Organizadores
Gustavo Ferreira Santos
João Paulo Allain Teixeira
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva
Recife, 2015.
CRÉDITOS
Editora: Associação Pernambucana de Pós-gradução em Direito
Organização: Gustavo Ferreira Santos,
João Paulo Allain Teixeira,
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo
Conselho Editorial: Gustavo Ramos Carneiro Leão,
Maria Lúcia Barbosa,
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
Design da capa: Ana Catarina Silva Lemos Paz
Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz
SUMÁRIO
I. DEMOCRACIA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DA REALIDADE POLÍTICOELEITORAL DE ACORDO COM OS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS
Luize Lacerda
15
II. DA EFICÁCIA PROGRESSIVA À CIVITAS MAXIMA: EMBARAÇOS AO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
Arthur Magalhães Costa Lucas Barreto Campello30
III. UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA: MUTAÇÃO
CONSTITUCIONAL E ARBITRAGEM.
Alberto Jonathas Maia42
IV. NOVO
CONSTITUCIONALISMO
LATINO-AMERICANO
E
PLURINACIONALIDADE: A RESSIGNIFICAÇÃO DA SOBERANIA POPULAR E O
RECONHECIMENTO DE NOVOS DIREITOS PARA A INCLUSÃO DO CIDADÃO
Mariana Dionísio de Andrade54
V. PASSE LIVRE ESTUDANTIL: REGIME JURÍDICO E PERSPECTIVAS DE
IMPLEMENTAÇÃO
Alexandre Moura Alves de Paula Filho
Paulo César Tavares Filho67
VI. O TRANSCONSTITUCIONALISMO E A INCOMPATIBILIDADE DA
DECISÃO DO STF NA ADPF 153 E A SENTENÇA CONDENATÓRIA DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO GUERRILHA DO
ARAGUAIA.
Renata Santa Cruz Coelho
Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira
Julia Santa Cruz Gutman80
VII. A IGREJA CATÓLICA E O ESTADO NO BRASIL: DO REGALISMO À
LAICIDADE?
Rafaella Amaral de Oliveira91
VIII. A (INAPLICABILIDADE DA) DOUTRINA DE PETER HARBELE NO
JULGAMENTO DAS AÇÕES PENAIS ORIGINÁRIAS PELO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
Fábio Rodrigo de Paiva Henriques106
IX. ATIVISMO JUDICIAL NO STF EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA: ANÁLISE
DO RE 631240 QUE DETERMINOU A OBRIGATORIEDADE DO PRÉVIO
REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO PARA JUDICIALIZAÇÃO DE DEMANDAS
PREVIDENCIÁRIAS
Tassiana Moura de Oliveira117
Luciana Dubeux Beltrão Alves117
X. AUDIÊNCIAS PÚBLICAS: DIREITO OU FACULDADE?
Maria Eduarda C. H. Velho Barretto127
XI. O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL NAS
LICITAÇÕES E SUA INSPIRAÇÃO CONSTITUCIONAL
Francisco Luiz de Sá Araujo
Roberta Cruz da Silva135
XII. ACESSO À INFORMAÇÃO, DIREITO FUNDAMENTAL GARANTIDO
Gabriel Filipe Avelino Soares153
XIII. ATIVISMO JUDICIAL NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Fábio Gabriel Breitenbach161
XIV. A EFETIVIDADE DO MODELO DE GESTÃO DE RODOVIAS EM REGIME
DE PARCERIA PÚBLICO- PRIVADA: UM ESTUDO CRÍTICO SOBRE A BR 232
Maria Ivanúcia Mariz Erminio Roberta Cruz da Silva 172
XV. MECANISMOS DE TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
ATRAVÉS DOS SISTEMAS REGIONAIS EUROPEU E INTERAMERICANO
Caroline Alves Montenegro186
XVI. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DO DEPENDENTE QUÍMICO COMO FORMA
DE RESSURGIMENTO DO MODELO HOSPITALOCÊNTRICO: ANÁLISE DA SUA
(IN)CONSTITUCIONALIDADE
Ana Paula Cavalcanti da Matta Ribeiro Lessa
Fernando Antônio Carvalho Alves de Souza
198
XVII. A IMPORTÂNCIA DO MARCO CIVIL NA DEMOCRATIZAÇÃO DA INTERNET
Danilo Scalzo Faro213
XVIII. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE
PARTICULARES. ANÁLISE AMPLIATIVA
Felipe Soares Torres
Graciliano de Souza Cintra219
XIX. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO INSS QUANTO AOS EMPRÉSTIMOS
CONSIGNADOS FRAUDULENTOS
Graciliano de Souza Cintra228
XX. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A COOPERAÇÃO PENAL INTERNACIONAL:
RESTRIÇÕES CONSTITUCIONAIS À EXTRADIÇÃO
Andreia Cadore Tolfo
Eliane de Almeida Broker 240
XXI. UM OLHAR SOBRE A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA E INTEGRIDADE DOS REEDUCANDOS NO SISTEMA
PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
Isabelle Laís Simões de Oliveira
Wedja Carla de Souza249
XXII. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E CULTURAIS –
UMA ANÁLISE SOBRE A CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO À INFORMAÇÃO PARA
A EFETIVAÇÃO DA TRANSPARÊNCIA FISCAL BRASILEIRA
Géssyca Correia255
XXIII. DA ANÁLISE DO DESFECHO DOS PROCESSOS CRIMINAIS NA VARADE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DO RECIFE: A
REAL FUNDAMENTAÇÃO DA POLÍTICA CRIMINAL DE COMBATE À VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER
Débora de Lima Ferreira
Marília Montenegro Pessoa de Mello263
XXIV. A PREMÊNCIA DA REESTRUTURAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
COM VISTAS À EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL
Arthur Albuquerque de Andrade274
XXV. A PROBLEMÁTICA DA RECEPÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
NO ORDENAMENTO BRASILEIRO: A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº45 E SEU
IMPACTO NAS CONVENÇÕES QUE VERSAM SOBRE DIREITOS HUMANOS
Tereza Margarida Costa de Figueiredo284
XXVI. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMÉRICANO E OS CRITÉIOS
ADOTADOS EM CASO DE DISSENSO NA APLICAÇÃO DE UM DISPOSITIVO
LEGAL
Fernando Flávio Garcia da Rocha João Manoel Moury de Barros Coelho
Alexandre Henrique Tavares Saldanha 293
XXVII. CIDADANIA E EDUCAÇÃO: A CRISE DO DIREITO À EDUCAÇÃO NA
PERSPECTIVA DE HANNA ARENDT
Joseane Batista Azevedo Barros300
XXVIII. ASSENTADOS DO PRONERA E DIREITO À EDUCAÇÃO SUPERIOR:
ESTUDO ANALÍTICO DOS PARECERES JURÍDICOS DA PROCURADORIA DO
INCRA
Joseane Batista Azevedo Barros
Maria Creusa de Araújo Borges310
XXIX. CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: A DUALIDADE DO CONTROLE
DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL
Ana Catarina Silva Lemos Paz Igor Santiago de Oliveira321
XXX. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, PROCESSO CONSTITUCIONAL E MÍDIA
IMPRESSA: O ACOMPANHAMENTO DA ADI 3510 (CÉLULAS-TRONCO) NOS
MEIOS DE COMUNICAÇÃO E SUAS REPERCUSSÕES PARA O JULGAMENTO
FINAL
Flávia Danielle Santiago Lima
Maria Eduarda da Costa Pinto 333
XXXI. A REFORMA DO PROCESSO DE NOMEAÇÃO DOS MINISTROS DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Sergio Ludmer345
XXXII. SISTEMAS LEGAIS NO MUNDO: OS MOTIVOS QUE FIZERAM NASCER
AS DIFERENTES FORMAS DE JURISDIÇÃO
Thâmara Carla dos Santos Rodrigues358
XXXIII. REFLEXÕES SOBRE AS CORRENTES POLÍTICO-JURÍDICAS DE
TRATAMENTO DA PROSTITUIÇÃO
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
Felipe Jardim da Silva365
XXXIV. DEMOCRACIA: UM INSTITUTO EM CONSTANTE CONSTRUÇÃO
José Guerra de Andrade Lima Neto373
XXXV. PENSAMENTO POLÍTICO ISLÂMICO - O FUNCIONAMENTO ESTATAL
Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos386
XXXVI. A EFICÁCIA DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
Paula Tatiany Galeno Pinheiro de Morais
Camila Magalhães Cutrim391
XXXVII. O ATIVISMO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O ATENTADO
À PRODUÇÃO DEMOCRÁTICA DO DIREITO: ANÁLISE DO JULGAMENTO DA
ADPF 132/RJ E DA ADI 4277/DF
Bruna Barboza Correia dos Santos402
XXXVIII. A SOBERANIA E OS ESTADOS VADIOS: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS E DO PODER GLOBAL A PARTIR DE JACQUES DERRIDA
Isabela Costa418
XXXIX. A CONSTITUCIONALIDADE DO CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO
MESMO SEXO
Sérgio Souza Costa Floro 429
XL. DA AUTONOMIA PRIVADA NAS RELAÇÕES EXISTENCIAIS: ESTUDO
COMPARADO DOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DA FILIAÇÃO NO DIREITO
BRASILEIRO E PORTUGUÊS
Juliana Marques Lyra Carneiro Leão
Maria Rita de Holanda Silva Oliveira440
XLI. FEMINISMO E DEFICIÊNCIA: PERSPECTIVAS E LUTAS PARA A GARANTIA
DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Maria Eduarda Cavalcanti de Albuquerque Mello 452
XLII. A DEMOCRACIA E A APARENTE CONSCIÊNCIA DEMOCRÁTICA
Arlã Rocha Barbosa 462
XLIII. OS MUNICÍPIOS E O PRINCÍPIO DO INTERESSE LOCAL
Mayara Nunes Medeiros de Souza470
XLIV. A LIBERDADE
SOCIOAFETIVA
DE
PLANEJAMENTO
FAMILIAR
NA
FILIAÇÃO
Rebeca Monteiro Moura Magalhães
Maria Rita de Holanda Silva Oliveira481
XLV. CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: LIBERDADE
EXPRESSÃO DA MÍDIA X DIREITO À INTIMIDADE DOS ARTISTAS
DE
Manoella Varejão de Andrade487
XLVI. DIREITO PENAL E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A
MULHER: UMA BOA PARCERIA?
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros
Marília Montenegro Pessoa de Mello
Erica Babini Lapa do Amaral Machado494
XLVII. MÃO DE OBRA INFANTO-JUVENIL: (IN) EXISTÊNCIA NO MAIOR SÃO
JOÃO DO MUNDO DE 2014
Larise Pachú
Lucas Brasileiro de Oliveira Gomes
Clésia Oliveira Pachú510
XLVIII. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ATRAVÉS DO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E AS NOVAS EXIGÊNCIAS
DEMOCRÁTICAS DAS SOCIEDADES PLURALISTAS
Ana Virgínia Cartaxo Alves Caroline Alves Montenegro515
XLIX. O ACESSO À JUSTIÇA SOB A ÉGIDE DO NEOCONSTITUCIONALISMO
Ana Virgínia Cartaxo Alves532
L. TUTELA JURÍDICA DA HOMOPARENTALIDADE
Elaine Cavalcanti de Lima Azevedo544
LI. A EFICÁCIA DAS FORMAS DE ACESSO AS UNIVERSIDADES: O IMPACTO
DAS COTAS
Ludmila Inachvili554
LII. A DUPLA PROTEÇÃO JURISDICIONAL DOS DIREITOS HUMANOS:
JURISDIÇÃO INTERNA E JURISDIÇÃO INTERNACIONAL
Andreia Cadore Tolfo
Fabiane Segabinazi558
LIII. EFEITOS INFRINGENTES NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO: UMA
ANÁLISE DA INTERDISCIPLINARIDADE HERMENÊUTICA, PROCESSUAL E
CONSTITUCIONAL
Luciana Dubeux Beltrão Alves
Tassiana Moura de Oliveira567
LIV. DO ATO INFRACIONAL A “SITUAÇÕES PROBLEMÁTICAS” -
OLHARES DE MAGISTRADOS E DE ADOLESCENTES SOBRE FATOS
“ILÍCITOS”
Érica Babini Lapa do Amaral Machado
Marília Montenegro Pessoa de Mello575
LV. O DIREITO FUNDAMENTAL À PARTICIPAÇÃO DO PROCESSO POLÍTICO
LOCAL PELA VIA DO SISTEMA DE GOVERNO PARLAMENTAR NO ÂMBITO DO
ESTADO-MEMBRO
Isabela Costa
Marcelo Labanca588
LVI. A HERANÇA DE NINA RODRIGUES NO TRATAMENTO DOS PORTADORES
DE SOFRIMENTO PSÍQUICO SUBMETIDOS AO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
BRASILEIRO
Thayara Castelo Branco 597
LVII. OS MOVIMENTOS SOCIAIS COMO PRESSUPOSTOS DE UMA NOVA
ORDEM DEMOCRATICA
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
Daniela Madruga Rego Barros Victor Silva618
LVIII. SUSTAÇÃO CAUTELAR DO PROTESTO CAMBIÁRIO
Roney José Lemos Rodrigues de Souza
Raymundo Juliano Feitosa632
LIX. ENTRE O ATIVISMO E A JUDICIALIZAÇÃO: A ATUAÇÃO DO STF NA
CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE
Glauco Salomão Leite Helder Felipe Oliveira Correia 638
LX. TRAÇOS DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Marcelo Schenk Duque648
LXI. RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL E DESCUMPRIMENTO DE SÚMULAS
VINCULANTES
Glauco Salomão Leite
Gustavo Ferreira Santos665
LXII. LA DOPPIA ESSENZA DEL DIRITTO ALL’ISTRUZIONE: DIRITTO
FONDAMENTALE E STRUMENTO PER GLI ALTRI DIRITTI FONDAMENTALI
Daniele Matteucci671
LXIII. EFETIVIDADE DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA PARA OS SERVIDORES
PÚBLICOS ESTATUTÁRIOS
Fábio Túlio Barroso
Semíramis de moura Roriz683
LXIV. DA EFETIVIDADE DA NORMA CELETISTA NO INÍCIO DA EXECUÇÃO.
RESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Fábio Túlio Barroso687
LXV. PELO CABIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO EM FACE DE
DECISÕES JUDICIAIS OMISSIVAS
Alexandre Freire Pimentel Lúcio Grassi de Gouveia691
LXVI. REVISITAÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA DOS CONCEITOS DE DIREITO
SUBJETIVO NA ERA DA PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Alexandre Freire Pimentel 712
LXVII. CONSTITUIÇÃO E O DIREITO ORDINÁRIO: JURISDIÇÃO E POLÍTICA
LEGISLATIVA
Marcelo Schenk Duque
723
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 13
APRESENTAÇÃO
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva foi o tema do Congresso Publius de Direito Constitucional, realizado no mês de outubro de 2014, na Universidade
Católica de Pernambuco. O evento reuniu diversos professores e pesquisadores na área do
Direito Constitucional e Ciência Política do Brasil, como, por exemplo, Dirley da Cunha,
Michelle Fernandez, André Rosa, George Marmelstein, Marcelo Labanca, Luciano Oliveira,
Ivo Dantas, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira,
Walter Claudius Rothemburg, Fabiana Dantas, Wilson Steinmetz, George Galindo, Ecio
Oto Ramos Duarte, Ernani Carvalho, Marcilio Toscano Franca Filho, Raquel Sparemberger, Adriana Rocha, Ademário Tavares, Marcelo Casseb, Flavia Santiago e Alessandra
Silveira.
As atividades foram realizadas com a segmentação de 11 mesas temáticas a seguir
indicadas: Poder Judiciário e efetivação dos direitos fundamentais; eficácia dos direitos
sociais e culturais; federação brasileira nos 25 anos das Constituições estaduais; reforma
política e reforma constitucional; a agenda criminal em direitos fundamentais; movimentos sociais; democracia brasileira; direito, multiculturalismo e constituição; novo constitucionalismo latino-americano; controle de constitucionalidade e, por fim, direito constitucional e ordem jurídica internacional.
As discussões das mesas temáticas eram realizadas em plenária e, também, em GT’s
criados para apresentação dos trabalhos científicos submetidos pelos congressistas. Ou
seja, além da parte expositiva no auditório principal, o Congresso se desenvolveu também
em diversas salas dos grupos de trabalho referentes às temáticas do Congresso acima indicadas.
A metodologia adotada pelos grupos de trabalho foi de mais discussão coletiva e interativa e menos apresentações expositivas. Por isso, cada um dos pesquisadores que submeteram seus trabalhos tinham um tempo curto para expor e defender suas pesquisas,
mas depois todo o grupo de trabalho poderia criticar e apontar falhas ou necessidades de
aprimoramentos.
Encerrado o evento, foi dado prazo para que os congressistas que tiveram seus trabalhos apresentados pudessem finalizar os seus respectivos textos, incorporando o fruto
das discussões nos GT’s. A organização do evento recebeu, então, no mês de dezembro de
2014 o produto final das apresentações em forma de artigos que agora são publicados no
presente livro eletrônico.
Como se poderá perceber, este livro é eclético em temas. Há artigos falando sobre
passe livre estudantil e movimentos sociais, democracia brasileira, ativismo judicial, eficácia dos direitos culturais, recepção de tratados internacionais , novo constitucionalismo
latino-americano e cidadania, dentre tantos outros. Mas todos eles são representativos
das discussões travadas nos respectivos grupos de trabalho que foram divididos de acordo com as mesas temáticas do evento. Assim, todos os trabalhos que aqui se encontram
são, literalmente, produto da atividade do encontro de pessoas e ideias em salas temáticas, resultados de um processo de amadurecimento daquilo que se escreveu pelo debate
interativo em cada grupo.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 14
Uma outra característica do livro é que, muito embora haja trabalhos com temas
distintos, todos eles possuem um elemento de interseção, que é justamente o tema dos
direitos fundamentais ou humanos e, por isso mesmo, manteve-se como título deste livro
o mesmo título do Congresso Publius, ou seja, “Constituição e Direitos Fundamentais em
Perspectiva”.
Desejamos boa leitura a todos.
Os organizadores.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 15
DEMOCRACIA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DA REALIDADE POLÍTICOELEITORAL DE ACORDO COM OS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS
Luize Lacerda1
O organograma da política brasileira apresenta, desde a independência política de
Portugal – em 1822, uma descontinuidade no que concerne às formas de governos, como
também em relação aos regimes políticos adotados e, no presente momento, as diretrizes
que guiam o governo brasileiro são democráticas.
O processo de transição que se instaurou no Brasil de meados de 1984 até a quase
posse de Tancredo Neves pode ser classificado como um processo de redemocratização.
Durante este processo de redemocratização, o Brasil, como outros países da América Latina (Equador, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai, Chile, México, Granada, Panamá
e Nicarágua) se enquadra, na Terceira Onda de democratização por haver transitado do
regime militar para democracia em 1985.
Atualmente podemos afirmar que o Brasil não vive plenamente a sua Constituição,
que é democrática em sua formulação, em sua inspiração e em sua objetivação. O Brasil
vive um período dito pré-eleitoral, tendo somente sua democracia embasada na época antecedente às eleições, ou até mesmo o “ano eleitoral” a cada dois anos quando acontece o
pleito para os cargos públicos executivos e legislativos, nacionais e/ ou estaduais.
Desta feita, seria adequado dizermos que o Brasil vive uma democracia limitada pela
atividade da cidadania em sentindo estrito, no que diz respeito a escolha dos responsáveis
por representar o povo. Porém, tal modo de escolha demonstra falhas que impedem a efetivação da democracia de um sistema político e eleitoral como um todo.
Apesar desse entrave, o arcabouço constitucional do modelo de Estado é baseado em
um conjunto de princípios democráticos e fiéis a soberania popular. No entanto, há uma
discrepância entre o sistema normativo e a realidade social e política vivenciadas pautadas sobre a Constituição.
Essa contradição entre o modelo jurídico democrático positivado, fundamentado em
valores e princípios coerentes com o ideal de Justiça servente à concretização daquela
proposta, e a experiência havida na dinâmica política da sociedade impossibilita o exercício da cidadania e a consequência de tal limitação é o enfraquecimento da democracia
como princípio Constitucional, emanado da soberania popular, com a participação efetiva
e exercendo ativamente o poder que lhes é de direito.
Nesse sentido, há de se mencionar o projeto de lei 2.679/2003 que alteraria as leis
nº 4.737, de 1965, nº 9.096, de 1995, e nº 9.504, de 1997 com objetivo de sanar antigos
problemas do sistema eleitoral brasileiro, que afetam candidatos e partidos políticos durante as campanhas.
As instituições democráticas2 modernas são moldadas de acordo com o sistema político adotado (presidencialismo, parlamentarismo, sistema híbridos, de assembléia e suas
variantes) e sofrem influências de fatores sociais, econômicos e culturais que vão atingir
1 Internacionalista, advogada e mestre em Ciência Política.
2 No caso do Brasil, por exemplo, as instituições democráticas vêm a ser os poderes executivos, legislativos e judiciários, como também quaisquer organizações que façam parte desse arcabouço intranacional.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 16
diretamente o comportamento dessas organizações. Tais instituições podem ser mensuradas de acordo com o seu grau de institucionalização, ou seja, o grau com que as suas
instituições nacionais são legitimadas (CINTRA, 2004).
Segundo Hall e Taylor, “o termo ‘neo-institucionalismo’ é utilizado na ciência política
para designar uma perspectiva teórica que atrai muita atenção e também certas críticas”
(2003, p.193).
Este termo ganhou força a partir da década de 80 (do século passado), quando houve
um consenso entre os teóricos do institucionalismo sobre as diferentes vertentes desse
pensamento, passando a fazerem parte dessa esfera o institucionalismo histórico, institucionalismo da escolha racional e institucionalismo sociológico.
Segundo Mainwaring (2003), as instituições só vêm assumir um papel autônomo em
relação aos atores secundários, ou seja, os sociais, após 1945. Tal mudança deu as instituições o papel de atores essenciais na formulação da vida política de um país por serem
as responsáveis tanto pela criação dos atores políticos como da criação de incentivos que
vão desenhar o quadro comportamental destes, dotando-os inclusive, de uma previsão de
ação de outrem, dependendo da quantidade de informação obtidas por aqueles.
Baseado em dois pressupostos teóricos, tal modelo vem demonstrar as maneiras
como as instituições devem estar posicionadas no cenário nacional. O primeiro versa que
as instituições políticas devem estar acima de interesses secundários, visando principalmente, aos assuntos inerentes às dimensões estatais, sobrepondo-se aos assuntos essencialmente sociais. O segundo pressuposto versa sobre o delineamento da vida política,
defendendo que são as instituições que devem ser os atores fundamentais desta. (MARCH;
OLSEN apud MAINWARING, 2003).
Dessa forma, concluímos que as instituições formais trazem consigo vastas consequências no que diz respeito ao processo democrático por gerarem efeitos distributivos e poderem afetar “a capacidade de lidar com a complexa agenda política com que se defronta
a nova democracia” (MAINWARING, 2002 p. 37).
Nesse sentido, se faz importante observarmos como seria o indivíduo influenciado
pelas instituições, já que estas têm papel na modelação do comportamento coletivo. Existem duas perspectivas que Hall e Taylor denominam calculadora e cultural. A primeira diz
respeito à maximização de ganhos pessoais pelos indivíduos, denotando um pensamento
estratégico que os favorece diretamente e a uma espécie de previsão comportamental do
presente e do futuro dos outros atores, ou seja, dos outros indivíduos, de modo que, a
ação de uma pessoa é influenciada pelas informações advindas das instituições, no sentido político. A segunda perspectiva decorre do contexto do qual o indivíduo faz parte, ou
seja, sua própria percepção da vida enquadrada nos padrões morais e informativos, os
quais permitem um delineamento de ação aos indivíduos de acordo com essa percepção.
As instituições são responsáveis pela investigação “situações políticas nacionais e,
em particular, da distribuição desigual do poder e dos recursos”. Tal abordagem deriva
da influência por parte dos teóricos estruturo-funcionalistas apesar de delinearem a estrutura das organizações institucionais como fator fundamental na explicação das ações
coletivas.
As instituições ainda possuem características próprias originais, como demonstra
Hall e Taylor, a observar as relações intra-institucionais, que são importantes por expressarem interesses pessoais dos indivíduos ou grupos deles desproporcionalmente, como
também, as assimetrias de poder, à medida que estas tentam explicar os momentos de
crises institucionais, como também de descontinuidades – de regimes, de sistemas partidários. (HALL ; TAYLOR, 2003).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 17
Os teóricos da escolha racional por sua vez, consideram que os atores agem dentro
de certos limites mais ou menos previsíveis e guiados pelos seus próprios interesses, ou
seja, no seu âmbito de atuação, estes tem suas prioridades e, dentro desse conjunto, eles
vão mensurar o que vai lhe trazer mais beneficio com menos custo. (MAINWARING, 2002
p. 37).
De acordo com Hall e Taylor, a maior parte dos trabalhos da escolha racional convergem em, pelo menos, quatro pontos, a saber: de acordo com “pressupostos comportamentais”, ou seja, os atores tendem a agir de forma a maximizar seus ganhos dentro dos
limites daquilo que eles consideram de maior relevância; em um segundo momento, esses
teóricos tendem a “considerar a vida política como uma série de dilemas de ação coletiva”,
que na busca pela maximização de suas preferências, as atitudes individuais podem acarretar danos ao coletivo3. Um outro ponto em comum é “o papel da interação estratégica
na determinação das situações políticas”, os quais defendem que as ações individuais são
guiadas por uma observação dos custos e lucros de tal comportamento, que por sua vez
é afetado pelas ações de outros atores baseados nas regras das instituições. Finalmente,
eles oferecem uma “explicação da origem das instituições”, que por sua vez são originadas
mediante um consenso entre os atores envolvidos no processo de desenvolvimento das
instituições, salientando que os grandes ganhadores são esses atores que estão envolvidos
na criação das instituições (2003, p. 8).
Defende Ames (2003, p.25) também que cada indivíduo tem um determinado comportamento inerente à realidade, isto é, história de vida, cultura, costumes. E, como a realidade se modifica, o comportamento também sofrerá mudanças que se adequem melhor
a ela:
Sem negar a relevância dos valores, eles sugerem que as preferências estratégicas são determinadas pelas regras formais da própria política. E, sobretudo, os institucionalistas da teoria da escolha racional sustentam que o comportamento muda, quaisquer que sejam as atitudes culturais subjacentes,
quando as instituições mudam.
Sendo assim, os teóricos da escolha racional são muitas vezes considerados simplistas e, até certo ponto, omissos em suas teorias.
Sobre a importância da utilização das teorias da escolha racional para o estudo do
sistema político brasileiro, Mainwaring (2002) afirma que “elas ajudam a explicar as fraquezas dos partidos brasileiros”, como também o porquê das atitudes tomadas pelos políticos influenciarem de maneira significativa a forma de organização desse sistema e suas
inter-relações.
Em poucas palavras, as regras formais determinam até que ponto os partidos controlam os políticos individuais, quer se trate de organizações disciplinadas ou indisciplinadas, centralizadas ou descentralizadas (MAINWARING, 2002 p. 39).
Para um melhor entendimento das dimensões que estudamos em nosso trabalho,
faz-se necessária uma explanação sobre tipologias e conceitos que habitarão nas explicações durante o desenrolar desta pesquisa. Sabemos, porém, que tipologias e conceitos
não têm muito valor se não forem aplicados a alguma situação específica, e, desse modo,
deixamos claro que todas as definições neste artigo, serão direcionadas ao caso brasileiro,
como também as comparações das quais este fará parte.
3 O autor exemplifica tal situação através do clássico “Dilema do prisioneiro”, ou seja, “um jogo para duas
pessoas com quatro resultados possíveis: (1) a melhor alternativa de A, que é a pior para B. (2) A melhor alternativa de B, que é a pior para A. (3) A pior alternativa para ambos. (4) Uma alternativa satisfatória, melhor
do que a pior para cada um deles, mas um pouco menos satisfatória para cada um do que seu melhor (...).
É vedada a comunicação entre os jogadores”. (DAHL, 2005, p. 151)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 18
À luz deste trabalho torna-se pertinente a conceituação e diferenciação de alguns critérios pelos quais podemos analisar as configurações institucionais de governo4.
Não existe uma conceituação única do termo democracia devido à quantidade de dimensões e possíveis significados inerentes a esta palavra. Segundo Dahl, devemos utilizar
“o termo ‘democracia’ para um sistema político que tenha como uma de suas características, a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a todos os seus
cidadãos”. E ainda, afirma que, para garantir essa responsividade por um certo espaço
temporal, ou seja, para assegurar a igualdade entre os cidadãos, no sentido político, é necessário, por parte do governo, uma certeza de que, do mesmo modo, haverá oportunidades igualmente proporcionais para todos no tocante à liberdade de expressão, direitos de
voto e possibilidade de ocupação de cargos estatais, por exemplo (DAHL, 2005, p. 25-26).
O conceito de democracia apresentado não se aplica a nenhum caso real por envolver
dimensões muito mais complexas que as apresentadas, não podendo ser observados neste
caso, Estados que tenham alcançado o modelo completo de democratização. Para tanto se
considera o termo poliarquia como o processo de transição que as democracias, em fase
de consolidação, estão atravessando em direção a uma democracia plena, ou seja, todos
os regimes políticos que apresentam algum grau de democratização são considerados regimes poliárquicos. Tais regimes existem e podem ser encontrados em quaisquer processos
de transição que visem ao implemento, mesmo que mínimo, de instituições democráticas.
Dahl versa sobre dois caminhos que devem ser percorridos em busca de uma maior
proximidade de uma democracia plena. Tais indicativos são o grau em que um indivíduo
está incluso em uma sociedade, isto é, o quanto ele é ativo nesta e ainda, o grau a que
esta mesma sociedade está aberta para esta participação. Tais caminhos são denominados pelo autor como duas dimensões teóricas de democratização: uma de “inclusividade”
(participação) e a outra de “liberalização” (contestação pública), respectivamente (2005).
Concluímos então, que a idéia central de democracia é de um governo exercido por
representantes eleitos pelo povo da qual podemos extrair a seguinte classificação: democracias diretas, indiretas e semidiretas, ou seja, de acordo com o grau de participação
popular e a forma como tal participação será exercida (DAHL, 2005)
Quanto à forma de governo, essas democracias se organizam de duas maneiras:
república e monarquia. Aquela forma de governo se denuncia através de fatos como: a
representatividade de um regime, quem é considerado elegível ou não, por quanto tempo
um mandato perdurará e as responsabilidades dos mandatários elegíveis, como se dá o
equilíbrio entre as funcionalidades dos poderes e, quais são as oportunidades que um indivíduo possui dentro do sistema. Já nesta última, por exemplo, o chefe de estado não é
eleito e sim assume o cargo por uma hereditariedade, tendo um mandato vitalício. Porém
a quantidade de poder político que este possui é mínima, pois as monarquias contemporâneas5 dotam de um chefe de governo que, por sua vez, representa o partido ou partidos
políticos que detêm o apoio popular majoritário.
Existem várias inter-relações que as monarquias ou repúblicas podem realizar com
os sistemas de governo, sendo elas de quatro naturezas: parlamentarismo, presidencialismo, semi-presidencialismo e governo de assembléia, que, em particular, apresentam
muitas variedades internas (CINTRA, 2004).
4 O único regime político que iremos considerar e explanar neste trabalho será o regime democrático; outros regimes serão denominados, para fins comparativos, de regimes não-democráticos.
5 Todavia, existem monarquias nas quais o chefe de Estado é também responsável pelo governo do país,
ou seja, chefe de Estado e Governo, a exemplo da Arábia Saudita. Essas monarquias são denominadas de
monarquias absolutistas.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 19
Levando em consideração o exposto acima, é preciso ter em mente que as democracias modernas passaram por muitas mudanças políticas ao longo do seu processo de
formação e consolidação. Tais mudanças compreenderam processos de transições e oscilações entre regimes democráticos e não-democráticos (ditaduras militares, monarquias
absolutistas, regimes fascistas, oligarquias, entre outros) e, essas nunca aconteceram
isoladamente em uma única nação, isto é, as mudanças sempre se davam entre grupos
de países que apoiados na experiência de outros transitavam entre democracias e não-democracias. Sendo, deste modo, muito peculiares quando tratamos das suas formas
de organização. Dificilmente encontramos organizações democráticas puras, ou seja, que
conseguem se encaixar perfeitamente em condições pré-estabelecidas, ou em modelos
democráticos teorizados.
Em suas análises, Lijphart classifica os modelos de democracia sob duas óticas, a
saber: o modelo Westminster de Democracia e o modelo Consensual de Democracia. Em
sua proposta original, Lijphart enumera dez elementos, que são apresentados em duas
dimensões – executivos-partidos e federal-unitária, para descrever os aspectos marcantes das democracias majoritárias e consensuais. No modelo Westminster, os dez elementos considerados são: concentração do Poder Executivo em gabinetes unipartidários e de
maioria mínima, gabinete dominante em relação à legislatura, sistema bipartidário, sistema de eleições majoritários e desproporcional, pluralismo de grupos de interesses, governo unitário e centralizado, concentração do poder legislativo numa legislatura unicameral,
flexibilidade constitucional, ausência de revisão judicial e um banco central controlado
pelo Poder Executivo.
No segundo modelo de democracia proposto, os elementos essenciais que compõem
o sistema consensual são definidos na seguinte ordem: partilha do Poder Executivo por
meio de gabinetes de ampla coalizão, equilíbrio de poder entre Executivo e Legislativo, sistema multipartidário, representação proporcional, corporativismo dos grupos de interesses, governo federal e descentralizado, forte bicameralismo, rigidez constitucional, revisão
judicial e independência do Banco Central.
Para uma melhor compreensão do tema modelos de democracia é necessária uma
apreciação sobre as formas de organizações estatais e suas formas organizacionais, consequentemente faremos uma análise sob à luz da Constituição Brasileira de 1988.
Acerca disso, versa a constituição brasileira de 1988:
Art. 1º. A república Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...).
Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Analisando o artigo supracitado, concluímos que o Brasil é uma República em sua
forma de governo; tendo como Forma do Estado, uma Federação – por ser constituído de
Estados-membros que dotam de uma certa autonomia no que diz respeito aos assuntos
políticos e jurídicos; sendo ainda um Estado Democrático de Direito, isto é, igualdade de
todos perante as leis criadas pelo povo e pelo Estado, divisão de poderes estatais – exercendo um mútuo controle entre si; e democrático por ser embasado no princípio de soberania popular – “todo o poder emana do povo”, por versar sobre assuntos sociais e ainda
por ter em seu ambiente uma pluralidade partidária, o que impede que um único partido
institucionalize a autoridade.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 20
Sobre o Estado democrático brasileiro, faz-se mister a menção de que o Brasil, apesar
de fazer parte do modelo de democracia consensual, apresenta, em seu arcabouço político
características também do sistema majoritário, isto é, relações entre Executivo e Legislativo em que o executivo é dominante e sistemas eleitorais majoritários e desproporcionais
(LIJPHART, 2003).
Ainda sobre essa esfera de análise é necessária a observação de que o Brasil além de
ser uma democracia de consenso, pode ser considerado em seu regime político como uma
democracia semi-direta e representativa por possuir alguns fatores (referendo, plebiscito,
a iniciativa popular, o veto popular e o recall) que possibilitam uma maior participação
do indivíduo e ainda, por ser, este mesmo indivíduo o responsável pela escolha de seus
representantes, que, por sua vez, serão as pessoas que tomarão as decisões diretas. Sobre
esse ponto, vale salientar que o direito ao voto é algo que não pode ser tirado do indivíduo,
porém, as outras maneiras de participação (referendo, plebiscito, etc) podem sofrer alterações, o que caracteriza o voto popular como um instituto superior àqueles (DEMOCRACIA
DIRETA, 2014).
Desse modo, podemos observar que o Brasil faz parte das democracias que se encontram em consolidação, sendo assim, uma poliarquia por permitir a inclusividade dos indivíduos através da iniciativa popular, que não limita a participação dos cidadãos somente
por meio do voto. E, além disso, permite que algumas das decisões tomadas pelos poderes
Executivo e Legislativo sofram alterações, até certo ponto, por iniciativas emanadas do
povo, como também que decisões de extrema importância sejam tomadas de acordo com a
opinião dos indivíduos, ou ainda que decisões sejam baseadas na opinião pública (DAHL,
2005).
Outra característica do sistema de democracia brasileira é o chamado presidencialismo, o qual só é possível na forma republicana de governo, que vem a ser um sistema
de governo onde o Presidente da República é, ao mesmo tempo, o Chefe de Estado e de
Governo eleito pelos cidadãos de forma direta. Além disso, tal sistema possui uma rigorosa
independência entre o Legislativo e o Executivo, não sendo possível o Legislativo depor o
poder Executivo - a não ser, na hipótese de impeachment, quando o Presidente pode ser
demitido pelo voto parlamentar – nem o Legislativo ser dissolvido pelo Executivo. Outra
característica do presidencialismo é a unipessoalidade do poder Executivo que é responsável para nomear ministros (tendo estes que prestarem serviço ao Executivo, e não ao
Legislativo).
Outro ponto importante é conceituar a fase na qual se encontra o Estado Brasileiro
segundo sua formação. Sobre este tema Limongi (2002, p. 110) disserta que
(...) o país ultrapassou a primeira fase do desenvolvimento político, a fase da
formação do Estado nacional e, desde então, se viu às voltas com o problema
da integração das massas ao sistema político. Portanto, do ponto de vista do
desenvolvimento político, do tenentismo6, ao regime militar, vivemos uma
mesma e invariante realidade: “as vicissitudes que se seguem ao ingresso”
na fase da política ideológica. A continuidade dessa problemática oferece a
chave para interpretar e fazer projeções sobre os resultados da transição do
autoritarismo à democracia. A redemocratização nos remeteria, pura e simplesmente, às mesmas experiências do passado.
6 “Nome que se dá ao movimento político desencadeado durante a década de 20 por jovens oficiais, a
maioria tenentes e capitães, em oposição ao governo e à alta oficialidade, que defendia os interesses da oligarquia” (GLOSSÁRIO, 1999).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 21
O sistema eleitoral brasileiro foi estabelecido pela lei no 4.737, de 15/7/65 atualizado
com as modificações da Lei 9.504/97, que constitui o código eleitoral, o qual em sua Parte
Quarta, Título I, versa sobre os princípios adotados nas eleições para representante do
Poder Executivo, dos Estados federados e municípios, respectivamente, bem como sobre
a obrigatoriedade e as formas adotadas nos atos eleitorais. A saber:
Art. 82. O sufrágio é universal e direto; o voto, obrigatório e secreto.
Art. 83. Na eleição direta para o Senado Federal, para Prefeito e Vice-Prefeito,
adotar-se-á o princípio majoritário.
Art. 84. A eleição para a Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e
Câmaras Municipais obedecerá ao princípio da representação proporcional,
na forma desta Lei.
Art. 85. A eleição para Deputados Federais, Senadores e suplentes, Presidente e Vice-Presidente da República, Governadores, Vice-Governadores e
Deputados Estaduais far-se-á simultaneamente em todo o País.
Art. 86. Nas eleições presidenciais, a circunscrição será o País; nas eleições federais e estaduais, o Estado; e nas municipais, o respectivo Município
(BRASIL, 1997).
O processo de eleição para ocupação de cargos políticos no Brasil não se dá de maneira uniforme. As posições dos Executivos federal, estaduais e municipais, são feitas
de acordo com a apuração de um candidato vencedor, que se dá por maioria absoluta,
ou seja, 50% dos votos válidos mais um. Caso esse coeficiente não seja atingido, os dois
candidatos com maiores números de votos válidos irão concorrer entre si em um segundo turno, excetuando-se dessa hipótese os municípios com menos de 200 (duzentos) mil
eleitores. Já a ocupação de cargos do Legislativo se dará de maneira diferente em relação
à composição do congresso brasileiro – Câmara dos Deputados e Senado Federal. Nas funções de Deputados, as cadeiras são distribuídas proporcionalmente entre os Estados com
maior eleitorado, sabendo que nenhum estado pode ter menos que oito cadeiras e mais
que setenta. Nas eleições do senado, a escolha dos políticos é feita por maioria simples,
sendo que cada estado é representado pelos três senadores mais votados de cada região
(AMES, 2003).
Feitas as devidas considerações sobre o sistema de democracia vigente no Brasil,
partimos agora para uma análise mais detalhada sobre os problemas que habitam seu
arcabouço.
É fato que a política democrática contemporânea tem marcas significativas da
diferenciação de graus de institucionalização das organizações partidárias entre os vários
países.
Mainwaring (2001, p. 395) discorre sobre o assunto, afirmando que
Sete regras e aspectos institucionais têm importância geral (grifo do autor) na
determinação das perspectivas de institucionalização de um sistema partidário: (1) a escolha de um sistema de governo presidencialista, semipresidencialista, parlamentarista ou híbrido; (2) o grau em que as normas eleitorais
estimulam a fragmentação do sistema partidário; (3) a extensão em que as
organizações partidárias controlam a ordem em que os candidatos são eleitos; (4) a sequência das eleições; (5) quem controla a seleção dos candidatos;
(6) o estabelecimento de um sistema federativo ou unitário de governo; (7) o
fato de o presidente ter poder para legislar por decreto.
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O sistema eleitoral brasileiro traz em seu escopo problemas que dificultam um maior
controle dos políticos por parte da população, isto é, podemos dizer que praticamente não
existe ligação entre os eleitores e aqueles que os representam.
Segundo Ames, o sistema eleitoral “personaliza a política e enfraquece o controle dos
partidos sobre os políticos tanto na condução das campanhas quanto na atividade parlamentar” (2003, p. 352). Tal fato complica as decisões democráticas brasileiras de modo
que, apesar de a representação proporcional (RP) de lista aberta não trazer problemas de
desigualdade, o meio de que os candidatos fazem uso para disputarem seus votos torna-se
peculiar por não visarem à conquista da ideologia dos eleitores, e sim, uma conquista de
votos de maneira regional, ou seja, geográfica.
A disputa pelo eleitorado é muito mais física do que ideológica. Os políticos, em geral,
buscam regiões que lhe dão maior apoio eleitoral através de incentivos econômicos, ou
seja, este processo passa a ser financiado por entes influentes nessas regiões, deturpando
todo o sistema eleitoral.
Esses esquemas de alianças corruptas criam uma massa de eleitores insatisfeitos
com o sistema, aumentando, nesse sentido, o número de votos inválidos e brancos. Esse
tipo de eleitorado é mais frequente em regiões mais desenvolvidas, ou seja, aquelas que
aparentemente apresentam um eleitorado mais consciente das verdadeiras responsabilidades políticas (AMES, 2003).
Essa espécie de decepção sofrida pelos eleitores faz com que, quando não invalidem
os seus votos, aqueles acabem elegendo políticos descomprometidos com os problemas
nacionais. Segundo Mainwaring, essa insatisfação dos eleitores e o impulso que estes dão
a políticos da oposição podem ser em resposta à baixa legitimidade institucional dos partidos. Dessa forma, tal comportamento é facilmente encontrado em democracias de Terceira
Onda (2001).
Nesse mesmo raciocínio, os políticos tendem a direcionar suas campanhas e suas
buscas por financiamentos eleitorais para regiões periféricas, onde o eleitorado é menos
racional e se vende mais facilmente e por um menor preço.
Ainda sobre o problema Ames (2003, p. 334) discorre que
O sistema eleitoral brasileiro dá novo sentido à tão usada expressão interesses especiais (grifo do autor). A RP de lista aberta facilita o que se poderia
mais propriamente chamar de auto-representação – isto é, a tendência de
certos deputados a representarem seus interesses econômicos pessoais ou
os interesses de setores muito estreitos. A chamada “bancada ruralista” não
representa os interesses dos eleitores que puseram esses deputados na Câmara, mas os interesses pessoais de parlamentares que são grandes proprietários rurais. Seu estilo de representação está, para dizer o mínimo, muito
longe do sentido usual da noção de responsabilidade pública.
A busca pessoal pelo poder político se torna ainda mais complicada devido à falta de
coerências e teor nas ideologias dos partidos e suas respectivas coligações, criando um
sistema multipartidário fragmentado e fraco, sem ideais políticos de peso e comprometimento com o eleitorado (AMES, 2003).
Outro fator gerado pela personificação do poder político é a necessidade de campanhas eleitorais “hollywoodianas”, pois, mais vale o carisma pelo qual o eleitor será atingido
do que demonstrar realmente as ações políticas que seriam tomadas pelos candidatos.
Essa circunstância fortalece o poder da mídia na escolha do candidato, especialmente da
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televisão, que, apesar de ser um meio importante em quase todas as democracias, tem
um papel muito mais decisivos naquelas que têm um baixo grau de institucionalização e
um alto grau de personalismo.
Esse tipo de comportamento estratégico e personalista por parte dos políticos, vai gerar uma falta de compromisso entre o partido e o candidato, que este por sua vez vai sempre buscar aquele partido que lhe dê mais condições de se eleger e o partido, por sua vez,
procurará ter em seu corpo político candidatos que tenham condições de serem eleitos.
Esta é uma afirmação, no mínimo, confusa, pois “é paradoxal que, no Brasil, onde o
grau de personalismo da política é alto, os políticos não sejam individualmente responsabilizados por seus atos” (MAINWARING, 2001, p. 388).
O sistema eleitoral brasileiro atualmente é de lista aberta – ou seja, os eleitores votam
em nomes de políticos ao invés de votar em legendas partidárias como ocorre na lista fechada – e desproporcional no sentido de não haver uma relação entre extensão territorial e
número de participação nos assuntos nacionais. O fato de as eleições serem de lista aberta
gera, além de outros fatores, uma personificação dos políticos, o que é resultado, de uma
baixa institucionalização do sistema eleitoral brasileiro.
Este cenário, somado a outras duas mudanças não ocasionadas por determinações
estatais de sistema partidário, gera um conflito interno, à medida que, torna-se uma
constante mudança, originando, de certa forma, uma descrença do sistema de governo
brasileiro.
Além de uma descontinuidade permanente do sistema partidário, observamos dentro
da esfera política brasileira um alto teor de volatilidade das organizações partidárias em
si. Isto é, notamos, sem muito esforço, a formação como a dissolução, e ainda em menor
proporção, a junção destes vários partidos políticos em um curto espaço de tempo.
