorno implica ainda na pretensão de mudar o paradigma da
ciência penal. O custo epistemológico disso é representado pela morte do
indivíduo (tal como fora configurado no início dos tempos modernos e
recepcionado pela razão penal). O lugar deste, no entanto, passou a ser
ocupado por pessoas. A relação do indivíduo (acompanhado de seu mundo
subjetivo) era com o mundo real empírico; a relação de pessoas (afastadas
do mundo subjetivo) passa a ser com o mundo das normas. (Um mundo no
qual todos são submetidos a um destino normativo, em que ninguém é mais
445
446
Ibid., p. 601.
Ibid., p. 716.
171
do que um papel [rol], pode ser tão tedioso quanto insuportável. Com
efeito, um destino traçado pelas normas, longe de sedutor, pois não dá lugar
nem para o herói, cuja posição era garantida pelo destino cósmico dos
gregos antigos, parece estar próximo do terror, pois é disso que se trata
quando não se toma em conta, em contextos normativos, a subjetividade do
ser humano.) Talvez nesse ponto possa ser identificada a marca mais
original da proposta metodológica de JAKOBS: a criação de um terceiro
mundo.447 Ele parece reconhecer a existência de um mundo empírico
(povoado de indivíduos), de um mundo subjetivo (alojado nos indivíduos),
mas sua proposta só lida com o terceiro mundo (constituído de normas).
Todo o jogo de comunicação mediado pelas normas passa por aí. Nesse
jogo as expectativas são normativas e têm de ser estabilizadas a qualquer
custo, isto é, o que vale é a eficácia de um sistema que reivindica
confirmação toda vez que é desconfirmado pela infração. A conseqüência
disso está nas expectativas de justiça que parecem não ter mais lugar no
Direito Penal. Aliás, é o próprio JAKOBS quem chama atenção para a
novidade: “... já não se defende na doutrina penal o fomento da justiça
como fim independente”.448
Bem, esse ponto de vista pode ter algum sentido no sistema jurídico
de um país cuja constituição seja indiferente ao problema da justiça como
valor. Não terá sentido, no entanto, em países cuja constituição manda que
a justiça como valor seja efetivada. JAKOBS mesmo diz em outro ponto: “O
direito penal se legitima formalmente mediante a aprovação das leis penais
conforme a constituição”.449 Isso só pode significar que o direito penal se
configura não a partir de si mesmo, mas da constituição. Nesse caso, a
447
A idéia de terceiro mundo aqui é inspirada em Karl POPPER (Conhecimento objetivo, p.108 ss) para
quem os três mundos são: “... primeiro, o mundo de objetos físicos (...); segundo, o mundo de (...) estados
mentais, ou talvez de disposições comportamentais para agir; e, terceiro, o mundo de conteúdos objetivos
de pensamento, especialmente de pensamentos científicos...”.
448
Derecho Penal: parte general. Fundamentos y teoría de la imputación, p. 20.
449
Ibid., p. 44.
172
palavra “configura” tem sentido amplo e alcança a própria idéia de limites
do sistema penal. Onde tais limites estão localizados? Ora, parece que ali
onde se admite que a constituição é o lugar onde são definidos os limites do
sistema jurídico, entendido como totalidade e constituído de várias partes, e
se admite também que o direito penal é parte do sistema jurídico, tem-se de
admitir como conseqüência lógica que os limites do direito penal são
definidos pela constituição. A implicação disso está em que, se num código
penal, o do BRASIL, por exemplo, o estoque de normas exculpantes não
responde às demandas de justiça que a natureza do caso concreto reclama e
se a constituição que lhe dá validade elege a justiça como um valor diante
do qual a indiferença do aplicador da lei é um sem sentido lógico, isso
significa que a lacuna do código penal equivale a um silêncio que implica
no consentimento de produzir justiça a qualquer custo, e não a qualquer
custo recompor a vigência da norma. O preâmbulo da Constituição do
Brasil (1968) assegura que liberdade, segurança e justiça são valores
supremos de uma sociedade fraterna. A Constituição ainda assegura que
justiça como valor supremo é uma prestação cujo encargo cabe ao
Judiciário e exige dele que fundamente todas as decisões. Qualquer que
seja a decisão tomada no âmbito desse poder ligada à área penal afeta a
liberdade e a segurança (também valores supremos). Para garantir o
controle do caráter efetivo de todos esses valores (liberdade, segurança e
justiça), a Constituição quer que sejam levados em conta como fundamento
do ato de decidir. Ora, na origem de todo fundamento há um argumento.
Para esse fim, aliás, DWORKIN chama a atenção para o fato de que o direito
é uma prática argumentativa.450 Argumentos, então, não importa se
deduzidos do sistema penal ou inspirados na prática penal mesmo, desde
que realizem a idéia de justo, garantem também a vigência do direito penal.
Pois bem, a inexigibilidade é um conceito referido à práxis penal. Ele foi
450
Cf. O império do direito, p.17.
173
concebido num cenário pobre em possibilidades normativas e impróprias
para oferecer alternativas para a justiça do caso concreto. É o que explica
que somente tenha restado ao Tribunal alemão (onde foi descoberto)
manejá-lo como argumento que iluminava a solução reclamada.451 Parece
pouco, mas é disso que se trata aqui: conferir à inexigibilidade uma solução
que tome em conta sua dimensão como argumento num quadro
problemático. Como justificar essa posição?
4. A inexigibilidade fora do sistema penal. Ficou assinalado até
aqui que, nos marcos tradicionais da dogmática penal, o estatuto teórico da
inexigibilidade é difuso. As soluções apresentadas para demarcar seu
alcance, localizá-la no sistema do delito e definir seu conteúdo têm sido
objeto de profundo dissenso. Uma explicação para isso pode estar ligada à
reduzida autonomia do conceito. Nos códigos penais, por exemplo, o
brasileiro (1984), ora fica encoberto na estrutura do estado de necessidade,
ora como princípio imanente de todas as exculpantes (coação irresistível,
obediência hierárquica, etc.), ora ainda como fundamento do tipo penal
(favorecimento pessoal); mesmo as soluções indicadas por GOLDSCHMIDT e
FREUDENTHAL, cujos esforços também reivindicavam libertar o conceito da
estrutura limitada do estado de necessidade justificante do código penal
alemão de 1871 (§ 52 e § 54), inserindo-o nos domínios da culpabilidade,
fizeram-no dependente, seja do fenômeno do poder (o dever só é exigível
de quem pode cumpri-lo), seja de um princípio fundamental que apela para
a natureza humana. Enquanto isso, a solução de HENKEL, ao invés de salvar
o conceito, tornou-o uma espécie de herdeiro sem legado, isto é, sem o
aporte de conceitos dos quais a inexigibilidade nunca esteve separada, por
exemplo, liberdade, autodeterminação, etc. Já no âmbito do pensamento
penal mais recente, a inexigibilidade foi parcialmente admitida por ROXIN
451
Cf. supra, p. 138 s.
174
(considera-a aplicável nos delitos culposos) e tornada possível na teoria,
mas inútil na prática, por JAKOBS.
Pois bem, fora da dogmática penal e sua tradição, mas sem perdê-la
de vista, e fora ainda do pensamento penal mais recente, mas sem perder de
vista a dimensão comunicativa da norma que lhe empresta JAKOBS, embora
ele mesmo não seja o ponto de partida aqui, outros caminhos podem ser
explorados. Isso se dá porque não convém aqui enquadrar ou manter a
inexigibilidade no interior do sistema penal, embora desenvolvimentos
nessa trilha sejam sempre sustentáveis. Portanto, não é a idéia de sistema
que inspira a busca de uma solução para o problema da inexigibilidade. A
hipótese a ser adotada se refere unicamente ao uso da inexigibilidade num
quadro problemático, em que o sistema vasculhado nas suas possibilidades
e limites já não dá respostas, e, apesar disso, busca-se justiça agora segundo
uma visão que torna possível encontrá-la no argumento. Dir-se-ia que nisso
há um retorno àquilo que BECCARIA um dia hostilizou e deu o nome de
“sedução da eloqüência”.452 (O marquês referia-se, com essa expressão,
certamente, à retórica como arte de argumentar praticada pelos antigos.)