O sistema partidário brasileiro conviveu, desde sua formação, no século XIX, com intervenções estatais e influência de interesses de elites políticas. Esta situação derivou em
cinco reformas dos sistemas partidários provocados por intervenções da elite estatal – em
1889, 1930, 1937, 1965 e 1979 – que dissolveram os sistemas existentes substituindo-os
por outros regimes, excetuando-se em 1937 quando apenas ocorreu a extinção do sistema
partidário existente (MAINWARING, 2002).
Porém, torna-se pertinente mencionarmos a mudança ocorrida na situação dos políticos dentro das organizações partidárias no período pós-regime militar e de redemocratização.
Até 1985, a disciplina de um partido político era moderada, em sua maioria, para
poder sobreviver à época do governo militar. Apesar das heranças ganhas, a indisciplina
partidária tomou o lugar da moderação. Desta feita, foi colocada em jogo a fidelidade7
como também a disciplina partidária por parte dos políticos.
Até o dado momento, a mudança partidária era controlada pela legislação eleitoral
que reservava às organizações partidárias o direito de deferir ou não o requerimento de
entrada por parte dos políticos de outros partidos. A derrubada de leis que controlavam o
sistema partidário brasileiro, no que concerne à fidelidade dos políticos aos partidos, gerou então uma grande movimentação por parte dos políticos entre vários motivos, em sua
grande maioria, por interesses pessoais e ideológicos (MAINWARING, 2002).
7 Diferentemente do que ocorre no Brasil, o sistema partidário britânico exerce um rígido controle sobre
seus membros, onde em casos de desobediência partidária seu poder de atuação ficará comprometido, podendo em casos extremos derivar no encerramento de suas atividades políticas (CINTRA, 2004).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 24
Grande parte dos problemas da democracia brasileira é causada por serem gerados
em suas instituições muitos veto-players8. Tais atores são os responsáveis pela dificuldade
em aprovar novas políticas, isto é, aquelas que apresentam forte disparidade com as idéias
já absorvidas por estas instituições. Como exemplo de instituições disfuncionais, ou seja,
aquelas que apresentam problemas de funcionalidade, podemos citar, no caso do Brasil,
o sistema eleitoral, as regras que versam sobre a criação de partidos políticos, a organização do poder presidencial, e ainda, o equilíbrio de poder entre a União, seus estados e
municípios (AMES, 2003).
Ademais, a concentração do poder Executivo Federal nas mãos de um único agente
responsável ao mesmo tempo pela chefia de governo e Estado, aliado ao multipartidarismo
brasileiro que produz um legislativo multifacetado, é um entrave à consolidação e fortalecimento da democracia brasileira.
Essa relação entre o Executivo centralizado e o Legislativo multifacetado vai levar a
uma obstrução parlamentar, ou seja, situação e oposição compartilham o mesmo governo
gerando o que Ames chama de veto-players. Dessa maneira, as decisões políticas muitas
vezes são comprometidas pelas divergências partidárias daqueles que estão no poder,
criando um poder baseado em um jogo de interesses, o qual impede que políticos venham
a legislar pelo interesse geral.
A relação entre Executivo e Legislativo vai ainda se deparar com os obstáculos exigidos pelas regras de procedimentos parlamentares (AMES, 2003).
Desta relação entre o Executivo versus Legislativo constitui outro problema da democracia brasileira: a limitação de poder que o Executivo dá ao Legislativo. Isto é, só o
Executivo versa sobre assuntos orçamentários, salariais e, ainda, pode criar leis através
de Medidas Provisórias (MP) que vigoram até 60 (sessenta) dias, prorrogáveis por igual
período, sem a votação em plenário.
Segundo Figueiredo e Limongi, tais poderes detidos pelo Executivo não sofrem riscos
de diminuição. Dessa forma, criam-se barreiras a empecilhos das ordens do Executivo
por parte do Legislativo. Sendo, quando o Executivo utiliza um de seus poderes conferidos
constitucionalmente, cria-se automaticamente uma defesa a possíveis retaliações que seriam feitas pela oposição, quer dizer, o Executivo possui, desse modo, um “controle de veto
points9” escapando, assim, de arquivamentos de processos de seu interesses (2001, p. 25).
A falta de políticos comprometidos com o sistema político brasileiro aliado aos obstáculos enfrentados na relação Executivos versus Legislativos gera um governo corrupto
que se utiliza, muitas vezes, de práticas clientelistas ou de alianças políticas em troca de
cargos públicos para se manter no poder e permitir um grau de governabilidade melhor
com o afrouxamento do entrave Executivo versus Legislativo, gerando um governo extremamente comprometido e sem muitas mudanças políticas, mesmo quando muda o eixo
governamental (esquerda – direita) e seus representantes.
A busca de objetivos particulares dá ao Brasil o status de democracia de baixa institucionalização, pois esse comportamento político trava o processo político brasileiro impedindo as discussões de interesse geral sobre o problema das instituições nacionais (AMES,
2003).
Neste raciocínio, entende-se por reforma política um conjunto de novas normas que
terão força de lei, ou seja, normas estas que se aprovadas pelo plenário – Câmara dos Deputados e Senado Federal – deverão ser incluídas no ordenamento jurídico do país.
8 Os veto-players são instituições que podem sair de seus status quo, ou seja, podem obstruir as decisões
tomadas por outrem. Como por exemplo coligações partidárias. (AMES, 2003).
9 Nome que se dá aos processos decorrentes dos atos dos “veto-players”.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 25
A proposta de uma reforma política deve conter um conjunto de proposições que
buscam alterar alguma falha constitucional que impede que a vontade de população seja
posta em prática pelos políticos, aos quais esses cidadãos delegam um poder representativo através do processo eleitoral. Essa por sua vez, deve ainda ser constituída de alterações
no sistema eleitoral, no sistema político-partidário, nos mecanismos de representação
política, mudança no sistema de governo, entre outras que fazem parte do conjunto de
mecanismos que formam o sistema político.
Desde 1988, quando o Brasil - através de sua Constituição - optou pela manutenção
do presidencialismo, pela representação proporcional de lista aberta, pelo bicameralismo
e pelo federalismo, a discussão sobre o tema reforma política é uma constante, visto que
a grande parte da população brasileira encontra-se insatisfeita com a forma de representação política que vem sendo desempenhada por parte dos candidatos eleitos nas urnas.
Ainda assim, a instabilidade político-democrática do Brasil, a qual podemos verificar explicitamente através dos constantes escândalos de corrupção que ocorrem no seio do
poder central, contribuem para aumentar ainda mais a falta de credibilidade do sistema
político brasileiro.
Nesse quadro de constante instabilidade, foi apresentado no ano de 2003 pela Comissão Especial de Reforma Política, um projeto de lei, visando à modificações de algumas
normas que regem o sistema eleitoral e partidário brasileiro (CINTRA, 2005).
Esse projeto de lei (PL) sobre a reforma política, o PL n° 2.679/2003 – que modificaria
substancialmente a lei 9.504/1997, cujo relator é o deputado federal Ronaldo Caiado, versa sobre o financiamento público e exclusivo das campanhas, lista fechada de candidatos
e “cláusula de barreira”.
Em primeiro lugar financiamento público e exclusivo das campanhas – em sua essência, o projeto de lei busca minimizar os gastos das campanhas eleitorais. Atualmente,
cada candidato é responsável por administrar a captação de recursos financeiros que irão
financiar suas campanhas. Com a reforma, os financiamentos necessários às campanhas
eleitorais serão distribuídos exclusivamente pelo poder público ao partido, ou seja, os
partidos políticos através de recursos federais irão administrar e financiar a campanha de
todos os seus candidatos. Nesse mesmo sentido, fica proibido qualquer tipo de captação
de recursos privados para o financiamento de tais campanhas, sejam eles de fonte própria
ou doações.
Ainda de acordo com a reforma, o financiamento público, que passará a ser exclusivo, será acrescido dos R$ 120 milhões anuais para aproximadamente R$ 800 milhões, distribuídos aos partidos para estes custearem as campanhas eleitorais de seus candidatos.
Em segundo lugar a reforma defende a Lista fechada de candidatos – a atual sistemática de voto no Brasil adota o esquema de lista aberta para compor os cargos do Legislativo. Nesse sistema, o voto no Brasil pode ser entendido como nominal ou personalizado,
cujo eleitorado vota em uma preferência para compor as Câmaras do Legislativo.
Com a adoção do PL n° 2.679/2003 esse sistema de lista aberta seria substituído
pelo de lista fechada, no qual os eleitores brasileiros passarão a votar exclusivamente nas
legendas, ou seja, ao invés de votar na pessoa de seus candidatos, aqueles eleitores passarão a votar nos partidos.
Consequentemente, os partidos deverão compor uma lista preordenada de candidatos e, divulgá-la antes do início do processo eleitoral para que o eleitorado brasileiro tenha
conhecimento dos seus respectivos candidatos.
No sistema de lista fechada, o candidato que estiver no topo da lista tem a prioridade
para compor uma das cadeiras do parlamento e representar a população em nome do seu
partido.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 26
No mesmo raciocínio, existe a Cláusula de desempenho e federações partidárias ou
“cláusula de barreira” – o PL n° 2679/2003, que visa alterar a chamada “cláusula de barreira” criada pela Lei n° 9.096/1995 (Lei dos Partidos), prontas para entrarem em vigor
nas eleições de 2006, que reza
Art. 13. Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as quais tem elegido represente, o partido que, em cada eleição
para a Câmara dos Deputados, obtenha o apoio de, no mínimo, 5% dos votos
apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos estados, com mínimo de 2% do total de cada um (BRASIL,
1995).
Esta por sua vez, passará a ser entendida de forma que, ao invés da representação
estatal, se dá em no mínimo um representante em nove Estados brasileiros, já com a reforma este limite baixará para apenas cinco Estados, onde os partidos políticos deverão
eleger, no mínimo, um representante, não sendo modificado o percentual mínimo para o
merecimento de cadeiras no plenário.
Desta forma, partidos que são pequenos em sua formação e representação e, que
podem apresentar forte ideologia, ficarão assegurados no que tange ao direito de ocupar
cadeiras no Parlamento.
Por último, o projeto de lei n° 2.679/2003 prevê ainda que sejam extintas as coligações entre partidos nas eleições proporcionais, ou seja, nesse sentido só será permitido
que partidos se juntem em uma única frente nas eleições majoritárias, isso quer dizer para
cargos do executivo.
O PL n° 2.679/2003 encontra-se atualmente esperando votação no plenário desde
o final do ano de 2004, quando foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça de
Cidadania (CCJC) (BRASIL, 2003).
De acordo com o objetivo traçado no início deste artigo nos permitimos a expor algumas conclusões sobre a implementação do Projeto de Lei 2.679/2003 na situação atual
da democracia brasileira.
Analisar a democracia brasileira nos permite visualizar a dissociação do que DEVERIA ser com o que realmente ocorro no sistema político e eleitoral brasileiro.
Notamos uma disparidade significativa sobre a idéia de representação ideológica-partidária e de como de fato é a vida político-partidária do cidadão ao exercer seu dever/
direito ao eleger seus representantes.
E tal conclusão se deu sobre a análise de quatro problemas encontrados no escopo
democrático, os quais consideramos serem os mais contundentes:
1. Personalização do Sistema Eleitoral;
2. Sistema Eleitoral de lista aberta;
3. Volatilidade do Sistema Partidário; e
Atuação do Executivo versus Legislativo.
Desta análise feita, verificamos o principal remédio para tais problemas brasileiros
encontrados no Projeto de Lei 2.679/2003, que versa sobre a possibilidade de uma Reforma Política.
Antes de tudo, podemos citar uma derrota da reforma. Criada em 2003, a reforma foi
votada pela CCJC (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania) em julho de 2004
e seus criadores almejavam a votação no Congresso Nacional antes de outubro de 2005,
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pois, para entrar em vigor nas eleições de 2006 – como era a vontade daqueles – a reforma deveria ser aprovada um ano antes dessas, pois, a Constituição Federal defende, em
seu art. 16 que “a lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua
promulgação (BRASIL, 1988).
E não foi só na eleições de 2006 que a referida Reforma não foi entrou em vigor. Hoje,
o PL 2.679/2003 se encontra ainda na CCJC esperando apreciação.
Além disso, nosso artigo teve como objetivo analisar alguns aspectos da democracia
brasileira, como também a situação de suas instituições democráticas através do institucionalismo histórico e da escolha racional no que concerne aos incentivos seletivos
previstos por esta de forma a entender o porquê do texto constitucional positivido não ser
vivenciado plenamente.
A partir disto, constatamos que a democracia brasileira sofre de um baixo grau de
institucionalização em seu sistema eleitoral, em suas organizações partidárias e ainda, na
relação entre seu Executivo e Legislativo.
Um estudo mais profundo, mostra que, para aumentar o grau de institucionalização
da democracia brasileira, é necessária uma reforma política que mude, ao menos, minimamente os preceitos constitucionais que versam sobre assuntos ligados ao direito político e a partidos políticos, isto é, os Capítulos IV e V do Título II da Constituição Federal.
Sobre esse assunto, notamos que o PL 2.679/2003 visa à modificação de três problemas que acreditamos serem básicos do sistema político brasileiro (financiamento de
campanhas, mudança de listas eleitorais e “cláusula de barreira”).
1. Isto é, a reforma pretende reorganizar tais partes do sistema político brasileiro:
2. a deturpação do sistema eleitoral causada pelas coligações partidárias nas eleições proporcionais;
3. a extrema personalização do voto nas eleições proporcionais, resultado do enfraquecimento dos partidos;
4. os crescentes custos das campanhas, que tornam o financiamento dependente do
poder econômico;
5. a excessiva fragmentação do quadro partidário;
6. as constantes migrações entre as legendas, cujas bancadas no Legislativo oscilam
ao longo das legislaturas.
Em outras palavras, o que isto quer dizer é que, as coligações partidárias acabarão,
podendo apenas acontecer espacialmente; acabará também a personificação do político,
fazendo com que os votos sejam de listas fechadas, aumentando a complexidade das eleições, como os poderes do partidos e diminuindo a identificação por parte do eleitor, sobre
os candidatos nos quais votará, o que pode acarretar numa votação mais ideológica por
uma maior identificação com as propostas partidárias; diminuirão ainda as despesas com
campanhas eleitorais, evitando uma maior desproporcionalidade de recursos interpartidários, ainda que não evitando o caixa dois; distanciar a fragmentação partidária brasileira por meio da diminuição da “cláusula de barreira” e ainda, dificultar com a infidelidade
partidária.
Nesse sentido, concordamos com Ames (2003) quando este diz que seria a melhor
opção no caso brasileiro a implementação de uma reforma eleitoral do tipo alemão, onde
metade do Legislativo é eleita em distristos de um representante e a outra metade pelo
sistema de RP de lista aberta.
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Outro ponto é que, o projeto de lei não versa sobre o problema de alta concentração de
poder por parte do Executivo, especialmente no que diz respeito à possibilidade de redação
de medidas provisórias que podem vigorar mesmo se não aprovadas pelo Legislativo.
Tal fato gera uma centralização de poder por parte do Executivo, não ajudando na
melhoria do grau de institucionalização brasileiro, por não haver, como deveria, um equilíbrio real e significativo entre o Executivo e Legislativo.
Visto que uma reforma política abrange muito mais elementos do sistema político
brasileiro do que a proposta em questão visa modificar, acreditamos que esta seja uma
reforma muito tímida se considerarmos que a estrutura do sistema de decisões políticas
apresenta outros problemas que impedem o aperfeiçoamento da democracia brasileira,
tais como suas tradições autoritárias, centralizadoras e elitistas.
Desta forma, destacamos que a simples implementação de tal PL não aumentará o
grau de institucionalização da democracia brasileira, necessitando de reformas pontuais
que possam organizar, ao menos, o sistema eleitoral e partidário para que o eleitor faça
valer todos os direitos que lhe são assegurados.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 30
DA EFICÁCIA PROGRESSIVA À CIVITAS MAXIMA: EMBARAÇOS
AO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
Arthur Magalhães Costa1
Lucas Barreto Campello2
1.
Introdução
Sabe-se que no intento humanitário de criar um amparo mínimo à dignidade da
pessoa humana no cenário internacional, tendo em vista o descalabro das duas grandes
guerras mundiais3 e a forte influência do Sistema Global de Direitos Humanos, foi idealizado no continente americano, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.4 Tal fato
se deu a partir da criação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos em 1969,
entrando em vigor na data de 1978. No mais, o panorama delicado em que vive a America
Latina também foi levado em consideração para influenciar a aceitação de uma jurisdição
internacional específica para assuntos dessa qualidade. É dizer, em face do alto grau de
exclusão e desigualdade social, que compromete a vigência plena dos direitos humanos
na região, sendo fator de instabilidade o próprio regime democrático, a América Latina
tornou-se a região com o mais elevado índice de desigualdade no mundo, considerando
primordialmente a distribuição de renda. (PIOVESAN, 2012).
Nesse contexto, a CADH surgiu para amenizar a insuficiência do direito interno dos
países americanos, possibilitando soluções, reexames e reapreciações de matérias consideradas paradigmáticas, reputando o individuo como verdadeiro sujeito de direitos no
plano internacional5. No entanto, a priori, não busca o SIDH6 substituir por completo as
instâncias domésticas, mas sim buscar por força de cooperação institucional, a eficiência
na prestação jurisdicional que diga respeito à Dignidade da Pessoa Humana7. É dizer:
1 Especializando em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco, aluno especial do
Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Graduado em Direito pelas
Faculdades Integradas Barros Melo. E-mail: [email protected]
2 Aluno especial do programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Graduado
em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected]
3 Inolvidável a reflexão do jusfilósofo: “Se o Séc.XX é a era dos direitos humanos, seu triunfo é no mínimo, um paradoxo. Nossa
época tem testemunhado mais violações de seus princípios do que qualquer uma das épocas anteriores e menos iluminadas. O século
XX e o século do massacre, do genocídio, da faxina étnica, a era do Holocausto” (DOUZINAS, 2009, p.20).
4 Conforme a pesquisadora: “No universo de direitos, destacam-se: o direito à personalidade jurídica; o direito à vida; o direito
a não ser submetido à escravidão; o direito à liberdade; o direito a um julgamento justo; o direito à compensação em caso de erro
judiciário; o direito à privacidade; o direito à liberdade de consciência e religião; o direito à liberdade de pensamento e expressão; o
direito à resposta; o direito à liberdade de associação; o direito ao nome; o direito à nacionalidade; o direito à liberdade de movimento e residência; o direito de participar do governo; o direito à igualdade perante a lei; e o direito à proteção judicial” (PIOVESAN,
2012, p.141).
5 A própria razão de ser dos Direitos Humanos: “Os direitos humanos estão internamente fissurados: são usados como defesa do
individuo contra um poder estatal construído à imagem de um individuo com direitos absolutos. É este paradoxo no coração dos
direitos humanos que tanto move sua história quanto torna sua realização impossível (DOUZINAS, 2009, p.38).
6 No tocante à estrutura do SIDH: “Para controle do cumprimento da Convenção pelos Estados Partes, a CmIDH e a CrIDH
atuam de maneiras distintas. Enquanto a CmIDH, composta por sete membros, formula recomendações aos Estados, a CrIDH, composta por sete magistrados, elabora sentenças de caráter obrigatório” (VENTURA; CETRA, 2013, p.11).
7 Acerca de tal princípio basilar, vale colacionar as palavras do constitucionalista espanhol: “En un clima de hegemonía de valores neoconservadores e insolidarios, de un estrecho realismo de corto plazo y de un cansancio general de la política, una demanda
de este tipo puede parecer más cercana al optimismo de la voluntad que al de la inteligencia. Se trata, en todo caso, de los costos del
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 31
Ao acolher o sistema interamericano, bem como as obrigações internacionais
dele decorrentes, o Estado passa a aceitar o monitoramento internacional
no que se refere ao modo pelo qual os direitos fundamentais são respeitados
em seu território. O Estado tem sempre a responsabilidade primária relativamente à proteção dos direitos humanos, constituindo a ação internacional
uma ação suplementar, adicional e subsidiária. É sob essa perspectiva que
se destaca a atuação da CIDH e da CorteIDH (PIOVESAN, 2012, p.143).
Todavia, ao tempo em que se adota a jurisdição internacional, pode-se dizer que as
obrigações dela decorrentes vinculam todos os poderes e órgãos dos Estados-membros,
que por sua vez devem garantir o perfeito cumprimento das disposições desse instrumento legal e seus efeitos próprios no plano de seu direito interno. (CALDAS, 2013). No mais,
para todos os Estados do continente americano que livremente a adotaram, a Convenção
Americana equivale a uma Constituição supranacional atinente aos Direitos Humanos8.
Desse modo, todos os poderes públicos e esferas nacionais, bem como as respectivas legislações federais, estaduais e municipais de todos os Estados aderentes, estão compelidos
a respeitá-la e a ela se adequar (CALDAS, 2013).
Doravante, expor-se-á no presente trabalho, os aspectos que engendram o relacionamento entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito doméstico dos
Estados membros, em prima, sob o viés teórico, esboçando em curtas linhas a evolução de
pensamento em face da presente dicotomia, desde a concepção mais conservadora e nacionalista, até aquela mais dedicada com a formação da civitas máxima, idealmente voltada
para a formação de uma jurisdição superior às observadas no plano interno de cada um
dos Estados. No mais, imperioso compreender os mecanismos de adequação axiológica e
de supressão antinômica, corroborados no inovador Controle de Convencionalidade. Por
fim, importará destacar a principal jaça do Sistema Interamericano de Direitos Humanos,
qual seja, a repartição ou subdivisão dos direitos humanos em direitos civis e políticos e
direitos econômicos, sociais e culturais, que fomenta o Principio da Eficácia Progressiva
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sem perder de vista a motivação idealista
que fundamenta o presente estudo.
2.
Relações entre Soberania, Dualismo, Monismo Nacionalista e Monismo
Internacionalista
É sabido que no tocante à relação entre Direito Interno e Direito Internacional, duas
teorias podem ser confrontadas. Trata-se como se disse acima, de pressuposto lógico que
dá vida e justifica o presente estudo. Sua importância reside no fato de que, a depender do
ponto de vista que se tenha do fenômeno jurídico, só haverá direito onde houver previsão
normativa. Mais ainda, só haverá direito se esta previsão normativa for recepcionada pela
Constituição. Tal documento, pois, guarda relações com os limites territoriais da Soberania o que desde já incita boas discussões. Como avistar uma garantia ainda que ela não
esteja formalmente prevista na Constituição? Urge identificar melhor tais observações.
As relações entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno Estatal podem
ser ponderadas a partir de duas correntes doutrinárias. São elas, dualismo e monismo. A
primeira posição guarda nomes como Alfred von Verdross, Carl Heinrich Triepel, Strupp,
Walz, Listz, Anzilotti, Balladore Pallieri e Alf Ross. Mister colacionar que:
constitucionalismo democrático, claramente menos oneroso y más idóneo para garantizar la paz social y la igual consideración de la
dignidad de las personas que cualquier otro sistema de autoridad política conocido” (PISARELLO, 2001, p.105).
8 Não é demais repetir que: “Desse modo, todos os poderes públicos e esferas nacionais, bem como as
respectivas legislações federais, estaduais e municipais de todos os Estados aderentes, estão compelidos a
respeitá-la e a ela se adequar” (CALDAS, 2013, p.411).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 32
Para os adeptos dessa corrente, o Direito interno de cada Estado e o Direito
Internacional são dois sistemas independentes e distintos, ou seja, constituem círculos que não se interceptam (meramente contíguos), embora sejam igualmente válidos. As fontes e normas do Direito Internacional (notadamente os tratados) não tem, para os dualistas, qualquer influência sobre
questões relativas ao âmbito do Direito interno, e vice-versa, de sorte que
entre ambos os ordenamentos jamais poderia haver conflitos. (...) Portanto
conforme os dualistas, quando um Estado assume um compromisso exterior o está aprovando tão somente como fonte do Direito Internacional,
sem qualquer impacto ou repercussão no seu cenário normativo interno.
Para que isto ocorra, ou seja, para que um compromisso internacionalmente
assumido passe a ter valor jurídico no âmbito do Direito interno desse Estado, é necessário que o Direito Internacional seja transformado em norma de
Direito interno, o que se dá pelo processo conhecido como adoção ou transformação. Assim, o primado normativo, para os dualistas, é da lei interna
de cada Estado e não do Direito Internacional (MAZZUOLI, 2008, p.67) (g.n).
Por tal posição doutrinária percebe-se a preponderância do Direito Interno sobre o
Direito Internacional, a partir do momento que para que esse possa ter alguma validade no interior de um Estado, deve aquele “permitir” ou não, sua entrada. Tal separação
funda-se no primado da Soberania, que tem como objeto fixar “a noção de predomínio
que o ordenamento estatal exerce num certo território e numa determinada população”
(BONAVIDES, 2008, p.132-3). Por força disso, prega a corrente do século XVII, conforme
os apontamentos históricos do cientista político brasileiro, que “a soberania é una e indivisível, não se delega a soberania, a soberania é irrevogável, a soberania é perpétua, a
soberania é um poder supremo, eis os principais pontos de caracterização” (BONAVIDES,
2008, p.136).
Entretanto, ante o panorama atual, já reconhece a doutrina, que o conceito ideal
de Soberania encontra óbices uma vez que com o avanço da comunicação, da influência
de Estados sobre outros e da ordem internacional sobre o âmbito interno de cada país, é
perfeitamente compreensível a evidência de uma crise conceitual. Salienta a doutrina que:
A crise contemporânea desse conceito envolve aspectos fundamentais: de
uma parte, a dificuldade de conciliar a noção de soberania do Estado com a
ordem internacional, de modo que a ênfase na soberania do Estado implica
sacrifício maior ou menor do ordenamento internacional e, vice-versa(...) Há
juristas, sociólogos e pensadores políticos que entendem tratar-se de um
conceito já em declínio. Hoje por exemplo, conforme alguns publicistas, as
ideologias pesam mais nas relações entre os Estados do que o sentimento
nacional de soberania (BONAVIDES, 2008, p.133-143).
O conceito de Soberania pois, longe de frustrar a identidade nacional de cada individuo deve respeitar a principal razão de ser do Estado. Ora, se é este fruto do Contrato Social, os pactuantes não podem perder ou ver ameaçada ou desconsiderada a sua dignidade por força de legislação interna indiferente às pressões internacionais. A razão de ser do
Estado é o homem e esse não pode ser suprimido em face de um respeito cego à Soberania.
O Dualismo pois, é amplamente passível de críticas, uma vez que
Se o Direito é uno e anterior à vontade dos Estados, não se pode entender
de outra maneira senão como estando o Direito interno inserido no Direito
Internacional, de onde retira o seu fundamento de validade. Pensar de outra
forma significa entender o Estado como algo estranho à sociedade interna-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 33
cional e à margem do mundo exterior, fechado assim a qualquer tipo de integração jurídica ou social o que não pode ser admissível a qualquer título
(MAZZUOLI, 2008, p.71).
O Dualismo9, pois em sua substância, se mostra teratológico ante o cenário atual das
discussões neoconstitucionalistas como iremos abordar mais a frente. Percebe-se que se
forja em um sistema ultrapassado e que desconsidera as relações entre os Estados como
se vivessem em universos distintos. A Soberania, pois, não pode mais obstar o triunfo
axiológico do Principio da Dignidade da Pessoa Humana, que cobra muito mais do que
recepção, mas também aplicação.
A outra corrente doutrinária, chamada de Monismo, seguida por Kelsen, Verdross,
Mirkine-Guetzévich, Lauterpacht, Haroldo Valadão, Celso D. de Albuquerque Mello, et all,
toma como raciocínio a unicidade do conjunto das normas jurídicas, internas e internacionais (MAZZUOLI, 2008, p.73). Para tal teoria, “o Direito Internacional se aplica diretamente na ordem jurídica dos Estados, independentemente de qualquer ‘transformação’”
(MAZZUOLI, 2008, p.72), onde se pode tirar a lógica conclusão de que “tanto o Direito
Interno como o Direito Internacional estariam aptos para reger as relações jurídicas dos
indivíduos, sendo inútil qualquer processo de incorporação formal das normas internacionais no ordenamento jurídico interno” (MAZZUOLI, 2008, p.72). O Direito interno, pois
retira do Direito Internacional sua validade lógica, tendo na sua carga valorativa a Norma
Fundamental ou Grundnorm, não precisando que haja a construção de um novo diploma
normativo no interior do Estado, nada obstante já haver a presença daquele tratado. Preza-se pois por “um só universo jurídico, coordenado, regendo o conjunto das atividades
sociais dos Estados, das Organizações Internacionais e dos indivíduos” (MAZZUOLI, 2008,
p.73), de modo que baste a existência de compromissos exteriores para que esteja o presente Estado inserto naquele ordenamento externo, ganhando este aplicabilidade prática
e imediata no interior daquele.
A presente corrente, é imperioso que se diga, subdivide-se a partir do momento em
que se avistam antinomias. Sem embargo, um arcabouço normativo por abranger muitas
complexidades pode encontrar-se diante de perspectivas antinômicas, naturais em qualquer Ordenamento. Todavia, insurge aqui a presente dúvida. Em caso de antinomias, que
normas deverão preponderar? Os tratados internacionais, ou as regras internas? Aqui se
empreende a subdivisão monista. Inicialmente poder-se-á explicitar o Monismo Nacionalista. Conforme tal postura doutrinária apregoa-se o primado do direito nacional de cada
Estado soberano, resultando a aplicação dos tratados internacionais como faculdade discricionária ao ordenamento interno (MAZZUOLI, 2008, p.78). Prestigia-se antes o Direito
Interno, reputando-o como prevalente sobre o Direito Internacional. É dizer:
O Direito Internacional só tem valor internamente sob o ponto de vista do ordenamento interno do Estado, pois é a ordem jurídica estatal que prevê quais
são os órgãos competentes para a celebração de tratados e como esses órgãos
podem obrigar, internacionalmente, em seu nome, a Nação soberana.(...) o
9 Conforme o raciocínio engendrado na doutrina: “Dualismo é corolário dogmático-apológico da teoria da soberania absoluta
do Estado. Ora, se o Direito não é produto exclusivo da vontade do Estado, mas antes, lhe é anterior, o que o Estado faz é apenas
reconhecer a sua obrigatoriedade, por meio de normas jurídicas, tanto no plano interno, como no plano internacional. Se o Estado
reconhece tal obrigatoriedade, é porque além de consagrar que o Direito é uno, também reconhece que por meio de um principio
geral anterior é que lhe foi concedido o poder de criar normas jurídicas de cunho obrigatório. Se este principio emanado da ordem
jurídica internacional- consubstanciando na norma pacta sunt servanda lhe é anterior, não se pode olvidar que do sistema internacional é que advém a obrigatoriedade do Direito interno” (MAZZUOLI, 2008, p.72).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 34
Direito Internacional só é internamente obrigatório porque o Direito interno –
no exercício de sua competência soberana – o reconhece como vinculante em
relação a si (MAZZUOLI, 2008, p.79).
A outra posição doutrinária por sua vez, parece atender perfeitamente aos ditames
neoconstitucionais que contemporaneamente se sobressaem sobre o Direito Doméstico,
reforçando a posição de que não pode o ordenamento interno obstar a prevalência do Direito Internacional sobre os Estados, dada sua natural supraconstitucionalidade10. Trata-se do Monismo Internacionalista, defendido por Hans Kelsen, Alfred Verdross e Josef
Kunz.
O monismo que preza a total primazia do Direito Internacional sobre o Direito Interno
corrobora-se em virtude da concepção de que os tratados internacionais sobrepõem-se ao
ordenamento doméstico, haja vista fundar-se este, naqueles. O Direito Internacional pois,
representa-se como ordem jurídica hierarquicamente superior. Apresenta-se aqui o conceito de supraconstitucionalidade, como previsão jurídica capaz de prestar-se acima das
cartas constitucionais, nada obstante servir de fundamento para estas11.
Em outras palavras, o Direito Internacional passa a ser hierarquicamente
superior a todo o Direito interno do Estado, da mesma forma que as normas constitucionais o são sobre as leis ordinárias e assim por diante. E isto
porque o seu fundamento de validade repousa sobre o princípio pacta sunt
servanda, que é a norma mais elevada da ordem jurídica mundial e da qual
todas as demais normas derivam, representando o dever dos Estados em
cumprirem as suas obrigações. Ademais, se as normas do Direito Internacional regem a conduta da sociedade internacional, não podem elas ser revogadas unilateralmente por nenhum dos seus atores (MAZZUOLI, 2008, p.74).
Pode-se registrar ainda que o monismo internacionalista “fomenta o desenvolvimento
do Direito Internacional e a evolução da sociedade das nações rumo à concretização de
uma comunidade internacional universal, ou seja, a civitas maxima” (MAZZUOLI, 2008,
p.77).
A par de tudo isso, se a aspiração explorada é de fato a que almeja a Proteção Internacional dos Direitos Humanos, não é compreensível que normas internas possam obstar as
pretensões mundiais que objetivem valorar a dignidade da pessoa humana com argumentos burocráticos que defendam obtusos ideais, escondendo-se sob a égide da constituição.
Estando certos que a norma internacional é pressuposto de validade da interna, reputada
assim a sua supraconstitucionalidade, não há falar em Soberania capaz de sobrepor-se
ao jus cogens. As liberdades e garantias individuais, como igualdade de oportunidade,
exempli gratia, não podem depender da discricionariedade dos Estados em assinar ou não
tratados, devendo pois valer-se a partir do momento de sua existência, independente de
anuência ou recepção
10 Mister que se diga: “A tendência do constitucionalismo moderno, (...) é permitir a aplicação imediata do Direito Internacional
pelos juízes e tribunais nacionais, sem a necessidade de edição de norma interna que os materialize e lhes dê aplicabilidade. Trata-se
da consagração da doutrina monista internacionalista no que tange às relações do Direito Internacional com o Direito interno dos
Estados” (MAZZUOLI, 2008, p.63).
11 Importante frisar as lições do autor em que: “o Direito Internacional passa a ser hierarquicamente superior a todo o Direito
interno do Estado, da mesma forma que as normas constitucionais o são sobre as leis ordinárias e assim por diante. E isto porque o
seu fundamento de validade repousa sobre o princípio pacta sunt servanda, que é a norma mais elevada da ordem jurídica mundial
e da qual todas as demais normas derivam, representando o dever dos Estados em cumprirem as suas obrigações. Ademais, se as
normas do Direito Internacional regem a conduta da sociedade internacional, não podem elas ser revogadas unilateralmente por
nenhum dos seus atores” (MAZZUOLI, 2008, p.74).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 35
3.
Do Controle de Convencionalidade
Pode-se dizer que uma das características marcantes do reconhecimento da jurisdição internacional no âmbito interno de um País se orienta a partir da figura do Controle de
Convencionalidade. Algo natural presente em um Ordenamento Jurídico é a presença da
antinomia jurídica, como contradição e oposição entre dispositivos legais. Para tanto, as
clássicas doutrinas jurídicas, utilizam-se de mecanismos de priorização entre uma regra
jurídica e outra, de modo que o intérprete possa aplicar a norma mais acertada e correspondente ao caso concreto. Pode-se dizer que:
Para que haja antinomia jurídica, é primeira condição que as normas que expressam ordens ao mesmo sujeito emanem de autoridades competentes num
mesmo âmbito normativo. [...] A segunda condição exige que as instruções
dadas ao comportamento do receptor se contradigam, pois, para obedecê-las,
ele deve também desobedecê-las. Essa condição é lógica. É preciso, pois,
determinar quando duas normas, formalmente, se contradizem. [...] É preciso, pois, considerar a terceira hipótese: o sujeito tem de ficar numa posição
insustentável, isto é, não terá qualquer recurso para livrar-se dela (FERRAZ
JR. 2008, p.177-178).
O escalonamento normativo piramidal, naturalmente kelseniano, prevê que no topo
de sua estrutura localiza-se a Constituição, que advém por sua vez da Grundnorm12 ou
Norma Fundamental, pressuposto-mor de todo o sistema abalizado. (KELSEN, 2006). Assim sendo, costuma-se solucionar as antinomias que envolvam legislações hierarquicamente congruentes a partir de critérios que identifiquem a precisão e o esclarecimento do
tema, tomando como ideal ao caso concreto a norma específica em prejuízo da norma geral, exempli gratia. No entanto, quando reputada a antinomia de lei ordinária, lei complementar, decreto, resolução, circular, portaria, et caterva, em face da Constituição, ver-se-á
que aquele dispositivo hierarquicamente inferior não poderá permanecer válido naquele
ordenamento, nada obstante contraditar-se às normas constitucionais que dão vida e razão de ser a todo o sistema jurídico impactado. Deverá, pois ser tal norma declarada de
pronto, inconstitucional.
Sabe-se que são duas as formas de obtenção da declaração de inconstitucionalidade.
Há falar tanto o meio difuso como o meio concentrado. Diz-se controle difuso ou incidental
aquele realizado diante de um caso concreto onde é suscitado uma antinomia no curso do
processo, devendo o magistrado realizar o devido exame e reputar inter partes, a inconstitucionalidade daquela norma. Por outro lado há a presença do controle concentrado ou
abstrato de constitucionalidade, realizada perante a corte que fizer às vezes de Tribunal
Constitucional, aqui no Brasil, chamada de Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um
processo judicial voltado especificamente para confrontar as duas normas, sendo assim
aquela observada na Carta Magna e a respectiva regra presente no cunho infraconstitucional.
O controle de constitucionalidade pressupõe, portanto que todas as regras inferiores
à Constituição devem se curvar a ela, de modo que seja assim protegida a unidade do
Ordenamento Jurídico. No entanto, com a abrangência da Jurisdição Internacional sob
12 Conforme a clássica contribuição do jusfilósofo alemão, “Se queremos conhecer a natureza da norma
fundamental, devem sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em
termos globais; e mediatamente se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva
de acordo com ela criada” (KELSEN, 2006, p.224).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 36
o Direito brasileiro, a partir das ratificações de tratados internacionais13, passou a doutrina a examinar a possibilidade de normas acima ou em paridade com a Constituição,
ao tempo que “em caso de conflito, deve o intérprete optar preferencialmente pela fonte
que proporciona a norma mais favorável à pessoa protegida (princípio internacional pro
homine)” (MAZZUOLI, 2011, p.30). É perceptível que inobstante a importância dos conteúdos internacionais, sem prejuízo do próprio reconhecimento da Constituição Federal de
1988, em seu Art. 5º, parágrafo 2º e 3º 14, alguns dos tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil ainda encontram óbices e embaraços nacionalistas que
prejudicam a percepção hierárquica do Direito Internacional dos Direitos Humanos no
meio doméstico15.
Como se sabe, conforme o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal , os tratados internacionais de direitos humanos que atingirem o quorum qualificado
previsto na Constituição, possuirão status de emenda constitucional. Por outro lado, os
tratados internacionais de direitos humanos ratificados e vigentes no Brasil, mas não
aprovados com quorum qualificado, juntamente com aqueles tratados assinados antes da
16
13 Conforme a rica doutrina jusinternacionalista: “Atualmente, já se encontram ratificados pelo Brasil
(estando em pleno vigor entre nós) praticamente todos os tratados internacionais significativos sobre direitos
humanos pertencentes ao sistema global de proteção dos direitos humanos (também chamado de sistema
das Nações Unidas). São exemplos desses instrumentos (já incorporados ao direito brasileiro) a Convenção
para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966), o Protocolo Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos (1966), o Protocolo Facultativo Relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
(1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), o Protocolo Facultativo â Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra à Mulher (1999), a Convenção Contra a Tortura e
Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989), o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998), o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Referentes à Venda de Crianças, à Prostituição Infantil e à Pornografia
Infantil (2000), o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Referentes à Venda de
Crianças, à Prostituição Infantil e à Pornografia Infantil (2000), o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
Direitos da Criança Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados (2000) e, ainda, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida como Convenção de Mérida (2003). [...] No que tange
ao sistema interamericano de direitos humanos a situação (felizmente) não é diferente. O Brasil também já
é parte de praticamente todos os tratados existentes nesse contexto, a exemplo da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (1969) , do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos
referente à Abolição da Pena de Morte (1990), da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura
(1985), da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994) e da Convenção Interamericana para
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999)”
(MAZZUOLI, 2011, p.26-27).
14 Segundo a Constituição Federal em seu Art. 5º - § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”
(BRASIL, 1988, Constituição da República Federativa do Brasil, grifos nossos).
15 16 RE 466.343/SP
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 37
Emenda Constitucional de nº 45, possuem caráter de mera supralegalidade. (MAZZUOLI,
2011, p.16)17. Da mesma forma também, os tratados internacionais que versem sobre matéria econômica, inserção e integração regional.18
A proposta do presente trabalho por outro lado, em muito destoa da percepção do
Supremo Tribunal Federal, uma vez que tratados internacionais que versem sobre direitos
humanos não podem curvar-se à nenhum mecanismo ou embargo jurídico que sirvam
para afastar e comprometer sua eficácia.19 É imperioso que seja reconhecida a supraconstitucionalidade dessa matéria, devendo até mesmo a Constituição Federal20 curvar-se,
cabendo o controle de convencionalidade de suas emendas descontextualizadas com o panorama global dos direitos humanos. Mas o que vem a ser controle de convencionalidade?
Importa colacionar as palavras do pesquisador que primeiro reconheceu a importância
dessa relação jurídica.
Falar em controle de convencionalidade significa falar em compatibilidade
vertical das normas do direito interno com as convenções internacionais de
direitos humanos em vigor no país. Significa, também, falar em técnica judicial de compatibilização vertical das leis com tais preceitos internacionais de
direitos humanos (MAZZUOLI, 2011, p.23). Representa, portanto o mecanismo apto para ajustar o direito doméstico, colmatando
possíveis antinomias, que porventura possam insurgir a partir da legislação infraconstitucional e por que não, constitucional. Assim sendo, é perfeitamente possível a existência
do controle difuso de convencionalidade a partir da justiça de piso. Basta apenas o conhecimento da norma internacional, pelos operadores do Direito em geral, que poderão
insurgir no curso das ações em qualquer foro do Brasil. Não representa outra coisa senão
a adequação da legislação antinômica com o corpo normativo internacional, tolhendo a
validade da primeira, com a eficácia inter partes. (MAZZUOLI, 2011). O controle concen-
17 Extraído do Prefácio de Luiz Flávio Gomes.
18 A título exemplificativo importa colacionar as lições trazidas por Fernando Martinez Westerhausen, acerca do Tratado de
Assunção, formatado em 26 de março de 1991, que “estabeleceu um projeto de Mercado Comum, denominado “Mercado Comum
do Sul” ou MERCOSUL, que perseguia os seguintes objetivos: - livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, com eliminação das taxas alfandegárias e os entraves não alfandegários a circulação de mercadorias; - estabelecimento de uma Taxa Externa
Comum e adoção de uma política comercial comum com relação a terceiros países ou grupos de países, assim como a coordenação
de posições nos foros econômicos e comerciais regionais e internacionais; - coordenação das políticas econômicas, macroeconômicas e setoriais entre os Estados membros; - Fortalecimento do processo de integração, mediante a harmonização das respectivas
legislações nacionais (WESTERHAUSEN, 2013, p.31).
19 Riquíssima a anotação aperfeiçoada por Antônio Augusto Cançado Trindade, onde reputou que “A
responsabilidade internacional do Estado por violações comprovadas de direitos humanos permanece intangível, independentemente dos malabarismos pseudo-jurídicos de certos publicistas (como a criação de
distintas modalidades de prévia aprovação parlamentar de determinados tratados, a previsão de pré-requisitos para a aplicabilidade direta de tratados no direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que
oferecer subterfúgios vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus compromissos de proteção do ser
humano no âmbito do contencioso internacional dos direitos humanos” (CANÇADO TRINDADE, 2007, apud
MAZZUOLI, 2011, p.36-37).
20 De maneira similar caminha a ideia do Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Roberto
de Figueiredo Caldas: “Entre a Constituição nacional e a CADH deve aplicar-se sempre a mais benéfica na
proteção das pessoas. Ademais, o controle de convencionalidade não se aplica somente às leis internas, mas
também às Constituições dos Estados Nacionais” (CALDAS, 2013, p. 410).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 38
trado de convencionalidade, por sua vez, só poderá ser exercido pela corte que integrar o
sistema pertencente ao tratado que foi ratificado. É dizer, no SIDH, apenas a CORTEIDH
poderá cuidar do controle abstrato, com eficácia erga omnes21.
4.
Da subdivisão dos Direitos Humanos como entrave à absoluta eficácia do SIDH:
O Principio da Eficácia Progressiva dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
Ante a exposição supra, faz-se mister engendrar a que aqui reputar-se-á como a principal jaça que predomina sobre o SIDH, comprometendo toda a aplicabilidade dos direitos
humanos no plano interno dos Estados e resultando em verdadeiro entrave que prejudica
a razão da proteção global da pessoa humana. Para tanto, vem à tona a questionada subdivisão dos direitos humanos no cenário internacional. É que não obstante a garantia e a
plena eficácia dos direitos civis e políticos encartados na CADH, falta tal imediatismo no
momento da aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, onde contrario sensu,
age o SIDH, “limitando-se a determinar aos Estados que alcancem, progressivamente, a
plena realização desses direitos, mediante a adoção de medidas legislativas e outras medidas que se mostrem apropriadas [...]” (PIOVESAN, 2012, p.141). Trata-se de verdadeira
afronta ao núcleo dos direitos humanos que não podem ser fracionados, como informa o
Professor Jayme Benvenuto Lima Jr. (2001, s/p) por uma mera classificação22. Remonta o
Professor ainda com precisão categórica que: “Os direitos humanos econômicos, sociais e
culturais são tão direitos humanos quanto todos os outros, razão pela qual devemos afirmar os mecanismos já existentes para a sua exigibilidade, assim como criar outros que
venham a ser necessários” (LIMA JR., 2001, s/p).
Mas, insurge a pergunta. Qual a razão de ser de tal subdivisão? É possível responder
a partir da leitura do Principio da Eficácia Progressiva dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. Trata-se de principiologia formatada na ideologia de aplicação dos direitos civis
e políticos com eficácia imediata, reservando aos Estados-membros a implementação progressiva dos “demais direitos humanos.” Ora, ao “proteger” uma classe de direitos e deixar a outra ao talante do direito doméstico, remonta em injusta repartição de aspirações,
gerando enorme frustração social e desprestígio da proteção global dos direitos humanos.
Conforme a própria CADH, possivelmente em face das pressões que envolvem o interesse
da governança dos Estados membros, deixa-se para trás direitos culturais, econômicos
e sociais, ao se tomar em consideração a sua eficácia progressiva. Destaca-se aqui como
a principal jaça que compromete o SIDH, dado deixar de garantir a aplicabilidade imediata de uma série de direitos que sempre dependeram da boa vontade do interesse governamental e que a partir da consagração da jurisdição internacional, ainda continuam
embarreirados e obstados, muito embora convencionalmente previstos23. Acerca de tais
conjunturas, essencial é o desabafo trazido por Antônio Augusto Cançado Trindade:
21 É dizer: “À Corte cabe a última palavra quanto ao controle de convencionalidade da Convenção Americana de Direitos
Humanos”. (CALDAS, 2013, p.414).
22 Em desabafo, remonta o Prof. Jayme Benvenuto que: “Ao afirmar a indivisibilidade dos direitos humanos, procuro demonstrar também as consequências práticas da afirmação desse conceito. Essa, portanto, não é uma discussão de importância meramente
teórica, sem um resultado prático na vida das pessoas, e particularmente dos movimentos e grupos de direitos humanos. Entre essas
consequências, encontra-se a necessidade de estabelecer um padrão de exigibilidade para todos os direitos humanos, independentemente de classificações ou categorizações. Classificações ou categorizações são, afinal, meros meios de ajudar a entender um
fenômeno, não devendo interferir na forma pela qual a coisa classificada terá existência prática. Sua existência independe das
classificações adotadas. (LIMA JR., 2001, s/p, grifos nossos).
23 Importante que se tome como exemplo a Convenção de Nova York, recepcionada pela Constituição
Federal de 1988, pelo Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008 e do Decreto nº 6.949, de 25 de
agosto de 2009 e que prevê a eliminação de todas as barreiras internas que se observem em face das pessoas com deficiência. Reza o conteúdo normativo no sentido que: “[...] 3.A fim de promover a igualdade
e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir
que a adaptação razoável seja oferecida. 4.Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas
que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 39
Quantos governos, a pretexto de buscar a ‘realização progressiva’ de determinados direitos econômicos e sociais em um futuro indeterminado, violaram
sistematicamente os direitos civis e políticos (e.g, a América Latina das ditaduras, particularmente da década dos setenta)! Quantos governos vêm se
escudando nas conquistas dos direitos civis e políticos para negar vigência
aos direitos econômicos, sociais e culturais (e.g., a América Latina de hoje)!
Quantos governos se arrogam em ‘promotores’ de alguns direitos econômicos e sociais para continuar minimizando os direitos civis e políticos (e.g., os
países fundamentalistas nos trabalhos da II Conferência Mundial de Direitos
Humanos, além de vários países asiáticos hoje)! Quantos governos, em diferentes partes do mundo, insistem em ‘escolher’ os direitos a ‘dar prioridade’
e promover, postergando a realização dos demais a um futuro indefinido!
Tais posturas falam por si próprias, revelando as incongruências de visões
atomizadas ou fragmentadas dos direitos humanos. A integridade do ser humano corresponde em definitivo a integralidade de seus direitos (CANÇADO
TRINDADE, 2003, p.383-384).
Compromete-se certamente todo o arcabouço que se tenta proteger a partir desta sublime subdivisão. A própria razão de ser da proteção global dos direitos humanos é colocada em xeque quando dependente de fatores estranhos ao desiderato pregado pela doutrina
da proteção da dignidade humana. É dizer, se foi criado um sistema voltado a suprir as
imperfeições dos ordenamentos domésticos, ao se postergar a implementação de parte dos
direitos humanos, em nada avança o sistema. Depender do interesse dos Estados é tornar
ao status quo ante, em ineficaz moto perpétuo.
5.
Considerações conclusivas
Nada obstante as elucidações supra reputadas, o estado de perfeição é de todo modo
utópico. Não se pode esperar um modelo efetivamente operacional sem que para tanto,
ultrapasse a humanidade os estágios de quebra de paradigma e mudança de concepções.
Como se pôde constatar, a teoria monista internacionalista apresenta-se sob um viés diferenciado, onde, preocupado com a dignidade da pessoa humana, reconhece a relativização
da própria soberania dos Estados membros, ante a supraconstitucionalidade das convenções do Direito Internacional dos Direitos Humanos, reconhecidas e ratificadas pelos
ordenamentos internos. O uso paulatino desta corrente de pensamento, ante a falibilidade latente das governanças domésticas, pouco preocupadas com a dignidade da pessoa
humana, tem permitido o crescimento da jurisdição internacional. Melhor prova não há
senão a blindagem do ius cogens ante a hipotética presença futura de Poder Constituinte
Originário no interior de qualquer dos Estados signatários. É dizer, não há falar mais em
consideradas discriminatórias [...]” (BRASIL, Dec. nº 6.949, 2009, grifos nossos). Ocorre que o Principio da
Eficácia Progressiva dos Direitos Humanos, há muito tem dificultado o acesso das pessoas com deficiência
à proteção convencional, mantido o total desamparo em matérias de acessibilidade à cultura e ao lazer, mobilidade urbana, et caterva. Vem à baila o desabafo do Juiz Federal Dr. Roberto Wanderley Nogueira, onde:
“Do ponto de vista jurídico, parece elementar que a condição pessoal de cada um não deve afetar o circuito
de seus direitos subjetivos e nem mesmo restringir-lhe o acesso a eles, à sua efetividade. Assim, não basta
reconhecer os direitos. É fundamental que se operem as condições sem as quais esses direitos não serão
ordinariamente alcançados pelos seus titulares. Importante considerar que a igualdade jurídica, hoje, não
importa em uma mera abstração, ou em uma simples ficção legal, mas se traduz em um exercício de comprometimento com a Justiça para todos, sob o império da Lei (“Equal Justice, under Law”). Igualdade formal
sem igualdade real é, pois, desigualdade e isto já não pode ser admitido concretamente nas sociedades
contemporâneas, regidas pelo império constitucionalizado dos Direitos Humanos (NOGUEIRA, 2012, s/p).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 40
supremacia da Constituição24 como norma maior e inalcançável. A partir do momento em
que se reconhece um ordenamento advindo de uma instância superior, tudo o que dele
prever só poderá ser reformulado por ele mesmo, independente das cartas ou tribunais
constitucionais locais.
É bem certo que o panorama atual ainda não satisfaz as expectativas previstas para
a consagração da comunidade internacional, ante a presença de obstáculos como o da implementação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais. Entretanto é preciso
convir que já foi dado o primeiro passo rumo ao alcance absoluto da dignidade da pessoa
humana, principio basilar da civitas maxima e fundamento supremo do ius cogens.
REFERÊNCIAS
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sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em
Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm> Acesso em: 01 set 2014.
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_______. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, 2.ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
24 Como se demonstrou acima, o STF ainda não reconhece o Direito Internacional dos Direitos Humanos
e os seus respectivos tratados como propriamente “Supraconstitucionais”, dado não adotar ainda a Teoria
Monista Internacionalista. Entretanto sob o viés de uma perspectiva idealista, admite-se a supraconstitucionalidade como fator, naturalmente deôntico.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 41
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WESTERHAUSEN, Fernando Martínez. Integração e inserção internacional da America
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 42
UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA:
MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E ARBITRAGEM.
Alberto Jonathas Maia1
1.
Introdução
A premissa fundamental desse estudo é a convicção de que a Constituição não precisa passar sempre pelo constituinte reformador para que sejam alterados os sentidos
do seu texto. Tanto que a proposta ora apresentada é provocar uma mudança na concepção de infastabilidade do Poder Judiciário, dando os primeiros passos rumo a uma
concepção abrangente de jurisdição.
Dessa forma o inciso XXXV do art. 5° da Constituição Republicana possui o mesmo
significado que tinham na época da constituinte? É possível tem uma nova concepção
de acesso à justiça? Apenas o Poder Judiciário pode proporcionar acesso à justiça? A
justiça que o legislador constituinte estava tratando era acesso aos tribunais?
Esse ensaio não tem o objetivo de esgotar o tema, longe disso, nosso principal
objeto é provocar uma reflexão e expor a necessidade real de uma nova interpretação
constitucional o acesso à justiça. Se formos escutar e reproduzir a nota da música que
diz apenas que o judiciário está combalido e a beira do colapso, nada mudará. É necessária a busca de soluções concretas através de mecanismos constantes no nosso
sistema jurídico e apontar possíveis remédios para esse problema grave que afeta todo
o jurisdicionado brasileiro.
Existem múltiplas construções científicas acerca das reformas constitucionais tanto em âmbito doutrinário quanto em âmbito jurisprudencial com as mais variadas concepções sobre esse instituto. Trazer os inúmeros debates do tema para esse trabalho
seria um equívoco metodológico que se distanciaria do nosso objetivo. Por essa razão
optamos fazer um corte e atentar pelo processo informal de mudança da constituição:
a mutação constitucional. E ainda de como sua aplicabilidade nos dispositivos que
tratam do acesso à justiça na Carta Magna, afim de buscar uma nova interpretação a
partir de novos fundamentos e circunstâncias das mais variadas ordens.
A construção desse estudo será desenvolvida em três pontos principais. O primeiro
trataremos da necessidade da mutação constitucional do art. 5° XXXV da Constituição
Federal, posteriormente tentaremos provar que o acesso à justiça ou ao Poder Judiciário
em verdade é uma tentativa do legislador de garantir acesso à jurisdição, seja mecanismos públicos ou privados e por fim analisaremos o julgamento do Supremo Tribunal
Federal acerca da constitucionalidade da arbitragem, mecanismo privado de acesso à
jurisdição.
2.
Interpretação constitucional contemporânea.
1 Pós-graduando em Direito Processual Civil; membro da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem OAB/PE; co-fundador do Grupo Marco Maciel de Arbitragem; criador do aplicativo Arb-it Portal de
Estudos sobre arbitragem. Advogado.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 43
A hermenêutica jurídica que nas palavras de Guimarães (2009, p.131) representa
a ciência de interpretação de textos de lei e tem por escopo a avaliação sistemática dos
procedimentos a serem empregados para indicar o melhor sentido e a abrangência das
normas jurídicas é um tema amplo, aliás, assunto de aplicabilidade diária que deve provocar nos juristas a busca do seu aperfeiçoamento, e demandaria uma profunda análise
de escolas e técnicas e hermenêuticas o que poderia causar prejuízos metodológicos
para esse estudo.
A matriz da interpretação constitucional foi desenvolvida, mormente, em consequência da construção sistemática proposta por Kelsen. Quando o jurista austríaco
propôs a sedimentação das leis conduzindo-se numa pirâmide, ele construiu uma base
teórica para uma constituição de caráter soberano, que serviria de referência para todas
as demais leis. Essa proposição colocava a organização do Estado no núcleo dessa lei
suprema, e assim a estabilidade do próprio Estado Democrático seria decorrente dessa
constituição.
Essa disposição teórica evidencia o destaque que a Constituição possui tanto para
o sistema normativo de um determinado Estado quanto para as relações que este possui com os cidadãos. A mutação constitucional preservaria os direitos já consagrados e
ampliaria ainda mais os meios de atingir a paz social. É que o texto constitucional seria
mantido, mas o sentido que lhe é atribuído seria outro. Por isso falamos de mudança
informal da Constituição. Partindo do pressuposto que norma não se confunde com o
texto de lei teríamos uma mudança da norma sem alteração na letra da lei. Esse fenômeno quando acontece em sede constitucional é denominado mutação constitucional.
Uma nova interpretação do princípio constitucional de acesso à justiça pode trazer
grandes reflexos para sociedade. De fato. Etá evidenciado a necessidade de alternativas
para sanar a crise estrutural vivenciada pelo Poder Judiciário que até então detinha
o monopólio do exercício de jurisdição. Ocorre que com o advento da Lei 9.307/96 as
pessoas capazes que tem interesse em dirimir seus conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis através da arbitragem que como veremos é legítimo exercício de
jurisdição.
3.
A necessidade da mutação constitucional do art. 5° XXXV da Constituição.
A Constituição de 1988 foi feita com características de instrumento de
transformação da realidade nacional. Será assim na medida em que se
cumpra e se realize na vida prática. Uma Constituição que não se efetive
não passa de uma folha de papel, porque nada terá a ver com a vida subjacente. As leis que ela postula serão as garras e as esponjas que a fazem
grudar na realidade que ela visa a reger, ao mesmo tempo que se impregna dos valores enriquecedores que sobem do viver social às suas normas
(SILVA, 2000, p. 259).
Os dispositivos de um determinado sistema jurídico podem dispor de mais de uma
significação, ou mais, mudar completamente seu sentido original com o transcorrer do
tempo. Perceber “as finalidades supremas dos preceitos constitucionais, tornando-os
efetivos e harmônicos entre si, é a palavra de ordem na exegese das constituições” (BULOS 2010. p.436). No processo interpretativo constitucional deve-se “buscar a harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas, adequando-as à realidade
e pleiteando a maior aplicabilidade dos direitos, garantias e liberdades públicas”. (MORAES, 2003. p. 45).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 44
O texto da norma constitucional pode representar, a depender da época, outro sentido independente na alteração formal do texto ou do conjunto de palavras utilizadas na
ordem positiva. Devendo assim ser interpretado em conformidade com o contexto social,
político e econômico que se encontra inserida2. Isso é possível pelo simples fato de que
a Constituição é um texto sensível as mudanças sociais, diferentemente do que aqueles
que veiculam os demais comandos jurídicos (MENDES, 2009, p. 152).
Nessa linha, a mutações constitucional é a permuta na semântica da ordem constitucional decorrente “de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em
que se concretiza a sua aplicação” e ainda do casamento da especificidade da linguagem
constitucional com os elementos externos do Estado (sociais, políticos, etc) que a Constituição planeja dirigir e que se comunicam direta ou indiretamente com ela, gerando
“leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte”. (Idem)
O ministro da suprema corte Celso de Mello nos esclarece que a mutação constitucional funciona como instrumento juridicamente competente de alternância informal
da Carta Constitucional. É que com o passar do tempo uma adequação jurídica se torna necessária, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da
República para compatibilizá-la, mediante exegese inovadora, com as novas demandas,
necessidades e conversões decorrentes dos processos sociais, políticos e econômicos
que desenham a sociedade contemporânea: Com efeito, os magistrado e Tribunais, no exercício de sua aditividade interpretativa, (...) devem observar um princípio hermenêutico básico, consistente em atribuir primazia à norma em que se revele mais favorável à
dignidade da pessoa humana, e o acesso à jurisdição é um instrumento de
proteção desta dignidade, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. (HC 91361)
Podemos observar então que a mutação constitucional é uma mudança informal
do Texto Constitucional, diferentemente das reformas decorrentes do poder constituinte
reformador em que a Constituição é formalmente modificada.
A mutação constitucional também chamada de intepretação constitucional evolutiva destina-se “a adaptar, atualizar e manter a Constituição em contínua interação com
sua realidade social” (CUNHA JÚNIOR, 2013, p.263). Longe dos aspectos procedimentais que podem ocorrer no poder legislativo ou no controle concentrado de constitucionalidade essa mudança na interpretação ocorre em virtude “de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica
que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras
hajam sofrido modificação alguma”. (MENDES, 2009. p. 263).
Conforme lúcida afirmação do professor Dirley da Cunha Júnior a mutação constitucional “é um fenômeno que vem se revelando necessário para a respiração das Constituições, cujos enunciados muitas vezes ficam asfixiados à espera de revisões formais
que nunca vêm ou que, vindo, não atendem adequadamente as demandas do texto e
dos fatos. (2013, p.264).
2 Dentre tantos, não poderíamos deixar de destacar o julgamento conjunto da ADPF nº 132-RJ pela
ADI nº 4.277-D realizado pelo STF recentemente, na análise do do art. 226 da Constituição Federal o termo “família”, segundo a Egrégia Corte: “em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico,
pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou
por pares homoafetivos”.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 45
Dito isto, como o interprete constitucional poderia analisar de forma adequada o
comando plasmado no art. 5° XXXV? E que com isso que conseguisse concretizar o sentido da ordem positiva no nosso atual contexto?
Segundo consta na nossa Carta Republicana “a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Na doutrina o princípio de inafastabilidade
da jurisdição encontra diversos nomes: acesso à ordem jurídica justa; acesso à justiça;
e, para alguns mais restritivos, acesso ao judiciário. (WATANABE, 1986, p.128). Todas
essas nomenclaturas se aproximam bastante do que aqui se pretendem analisar, mas
para esse estudo entendemos que a melhor expressão é acesso à jurisdição.
A justificativa é fundamentada pelo fato de que o nosso sistema jurídico permite
que o exercício da jurisdição possa vir de outros órgãos que não sejam originalmente do
Poder Judiciário. (CARMONA, 2009). A título exemplificativo temos os crimes de responsabilidade do Presidente da República são julgados pelo Senado Federal como fundamento nos arts. 52, I, 85 e 86 da Constituição Federal, esse fato desenha a possibilidade
de um órgão do Poder Legislativo exercer jurisdição.
Além dessa possibilidade, e aqui já direcionando para o nosso tema, temos a arbitragem regulada pela Lei 9.307/96 que em apertado conceito é o exercício de jurisdição
exercido por um terceiro escolhido pelas partes que são capazes de contratar para resolver seus conflitos relacionados com direitos disponíveis patrimonialmente.
A jurisdição que encontramos na arbitragem é privada, isto é, ocorre fora das paredes dos tribunais estatais. Frise-se que mesmo sendo privada não deixa de ser jurisdição com poder vinculante para as partes do conflito. A decisão proferida pelo árbitro tem
condão de título executivo judicial conforme o art.475-N, IV do Código de Processo Civil.
Nery Júnior afirma que essa possibilidade é uma renúncia à vida judicial, “mas
não à jurisdição. Não poderá ir à justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça
arbitral. Em ambas há, por óbvio, a atividade jurisdicional (2000, p. 80).
A necessidade de mutação constitucional se revela diante da possibilidade do jurisdicionado garantir seu direito violado ou ameaçado e assim tornar efetiva a prestação
jurisdicional seja ela prestada por órgãos estatais ou instituições privadas. É possível
desde logo esclarecer que conforme já há muito tempo apregoava Cappelletti, acesso à
justiça não quer dizer apenas acesso ao judiciário mas também jurisdição. Assunto que
trataremos logo adiante.
4.
Acesso à jurisdição ou acesso à justiça?
Acesso à justiça! A significar não o simples ingresso, a entrada física de
uma pretensão no Judiciário, mas, muito além, a assegurar a efetiva prestação da justiça, como ideal, na justa composição da lide”. (GRINOVER
apud LIMA, 1994, p. 24)
Por opção metodológica introduzimos essa questão no final do tópico anterior, mas
agora pretendemos tecer alguns comentários sobre o acesso à jurisdição. Mas antes é
bom que se diga que o acesso à justiça não pode ser desconsiderado. Existem diversas
formas de composição de conflitos (mediação, conciliação, negociação etc.) que podem
solucionar problemas dos mais variados. O que diferencia a arbitragem das demais técnicas compositivas é a sua essência jurisdicional.
Não pretendemos também realizar uma análise exauriente da obra de Mauro
Cappelletti e Bryant Garth, mas tão somente utilizar seus apontamentos acerca do tema
a fim de despertar reflexões necessárias para a construção de um estudo que vai além
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 46
da leitura fria das leis ou dos conceitos dogmáticos. Também não entendemos coerente
falar de todas as ondas de acesso à justiça, mas apenas revelar que o interprete precisa observar o dispositivo constitucional com novos olhos, olhos sensíveis as mudanças
sociais e as necessidades jurídicas atuais.
No direito pátrio houve uma preocupação clara do legislador constituinte em prestigiar o acesso ao judiciário com status de direito fundamental, encontramos na Magna Carta em seu art. 5°, XXXV, LXXVIII, LIV, LV:
1. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
2. Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
3. Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral
são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes.
4. A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Sobre esse conjunto normativo Mendes ensina que “tem-se aqui, pois, de forma
clara e inequívoca, a consagração da tutela judicial efetiva, que garante a proteção judicial contra lesão ou ameaça a direito”. (2009, p. 539).
O termo acesso à justiça veio teve destaque no direito brasileiro com os estudos
realizados por Mauro Cappelletti que se destacou na obra ‘acesso à justiça’ em colaboração com Bryant Garth. Contudo, a análise profunda desse estudo revela-se esclarecedora no verdadeiro significado de acesso à justiça, pois esta vai além da órbita acesso
ao Judiciário.
A concepção de acesso à justiça passou por diversas mudanças ao longo do tempo,
por isso insistimos na sua mutação constitucional, o objetivo desse princípio, em verdade, é tornar dar eficácia a um dos direitos básicos de todo cidadão: proteger e garantir
seus direitos e não apenas tornar acessível a comunicação de eventual violação destes.
“O acesso à justiça é, portanto, algo mais complexo, representando mais do que o ingresso ao processo e seus meios, indo além dos limites do acesso aos órgãos judiciais
existentes”. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9-12).
O acesso ao judiciário é com certeza um dos principais caminhos para que se tenha
acesso à justiça, mas não é o único (BUENO, 2000). Segundo o autor o princípio do acesso à justiça é tratado como sendo o primeiro princípio constitucional do processo civil,
que tem como parâmetros e guias “acesso à ordem jurídica justa”, “inafastabilidade da
jurisdição”, “inafastabilidade do controle jurisdicional” ou “ubiquidade da jurisdição”. O
autor explica que a intenção foi expressar o grau de abertura imposto pela Constituição
Federal para o processo civil. Abertura no sentido de ser amplamente desejável, no plano constitucional, o acesso ao Poder Judiciário. (2007, p.101)
O acesso à justiça deve ser encarado como o mais básico dos direitos
humanos de um Estado que possua um sistema jurídico hodierno que
pretenda garantir, e não apenas apregoar os direitos de todos. A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites
do acesso aos órgãos judiciais já existentes, Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 47
acesso à ordem justa. Uma empreitada assim ambiciosa requer, antes de
mais nada, uma nova postura mental. Deve-se pensar na ordem jurídica
e nas respectivas instituições, pela perspectiva do consumidor, ou seja
do destinatário das normas jurídicas, que é o povo, de sorte que o problema do acesso à Justiça traz à tona não apenas um programa de reforma
como também um método de pensamento, como com acerto acentua Mauro Cappelletti (WATANABE, 1988 p.128).
A expressão “acesso à justiça”, não significa ter a facilidade de processar alguém
ou ter acesso à tutela jurisdicional, mas ter o seu direito efetivamente resguardado. É
extremamente perigoso confundir acesso à justiça com acesso ao judiciário. Na medida
em que a eficácia da prestação jurisdicional aumentar e se desenvolver, menores são as
chances de termos uma justiça injusta, isto é, de um Judiciário injusto.
Tão injusto quanto se negar um direito a quem a ele faz jus é reconhecê-lo intempestivamente, quando a utilidade do seu exercício já foi destruída ou mitigada pela ação
implacável do tempo.
O acesso à justiça não é um convite e menos ainda um incentivo para um
estado de beligerância entre os jurisdicionados e deles em face do Estado,
e sim uma garantia residual de que serão apreciadas, e sendo possível,
eliminadas as crises de certeza, satisfação e segurança, ao pressuposto
de a controvérsia ter se revelado impossível por outros meios. (MANCUSO,
2006, p.172)
O acesso à justiça diz respeito à preservação da jurisdição dos tribunais e paralelamente o aperfeiçoamento desse método alternativo jurisdicional fazendo com que
seus benefícios fiquem à disposição de todos os indivíduos que a Lei de Arbitragem vem
tentando lhes dar (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.92).
Esse acesso está ligado à efetiva obtenção ou proteção do direito através de potente prestação jurisdicional, e não apenas no mandamento dado pelo Estado-juiz, ou no
caso pelo árbitro através de sentença. Opero, portanto, na mesma linha do Professor
Roberto Campos Gouveia o qual ensina que nos casos de processo de execução, a executividade não está na ordem, mas na referida transmutação ou das esferas jurídicas
de uma parte para a outra na relação processual (2012).
O acesso à justiça ocorre portanto quando a tutela jurisdicional é prestada com
efetividade seja em âmbito público quanto na esfera privada, resolvendo conflitos, garantindo direitos e preservando a paz social.
5.
A visão do Supremo na análise constitucional da arbitragem.
Esse leading case histórico merece nossa atenção, pois foi com o julgamento desse
processo que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade da Lei de
Arbitragem. Por oportuno é por esclarecer que não se trata de uma mutação constitucional mas tão somente uma interpretação dos dispositivos dessa lei ordinária à luz a
Constituição.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Sepúlveda Pertence, negou o
pedido de homologação da sentença arbitral espanhola realizado pela sociedade suíça
MBV Commercial and Export. Management Establisment, sob o fundamento de que a
decisão arbitral estrangeira não havia sido homologada pela justiça da Espanha.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 48
É bom relembrar que antes do advento da Emenda Constitucional n°45/2004
era de competência do Supremo Tribunal Federal a competência para a homologação
de sentenças estrangeiras. Atualmente de acordo com o art. 105, I, i, da CRFB de
1988 compete ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar, originariamente a
homologação de sentenças estrangeiras.
Insatisfeita, a companhia suíça interpôs agravo interno, argumentando que de
acordo com a lei espanhola a sentença arbitral à sentença estatal são equivalentes em
efeitos, sendo desnecessária, portanto, uma dupla homologação. Acatado, agravo interposto foi provido e submetido a julgamento.
O núcleo em que se concentrou todas as discussões foi a respeito do possível
desrespeito ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição plasmado na
nossa Magna Carta no art. 5°, XXXV em face dos arts. 6° e 7° da Lei de Arbitragem que
dispõe a permissão dada ao juiz, quando provocado por uma parte que apresente cláusula compromissória, para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o
compromisso arbitral afastando a jurisdição estatal para direção e solução do conflito,
elidindo assim qualquer análise de mérito pelo Estado.
Houve uma corrente entendendo que apenas o compromisso arbitral poderia instituir a arbitragem, e se prevalecesse essa ideia a cláusula de arbitragem seria uma mera
promessa de contratar. E não apenas isso, faria com que as cláusulas compromissórias
cheias fossem tão ineficazes quanto as cláusulas compromissórias em branco. Enquanto a cheia traz informações completas e efetiva manifestação de vontade em instituir
arbitragem em um conflito futuro e se for o caso poderia ser executada de forma específica no Poder Judiciário competente (art. 7 da Lei 9.307/96), a vazia é apenas uma
manifestação genérica de renúncia à jurisdição estatal. O que se procurou mostrar é
que o objetivo da lei não é substituir a vontade das partes mas, em verdade, efetivá-la.
Visto que o pacto de arbitragem, conforme o relator: “funda-se no consentimento dos
interessados e só pode ter por objeto a solução de conflitos sobre direitos disponíveis,
ou seja, de direitos a respeito dos quais podem as partes transigirem”.
Muito embora tenha sido esse o julgado, ocorrido no ano de 2001, o marco determinante para a validade constitucional da arbitragem, em 1999 o Ministro Maurício
Corrêa no julgamento da SEC 5.847/Reino Unido o STF já havia se manifestado favoravelmente acerca da constitucionalidade da LA, verbis:
Feitas estas considerações, não vejo como possa prosperar o encaminhamento da declaração de inconstitucionalidade dos preceitos então impugnados. Ao contrário, considerando-os mecanismos de suma importância,
hodiernos e indispensáveis para o aperfeiçoamento de nosso sistema jurídico, a exemplo do que se cristalizou, há muito, na legislação da maioria
dos Estados democráticos, como instrumento alternativo, eficaz e célere para a composição de litígios. O emperramento da máquina judiciária
no Brasil, pela observância de regras, culturas e práticas, poderá ter no
sistêmico aparelho da arbitragem parcela do que falta para colocá-lo em
sintonia com o que realiza o outro lado do mundo, sem que, com isso, seja
atropelada a ordem constitucional vigente.
Foi um dos entendimentos de nossa corte maior que a ilação do efeito executivo
do título judicial no direito interno da sentença arbitral, pela Lei 9.307/96, já seria
suficiente em regra para permitir a homologação no Brasil do laudo arbitral estrangeiro, independentemente de sua prévia homologação pela Justiça do país de origem não
afrontariam aos princípios constitucionais
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 49
Na análise do Ministério Público Federal, foi realçado que o controle jurisdicional
do Estado estava amplamente prestigiado nos arts. 6°, 7°, 32, 33, 38 e 39 do diploma
legal, ao contrário do que se argumentava.
O parquet em sua manifestação asseverou:
A Lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a Direito.
Não estabeleceu que as partes interessadas não excluirão da apreciação judicial
suas questões ou conflitos. Não determina que os interessados devam levar ao
Judiciário suas demandas. Se se admite como lícita a transação relativamente a
direitos substanciais objeto da lide, não se pode considerar violência a constituição abdica do direito instrumental de ação.
O Ministro Marco Aurélio de Mello, por seu turno, e na análise dos dispositivos
questionados destacou que a Lei de Arbitragem, não houve barragem no acesso ao judiciário quando os conflitos envolvem direitos indisponíveis, segundo ele “os dois artigos
não impedem isso, ao contrário, é uma consagração à liberdade e ao princípio da vontade do cidadão garantidos na Constituição”.
Entendemos ser momento oportuno frisar que o Brasil aderiu através do decreto
n°1.902 de 1996 a Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional
– Convenção do Panamá, em que dispõe, dentre outras questões a validade de acordo
das partes em virtude do qual se obrigam a submeter a decisão arbitral as divergências
que possam surgir ou que hajam surgido (artigo 1) e que não as decisões arbitrais não
impugnáveis segundo a lei ou as normas processuais aplicáveis terão força de sentença
judicial definitiva (art. 4°).
Além da Convenção do Panamá em 2002 o Brasil também adotou a Convenção de
Nova Iorque que dispõe sobre o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras,
dais quais também se incluem as sentenças arbitrais.
A manifestação de vontade da parte na cláusula arbitral, no momento da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que este substitua a vontade da
parte recalcitrante em firmar compromisso não ofendem o artigo 5°, XXXV da Constituição Federal.
(...) ainda que a Lei 9.307/96 guarda completa harmonia com as garantias
e direitos assegurados pela CF, especialmente com o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, inscrito no art. 5º, XXXV. Essa norma
constitucional assegura a todos o acesso à justiça nas hipóteses de lesão
ou ameaça a direito, que pode se concretizar através do ajuizamento de
ação judicial. Isto não significa, contudo, que as pessoas físicas ou jurídicas estão obrigadas a ingressar em juízo toda vez que seus direitos
subjetivos são afrontados por outrem, pois o princípio garante o direito
de ação, não o impõe. O direito de ação, à luz do princípio da autonomia
das vontades, representa uma faculdade inerente à própria personalidade’
(Cândido Rangel), não um dever. O que o princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional estabelece é que: ‘a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a Direito’. Não estabelece que as partes
interessadas não excluirão da apreciação judicial suas questões ou conflitos. Não determina que os interessados deverão sempre levar ao Judiciário
suas demandas. (trecho do parecer do Ministério Público Federal da lavra
do então Procurador Geral da República Geraldo Brindeiro)
Sobre o tema o magistério de Demócrito Ramos Reinaldo, faz uma excelente comparação:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 50
A prevalecer o entendimento de que, a arbitragem seria inconstitucional
por impedir o exame do juiz das demandas submetidas, baseados no art.
5º, inc. XXXV da CF, esta interpretação deveria atingir, por analogia, outros meios de resolução de controvérsias extrajudiciais. Qualquer ato de
resolução de pendências como, por exemplo, uma renegociação, uma transação extrajudicial, uma confissão ou uma cessão de direitos somente seria válida se homologado ou mesmo decidido pelo juiz. Nada diferencia a
arbitragem destes outros meios extrajudiciais a ponto de ser tratada de
forma diferente por alguns juristas. (1997, p. 69)
Na mesma linha Ministro Nelson Jobim foi taxativo em sua afirmação, ainda no
mesmo case esclareceu que a instauração da arbitragem se manifesta se, e somente se,
o conflito disser com interesses disponíveis. Não há, na inteligência da norma que regula a arbitragem, renúncia, in abstrato, da jurisdição estatal. Essa como se sabe renúncia
não é autorizada.
Segundo o Ministro, em relação aos dispositivos da Lei de Arbitragem, não há “renúncia à tutela judicial neles, mas uma mudança no foco e na ocasião em que se dará
o apelo ao Judiciário. O cidadão pode invocar o Judiciário para solucionar os conflitos,
mas não está proibido de acessar outros meios”
O Douto nos instrui que o direito de ação é irrenunciável, mas o exercício desse
direito pode sim, sofrer temperamentos.
A ilegalidade de atitude coercitiva em resolver o conflito privadamente é o que ensejaria uma possível anulação ou mesmo ilegalidade desse negócio jurídico, mas não é
o que ocorre na arbitragem, pois se não houver cumprimento voluntário do que foi decidido pelo árbitro a parte interessada poderá ingressar com processo de execução que
será conduzido pelo juízo estatal competente.
Ficou claro que o juízo arbitral e a técnica de arbitragem em nenhuma forma lesionam qualquer ditame plasmado na nossa Carta Federal, haja vista, proporcionar
ao indivíduo titular de um direito patrimonial disponível decidir sobre a forma mais
apropriada de resolver qualquer controvérsia decorrente deste direito através de uma
jurisdição privada, ou caso queira através do Poder Judiciário.
Segundo manifestação da ministra Ellen Graice:
A sustentação da constitucionalidade da arbitragem repousa essencialmente na voluntariedade do acordo bilateral mediante o qual as partes de
determinada controvérsia, embora podendo submetê-la à decisão judicial,
optam por entregar a um terceira, particular, a solução da lide, de que
esta, girando entorno de direitos privados disponíveis, pudesse igualmente
ser composta por transação.
Não há o que falar, em desrespeito ao princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário quando se pode observar em muitos casos que o pleito buscado deve passar antes
por esferas administrativas ou extrajudiciais. Exemplo: na impetração do habeas data
além da documentação específica, a apresentação do requerimento administrativo negado é indispensável, ou seja, primeiro se faz necessário uma demanda administrativa,
um esgotamento das esferas extrajudiciais, para se for o caso, posteriormente ingressar
em solo judicial. A justiça desportiva também é outro exemplo, este com expressa previsão constitucional (Art. 217 §1° da CRFB 1988).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 51
A manifestação do Ministro Carlos Velloso desenha claramente que a autonomia
de vontade não lesiona o princípio de inafastabilidade de jurisdição, esclarecendo que o
“direito de ação” disposto na nossa Carta Política, não significa “direito de ação judicial.
Em melhores palavras, é garantido acesso à jurisdição, seja qual for a sua natureza:
Com efeito, a constituição estabelece que o princípio da inafastabilidade
do controle judicial de lesão ou ameaça a direito (art. 5, XXXV). (...) A constituição estabelece que as pessoas não poderão excluir os seus litígios da
apreciação do Judiciário. Ora, se a parte pode transacionar em torno de
seus direitos substanciais, podendo inclusive, desistir da ação que está
provendo, não me parece razoável, data vênia, a afirmativa de ser atentório à Constituição, art. 5º, XXXV, desistir a pessoa, física ou jurídica, do
direito instrumental, mediante cláusula compromissória, tratando-se de
direitos patrimoniais disponíveis.
A Constituição da República assegura expressamente, em favor de qualquer pessoa, o direito à jurisdição, pelo princípio da inafastabilidade do “judicial review” (CF, art.
5º, XXXV). É que a provocação judicial através do processo reflete a legítima expressão
de uma prerrogativa constitucional assegurada, pela Magna Carta, a qualquer um que
se sinta lesado ou ameaçado de lesão, em seus direitos e interesses, por ações ou omissões abusivas ou ilegais perpetradas quer por particulares, quer pelo próprio Estado.
Com efeito, ao garantir o ingresso em juízo, existe por parte do legislador constituinte uma clara opção de natureza político-social, pois teve a percepção de que, onde
existe a ausência da possibilidade de acolhida judicial, haverá sempre, uma realidade
de abusos e descumprimentos das pelas por parte de particulares, quando transgridem,
injustamente, os direitos de qualquer pessoa.
Dentre diversos outros exemplos vemos existência de um órgão extrajudicial para
solução de litígios. Ao se fazer um pleito de natureza administrativa não se está necessariamente renunciando seu direito de ação, apenas se opta por outros meios que por
hora são mais apropriados e até mesmo mais viáveis. Nem todos os conflitos precisam
ser levados para apreciação do Poder Judiciário se puderem ser resolvidos sem que se
movimente a já combalida máquina judiciária.
No entanto diante da ineficácia dos órgãos administrativos e a ausência de executividade de suas decisões a ultima ratio passa a ser a “única ratio” disponível para solução
dos nossos conflitos de interesses.
Os Ministros Carlos Velloso, Celso de Mello, Ellen Gracie, Ilmar Galvão, Marco Aurélio Mello, Maurício Corrêa e Nelson Jobim julgaram que a vontade da parte, declarada
expressamente na cláusula compromissória, é hábil para que o magistrado substitua
a declaração da parte que obstaculiza a celebração da cláusula compromissória ou
compromisso arbitral, não lesionando de forma alguma o art. 5º, XXXV da Constituição
Federal de 1988, decidindo-se, desta forma, compatíveis com a Constituição de 1988 os
arts. 6º, parágrafo único, 7º, 41 e 42 da Lei n.9.307/96. Por maioria de votos (7-4), os
ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram que os ditames da Lei da Arbitragem
são constitucionais.
6.
Conclusão.
A interpretação das normas constitucionais podem sofrer alterações informais de
interpretação à medida do surgimento e afirmação de movimentação da sociedade. Alteram-se os costumes, a economia oscila e o direito deve buscar sempre a melhor forma
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 52
de adequar os valores as suas normas. Destaca-se no horizonte novos ventos que direcionam a um processo interpretativo menos formalista, mais prático e que proporcionam uma significativa alteração na sociedade.
A mutação constitucional revela-se um excelente instrumento de interpretação
constitucional tendo em vista a sua independência dos processos legislativos e que permite ao interpretes lançar olhos mais atentos as realidades sociais que clamam por uma
efetividade na tutela de seus direitos.
O Poder Judiciário deve garantir a manutenção da paz social, garantindo direito
e prevenindo sua violação, além disso, o jurisdicionado deve ter a liberdade de buscar
solucionar seus conflitos relativos a direitos transigíveis em especial com mecanismos
que detenham condão jurisdicional garantidos pela lei.
O Supremo Tribunal Federal ao analisar a constitucionalidade da Lei de Arbitragem entendeu que a norma não viola a constituição e em especial ao princípio da inafastabilidade. Pelo contrário a Corte Maior destacou que a possibilidade de escolher
outras formas jurisdicionais para resolver seus conflitos garante e afirma o direito de
liberdade. Uma liberdade jurisdicional, e porque não dizer uma verdadeira emancipação
jurisdicional.
REFERÊNCIAS.
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MANCUSO, Rodolfo de Camargo. O plano piloto de conciliação em segundo grau de
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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003
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NERY Júnior, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6ª ed.
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REINALDO, Demócrito Ramos. Aspectos do instituto da arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.743, 1997.
SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a Constituição). São Paulo: Malheiros, 2000.
WATANABE, Kazuo. “Acesso à Justiça e Sociedade Moderna”, In: Participação e Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
JURISPRUDÊNCIAS:
STF: HC 91361
STF: SE-AgR 5206
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 54
NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
E PLURINACIONALIDADE: A RESSIGNIFICAÇÃO DA
SOBERANIA POPULAR E O RECONHECIMENTO DE NOVOS
DIREITOS PARA A INCLUSÃO DO CIDADÃO1
Mariana Dionísio de Andrade2
1. Construção social e plural do Estado Democrático para a realização
da cidadania.
Considerando a existência de um patamar muito específico de construção social, a
democracia, nos moldes atualmente formatados, propõe uma relação de convívio entre
cinco elementos interdependentes: Soberania popular; estruturação e organização do Estado por meio de Poderes independentes e harmônicos entre si; jurisdição constitucional;
reconhecimento, positivação e concretização dos direitos humanos; confluência da ordem
econômica com a ordem social. Ocorre que a proteção de tais institutos elementares do Estado Democrático de Direito possui uma relação bastante estreita com o respeito à edificação da cidadania. Esta,
decorrente do Princípio da Soberania Popular, pressupõe a participação social e o respeito
a instrumentos constitucionais, resguardando-se a proteção dos direitos do homem e do
cidadão e consolidando os expedientes constitucionais.
A qualificação do indivíduo como cidadão, conhecedor de seus direitos, socialmente
responsável e partícipe das decisões políticas, está estreitamente relacionada ao campo
da equalização de condições sociais e materialização de direitos, o que pressupõe o reconhecimento às diferenças próprias dos indivíduos, que compõem a singularidade de cada
Estado, por parte da lei constitucional.
A Constituição de cada Estado deveria, talvez, evidenciar em seu texto a inclusão da
diversidade étnica, social e cultural, de maneira inclusiva e integrativa para o exercício da
cidadania, em especial, no contexto da América Latina3. A inclusão, sob a perspectiva integrativa, possibilita que grupos sociais de minorias mantenham tradições, valores, normas
1 Resumo enviado e aprovado para apresentação no III Congresso de Direito Constitucional: Constituição
e Direitos Fundamentais em Perspectiva – Publius 2014 (Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP).
2 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Aluna do Programa de Pós-Graduação
Doutorado em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Especialista em Direito Processual Civil. Professora da Disciplina Direito Processual Civil e Coordenadora do Curso de Graduação em
Direito na Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Pesquisadora do Multidoor Courthouse System. Membro da
Comissão de Ensino Jurídico da OAB/CE. Advogada.
3 “Certamente, os documentos legais e os textos constitucionais elaborados na América Latina, em grande parte, têm sido a expressão da vontade e do interesse de setores das elites hegemônicas formadas e influenciadas pela cultura européia ou anglo-americana. Poucas vezes, na história da região, as constituições
liberais e a doutrina clássica do constitucionalismo político reproduziram, rigorosamente, as necessidades
de seus segmentos sociais majoritários, como as nações indígenas, as populações afro-americanas, as mas-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 55
sociais, convivendo de modo relativamente equilibrado em território estatal, exercendo a
cidadania de maneira mais ampla. (GALINDO, 2006). Trata-se de uma relação circular de
causa e efeito, em que a democracia reconhece a cidadania como elemento essencial, que
é consolidada pelo respeito aos direitos humanos, levados a termo pela materialização de
princípios democráticos que consideram a diversidade e o pluralismo.
O conceito de pluralismo, decorrente da Plurinacionalidade, adota o processo de
ruptura da uniformização do Estado nacional, como meio de reconquista da diversidade
presente nas populações da América Latina, pluriétnica e multicultural4 – sem necessariamente formar um Estado plurinacional – em um contexto política e socialmente democrático, de maneira distinta ao tradicional Estado nacional formatado em um padrão
europeu de segregação e homogeneização de identidades, com tendências a excluir grupos
sociais latino-americanos. A proposta de Estado nacional funcionou no ocidente como
uma maneira colonial de unificação das populações, desconsiderando-se suas particularidades culturais e padronizando suas percepções sociais de maneira irreversível.
Para garantir a legitimidade do próprio Estado, passou-se a verificar que o reconhecimento da população5 consistia em elemento de vital relevância, ocorrendo, assim, o primeiro vestígio de mudanças estruturais no Estado nacional, promovendo-se o processo
de constitucionalização e um novo pensamento sobre o conceito de democracia, aliado
à legitimação do poder político pelo povo e necessária participação dos indivíduos nos
processos decisórios. Na América Latina, tal processo ganhou matizes ainda mais fortes,
visto que a substituição da ideia de Estado nacional pelo Estado Plurinacional, a partir da
consideração das diversidades próprias desse espaço, tornou-se cada vez mais evidente
em países como Venezuela, Bolívia e Equador, cujo constitucionalismo revela a expressão
de vontade do povo, da Soberania popular, a partir do reconhecimento constitucional de
direitos e garantias a seus povos originários.
A possibilidade de participação social nas questões do Estado consiste em pressuposto para os sistemas democráticos, cuja principal finalidade remonta à edificação dos
direitos humanos, enquanto as garantias amparam o exercício dessa ordem de direitos. A
participação consciente nas decisões que regem o processo democrático necessita de indivíduos livres, emancipados em suas ideias e inquietos em seus ideais. Assim deve seguir a
Constituição de cada Estado; como espaço de diálogo para os diversos grupos sociais, que
se reconheçam no texto legal e consolidem a legitimidade da norma6.
sas de campesinos agrários e os múltiplos movimentos urbanos. [...] No histórico constitucional, a América
Latina é fortemente marcada por sua trajetória de servidão intelectual à matriz europeia, após séculos de
submissão aos modelos inspirados nas teorias liberais”. (WOLKMER; FAGUNDES, 2011, p. 377 - 379).
4 Em otras palabras, un Estado nación puede representar uma sociedad multicultural y pluriétnica sin necesidad de transformarse en un Estado plurinacional puesto que la trama institucional y el sistema de derechos
pueden asegurar la igualdad entre personas en tanto miembros de una comunidad de ciudadanos y ciudadania. (MAYORGA, 2007, p. 42).
5 La falta de credibilidad em la representación política instituída abrió paso al advenimiento de los movimientos sociales y, com ellos, a estos líderes considerados como ‘outsiders’ por la clase política tradicional.
(PEÑA Y LILLO, 2009, p. 80).
6 “A constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos políticos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da
sociedade. Enquanto pacto político que expressa a pluralidade, ela materializa uma forma de poder que se
legitima pela convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas. Assim, toda
sociedade política tem sua própria constituição, corporalizando suas tradições, costumes e práticas que
ordenam a tramitação do poder”. (WOLKMER; FAGUNDES, 2011, p. 373).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 56
No presente projeto de pesquisa, lança-se uma compreensão do novo movimento
constitucional deflagrado a partir dos recentes processos constitucionais da Venezuela,
Bolívia e Equador, conhecido como “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”. Essas
Constituições surgiram após marcantes manifestações sociais, em meio a situações de
grave instabilidade política nestes Estados.