Pode até ser. Afinal, o cálculo segundo o more geométrico ao qual
BECCARIA associou a promessa de segurança, falhou. Com isso, justifica-se
um exercício de regresso a um procedimento ou modo de pensar que os
modernos enterraram com a própria tradição. De qualquer modo, o decisivo
aqui é assegurar a confiança não na legalidade secamente considerada, mas
na idéia de justiça que a ela se vincula pela via mais ampla do direito. Com
isso, a legalidade pode até ficar enfraquecida de algum modo, mas o
direito, não. Afinal, se direito não é justiça, no sentido de que não são a
mesma coisa, pelo menos o fim dele (também) é a busca de justiça. Ora, o
melhor caminho para a busca de justiça é o discurso, a linguagem, cuja
matéria-prima é o argumento. Logo, dá-se aqui a renúncia ao sonho de
452
Cf. Supra, p. 11.
175
parte da dogmática jurídica de transformar a inexigibilidade em norma ou
instituto do sistema penal, para manejá-la no campo da argumentação. Para
que se dê conseqüência a essa transição, trata-se, previamente, de cumprir
aqui duas tarefas: uma é a de mostrar, com LUHMANN, que o direito opera
com dois programas, o condicional e o finalista;453 outra é passar a
inexigibilidade de axioma, princípio, etc., para a posição de topoi, isto é, de
um ponto de vista que serve como apoio para a argumentação.
5. A dupla programação do direito. LUHMANN, em quem, aliás,
JAKOBS se inspirou para uma das premissas de seu modelo, aquela que
associa o direito não a sistemas psíquicos, mas ao sistema social como
comunicação, certamente não o inspirou acerca do problema da justiça.
Isso não significa que LUHMANN problematizou a idéia de justiça; significa
apenas que seu modelo de análise do direito permite entrevê-la. Pois bem, a
busca de justiça aqui (pelo manejo da idéia de inexigibilidade) parte de
LUHMANN, mais particularmente da idéia segundo a qual o sistema jurídico
toma por base operações que se articulam no código lícito/ilícito. Este
código, aliás, em nada lembra uma norma e em si mesmo é vazio (uma de
suas particularidades é a de ser manipulável independentemente do
conteúdo de cada comunicação). Sob esse aspecto, programas cumprem a
função de dar conteúdo ao vazio. A constituição (bem como as regras de
modo geral) e a jurisprudência são programas conhecidos. Eles podem ser
condicionais ou finalistas. O direito opera, sobretudo, com o programa
condicional (se /então). Nesse caso, as regras para a decisão são formuladas
de tal maneira que tornam possível uma dedução a partir dos fatos: “... se
está presente a realidade a, então a decisão x é conforme o direito; senão,
não”.454 Mas opera também com o programa finalista. Aí as regras traçam
objetivos, metas, fins, que devem ser alcançados. O artigo 3º da
453
454
Cf. Sociologia do direito I, p. 103.
Niklas LUHMANN, O direito da sociedade, p. 60.
176
Constituição do Brasil é exemplo disso. Alguns objetivos são apontados ali
como fundamentais para a REPÚBLICA FEDERATIVA
DO
BRASIL, por
exemplo, a construção de “uma sociedade livre, justa e soberana”. De igual
modo, a Lei n.º 7.210, já no artigo 1º revela que “tem por objetivo efetivar
as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições
para a harmônica integração social do condenado e do internado”. A
existência de tais programas permite dizer que uma lei pode ser eficaz do
ponto de vista da condicionalidade, mas ineficaz do ponto de vista dos fins.
Com efeito, não se discute aqui o direito penal do ponto de vista da
condicionalidade. Sua eficácia (sempre dependente dos fatos), nesse setor,
está fora de questão. O que se discute é o direito penal como programa
finalista. Nesse setor, a eficácia do direito penal sempre estará sob
suspeição ali onde o estoque de normas exculpantes for impróprio para
atender às demandas de soluções justas em casos fora da rotina. Num
cenário como esse, [estritamente considerada] a lei penal deve renunciar à
sua posição ordenadora (de onde reivindica para si o monopólio de todos os
pontos de partida), para permitir que outros mecanismos sejam acionados.