Tais diplomas constitucionais, embora tenham seguido o modelo do constitucionalismo moderno, trouxeram inovações substanciais para: (1) a teoria da democracia, tendo
em vista a ressignificação da normatização constitucional da Soberania popular, especialmente no que toca ao exercício da cidadania; (2) a teoria da Separação dos Poderes,
mediante o reconhecimento de novas funções estatais, a exemplo de um quarto e quinto
poderes, previstos na Constituição do Equador de 2005; (3) o reconhecimento de novos
direitos, mormente no que se refere às questões indígenas; (4) maior intervenção do Estado na economia, a pretexto de viabilizar não mais a “vontade geral” ou o “bem comum”, e
sim o valor indígena “sumak kawsay”7 (ou viver bem). A partir desse pioneirismo constitucional latino-americano, serão considerados na pesquisa que se propõe, como base da
proposta proteção dos direitos humanos, o estudo dessas inovações trazidas pelo novo
constitucionalismo presente na Venezuela, Bolívia e Equador.
2.
Entre o neoconstitucionalismo e o novo constitucionalismo.
A distinção teórica entre os institutos do novo constitucionalismo e do neoconstitucionalismo8 ocorre como elemento complementar para a própria compreensão do processo
de reconhecimento das populações envolvidas na qualidade de cidadãos. Destaque-se
que o processo de renovação das perspectivas sobre a materialização de direitos encontra
amparo no modelo de novo constitucionalismo observado na América Latina, decorrente
dos avanços do constitucionalismo europeu e norte-americano, e que conta como expoentes os processos constitucionais recentes ocorridos na Bolívia, Equador e Venezuela,
cujo ponto de intersecção consiste na inclusão de populações anteriormente segregadas
quanto à participação política. Enquanto o neoconstitucionalismo redescobre princípios
jurídicos, a partir de uma releitura hermenêutica do texto constitucional e dos procedimentos jurisprudenciais, superando o mero positivismo, o novo constitucionalismo pressupõe a ressignificação do que se refere à Soberania popular, incluindo-se a diversidade
e identificando grupos sociais para melhor adequação dos expedientes constitucionais na
salvaguarda de direitos.
Destaque-se que, sob a ótica do novo constitucionalismo, o pluralismo implica no
reconhecimento de valores de etnias e grupos sociais anteriormente segregados, que não
eram formalmente reconhecidos pelo Estado e, portanto, não o tornavam legítimo. A iniciativa de se pensar o direito sob uma perspectiva inclusiva, identificando as particularidades da diversidade humana, acaba por conferir uma nova exegese para o conceito de
7 Preâmbulo da Constituição da República do Equador, de 2008: “Nosotras y nosotros, el pueblo soberano
del Ecuador [...] reconociendo nuestras diversas formas de religiosidad y espiritualidad, apelando a la sabiduría de todas las culturas que nos enriquecen como sociedad, como herderos de las luchas sociales de liberación
frente a todas las formas de dominación y colonialismo, y con un profundo compromiso con el presente y el
futuro, decidimos construir una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay; Una sociedad que respeta, en todas sus dimensiones,
la dignidad de las personas y las colectividades; [...]. (Political database of the Americas, 2013, on line).
8 “El neoconstitucionalismo desde ese punto de vista es una teoría del Derecho y no, propriamente, uma
teoría de la Constitución. Su fundamento es el análisis de la dimensión positiva de la Constitución, para lo
cual no se traslada a la voluntad constituída [...] Por su parte, el nuevo constitucionalismo asume las posiciones del neoconstitucionalismo sobre la necesaria impregnación constitucional del ordenamiento jurídico pelo
su preocupación no es solo la dimensión jurídica de la Constitución sino, en un primer orden, su legitimidad
democrática [...] Por todo ello, el nuevo constitucionalismo busca analizar, en un primer momento, la fundamentación de la Constitución, es decir, su legitimidad [...]” (MARTINÉZ DALMAU apud WOLKMER; FAGUNDES,
2011, p. 383).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 57
cidadania. Além de significar a materialização da Soberania pela participação política,
a cidadania pressupõe a legitimidade da Constituição, por contemplar os cidadãos nos
processos decisórios, reconduzindo-os à igualdade substancial e proteção de direitos. A
participação só ocorre por meio da inclusão e respeito a direitos, resultados de conquistas
populares e pertencentes, integralmente, ao cidadão incluído no sistema sócio-político-constitucional.
Justifica-se o presente estudo pela necessidade de ressignificar o conceito Soberania
popular e de proteção aos direitos, revisitando e aprofundando a perspectiva sobre quais
são as violações sofridas por povos anteriormente desconhecidos pelas constituições latino-americanas, buscando assim a concretização de direitos humanos não apenas como
elemento normativo, mas como alcance real de salvaguarda a elementos mínimos de convivência dos cidadãos. A inclusão do indivíduo na sociedade democrática pressupõe o
exercício de direitos em um patamar equânime de igualdade substancial, o que aduz, por
conseguinte, a participação política para a modificação da realidade social.
O processo de constitucionalismo erigiu a Constituição à condição de estrutura originária das emanações jurídicas, o que, por si, já a configura como sustentáculo da Soberania de uma população. Entretanto, é nítido que a população albergada pelo texto
constitucional deve se reconhecer em suas normas, garantias e proteções, legitimando-a.
A falta de acesso aos expedientes constitucionais de garantia a direitos e o consequente
alheamento de considerável parcela da sociedade – na esfera dos países latino-americanos
– a essa proteção constitucional, constitui razão essencial para o novo pensamento sobre
as bases democráticas propostas, visto que, assim, ter-se-ia uma democracia com alcance
limitado. Chega-se, portanto, a um ponto de reflexão da maior importância: deve-se reduzir a distância entre a proposta democrática e o constitucionalismo.
Na América Latina, conta-se com uma história demográfica composta por uma considerável população indígena9, alheia aos processos políticos decisórios, esquecida em seu
patrimônio religioso e cultural, e silente quanto à sensação de pertença à própria comunidade, legado este deixado por um padrão europeu10 de homogeneização social, cujas
origens descendem do processo de colonização espanhola11. Ocorre que, até o presente,
esse padrão europeu evidencia a proposta de um universalismo12 que não atinge, sequer,
a diversidade presente nos espaços latino-americanos. Sobre o tema, importa asseverar:
9 Em pesquisa realizada pelo Banco Mundial em 2007, há cerca de 28 milhões de indígenas latino-americanos, que ainda não conseguem aprimorar seus padrões de vida aos das populações não-indígenas de
seus países. Quanto à distribuição étnica da América Latina, considera-se a existência de uma população
ameríndia de, aproximadamente, 46, 9%, contrastando com 63 % da mesma população no século XVIII.
(GARCEZ, 2007, on line).
10 Modernamente, Immanuel Wallerstein utiliza o termo “universalismo europeu” para definir a retórica
dos líderes do mundo pan-europeu (sobretudo dos Estados Unidos e Grã-Bretanha), como mecanismo de
defesa dos interesses do estrato dominante do “sistema-mundo moderno” como justificativa para suas políticas imperialistas. (WALLERSTEIN, 2007).
11 A colonização espanhola, cumpre asseverar, pilhou valores culturais de grupos formados por ameríndios, dando início a um processo contínuo e perverso de uniformização social das populações da América
Latina. Como exemplo, destaque-se que “Bartolomé de las Casas foi um personagem consagrado da época.
Nascido em 1484, chegou às Américas em 1502 e ordenou-se em 1510; foi o primeiro padre a ser ordenado
no Novo Continente. A princípio, foi favorável ao sistema espanhol de encomienda, que envolvia a divisão
(repartimiento) de ameríndios como trabalhadores forçados entre os espanhóis que administravam propriedades agrícolas, pastoris ou mineiras, e dele participou. Mas em 1514 passou por uma ‘conversão’ espiritual
e renunciou a sua participação no sistema de encomienda; e voltou à Espanha para dar início à obra de sua
vida: condenar as injustiças causadas pelo sistema.” (WALLERSTEIN, 2007, p. 31)
12 A proposta universalista, presente nos Estados Unidos e na Europa, presume uma reestruturação do
Estado, que aduz à modificação nas relações entre este e os cidadãos que o compõem, de maneira a flexibilizar direitos econômicos e sociais. Por outro lado, quando o mesmo assunto é tratado no contexto de
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 58
Como se pode ver, esses são os quatro argumentos básicos que têm sido
usados para justificar todas as ‘intervenções’ subseqüentes dos ‘civilizados’
do mundo moderno em zonas ‘não-civilizadas’: a barbárie dos outros, o fim
de práticas que violam valores universais, a defesa de inocentes em meio aos
cruéis e a possibilidade de disseminar valores universais. (WALLERSTEIN,
2007, p. 35).
A diversidade própria de grupos étnicos distintos na América Latina condensa grande
parte do patrimônio cultural e legitima a Soberania de sua população, quando reconhecidos e protegidos os direitos cuja titularidade deve ser claramente descrita nos textos
constitucionais. Se o indivíduo não se reconhece13 no sistema de normas, aparta-se da
proposta democrática prevista na Constituição, visto que a mesma não chega a contemplar a realidade social.
O próprio discurso democrático presente nesses modelos de Constituição
e inseridas no novo constitucionalismo latino-americano denotam alguma
presença do modelo europeu14 e norte-americano15, inserindo a participação
dos cidadãos nos processos decisórios, consolidando a proteção aos direitos humanos e fundamentais e perpetuando a Soberania popular. Entretanto, cumpre-se esclarecer que o pioneirismo do novo constitucionalismo
latino-americano funda-se em novo conceito de nação: enquanto no Constitucionalismo de viés liberal a nação forma um corpo homogêneo; neste novo
movimento constitucional, tem-se o reconhecimento de diversos grupos indígenas, paralelamente aos não indígenas, dentro de um mesmo Estado. Dessa
forma, pode-se até mesmo falar-se em uma nova Teoria da Constituição, a
qual passará a fundar um Estado Plurinacional16 ou Estado Plural.
países periféricos, deve-se considerar que o Estado não possui a mesma credibilidade tradicional quanto à
efetividade de suas normas, o que, por si, já sugere que a situação jurídico-constitucional entre as referidas
realidades não é a mesma. (KRELL, 2008).
13 “Aunque por desgracia es frecuente, las personas e instituiciones que no relacionan a su nación com la
región del mundo a la que pertenece (y con naciones y regiones de otras latitudes) no solo exhiben una visión
localista sino que también propenden a formarse una imagen parcial y deformada de la realidad propia.”
(FERNANDÉZ, 2007, p. 12).
14 O modelo de constitucionalismo europeu denota a forte presença de padrões democráticos inseridos no
período pós - 2ª Guerra Mundial, construído a partir de pilares como a democracia participativa, a busca da
inserção popular da sociedade nos processos decisórios do Estado de maneira integrada, a permanência de
direitos sociais e dos demais direitos (nascedouro dos direitos humanos de maneira positiva), e a integração
das minorias ou grupos segregados, política ou socialmente. Destaque-se que sua aplicação foi concebida
em um Estado hegemônico.
15 Destaque-se que o constitucionalismo moderno surge no século XVIII, afirmando-se com as chamadas
revoluções burguesas: a Revolução Inglesa (1688); a Revolução Americana (1776); e a Revolução Francesa
(1789), entretanto, sem os padrões democráticos hoje conhecidos, pois seu nascedouro seria eminentemente liberal, na esteira do pensamento apresentado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, em especial, na proteção e garantia de direitos, valorização de liberdades individuais e previsão de
separação dos Poderes, como proposta de forma unitária descentralizada. (MAGALHÃES, 2010).
16 Nesse contexto, o Plurinacionalismo, formado por grupos sociais e étnicos que se identificam com sua
cidadania e participam dos processos decisórios, distingue-se do Transnacionalismo, que significa a ampliação da experiência democrática de uma sociedade para além de suas fronteiras territoriais nacionais,
abrangendo uma área geográfica maior e, consequentemente, maior número de indivíduos, construindo-se
uma constelação pós-nacional (postnationale Konstellation), em uma ordem jurídica cosmopolita e abrangente, capaz de gerir a si mesma sem a intervenção de um governo mundial, que seria, por sua vez, um risco
à própria democracia. (HABERMAS, 2003).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 59
Tais transformações consistem em elemento de fundamental discussão, pois justificam o novo constitucionalismo latino-americano, baseado em uma nova forma de organização jurídico-política com vistas à proteção e inserção do indivíduo. Tal instituto não se
confunde com o chamado neoconstitucionalismo17, visto que, enquanto o primeiro tenta
atender – por meio da constante busca por instrumentos capazes de ressignificar a Soberania – demandas de populações tradicionalmente excluídas, promovendo a pluralidade
de culturas e maior participação popular nos processos decisórios18; o último contempla
uma nova concepção de constitucionalismo na forma de um movimento jurídico-político-filosófico relacionado, especialmente, com uma interpretação principiológica do Direito.
O fato é que o elemento de principal reflexão consiste na proteção real à cidadania,
que inexiste quando se queda infrutífera a materialização de direitos. Se tal cidadania
resta desprotegida, decerto se espera uma urgente reformulação das propostas constitucionais no que tange ao aspecto procedimental, para que não se retorne, mais uma vez e
repetidamente, à mera discussão sobre a falta de efetividade da norma sem a propositura
de meios reais para alcançá-la.
O ato de analisar o discurso democrático exige atenção, especificamente, quando
considerados dois pilares essenciais; a atribuição de significado no direito interno, cogitando-se o peso normativo constitucional, e a ponderação sobre as diversidades, envolvidas as variáveis e circunstâncias circundantes em um patamar internacional de proteção
a direitos.
No caso do novo constitucionalismo latino-americano aqui proposto, há de se apreciar as circunstâncias que envolvem os processos democráticos no sentido do reconhecimento da participação popular para o povo e pelo próprio povo, principalmente no sentido
de identificar a semântica que envolve a concretude dos direitos humanos proposta pela
Constituição de cada Estado. Sobre o tem, importa considerar:
Os direitos humanos encontram um lugar desconfortável no texto da lei,
nacional ou internacional. Na medida em que se tornam discurso jurídico
positivado e se juntam ao cálculo da lei, à tematização e à sincronização,
eles compartilham o intento de sujeitar a sociedade a uma norma única e
dominante, que necessariamente viola a demanda de justiça. Mas, ao mesmo
tempo, eles representam a promessa de uma justiça sempre ainda por vir
[...]. (DOUZINAS, 2009, p. 373).
O mecanismo simbólico para análise do discurso pode ser aplicado a qualquer tipo
de interpretação, no entanto, dependerá de um posicionamento pragmático para sua contextualização e busca de sentido. Daí que os modelos de interpretação do discurso possam
inevitavelmente variar de acordo com os padrões históricos ou políticos, o que compreende também o contexto social no qual é feita a interpretação. Cabe ao intérprete tentar
descobrir o sentido que se apresenta nos textos analisados, adequando-os ao momento
histórico de sua aplicação às novas circunstâncias. (NEVES, 2006, p. 199).
17 Expressão originada ao final da década de 1990, por Susanna Pozzolo, Paolo Comanducci e Mauro
Barberis, durante o XVIII Congreso Mundial de Filosofia Jurídica y Social, realizado em Buenos Aires e La Plata,
entre os dias 10 e 15 de agosto de 1997, para designar a formação de uma nova cultura jurídica a partir do
surgimento dos Estados constitucionais no período pós 2ª Guerra Mundial. A terminologia ainda não é pacificada doutrinariamente, visto que ainda encontra óbices de concordância no campo da Teoria e da Filosofia
do Direito. (TRINDADE, 2013, on line). “Em termos de marco inicial do neoconstitucionalismo, é possível
remeter a Ronald Dowrkin em seu ataque ao positivismo jurídico capitaneado por Herbert Hart, mais especificamente em relação aos argumentos dos princípios”. (GONÇALVES, 2012, p. 323).
18 “Se podemos conceber a natureza e a história como sistemas de processos é porque somos capazes de
agir, de iniciar nossos próprios processos”. (ARENDT, 2008, p. 244).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 60
Interpretando-se o contexto em que está inserido – a pluralidade cultural, social, jurídica e política da América Latina – o novo constitucionalismo latino-americano se apresenta como elemento de ressignificação quanto à legitimidade da Soberania popular, pois
vislumbra a participação política do povo nos processos decisórios do Estado.
Essa participação, na esfera de atuação do novo constitucionalismo, tende a influenciar novos pensamentos para o poder constituinte, reformulando o conceito de Estado
que, agora, alcança vieses plurinacionais e tenta atender aos novos direitos de camadas
sociais e grupos étnicos anteriormente alijados da convivência com os sistemas jurídico-normativos, como as populações indígenas e ameríndias, propiciando um sistema efetivamente democrático. A positivação de novos direitos reflete tal perspectiva. Sobre o tema:
A positivação dos direitos se traduz na proclamação de normas jurídicas, as quais,
no plano constitucional, declaram a existência dos direitos e, no plano legislativo, dispõem suas medidas de prática e de tutela. As constituições e as listas de direitos contidas
nelas são fontes primordiais dos ordenamentos jurídicos nacionais; ponto de referência
da jurisprudência, da doutrina, do próprio legislador; o recinto no qual se exerce tanto o
poder público como a liberdade individual. Entretanto, quando se quer promulgar uma
nova fase política e dotar o Governo de instrumentos adequados para uma nova visão da
relação com os cidadãos é necessário um novo texto fundamental. (FACCHI, 2011, p. 72).
Faz-se necessária a constante busca por instrumentos capazes de recompor a relação
entre Soberania e governo – relação esta que se apóia na estabilidade entre governantes
e governados quando sustentada pela legitimidade e credibilidade do sistema político19 –
instaurando definitivamente a democracia participativa como complemento do sistema
representativo, desde que haja o reconhecimento do cidadão em sua própria condição. Tal
modificação pode ser concebida por meio de uma carta de direitos suficientemente atualizada com as demandas universais de proteção a direitos20, como ocorre, por exemplo, com
incorporação de tratados internacionais e integração de setores excluídos.
3.
Pluraridade e inclusão para participação social.
A pluralidade de opiniões e a diversidade nas relações sociais e jurídicas representam uma tendência que impõe reflexões sobre o modelo de gestão que cumpra o caráter
soberano, no sentido de incluir o povo nos processos decisórios. O respeito aos direitos se
torna uma consequência quando a democracia é trazida à realidade, e a concretização de
princípios universais distancia-se do padrão colonizador (eurocêntrico) para se adequar à
realidade plural das populações latino-americanas.
A conquista e ampliação de direitos passou a evocar a emergência de uma ordem de
direitos coletivos, aumentando, assim, a área de abrangência da cidadania e da afirmação
de liberdades de autonomia e de participação. (NEVES, 1994). A própria autonomia do
sistema jurídico é elemento característico da condição de materialização da cidadania, sob
a perspectiva da realização da democracia na esfera pública da governabilidade política.
Por sua vez, a qualificação do indivíduo como cidadão, conhecedor de seus direitos,
socialmente responsável e partícipe das decisões políticas, está estreitamente relacionada
ao campo da equalização de condições sociais e materialização de direitos. Trata-se de
19 “El poder esta intimamente ligado a los valores y las creencias. Este vínculo es el que permite establecer
relaciones de poder duraderas y estables en las que el recurso constante a la fuerza se hace innecesario”
(ÁGUILA, 2005, p. 26). No mesmo tirocínio, destaque-se que “Sendo o Estado uma sociedade, não pode existir sem um poder, tendo este na sociedade estatal certas peculiaridades que o qualificam, das quais a mais
importante é a Soberania”. (DALLARI, 2006, p. 111).
20 “As declarações enunciam os principais direitos do homem, enquanto as garantias constitucionais
são os instrumentos práticos ou os expedientes que asseguram os direitos enunciados.” (PINTO FERREIRA,
1998, p. 132).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 61
uma relação circular de causa e efeito, em que a democracia reconhece a cidadania como
elemento essencial, que é consolidada pelo respeito aos direitos humanos, levados a termo
pela materialização de princípios democráticos.
A possibilidade de participação social e política nos processos decisórios coordenados pelo Estado consiste em pressuposto para os sistemas democráticos, cuja principal
finalidade remonta à edificação de direitos – em especial, direitos humanos – enquanto as
garantias amparam o exercício dessa ordem de direitos. A participação consciente nas decisões que regem os processos democráticos necessita de indivíduos livres, emancipados
em suas ideias e inquietos em seus ideais. Para isso, faz-se primordial a caracterização da
pessoa como cidadã, destinatária de direitos e responsável pelo cumprimento de deveres.
As demandas que precisam de proteção estatal se justificam a partir da necessidade quanto ao surgimento de espaços públicos para a análise específica de novos direitos
de grupos distintos que, se abrangidos apenas pela tradicional perspectiva de legislação
interna, talvez percam seu objeto ou deixem de se materializar. O papel dos Governos na
proteção aos direitos humanos, por exemplo, não tem sido cumprido com excelência e é
sabido que a própria legislação interna, sem o peso das determinações políticas e sociais,
não é eficaz como enuncia seu texto legal. “O maiores crimes da e contra a humanidade
foram conduzidos em nome da nação, da ordem ou do bem comum, e não há qualquer
evidência convincente de que isso possa chegar ao fim [...]” (DOUZINAS, 2009, p. 140).
Torna-se urgente a construção de meios úteis e definitivos na consolidação dos direitos
humanos21, na formatação dos novos direitos presentes no novo constitucionalismo da
América Latina, mas não necessariamente relacionados ao universalismo proposto pelo
padrão europeu, que ambiciona uma valoração universal de determinados direitos, sem
atenção às particularidades de cada grupo social. Sobre o tema, importa considerar:
O que estamos usando como critério não é o universalismo global, mas o
universalismo europeu, conjunto de doutrinas e pontos de vista éticos que
derivam do contexto europeu e ambicionam ser valores universais globais
– aquilo que muitos de seus defensores chamam de lei natural – ou como
tal são apresentados. Isso justifica, ao mesmo tempo, a defesa dos direitos
humanos dos chamados inocentes e a exploração material a que os fortes se
consagram. É uma doutrina materialmente ambígua. Ela ataca os crimes de
alguns e passa por cima dos crimes de outros, apesar de usar critérios de
uma lei que se afirma natural. (WALLERSTEIN, 2007, p. 60).
A proteção aos direitos humanos, universalmente considerados, deve receber novos
relevos e diferenciada exegese quando o contexto envolve diferentes sistemas jurídico-positivos de diferentes países, visto que a interpretação de cada norma – mesmo que
o resguardo jurídico recaia sobre o mesmo tema – depende do amadurecimento legal e,
principalmente, exige que as condições circundantes22 sejam consideradas, observando-se a pretensa unidade operacional do direito como consequência de um sistema jurídico
consolidado em princípios democráticos.
21 Em 1948, as Nações Unidas erigiram, como seu eixo ideológico, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, ratificada por quase todos os seus membros. [...] Como a maioria dos governos baseou sua política externa em uma visão dita realista das relações entre Estados, não houve quase nenhuma ação intergovernamental que se possa dizer que reflita essa preocupação com os direitos humanos, embora a violação
da Declaração tenha sido regularmente invocada como propaganda de um governo para condenar o outro.
(WALLERSTEIN, 2007, p. 42-43).
22 A terminologia utilizada refere-se às variáveis presentes na consecução do sistema de normas presente em cada país, no caso em tela, Brasil, Chile e Venezuela, por conceberem constituições oriundas de
processos democráticos recentes. “Por isto pode ser, ao extremo, muito difícil, em certas sociedades, falar
de unidade operacional do Direito, sobretudo se nelas ainda existem condições extrajurídicas que tendem a
sabotar a própria existência e funcionalidade de um Estado de Direito [...]”. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 68).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 62
Deve haver igualdade de oportunidades para que cada cidadão possa formular suas
opiniões de maneira autônoma, manifestando pública e livremente sua vontade. (DAHL,
2002). Da consolidação da cidadania depende o bom funcionamento da engrenagem democrática, cuja autonomia de pensamento e a liberdade de manifestação figuram como
alguns de seus pilares básicos. No caso das democracias latino-americanas, a participação popular de grupos étnicos distintos denota a existência de várias nações dentro de um
mesmo território, o que robustece, portanto, a tradicional busca pelo reconhecimento de
valores próprios de cada grupo no contexto da democracia participativa. O reconhecimento que transcende a identificação de grupos em uma diversidade, mas, principalmente,
que evidencia e valora a participação de maneira includente e generalizada.
Há de se fazer, oportunamente, uma delimitação semântica para a compreensão da
expressão “cidadania”, relevando, inclusive, as condições estruturais que permitem seu
desenvolvimento, para que o sentido não se restrinja ao exercício de direitos políticos e
transcenda aos direitos civis e sociais.
A conquista e ampliação de direitos passou a evocar a emergência de uma ordem de
direitos coletivos, aumentando, assim, a área de abrangência da cidadania e da afirmação
de liberdades de autonomia e de participação. (NEVES, 1994). A própria autonomia do
sistema jurídico é elemento característico da condição de materialização da cidadania, sob
a perspectiva da realização da democracia na esfera pública da governabilidade política.
A diferença entre inclusão e exclusão está na participação nos processos políticos decisórios, visto que a presença do indivíduo, evidenciada muitas vezes pela participação de
grandes grupos, pode ser meio de inserção nos sistemas sociais e, sem embargo, na ordem
jurídica proposta, que deve conceber um sistema jurídico autônomo como condição para
a realização da cidadania23. (LUHMANN, 2005). Sobre essa participação do indivíduo, sob
a forma de ação coletiva e em atuação conjunta, cumpre destacar:
As ações coletivas referentes a direitos difusos possibilitam o acesso mais generalizado e eficiente dos indivíduos e grupos aos benefícios e vantagens do
sistema social, fortificando a cidadania. Já as discriminações inversas, além
de assegurarem juridicamente a integração das minorias nos sistemas sociais, institucionalizaram o direito de ser diferente. Ao discriminarem juridicamente, orientam-se pelo princípio igualitário da cidadania. [...] No conceito
luhmanniano, a cidadania pode ser lida como inclusão de toda a população
na ‘prestação dos sistemas sociais’, ou seja, acesso/dependência aos seus
benefícios vantagens e regras. [...] Assim concebida, estaria indissociavelmente vinculada à auto-referência dos sistemas político e jurídico. (NEVES,
1994, p. 257 e 259).24
23 Para Niklas Luhmann (2005), a autonomia do sistema jurídico, que possui estreita relação com a democracia do sistema político, constitui um pré-requisito para a realização da cidadania, que deve ser compreendida como a inclusão de toda a população, de modo geral, quanto ao acesso aos instrumentos sociais,
e quanto à observação de deveres. Tal binômio faz parte da chamada “prestação de sistemas sociais”, modelo
no qual os indivíduos devem ter pleno acesso aos direitos e, de igual maneira, consciência sobre as regras
que deve cumprir. Desse modo, não poderia se desvincular da referência à autonomia dos sistemas político
e jurídico em relação aos fatores reais de poder. Sob a ótica luhmaniana, dar-se-ia uma generalização includente para toda a população, com acesso a benefícios e vantagens, mas com correlata igualdade de deveres,
o que só se viabiliza com um sistema jurídico autônomo.
24 “Luhmann define a integração (sistêmica) ‘como redução dos graus de liberdade de subsistemas’ ou
‘como limitação dos graus de liberdade para seleções’ e, portanto, negação aponta tanto para a interdependência entre sistemas quanto para a dependência de pessoas para com os sistemas funcionais. Considerando a dependência das pessoas relativamente aos sistemas sociais, Luhmann afirma que a sociedade
mundial é superintegrada e, portanto, precisa de desintegração. Mas, em relação à interdependência entre
sistemas sociais, caberia afirmar que ela aponta fortes tendências negativas à desintegração (fragmentação), que também importa um perigo de desdiferenciação. Nesse particular, pode-se sustentar que um certo
grau de desintegração intersistêmica contribui para a integração (dependência) excessiva de pessoas aos
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 63
Sobre a condição de cidadão, cumpre destacar a visão de Thomas H. Marshall, que
elenca que três elementos essenciais compõem a cidadania, quais sejam; os elementos de
caráter civil, político e social. O primeiro é composto por direitos necessários à materialização da liberdade individual. O segundo constitui o direito de participar no exercício do
poder político, como eleitor ou na qualidade de membro investido da autoridade política. O
terceiro, por sua vez, mais abrangente, se refere à busca por um patamar mínimo de igualdade entre indivíduos, garantidos bem-estar, direito de participação e acesso à educação e
elementos culturais. Tais elementos devem seguir juntos, pois, além de semelhantes, são
complementares. (MARSHALL, 1967).
Conforme entendimento de João Baptista Herkenhoff (2000, p. 33), a história da cidadania constitui “a própria história dos direitos humanos e a história das lutas para a
afirmação de valores éticos como igualdade, liberdade, a dignidade de todos os seres, sem
exceção, a proteção legal dos direitos [...] a democracia e a justiça”.
Há de se considerar, assim, que as estruturas dos institutos democráticos podem
restar comprometidos quando não se supõe um patamar mínimo de respeito aos direitos
humanos e garantias adquiridos como resultado de intensas lutas sociais25.
Não se trata da defesa por uma pretensa atuação paternalista por parte do Estado,
amparo a medidas autoritárias e castradoras da liberdade, tampouco uma apologia à desconsideração de que o indivíduo é capaz de zelar pelo seu melhor interesse; mas, sob a
visão da realidade efetiva das coisas, tornar-se-ia mais difícil a luta pela materialização de
prerrogativas do cidadão se este ainda permanece alheio à existência de direitos, distante
da consciência sobre a própria condição de cidadão. Se o indivíduo não possui, de fato,
direitos humanos em sua plenitude, garantidos social e politicamente26, nem mesmo à
liberdade terá direito, pois dela necessita para a consciência da participação política para
a mudança de seu panorama social.
Considera-se pertinente ressaltar que a inclusão mais expressiva do presente estudo
se refere aos grupos socialmente vulneráveis e tradicionalmente esquecidos, e exemplo
das populações ameríndias. A legitimidade27 presente nas Constituições decorre do exercício da cidadania, insurgindo-se esta da inclusão de grupos sociais anteriormente alijados
dos processos políticos. Esta inclusão, portanto, relaciona-se com o respeito à identidade
cultural, à diversidade, às normas sociais de cada grupo étnico e consideração aos novos
sistemas sociais. Mas, quanto ao excesso de integração de pessoas, a questão é perpassada pelo problema
da ‘integração social’ (inclusão/exclusão), de tal maneira que o primário no conceito de integração é interdependência sistêmica, sobretudo entre sistemas funcionais. Portanto, o que a sociedade mundial precisa
é de uma maior integração sistêmica, para que a mera fragmentação não leve a estilhaços como restos sem
sentido funcional.” (NEVES, 2009, p. 287 – 288). Leia-se: se há superintegração de um indivíduo a determinado sistema, e desintegração em outro, essa pessoa detém as características da subcidadania, visto
não estar incluída em todas as esferas das quais deveria se ocupar. Por exemplo, se uma pessoa que está
incluída no plano econômico, mas pode usufruir do direito de voto, passa a depender do voto para e de suas
circunstâncias para tentar a inclusão no plano econômico, podendo, inclusive, utilizá-lo como meio de permuta por melhores condições. A superdependência em uma das esferas da vida e subinclusão nas demais,
não permitem que o cidadão exerça livremente sua vontade, dificultando a participação nos negócios sociais.
25 “Não há poder estável sem legitimidade, sem apoio mínimo da sociedade ao qual ele é imposto”. (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 5). Portanto, nada mais pernicioso para a democracia que a passividade cega dos
cidadãos. (PUTNAM, 1996).
26 “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o
de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. (BOBBIO, 2004, p. 43).
27 “Más allá de que esta propuesta constituyente se haya instalado en el imaginário colectivo como una
posibilidad, lo realmente necesario es que dicha Idea se convierta em objeto de deseo y apropiación por parte
de um colectivo lo suficientemente numeroso”. (VICIANO PASTOR et al., , p.132)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 64
direitos. Sob essa perspectiva, deve a Constituição se tornar um espaço de diálogo entre
as diferentes culturas sociais, alcançando a harmonização entre reconhecimento quanto
à diversidade, exercício da cidadania e consolidação da democracia.
4.
Conclusão.
A convivência com o sistema democrático compreende a generalização do acesso aos
direitos presentes na norma jurídica sob a perspectiva da inclusão social e da consolidação da cidadania. Para que o sistema democrático atinja o objetivo da participação do
público nas decisões políticas, necessária se faz a oitiva quanto às preferências e opiniões
dos cidadãos, que devem estar inseridos em uma esfera de igualdade substancial, principalmente, no que se refere à equalização de condições em situações sociais distintas.
Ocorre que, ao passo que a jurisdição constitucional passa a ser pensada como um
instrumento fundamental para a salvaguarda da democracia, também subsiste a preocupação quanto a uma possível politização da justiça, visto que a independência judicial
se baseia justamente no respeito às leis, sem a influência direta de elementos políticos e
vice-versa.
Aqui, insere-se a análise necessária da Constituição não meramente como texto normativo complementar à delimitação de condutas jurídicas, mas, ainda, como cânone de
um paradoxo em que, ao passo que se insere como maior representação da liberdade de
um povo, pela legitimidade do Poder Constituinte e exigência para a consolidação de elementos democráticos pela contenção do poder, também se apresenta como mecanismo de
contenção das maiorias, tornando-se um meio indispensável à discussão entre direito e
democracia.
Para tal, entende-se que a forma de interpretar o texto constitucional é mecanismo
elementar para a compreensão da própria sociedade, que nem sempre é verdadeiramente
representada, visto que a população possui características ímpares que identificam cada
grupo étnico, cada valor cultural e peculiaridades presentes na liberdade do sistema político democrático, que devem superar a análise de Constituições documentais e rígidas,
com enfoque a alteração paradigmática oferecida a partir da reinterpretação do Direito sob
a ótica constitucional, com base em elementos teóricos – por meio da atribuição de força
normativa aos princípios jurídicos -, filosóficos e históricos.
É necessário identificar no chamado Novo Constitucionalismo Latino-Americano, a
partir dos recentes processos constitucionais deflagrados na Venezuela, Bolívia e Equador, os pontos de continuidade, ruptura e inovação com o tradicional conceito de constitucionalismo; este, associado ao universalismo europeu. Utilizar como possíveis vetores os
conceitos sobre a Plurinacionalidade, bem como constatar, ou não, se essa nova proposta
torna efetivos os novos direitos propostos e a inclusão dos cidadãos.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 67
PASSE LIVRE ESTUDANTIL: REGIME JURÍDICO
E PERSPECTIVAS DE IMPLEMENTAÇÃO
Alexandre Moura Alves de Paula Filho
Paulo César Tavares Filho
1.
Introdução
O chamado “passe livre” é uma expressão designada para retratar o direito de utilização do transporte público de forma gratuita. Normalmente garantido por lei, pode se
estender por todo o território brasileiro quando a sua previsão é realizada em lei federal.
Esse é o caso o passe livre assegurado a pessoas com deficiência, na Lei 8.899/941. De
acordo com o Estatuto do Idoso (arts. 39 e 40) e a Constituição Federal (art. 230 § 2º),2
a gratuidade também é garantida aos maiores de 65 anos.
Todavia, a gratuidade deste serviço não é assegurada somente para os deficientes
e idosos. Cada estado e município tem sua particularidade, funcionando de acordo com
suas próprias leis, abrangendo, inclusive, o passe livre estudantil, um acessório de
extrema importância para que se possa garantir uma série de direitos fundamentais:
o direito à cidade, a dignidade da pessoa humana, o direito à livre locomoção e o mais
importante: o direito à educação de qualidade.
Este trabalho pretende demonstrar a importância do passe livre estudantil através
da íntima relação que ele tem com a educação. Será explanada a evolução que o movimento estudantil tem atingido para conseguir obter o livre acesso ao transporte coletivo,
bem como as conquistas já obtidas até hoje. Será demonstrado também que a própria
Constituição Federal alberga diversos dispositivos que convergem com a possiblidade de
existência de um passe livre para todos os estudantes, proporcionando o acesso pleno
e a democratização do ensino. Por fim, serão apontados quais entes são competentes
em determinadas situações para prover o benefício em questão e se este benefício está
à mercê da vontade política dos responsáveis por sua garantia.
2.
O passe livre estudantil na agenda dos movimentos sociais
Na esteira de movimentos sociais iniciados em diversas partes do mundo, no Brasil
houve as manifestações em junho de 2013 que precisam ser adequadamente compreendidas sob o crivo da viabilidade jurídica dos pleitos ali formulados, objeto da presente
proposta de trabalho. Este tópico vai analisar a gênese dos movimentos que elevaram o
debate acerca do passe livre estudantil, focando nas manifestações de junho de 2013.
1 Provê benefício a portadores de deficiência física, mental, auditiva ou visual, comprovadas por laudo
médico desde que possuam renda mensal per capita de até um salário mínimo Disponível em: Ministério
dos transportes. Http://www.transportes.gov.br/conteudo/36024. Acesso em 17.02.14
2 A Carta Magna garante este benefício apenas no transporte coletivo urbano.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 68
As manifestações tiveram início em São Paulo reivindicando a redução das tarifas
no transporte público lideradas pelo “Movimento Passe Livre” (MPL). Em pouco tempo,
desdobraram-se em protestos massivos pelo país gerando um debate sobre a existência
de um passe garantidor da gratuidade de utilização do transporte público para toda a
população, visto que assegura um direito essencial ao indivíduo, o direito à cidade.3
Essas aglomerações - bem como outras análogas a essas e de contexto distinto vivenciadas nos últimos anos ao redor do mundo 4 - é resultado de inter-relações, criadas
a partir da conexão entre os diálogos sobre a cidade, ora por integrantes do movimento,
ora por indivíduos não necessariamente ligados a ele, e a construção de um tipo de interatividade que se utilizou de diversos mecanismos, físicos ou virtuais, tornou possível
a formação do que se pode chamar de rede social, que na ótica de Augusto de Franco,
é um padrão de organização onde grupos de pessoas interagem e cooperam dentro de
uma topologia mais distribuída que centralizada. Essas construções, que se guiaram a
partir de questões sócio-políticas referentes à cidade, foram ao encontro da criação de
“zonas autônomas em relação ao poder centralizado.” 5
Argumentando a partir da transformação dos indivíduos e da transformação do
ambiente por estes, a partir dos novos mecanismos tecnológicos de comunicação, porém não utilizando o mesmo receituário ideológico de Franco, Manuel Castells, em um
estudo sobre os movimentos sociais na internet, cita este fenômeno:
o espaço do movimento é sempre feito de uma interação do espaço dos
fluxos na internet e nas redes de comunicação sem fio com o espaço dos
lugares ocupados e dos prédios simbólicos visados em seus atos de protesto. Esse híbrido de cibernética e espaço urbano constitui um terceiro
espaço, a que dou nome de espaço de autonomia, porque só se pode garantir autonomia pela capacidade de se organizar no espaço livre das redes
de comunicação [...] O espaço da autonomia é a nova forma espacial dos
movimentos sociais em rede. 6
A zona de autonomia a que Castells se refere, todavia, é a mesma de Franco, ela se
afasta de um sistema hierárquico basilar, e se organiza de modo a configurar-se dentro
de, conforme denomina o próprio Castells, “um projeto fundamental de transformação
de pessoas em sujeitos de suas próprias vidas”, estreitando laços de autonomia entre
as pessoas e distanciando-as das instituições e dos modelos de representação, já desacreditados. Castells pondera a inserção da autonomia como sendo a “capacidade de
um ator social tornar-se sujeito ao definir sua ação em torno de projetos elaborados
independentemente das instituições da sociedade, segundo seus próprios valores e interesses.” 7
3 O acesso à cidade pressupõe o acesso aos serviços independente de renda como pressuposto do próprio exercício da liberdade. Nesse sentido, “o desenvolvimento tem de estar relacionado sobretudo com a
melhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos” (SEN, Amartya. Desenvolvimento como
liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pág. 29). E essa melhora de vida não pode prescindir
da utilização de serviços adequados para o desfrute da cidade.
4 As aglomerações mencionadas recebem tratamento mais especificado na obra de Manuel Castells
(CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança da Internet. Editora Zahar. 2013), que voltará a
receber menção ao longo deste trabalho.
5 FRANCO, Augusto de. A Rede. São Paulo: 2012. Págs. 16-19.
6 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança da Internet. Editora Zahar. 2013. Edição do
Kindle. Posição 2653 de 5197.
7 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança da Internet. Editora Zahar. 2013. Edição do
Kindle. Posição 2773 de 5197.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 69
Ainda nessa linha de observação, Márlon Reis, ao analisar as manifestações de
junho de 2013, aponta que foi exatamente na rede social que o movimento eclodiu e se
desenvolveu – ele inclusive utiliza a expressão “as redes de mobilização social”. Segundo
ele, o fenômeno da rede social está presente de forma íntima na formação dos movimentos contemporâneos. Assim, pontua:
As organizações sociais estão desfazendo as formas piramidais sobre as quais
foram construídas, que concentravam poderes, atribuições e direitos nas pessoas
dos seus dirigentes. Em substituição a esse modelo espalham-se as redes. Nelas,
as associações civis e movimentos contemporâneos são geridos coletivamente, de
modo horizontal, distribuindo entre todos os componentes o saboroso papel de
participar das decisões. Do mesmo modo, essas entidades se unem a outras para,
também sob a forma de rede, ampliarem seu potencial de impacto. 8
O Movimento Passe Livre, em sua carta de princípios, afirma ser “um movimento
horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não anti-partidário. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras, etc.”. 9 Segundo o MPL, com a existência de um benefício
que transformasse a cidade em algo acessível a todos, poder-se-ia garantir não só a
locomoção das pessoas, mas também assegurar direitos fundamentais, como o direito a
saúde e a educação,10 perfazendo, assim, uma visão indivisível e não fragmentadora do
exercício de direitos fundamentais.
Essa perspectiva que problematiza a realidade do transporte coletivo e o insere
no contexto dos direitos sociais, entretanto, teve início já em 2003, com a reivindicação social de grupos estudantis, que na Bahia saíram às ruas de Salvador pedindo o
congelamento das tarifas de ônibus e ficou conhecida como “Revolta do Buzu”.11 Este
movimento foi um dos pioneiros na busca de uma política de mobilidade urbana mais
democrática e de melhor qualidade, foi aglutinador de demandas urgentes e ajudou na
concepção e criação do ideário do passe livre. É considerando seu aspecto indutivo, com
gênese na importância do deslocamento desse grupo em específico, que este trabalho
foi direcionado.
Assim, viu-se que há uma efetiva participação de movimentos sociais estudantis
que há muito tempo empunham a bandeira do passe livre estudantil, inserindo-a como
pauta de negociação para construção de novos direitos em relação aos poderes públicos. Foi analisado o processo de formação e manutenção desses movimentos, através de
multidões de pessoas organizadas de modo distribuído, com enfoque nas manifestações
de junho de 2013, e conclui-se que eles estão alinhados com as novas formas de debate
e interação que se desenvolve de forma horizontal nas redes sociais.
3.
Radiografia da implementação legislativa do passe livre: apresentando
possibilidades.
8 REIS, Márlon. O gigante acordado: manifestações, Ficha Limpa e reforma política. Rio de Janeiro:
LeYa, 2013. Pág. 56
9 Disponível em: http://saopaulo.mpl.org.br/apresentacao/carta-de-principios/ Acesso em 14.02.14.
10 Jornal PASSE nº 1, Setembro de 2008. Disponível em http://brasil.indymedia.org/media/2008/09//429475.pdf. Acesso em 12.02.14
11 A Revolta do Buzu, que foi o marco, e toda a cronologia do movimento, recebe tratamento detalhado
em: MARICATO, Ermínia; outros. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas
do Brasil. São Paulo. Boitempo: Carta Maior. 2013. Pág. 22.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 70
A discussão acerca do livre acesso dos estudantes ao transporte coletivo, objeto
de manifestações desde o início dos anos 2000, voltou a receber enfoque com as manifestações de junho de 2013. A evolução do movimento se deu não somente com o crescimento no número de adeptos ou com a repercussão que ganhou níveis nacionais mais
recentemente, mas também com as políticas públicas já implantadas em alguns lugares
do país.
Com a finalidade de identificar o comportamento do legislador sobre a criação do
direito ao passe livre no plano estadual e municipal, verificou-se tanto a existência de
projetos de leis quanto de leis já aprovadas que estabelecem o direito ao passe livre estudantil, com alguns temperamentos.
Quase sempre o que é garantido é a meia-tarifa. Todavia, alguns estados possuem
leis ou já aprovaram PECs à Constituição do Estado no sentido de assegurar o benefício
da tarifa zero no transporte coletivo, havendo colaboração dos governos estaduais com
os municipais no custeamento do passe. Dentre esses estados, temos o Rio Grande do
Sul, o Espírito Santo, Goiás, Amapá e o Distrito Federal, além de um vasto rol de leis
municipais, espalhadas por todo o país, que já vigoram.
O caso do Rio Grande do Sul merece destaque. A lei nº 14.307 de 25 de setembro
de 2013 é um resultado das manifestações iniciadas pouco tempo antes da sua sanção.
A lei não só prevê gratuidade no transporte intermunicipal a estudantes de baixa renda,
mas também esclarece a competência de subsidiar os custos que a gratuidade do direito
gera. 12
No Espírito Santo, foi aprovada a PEC 06/2012 à Constituição do Estado, que
adiciona o seguinte dispositivo legal: “o Estado incumbir-se-á de assumir o transporte
escolar integral dos estudantes matriculados no ensino médio, no ensino técnico e no
ensino superior, matriculados nas redes públicas estadual e federal, e para os estudantes que sejam contratados com o FIES, bem como os bolsistas beneficiados por programas estaduais e federais”.
No Distrito Federal, a lei 4.462 de 13 de janeiro de 2010 também provê garantias
importantes ao estudante.
Em dezembro de 2013, o governador do Amapá sancionou a lei apresentada pelo
Governo do Estado em parceria com a Prefeitura de Macapá, criando o Passe Social
Estudantil, afirmando que esta sanção é mais uma que resulta das manifestações de
junho de 2013. A lei institui o passe livre a estudantes, que anteriormente já detinham
o direito à meia-tarifa. Os beneficiários do Passe Social Estudantil devem pertencer às
famílias atendidas pelos programas sociais Renda para Viver Melhor, Bolsa Família,
Onda Jovem e Cadastro Único para Programas Socias (CadÚnico). 13
Também em resposta às manifestações de junho do ano passado, em 26 de junho,
o governo de Goiás assinou o decreto que instituiu o passe livre estudantil para a cidade
de Goiânia e região metropolitana.
Por fim, no Distrito Federal, a lei 4.462 de 13 de janeiro de 2010 também provê o
passe livre estudantil, de forma bastante ampla, ao estudante.
12 Informações obtidas em http://www.rs.gov.br/noticias/1/117172/Governo-do-Estado-regulamenta-a-Lei-do-Passe-Livre-Estudantil no dia 13 de fevereiro de 2014.
13 Disponível em: http://www.diariodoamapa.com.br/cadernos/principal/cidades/item/8580-camilo-sanciona-lei-que-concede-passe-livre-para-alunos-carentes . Acesso em 13 de fevereiro de 2014.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 71
Além das leis que já existem e garantem o passe livre estudantil, temos alguns
projetos de leis em tramitação, como o PLS nº 248, apresentado pelo senador Renan
Calheiros e a PEC 90/11, apresentada pela deputada federal Luiza Erundina. Indicados
em estudo na nota técnica do DIRUR/IPEA14, tais projetos são tentativas de prever os
ditames jurídico-políticos, necessários para estruturação de um benefício que funcione
de maneira eficaz. O critério usado para a seleção dos projetos de lei, no referido estudo,
foi no sentido da abrangência de sua proposta e o destaque obtido na tramitação.
Portanto, a dimensão tomada pelo movimento que luta pelo passe livre estudantil
abrange hoje patamares nacionais. A discussão acerca desse direito abrange de Câmaras Municipais ao Congresso Nacional. Como vimos, em alguns lugares o passe livre
estudantil já está implantado e vigora como política pública efetiva dos governos estaduais e municipais. Além disso, discute-se a desoneração do transporte coletivo aos
estudantes nos Estados que ainda não garantem o benefício e no Congresso Nacional.
4.
Respaldo do passe livre estudantil na Constituição Federal: um acessório
importante para a efetivação do direito à educação.
Para que o direito ao passe livre do estudante no transporte coletivo seja garantido,
é necessário, primeiramente, que ele possua conformidade com os princípios trazidos
pela Carta Magna. É importante frisar que o passe livre estudantil não está albergado
em nenhum dispositivo do texto constitucional. Por este motivo, buscaremos demonstrar a importância de se garantir o benefício nos dispositivos legais a partir do respaldo
que ele encontra nas normas constitucionais. Como se perceberá ao longo deste tópico,
dentre todos os direitos que são aperfeiçoados com a garantia do passe livre estudantil,
o que sofre maior influência é o direito à educação. Ou seja, o foco deste item é o passe
livre como acessório que vai democratizar o acesso à educação e, consequentemente,
contribuir para a concretização deste importante direito fundamental.
Inicialmente, insta reforçar que a educação tem o caráter de direito social, o que
significa dizer que a sua concretização, seja na esfera fática, seja na jurídica, requer – e
impõe, pela sua aplicabilidade imediata - intermediação estatal. A educação encabeça o
rol de direitos sociais elencados no artigo 6º da Constituição Federal. 15
Como já citado, uma série de direitos giram em torno do passe livre estudantil, o
que significa que confirmar a sua concessão facilita o acesso do estudante a esses direitos. Vale salientar que trata-se de direitos fundamentais, como a educação e a cultura,
bem como princípios constitucionais, como a cidadania e, claro, a dignidade da pessoa
humana. Antonio Isidoro Piacentin mostra a intrínseca relação da educação e a dignidade da pessoa humana:
A dignidade da pessoa humana é um valor jurídico; é o fundamento dos direitos
fundamentais. Impede a degradação do ser humano em todas as dimensões individuais e sociais. O não acesso à educação e ao ensino impossibilita o indivíduo
de “ver” e “de se ver” com dignidade, pois, falta-lhe o elemento cultural, essencial
de respeito a si e aos outros, o respeito à lei e os direitos de ordem pública.
14 BALBIM, Renato; NETO, Vicente Lima; GALINDO, Ernesto; KRAUSE, Cleandro. Ampliação do acesso
ao Transporte Público Urbano - Propostas em Tramitação no Congresso Nacional. Nota Técnica do IPEA nº
03. Brasília. 29/08/2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/130829_notatecnicadirur03.pdf Acesso em: 13/07/2014.
15 Art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 72
A educação pode ser um dos meios de diminuir a pobreza e a desigualdade social.
A pobreza é imoral; é um escândalo. No Brasil é visível a distância entre os poucos
muito ricos e os muitos muito pobres. Pode-se constatar que (a falta de) qualidade
na educação poderá aumentar a distância entre ricos e pobres.16
Mais adiante, no texto constitucional, o papel inexorável da educação volta a ser
mencionado, inclusive na Seção I do Capítulo III, que se destina exclusivamente para
estabelecer princípios e diretrizes ao direito à educação. A seção inicia-se no artigo
205.17
No desenvolvimento desta Seção, diversos aspectos fundamentais ao fornecimento
de uma educação de qualidade giram em torno do fornecimento gratuito de transporte
coletivo. Alguns incisos do artigo 206 da Carta Magna demonstram a relação existente
entre gratuidade no transporte e qualidade no ensino. Pela importância na construção
do argumento, transcrevemos abaixo o dispositivo, verbis:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a
arte e o saber;
[...]
VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
O princípio admitido no inciso I desse último artigo é claro ao utilizar o vocábulo
“acesso”. Logo, ao estabelecer igualdade de condições, resta evidente a necessidade
de atuação dos entes estatais para suprir as desigualdades existentes no que concerne a, entre outros fatores, os meios de deslocamento à instituição de ensino. O inciso
VI confirma esta imprescindibilidade da intervenção do poder público para garantir
igualdade, através de uma gestão democrática do ensino público. Utilizando um caso
prático: numa cidade onde é necessário que o estudante pague para se deslocar para a
escola, seja em meia tarifa, seja em tarifa comum, dois estudantes estudam na mesma
instituição de ensino, mas um deles necessita tomar dois ônibus para realizar o trajeto,
enquanto outro necessita de apenas um. Mesmo que ambos tenham a mesma condição
econômica, já nota-se um desequilíbrio no acesso à escola, uma vez que um dos alunos sempre estará pagando o dobro do outro. Neste caso, um meio para sanar a citada
desigualdade é a gratuidade do transporte coletivo. Em Porto Velho, o programa “Leva
Eu”18 disponibiliza cartões de passe fácil com os quais o estudante que necessita pegar
dois ônibus só deve pagar por um, proporcionando maior igualdade de condições para
o acesso à educação.
O inciso II refere-se, entre outras liberdades, às de aprender e pesquisar. Felizmente, o legislador não limitou o exercício dessas liberdades ao ambiente escolar ou universitário, afinal, o estudante vive em constante aprendizado, inclusive fora do ambiente
16 PIACENTIN, Antonio Isidoro. O direito à educação na Constituição Democrática de 1988. In: CINTRA,
Rodrigo Suzuki; PINTO, Daniella Basso Batista (Orgs.). Direito e Educação: reflexões críticas para uma
perspectiva interdisciplinar. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 59.
17 Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
18 Fonte: http://www.portovelho.ro.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=12&Itemid=60 acesso em
05 de outubro de 2014.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 73
acadêmico, como em teatros, museus, cinemas e parques. Assim, a regulamentação do
passe livre estudantil é o primeiro passo para a efetivação e extensão a todos da liberdade plena de aprender e pesquisar.
O acesso ao ensino volta a ser mencionado logo em seguida, no artigo 208, inciso
VII e no parágrafo 1º. 19
Dessa vez, o legislador foi claro ao elencar o transporte como uma etapa da educação básica que demanda programas suplementares. O exposto no parágrafo 1º afirma
que o acesso ao ensino é direito subjetivo. Assim, pode-se afirmar que este dispositivo
formal legitima demandas judiciais ou manifestações populares quando são criadas
barreiras para democratizar o acesso ao ensino, quer com o fechamento de uma escola,
quer com o aumento da tarifa de ônibus, a título de exemplo.
Como já afirmado anteriormente, determinados grupos sociais tem o direito ao
passe livre assegurado. Alguns deles, inclusive, a nível nacional. Como é o caso das
pessoas com deficiência e dos idosos. A estes, o passe livre é assegurado na Lei Maior,
de acordo com o artigo 230, § 2º. Àqueles, a lei nº 8.899/94 assegura a gratuidade no
transporte coletivo interestadual. A formalização do direito ao passe livre se dá pelo fato
de ser obrigação do estado fornecer integralmente assistência a esses grupos. A inobservância a qualquer aspecto do amparo ao idoso e ao deficiente físico ou mental põe
em risco princípios fundamentais como a dignidade da pessoa humana e até o direito
à vida. Com a prestação de serviços relacionados a educação e cultura, pode-se aplicar
uma lógica similar. Ter o ônus de custear suas viagens à escola ou a centros de cultura
e aprendizado pode afastar o aluno de baixa renda destes locais, comprometendo seu
aprendizado e não garantindo os princípios supramencionados no artigo 206 da nossa
Constituição, como a igualdade de condições para o acesso à escola e às liberdades de
aprender e pesquisar. Sem dúvidas, este afastamento mitiga não só o direito à educação
em si, mas fundamentos contidos no artigo 1º da Lei Maior, como a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
É possível encontrar jurisprudências de diversos tribunais do país que ratificam
os preceitos constitucionais explanados neste texto, relacionando o passe livre a diversos
direitos, mormente o direito à educação, citando, inclusive, os mesmos artigos que
foram acima citados. Um bom exemplo é a decisão proferida no Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul no Agravo de Instrumento de nº 70055102446, que tutelou alunos e
professores de uma escola que havia sido interditada pelo Poder Público Estadual. Na
decisão, a sétima câmara cível do Tribunal manteve a decisão da primeira instância, em
sede de tutela antecipada, a fim de impor aos demandados o transporte adequado dos
19 Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: VII - atendimento
ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material
didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 74
alunos e professores ao outro estabelecimento de ensino, bem como parada adequada e
monitores para os ônibus escolares, com base nos artigos 205 e 206, I da CF e os artigos
4º e 53, I e V, do ECA.20
Portanto, é evidente o respaldo que o benefício do passe livre estudantil encontra
na Constituição de 1988. Isso porque é um instrumento de concretização dos princípios
inexoráveis à prestação de educação e cultura de qualidade, e, por isso, forma de garantir, a um prazo mais estendido, direitos fundamentais de primeira geração, a exemplo
da dignidade da pessoa humana. Apesar de não formalizado diretamente no texto constitucional ou em lei federal, encontra fundamento semelhante ao benefício assegurado
a idosos e portadores de deficiência: a obrigatoriedade de prestação integral de serviços
por parte dos entes estatais e uma possível mitigação de direitos fundamentais em caso
de inobservância a algum aspecto desta obrigação.
5.
Competência para assegurar o benefício.
Na luta pela implantação de novas políticas públicas, o cidadão deve saber para
qual ente público deve direcionar seu pedido. De nada adianta direcionar-se à União
quando o direito que se pretende conquistar é incumbido ao Município, e vice-versa.
Em razão de o passe livre estudantil ter entrado na pauta das manifestações de junho
de 2013, como já tratamos, é importante relembrar o espaço em que se concentraram
essas aglomerações, para melhor análise do pleito social: as grandes cidades.
O artigo 175 da Constituição Federal 21 esclarece que a competência de prover serviços públicos é originária do Poder Público, o que não impede que haja concessão ou
permissão para empresas privadas prestarem estes serviços, caso em que se encaixa o
transporte coletivo. Contudo, o artigo é claro quanto à necessidade de que haja lei que
disponha acerca do regime de concessão e permissão e todas as suas particularidades,
bem como os direitos dos usuários, política tarifária e obrigação de manter serviço adequado.
O poder público está presente nas três searas da nossa federação: na União, nos
Estados ou Distrito Federal e, por fim, nos Municípios. O inciso V do art. 23 da nossa
Constituição diz que a competência para proporcionar meios de acesso à cultura, educação e ciência é comum a todos os entes da federação. Com base nisso, o passe livre,
por ser um meio de acesso a educação, cultura e ciência para o estudante, em tese,
poderia ser proposto por qualquer um dos entes federativos.
A Constituição optou por elencar os serviços de concessão e permissão de transporte coletivo, de forma clara, no inciso V do artigo 30, que versa sobre as competências
exclusivas do Município. 22 Portanto, é cabido ao Município regular o custeamento do
benefício, prezando pela manutenção da relação contratual pré-estabelecida com as empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos, tais como o transporte
§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
20 AI Nº 70055102446. 7ª CÂMARA CÍVEL, TJRS, REL. DES.ª SANDRA BRISOLARA MEDEIROS, JULGADO EM 23/10/2013.
21 Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou
permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá
sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão
da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter
serviço adequado.
22 Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; [...] V - organizar e
prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local,
incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; [...]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 75
coletivo. Essa competência se dá, mormente, pelo fato de o transporte coletivo ser um
serviço público essencial e de interesse local. Regina Maria Macedo Nery Ferrari define
interesse local por “aquele ligado de forma direta e imediata à sociedade municipal e
cujo atendimento não pode ficar na dependência de autoridades distantes do grupo que
não viveu problemas locais.” 23
No tocante ao transporte coletivo urbano, a competência é do Município, pois trata-se de serviço público essencial de interesse local, de acordo com Marcelo Harger:
Partindo-se do pressuposto de que os Municípios têm competência privativa para tratar de assuntos de interesse local, é seguro dizer que não há
nada mais local que o transporte coletivo urbano, que é reconhecido pelo
inciso V do art. 30 da Constituição Federal como serviço público essencial
de interesse local. Trata-se do único serviço público municipal cuja competência é atribuída expressamente pela Constituição Federal aos municípios. 24
Ainda se tratando da competência exclusiva do Município, leciona Cármen Lúcia
Antunes Rocha:
A competência legislativa dos Municípios foi definida em termos de “assuntos de
interesse local”, hipótese em que sua competência é exclusiva e excludente, portanto, da competência das demais entidades. Nessa matéria, a atuação competente da entidade municipal sobrepõe-se a qualquer outra ação, que, se ocorrer, será
considerada inconstitucional por violação do princípio da autonomia municipal. 25
Portanto, não há o que se negar de que o Município é o ente competente para criar
leis que instituam o livre acesso ao transporte coletivo urbano. Além de estar claramente expresso na Constituição, a competência exclusiva é ressaltada por vários doutrinadores. Além disso, a jurisprudência também tem fincado posicionamento convergente.
Abaixo, a ADI 2349 do STF:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 2º DO ARTIGO
229 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. TRANSPORTE COLETIVO INTERMUNICIPAL. TRANSPORTE COLETIVO URBANO.
ARTIGO 30, V DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. TRANSPORTE GRATUITO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. POLICIAIS CIVIS. DIREITO ADQUIRIDO. INEXISTÊNCIA.
1. Os Estados-membros são competentes para explorar e regulamentar a
prestação de serviços de transporte intermunicipal. 2. Servidores públicos
não têm direito adquirido a regime jurídico. Precedentes. 3. A prestação
de transporte urbano, consubstanciando serviço público de interesse local, é matéria albergada pela competência legislativa dos Municípios, não
cabendo aos Estados-membros dispor a seu respeito. 4. Pedido de decla-
23 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. O controle de constitucionalidade das leis municipais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pág. 59.
24 HARGER, Marcelo. A inexistência de gratuidade para os carteiros no transporte coletivo urbano de
passageiros. Revista Brasileira de Interesse Público. Belo Horizonte, v.13, n.65, págs. 73-86. jan/2011.
25 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e Federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. pág. 292-293
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 76
ração de inconstitucionalidade julgado parcialmente procedente. (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2349 /ES – ESPÍRITO SANTO. Relator(a):
Min. EROS GRAU. Tribunal Pleno. DJe 14-10-2005)
Na decisão acima, o tribunal declarou a inconstitucionalidade do termo “urbano
e” (sic) contido no § 2º do artigo 229 da Constituição do Estado do Espírito Santo. Isso
porque o transporte urbano e coletivo é de competência exclusiva do município. Após
configurar-se inconstitucional o termo, o texto passa a referir-se somente ao transporte
coletivo rodoviário intermunicipal, e a competência será do Estado do Espírito Santo, e
não mais do Município.
Assim, é importante deixar claro, mais uma vez, que competência exclusiva municipal só vai existir para o transporte coletivo urbano. É evidente que o transporte gratuito aos centros de aprendizado que ultrapasse os limites de um município, ou seja, o
intermunicipal, é de competência do Estado, como acontece em cidades pequenas cujos
estudantes se deslocam a outras com melhor infraestrutura educacional para estudar.
É incontestável que o Município é o ente incumbido para promover o livre acesso no
transporte rodoviário urbano. É importante esclarecer que, dentro do âmbito municipal,
um ato normativo pode ser proposto pelo prefeito ou pelos vereadores. O caso do livre
acesso no transporte coletivo configura-se na categoria de leis cuja iniciativa é exclusiva
do prefeito. Hely Lopes Meirelles esclarece:
Leis de iniciativa exclusiva do prefeito são aquelas em que só a ele cabe o
envio do projeto à Câmara. Nessa categoria estão as que disponham sobre
matéria financeira; criem cargos, funções ou empregos; fixem ou aumentem vencimentos ou vantagens de servidores, ou disponham sobre o seu
regime funcional; criem ou aumentem despesas, ou reduzam a receita municipal.
Se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por
inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se
nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode
renunciar prerrogativas constitucionais, inerentes às suas funções, como
não pode delegá-las ou aquiescer em que o Legislativo as exerça.
A exclusividade de iniciativa de certas leis destina-se a circunscrever (não
a anular) a discussão e votação do projeto às matérias propostas pelo Executivo. Nessa conformidade, pode o Legislativo apresentar emendas supressivas e restritivas, não lhe sendo permitido, porém, oferecer emendas
ampliativas, porque estas transbordam da iniciativa do Executivo. 26
Com base nesses ensinamentos, tendo em vista que a lei que implementa o passe
livre tem natureza de isenção tarifária que, portanto, acaba por criar ou aumentar despesas, ou reduzir receita do Município, é possível constatar que cabe, de forma exclusiva, ao chefe do Poder Executivo municipal, qual seja, o prefeito, a propositura de lei do
passe livre nesta seara. Se o passe livre for instituído em lei estadual ou PEC à Constituição Estadual, a competência também é do Poder Executivo, respeitado o princípio da
simetria.
A jurisprudência confirma a competência exclusiva ao Poder Executivo para propor
esse tipo de lei através da declaração de inconstitucionalidade formal de lei proveniente
de iniciativa parlamentar. A título de exemplo, temos a decisão da Ação Direta de In26 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 6ª ed., Malheiros, 1993, págs. 541 e 542.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 77
constitucionalidade nº 70053359063 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na
qual foi decidido que a Lei Municipal nº 4015/2012, do município de Viamão, originada
de projeto de Vereador, está eivada de inconstitucionalidade formal, “em face de vício
de iniciativa, por violação ao princípio da separação, independência e harmonia dos
poderes do Estado, previsto no art. 2º da Constituição Federal e nos artigos 5º e 10º da
Constituição Estadual porque versa sobre transporte coletivo, serviço público essencial,
que depende de iniciativa exclusiva do Poder Público Executivo local, nos termos do que
dispõem os artigos 61, II, b, da Constituição Federal e 82, VII, da Constituição Estadual.”
27
Portanto, a competência para proporcionar meios de acesso à educação, cultura e
ciência é comum a todos os entes da federação, o que possibilita que o passe livre estudantil seja garantido nas searas federal, estadual ou municipal, a depender de seu raio
de incidência. Todavia, no que tange ao regime de concessão e permissão dos serviços
públicos, estes devem ser regulados por lei municipal.28 Na hipótese de propositura
de lei que institui tarifa zero a determinado grupo social, como, por exemplo, os estudantes, esta deve ser feita pelo chefe do poder executivo. Em se tratando de transporte
coletivo urbano ou dentro dos limites de um só município, a competência é exclusiva
do prefeito da localidade. Simetricamente, é cabido somente ao governador do Estado
prover o passe livre se este for intermunicipal.
6.
Dependência da iniciativa política.
Ao longo do texto, foi exposto que o passe livre estudantil já é realidade em alguns
lugares, apesar de na maior parte do país ainda ser objeto de manifestações. Não temos
ainda o passe livre estudantil garantido a nível nacional, pois não se trata de instrumento imprescindível para que haja direito à educação. Na verdade, essa garantia é um
importantíssimo acessório para uma educação de qualidade, porém, a exemplo de todas
as cidades onde ainda não foi regulamentado, existe direito à educação mesmo sem que
o estudante tenha livre acesso ao transporte coletivo.
A razão disso é a seguinte: os dispositivos constitucionais, que legitimam o passe
livre estudantil, quais sejam, os artigos 205 e 206, não gozam de aplicabilidade imediata, tendo, portanto, caráter de norma programática. São normas que não geram
obrigações imediatas de fazer ou não fazer ao Estado, pelo contrário, elas estabelecem
princípios e diretrizes para modelar a ação estatal. José Afonso da Silva define as normas programáticas da seguinte forma:
normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos,
executivos, judiciais e administrativos), como programas das respectivas
atividades, visando à realização dos fins do Estado. 29
27 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70053359063, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do Rio
Grade do Sul, relator: Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro. Julgado em 13 /05 /2013
28 O que não impede proposições de Leis do Passe Livre Estudantil em âmbito federal. Exemplo disso é
o já mencionado PLS nº 248, do Senador Renan Calheiros. Ele propõe o Passe Livre a todos os estudantes
de todo o território nacional. O projeto não pode ser declarado inconstitucional sob justificativa de invadir
competências exclusivas municipais ou estaduais porque planeja-se que o financiamento seja feito com
verbas destinadas à educação .
29 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2011,
pág. 138
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 78
Todavia, não podemos esquecer que o direito à educação é direito fundamental
social, e, portanto, goza de aplicabilidade imediata. O direito à educação em si - assegurado no rol do artigo 6º - não se confunde com os princípios que dispõem os artigos 205
e 206 da Carta Magna.
Em outras palavras, a educação goza de eficácia plena, ou seja, de aplicabilidade
imediata. Antonio Isidoro Piacentin esclarece, afirmando que
o direito à educação é um direito fundamental social relativo ao indivíduo
e um dever imposto ao Estado, pois previsto nos arts. 6º e 205, tem um
significado de elevar a educação a um serviço público essencial e o dever
do Estado de aparelhar-se devidamente para atender as demandas educacionais. É um fim a ser perquirido incansavelmente pelo Poder Público.
É norma-programa fundamental impositiva; obriga o Estado a prestações
positivas. 30
Piacentin demonstra que a Constituição busca enquadrar a educação como serviço público essencial, o que vai colocá-la no rol de prioridades do Estado, obrigando-o a
realizar prestações positivas, sem, contudo, apontar que prestações são essas. Dessa
forma, o ente público responsável para realizar prestações positivas no âmbito da educação goza de discricionariedade no tocante a como essas prestações serão satisfeitas.
Por essa razão, propor demandas judiciais em face do ente competente não é a
melhor solução, porque apesar de as obrigações impostas na Constituição serem imediatas, em momento algum aponta-se quais políticas públicas devem ser tomadas para
sua satisfação. Por exemplo, o Poder Público pode, se achar mais conveniente, utilizar o
erário destinado à educação para reformar escolas ou aumentar o salário dos professores, e não assegurar o livre acesso do estudante no transporte coletivo.
Por essa razão, é importante que haja um debate onde o cidadão externe para o
Poder Público seu interesse pela implementação de determinada política pública, a fim
de que este tenha ciência da relevância de determinada prestação positiva para a sociedade. Manuel Castells discorre sobre essa necessidade do debate e da negociação entre
cidadãos e políticos, afirmando que “a passagem fundamental da esperança à implementação da mudança depende da permeabilidade das instituições políticas às demandas do movimento e da disposição deste se envolver num processo de negociação”. 31
Enfim, por ser a educação direito fundamental social e gozar de aplicabilidade imediata, o Poder Público é obrigado a realizar prestações positivas para sua concretização.
Porém, a forma de que os investimentos serão desprendidos fica a critério dos agentes
políticos competentes. Por isso, além da existência do movimento, evidenciando o interesse da população em determinada política pública, é necessário que o poder político
esteja aberto a negociar e, posteriormente, implementar os benefícios necessários.
30 PIACENTIN, Antonio Isidoro. O direito à educação na Constituição Democrática de 1988. In: CINTRA,
Rodrigo Suzuki; PINTO, Daniella Basso Batista (Orgs.). Direito e Educação: reflexões críticas para uma
perspectiva interdisciplinar. São Paulo: Saraiva, 2013. Pág. 55.
31 CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança da Internet. Editora Zahar. 2013. Edição do
Kindle. Posição 2840 de 5197.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 79
7.
Conclusão.
Como se viu, o direito ao passe livre não é assegurado apenas ao movimento estudantil. O passe livre já existe para grupos aos quais o Estado designa proteção, como,
por exemplo, os idosos e as pessoas com deficiência. O passe livre para os estudantes
depende de uma gradual implementação, que é muito impulsionada pelo movimento
social em busca da construção de novos direitos.
Restou evidente nos dispositivos constitucionais mencionados ao longo do texto a íntima relação existente entre o livre acesso nos transportes coletivo e o direito à
educação plena. O artigo 206 da Constituição Federal interliga esses direitos através
da ressalva à importância de acesso igualitário e integral aos meios de aprendizado. O
artigo 208, ao pontuar que é dever do Estado prover educação, cita claramente em seu
inciso VII o transporte como programa suplementar inexorável ao pleno gozo do direito
à educação. A importância do passe livre estudantil, nos termos da nossa Constituição,
é reiterada na jurisprudência pátria.
Foi analisado, também, um importante requisito para que a lei do passe livre em
determinada localidade não seja inconstitucional: a competência para assegurar o benefício. Foi demonstrado que a competência é exclusiva do chefe do Poder Executivo do
local em que o passe vai se estender.
Conclui-se, portanto, que não só não há óbice jurídico para a implementação do
passe livre estudantil, como, em verdade, a previsão em leis locais é imperativo de efetividade de direitos fundamentais. O passe livre termina sendo um mecanismo de efetividade dos direitos fundamentais sociais, notadamente do direito à educação. Todavia, a
regulamentação do passe livre estudantil não é assegurada integralmente a nível nacional, pois é de discricionariedade do seu ente competente, ou seja, depende de vontade
política. A participação da sociedade no debate em prol do livre acesso aos estudantes
no transporte coletivo é de fundamental importância para despertar no poder público
competente o interesse em proporcionar o seu devido tratamento.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 80
O TRANSCONSTITUCIONALISMO E A INCOMPATIBILIDADE
DA DECISÃO DO STF NA ADPF 153 E A SENTENÇA
CONDENATÓRIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS NO CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA.
Renata Santa Cruz Coelho1
Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira2
Julia Santa Cruz Gutman3
1.
Introdução
A transição do regime militar brasileiro para a democracia teve como um de seus
marcos a promulgação da lei nº 6683 em 1979, a qual concedeu anistia a todos os que
cometeram crimes políticos, bem como os conexos com estes durante o período de 02 de
setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, iniciando-se, a partir de então, um período
de esquecimento quanto aos crimes cometidos durante a ditadura militar, impedindo a
investigação e punição de crimes comuns praticados na época.
O judiciário foi provocado a se pronunciar sobre a lei de anistia através da Arguição de Descumprimento Fundamental nº 153/2008, proposta pelo Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil. O conselho arguiu o descumprimento de preceito
fundamental pelo § 1º do artigo 1º da lei de anistia, o qual considerou conexos os crimes
de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação
política. A pretensão da OAB era obter declaração conforme a Constituição a fim de
que fosse considerado, de acordo com os preceitos fundamentais constitucionais, que
a anistia concedida pela Lei 6683/1979 não se aplicava aos crimes comuns praticados
pelos agentes integrantes da repressão contra as pessoas consideradas opositoras do
regime militar. Nesse diapasão, os responsáveis pelas torturas, estupros, assassinatos
e demais crimes comuns não seriam beneficiados pela anistia.
O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente em 28 de abril de 2010, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153/2008, alegando, em síntese, que
não se deveria analisar a questão da conexão e dos crimes políticos em si, mas o caráter
bilateral da norma, no momento em que foi instituída, no sentido de conceder anistia
ampla e geral aos opositores do regime e aos integrantes do aparato estatal que cometeram condutas criminosas, entendendo que a lei de anistia se constituiu em medida
política restrita às circunstâncias de sua promulgação, qual seja, a transição política do
momento, não se sujeitando, portanto, ao controle de constitucionalidade.
1 Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Lattes http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4526508Z7. E-mail: [email protected]
2 Aluna especial do mestrado Programa de Pós Graduação da Universidade Católica de Pernambuco,
Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela AESO/PE.E-mail: [email protected]
3 Graduanda em Direito pela PUC/RJ. E-mail: [email protected]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 81
O posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 24 de novembro de 2010, no entanto, consolidou-se no sentido de não admitir anistia para as graves
violações de direitos humanos, como a tortura, considerando-as como crimes contra a
humanidade, imprescritíveis e impassíveis de anistia, pronunciando-se especificamente
sobre a lei de anistia brasileira no caso Gomes Lund.
Diante da incompatibilidade entre a decisão do Supremo Tribunal Federal e da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, o objetivo da presente pesquisa foi analisar
a proposta da teoria do transconstitucionalismo de Marcelo Neves4, que sugere o diálogo
entre diferentes ordens jurídica a partir da perspectiva de que os problemas de direitos
humanos cada vez mais se tornam insuscetíveis de resolução apenas no âmbito Estatal.
2.
Justiça de transição
De acordo com Teitel, a justiça de transição pode ser definida como a concepção de
justiça associada a períodos de mudanças políticas, caracterizada pelas repostas legais
a serem dadas às irregularidades cometidas durante o regime autoritário predecessor5.
Em conformidade com o Centro Internacional para a Justiça Transicional a justiça de transição refere-se ao conjunto de ações implementadas por países, tanto em
nível judicial quanto não judicial, em tempos de transição de períodos de conflitos ou
repressão estatal, objetivando corrigir as sequelas decorrentes de grandes abusos aos
direitos humanos, bem como a não repetição das violações perpetradas, incluindo processos criminais, criação de comissões da verdade, programas de reparação às vítimas
e reformas institucionais6.
A ideia de justiça de transição ganha destaque após a segunda guerra mundial a
partir de medidas adotadas para a compensação de vítimas do nazismo e da instalação
do tribunal de Nuremberg, acentuando-se a partir do momento em que sistemas domésticos passaram a implementar ações para enfrentar as violações aos direitos humanos
ocorridas no passado.7
O tribunal militar internacional de Nuremberg foi estabelecido pelos Aliados vencedores da 2ª Guerra Mundial objetivando a punição dos criminosos de guerra do Eixo
Europeu8.
Embora tenha havido críticas a esse Tribunal pelo fato de não ter havido suporte
jurídico para a sua construção, por ter sido constituído de forma unilateral, sob motivação essencialmente política9, bem como pela ofensa aos princípios da legalidade e da
4 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009
5 TEITEL, Ruti G.Transitional Justice Genealogy. Harvard Human Rights Journal / Vol. 16. Disponível em http://www.gerjc.u-3mrs.fr/IEP%20XP/1.%20Introduction%20 %20Transitional%20Justice%20Definition/Transitional%20Justice%20Genealogy%20-%20R.%20Teitel.pdf
6 INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE. What is Transicional justice? Disponível em: http://
www.ictj.org/en/tj/ Acesso em 10 de Outubro de 2011. O Centro Internacional para a Justiça de Transição reconhece que as medidas contidas na definição por eles apresentada sobre justiça de transição não são exaustivas, havendo medidas diversas adotadas
em cada país a exemplo da preservação à memória, como a criação de museus e outras inciativas simbólicas.
7 MEZAROBBA, Glenda. O que é justiça de transição? Uma análise do conceito a partir do caso brasileiro. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (coords.). Memória e verdade: a
justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009.cap 1, p.39.
8 GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946 – A Gênese de uma nova ordem no direito
internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 73-77.
9 . Ibid., p. 151.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 82
irretroatividade da lei penal10, é importante destacar, a tipificação dos crimes contra
a humanidade11, reafirmados no estatuto do Tribunal Penal Internacional, podendo ser
entendidos, à luz desses diplomas, como o assassinato, o extermínio, a escravização, e
outros atos desumanos cometidos contra a população civil antes ou durante a guerra,
bem como as perseguições por motivos raciais, políticos e religiosos, cometidas como
consequência de qualquer crime sob competência do Tribunal Penal Internacional, ou
a ele relacionadas, ainda que estas perseguições constituam-se ou não uma violação ao
direito interno de cada país12.
A partir de então, constata-se o início de a uma nova perspectiva do Direito Internacional a partir da qual a soberania não poderia de servir de fundamento para arbitrariedades perpetradas contra os seres humanos13.
Em que pese as peculiaridades da implementação das medidas a serem adotadas
em um período de justiça de transição, Juan Mendez afirma que existem quatro obrigações a serem satisfeitas como condição para ao desenvolvimento da democracia: a
investigação, processo e punição dos violadores de direitos humanos, a revelação da
verdade para as vítimas e para a sociedade, a reparação adequada e o afastamento dos
criminosos dos cargos de autoridade que ocupavam.14
A justiça de transição, a partir de uma concepção empírica, vem assumindo diversos padrões de variação, de acordo com os períodos históricos e com determinados
contextos sociais. 15
Na África do Sul, as medidas de justiça de transição implementadas após o regime
de apartheid priorizaram a preservação da verdade e memória e não a reparação das
vítimas e punição dos criminosos. Não houve uma anistia irrestrita, mas sim uma negociação desta em troca da confissão dos crimes cometidos durante o período de exceção16.
No caso da argentina foi outorgada a anistia ampla através da lei 22924/1982,
no entanto houve vários julgamentos considerando culpados os integrantes das juntas
militares por entenderem a lei inconstitucional. Contribuiu para este fato a divulgação
dos trabalhos da comissão nacional sobre o desaparecimento de pessoas, instaurada já
mesmo em 1983(a ditadura durou de 1976 a 1983). No entanto, para acabar com as
controvérsias sobre a aplicação da anistia, foram promulgadas as leis do ponto final e
da obediência devida, em 1986 e 1987, confirmando a anistia ampla. Porém, em 2005 a
corte suprema finalmente declarou inconstitucionais tais leis, possibilitando a instauração de processos e investigações sobre os criminosos17
No caso do Chile, após o período de ditadura do governo Pinochet, que durou de
1973 a 1990, também permaneceu em vigor um decreto de auto anistia promulgado em
1978. No entanto, a partir da condenação do Chile pela Corte Interamericana de Direi10 Ibid., p. 157.
11 Ibid., p. 189.
12 . Ibid., p. 266.
13 Ibid., p. 236.
14 MEZAROBBA, Glenda. Entrevista com Juan Mendez, presidente do International Center for Transitional Justice(ICTJ).
Sur Revista Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 7, p. 168-175, 2007.
15 Elster, Jon. Closing the books: transitional justice in historical perspective. Cambridge University, p. 73-75
16 GALINDO Bruno. DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA CONSTITUCIONAL TRANSICIONAL: ainda sob(re) as sombras do passado autoritário. In: STAMFORD DA SILVA, Artur (Org.). O Judiciário e o Discurso dos Direitos Humanos.
Recife: EdUFPE, 2011. v. 1, p.228-232.
17 Ibid., p. 235 a 236
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 83
tos Humanos no caso Almonacid Arrelano houve um aumento de decisões declarando
a inconstitucionalidade do decreto 2191/91 e foram abertos e reabertos mais de 120
processos contra ex integrantes do período autoritário. A mais significante das condenações foi contra o Gal Manuel Contreras, ex-diretor da Dina, polícia secreta do Governo
Pinochet, sendo tal decisão confirmada pela Suprema Corte do Chile em 2010. 18
3.
Anistia brasileira no contexto da justiça de transição
As medidas adotadas pelo Brasil em seu processo de redemocratização acabaram
por preservar os autores dos crimes cometidos durante o a ditadura militar.
No que toca às reformas institucionais, embora tenha havido alguns avanços, como
a constituição de 1988, a qual redefiniu, de uma forma geral o estado brasileiro, passando a funcionar como uma referência ao aperfeiçoamento das instituições democráticos
19
e a submissão das forças armadas ao poder civil20, através da Lei complementar nº 79
de junho de 1999, e algumas medidas pontuais como a extinção do Destacamento de
Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI CODI), ainda
em 1985 e a extinção do Serviço Nacional de Informação(SNI)21em 1990, o afastamento
da estrutura governamental de servidores pessoalmente responsáveis por violações aos
direitos humanos nunca foi implementada no país, uma vez que o próprio estado não
os considera criminosos22
Destaque-se, também, que essas medidas nunca foram expressamente associadas
ao contexto da justiça de transição, prevalecendo um discurso que se tratava de medidas necessárias à consolidação de em estado de direito. 23
No que concerne à reparação, foi editada a lei 9140/2005 prevendo a indenização
em razão de mortes e desaparecimentos durante o regime militar e a lei 10559/2002
estabelecendo a reparação administrativa dos prejuízos econômicos causados às pessoas perseguidas pelo regime. A postura do Estado Brasileiro foi de assumir a reparação
como sua responsabilidade, afastando a possiblidade de identificação pessoal dos criminosos.24
As iniciativas de medidas para preservação da memória e verdade concernentes à
ditadura militar foram, inicialmente, provenientes da sociedade civil, através do projeto
“Brasil: nunca mais”, promovido pela Arquidiocese de São Paulo, através da análise dos
registros dos processos do Superior Tribunal Militar25.
18 Ibid., p. 238-240
19 TORELLY, Marcelo D. Justiça Transicional e Estado Constitucional de Direito: Perspectiva Terico Comparativa e Análise do Caso Brasileiro. (Tese de Mestrado). Disponível em
http://
repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/8599/1/2010_MarceloDalmasTorelly.pdf, p. 200.
20 Ibid., p.195
21 É importante registrar que embora tenha havido a extinção do SNI, foi criada a Agência Brasileira
de Inteligência – Abin, em 1999, salientando-se que, apesar de ser submetida a diretivas do Congresso
Nacional por meio da aprovação da política nacional de Inteligência, suspeita-se que seus integrantes
sejam antigos servidores dos órgãos de repressão e segurança do regime autoritário. TORELLY, Marcelo D. Justiça Transicional e Estado Constitucional de Direito: Perspectiva Teórico Comparativa
e Análise do Caso Brasileiro. (Tese de Mestrado). Disponível em: http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/8599/1/2010_MarceloDalmasTorelly.pdf. p. 202.
22 Ibid., p.194.
23 Ibid., p.193
24 Ibid., p.192
25 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 84
Na esfera estatal, no âmbito dos poderes legislativo e executivo, apenas na década
de 1990 consolidaram-se algumas medidas objetivando o esclarecimento da verdade e
a preservação da memória. Em 1995 foi instituída a comissão especial sobre mortos e
desaparecidos políticos, mediante a Lei 9140.
Em 2003, através decreto 4850/2003 foi instituída uma comissão para descobrir
os corpos das pessoas desaparecidas que participaram da guerrilha do Araguaia. Como
resultado dos trabalhos dessas comissões, foi publicado pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos o livro relatório “Direito à verdade e à memória: Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos”, contendo a versão do Estado, bem como esclarecendo fatos sobre mortes, torturas e desaparecimentos de algumas pessoas consideradas opositoras do regime26.
Além de serem medidas isoladas para casos específicos, as mesmas foram desenvolvidas sob a regência de uma legislação que se constituía em impedimento para
a plenitude da busca pela verdade e pela preservação da memória27, a exemplo da lei
11.111 de 2005, a qual assegurava que o acesso aos documentos públicos classificados
no mais alto grau de sigilo poderia ser restringido por tempo indeterminado ou mesmo
permanecer para sempre em segredo em defesa da soberania nacional.
Apesar disso, tem sido observado muitos avanços neste sentido, merecendo destaque atuação da Comissão de Anistia. A Comissão de Anistia foi criada a partir do marco
reparatório financeiro, mediante a lei 10.559/2002. No entanto, nas suas funções de
apreciar os pedidos de anistia e indenização formulados pelos perseguidos políticos, assumiu também um viés esclarecedor da verdade na medida em que tem constituído um
acervo sobre o relato das vítimas a respeito de suas experiências, bem como dos documentos trazidos pelas mesmas, até então desconhecidos. A análise por parte da Comissão dos pedidos de anistia e reparações acabou consolidando-se como um espaço para a
narrativa das vítimas e juntada de documentos sobre a repressão sofrida, contribuindo
para compor um registro sobre as violações aos direitos humanos realizadas pelo Estado. Através das atividades que vem desenvolvendo com as Caravanas da Anistia e o
programa Marcas da Memória, também tem contribuído com as dimensões da verdade
e memória, processo que tem permitido participação da sociedade.
Através da lei 12.528/2011, foi criada uma comissão da verdade para investigar as
violações aos direitos humanos cometidas durante o período da ditatura militar e editada a lei 12.527/2011, disciplinando o acesso à informação e revogando as leis 11.111
de 2005 e 8159/1991.
No que toca à investigação e punição de criminosos a situação é bastante grave. A
título de exemplo, cite-se a instauração de inquérito (IP 704/92 – 1ª vara do júri de são
Paulo, requisitado pelo Ministério Público de São Paulo) em que se objetivava a investigação da morte do jornalista Vladmir Herzog. O Tribunal de Justiça (HC 131.798/3-4
–SP – j. 13.10.92) de São Paulo determinou o seu arquivamento aplicando a lei de anistia, decisão mantida pelo STJ em 1993(Resp 33.782-7-SP, j. 18.08.93), uma vez que o
recurso não foi conhecido.28
26 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito
à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos/Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.
27 Cf. Lei nº 11.111/2005; Decreto nº 5.301/2004; Decreto nº 4.553/2002; Lei nº 8.159/1991. Registre-se que embora o Supremo Tribunal Federal tenha sido provocado a se pronunciar sobre os prazos de sigilo conferidos aos documentos produzidos
pelo Estado, mediante a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 972-DF, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil em 2005, a ação foi extinta sem resolução de mérito.
28 https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&dt_publicacao=30/08/1993&num_registro=199300093711. Acesso em 10/17/2012.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 85
Com a declaração do Supremo, na ADPF 153/2008, foi confirmada a postura do
judiciário, no Brasil, de entender que os crimes comuns praticados pelos agentes do
aparato estatal durante a ditadura poderiam ficar impunes com fundamento na Lei de
Anistia. O posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no entanto,
consolidou-se no sentido de não admitir anistia para as graves violações de direitos
humanos, tais como a tortura, considerando-as como crimes contra a humanidade,
imprescritíveis e impassíveis de anistia29, devendo esses crimes serem investigados por
meio de um processo e os responsáveis punidos, conforme decisões proferidas no caso
Barrios Altos versus Peru, referente à execução de quinze pessoas por integrantes do
Serviço de Inteligência de Exército, no período de Governo ditatorial de Alberto Fujimore30, e no caso Almonacid Arrellano versus Chile referente à anistia aos crimes cometidos durante o regime de Pinochet.31
A Corte Interamericana de Direitos Humanos pronunciou-se especificamente sobre o Brasil no caso Gomes Lund e outros, demanda relativa ao à responsabilidade do
estado brasileiro pela detenção, arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70
pessoas como resultado da ação do exército brasileiro, no período da ditadura militar,
objetivando por fim à guerrilha do Araguaia. A sentença proferida pela Corte, pronunciou-se, dentre outros aspectos, no sentido de que estes crimes são exemplos de crimes
contra a humanidade, não podendo seu julgamento ser obstado por leis de anistia ou
pela alegação de prescrição. 32
4.
Anistia brasileira:
transconstitucionalismo
uma
análise
a
partir
das
possibilidades
do
A teoria do transconstitucionalismo, de Marcelo Neves, desenvolve-se a partir da
ideia de que problemas de direitos humanos ou fundamentais, tornam-se cada vez mais
inapropriados para serem tratados por uma única ordem jurídica, nos limites do Estado
nacional, derivando, daí a necessidade de relações entre as diferentes ordens jurídicas
objetivando a solução de problemas comuns a partir de uma racionalidade transversal.33
Tomando como ponto de partida a ideia de razão transversal, desenvolvida por
Welsch, Neves defende a inexistência de um metadiscurso e de uma razão abrangente,
falando em racionalidades transversais parciais, desenvolvidas a partir de diferentes
jogos de linguagem, atuando como pontes de transição. 34
29 INTERNATIONAL CENTER FOR TRANSITIONAL JUSTICE – ICTJ. Parecer técnico sobre a natureza
dos crimes de lesa-humanidade, a imprescritibilidade de alguns delitos e a proibição de anistias. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, n. 1, p. 352-394, jan./jun. 2009.
30 COSTA RICA.Corte Interamericana de Direitos Humanos. Barrios Altos vs Peru. Fondo. Sentencia
de 14 de marzo de 2001. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_
esp.pdf>. Acesso em 01 de julho de 2012.
31 COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Almonacid Arellano vs Chile. Fondo.
Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>. Acesso em 01 de julho de 2012.
32 COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>.
Acesso em 01 de julho de 2012.
33 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. XXI.
34 Ibid., p. 42. Segundo neves embora o autor negue a existência de um único discurso, defende que
é possível desenvolver uma “metanarrativa pós moderna”, a partir do entrelaçamento entre os jogos de
linguagem diversos que lhes servem como pontes transição, sendo que neste ponto Neves se diferencia do
autor propondo as referidas racionalidades transversais particulares.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 86
Dessa forma, o autor propõe o transconsttiucionalismo como “modelo de entrelaçamento que serve à racionalidade transversal entre ordens jurídicas diversas”.
Segundo essa teoria, a resolução de problemas constitucionais surge a partir do
entrelaçamento entre as diferentes ordens jurídicas35, não cabendo falar em uma estrutura hierárquica entre elas, mas sim em uma incorporação recíproca de conteúdos36.
De acordo com o transconstitucionalismo, os subsistemas jurídicos de cada país
integram um sistema jurídico global, questionando-se o modelo de soberania apoiado
na visão de que as relações entre Estados são construídas entre nações distintas a partir de uma relação entre “interno e externo”, e não segundo a concepção de um mesmo
sistema funcional da sociedade mundial37. Nesse contexto, o autor defende a necessidade de diálogo entre as ordens constitucionais de cada país 38 em uma relação de
coordenação entre elas, de modo que não se pode determinar a prevalência definitiva de
uma das ordens.39
O conflito entre as decisões do Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o alcance da anistia brasileira instituída na transição
do regime militar pode ser solucionado no campo do transconstitucionalismo entre o
direito internacional público e o direito estatal40. A relação entre ordens jurídicas estatais e ordens jurídicas internacionais tem se acentuado bastante, uma vez que os Estados, quando partem apenas de sua ordem jurídico constitucional para a solução de
problemas, deparam-se com as normas de direito internacional, não podendo a noção
de soberania servir de fundamento para a escusa de obrigações assumidas perante um
contexto interestatal.41 Nesse tipo de transconstitucionalismo, verifica-se que a responsabilidade do estado quanto a questões constitucionais não se legitima exclusivamente
no seu âmbito interno, mas de forma entrelaçada com a ordem interestatal, exigindo
uma nova perspectiva de análise além da visão unilateral do sistema doméstico42.