6. A tópica não foge de problemas. Aqui o uso de mecanismos não
necessariamente legais para solução de conflitos implica numa inversão: o
ponto de partida que conduz à decisão judicial deixa de ser a lei e seu lugar
é ocupado pelo problema. O abandono da lei opera-se em casos-limite, por
oposição a casos-padrão. Isso se dá porque nesses confins ela já não
oferece as respostas procuradas e assim perde a função de direção. A
direção agora cabe ao problema. É nele que a inexigibilidade ganha
sentido; não mais na lei. Isso significa que nos casos-padrão para os quais
a lei penal e o sistema a que pertence mostram-se suficientes não se
justifica aquele abandono. Aí, a lei penal usada como premissa para a
solução do conflito mostra naturalmente o vigor de sua performance
177
dedutiva. A busca de premissas fora do sistema penal, e agora a partir do
problema conduz aos topoi. É como se a premissa procurada retirasse do
problema sua direção prévia. Sob esse aspecto, instaura-se aqui o ponto em
que a inexigibilidade é assumida como um topoi. Mas, que é isso, um
topoi? Antes de responder essa questão, cabe enfrentar outra que pode ser
levantada.
Em primeiro lugar, com efeito, a título de objeção é previsível o
argumento segundo o qual o direito penal não pode prescindir da ótica que
lhe é própria, isto é, a positividade. Este argumento, contudo, para ser forte,
teria de supor uma inexigibilidade totalmente desconectada com o direito
positivo. Não é o caso. Afinal, a inexigibilidade ilumina o direito positivo
ou, por outra, o direito penal, em múltiplas situações. É o que se dá,
conforme já examinado acima, no setor dos tipos proibitivos, por exemplo,
com o crime de favorecimento pessoal (artigo 348, § 2º, CP); no setor dos
tipos permissivos, por exemplo, com o estado de necessidade (artigo 24,
CP); no setor das exculpantes, por exemplo, com a coação irresistível
(artigo 22, CP). Isso parece suficiente para demonstrar que a
inexigibilidade leva em conta o direito positivo, sim; o que não leva em
conta do direito positivo é aquilo que não existe, ou seja, uma regra
específica que lhe confira autonomia. Com base nessa resposta, outro
argumento pode ser levantado: mas, se o direito penal contém, ainda que
encoberto, o espírito da inexigibilidade, por que não lançar mão da
analogia como um argumento já consagrado para suprir as lacunas de seu
sistema? Bem, não dá para desconhecer a analogia como uma dádiva do
pensamento sistemático. Ela cumpre, sim, a função de suprir necessidades
que os vazios sistemáticos fazem aparecer. É também nesse sentido que
ninguém lhe nega o papel segundo o qual pode revelar, ali onde é
manejada, o caráter fantasioso do discurso que fala da auto-suficiência do
sistema penal. Parece ser disso que se trata quando VIEHWEG anota: “A
178
freqüente presença de raciocínios analógicos indica usualmente a falta de
um sistema lógico perfeito”.455 Acontece que a analogia tem alcance
limitado; não quanto à sua força lógica, mas quanto a seu efeito material.456
É que sua validade como argumento exige a comparação de semelhanças
que nem sempre se apresentam entre as características próprias das
exculpantes legalmente previstas e aquelas reveladas pelo caso concreto.
Assim, o caráter limitado do efeito material da analogia consiste em que ela
é seletiva, pois deixa de fora de seu âmbito de aplicação inúmeras
possibilidades suscitadas pela experiência jurídica. Os topoi interferem
nesse ponto, funcionando como instrumentos que podem evitar a seleção.
7. O sistema como risco para a depravação do humano. Para
compreender como se dá essa interferência, trata-se de esclarecer o que
significa a palavra topoi ou, ainda antes disso, o que significa a própria
tópica. Com efeito, antigos e modernos trataram da tópica. Com os antigos,
a tópica estava vinculada à retórica, abastecendo-a com instrumentos cuja
função era a de aumentar a eficácia da argumentação. Tais instrumentos
eram os topoi ou loci (= lugares [comuns]). Os topoi, por sua vez, tinham
por função operar como pontos de partida na construção do argumento.
Com os modernos, o sentido da tópica é alterado e o dos topoi mantido (em
parte, pelo menos). Na obra de VIEHWEG, a tópica parece ganhar alguma
autonomia em relação à retórica e os topoi, embora permaneçam aí como
pontos de partida, passam a se constituir em fórmula ou proposta de
solução (dos problemas) na obra de CANARIS.457 Sob qualquer desses
aspectos, o decisivo é que os topoi (ou lugares) ocupam sempre a posição
de premissas de ordem geral e funcionam, de acordo com PERELMAN e
TYTECA, “enquanto orientações para a invenção (...) oferecidas para a
455
Tópica e jurisprudência, p. 40.