Verifica-se, porém, que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal sobre
a lei de anistia brasileira sequer analisou os argumentos já consolidados na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o assunto, ocorrendo o que
Marcelo Neves denominou em sua obra de autismo. Segundo o autor o autismo seria
um dos lados negativos da racionalidade transversal, ocorrendo quando uma das esferas de racionalidade nega a capacidade de aprendizado em relação a outra.43
É preciso salientar que não se trata de defender a adoção pura e simples das
decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos uma vez que, de acordo com a
teoria ora mencionada, não caberia falar em hierarquia entre as ordens jurídicas.44 Não
se trata também de defender a imposição de uma visão unilateral sobre determinado fato.
Ocorre, porém, que o Ordenamento jurídico do Brasil, ao menos formalmente, parece
35 Ibid., p. 121.
36 Ibid., p. 118.
37 Ibid., p. 125.
38 Ibid., p. 142
39 Ibid., p. 117
40 Ibid., p. 132
41 Ibid .,p. 134
42 Ibid .,p. 135
43 Ibid., p. 120
44 Ibid., p.42
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 87
compartilhar da ideia de se conferir um privilégio acentuado aos direitos humanos.
O Brasil participa do sistema interamericano de direitos humanos, tendo promulgado
o Pacto de São José da Costa Rica em 06 de novembro de 1992, através do decreto
678, reconhecendo em 10 de novembro de 1998 obrigatória a competência da Corte,
ademais dispõe em sua Constituição, no artigo 4º, que o país se regerá nas relações
internacionais de acordo com a prevalência dos direitos humanos. Com a Emenda
Constitucional 45, estabeleceu-se que os tratados direitos humanos aprovados em cada
casa do congresso nacional, em dois turnos, por 3/5 de votos dos respectivos membros
seriam equivalentes a Emendas Constitucionais, e no âmbito do próprio Supremo
Tribunal Federal, no julgamento do RE 466.434, reconheceu-se que os tratados de
direitos humanos, precedentes ou posteriores à Emenda Constitucional 45/2004,
possuíam valor supralegal.45
Nesse contexto, porém, não é compreensível porque o Supremo Tribunal Federal
mostrou-se alheio ao entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre
leis de auto anistia, sequer mencionando o posicionamento já exposto pela corte quando
do julgamento da ADPF 153/2008 nos casos Amonacid Arellano versus Chile e Barrios
Altos versus Peru, já referidos, sendo plenamente possível, mormente após o julgamento
do caso Gomes Lund e outros versus Brasil, que o Supremo proceda a uma revisão da
decisão sobre a interpretação da lei de 6683/1979, à luz dos fundamentos que situam
o tratamento dado aos crimes de lesa humanidade no contexto dos direitos humanos.
5.
Considerações finais
Ressalvando-se alguns avanços, as ações implementadas pelo Brasil entre a
passagem do regime militar para a democracia têm sido insatisfatórias levando-se em
consideração as principais medidas de uma justiça de transição. A interpretação dada
à lei 6683/1979, no sentido de que a anistia foi bilateral e benéfica para toda a sociedade resultou em uma situação de esquecimento, ocultação da verdade e impunidade
de criminosos.
Nesse sentido, nunca houve a reformulação das instituições democráticas no sentido de afastar de cargos públicos os responsáveis por violações de direitos humanos
cometidos durante o regime de exceção. Quanto à revelação da verdade, é possível considerar muitos ganhos, porém, apenas no ano de 2012 entrou em vigor a legislação
que criou a comissão da verdade e regulou o acesso à informação, proibindo o sigilo de
informações necessárias à tutela de direitos fundamentais A reparação pecuniária em
favor das vitimas, nos termos das leis 9140/1995 e 10559/2002 foi o meio pela qual o
Estado assumiu a responsabilidade pelos abusos ocorridos durante a ditadura, sem, no
entanto haver qualquer tipo de responsabilização pessoal dos integrantes do aparato de
regime estatal. Nunca houve, ainda, a investigação e punição dos responsáveis pelos
crimes cometidos durante o período.
Apesar disso, embora Supremo Tribunal Federal tenha julgando improcedente
a ADF 153, entendendo que a lei de anistia se aplica aos crimes comuns praticados
durante a ditadura, essa decisão é passível de revisão à luz do entendimento da Corte
Interamericana de Direitos Humanos proferida, entre outros, no caso Gomes Lund e
outros versus Brasil.
Uma possibilidade para tanto é a adoção da teoria do transconstitucionalismo pelo Supremo, reconhecendo que os problemas de direitos fundamentais perpassam o âmbito interna de um país, necessitando de resolução através do diálogo com
45 PEIXER, Janaína Freiberger Benkendorf. A Posição Hierárquica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no
Ordenamento Jurídico Brasileiro. In: ALTHAUS, Ingrid Gianchi e BERNARDO, Leandro Ferreira (orgs.). O Brasil e o Sistema
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. São Paulo: Iglu, 2011.p.50.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 88
outras ordens jurídicas, e não apenas através dos mecanismos domésticos, evitando,
assim, que se assuma uma posição isolada consistente na falta de reconhecimento e
aprendizagem quanto às demais ordens.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 91
A IGREJA CATÓLICA E O ESTADO NO BRASIL:
DO REGALISMO À LAICIDADE?1
Rafaella Amaral de Oliveira2
1.
Introdução
No presente artigo pretende-se, inicialmente, analisar as relações entre Igreja Católica e o Estado nas Constituições brasileiras, tentando demonstrar que tais relações
são ambíguas, cheias de idas e vindas, com momentos de maior afastamento e outros
de maior proximidade.
A princípio, quando do Brasil Colônia, a Igreja foi de fundamental importância
para a consolidação dos domínios portugueses na América, destacando-se a figura dos
jesuítas. Nesse momento, igreja-Estado caracterizavam-se por uma relação de mútua
dependência, o chamado regalismo.
Já na Alta Idade Média e, especialmente nos alvores do Renascimento,
começou a formar-se a consciência da nacionalidade e do Estado independente que rompia num pluralismo de soberanias o monismo da “Cristandade” ou do “mundus Cristianus” universal. Sem dúvida esta consciência
social da nacionalidade representa um progresso na história humana, mas
a supervalorização da ideia de nacionalidade degenerou em nacionalismo,
provocando o fenômeno do absolutismo estatal que acarretou consequências importantíssimas a respeito das relações com a Igreja.
[...] O regalismo pode ser entendido como uma intrusão ilegítima do poder
civil nos negócios eclesiásticos ou bem, num sentido estrito, como um sistema jurídico que defende a subordinação da igreja ao Estado. (CIFUENTES, 1971, p. 49-50)
Nesse ínterim, não se deve confundir o sistema de regalismo com outros dois: o cesaropapismo e a teocracia. A teocracia, a hierocracia ou o curialismo poderia definir-se
como um sistema jurídico que defende o poder direto do Papa sobre a ordem temporal
e a subordinação do Estado à Igreja (CIFUENTES, 1971, p. 53-54), ao passo que, no cesaropapismo, há uma unificação no chefe de Estado dos poderes temporais e espirituais.
1 Trabalho apresentado à Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) como requisito parcial para
aprovação na disciplina, do mestrado em Direito, Origens Canônicas do Direito Processual ministrada pelo
professor Dr.º Francisco Caetano Pereira.
2 Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES e em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade ASCES e mestranda em Direito pela
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Oficiala de Justiça no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
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[...] os chefes das religiões eram ao mesmo tempo magistrados do Estado. E desse
estado de coisas participavam não só as cidades gregas, a república romana ou o
império chinês, mas também a própria sociedade judaica, onde permanecia ainda
o sonho de reconstruir o antigo Estado Teocrático de Davi.
O cesaropapismo representou uma tentativa de restauração do sistema pré-cristão que unificava os dois poderes na pessoa do imperador. A tendência iniciou-se
com Constantino que chegou a dizer “tudo o que eu quero deve considerar-se um
cânon”, ou seja, lei eclesiástica.
A Resistência da Igreja perante o Cesaropapismo encontra em Gregório VII o mais
incansável lutador contra o direito imperial das investiduras que termina na Concordata de Worms (1122), onde se conclui reconhecendo exclusivamente ao Papa
a transmissão espiritual dos ofícios hierárquicos. (CIFUENTES, 1971, p. 46-49)
Outrossim, importante destacar o conceito de laicidade que, diferentemente dos
outros três abordados acima, impõe uma separação entre os interesses estatais e os
clericais. Um Estado laico não mantém relações de subordinação ou dominação com a
igreja, tampouco pode financiá-la ou impedir o livre funcionamento de suas atividades.
Portanto, como se verá ao longo do trabalho, o Estado brasileiro transpassou relações regalistas com a igreja católica, com destaque para o financiamento estatal das
ordens clericais no país e os institutos do beneplácito e do padroado, até chegar a atual
fase laicista com a proclamação da república.
2.
Período Colonial
O Brasil nasceu como Terra da Vera Cruz. O almirante Pedro Álvares Cabral apoderou-se da terra em nome de Sua Majestade Fidelíssima D. Manuel I, grão-mestre da
Ordem de Cristo e patrono da Igreja do Novo Mundo e da santa fé católica. Os Jesuítas
foram os primeiros a lançar uma ponte entre os europeus e os indígenas. Construíram
as primeiras escolas e ajudaram à organização dos primeiros hospitais. Os Beneditinos,
os Carmelitas, os Franciscanos semearam mosteiros pelo litoral e mesmo no interior,
onde o trabalho nas minas não deixava muita mão-de-obra disponível para o serviço
de Deus. Por todo o lado onde os portugueses chegaram ao longo dos dois primeiros
séculos, elevaram-se igrejas e capelas, muitas delas cobertas de ouro, cheias de obras
de arte. Mas este fausto não passa de um falso testemunho. Quando atingiu o auge em
meados de século XVIII, a Igreja estava já em decadência, e a sua tropa de choque, a
Companhia de Jesus, ameaçada de extinção. (ALVES, 1979, p.17-18)
Pode dividir-se a história da Igreja no Brasil em cinco períodos: a implantação sob
a égide do patronato real; a decadência do patronato e o esboroamento da organização
eclesiástica ao longo dos séculos XVIII e XIX; os esforços dos bispos ultramontanos para
restabelecer, ao longo dos últimos trinta anos do século XIX, o predomínio de Roma
sobre a Igreja local; a reimplantação da Igreja sob a autoridade incontestável do Vaticano a partir da separação Igreja-Estado, estabelecida pela Constituição Republicana
de 1891, mas só possível graças à ajuda do poder político; finalmente, a etapa que se
delineia no princípio dos anos sessenta, a de uma independência relativa da Igreja em
face do Estado, fruto do reforço da sua organização durante o período precedente e impulsionada por uma organização de coordenação, a CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil), fundada em 1953. Um sexto período, ainda não perfeitamente definido e que se poderia chamar de prospectivo, começa com os anos setenta e baseia-se
em uma nova forma organizacional, as “comunidades eclesiais de base”. É o período de
reinvenção das raízes populares e libertárias da Igreja, raízes abandonadas ao tempo de
Constantino. (ALVES, 1979, p.18)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 93
A idéia de patronato dos detentores do poder temporal sobre as instituições eclesiásticas é precoce. É uma conseqüência lógica da evolução da Igreja a partir do Edito
de Milão. O primeiro documento pontifício a mencionar a instituição data do período de
Nicolau II, no século VI. Referia-se já ao direito dos senhores de apresentarem candidatos aos cargos eclesiásticos. O direito de “apresentação”, que vem a ser mais tarde o de
nomear as autoridades eclesiásticas, é a própria essência do patronato, que, por outro
lado, englobava também os direitos honoríficos, os direitos utilitários e as obrigações.
(ALVES, 1979, p.18)
Em 1492 a descoberta da América cria a necessidade de uma intervenção política do Papa que ultrapasse de muito o quadro do patronato. Já não se trata apenas de
reconhecer direitos materiais e espirituais em territórios conhecidos, com populações
cristianizadas. É preciso proceder à partilha de um mundo desconhecido para evitar
que dois reinos cristãos se batam por ele. Fernando e Isabel são os primeiros a fazer um
apelo ao Papa para que legitime as suas possessões. A América constitui a primeira descoberta dos navegadores espanhóis, até aí ultrapassados pelos portugueses, e os soberanos temem a agressividade dos seus vizinhos do Sul, que têm ainda meios materiais
para garantir as suas ambições. Em 4 de maio de 1493, pela bula Inter caetera, o Papa
concede a Suas Majestades católicas as terras descobertas ou a descobrir a oeste de
uma linha que passava a 100 léguas das ilhas dos Açores e de Cabo Verde. O Papa que
assinou esta concessão era espanhol: Alexandre VI, Bórgia. No ano seguinte, torna-se
o garante do Tratado de Tordesilhas, pelo qual os soberanos de Portugal e de Espanha
aceitavam formalmente esta partilha e traçavam a fronteira das suas terras a 370 léguas a oeste da ilha mais ocidental do arquipélago de Cabo Verde. (ALVES, 1979, p.19)
As decisões pontifícias sobre o Novo Mundo determinaram os primeiros limites do
Brasil, a natureza do seu regime político e o caráter da sua Igreja antes mesmo de o país
ser oficialmente descoberto. Portugal, que tinha pouco mais de um milhão de habitantes,
empregou então a totalidade dos seus recursos no estabelecimento das suas feitorias na
África ocidental e nas Índias. Contrariamente ao império espanhol, que principiou como
uma aventura de conquista, e aos impérios britânico e holandês, empreendimentos de
mercadores e de colonização, as possessões portuguesas eram puramente comerciais.
O seu principal objetivo era destruir o monopólio muçulmano do comércio das especiarias, objetivo limitado mas que exigia uma grande quantidade de homens e de material.
Só em meados do século XVI é que a colonização foi acelerada para garantir as feitorias
brasileiras ameaçadas pelos franceses. (ALVES, 1979, p.20)
A posse do território português na América, ocorrida em 1500, foi coroada com
uma missa celebrada pelo Frei Henrique de Coimbra, e, a partir de então, a história da
colonização portuguesa no continente é, em muitos sentidos, a história do esforço missionário católico. (ALVES, 2008, p.43)
No que respeita à Igreja, a fraca prioridade atribuída ao Brasil durante o primeiro
meio século de existência foi benfazeja. Em 1549, quinze anos depois da fundação da
Companhia de Jesus, os primeiros jesuítas chegaram à Bahia. (ALVES, 2008, p.21)
O mais importante elemento jurídico na relação entre a Igreja e o Estado português, que perdurou durante todo o período colonial brasileiro assim como no período
imperial, era o chamado Padroado – Ius Patronatus. Prática canônica de origem germânica, o padroado foi adotado pelo reino de Portugal desde sua origem – aparentemente, a
princípio, como concessão excepcional do papado e, posteriormente, interpretado como
de direito próprio do monarca. (ALVES, 2008, p.44)
No regime de padroado, como o próprio nome indica, o soberano português era o
patrono da Igreja. Estabelecia-se entre o Estado e a Igreja uma estrutura jurídica semi-contratual (bilateral e onerosa) pela qual aquele recebia e cobrava diretamente da po-
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pulação os dízimos e rendas eclesiásticas e, em troca, obrigava-se a manter e expandir
a propriedade da Igreja, financiar o esforço educacional e missionário, sustentando o
clero. Dentre os poderes do soberano, era significativo o advindo da designação de bispos – submetidos à aprovação papal -, párocos e outros funcionários da Igreja, que eram
funcionários públicos. (ALVES, 2008, p.44-45)
A ligação entre os jesuítas e os indígenas (e a oposição inabalável que erguiam
contra qualquer tentativa de os reduzir à escravatura) tornar-se-ia no século XVII o
principal fator da política interna do Brasil. O confronto entre os colonos — que viam na
escravatura dos índios a única fonte possível de mão-de-obra — e os jesuítas — que se
recusavam a deixar que os seus pupilos saíssem das aldeias sem as garantias estabelecidas pela lei — provocou motins, tumultos, massacres, e mesmo uma guerra. Quando,
em 1759, o Marquês de Pombal decretou a expulsão dos quinhentos jesuítas que trabalhavam no Brasil, possuíam eles, só nas margens do Madeira, em pleno coração da
Amazônia, vinte e oito missões florescentes. (ALVES, 1979, p.21)
Nenhum esforço da Igreja é comparável ao trabalho da Companhia de Jesus no
Brasil durante os dois primeiros séculos da colonização portuguesa. Esta epopéia ascende ao nível das de Cortez e Pizarro, e conta-se entre os milagres que alguns punhados de homens forjaram na terra americana. E é tanto mais surpreendente quando se
pensa que a fé e a palavra foram os seus instrumentos, e não a bombarda, o cavalo e a
espada. (ALVES, 1979, p.22)
Além das ordens religiosas, o elemento dinâmico do catolicismo brasileiro eram
as irmandades laicas. Gilberto Freyre considera que estas irmandades realizaram no
Brasil uma parte considerável do trabalho que as autoridades governamentais levavam
a cabo na América espanhola. Caio Prado Junior considera que as Santas Casas da
Misericórdia “são as mais belas e quase a única instituição social com uma certa importância na colônia”. (ALVES, 1979, p.23)
Desempenhavam também o papel de associações de assistência social e de bancos,
emprestando dinheiro a juros aos seus membros. Serviam, finalmente, de instrumento
de ascensão social e de reforço das estruturas do poder social estabelecido. (ALVES,
1979, p.23)
Face às ordens religiosas poderosas, dinâmicas e, pelo menos no caso dos Jesuítas, sensivelmente independentes; face às irmandades laicas, numerosas, ricas, ativas
ao ponto de criarem uma infra-estrutura da importância das Santas Casas, e presentes
na vida social ao ponto de promoverem as festas e as manifestações populares; face a
tudo isso, que eram a Igreja hierárquica e o clero secular? A penúria, a precariedade da
sua organização, o imobilismo das suas autoridades só são explicáveis pelo patronato
real e pela ideologia de cristandade de que os monarcas ibéricos foram os últimos baluartes. Em tese, os objetivos da Igreja e os do Estado eram os mesmos. Um era o outro.
Um emanava do outro e justificava-se por ele. O bispo não passava de um funcionário
especializado do Estado, cuja política executava. O rei era um servidor privilegiado de
Deus, portanto da sua Igreja, de quem recebera a missão e o direito de governar o povo.
(ALVES, 1979, p.23-24)
Durante cento e vinte e seis anos, o Brasil teve apenas uma diocese, a da Bahia.
Só em 1676 foram criadas as do Rio de Janeiro e Olinda. Quando da independência,
em 1822, existiam 7 dioceses no Brasil, das quais duas diretamente dependentes do
arcebispado de Lisboa. As paróquias eram igualmente raras. Bruneau explica que, “sendo o Estado responsável pela sua manutenção, deixou simplesmente de as criar. Um
bispo poderia criá-las, se o quisesse, mas ficava com o dever, nesse caso, de sustentar
o clero”. Os bispos não se aventuravam a fazer uso deste direito, já que a sua situação
financeira era frequentemente próxima da miséria — e isto mesmo na Bahia e no co-
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ração das minas de ouro, em Mariana. Por outro lado, a formação do clero secular era
quase inexistente. A colônia não possuía, como a América espanhola, universidades ou
estabelecimentos de ensino superior. (ALVES, 1979, p.24-25)
O cepticismo do século XVIII, que contestava o modelo de cristandade aplicado no
Brasil e atribuía pouco valor à religião, minou os fundamentos ideológicos da Igreja.
Progressivamente as suas atividades limitaram-se ao formalismo das procissões, quando muito ao ritualismo de observância. Além disso, a política de afirmação nacional e
o estatismo do Marquês de Pombal — o mais notável homem de Estado português da
época, primeiro-ministro entre 1750 e 1777 voltaram-se contra a Companhia de Jesus.
A expulsão dos Jesuítas, em 1759, eliminou do Brasil os únicos quadros religiosos que
mantinham ainda uma certa disciplina e podiam transmitir à Igreja um mínimo de coesão interna. (ALVES, 1979, p.25)
A Igreja no Brasil, sempre missão, sempre dependente da Igreja de Portugal, não
podia apresentar, no século XVIII, uma fisionomia diferente da que tinha na Europa.
Se havia diferença, era para sublinhar as fraquezas, para aprofundar as deformações.
A corrupção dos costumes, a cupidez do clero, o abandono das regras, a decadência da
disciplina, que eram então o estado geral da Igreja, manifestavam-se ainda mais cruamente no Novo Mundo. (ALVES, 1979, p.25-26)
O padre é um funcionário como os outros e é pago depois dos outros. Tal como os
outros, participa na vida econômica e política do país e os seus valores não são diferentes dos seus contemporâneos. Torna-se comerciante, agricultor, usurário, proprietário
de escravos. Torna-se chefe de família e instrumento das lutas entre clãs. Torna-se mesmo soldado e, por vezes, conspirador e líder político. Servidor de Deus e da Igreja, é-o
cada vez menos. (ALVES, 1979, p.26)
Assim, o projeto de colonização das novas terras pelo Estado português teria grandes dificuldades de ser implementado sem o apoio da Igreja Católica enquanto instituição legitimadora do poder e responsável pela coesão social e pela unidade nacional. Em
boa parte da história da sociedade brasileira, ela foi regida pela legislação portuguesa,
ou seja, pelas Ordenações (Manuelinas, Afonsinas e Filipinas), em que o direito do Estado confundia-se com o direito divino, isto é, o direito ditado pela Igreja Católica. (EMMERICK, 2010, p. 144-172)
Após a sua constituição como Arquidiocese, Salvador tornar-se sede do primeiro
tribunal eclesiástico do país, em 1677. É justamente na Arquidiocese de Salvador que é
criada a primeira grande obra jurídica exclusivamente brasileira: as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, resultantes do primeiro sínodo arquidiocesano e que constituíram a base do Direito Canônico brasileiro e de porções de seu Direito
Civil até a República. (ALVES, 2008, p.46)
É evidente que, como manifestação da relação simbiótica entre Estado e a Igreja
Católica e a consequente identidade entre súdito e o fiel, as normas de direito canônico
também eram normas públicas, cujo cumprimento era exigível pelos órgãos de segurança
do Estado e a formação jurídica era em ambos os direitos na única universidade do
império português, a de Coimbra. (ALVES, 2008, p.47)
A situação jurídica da igreja em todos os territórios portugueses não se altera significativamente durante todo o período colonial, mesmo após a elevação da colônia do
Brasil a vice-reino em 1720. A primeira mudança significativa ocorre com a chegada
da família real, em 1810, com a assinatura dos três tratados de aliança, comércio e
navegação com a Coroa britânica, sendo concedida a garantia de liberdade religiosa no
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direito luso-brasileiro aos súditos britânicos, inclusive a possibilidade de edificação de
igrejas e capelas, sendo a garantia estendida a todos os súditos estrangeiros em todos
os domínios portugueses.
Assim, nenhuma alteração adicional na estrutura jurídico-religiosa brasileira foi
promovida até a Independência e a Constituição do Império de 1824.
3.
O império e o Ragalismo
Decretada a independência, D. Pedro I convoca Assembleia Constituinte em 1822,
dissolvida traumaticamente no ano seguinte (1823), sendo, pois, outorgada a Carta Política de 1824 que já em seu artigo 5º previa: “A Religião Catholica Apostolica Romana
continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com
seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma
exterior do Templo”.
Destarte, os princípios que guiavam a política religiosa do Império eram:
a) confessionalidade do Estado;
b) o caráter público e oficial da Igreja Católica;
c) tolerância religiosa individual e coletiva;
d) caráter privado das religiões não-católicas.
A constitucionalização da liberdade religiosa (ou melhor, da tolerância) de todos os
demais cultos é um aspecto novo no Direito brasileiro. A permissão do supramencionado tratado de 1810 com o governo britânico havia sido concedida aos súditos britânicos
e outros estrangeiros e agora era concedido a todos os habitantes do país. Essa permissão foi igualmente assegurada pelas leis criminais: o Código Criminal do Império (1830),
em seu artigo 277, penalizaria o abuso ou zombaria de qualquer culto estabelecido no
Império. (ALVES, 2008, p.49)
Assim, havia dois regimes eclesiásticos no Império: um menos abrangente, é o
regime privado, aplicado aos cultos não-católicos; e um mais abrangente, o regime público da Igreja Católica, cujos detalhes são estabelecidos diretamente na Constituição
de 1824.
Outrossim, a Constituição do Império manteve o regime de padroado, competindo
privativamente ao Imperador, chefe do Executivo, “nomear bispos e prover os benefícios
eclesiásticos (art. 102, II), mas a nomeação continuou, de fato, no poder da Santa Sé,
que nomeava o escolhido pelo imperador.
Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus
Ministros de Estado.
São suas principaes atribuições [...]
II. Nomear Bispos, e prover os Beneficios Ecclesiasticos [...]
XIV. Conceder, ou negar o Beneplacito aos Decretos dos Concilios, e Letras Apostolicas, e quaesquer outras Constituições Ecclesiasticas que se
não oppozerem á Constituição; e precedendo approvação da Assembléa, se
contiverem disposição geral.
Assim, o Imperador também arroga a si o poder do beneplácito, isto é, nenhum dos
documentos eclesiásticos poderia ser executado no Império sem a aprovação do soberano. Todavia, se o documento eclesiástico contivesse “disposição geral” (aplicável à Igreja
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 97
Católica em todas as nações), o beneplácito imperial deveria ser precedido de aprovação
da Assembleia Geral do Império, cujas decisões, devido ao Poder Moderador, estariam
sempre subordinadas à vontade do Imperador.
O estudo das disposições constitucionais e demais normas aplicáveis à Igreja Católica, de natureza pública em razão do caráter público dos entes católicos perante a
Constituição de 1824, era o chamado Direito Público Eclesiástico, que também era estudado no âmbito do Direito Administrativo, já que as relações dos órgãos superiores
do Estado com a Igreja ocorriam a partir do Ministério da Justiça, que incluía a matéria
relativa aos cultos e, posteriormente, pelo Ministério do Império. A matéria tinha importância considerável, tendo sido incluída entre as disciplinas obrigatórias do segundo
ano dos Cursos de Direito estabelecidos em Olinda e em São Paulo pela Lei de 11 de
agosto de 1827. Extensas obras foram escritas sobre o assunto no período imperial,
destacando-se particularmente as de Cândido Mendes de Almeida [em especial, Tratado
de Direito Público Eclesiástico e Direito Civil Eclesiástico Brasileiro, Rio de Janeiro: B.
L. Garnier, 1873]. (ALVES, 2008, p.50)
No entanto, as relações entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro foram se estremecendo ao longo do Século XIX, e já no Segundo Reinado, como consequência do Poder
de Polícia do Estado sobre o culto católico, foi regulamentado pela Lei de 5 de fevereiro
de 1842, o Recurso à Coroa, ou “recurso de forças”, por meio do qual todo cidadão poderia recorrer à jurisdição civil (inclusive administrativa, encabeçada pelo Conselho de
Estado) para reformar as sentenças dos juízes eclesiásticos (qualquer que fosse a autoridade, juízo ou instância eclesiástica), desde que de algum modo relacionado ao culto
oficial. Esse recurso apenas foi amenizado pelo Decreto 1911 de 1857, que permitiu
limitações episcopais ao uso do recurso e estendeu sua aplicabilidade aos casos em que
as autoridades temporais invadissem as atribuições dos serventuários eclesiásticos.
(ALVES, 2008, p.52)
Durante todo o império houve medidas várias de hostilidade às ordens religiosas,
culminando com a carta circular de 19 de maio de 1855, que proibiu a entrada de noviços em todos os conventos e casas religiosas do Império, e com a Lei nº 1764/1870 que
ordenou a conversão em títulos da Dívida Pública interna de todos os bens das ordens
não afetados a uso especificamente religioso, como os edifícios conventuais. (ALVES,
2008, p. 52-53)
Depois da expulsão da Companhia de Jesus, o Marquês de Pombal reformou os
cursos de Teologia da Universidade de Coimbra, onde estudava a elite do clero brasileiro. Introduziu aí uma forte tendência liberal. Esta ideologia foi transferida para os seminários brasileiros, particularmente para o seminário de Olinda, fundado em 1800, que,
tendo sido por muito tempo o único estabelecimento de ensino secundário do Nordeste,
foi um viveiro de políticos e revolucionários, tanto leigos como clericais. (ALVES, 1979,
p. 26-27)
A instituição que difundiu estes valores mais eficazmente e que serviu de centro de
contato entre os eclesiásticos e entre os eclesiásticos e os civis era a Maçonaria. A desobediência do clero brasileiro ao anátema de Roma contra a Maçonaria parece-se com a
desobediência dos católicos contemporâneos às condenações papais contra o marxismo
e contra o recurso à violência para a transformação das estruturas sociais injustas.
(ALVES, 1979, p. 27)
Entre 1828 e 1830, uma série de restrições ao funcionamento das ordens religiosas, mais independentes do Estado que o clero secular foram impostas: foi impedida a
entrada de religiosos estrangeiros no território do Império; proibiu-se a criação de novas
ordens, dos dois sexos; expulsaram-se os religiosos ou as congregações que obedeciam
a Superiores não residentes no Brasil. Os Beneditinos e os Carmelitas não podiam mais
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aceitar noviços. À medida que as ordens desapareciam, as suas propriedades eram incorporadas no patrimônio nacional. As alienações de propriedades pelas ordens religiosas que não tivessem sido autorizadas pelo Estado eram declaradas nulas. Em 1855,
uma lei proíbe às ordens religiosas abrirem seminários no Brasil. (ALVES, 1979, p. 28)
Roma, mesmo se o desejasse, não poderia ajudar a Igreja brasileira durante a
maior parte do século XIX. Os papas estavam ocupados demais com os príncipes do
Piemonte e as tropas de Garibaldi que, no irresistível movimento de unificação da Itália
e da luta contra os últimos vestígios do feudalismo, apoderavam-se dos Estados pontifícios. Portanto, os interesses do catolicismo no Brasil foram, portanto, abandonados
aos políticos locais. Submeteram-se à rotina, debaixo da tutela incontestada do Estado,
depois de alguns abalos iniciais, na altura da Regência, quando dois candidatos ao bispado, entre eles o Regente Feijó, foram recusados por Roma, provocando uma crise que
levou à beira da ruptura das relações diplomáticas. (ALVES, 1979, p. 29)
A reforma, assim como a concordata que devia precedê-la, nunca foi realizada. Mas
o parecer do ministro da Justiça de 19 de maio de 1855, que deveria ser provisório, teve
força de lei até ao fim do Império, trinta e quatro anos mais tarde: proibia que as ordens
religiosas aceitassem noviços sem o consentimento do Governo, garantindo assim a
sua extinção a longo prazo. O decreto de morte contra as ordens religiosas acabou por
identificar inteiramente as instituições da Igreja com o aparelho de Estado. Em princípio, a burocracia eclesiástica não poderia mais opor-se à vontade do poder civil, do qual
dependia integralmente. (ALVES, 1979, p. 30)
Em 1864, Pio IX quis dar um golpe num dos inimigos do poder temporal dos papas,
a Maçonaria italiana, e publicou a encíclica Quanta cura, condenando a instituição.
Quanta cura tinha como anexo o famoso Syllabus, denúncia dos oitenta erros que o
“mundo” cometia contra a Igreja, entre os quais se encontrava o direito de veto do poder civil sobre os documentos papais, a autonomia das igrejas nacionais e a hegemonia
das leis civis sobre as leis canônicas em casos de conflito. O imperador recusou o seu
placet à encíclica, que não foi publicada no Brasil, mas circulou o bastante para que o
arcebispo do Rio de Janeiro se sentisse na obrigação de exigir do seu padre orador que
abjurasse da Maçonaria sob pena de ser privado das ordens. O padre não cedeu e a
intervenção do poder temporal impediu a punição. Mas a questão foi reposta em junho
de 1873 por D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, o jovem e ardente bispo do Recife e
Olinda, que tinha sido educado em França. Quando a loja local anunciou uma missa
para comemorar a sua fundação, D. Vital proibiu o clero de a celebrar e, em dezembro,
ordenou às irmandades laicas a expulsão dos seus membros mações. Obedecido a primeira vez, foi desobedecido na segunda. Em conseqüência, lançou a interdição contra a
Irmandade do Santíssimo Sacramento, que apelou para a Coroa. O Conselho de Estado,
presidido pelo Imperador, ordenou o levantamento da interdição e o bispo, que tinha recebido um breve apostólico do Papa autorizando a excomunhão da Maçonaria e a dissolução das irmandades, não se submeteu, suspendeu outras irmandades e dispensou o
seu adjunto por ter aceitado o cargo de diretor das escolas públicas da província. Estas
medidas desencadearam a fúria popular: o colégio dos Jesuítas foi pilhado e as sedes
de dois jornais católicos foram depredadas pelos manifestantes. Após os fatos, o Estado decidiu-se a processar o bispo no foro cível. Finalmente, fato semelhante aconteceu
com o bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa, que tomou decisões análogas na sua
diocese e também foi processado. Em 21 de fevereiro de 1874, D. Vital foi condenado a
quatro anos de prisão, e a mesma pena foi aplicada a D. Macedo Costa em 1 de julho.
(ALVES, 1979, p. 31)
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A questão religiosa terminou, em setembro de 1875, por um acordo proposto pelo
novo primeiro-ministro, o Duque de Caxias, ele próprio um mação de alta patente: o
imperador anistiou os bispos, e a Santa Sé publicou uma carta incriminando-os de falta
de moderação para com as irmandades. A interdição foi levantada e o statu quo ante
restabelecido. (ALVES, 1979, p. 32)
Este regalismo, aproveitado habilmente pelas forças liberais e maçônicas, conseguiu em muitos casos, reduzir os membros do clero a meros funcionários estatais e
cercear as atividades das ordens e congregações religiosas, perdendo a Igreja a sua autonomia e o Estado a sua legítima laicidade. (CIFUENTES, 1971, p. 182)
Cessado o Império com a proclamação da República, as relações já tensas entre o
Estado brasileiro e a Igreja Católica rompem-se e a laicidade passa a ser prevista constitucionalmente com se verá a seguir.
4.
A República e o cisma clerical: a Constituição de 1891
A proclamação da República foi obra do Exército, cujos oficiais eram, há muito
tempo, doutrinados por professores positivistas. Os ministros civis do Governo Provisório, bem mais reticentes para com os ensinamentos de Auguste Comte, deixaram
de bom grado aos colegas militares algumas questões de ordem secundária, tais como
a divisa inscrita na bandeira — “Ordem e Progresso” — e o regulamento das relações
entre a Igreja e o Estado. Este último problema não era fator de disputas: os militares
favoreciam a separação por razões filosóficas, os civis aprovavam-na por motivos políticos. Os civis tomavam como modelo a organização constitucional dos Estados Unidos
e transpuseram-na quase integralmente para o Brasil. A separação entre a Igreja e o
Estado nem sequer esperou pela elaboração da Constituição: em 7 de janeiro de 1890
foi estabelecida por decreto. (ALVES, 1979, p. 32)
A aconfessionalidade não é uma característica essencial de um regime republicano. O adjetivo “republicano” não inclui necessariamente os conceitos de laicidade ou
aconfessionalidade, como indicavam várias Constituições de Repúblicas hispânicas vizinhas, que em 1889, como atualmente, mantinham o catolicismo como religião oficial.
Atualmente, na América Latina, as seguintes Repúblicas permanecem confessionais:
a República Argentina (art. 2º da Constituição: “El gobierno federal sostiene el culto
católico apostólico romano”), a República da Bolívia (art. 3º da Constituição Política da
Bolívia: “El Estado reconoce y sostiene da religión católica, apostólica y romana”) e a República da Costa Rica [art. 75: “La Religión Católica, apostólica, Romana, es la del Estado, el cual contribuey a su mantenimiento, sin impedir el libre ejercicio en la República
de otros cultos que no se opongan a la moral universal ni a las buenas costumbres”].
(ALVES, 2008, p. 53)
O processo de separação entre a Igreja e o Estado no regime republicano brasileiro,
diferentemente de outros países, ocorreu de forma tranquila e sem movimentos anticlericais violentos, inexistindo qualquer expropriação de propriedades e bens da confissão
majoritária. De fato, boa parte da hierarquia católica via com otimismo o novo regime e
o fim do Império. Houve críticas a disposições do Decreto de separação (nº 119-A/1890),
inclusive no tocante a transformação dos cemitérios públicos em exclusivamente civis e
o reconhecimento jurídico limitado ao matrimônio civil, mas havia a concordância geral
com o novo regime. (ALVES, 2008, p. 54)
Destarte, o primeiro diploma a reger a ampla gama de direitos das igrejas foi o
Decreto nº 119-A/1890, de natureza constitucional e excepcional, pois editado no regime excepcional do Governo Provisório inicial da República. Esse decreto permanece
válido naquilo em que não tiver sido revogado em virtude do artigo 1º do Decreto nº
4496/2002, editado pouco antes da entrada em vigor do novo Código Civil.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 100
Logo, as principais alterações trazidas pelo Decreto nº 119-A/1890 e que se perenizaram no Direito brasileiro foram:
1º) A separação normativa entre o Estado e a Igreja;
Art. 1º E’ prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo
alguma religião, ou vedando-a, e crear differenças entre os habitantes do
paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por motivo de
crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.
2ª) A plena liberdade interna e administrativa das organizações religiosas; a liberdade religiosa como direito individual e coletivo; e a ilicitude de quaisquer atos públicos
ou privados de constrição dessa liberdade;
Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de
exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste
decreto.
Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos
individuaes, sinão tabem as igrejas, associações e institutos em que se
acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem
e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem
intervenção do poder publico.
3ª) o direito das organizações religiosas de adquirirem e administrarem seus bens,
desde que submetidos aos limites das corporações de “mão morta”;
Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites
postos pelas leis concernentes á propriedade de mão-morta, mantendo-se
a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus edificios de culto.
Entende-se por corpos de mão morta as corporações pias e as instituições pias (padres, igrejas, escolas pias...), às quais era proibido “conservar o domínio direto de bens
havidos sem autorização, transmitindo o útil a terceiro e às quais era ilícita a administração de bens de qualquer modo vinculados, tampouco podendo receber bens imóveis
por doação ou arrendamento, por prazo determinado ou indeterminado ou possuir terrenos de marinha ou acrescidos sobre o mar.
4ª) a extinção do padroado: “Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas
instituições, recursos e prerrogativas”.
Finalmente, o governo provisório, por bom-senso político, garantiu, por um ano, o
custeio das remunerações dos serventuários do culto católico, bem como a manutenção
da subvenção das cátedras dos seminários.
Pois bem, dois anos após proclamada a República, a Constituição de 1891, refletindo mais uma vez a influência dos positivistas, consolidou a separação Igreja e Estado,
banindo o ensino religioso das escolas públicas. Isto limitava os privilégios de proselitismo dos católicos, os únicos a disporem de pessoal suficiente para a catequese em mais
larga escala. Proibia também ao Estado subvencionar a religião. O Tesouro não tomava
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 101
mais a seu cargo o sustento dos eclesiásticos. Por outro lado, as subvenções aos hospitais e às obras de caridade (pelas quais a Igreja substituíra por meios materiais uma
influência espiritual decrescente) não mais seriam dadas automaticamente e deveriam
ser votadas anualmente pelo Parlamento. As despesas decorrentes destas medidas representariam uma pressão imediata sobre os recursos muito debilitados da Igreja Católica. (ALVES, 1979, p. 33)
Destarte, a Constituição de 1891 estabelecia em seu artigo 11, § 2º, que a União
e os Estados estavam proibidos de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício
de cultos religiosos, repetindo, em parte o que o Decreto nº 119-A já estabelecia, bem
como em seu artigo 72, § 7º, que nenhum culto ou igreja gozaria de subvenção oficial,
nem teria relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.
Art 11 - É vedado aos Estados, como à União: [...]
2 º ) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;
Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:[...]
§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou
aliança com o Governo da União ou dos Estados.
Por sua vez, a Constituição de 1891 não recepcionou o Decreto nº 119-A/1890 no
que diz respeito à capacidade para adquirir bens das instituições religiosas. O referido
decreto limitava a capacidade patrimonial dessas organizações ao submetê-las ao regime de corporações de “mão morta”. O regime legal de mão morta datava de antes da
independência do Brasil e tinha permanecido em vigor no Império e no início da República, trazendo riscos patrimoniais imensos às organizações religiosas católicas, sempre sujeitas à autorização civil para aquisição de qualquer bem de raiz e obrigadas a
entregar tais bens ao Estado em caso de infração das complexas normas a que estavam
submetidas. (ALVES, 2008, p. 57)
Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:[...]
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e
livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas
as disposições do direito comum.
Assim, a Constituição de 1891 reconheceu às confissões religiosas o direito de adquirir “bens, observadas as disposições do direito comum”, ou seja, as normas gerais
de direito civil, independentemente de autorização ou licença do governo. No entanto,
quanto à capacidade de alienar bens, consoante entendimento do Supremo Tribunal
Federal em julgamento do Agravo nº 490 de 9 de maio de 1903, esta não restava plena:
No novo regime político, as ordens religiosas, pelo que respeita ao seu patrimônio,
não estão emancipadas da ação do Estado, ao contrário, dependem da expressa
licença do governo para alienarem seus bens imóveis, móveis ou semoventes, nos
termo da Lei de 9 de dezembro de 1830, a qual não foi ab-rogada pela Constituição
art. 72, §3º. (ALVES, 2008, p. 53)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 102
Com a instauração da República, acabaram-se com os privilégios de qualquer natureza, garantindo-se, em parte, a isonomia perante a lei. Vale lembrar que a isonomia
propugnada pela Constituição de 1891 não albergava a todos, as mulheres, por exemplo, só adquiram o direito ao voto em 1932, e os clérigos, desde o Império, estavam
proibidos de votar.
Art 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na
forma da lei.
§ 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as
dos Estados:
[...]
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra
ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
§ 2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis.
Outrossim, a República deixou de reconhecer o casamento religioso, apenas albergando o casamento civil; os cemitérios passaram a ser administrados pelos municípios,
tendo caráter secular; e o ensino religioso, nos estabelecimentos públicos, foi banido.
Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será
gratuita.
§ 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela
autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática
dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam
a moral pública e as leis.
§ 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
Portanto, percebe-se que a Constituição de 1891, inspirada nas ideias positivistas
e no espírito do republicanismo norte-americano, foi mais ríspida para com as relações
igreja-Estado, primando por uma laicidade mais intensa, amenizada nas constituições
posteriores.
5.
A Era Vargas e as Constituições federais de 1934, 1937, 1946, 1967/69 e
1988: equilíbrio nas relações entre os cultos e o Estado Anticonfessional no Brasil
contemporâneo
Na primeira metade do Século XX, o Estado brasileiro e a igreja católica se reaproximam, principalmente, na chamada Era Vargas, e um grande responsável por isso
foi Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife (1916-1921), bispo auxiliar do Rio de
Janeiro entre 1921 e 1930, cardeal do Rio entre 1930 e a sua morte, em 1943. (ALVES,
1979, p. 36)
O Cardeal Leme manteve as melhores relações pessoais com Getúlio Vargas, conseguindo dele que uma série de medidas favoráveis à Igreja fossem incorporadas à constituição votada em 1934:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 103
1. O prefácio da Constituição coloca-a “sob a proteção de Deus”, marcando com
isso o fim da influência positivista, símbolo, portanto, do fim do Estado Liberal Puro
estabelecido em 1891, situação repetida nas Constituições de 1946, 1967/69 e 1988;
2. Os religiosos obtêm direitos cívicos;
3. A personalidade jurídica das ordens religiosas não sofre entraves, podendo, livremente, alienar e adquirir bens;
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:[...]
5) É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre
exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costume. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil
4. A assistência espiritual às organizações militares e oficiais é consentida;
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
6) Sempre que solicitada, será permitida a assistência religiosa nas expedições militares, nos hospitais, nas penitenciárias e em outros estabelecimentos oficiais, sem ônus para os cofres públicos, nem constrangimento
ou coação dos assistidos. Nas expedições militares a assistência religiosa
só poderá ser exercida por sacerdotes brasileiros natos.
5. O casamento religioso é reconhecido pela lei civil e o divórcio é proibido.
Art. 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a
proteção especial do Estado.
Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação
de casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo.
Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento
perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a
ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos
que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação
dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição
sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro
Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei estabelecerá penalidades
para a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento.
Mas, acima de tudo, D. Leme conseguiu que o Estado fosse autorizado a financiar
a Igreja, invocando “o interesse coletivo”, e que as escolas públicas admitissem o ensino
religioso. (ALVES, 1979, p. 37)
Art 17 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]
III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja
sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo; [...]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 104
Art 153 - O ensino religioso será de freqüência facultativa e ministrado
de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada
pelos pais ou responsáveis e constituirá matéria dos horários nas escolas
públicas primárias, secundárias, profissionais e normais.
Finalmente, as relações entre a Igreja e o Estado não foram alteradas depois da
imposição do Estado Novo, em 1937, quando Vargas assumiu poderes ditatoriais. Os
privilégios obtidos em 1934 foram conservados durante a ditadura varguista e, em sua
grande maioria, foram incorporados à Constituição promulgada em 1946, depois da
redemocratização do país.
6.
Conclusão
A República brasileira é laica ou aconfessional? O Brasil é um país pseudo laico
devido aos seus feriados religiosos, ao casamento religioso ter efeitos civis, ao uso de
expressão religiosa na moeda (“Deus seja louvado”), ao nome de algumas de suas cidades, as imunidades fiscais que concede, ao preâmbulo da atual constituição, ao uso de
símbolos religiosos em instituições públicas e ao fato de haver ensino religioso em suas
escolas secundárias? São perguntas que merecem atenção.
O princípio mestre que rege as relações entre Igreja e Estado, entre as religiões e os
órgãos públicos na República Federativa do Brasil é o princípio da aconfessionalidade:
as pessoas jurídicas de direito público interno que a compõem (municípios, Estados,
DF e a União) não possuem nenhuma confissão e nenhuma organização religiosa tem
caráter oficial. (ALVES, 2008, p. 64-65)
O Brasil, assim, é uma república laica? Entendendo-se a laicidade no sentido estrito de aconfessionalidade, sim. No entanto, o termo laico enquanto designador de uma
característica do Estado foi primeiramente designado como conceito jurídico no Direito
francês. Em uma república laica, nos moldes franceses, a subvenção, mesmo que indireta e motivada por cooperação comum de interesse público, de um culto é inadmissível. (ALVES, 2008, p. 65)
A República Federativa do Brasil não apresenta tais características da laicidade
francesa. Em seu preâmbulo (como ocorreu em todas as Constituições nacionais, exceto
na Constituição de 1891 e na Constituição de 1937), reconhece a existência e coloca a
República “sob a proteção de Deus”. Em seu artigo 19, inciso I, proíbe às pessoas jurídicas de Direito público interno ligações com os cultos religiosos, mas ressalva a “colaboração de interesse público”. Garante o que seria inconcebível em qualquer regime
de laicismo puro, o “ensino religioso” nas escolas públicas de ensino fundamental e a
existência de efeitos civis para o casamento religioso. (ALVES, 2008, p. 65)
Existe, assim, entre Igreja e Estado, entre religião e política, uma separação lícita
e necessária, a laicidade, e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo.
Porque a laicidade é prerrogativa consubstancial à ordem autonômica do Estado e o
laicismo supõe a ruptura arbitrária e artificial do elo essencial que une toda a atividade
com a ordem teonômica. (CIFUENTES, 1971, p. 120)
Portanto, pode-se dizer que o Brasil não é um país laico, no sentido estrito do termo, aquele cunhado na França pós-revolucionária que não admitia quaisquer relações
entre a Igreja e o Estado. Mas se admitirmos o conceito de laicidade como o de aconfessionalidade, sim, podemos dizer que o país é laico, pois é aconfessional, não admitindo
relações de dependência financeira ou submissão, mas, apenas, relações de cooperação
sempre no intuito de atender ao interesse público.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 105
REFERÊNCIAS
ALVES, Marcio Moreira. A igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.
ALVES, Othon Moreno de Medeiros. Liberdade religiosa institucional: direitos humanos, direito privado e espaço jurídico multicultural. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2008.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
CIFUENTES, Rafael Llano. Curso de Direito Canônico. São Paulo: Saraiva, 1971.
EMMERICK, Rulian. As relações Igreja/Estado no Direito Constitucional Brasileiro.
Um esboço para pensar o lugar das religiões no espaço público na contemporaneidade.
Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br. Acesso em: 06/10/2013.
DEBALD, Blasius Silvano. A relação da Igreja Católica com o Estado brasileiro 1889/1960. Disponível em: http://www.uniamerica.br/site/revista. Acesso em:
02/10/2013.
GOMES, Edgar da Silva. A separação Estado-Igreja no Brasil (1890): uma análise da
pastoral coletiva do episcopado brasileiro ao Marechal Deodoro da Fonseca. 2006. 238f.
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Teologia Dogmática), Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, Centro Universitário Assunção, São Paulo, 2006.
PEREIRA, Francisco Caetano. Da não discriminação em razão de sexo. Recife: Liceu,
2010.
PEREIRA, Francisco Caetano et al. Respingando o direito. Recife: Liceu, 2009.
STIGAR, Robson. Brasil, um país pseudo-laico: a relação Igreja-Estado no Brasil contemporâneo. Disponível em: http://ciberteologia.paulinas.org.br. Acesso em: 02/10/2013
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 106
A (INAPLICABILIDADE DA) DOUTRINA DE PETER
HARBELE NO JULGAMENTO DAS AÇÕES PENAIS
ORIGINÁRIAS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Fábio Rodrigo de Paiva Henriques1
1.
Introdução
É notório que o pensamento de Peter Häberle acerca da necessidade de uma
sociedade aberta de intérpretes da Constituição Federal é cada vez mais prestigiado na
jurisprudência moderna do Supremo Tribunal Federal. Todavia, recentes debates no
âmbito daquela Corte evidenciam a necessidade de distinção de pelo menos uma hipótese em que a abertura da construção da decisão para outros agentes, notadamente os
que não compõem a estrutura oficial do Direito, mostrar-se-á inapropriada, cabendo ao
julgador se valer apenas dos elementos internos e do que foi trazido aos autos para a formação de sua convicção sobre a solução da lide. Isso se explica porque instada a atuar
como foro originário penal, o STF assume o papel de julgador ordinário, precisando agir
de forma isolada e independente de fatores e influências externas, como qualquer outro
juiz penal, momento em que a teoria da sociedade aberta não poderá ser invocada para
o julgamento do caso concreto.
2.
A teoria harberliana da “Sociedade Aberta” e a sua aplicação pelo STF
A adoção e citação de doutrina e de precedentes estrangeiros pelos Tribunais Supremos e Cortes Constitucionais constitui um dos principais focos do debate atual em
tema de jurisdição constitucional.
No caso do Brasil, é notória a influência do doutrinador alemão Peter Harbele no
desenvolvimento das atividades do STF, especialmente no que diz respeito aos ensinamentos traçados na obra “Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental”
da Constituição”.
Para que se tenha uma ideia de sua influência no contexto constitucional nacional,
o Min. Gilmar Mendes, notadamente um dos maiores replicadores da doutrina harbeliana, enquanto na Presidência do STF, assim o descreveu:
Peter Häberle é certamente um dos maiores constitucionalistas de nosso
tempo e, não seria demais considerar, um dos grandes nomes da história
do constitucionalismo ocidental. Essa não é, de nenhuma maneira, uma
afirmação vaga ou imprecisa, e muito menos hiperbólica. A difusão transnacional de seu pensamento, quase sempre acompanhada de processos
formais de institucionalização de estruturas, organismos e procedimentos voltados à implementação prática dos institutos por ele concebidos
1 Assessor jurídico de Desembargador Federal do TRF da 5a. Região, professor de Direito na graduação
e pós-graduação e mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 107
em nível doutrinário, é capaz de revelar os sólidos fundamentos que suas
criações fornecem para o desenvolvimento do Estado constitucional em
tempos hodiernos.
(...)
No Brasil, desde a primeira tradução, para o português, da obra “Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição
— contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição”, a doutrina de Peter Häberle tem sido incorporada com evidente
vivacidade, seja no âmbito acadêmico, por meio da vertiginosa produção
bibliográfica ou da prática docente e discente nas faculdades de direito,
seja pelos poderes constituídos, na forma de produção legislativa e na jurisprudência dos tribunais. 2
Uma das doutrinas mais impactantes e de maior influência do referido autor foi,
certamente, a quebra de paradigma em relação aos legitimados para a interpretação das
normas constitucionais e da participação de terceiros na construção das decisões tomadas pela Corte Constitucional. Antes, o tribunal era uma casa restrita aos operadores
envolvidos e só se manifestavam aqueles especificamente habilitados nos autos. Hoje,
cientistas, médicos, experts ou pessoas comuns estão levando os seus “memoriais” aos
ministros e influenciando, ao menos formalmente, nas decisões finais do Supremo.
Se antes o STF era um órgão eminentemente técnico, cuja atividade voltava-se
precipuamente à comunidade jurídica, os atuais ministros não hesitam em reconhecer
o próprio papel político exercido pelo Supremo Tribunal Federal. Os votos, antes direcionados ao convencimento dos pares, são cada vez mais formatados à compreensão
do grande público. Com o incremento da interação entre os destinatários da atividade
jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal, a denominada legitimidade da jurisdição
constitucional certamente foi requalificada à luz dos impactos da divulgação e da máxima publicidade dos julgados e, em muitos casos, da transmissão, em tempo real, de
suas decisões.
Ademais, a partir da influência de Peter Harbele, a jurisdição constitucional no
Brasil adotou um modelo procedimental que oferece alternativas e condições que tornam possível, de modo cada vez mais intenso, a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões no processo constitucional. Não que essa possibilidade seja
determinante para a decisão a ser proferida, mas, de certa forma, democratiza o acesso
à discussão travada, antes restrita ao seleto grupo de habilitados.
Não são poucos os julgamentos da Suprema Corte que, para justificar a abertura
do debate e influência da opinião pública em geral, citam o autor como forma de legitimar a participação de terceiros na formação da decisão judicial.
O atual decano do STF, durante julgamento paradigma de questão de ordem suscitada na ADI 2777/SP, em novembro de 2003, defendeu de forma veemente a possibilidade da sustentação oral de terceiros admitidos no processo de ação direta de inconstitucionalidade, na qualidade de amicus curiae3. Nesse caso, a argumentação do Ministro
Celso de Mello, que voltou a ser invocada em inúmeros outros julgamentos posteriores,
guardou perfeita sintonia com a orientação do constitucionalista alemão que, não só
2 http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal? - Revista Consultor Jurídico, 10/4/2009. Gilmar Ferreira Mendes e André Rufino do Vale.
3 http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo331.htm
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 108
defende a existência de instrumentos de defesa da minoria, como também propõe uma
abertura hermenêutica que possibilite a esta minoria o oferecimento de ‘alternativas’
para a interpretação constitucional4.
No mesmo sentido, o então advogado Luis Roberto Barroso, que representou o
Estado do Rio de Janeiro na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 4277 e da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 132, em sede de parecer, frisou a importância de que o assunto tratado naquelas ações (direito previdenciário entre homoafetivos) não deveria ser encarada como uma situação intolerante e
depreciativa, mas sim como “um fato da vida”. Em sua obra dedicada ao tema5, o atual
Ministro do STF comenta a hermenêutica que mais reflete a realidade em que vivemos:
“[...] a interpretação constitucional, como a interpretação jurídica em geral, não é um exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é produto de uma época, de um momento
histórico, e envolve as normas jurídicas pertinentes, os fatos a serem
valorados, as circunstâncias do intérprete e o imaginário social. A
identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes
e da posição do sujeito da interpretação constitui o que a doutrina
denomina de pré-compreensão. É hoje pacífico que o papel do intérprete
não é – porque não pode ser – apenas o de descobrir e revelar a solução
que estaria abstratamente contida na norma. Diversamente, dentro das
possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento, a ele caberá fazer,
com frequência, valorações in concreto e escolhas fundamentadas.”
Nessa linha de ideias, há nítida aproximação em relação ao pensamento de Häberle quando este preleciona: “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo
no tempo ou integrá-lo na realidade”6. Observou-se, naquela oportunidade, a partir do
reconhecimento da união estável homoafetiva pelo STF, uma proximidade daquilo que
o clamor público esperava de uma interpretação e fundamentação democrática e participativa no processo constitucional.
Não bastasse, adotando sem maiores resistências a doutrina de Harbele, o STF
passou a dar voz à sociedade aberta, objetivando construir sua decisão, fazendo uso,
inclusive, do instituto das audiências públicas7. À titulo exemplificativo, confira-se algumas assentadas de grande repercussão:
a) ADPF n° 101 – Relatora Ministra Carmem Lúcia – discussão sobre importação
de pneus usados pelo Brasil. A audiência foi realizada na data de 27 de junho de 2008,
e foi a segunda audiência pública da história do STF;
b) ADPF n° 54 – Relator Ministro Marco Aurélio – discussão sobre antecipação terapêutica de parto de fetos portadores de anencefalia. A audiência foi realizada nas datas
de 26 e 28 de agosto e 04, 16 de setembro de 2008;
4 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade”, p. 503/504,
2ª ed., 1999, Celso Bastos Editor
5 BARROSO, Luis Roberto. Diferentes, mas iguais: O reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em <www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/diferentesmasiguais_171109.pdf>
6 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição”. Sergio Antonio Fabris
Editor: Porto Alegre, 2002, p. 10.
7 art. 9º, §1º, da Lei nº 9.868/1999.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 109
c) Saúde Pública e Sistema Único de Saúde (SUS) – Presidente do STF, Ministro
Gilmar Mendes – discussão sobre saúde pública e o SUS. A audiência foi realizada nas
datas de 27, 28 e 29 de abril e 04, 05, 06 e 07 de maio de 2009;
d) ADPF n° 186 e RE 597285 – Relator Ministro Ricardo Lewandowski – discussão
sobre sistema de reserva de vagas em universidades federais por critérios raciais e para
egressos de escolas públicas. A audiência foi realizada nas datas de 03 a 05 de março
de 2010.
Pode-se afirmar, portanto, que o STF assimilou bem a ideia de construção de suas
decisões a partir da intervenção opinativa de terceiros, incorporando-o à sua prática
institucional e, ainda que não fundamente necessariamente suas decisões com base
nas informações colhidas, vem fazendo a nítida opção de ouvir a opinião pública e especializada nos assuntos tratados por aquela Corte e de grande repercussão nacional.
No entanto, em recente episódio de grande envergadura no plenário do STF, que
envolveu uma (entre tantas) discussão mais calorosa, inclusive com ataques pessoais
entre dois ministros, a questão sobre a influência externa nos julgamentos do Supremo
precisou vir à tona.
A abertura da sociedade, defendida por Harbele e adotada cada vez mais pelo STF,
passou a ser questionada a partir do momento em que alguns ministros afirmaram em
bom tom que, na missão de julgar, não seriam influenciados pelo debate público, tampouco estariam preocupados com a repercussão que a sua decisão causaria na sociedade.
A controvérsia pode ser exposta no pronunciamento do recém empossado Ministro
Roberto Barroso que, tomado pelo calor dos debates, respondendo às agudas e abertas
críticas do Min. Marcos Aurélio, assim se pronunciou:
(...) que eu nesta vida, neste caso e em outros, como quase tudo que faço
na vida, o que faço na vida, faço o que acho certo, independentemente da
repercussão, portanto, eu não sou um juiz que me considero pautado pela
repercussão que vai ter o que vou decidir e muito menos o que vai dizer
o jornal do dia seguinte e muito menos estou almejando ser manchete
favorável. Eu sou um juiz constitucional, sou pautado pelo que considero
certo e correto, embora não me ache o dono da verdade, porém o que vai
sair no jornal no dia seguinte não faz diferença pra mim se não for o certo,
tampouco, me parece irrelevante a opinião pública. A opinião pública é
muito importante em uma democracia e fico muito feliz quando uma decisão do tribunal constitucional coincide com a opinião pública, mas se o
que eu considerar certo, justo e interpretação adequada da Constituição
não coincidir com a opinião pública, eu cumpro com o meu dever contra
a opinião pública, porque este é o papel de uma Corte Constitucional,
portanto, a multidão quer o fim deste julgamento, e eu também (...), mas
nós não julgamos para a multidão, nós julgamos pessoas e, portanto, se a
multidão quer acabar, nós precisamos considerar as pessoas (...), repito,
não tenho o monopólio da virtude, nem o monopólio da certeza, mas tenho
o monopólio íntimo de sempre fazer o que acho certo, independentemente
da multidão.8
O que poderia parecer um contrassenso entre a moderna posição do STF, de se
abrir cada vez mais para a participação da opinião pública e reconhecer a importância
dos fatores externos para as tomadas de decisões da Corte, como defendido por Harbe8 video disponível em www.youtube.com/watch?v=DtfgAa--cGQ
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 110
le, é explicado pela importante distinção que deve ser feita entre o papel dos julgadores
como membros de uma corte constitucional e a função de julgador originário em matéria penal.
3.
Caso de inaplicabilidade da teoria harbeliana
Do pronunciamento do Min. Barroso, vê-se uma nítida confusão entre o papel primordial do STF, como guardião da Constituição Federal e a sua atribuição no julgamento de uma ação penal originária.
No exercício de sua função precípua (de Corte Constitucional), adotando a ideia
de Peter Harbele, os critérios de interpretação hão, de fato, de ser tanto mais abertos
quanto mais pluralista for a sociedade. Nas palavras do multicitado autor, “como não
são apenas os intérpretes jurídico da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o
monopólio da interpretação da Constituição.”9
Acrescenta Harbele que a interpretação constitucional não é exclusivamente estatal e cria um catálogo sistemático dos participantes da interpretação, colocando, ao lado
dos intérpretes que são órgãos com funções estatais e outros que não necessariamente
se caracterizem como tais, “a opinião pública democrática e pluralista e o processo político como grandes estimuladores: media (imprensa, radio, televisão, que, em sentido estrito, não são participantes do processo, o jornalismo profissional, de um lado, a expectativa
de leitores, as cartas de leitores, de outro, as iniciativas dos cidadãos, as associações, os
partidos políticos fora do seu âmbito de atuação organizada, igrejas, teatros, editoras, as
escolas da comunidade, os pedagogos, as associações de pais.”10
Ainda sobre a interpretação constitucional, afirma que “o juiz constitucional já não
interpreta, no processo constitucional, de forma isolada: muitos são os participantes do
processo; as formas de participação ampliam-se acentuadamente”11.
Finalmente, sobre a rigidez do procedimento de interpretação das questões gerais
que lhe são confiadas, afirma que: “A interpretação constitucional realizada pelos juízes
pode tornar-se, correspondentemente, mais elástica e ampliativa sem que se deva ou
possa chegar a uma identidade de posições com a interpretação do legislador. Igualmente flexível há de ser a aplicação do direito processual constitucional pela Corte
Constitucional, tendo em vista a questão jurídico-material e as partes materialmente
afetadas (atingidos). “12
A aparente confusão quanto à abertura ou não para influências externas surge a
partir da previsão, também constitucional, de uma competência penal originária atribuída ao STF. Com efeito, prevê o art. 102 da CF/88, que, além das funções típicas de
uma Corte Constitucional, caberá ao STF:
Art. 102. (…)
I - processar e julgar, originariamente:
9 10 Op. cit. p. 15.
Op. cit. p. 22
11 Op. cit. p. 41. Aqui, a referência feita ao juiz constitucional deve ser interpretada como o juiz encarregado da função precípua de uma Corte Constitucional. Sobre a esperada influência da participação
popular e de fatores externos nos julgados da Corte Constitucional, no exercício deste papel, realmente
se espera que o Tribunal esteja sempre aberto à influências do clamor popular.
12 Op. cit. p. 48
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 111
(…)
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o
Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais
Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
d) o “habeas-corpus”, sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas
alíneas anteriores; o mandado de segurança e o “habeas-data” contra atos
do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da
República e do próprio Supremo Tribunal Federal;
(…)
i) o habeas corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o
coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate
de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância;
j) a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados;
(…)
A doutrina tradicional pouco se debruça sobre essa função, mas de acordo com
Oscar Vilhena Vieira13:
A Constituição de 1988 conferiu também ao Supremo a espinhosa missão de foro
especializado. Em primeiro lugar, cumpre-lhe julgar criminalmente altas autoridades.
Em consequência da excêntrica taxa de criminalidade no escalão superior de nossa República, o Supremo passou a agir como juízo de primeira instância, como vimos no caso
de recém aceitação da denúncia contra os mensaleiros.
Nesse contexto, autua a referida Corte como órgão julgador de primeira (e única)
instância, assumindo, aqui, um papel de órgão ordinário do Judiciário e sujeito à todos
os princípios norteadores do direito penal e processual penal, entre eles o que prevê
uma “blindagem” quanto aos fatores externos que possam influenciar no julgamento
da causa. Para casos como os tais, é preciso que os componentes da Corte ponham de
lado toda a forma de atuação idealizada por Peter Harbele e incorporem o “espírito” de
julgadores imunes às influências externas.
Julgando uma ação sem a repercussão própria das ações constitucionais, o juiz
não se deve deixar influenciar em um caso concreto pela opinião pública ou por terceiros interessados no resultado do julgamento, limitando-se a decidir pelo que consta dos
autos e ao que foi ali produzido.
13 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, n. 4(2), p. 448, jul-dez. 2008.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 112
Não que se espere que o julgador seja uma entidade abstrata e universal, que ele
corporifica no instante em que decide, transformando-se “numa espécie de objeto, numa
peça de uma máquina (a máquina judiciária), com o máximo de imparcialidade e impessoalidade posssível”14.
O que se objetiva, notadamente naquelas demandas que envolvam a proteção dos
direitos fundamentais, sobretudo os voltados à defesa dos indivíduos perante o aparato
estatal, é uma imparcialidade do juiz como garantia de realização de justiça, legitimando a função estatal jurisdicional. No processo penal, sobretudo, a discussão a respeito
da imparcialidade do juiz ganha maior relevo, devendo este permanecer “blindado” em
relação às influências externas, entre elas o clamor publico e os desígnios gerais da sociedade, fatores que frequentemente influenciam no julgamento das ações típicas de um
tribunal constitucional, como já visto.
A imparcialidade do órgão jurisdicional no julgamento de uma ação penal, seja
quem forem os envolvidos, configura um “princípio supremo do processo, constituindo
verdadeiro alicerce sobre o qual assenta a legitimidade da função jurisdicional. Aduz
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho que “o princípio da imparcialidade funciona como
uma meta a ser atingida pelo juiz no exercício da jurisdição, razão por que se busca criar
mecanismos capazes de garanti-la”.15
Também na oportunidade do julgamento da APE470 (mensalão), deve ser conferido
o esclarecedor voto proferido pelo Min. Celso de Mello que, agraciado com o fim de uma
tumultuada sessão em que discutia a possibilidade de admissão de polêmicos embargos
de divergência, pôde refletir e inserir em seu voto escrito algumas importantes considerações sobre o tema. Confira-se:
O encerramento da sessão do dia 12 de setembro, quinta-feira, independentemente da causa que o motivou, teve, para mim, Senhor Presidente,
um efeito virtuoso, pois me permitiu aprofundar, ainda mais, a minha
convicção em torno do litígio ora em exame e que por mim fora exposta
no voto que redigira – e que já se achava pronto – para ser proferido na
semana passada.
(...)
Essencial, por isso mesmo, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte
sempre observe, em relação a qualquer acusado, independentemente do
crime a ele atribuído e qualquer que seja a sua condição política, social,
funcional ou econômica, os parâmetros jurídicos que regem, em nosso
sistema legal, os procedimentos de índole penal, garantindo às partes, de
modo pleno, o direito a um julgamento justo, imparcial, impessoal, isento
e independente.
(...)
Se é certo, portanto, Senhor Presidente, que esta Suprema Corte constitui,
por excelência, um espaço de proteção e defesa das liberdades fundamentais, não é menos exato que os julgamentos do Supremo Tribunal Federal,
para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se
14 JUNIOR, Cândido Alfredo Silva Leal. A influência da identidade do juiz (primeira pessoa) nos processos de cognição e decisão judicial (terceira pessoa). R. CEJ, Brasília, n. 23, p. 80, out./dez. 2003.
15 MATIAS, Flávio Pereira da Costa. O princípio da imparcialidade do juiz penal como decorrência da
adoção do sistema acusatório pela constituição federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3370, 22 set.
2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22659>. Acesso em: 2 out. 2013.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 113
a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da
pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer réu
mediante instauração, em juízo, do devido processo penal.
O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer
réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal
Federal não pode demitir-se, mesmo que o clamor popular se manifeste
contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de que
a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação
instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.
(...)
Na realidade, a resposta do poder público ao fenômeno criminoso, resposta essa que não pode manifestar-se de modo cego e instintivo, há de ser
uma reação pautada por regras que viabilizem a instauração, perante juízes isentos, imparciais e independentes, de um processo que neutralize as
paixões exacerbadas das multidões, em ordem a que prevaleça, no âmbito
de qualquer persecução penal movida pelo Estado, aquela velha (e clássica) definição aristotélica de que o Direito há de ser compreendido em sua
dimensão racional, da razão desprovida de paixão!
Nesse sentido, o processo penal representa uma fundamental garantia instrumental de qualquer réu, em cujo favor – é o que impõe a própria Constituição da República – devem ser assegurados todos os meios e recursos
inerentes à defesa, sob pena de nulidade radical dos atos de persecução
estatal.
(…)
O processo penal e os Tribunais, nesse contexto, são, por excelência, espaços institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra eventuais excessos da maioria, ao menos, Senhor Presidente, enquanto este Supremo
Tribunal Federal, sempre fiel e atento aos postulados que regem a ordem
democrática, puder julgar, de modo independente e imune a indevidas
pressões externas, as causas submetidas ao seu exame e decisão.16
Como se vê, duas são as situações que devem se distinguir: a primeira, em que o
STF atua como corte constitucional ou última instância do Poder Judiciário em matéria
constitucional e, nesses casos, a doutrina de Peter Harbele é intensamente acolhida no
sentido de abrir cada vez mais a “sociedade” dos intérpretes, criando mecanismos procedimentais para a maior participação de terceiros na formação da decisão colegiada e
autorizando os Ministros a construírem seus votos a partir de fatores extraprocessuais
e opiniões externas. Já a segunda hipótese, em que a Corte atua como órgão julgador
penal originário, analisando um caso concreto que envolva, em tese, o direito de liberdade de um indivíduo, entre outros aspectos fundamentais, não deixará se influenciar
por fatores estranhos aos autos e analisará o caso obedecendo os princípios que regem
a imparcialidade do magistrado para casos como tais.
16 STF. APE 470/DF, voto disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AP_470__EMBARGOS_INFRINGENTES.pdf
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 114
Nessa última hipótese, o processo penal e os Tribunais são, por excelência, espaços
institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra eventuais excessos da maioria,
cabendo ao Supremo Tribunal Federal julgar de modo independente e imune a indevidas pressões externas, as causas submetidas ao seu exame e decisão.
4.
Conclusão
Os Tribunais, especialmente os Superiores, são instituições de quem a sociedade
espera um grau elevado de participação política.
Do STF, por exemplo, espera-se que seja o guardião da Constituição e pacificador
de questões tormentosas no Poder Judiciário, não um tribunal penal que julgue causas
originárias, pois uma ação penal (seja ela qual for) não deveria ter espaço no exercício
da jurisdição constitucional.
A propósito, o próprio rol de competências previstas no artigo 102 da Constituição
Federal transparece que, mesmo outras questões originárias, como por exemplo, conflitos federativos, conflitos entre órgãos de soberania nacional e internacional e extradição,
têm contornos constitucionais próprios a justificar a voz do Supremo originariamente,
mas não a ação penal, seja pela constrangedora dificuldade de seu processamento, com
meandros que vão desde a instrução do feito — forçadamente delegada a outros juízes
—, seja pela dedicação do aparato da Corte para se dedicar prevalentemente a um assunto de repercussão restrita, sem fundo Constitucional direto.
A forma como está prevista a competência originária penal do STF afasta as referida Corte de suas funções típicas, no caso, a de proteger e interpretar a Constituição
(STF), e de reapreciar matérias decididas em instâncias inferiores, e não de instruir feitos desde o nascedouro para dizer se alguém é culpado ou inocente, se agiu com dolo
ou culpa, se há prova nos autos ou não.
Todavia, a despeito das contundentes críticas a essa atribuição (penal), o constituinte derivado vem optando por mantê-la no nosso ordenamento constitucional17,
cabendo aos componentes do STF distinguir quando será ou não o caso de adoção da
teoria de Peter Harbele, a depender de qual papel esteja exercendo no momento.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto. Diferentes, mas iguais: O reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. Disponível em www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/diferentesmasiguais_171109.pdf
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição”. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2002, p. 10.
JUNIOR, Cândido Alfredo Silva Leal. A influência da identidade do juiz (primeira pessoa)
nos processos de cognição e decisão judicial (terceira pessoa). R. CEJ, Brasília, n. 23,
p. 77-85, out./dez. 2003.
17 A proposta de Emenda Constitucional n. 10/2013 trata da extinção da prerrogativa de foro especial
por função.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 115
MATIAS, Flávio Pereira da Costa. O princípio da imparcialidade do juiz penal como
decorrência da adoção do sistema acusatório pela constituição federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3370, 22 set. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22659>. Acesso em: 2 out. 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade”,
p. 503/504, Celso Bastos Editor, 2ª ed., 1999.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, n. 4(2), p. 448, jul-dez.
2008.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 116
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 117
ATIVISMO JUDICIAL NO STF EM MATÉRIA PREVIDENCIÁRIA:
ANÁLISE DO RE 631240 QUE DETERMINOU A OBRIGATORIEDADE
DO PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO PARA
JUDICIALIZAÇÃO DE DEMANDAS PREVIDENCIÁRIAS
Tassiana Moura de Oliveira1
Luciana Dubeux Beltrão Alves2
1.
Introdução
O artigo discute um dos temas que mais tem se comentado no cenário jurídico
atual: o ativismo ou a autocontenção no Supremo Tribunal Federal, com enfoque para
uma decisão específica da Corte Suprema proferida no RE 631240, que trata de matéria
previdenciária.
No século XXI o judiciário vem ocupando um papel de maior relevo no funcionamento do Estado. Assim como, nos séculos anteriores, XIX e XX, destacaram-se o Poder
Legislativo e Executivo, respectivamente.
A sociedade já possui uma série de direitos humanos e fundamentais que estão
fartamente previstos na legislação, porém carentes de concretização.
Assim, o Poder Judiciário tem assumido papel fundamental no funcionamento do
Estado confeccionando e elaborando as políticas públicas estatais.
Não são poucas as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal que ultrapassam os limites legais e se caracterizam por serem sociais ou assistencialistas.
Em um primeiro momento serão abordados a origem do termo ativismo judicial e seus conceitos,
em seguida serão traçadas as suas dimensões, e ao fim será feita uma análise da decisão objeto do presente
artigo, a partir da extração de elementos mais relevantes tratados no seu inteiro teor.
Este artigo certamente contribuirá para uma análise do perfil do Supremo Tribunal Federal, no tocante às matérias previdenciárias. Uma vez que não se pode deixar
de levar em consideração que os processos autuados no ramo de direito previdenciário
que tramitam perante aquela Corte ocupam o segundo lugar no volume de processos em
todo o tribunal.
Conforme disponibilizado no site do próprio STF, foram autuados naquele tribunal 8.516 (oito mil quinhentos e dezesseis) processos apenas em 2014. No entanto, não
é apenas no STF que há uma grande judicialização do tema. Previdência é um dos temas
mais judicializados no Brasil em todos os níveis do Poder Judiciário, basta mencionar
que o INSS perde apenas para a Caixa Econômica em demandas judiciais.
1 Mestranda em Jurisdição Constitucional pela Universidade Católica de Pernambuco; tassioliveira@
gmail.com.
2 Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Federal de Pernambuco; lucadb@uol.
com.br
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 118
2.
Conceito de ativismo judicial
Em pesquisa apresentada por Kmiec (2004), os termos “ativismo judicial” e “ativista judicial” apareceram 3.815 (três mil oitocentos e quinze) vezes em revistas e artigos
de Direito na década de 90. Nos primeiros quatro anos do século 21, estes mesmos termos já foram citados em mais 1.817 (mil oitocentos e dezessete) artigos, em uma média
de 450 por ano. Nota-se que não é de agora o interesse pelo tema, no Brasil, o assunto
também tem sido cada vez mais discutido entre os acadêmicos.
Quanto à compreensão do que significa o termo, vários já tentaram definir. O
primeiro a utilizar o termo “judicial activism” foi Arthur Schlesinger em 1947 numa publicação de quatorze páginas da revista Fortune. A descrição de Arthur Schlesinger Jr.
era temporal e individual. Ele escreveu sobre a Corte Americana de 1947 e separou os
Justices entre activists e self-restraint. No entanto, a falha dele foi a de não explicar melhor o que seria, em termos principiológicos, ser ativista ou de autocontenção (GREEN,
2009).
Schleisenger apresentou o termo “ativismo judicial” exatamente como oposto à
“autocontenção judicial”. Para o autor, os juízes ativistas substituem a vontade do legislador pela própria, acreditando que devem atuar ativamente na promoção das liberdades civis e dos direitos das minorias (CAMPOS, 2014). Também trouxe outra contribuição ao dizer que quanto mais uma corte se apresenta como instituição vital ao país e
à sociedade, mais ela e seus juízes deverão sujeitar-se ao julgamento crítico sobre suas
motivações, relações internas e externas, enfim, tudo o que possa ser fator das decisões
tomadas.
A falha conceitual inicial não impediu que o termo ganhasse fama e fosse repetido
muitas vezes após a primeira utilização, mas colaborou com a dificuldade da criação de
um conceito único e claro. A forma mais comum de utilização, segundo Green (2009), é
a crítica ao comportamento judicial. Quando se diz que uma decisão ou um juiz foi ativista, quer-se criticar o posicionamento dele além da norma ou do que se vem decidindo
sobre aquele tema.
O mesmo Green (2009) teve como objetivo em seu trabalho mostrar que o termo
“ativismo judicial” emergiu de uma tradição complexa de crítica judicial. O que mostra
como foi difícil evoluir num significado unificado do termo.
Os trabalhos mais recentes tendem a definir ativismo judicial como a invalidação
de atos legislativos pelo judiciário. Contudo, apenas a invalidação revela pouco sobre a
propriedade de decisões individualmente. Por exemplo, se a Corte invalida uma norma
claramente inconstitucional, isso não pode ser considerado ativismo judicial, pois trata-se de mera atividade de controle de constitucionalidade (KMIEC, 2004).
Professor Lino Graglia (apud KMIEC, 2004) entende que ativismo judicial é, de
maneira simples, a prática judicial de invalidar escolhas políticas realizadas por outras
instituições de poder que a própria Constituição não tem como clara proibição.
O ativismo judicial está hoje envolvido em transformações institucionais e políticas amplas, sendo tendência verificada em várias partes do mundo além do universo
norte americano e há mais tempo que o debate no Brasil possa sugerir (CAMPOS, 2014).
Seguindo para o Brasil, recente trabalho de Campos (2014, p. 36 e 37) definiu
ativismo judicial como
o exercício expansivo, não necessariamente ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes em face dos demais atores políticos, que: (a) deve ser identificado e avaliado segundo os desenhos insti-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 119
tucionais estabelecidos pelas constituições e leis locais; (b) responde aos
mais variados fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais
presentes em contextos particulares e em momentos históricos distintos;
(c) se manifesta por meio de múltiplas dimensões de práticas decisórias.
Como se vê, o ativismo não é necessariamente ilegítimo, aliás, não se deve atribuir
substantivos relacionados a ser “bom” ou “ruim”. É preciso identificá-lo e avaliá-lo segundo o caso concreto. Lima (2014, p. 211) sugere que “o debate em torno do ativismo
e da autocontenção judicial possui dois eixos analíticos centrais: institucional e metodológico.”.
De acordo com o eixo institucional, segundo a autora (LIMA, 2014, p. 211 e 212),
“o ativismo se refere à apreciação da questão submetida ao tribunal, com anulação ou
substituição do ato da outra instância de poder ou com determinação de obrigações
para seus agentes”. Por outro lado, a autocontenção “expõe o reconhecimento da competência das demais agências estatais”.
O eixo metodológico está relacionado às relações entre a doutrina (arcabouço teórico) e os tribunais (prática jurídica). Segundo Lima (2014, 212), o eixo metodológico
revela o “desenvolvimento de um senso crítico quanto à atuação judicial, de modo que
a imputação de ativismo implica numa reprovação posterior de um dado julgado, ao
passo que a autocontenção não corresponde necessariamente à aprovação da decisão”,
mesmo que retrate à adequação dos parâmetros metodológicos.
Lima (2014) propôs os dois eixos de avaliação do ativismo/autocontenção das decisões do STF em contraponto às pesquisas empíricas que avaliam as decisões de acordo com a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Outros trabalhos
traçam dimensões para avaliar o ativismo de decisões desenvolvendo parâmetros que
auxiliam a compreensão do pesquisador.
No próximo tópico, serão apresentadas algumas dessas dimensões a partir
de Marshall (2002), Kmiec (2004) e Campos (2014) com o objetivo de compreender o
ativismo da decisão objeto de estudo.
3.
Dimensões do ativismo judicial
Diferentemente dos autores que tentaram criar um conceito para o termo “ativismo judicial”, William P. Marshall (2002, p. 104) quis identificar índices nos casos de
ativismo judicial, comumente indicados pela literatura. Ele conseguiu chegar em sete
dimensões:
(a)Ativismo contra-majoritário: a relutância das Cortes em acatar as decisões das instituições democraticamente eleitas;
(b)Ativismo não-originalista: A falha das Cortes em acatar alguma noção
de originalismo em casos decisivos, se esse originalismo está fundamentado em uma estrita fidelidade ao texto ou em referência à intenção original
dos autores;
(c)Ativismo de precedentes: a falha das Cortes em acatar precedentes judiciais;
(d)Ativismo jurisdicional: a falha das Cortes em aderir a limites jurisdicionais em seus próprios poderes;
(e)Criatividade judicial: a criação de novas teorias e direitos na doutrina
constitucional;
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 120
(f)Ativismo remediador: o uso do poder judicial para impor obrigações afirmativas a outros ramos de governo ou de colocar instituições governamentais em supervisão judicial como parte de um remédio judicial imposto
(g)Ativismo partidário: o uso do poder judicial para conquistar claros objetivos partidários.
Como o próprio autor alertou, a combinação desses índices não dá uma definição
única do que é o ativismo judicial. Exatamente, porque, é possível que uma decisão seja
ativista numa dimensão, mas não necessariamente em outra. Por exemplo, uma decisão
pode ser coerente com um precedente, mas não acatar uma decisão de uma instituição
democraticamente eleita.
Kmiec (2004) traz em seu trabalho definições de ativismo a partir, também, de
alguns índices, apesar de não ser esta a nomenclatura que ele utiliza. A primeira, assim
como Marshall (2002), também é a visão contra-majoritária, no entanto ele intitula de
“derrubar ações constitucionais questionáveis de outros ramos”. O segundo índice de
avaliação é “ignorar precedentes”, distinguindo-se se eles são verticais ou horizontais e
se são uma questão constitucional, statutory ou de common law.
A terceira definição seria a de legislar judicialmente. Quem critica o ativismo
judicial costuma atacar justamente esta dimensão. Como George W. Bush disse: “nós
queremos juízes que interpretem a lei, não que tentem fazer e escrever a lei” (KMIEC,
2004, p. 1471). A crítica funda-se justamente na ideia de divisão de poderes, quando
teoricamente temos três poderes com designações distintas e independentes.
A quarta dimensão, “partir de metodologias aceitáveis de interpretação”, pode
significar que um juiz usa diferentes mecanismos para tomar uma decisão, comparado
com o que outro juiz poderia ter usado. Isso pode ocorrer porque um juiz comete um
erro, ou porque sua filosofia judicial requer que ele não se limite a certos guias interpretativos. Segundo, e mais importante, isso pode significar que duas pessoais concordem
em quais ferramentas devem ser usadas para tomar uma decisão, mas discordem em
como aplicar essas ferramentas em cada caso (KMIEC, 2004).
Por fim, a quinta definição é a de julgamento orientado para o resultado. Segundo
ela, uma decisão é ativista apenas quando o juiz tem um motivo ulterior para criar a
regra e a decisão parte de alguma base de correção. Quão ativista é a decisão depende
de quão distante ela for dessa base. A dificuldade de mensurar esta dimensão está em
perceber (e comprovar) o “motivo ulterior” que leva o juiz a tomar determinada medida,
pois é muito subjetivo.
Campos (2014) trabalhou no sentido de descrever e sistematizar as diferentes
dimensões, também, no entanto sobre o ativismo judicial da Corte brasileira, o STF.
Sinteticamente, o trabalho dele apresenta cinco dimensões:
(a)Dimensão metodológica – Interpretação e aplicação expansiva e inovadora das
normas e dos direitos constitucionais; (b) Dimensão processual – autoamplificação de jurisdição, da utilidade e da eficácia dos poderes processuais e suas decisões; (c) Dimensão estrutural ou horizontal – interferência rígida e incisiva sobre
as decisões dos demais poderes; (d) Dimensão de direitos: avanço de posições de
liberdade, de dignidade e de igualdade social sobre os poderes públicos; (e) Dimensão antidialógica: afirmação da posição do Supremo como único intérprete da
Constituição (CAMPOS, 2014, p. 275).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 121
A dimensão metodológica refere-se ao modo de interpretar e aplicar os dispositivos constitucionais ou legais, expandindo ou reduzindo os significados para além ou
aquém dos sentidos mais imediatos e compreensíveis e, às vezes, até mesmo contra
esses sentidos. É a negação do dogma difundido por Moreira Alves que dizia que a Corte deve se limitar a afastar do ordenamento jurídico normas inconstitucionais, sendo
impedida de inovar na ordem jurídica (CAMPOS, 2014).
Conforme Campos (2014), o STF vem desenvolvendo e avançando esta dimensão
de ativismo judicial, tanto que é possível sistematiza-la a partir de julgados criativos em
quatro principais comportamentos: interpretação e aplicação das normas constitucionais; interpretação conforme a constituição e declaração de nulidade parcial; controle
da omissão legislativa inconstitucional; decisões maximalistas.
Quanto ao ativismo judicial processual, o STF amplia a própria participação na
construção da ordem jurídica e democrática por meio da ampliação dos instrumentos
processuais. São sinais de destaque: i) as propostas de autoampliação da eficácia das
decisões de inconstitucionalidade; ii) a busca pela amplitude do cabimento do instrumento da reclamação, de modo a realizar-se por meio desta o controle incidental de
constitucionalidade; iii) a amplitude do uso do mandado de injunção para decidir além
do caso concreto; iv) a construção de súmulas vinculantes a partir de decisões não reiteradas; v) o uso irrestrito e não criterioso da repercussão geral (CAMPOS, 2014).
O ativismo estrutural ou horizontal está de acordo com o avanço jurisprudencial
do STF, todas as decisões relevantes dos outros poderes estão sujeitas ao controle de legitimidade constitucional pela Corte, e as razões políticas ou empíricas dessas decisões
relevantes estão todas inteiramente sujeitas a esse controle sem gozar de qualquer precedência normativa. Uma vez provocado o controle, “o jogo começa do zero” (CAMPOS,
2014, p. 314).
A legitimação classificatória da dimensão do ativismo de direitos se dá pelo critério da relevância. “Os direitos fundamentais estão no centro da jurisprudência do
Supremo e isso tanto sob perspectiva quantitativa como qualitativa”, segundo Campos
(2014, p. 322).
Nesse caso, há duas vertentes: a dimensão negativa, quando a Corte interfere nas
ações estatais regulatórias, investigatórias e coercitivo-penais); e a dimensão positiva,
quando a Corte interfere no dever de legislar, nas políticas públicas e nas decisões alocativas de recursos do Estado, com base na igualdade social e na garantia do mínimo
existencial.
“A interpretação constitucional não pode ser encarada como tarefa exclusiva do
STF”, afirmou Campos (2014, p. 332). A Corte pode ter a última palavra sobre um caso
particular, mas não necessariamente acerca da questão constitucional mais ampla que
governa o caso, a qual deve ser definida pela coordenação equilibrada entre os três poderes.
No entanto, conforme a dimensão dialógica do ativismo judicial do STF, a Corte
tem decidido casos em que impede os demais poderes de interpretar diferentemente o
texto constitucional em comparação a sua interpretação anterior. Quer dizer que quem
teria a última palavra em matéria constitucional seria o STF, apenas, em qualquer situação.
Estas dimensões servirão de referencial para a análise da decisão do RE 631240
que determinou a obrigatoriedade do prévio requerimento administrativo para judicialização de demandas previdenciárias no próximo capítulo.
4.
Análise da decisão
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 122
O requerimento para concessão de aposentadoria ou de qualquer outro benefício
previdenciário é realizado por intermédio de um procedimento ou processo administrativo.
Este procedimento ou processo administrativo é iniciado com o agendamento do
atendimento perante o órgão previdenciário e finalizado com a decisão que concede ou
indefere o pedido requerido.
É a partir do resultado do requerimento formulado perante a autarquia previdenciária, ou da demora da sua resposta que, segundo o entendimento trazido no RE
631240/MG, nasce a condição da ação, interesse de agir sob o aspecto da necessidade
para o segurado ingressar com a ação judicial.
Embora o inteiro teor do acórdão do RE 631240/MG possua 91 laudas, sua ementa foi bastante sucinta, conforme se depreende da sua transcrição abaixo, ao consolidar
o entendimento sobre o tema3:
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL.PRÉVIO
REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO E INTERESSE EM AGIR.
1. A instituição de condições para o regular exercício do direito de ação
é compatível com o art. 5º, XXXV, da Constituição. Para se caracterizar
a presença de interesse em agir, é preciso haver necessidade de ir a
juízo.
2. A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do
interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de
sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal
para sua análise. É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio requerimento não se confunde com o exaurimento das vias administrativas.
3. A exigência de prévio requerimento administrativo não deve prevalecer quando o entendimento da Administração for notória e reiteradamente contrário à postulação do segurado.
4. Na hipótese de pretensão de revisão, restabelecimento ou manutenção
de benefício anteriormente concedido, considerando que o INSS tem o
dever legal de conceder a prestação mais vantajosa possível, o pedido poderá ser formulado diretamente em juízo – salvo se depender da
análise de matéria de fato ainda não levada ao conhecimento da Administração –, uma vez que, nesses casos, a conduta do INSS já configura o não
acolhimento ao menos tácito da pretensão.
5. Tendo em vista a prolongada oscilação jurisprudencial na matéria, inclusive no Supremo Tribunal Federal, deve-se estabelecer uma fórmula
de transição para lidar com as ações em curso, nos termos a seguir
expostos.
6. Quanto às ações ajuizadas até a conclusão do presente julgamento
(03.09.2014), sem que tenha havido prévio requerimento administrativo
nas hipóteses em que exigível, será observado o seguinte: (i) caso a ação
tenha sido ajuizada no âmbito de Juizado Itinerante, a ausência de anterior pedido administrativo não deverá implicar a extinção do feito; (ii) caso
o INSS já tenha apresentado contestação de mérito, está caracterizado o
interesse em agir pela resistência à pretensão; (iii) as demais ações que
não se enquadrem nos itens (i) e (ii) ficarão sobrestadas, observando-se a
sistemática a seguir.
3 Foi importante transcrever o texto completo da ementa, uma vez que a análise recai sobre seu texto.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 123
7. Nas ações sobrestadas, o autor será intimado a dar entrada no pedido
administrativo em 30 dias, sob pena de extinção do processo. Comprovada
a postulação administrativa, o INSS será intimado a se manifestar acerca
do pedido em até 90 dias, prazo dentro do qual a Autarquia deverá colher
todas as provas eventualmente necessárias e proferir decisão. Se o pedido
for acolhido administrativamente ou não puder ter o seu mérito analisado
devido a razões imputáveis ao próprio requerente, extingue-se a ação. Do
contrário, estará caracterizado o interesse em agir e o feito deverá prosseguir.