O problema da distinção entre os conceitos de força lógica e efeito material de um argumento é
colocado por FEYERABEND (Contra o método, p. 40) num contexto em que é anotada a dificuldade de tal
tarefa.
457
Cf. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 269.
456
179
descoberta de pontos de vista solucionadores de problemas na direção
indicada”. Tais premissas são articuladas “... no terreno do que é conforme
as opiniões aceitas” e “... que intervêm para justificar a maior parte de
nossas escolhas”458 no campo da argumentação ou do discurso. Não se trata
aqui, contudo, do discurso como arte de persuadir; por exemplo, aquele a
que se refere PERELMAN e TYTECA quando tratam da retórica antiga e que é
proferido “... perante uma multidão reunida na praça pública, com o intuito
de obter a adesão desta a uma tese...”459 ou, modernamente, o discurso de
um advogado na defesa do réu. Trata-se do discurso no sentido que lhe
empresta FERRAZ JÚNIOR, isto é, do discurso como decisão, por exemplo, o
discurso do juiz, sempre inseparável da regra do dever de prova, e cuja
característica é a de obrigar aquele que decide a revelar os fundamentos de
seu ato, isto é, a “... prestar contas daquilo que (...) diz”.460 Dir-se-á: mas
que há de diferente nisso, se afinal o modo de pensar sistemático no campo
do direito também reclama o uso de premissas, mais particularmente,
aquelas deduzidas da lei?
8. A tópica como techne (arte) de exaltação do humano. VIEHWEG,
nas primeiras páginas de Tópica e jurisprudência, responde à questão. Para
tanto, introduz o tema da recuperação da tópica na modernidade a partir de
VICO e para quem o método científico entre os antigos era o retórico
(tópica) e entre os modernos, o crítico. Um e outro fazem uso de pontos de
partida. O ponto de partida do método crítico é o primum verum; o da
retórica é o sensus communis. VICO não despreza as vantagens do método
crítico, por exemplo, as que correspondem à agudeza e precisão; mas as
desvantagens, segundo ele, parecem predominar, por exemplo, pobreza da
linguagem, redução da fantasia, falta de amadurecimento do juízo, o que
458
Tratado da argumentação, p. 95.
Ibid., p. 6.
460
Direito, retórica e comunicação, p. 40.
459
180
resulta, em uma palavra, na “depravação do humano”.461 Por seu turno, a
retórica, pela sua peça medular (a tópica) evita tudo isso. Ela “proporciona
sabedoria, desperta a fantasia e a memória e ensina como considerar um
estado de coisas de ângulos diversos, isto é, como descobrir uma trama de
pontos de vista”. Dessa forma, a retórica conduziria (como parece implícito
no pensamento de VICO) à exaltação do humano.
Para VIEHWEG, se, no campo da tópica ou modo de pensar
problemático, as premissas têm apenas de ser legitimadas, o que ocorre “...
porque foram aceitas por homens notáveis”,462 no campo do pensamento
sistemático, elas têm de ser demonstradas. Acontece, pondera VIEHWEG,
que a demonstração de uma premissa “... é uma questão puramente lógica”
e isso “reclama um sistema dedutivo”, cujas operações fossem perfeitas.
Ora, “a tópica pressupõe que um sistema semelhante não existe”.463 É que
“sua permanente vinculação ao problema tem de manter (...) a dedução em
limites modestos”.464 De qualquer forma, “quando se logra estabelecer um
sistema dedutivo (...) a que toda ciência deve aspirar, a tópica tem de ser
abandonada”.465 Dito brevemente: “numa situação ideal, a dedução torna
totalmente desnecessária a invenção. O sistema assume a direção”.466
É provável que, nessa passagem, VIEHWEG tenha se referido apenas
ao caráter supérfluo da tópica em vista de um ou outro domínio da ciência
cuja suficiência dedutiva seja inquestionável. Nela, contudo, o sistema
mesmo não é negado ou excluído; apenas assinala os “limites modestos” de
suas possibilidades dedutivas. Logo, não parece haver uma oposição
inconciliável entre a idéia de sistema e a tópica no pensamento de
VIEHWEG; ao contrário, sistema e tópica se completam e não são poucos os
461
Tópica e jurisprudência, p. 20 s.
Ibid., p. 53.
463
Ibid., p. 43.
464
Ibid.
465
Ibid.
466
Ibid.
462
181
que pensam dessa forma. Nesse sentido, a passagem, aplicada ao direito
penal, pode servir ao propósito de compreendê-lo, não como um sistema
perfeito ou auto-suficiente, mas como um sistema limitado. Isso significa
que a idéia aqui não é desconhecer o sistema penal (e nele, mais
particularmente, o sistema do delito), por conta de suas insuficiências e
substituí-lo pela tópica; a idéia é assumi-lo no seu caráter limitado, para, se
as demandas de justiça do caso concreto exigirem, completá-lo com a
tópica. Para esse fim e contra VIEHWEG, não se trata de conferir qualquer
precedência à tópica; trata-se, ao contrário, de confirmar com CANARIS a
precedência do sistema, embora com a percepção de que suas carências (=
lacunas), ligadas à situação concreta, e tendo por referência a eterna aporia
da justiça, não podem dispensar o consolo da tópica.467 Nesse ponto, os
topoi transitam da posição onde eram fórmulas de procura e passam a ser
fórmulas de solução. A inexigibilidade de conduta diversa é isso: um topoi,
ou seja, a fórmula de solução para problemas no setor das exculpantes
penais, aplicável ali onde, a partir do sistema do delito, já não há mais saída
para quem, dotado de razão e subjetividade, e sendo ainda consciente de si,
livre e igual a todos, apenas reivindica ser reconhecido como indivíduo.
467
Cf. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, p. 284 ss.
182
Conclusão
Que resultado esta investigação pode apresentar? Não vale como
confissão de malogro, se for dito aqui que apenas foi redescrito o tema da
inexigibilidade de conduta diversa na sua relação com o caráter limitado
das exculpantes penais e, portanto, com as lacunas daí implicadas, tendo
em vista expectativas de justiça geradas diante do caso concreto.
Redescrever um tema significa abordá-lo sob aspecto diferente do habitual
(o domínio que serve de referência habitual para o exame da
inexigibilidade e suas conexões é o da dogmática jurídica), compreendê-lo
sob novos aspectos, tomá-lo de um ângulo hermenêutico no que isso
significa (sob o aspecto filosófico) de denúncia dos limites do
conhecimento tradicional. Nesse caso, o sentido de redescrever um tema
implica o de retomá-lo segundo possibilidades ainda não exploradas. Isso
não representa desprezo pelo que já foi descoberto em torno dele; apenas
representa que o esforço por novas descobertas continua. Para que o
esforço em busca de novas descobertas em torno da inexigibilidade e sua
função no direito penal pudesse continuar, foi preciso deslocá-la para outro
domínio, o da argumentação ou, mais particularmente, o da tópica.
183
Em princípio, não deve haver espanto diante disso. Afinal, desde os
antigos sabe-se que o conhecimento pode ser revelado de muitos modos.
Com base nisso, é possível assumir aqui que de muitos modos o direito
pode ser revelado também. Convém esclarecer que nada disso se confunde
com a idéia de um tratamento anárquico do conhecimento jurídico; apenas
revela que o percurso até ele pode reivindicar o uso de distintas
metodologias. Com efeito, entre os modernos o discurso jurídico tem se
orientado habitualmente, ora pela pauta do jusnaturalismo, ora pela do
positivismo jurídico. Aqui, sem rejeitar nenhuma delas, o discurso procura
justificar-se no domínio ainda não esgotado da linguagem: especificamente
da tópica e aí encontrar a solução para o problema colocado. Que
problema? Ora, o de saber como a razão penal pode ainda assegurar ao
indivíduo a segurança que um dia lhe prometeu se ela não foi capaz de
evitar as incertezas decorrentes da insuficiente provisão normativa no
campo das exculpantes.
A solução pela via da inexigibilidade de conduta diversa e seu uso
associado à tópica, longe de representarem apenas uma posição engajada,
militante, em favor de uma prática jurídica idealizada, representam, sim,
uma possibilidade que se justifica cientificamente, desde que não se
renuncie a uma reflexão fundamentada acerca do que significam alguns dos
termos centrais do problema. Destacam-se entre eles, indivíduo, segurança
e razão penal. Em todo caso, nenhum terá muito sentido se tomado
isoladamente. Somente quando são tomados em conjunto, ou melhor, em
suas relações especificas, é que se torna conseqüente e relevante certificar
que o indivíduo referido pela razão penal como ponto de partida para a
montagem do direito que lhe corresponde, sempre que faltem as regras para
a solução justa que o caso concreto reclama, encontra-se inseguro e, assim,
desconstituído. Para “Seu Joãozinho”, por exemplo, no caso que serve de
ilustração ao problema deste trabalho, faltaram regras adequadas a uma
184
solução materialmente justa, tendo em vista expectativas ligadas a uma
estratégia absolutória. Não fora o arranjo que o tema da inexigibilidade
possibilitou, seria inevitável a solução oposta, deixando-o inseguro como
indivíduo, isto é, como um ser para o qual o direito penal destinou
garantias, entre elas a de inspecionar a esfera subjetiva da ação que
praticou, deduzindo daí todas as conseqüências, inclusive a de saber se,
mesmo agindo com conhecimento e vontade rumo ao crime, podia fazê-lo
de modo diverso. Sem o exercício dessa garantia, o indivíduo que o direito
penal acolheu se desconstitui.
A compreensão do que seja o indivíduo desconstituído diante do
direito penal implica a compreensão de como ele se constituiu. Isso
obedeceu a um processo em que se deu a renúncia à condição de ser
natural que ostentava para assumir o posto de ser emancipado. Fala-se do
indivíduo como homem emancipado quando em torno dele se agregam
propriedades ou predicados, a saber, autonomia, igualdade, liberdade,
subjetividade e razão que o tornam agora capaz (como ser moral) de
assumir responsabilidades perante o Estado (que ele mesmo criou) e a lei
(que ele também concebeu). A passagem que conduziu o homem à
emancipação, no entanto, foi longa. (É como se aqui ficasse confirmada a
regra segundo a qual a natureza não dá saltos.) Tudo começou na
Antigüidade (com os gregos e romanos considerados cidadãos), passou
pelo período medieval (em algum sentido) e foi finalizada nos tempos
modernos. Somente nesta etapa, contudo, o indivíduo se constituiu numa
categoria de caráter universal: referida a todos, portanto, e não a poucos. É
aqui que a razão penal moderna entra em cena para assumir o indivíduo na
sua inteireza. Isso se deu pela quebra de privilégios excludentes (=
igualdade), pela ruptura com o legislador divino (= autonomia), pela
adoção do cânon do livre-arbítrio (= liberdade), e, sobretudo, penetrando na
sua [estritamente considerada] configuração interior (motivos, vontade,
185
consciência, em uma palavra, a própria subjetividade), para, a partir daí,
qualificar e emitir juízos acerca de suas ações. (Qualquer modelo de direito
penal, de que são exemplos, ora o positivismo criminológico, ora o de
JAKOBS, que desconheça todos ou alguns desses aspectos, por exemplo, o
coeficiente psíquico [= subjetividade] representa um desvio.) Com isso, a
razão penal passou a entronizar o indivíduo como sujeito de deveres e
ainda de direitos.
Como dever número um foi consagrado o de fazer da norma o
motivo de sua ação; como direito (número um também) foi consagrada a
idéia de garantir suas expectativas de segurança. Para alcançá-la e, desse
modo, evitar riscos para a liberdade, bastava-lhe um cálculo que tomasse
em conta leis (escritas) cujas proposições, de um lado, distinguissem-se
pela clareza e precisão de seus termos, e, de outro, tornassem completo e
sem lacunas o direito penal dos novos tempos.
Para assegurar a promessa de segurança feita ao indivíduo, a razão
penal operou com dois instrumentos. O primeiro consistiu no princípio da
legalidade; o segundo, no sistema do delito. O princípio da legalidade
apareceu como uma construção da razão para depois ser incorporado aos
códigos penais; o sistema do delito é igualmente uma construção da razão,
mas efetivada a partir dos códigos penais. Para o que interessa aqui,
contudo, a relação que mais importa entre esses dois instrumentos de
segurança consiste no reconhecimento de que o sistema do delito não passa
de uma projeção lógica do princípio da legalidade. Antes dessa relação,
contudo, outra já havia se instaurado: aquela na qual a legalidade
processara ou incorporara todas as propriedades que revelavam o
indivíduo. Assim, propriedades (ou predicados) do indivíduo, legalidade
penal e sistema do delito constituem uma tríade de elementos inseparáveis
e que se completam. Não se questiona que tais elementos, assim
186
conectados, têm sido, no geral, suficientes para garantir expectativas de
segurança quando aplicados aos casos-padrão, especialmente no setor da
culpabilidade. Algo semelhante não pode ser dito em ralação a casoslimite: aqueles nos quais, embora a ação do sujeito esteja acompanhada do
dolo ou da culpa (objetos de avaliação também no setor da culpabilidade) e
mesmo da consciência da ilicitude, e assim, em princípio, pareça
reprovável, dispensa tal juízo. É que a performance delitiva do sujeito se
desenvolve em cenários nos quais estão esgotados os limites da resistência
humana e já não restam mais forças para suportar a pressão das
circunstâncias concomitantes (anormais). Nesses casos, o sujeito não pode
escolher. A pressão insuportável das circunstâncias desfalca-o da liberdade,
isto é, de predicado sem o qual ninguém é indivíduo. A supressão da
liberdade e, assim, do indivíduo, implica também na supressão do juízo de
censura. É que, sem ela, desaparece o fundamento capaz de justificá-lo.
Mas a solução para casos dessa natureza tem sido dúbia. Em todo
caso, no centro dessa dubiedade sempre se encontra a idéia da
inexigibilidade de conduta diversa. Ela é adotada pela jurisprudência, na
qual, aliás, foi inicialmente concebida, inclusive, embora com alguma
economia, a dos tribunais brasileiros. Igualmente tem sido objeto de
atenção pela dogmática penal, mas, nesse caso, embora adotada por
penalistas de várias origens (brasileiros, portugueses, espanhóis, alemães,
etc.), as resistências são mais fortes. Na base dessa atitude está a idéia de
que a inexigibilidade, malgrado sua presença difusa como fundamento em
institutos da parte geral (a legítima defesa, por exemplo) ou tipos da parte
especial (como é o caso do favorecimento pessoal) dos códigos penais, não
pode ser aplicada em busca de soluções com justiça por 3 (três) razões. Ora
porque não se encontra prevista em lei como um conceito autônomo; ora
porque é um conceito vazio; ora, ainda, porque leva à insegurança jurídica.
187
Tudo isso é refutável. Em primeiro lugar, porque se o poder e a força
das circunstâncias concomitantes paralisam o poder e a força motivadora
da lei, impotente, insuficiente ou lacunosa para mobilizar o sujeito em
torno do dever–ser que prescreve, só resta à lei renunciar à sua posição
ordenadora. A vantagem desse procedimento consiste em permitir que
outros mecanismos sejam acionados e, desse modo, evita o recurso a si
mesma para denunciar limites que apontam para a negação daquilo que
constituiu, desde a aurora da modernidade, o ponto de partida de sua
formulação: o indivíduo. Por outro lado, no ponto em que se dá a suspensão
ou interrupção da busca por justiça sob o argumento da falta de normas
[lacunas], dá-se também a submissão, de algum modo, a um direito penal
do destino, da necessidade, sempre predador e autoritário: aquele que
fundamenta a punição pela responsabilidade objetiva e que se recusa em
fazer a pesquisa no interior do indivíduo, para, de lá, trazer à luz as causas
subjetivas da conduta humana. Em segundo lugar, porque o conceito de
inexigibilidade, longe de vazio, conecta-se, não apenas com circunstâncias
externas referidas ao indivíduo, mas à sua interioridade, especialmente por
conta de sua reduzida ou nenhuma capacidade de autodeterminação
decorrente da supressão da liberdade de escolha. Em terceiro lugar,
finalmente, porque não se trata de salvar a justiça pelo sacrifício da
segurança jurídica, mas de garantir aquela em nome da segurança do
indivíduo que um dia com tanta sensibilidade a razão penal prometeu.
Sem embargo, o uso da inexigibilidade em busca da solução justa
para o caso concreto não se justifica aqui a partir da idéia de sistema,
embora, de alguma forma, isso seja possível. O sistema penal, aliás, em
nenhum momento é refutado. Apenas fica reconhecido seu caráter limitado
e é a partir desse ponto que se instaura o caminho pelo qual a
inexigibilidade ao se encontrar com a tópica se assegura de sua
legitimidade. Tanto mais isso tem sentido quanto mais se admite que a
188
servidão aos limites da legalidade, quando está em jogo a liberdade do
indivíduo, portanto, sua segurança, é a ignorância de que ela, a própria
legalidade, desde suas origens adotou como justificativa a pretensão de
garantir a liberdade e a segurança do indivíduo.
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