8. Em todos os casos acima – itens (i), (ii) e (iii) –, tanto a análise administrativa quanto a judicial deverão levar em conta a data do início da ação
como data de entrada do requerimento, para todos os efeitos legais.
9. Recurso extraordinário a que se dá parcial provimento, reformando-se
o acórdão recorrido para determinar a baixa dos autos ao juiz de primeiro
grau, o qual deverá intimar a autora – que alega ser trabalhadora rural
informal – a dar entrada no pedido administrativo em 30 dias, sob pena de
extinção. Comprovada a postulação administrativa, o INSS será intimado
para que, em 90 dias, colha as provas necessárias e profira decisão administrativa, considerando como data de entrada do requerimento a data do
início da ação, para todos os efeitos legais. O resultado será comunicado
ao juiz, que apreciará a subsistência ou não do interesse em agir (grifos
nossos).
Assim, cumpre destacar os fundamentos utilizados na decisão acima ementada.
O próprio ministro relator, Roberto Barroso, ressaltou em seu voto que não é necessário
ou obrigatório que se recorra no âmbito administrativo da decisão do INSS, com o exaurimento das instâncias administrativas. Isso porque a condição da ação, interesse de
agir, na seara previdenciária é alcançada com a simples comprovação de requerimento
administrativo, tendo a resposta sido negativa ou fora do prazo legal.
Isto significa, que no âmbito previdenciário, não haverá interesse no resultado do
processo judicial se não houver uma prévia manifestação do INSS (ou omissão) sobre o
benefício pretendido.
Argumenta-se que sem o prévio requerimento administrativo do benefício junto à
autarquia previdenciária, não há como o Poder Judiciário saber se o benefício seria ou
não concedido acaso se fosse requerido primeiramente na esfera administrativa, onde
existem servidores especializados para este tipo de ação.
Assim, basta a resistência ou a negativa da pretensão do segurado em obter o benefício por parte do INSS para que surja o interesse em requerer o benefício por medida
judicial.
É fundamental que se ressalte que, segundo o entendimento da Corte, não se trata de uma forma de submissão do direito de ação à prévia manifestação da administração a respeito do pedido, mas de comprovação do legítimo interesse processual para o
exercício desse direito, apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça de direito. Sem
a demonstração da existência de um conflito de interesses, não há como ser invocada a
prestação jurisdicional.
Os segurados têm interesse de agir e, portanto, há necessidade e utilidade do processo, quando sua pretensão encontra óbice na via administrativa, em face do indeferimento do pedido apresentado, ou pela omissão no atendimento do pleito pela Autarquia
Previdenciária.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 124
A decisão ora analisada demarcou seu alcance deixando claro que ela não se
aplica quando se tratar de pedido de revisão, restabelecimento ou manutenção de benefícios, ou seja, não há necessidade de prévio requerimento junto à autarquia previdenciária, porque (i) “a redução ou supressão de benefício já concedido também caracteriza,
por si só, lesão ou ameaça a direito sindicável perante o Judiciário” e (ii) “a Previdência
Social deve conceder o melhor benefício a que o segurado fizer jus, cabendo ao servidor
orientá-lo nesse sentido”.
Uma das preocupações de quem milita na área seria no tocante aos casos em
que notadamente o INSS não reconhece o direito, especialmente se o caso específico
do seguro não tiver previsão legal. Isso ocorre, especialmente, quando o segurado é
acometido de uma doença grave, incapacitante e rara que não está inclusa na lista da
Portaria Interministerial MPAS/MS nº 2.998 de 23 de agosto de 2001. Assim, por ser
obrigado a obedecer a lista, o INSS nega o benefício e o segurado é obrigado a perseguir
a via judicial. A obrigatoriedade do requerimento administrativo só constituiria mais um
obstáculo ao segurado.
O poder judiciário, em matéria previdenciária, tem o poder de conformar situações que a lei não poderia prever (e realmente não abarca) ou quando a realidade difere
do que a lei exige, mas, por questão de justiça social, o texto legal pode ser relativizado.
Claro exemplo é a determinação da lei de que para ser comtemplado com o benefício de
prestação continuada (BPC) o segurado deve ser incapaz ou idoso e ter como renda no
máximo ¼ de salário mínimo por pessoa na família.
Judicialmente, este critério já foi relativizado e o que prepondera são as condições
de vida da pessoa. Mesmo que o beneficiário tenha uma renda superior a ¼ de salário
mínimo por pessoa na família, mas se precisa comprar muitos remédios, por exemplo,
ela tem a possibilidade de perceber o benefício de prestação continuada. Por tudo isso,
entende-se que o poder judiciário tem exercido um papel importante, em todas as instâncias, na política previdenciária.
Retornando à decisão analisada, foram estabelecidas algumas regras de transição
que devem ser observadas pelas ações ajuizadas antes do julgamento do RE 631240/
MG e que não tenham sido instruídas com a prova do prévio requerimento administrativo. Nos itens 6, 7 e 8 da ementa, vê-se que o STF não apenas afastou do judiciário
as ações que não têm prévio requerimento administrativo, como também definiu como
deverá proceder o INSS com as ações sobrestadas definindo prazos, inclusive.
4.1. Dimensões do ativismo da decisão
A decisão do STF em análise não foge à regra das demais decisões daquela Corte
em extensão de páginas. São 91 laudas para a definição de como deverá proceder o segurado que intenta judicializar um problema de ordem previdenciária. Debruçando-se
sobre o conteúdo delas, procurou-se compreender se a decisão seria ativista ou de autocontenção.
Para tanto, foi preciso compreender o que seria uma decisão ativista. Retomando
o conceito de Campos (2014), ativismo seria o exercício expansivo, não necessariamente
ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes em face dos demais
atores políticos. Assim, a decisão analisada deveria ser considera ativista por demonstrar o exercício expansivo político normativo do STF em face do INSS e seus segurados.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 125
A Corte brasileira define como devem agir não apenas os interessados em solicitar
um benefício, mas também como deve agir a autarquia previdenciária com os milhares
de processos sobrestados por conta da decisão. Confrindo, inclusive, prazos para atendimento dos segurados. Uma decisão judicial estabelecendo regras para o Executivo
agir.
Poderíamos dizer que, de acordo com as dimensões de ativismo apresentadas,
neste RE, a decisão do STF se assemelha à dimensão metodológica de Campos (2014)
que se refere ao modo de interpretar e aplicar os dispositivos constitucionais ou legais,
expandindo ou reduzindo os significados para além ou aquém dos sentidos mais imediatos e compreensíveis.
Pode-se afirmar neste sentido, uma vez que o texto literal da Constituição fala
apenas que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º XXXV). A interpretação do STF diz, nos casos de direito previdenciário, o
que significa lesão ou ameaça a direito e, ainda, o que é interesse de agir. Dizendo o que
deve ser apreciado pelo judiciário ou o que é de competência do executivo para analisar,
pelo menos num momento inicial.
Sendo assim, compreende-se que, apesar de numa primeira leitura a decisão em
comento aparentar ser ativista, uma vez que a leitura literal do texto constitucional foi
interpretada de acordo com o que o STF diz ser o entendimento correto, a decisão da
Corte colocou limites à sua própria atuação.
Assim, dentro do eixo institucional de compreensão de ativismo e autocontenção
desenhado por Lima (2014), o STF agiu reconhecendo a competência do poder executivo
(INSS) em analisar e conceder (ou não) os benefícios previdenciários. Apenas após a negativa ou falta de resposta é que o segurado deve procurar o judiciário a partir de agora.
Por isso, entende-se qu a decisão do RE 631240 foi de autocontenção judicial.
5.
Considerações finis
Ressaltando o papel essencial que o Poder Judiciário tem assumido na concretização da Constituição brasileira, diante da violação de direitos e da crise de representatividade do Poder Legislativo, justifica-se a importância que o termo “ativismo judicial”
vem tendo no debate da jurisdição constitucional no Brasil.
O termo foi utilizado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1947 por Arthur
Schlesinger, numa publicação jornalística. Por ser uma definição pioneira, também foi
falha, uma das falhas foi colocar a autocontenção como o oposto de ativismo. Sabe-se
hoje que há mais complexidade nos termos do que o que previa inicialmente Schlesinger. Mas desde então, houve diversas tentativas para aprimorar o conceito, especialmente na Ciência Política. E foram milhares de trabalhos sobre o tema.
O Direito também se preocupou em conceituar o ativismo e a autocontenção judicial e tem, cada vez mais, se aproximado da Ciência Política para entender melhor o
fenômeno. Os trabalhos mais recentes trouxeram dimensões do ativismo, inclusive utilizando a Corte brasileira como objeto de estudo. As dimensões são importantes, pois já
se compreende que uma decisão pode ser ativista de diversas (e complexas) formas.
De acordo com o embasamento teórico conceitual de ativismo e autocontenção
judicial, foi analisada a decisão do RE 631240 dada pelo STF. A Corte decidiu se seria
necessário o prévio requerimento administrativo para ingressar com uma ação no judiciário requisitando um benefício previdenciário. Há anos o INSS vem alegando que não
haveria interesse de agir se o benefício não foi sequer solicitado administrativamente,
quiçá negado.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 126
A Corte entendeu que há diferentes situações e que cada uma deve ser abordada
de uma forma diferente. Em princípio o STF entendeu que, realmente, não há interesse
de agir se não há direito violado. No entanto, se há consenso de que aquele pedido seria
negado administrativamente, o segurado tem a possibilidade de solicitar judicialmente sem o prévio requerimento. Também, se o pedido é de revisão e o INSS no primeiro
pedido não ofereceu a melhor opção de benefício ao segurado, não há a necessidade de
prévio requerimento.
Por fim, o STF definiu o que o INSS deveria fazer com os processos sobrestados
que se dividem em diversas situações, inclusive definindo prazos de atendimento.
A um primeiro olhar, analisando a presente decisão, o STF parece adotar uma
postura de ativismo judicial, pois, além e chamar para si a responsabilidade de interpretar o texto constitucional, ainda vai além do que está literalmente escrito.
No entanto, por reconhecer que o âmbito administrativo há pessoal especializado
e que as decisões tomadas podem ser mais eficientes, por demandarem um conhecimento mais técnico, e repassarem ao poder executivo a responsabilidade de analisar
num primeiro momento a solicitação de benefício, entende-se que a decisão foi de autocontenção. O STF diminuiu o âmbito de atuação do poder judiciário obrigando os segurados a realizar o prévio requerimento no INSS para ingressar com uma ação judicial.
Entende-se que seria necessária uma análise mais profunda de todo o conteúdo
da decisão para chegar a uma conclusão mais robusta e próxima dos conceitos mais
recentes de ativismo e autocontenção. No entanto, por uma questão metodológica, preferiu-se reduzir a análise ao conteúdo da ementa, uma vez que ele foi bem detalhado
com relação às conclusões da decisão.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do Supremo
Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2014.]
GREEN, Craig. An Intellectual History of Judicial Activism. Emory Law Journal. v. 58,
2009.
KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meanings of “Judicial Activism”. Califórnia: California Law Review, 2004.
LIMA, Flávia Santiago. Jurisdição constitucional e política: ativismo e autocontenção
no STF. Curitiba: Juruá, 2014.
MARSHALL, William p. Conservatives and the Seven Sins of Judicial Activism. Colorado
Law Review. v. 73, 2002.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 127
AUDIÊNCIAS PÚBLICAS: DIREITO OU FACULDADE?
Maria Eduarda C. H. Velho Barretto1
1.
Introdução
A audiência pública trata-se de uma sessão voltada para o público, é um meio
para efetivação do seu direito de ser ouvido e participar do Poder Público. O objetivo das
audiências públicas é de esclarecer as questões que são relevantes ao interesse coletivo.
Podemos citar como exemplo a audiência pública que ocorreu nos dias 25 e 26
de novembro de 2013 com o tema “Programa Mais Médicos” no STF, convocado pelo
Ministro Marco Aurélio. Essa audiência foi convocada para subsidiar o julgamento das
ações diretas de inconstitucionalidade que impugnam a MP621. Em 2013, a Presidente
da República, Dilma Rousseff, lançou a medida provisória n° 621, que criou o programa
Mais médicos com o intuito de trazer melhorias ao Sistema Único de Saúde. Diante de
um tema que afeta a população diretamente e tendo em vista a ADI nº 5.037, proposta
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados
-CNTU; e a ADI nº 5.035, proposta pela Associação Médica Brasileira – AMBR a audiência pública foi convocada uma vez que aduz uma oportunidade em que a sociedade
e o Estado podem debater com amplitude e profundidade um tema recorrente, já que a
sociedade, e não só os advogados, tem o direito de expressar a sua opinião. Como Peter
Häberle afirma, a interpretação constitucional é aberta, é aberta a sociedade, para o
debate de todos os cidadãos, “contêm também uma parte de legitimação e evitam o livre
arbítrio da interpretação judicial” (Peter Häberle , 2002).
Contudo, a escolha daqueles que participarão de uma sessão é feita pelo Ministro
que presidir a audiência, sendo ele o responsável por determinar as pessoas que serão
ouvidas. Ao convocar uma audiência pública, ela será divulgada e disponibilizada para
inscrição no site (no caso acima referido, foi disponibilizada no site do STF) aos que são
especialistas em questões técnicas, científicas, administrativas, políticas, econômicas
e jurídicas. Pessoas com experiência e autoridade na matéria submetida ao Tribunal
(arts. 13, XVII, e 21, XVII, do RISTF). Ao fazer a seleção dos especialistas que devem
participar, o Ministro deve ser imparcial e selecionar aqueles que tem capacidade, aqueles que vão exercer a democracia, que emprestarão a sua voz, dando a sua opinião,
representando o povo e a população. A democracia e o direito de ser ouvido, são pilares
intrínsecos do conceito de audiência pública.
No Brasil, a divulgação das audiências públicas não atinge a toda sociedade civil.
Mesmo com o grande avanço tecnológico e os diversos meios de comunicações existentes nos dias atuais, a divulgação acerca desse tema não atinge a todos. Uma grande
parcela da população não tem o conhecimento de como participar ou assistir, tendo em
vista que uma audiência pública é transmitida pela TV Justiça, Rádio Justiça e também
há possibilidade de assistir no próprio tribunal. Sobre esse aspecto, deve-se levar em
conta que não é um costume da própria população, em sua maioria, buscar conhecer
seus direitos ao assistir programas relacionados a esse tema, não há um costume da
sociedade brasileira de assistir a TV Justiça, Rádio Justiça, ou até mesmo buscar infor1 Maria Eduarda Carvalho Harten Velho Barretto. Estudante de Direito na Universidade Católica de
Pernambuco. E-mail: [email protected].
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 128
mações nos sites dos tribunais. Para a efetivação da disseminação desse tema, deve-se
buscar outros meios de comunicação, não apenas os já citados, para chamar a atenção
da sociedade de um direito que os pertence.
Em seguida, a dissertação atravessará a exposição acerca da decisão proferida
em uma audiência pública. Visto que se trata de um tema importante que atinge a sociedade, a decisão de um julgado carrega consigo uma grande responsabilidade. Todo
julgamento proferido acarreta um grande impacto e é de uma imensa responsabilidade
do julgador, pois aquela decisão vai atingir algo ou alguém. Muitos acreditam que pelo
fato de uma audiência pública trazer consigo uma fração daqueles que serão atingidos,
pois os mesmos participarão do processo de decisão, esta seria mais justa e mais correta.
Ademais, logo após será explicitado como uma audiência pública mesmo não sendo vinculante tem o poder legitimador. Consequentemente, chegar-se-á a uma exposição acerca de como esse instrumento é um meio de aproximação da comunidade frente
a esfera pública, sendo esta, uma forma de atuação da sociedade civil para solucionar
as demandas de participação que não são satisfeitas pela democracia representativa
(Jürgen Habermas, 2003).
2.
Audiência Pública
A audiência pública é uma grande vertente da democracia participativa, constituindo um importante instrumento de participação que proporciona legitimidade e
transparência para as decisões tomadas pelas diferentes esferas de poder. Tem forte
influência anglo-saxão, se fundamentando na justiça natural. A audiência pública é um
meio eficaz, em que a sociedade civil tem a capacidade de participar e ser ouvida antes
de uma norma ser editada ou uma grande decisão ser tomada.
Peter Häberle, em sua obra “Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista
e ‘procedimental’ da Constituição”, traz a importância da participação da população
como intérpretes da constituição e não apenas os interpretes oficiais, como os juízes,
que seria na visão de Häberle uma “sociedade fechada”. A audiência pública ao lado do
amicus curiae (amigos da corte, onde essas pessoas não são partes do processo, mas
sim interessados na causa), os experts indicados e os requerentes garantem a participação da sociedade.
Com o intento de democratizar o processo constitucional e ao falar de “sociedade
aberta” Peter Häberle afirma que “a interpretação constitucional é, em realidade, mais
um elenco da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do
processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da
sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. Os critérios
de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for
a sociedade” (Peter Häberle, 2002) Conclui-se que não há uma rejeição a interpretação
dos juízes e tribunais, a ideia de Häberle é que se reconheça, conjuntamente, a importância da participação popular dos cidadãos ativos.
A audiência pública como meio de participação popular, se diferencia do plebiscito
e referendo, pois estes são instrumentos da soberania popular, reservados ao sufrágio e
são regulamentados pelo Direito Eleitoral. No plebiscito, a consulta ocorre antes do ato
ser emanado e já no referendo, ocorre após o ato. No caso das audiências públicas, com
o exemplo do STF, a Emenda Constitucional 29/2009 regulamentou que convoca-se
uma audiência pública sempre que for necessário esclarecer questões ou circunstâncias com repercussão geral e de interesse público relevante. Ocorre após uma medida
ser tomada ou um ato for praticado e estes repercutam na sociedade diretamente.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 129
Como meio de explanar tudo o que foi dito, temos como exemplo a audiência que
ocorreu no dia 26 de maio de 2014 no STF sobre internação hospitalar com “diferença
de classe” no Sistema Único de Saúde. A audiência pública foi convocada para auxiliar a
Corte com o conhecimento especializado necessário para o esclarecimento da causa em
juízo. Ao falar do Sistema Único de Saúde, tema de grande importância da sociedade e
junto a esse tema, falar sobre “diferença de classe”, nota-se que é um assunto de interesse público relevante, e atenta-se que nesse caso busca-se a possibilidade de melhoria
no tipo de acomodação do paciente e na contratação de profissional de sua preferência
mediante o pagamento da respectiva diferença. O ministro Dias Toffoli, que convocou
esta audiência, acredita que esse tema apresenta relevância jurídica e social e também
envolve importantes interesses jurídicos, como o acesso universal e igualitário às ações
e serviços de saúde.
Por fim, constata-se que uma audiência pública é um instrumento da democracia
e que para essa ser realizada é necessário interesse social no tema posto em discussão.
Ademais, nota-se que é trata-se de uma sociedade aberta, um meio de participação social que aproxima a população frente a Corte.
3.
Contexto histórico
As audiências públicas integram o perfil dos Estados Democráticos de Direito
modelados pelo constitucionalismo do pós-guerra europeu, no qual o poder político não
emana apenas do povo e em nome dele é exercido, mas comporta a participação direta
da população.
No poder Judiciário, temos que as audiências públicas foram, inicialmente, previstas nas Lei 9.868/99 e 9.882/99 e no âmbito do Supremo Tribunal Federal, elas foram regulamentadas pela Emenda Regimental 29/2009. A primeira audiência pública
no STF foi convocada pelo Ministro Ayres Britto, que ocorreu no ano 2007 a ADI 3510
sobre a Lei da Biossegurança. Logo após, tivemos diversas audiências com temas como
importação de pneus usados, a ADPF 101, acerca da interrupção da gravidez de fetos
anencefálicos, a ADPF 54, e tivemos também a ADPF 186 sobre cotas no sistema nacional de educação.
Dentre outras, não podemos deixar de citar a audiência pública sobre o Programa
“Mais médicos” que ocorreu em 2013 e em 2014 sobre a internação hospitalar com diferença de classe no sus. Temas estes que são de grande importância para a sociedade
brasileira atual.
4.
Quem pode participar de uma audiência pública?
Diante de tudo que foi exposto, consequentemente chegar-se-á indagação acerca da participação em audiências públicas. Muitas pessoas ficam em dúvida em quem
pode participar, e sobre esse tema há duas explanações.
Primeiramente, temos a participação como sujeito passivo, no qual todos podem
assistir uma sessão, qualquer cidadão pode ingressar e presenciar uma audiência pública de seu interesse. Para isso, basta ir ao tribunal em questão e adentrar no ambiente
para assisti-la, todavia, há um número limitado de pessoas. Para participar como sujeito passivo, não é necessário realizar qualquer inscrição ou até mesmo ser especialista
no assunto tratado.
Já no caso de participação como sujeito ativo, cabe ao ministro que presidir a
audiência selecionar especialistas em questões técnicas, científicas, administrativas,
políticas, econômicas e jurídicas. Pessoas com experiência e autoridade na matéria submetida ao Tribunal sendo este ponto regulamentado pelos arts. 13, XVII, e 21, XVII,
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 130
do RISTF. Neste caso, haverá no portal do tribunal, STF por exemplo, uma área para
inscrição do interessado e necessariamente o mesmo deve ter alguma afinidade com o
tema proposto. Após ser realizada a inscrição, e a seleção do ministro ser efetuada, será
disponibilizado no site a lista dos que foram escolhidos para emprestar sua voz e dar a
sua opinião. Ou seja, os escolhidos como sujeito ativo.
5.
Princípio da imparcialidade na escolha dos participantes.
Após o ministro convocar a audiência pública, de tema de grande importância
para a população, e serem feitas as devidas inscrições para participação na mesma,
chegar-se-á ao ponto de extrema relevância: ao selecionar os participantes de uma audiência pública, seria sua escolha regida pelo princípio da imparcialidade?
Primeiramente vamos abordar o princípio do juiz natural, que como afirma Nelson Nery Junior, todos têm direito de submeter-se a julgamento por juiz competente e
pré-constituído na forma da lei e o juiz competente tem de ser imparcial. Esse segundo
pilar também deve ser levado em consideração na seleção dos sujeitos ativos de uma
audiência pública. Pois a imparcialidade é um aspecto de grande destaque, visto que na
democracia brasileira, há uma certa confiança no exercício correto e justo da atividade
jurisdicional, sendo esse um pressuposto imprescindível para convivência harmônica
dos cidadãos.
Para haver imparcialidade na decisão, necessariamente é preciso que ocorra o
mesmo na seleção daqueles que vão representar a população e influenciar na decisão
final. O ministro ao eleger os participantes da audiência, deve estar investido de imparcialidade para que seus valores e interesses não interfiram na seleção. Não estando investido de tal poder, poderia o ministro selecionar aqueles que estão de acordo com seu
pensamento, escolher aqueles que opinarão de maneira semelhante ao ideal do mesmo,
onde a característica democrática, de livre opinião, que a audiência pública possui, ficaria apenas no mundo fático.
Os sujeitos ativos, além de representar o povo e ter conhecimento no tema abordado, auxiliarão na decisão que será proferida, devendo ter em mente que essa decisão
afetará inúmeras pessoas de forma direta. Pensando num fato hipotético, em que um
ministro convoca uma audiência acerca do tema “Y”, contudo, o mesmo tem interesse
que a decisão siga o caminho “Z” e outras pessoas que detém poder no Brasil desejam
o mesmo. Ao convocar a audiência, sendo este um instrumento democrático de participação popular, no qual a decisão não é feita apenas por uma pessoa e sim escutando
o que a população tem a dizer, ouvindo o que especialistas tem a informar, com toda
essa aparência de justo, correto e coerente, poderia o ministro ao selecionar os sujeitos
ativos, eleger aqueles que opinarão de maneira em que a decisão chegará a “Z”, ou seja,
exatamente na que o ministro deseja. Após conhecer esse fato hipotético, tem-se que
tudo o que ocorreu apenas teve aparência democrática, pois não houve um debate acerca do tema, as opiniões formadas apenas levaram ao rumo desejado.
A imparcialidade é tema que carrega extrema importância, pois como foi visto no
fato hipotético, se o mesmo não ocorrer, o nosso instrumento democrático se esvairá,
tomando apenas a aparência de democracia.
6.
Interesse da sociedade.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 131
O tema audiência pública não está completamente disseminado em nossa sociedade brasileira. Apesar dos diversos meios de divulgação da informação, como a internet, jornais televisivos, aplicativos de comunicação, e de como as informações, na atualidade, atingem a todos de maneira rápida e eficaz, esse conceito não atingiu a todos.
Poucos compreendem a importância ou sabem da existência desse artifício democrático.
Como foi visto, esse instrumento democrático que é a audiência pública, é um
direito e uma faculdade do cidadão (pois cabe a ele reivindicar sua participação), sendo
então, algo que a sociedade, em seu todo, deveria ter conhecimento, para poder usar
esse artifício para efetivação do seu direito de ser ouvido. Contudo, poucos desfrutam
desse conhecimento, em grande maioria os conhecedores do assunto são os que vivem
do direito, tanto estudantes como juristas. Resta a dúvida se a falta de conhecimento é
gerada pelo desinteresse da população ou da forma em que é divulgado.
Nota-se que a sociedade brasileira não tem o costume de acessar os portais dos
tribunais em busca de informações e se o meio de divulgação por apenas este, será insuficiente. Todavia, os portais midiáticos costumam publicar quando uma audiência é
convocada e sobre a decisão formulada, sendo estes canais de fácil acesso para todos.
Então, se muitos tem acesso à informação acerca da convocação e da decisão proferida,
qual seria o motivo pelo qual esse instrumento não é conhecido por todos? Para essa
pergunta, busca-se a reflexão acerca de que o conceito de audiência pública não é disseminado, esse instrumento não é comum como uma audiência na Justiça Estadual Comum, no qual toda a população tem o conhecimento do que é e para o que serve. Sendo
notório a necessidade de divulgação e explicação sobre esse tema para toda a sociedade,
pois trata-se de um direito inerente a todos e é um pilar democrático que merece atenção.
7.
Decisão proferida em uma audiência pública.
Compreendendo a importância do tema tratado neste presente artigo e tendo em
vista tudo o que foi abordado, constata-se que uma decisão proferida em uma audiência pública carrega consigo um grande peso de responsabilidade para aqueles que a
fomentam, pois a decisão da mesma afetará diversos cidadãos brasileiros. Chegar-se-á
no ponto em questão, no qual busca-se compreender se uma decisão proferida por esse
instrumento democrático possui o mesmo valor de uma decisão proferida por um juiz
de direito, por exemplo.
Sabe-se da natureza recorrível que uma decisão possui, no âmbito processual,
como no caso de uma decisão proferida por um juiz de direito acerca de indenização por
danos morais, por exemplo, se o réu discordar, ou até mesmo autor, da decisão poderá
ajuizar um recurso de apelação ou até mesmo, futuramente, um recurso especial pro
STJ. A parte vencida tem o direito ao recurso, podendo ser ordinário ou extraordinário.
Contudo isso não ocorre no caso de decisão proferida em uma audiência pública. No
caso do STF, enfoque do artigo, de acordo com art. 13, XVIII, da Emenda Regimental
29/2009, in verbis: “decidir, de forma irrecorrível, sobre a manifestação de terceiros,
subscrita por procurador habilitado, em audiências públicas ou em qualquer processo
em curso no âmbito da Presidência.”
Portando, a decisão fomentada em uma audiência pública é irrecorrível, levando
esse ponto a diversos debates, como por exemplo, se o fato da natureza da decisão ser
irrecorrível não desconfiguraria o princípio democrático que a audiência pública leva
consigo, todavia, não iremos nos ater a esse ponto no presente artigo, mas é tema para
reflexão da sociedade.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 132
8.
Audiência Pública como instrumento de aproximação da comunidade frente
esfera pública.
A maioria dos meios de acesso à justiça não permitem a participação direta da
sociedade, não permite que o povo seja ouvido antes de uma decisão ser tomada, não
concede ao povo a oportunidade de ser intérprete da Constituição, auxiliando os juristas.
Tendo em vista todo o ideal de audiência pública não resta dúvidas que trata-se
de uma aproximação da sociedade frente a esfera pública. É uma oportunidade do povo
ser ouvido e exigir seus direitos perante a Corte. É o meio participativo da população de
decidir sobre assuntos que lhes atingem diretamente. É por meio dos sujeitos ativos, os
selecionados pelo ministro, que a população empresta sua voz, informando o que acham
que é o melhor para determinado tema. Assim, não deixando a cargo do magistrado toda
a responsabilidade ao definir sobre determinado tema ou para interpretar exclusivamente a Constituição.
Consequentemente chegar-se-á ao ponto: se a audiência pública não é vinculante, pois não está prevista na Constituição Federal de 1988, como pode ser legitimadora?
E é exatamente esse ponto que será abordado.
As audiências públicas são legitimadoras exatamente pelo fato de aproximarem
a sociedade perante a Corte. Não trata-se da Corte decidir de acordo como a sociedade
quer e exige, mas sim ouvindo o que a sociedade tem a dizer sobre esse assunto que lhes
diz respeito.
9.
Conclusão.
Feito o desenvolvimento do presente trabalho, nesta conclusão afirma-se que a
audiência pública é um artifício democrático e legitimador de extrema importância para
a sociedade brasileira. Trata-se de um direito e de uma faculdade do cidadão, instrumento pelo qual pode-se buscar a explanação de temas e a resolução de assuntos que
atingem a sociedade diretamente.
Nota-se que a audiência pública com seu caráter legitimador, de aproximação da
sociedade frente a Corte, é uma evolução na democracia no direito brasileiro, no qual
uma decisão, que carrega consigo grande responsabilidade, não fica a cargo de uma
única pessoa. Desafoga a responsabilidade do jurídico, livrando o controle abstrato de
constitucionalidade como obra exclusiva dos juízes, assim aproximando a população,
escutando o que o povo tem a dizer. Sendo assim, os processos são humanizados e as
decisões também.
A audiência pública é um instrumento disponível a todos, é um canal para que o
povo atue na esfera pública, adentrando no sistema jurídico. Não são vinculantes, não
obrigam a participação dos cidadãos, é um direito e uma faculdade que fica a cargo da
sociedade buscar exercê-lo. Contudo para que esse instrumento democrático seja efetivado, deve-se buscar a imparcialidade tanto do magistrado, como dos sujeitos ativos.
É necessário que o ministro ao selecionar os participantes esteja investido de imparcialidade para esse instrumento democrático tenha seus efeitos, ao qual foi formulado,
concretizados.
Feita essa exposição final, constata-se que a democracia brasileira lança um instrumento de legitimação na jurisdição constitucional que atende a todos na sociedade,
chamando o povo ao debate de teses sobre constitucionalidade e inconstitucionalidades, levando suas considerações aos juristas, que formaram suas decisões com base em
tudo o que for discutido.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 133
Ainda há necessidade de mais envolvimento da sociedade brasileira nesse campo
jurídico, diante de tudo que foi dito, averigua-se que ainda é necessário a disseminação
do conceito e das formas de participação de uma audiência pública. Se o povo tem esse
direito, todos devem ter o conhecimento para poder exercê-lo.
Por fim, verifica-se que esse instrumento democrático ainda pode ser aperfeiçoado, como por exemplo, a própria sociedade civil convocar uma audiência pública,
não ficando a cargo apenas do ministro que presidir a audiência. Ademais, como outro
exemplo de aperfeiçoamento, a escolha dos sujeitos ativos poderia ficar a cargo de sorteio eletrônico, assim, vencendo um obstáculo que foi assinalado no presente trabalho.
A audiência pública traz consigo uma proposta de uma sociedade aberta aos
intérpretes da Constituição, chamando a sociedade para participar da esfera pública,
convocando sua voz perante a Corte, conclui-se que esse meio é legitimador e um fruto
conquistado pela sociedade brasileira.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 135
O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL
NAS LICITAÇÕES E SUA INSPIRAÇÃO CONSTITUCIONAL
Francisco Luiz de Sá Araujo1
Roberta Cruz da Silva2
1.
Introdução
Os Estados, quando tomaram para si o dever de prover a efetivação dos direitos sociais, originaram um perfil de “Estado comprador”. Educação, saúde, moradia, seguridade social, enfim, são direitos que, para serem efetivados, demandam
recursos financeiros. Em se tratando de Brasil, estudos da Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública (CISAP) indicam que as licitações brasileiras equivalem a 15% do produto interno bruto nacional, percentual
que revela a relevância do Estado-consumidor dentro da economia nacional. Nesse
cenário as licitações surgiram como instrumento de efetivação do interesse público
(BRASIL, COMISSÃO INTERMINISTERIAL DE SUSTENTABILIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, 2014).
No contexto brasileiro, a matéria tem como matriz normativa a Constituição
Federal de 1988. Objetivando conferir aplicabilidade aos ditames constitucionais, a
Lei 8.666/1993, estabeleceu as finalidades dos procedimentos licitatórios. Segundo
a redação original daquela lei, a Administração Pública quando desejar contratar
com particulares, como regra, deveria realizar prévia licitação com a finalidade de:
a) selecionar a proposta mais vantajosa; b) garantir a isonomia entre os licitantes.
No ano de 2010, com a edição da Medida Provisória n. 495/2010, posteriormente,
convertida na Lei n. 12.349/2010, a Lei 8.666/1993 dotou as licitações de mais
uma finalidade expressa: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Este modelo sustentável tornou-se um tema transversal, passando a permear
todas as ciências, como um imperativo global a ser absorvido pelo agir humano
como forma de garantir o futuro digno da vida no planeta.
A promoção do desenvolvimento sustentável como finalidade das licitações se
mostra um tema relevante dentro do Direito Administrativo contemporâneo. Entretanto, a lei se limitou a indicá-lo sem, contudo, determinar seu sentido e alcance
normativo. Apesar de formalmente regulamentada pelo Decreto n. 7.746/2012,
a nova finalidade licitatória, ainda, desafia esforço hermenêutico no sentido de
construir conceitos que sirvam substrato, aos aplicadores do Direito, notadamente, os agentes públicos, na correta efetivação do novel mandamento legal. Embora
o artigo 3º da Lei n. 8.666/1993 detenha elevado grau de abstração, o dispositivo
1 Graduando em Direito pela Faculdade ASCES. Servidor Público Federal (Assistente em Administração da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE)
2 Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de
Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e das
pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de Ensino Renato Saraiva
(CERS-Recife). Advogada.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 136
presume-se válido, vigente e eficaz reclamando cumprimento. Desse modo, uma
questão se mostra relevante: o que significa, no âmbito jurídico, promover o desenvolvimento nacional sustentável por meio das licitações públicas?
Este estudo objetiva analisar os elementos afetos à promoção do desenvolvimento nacional sustentável nas licitações brasileiras de modo a identificar, no ordenamento jurídico, notadamente na Lei. n. 8.666/2010 e na Constituição Federal
de 1988, proposições jurídicas que determinem, no plano conceitual, o sentido e
alcance da nova finalidade licitatória enquanto norma jurídica.
O método utilizado foi o dedutivo. As fontes consultadas foram livros específicos e artigos sobre o tema. Os manuais utilizados atenderam ao fim precípuo de
indicar o grau de difusão e tratamento do tema na literatura.
2.
As licitações na seara pública brasileira e suas finalidade legais
As licitações surgiram no ordenamento jurídico brasileiro antes da promulgação da Constituição Federal de 1988. Porém, foi a partir deste marco legal e sob a
égide das diretrizes nele estabelecidas que as normas jurídicas infraconstitucionais
vigentes foram editadas. A primeira das disposições expressas sobre as licitações
está inserida no Título III da Carta Federal de 1988, que trata da Organização do
Estado. O texto original do seu artigo 22, inciso XXVII3, atribuía, à União, competência privativa para legislar sobre normas gerais relativas à licitações e contratos
nos âmbitos das Administrações Públicas, diretas e indiretas, de todas as esferas
de governo. A Emenda Constitucional n. 19, de 1998, reeditou a redação do artigo
22, aperfeiçoando-lhe o sentindo e alcance e incluindo as sociedades de economia
mista (BRASIL, 1988). A atual redação do inciso XXVII, do artigo 22 é a seguinte:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[...]
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido
o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades
de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; Após estabelecer a competência privativa da União para a edição de normas
gerais sobre as licitações, a Carta Magna de 1988, determinou elementos norteadores e limitadores da dessa competência. O caput do artigo 37, da referida Carta,
impôs, à Administração Pública, a observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (BRASIL, 1988) e, dentre outras
disposições, estabeleceu, em seu inciso XXI:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...] 3 O inciso XXII, do artigo 22, da Constituição da República de 1988 tinha, originariamente, a seguinte redação: “Art.
22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público,
nas diversas esferas de governo, e empresas sob seu controle”.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 137
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a
todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações
de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos
termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (grifo nosso)
Assim, além dos princípios descritos no caput do artigo 37, as normas infraconstitucionais que se propuserem, em qualquer esfera de governo, tratar sobre as
licitações públicas, deverão, como regra, especificar a obrigatoriedade da realização
de processo4 licitatório para as contratações que tenham por objeto a realização de
obras, serviços, compras e alienações. Esse procedimento deverá objetivar a isonomia entre os licitantes, estipular cláusulas que obriguem o pagamento pelo órgão
público contratante desde que mantidas as condições da proposta e somente fará,
aos licitantes, exigências relativas à qualificação técnica e econômica que se mostrem indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Segundo Ferreira (2012, p. 30):
Com isso o constituinte originário deixou induvidosamente assentado que: (i) a licitação configura regra, cujo núcleo essencial deve
ser informado pela União por meio de “normas gerais”; (ii) são objetos de licitação e, pois, de contratação potencial: as obras, serviços, compras e alienações; (iii) a licitação se desenvolve por meio de
processo administrativo; (iv) a licitação deve assegurar a igualdade
de condições ao participantes; (v) desde a apresentação da proposta
fica garantido a manutenção da adequação econômico-financeira do
contrato se porventura firmado; e (vi) apenas seriam exigíveis, como
condição de participação nos certames, a comprovação da boa situação econômico-financeira e a capacidade técnica dos proponentes
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. E nada
mais, ao menos, aparentemente.
4 Embora esteja explícita, no texto constitucional, a expressão processo licitatório, há, na doutrina, divergências quanto à natureza das licitações, se de processo ou procedimento administrativos, adotar-se-á neste trabalho a terminologia
processo licitatório por ser este o termo constitucionalmente empregado e adotado por Edgar Guimarães, Romeu Felipe
Barcellar Filho, Egon Bockmann Moreira, Fernando Vernalha Guimarães, Odete Medauar e Márcio Cammarosano (GUIMARÃES, 2013, pp. 21-23), sem, contudo, aprofundar a discussão por ser indiferente a este estudo. Em sentido contrário
se posicionam: José dos Santos Carvalho Filho: “[...] procedimento administrativo vinculado por meio do qual os entes
da Administração Pública e aqueles por ela controlados selecionam a melhor proposta entre as oferecidas pelos vários
interessados, com dois objetivos – a celebração de contrato, ou a obtenção do melhor trabalho técnico, artístico ou científico”. (CARVALHO FILHO, 2013. p. 236). Marçal Justen Filho: “[...] procedimento administrativo disciplinado por lei
e por um ato administrativo prévio, que determina critérios objetivos visando a seleção da proposta de contratação mais
vantajosa e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, com observância do princípio da isonomia, conduzido
por um órgão dotado de competência específica”. (JUSTEN FILHO, 2014, p. 495). Fernanda Marinela: “Licitação é um
procedimento administrativo destinado à seleção da melhor proposta dentre as apresentadas por aqueles que desejam
contratar com a Administração Pública. (MARINELA, 2014, p. 361). Celso Antônio Bandeira de Mello: “Licitação é um
certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas
travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas”. (MELLO, 2014. p. 532). Hely Lopes Meirelles: “[...] procedimento administrativo mediante o qual a administração
pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse”. (MEIRELLES, 2002. p. 260). Maria Sylvia
Zanella Di Pietro: “[...] o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa,
abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato”. (DI PIETRO,
2014, p. 373).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 138
Os artigos 173, § 1º, inciso III5 e 1756, caput, ainda, tratam especificamente
sobre as licitações. O primeiro dispositivo sobre as empresas públicas e as sociedades de economia mista, integrando as imposições contidas no artigo 22, XXVII,
enquanto o segundo estabelece a obrigatoriedade de realização de licitação para as
permissões e concessões para prestação de serviços públicos pela iniciativa privada (BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).
Em pretenso cumprimento às disposições constitucionais, em 21 de junho
de 1993 foi sancionada a Lei Federal n. 8.666, que, entre outras providências, regulamentou o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988, instituindo
normas relativas às licitações e aos contratos da Administração Pública e revogou
o Decreto-Lei n. 2.300/86 (Legislação regente das licitações até 1993). Entre suas
disposições, foram inseridas as finalidades das licitações. Originariamente o artigo
3º da Lei de licitações tinha a seguinte redação (BRASIL, LEI N. 8.666, 1993):
Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa
para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade,
da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento
objetivo e dos que lhes são correlatos.
A redação do artigo 3º atendeu aos mandamentos constitucionais e, ainda,
manteve algumas das disposições preconizadas pelo Decreto-Lei n. 2.300/19867,
como a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública e o julgamento das propostas em consonância com alguns princípios, como por exemplo, o da Vinculação ao Instrumento Convocatório e o da Probidade Administrava
(BRASIL, DECRETO-LEI N. 2.300, 1986). A inovação jurídica fomentada pela Lei n.
8.666/1993, em relação à redação adotada pelo Decreto, corresponde à tipificação
da isonomia como finalidade da licitação.
Com a edição da Lei Geral, a União, os Estados, os Municípios o Distrito
Federal, além dos órgãos da Administração Pública direta, os fundos especiais, as
autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pelos entes
federados se obrigam a seguir suas determinações, podendo, ainda, editar normas
complementares (BRASIL, LEI N. 8.666, 1993).
5 Redação do artigo 173,§ 1.º, III, da Constituição de 1988: Art. 173. “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida
quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de
economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: [...] III - licitação e contratação de
obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;” 6 Redação do artigo 175 da Constituição de 1988: “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma
da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”
7 Redação do artigo 3.º do revogado Decreto-Lei n.º 2.300, de 21 de novembro de 1986: Art 3º A
licitação destina-se a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da igualdade, da publicidade, da
probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos
que lhe são correlatos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 139
No ano de 2010, a Presidência da República, no uso de sua atípica função legislativa, editou a Medida Provisória n. 495 de 2010, alterando o artigo 3.º da Lei n.
8.666/1993, acrescentando-lhe uma nova finalidade ao processo licitatório: a promoção desenvolvimento nacional (BRASIL, MEDIDA PROVISÓRIA N. 495, 2010).
Entretanto, quando da sua conversão na lei Lei n. 12.349, de 15 de novembro de
2010, acresceu-se a redação da Medida Provisória, a expressão “sustentável” sem
que tivesse havido qualquer emenda parlamentar nesse sentido8 (BRASIL, LEI N.
12.349, 2010).
Desse modo, a partir do ano 2010, as licitações no Brasil passaram a ter
como finalidade, além da observância do princípio constitucional da isonomia e da
seleção da proposta mais vantajosa para Administração Pública, a promoção do
desenvolvimento nacional sustentável.
3.
Medida Provisória n. 495/2010 e o processo legiferante da Lei n.
12.349/2010: a inexplicável redação do Artigo 3º da Lei 8.666/1993
Objetivando alterar as Leis n. 8.666/1993, 8.958/1994 e 10.973/ 2004, além
de revogar o § 1º do art. 2º da Lei n. 11.273/2006. A Presidência da República editou a Medida Provisória n. 495, de 19 de julho de 2010. Por conduto da Mensagem
n. 410/2010, o Poder Executivo, submeteu à apreciação do Congresso Nacional o
texto da referida Medida, acompanhado da respectiva exposição de motivos; esta assinada pelos ministros, à época, Paulo Berardo Silva, Guido Mantega, Fernando
Haddad e Sérgio Machado Rezende -, sobre a alteração do caput do art. 3º da Lei
8.666, assim dispunha (BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010):
A modificação do Caput do artigo 3º visa agregar às finalidades das licitações públicas o desenvolvimento econômico nacional. Com efeito,
a medida consigna em lei a relevância do poder de compra governamental como instrumento de promoção do mercado interno, considerando-se o potencial de demanda de bens e serviços domésticos do
setor público, o correlato efeito multiplicador sobre o nível de atividade, a geração de emprego e renda e, por conseguinte, o desenvolvimento do país. É importante notar que a proposição fundamenta-se
nos seguintes dispositivos da Constituição Federal de 1988: (i) inciso
II do artigo 3.º, que inclui o desenvolvimento nacional como um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil; (ii) incisos
I e VIII do artigo 170, atinentes às (sic) organização da ordem econômica nacional e a busca do pleno emprego; (iii) artigo 174, que dispõe
sobre as funções a serem exercidas pelo Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica; (iv) artigo 219, que trata
de incentivos ao mercado interno, de forma a viabilizar o desenvolvimento cultural e o sócio econômico, o bem estar da população e a autonomia tecnológica do país. (BRASIL. CÂMARA FEDERAL, 2010)
8 O processo legislativo que envolveu a edição da Medida Provisória será abordado em item próprio. Embora a discussão seja irrelevante a este estudo, consiste em fato de relevância acadêmica, vez que, nenhuma das obras utilizadas neste
trabalho abordam a questão, com exceção de Mayara Gasparoto Tonin. Esta autora indica que o acréscimo da expressão
sustentável que não foi objeto do texto original da MP n. 415/2010 se deu no processo legiferante durante a tramitação
do projeto de conversão n. 13 nas duas casas legislativas (TONIN, 2013, p. 142). As informações apresentadas pela
Câmara e pelo Senado não corrobaram a indicação feita pela autora, pois a alteração não foi objeto
de nenhuma das 32 emendas apresentadas à Comissão Mista que apreciou a MP 415/2010.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 140
Os motivos que ensejaram a inovação do ordenamento jurídico são nítidos. O
intuito do Poder Executivo foi o de, reconhecendo a relevância do poder de compra
do governo e sua interferência direta no nível de atividade econômica e geração de
emprego e renda, utilizar as licitações como instrumento de promoção do desenvolvimento econômico.
O texto da Medida Provisória, que vigeu de 19 de julho de 2010 até 16 de dezembro do mesmo ano, deu a seguinte redação para o art. 3º da Lei 8.666/1993
(BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010):
Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa
para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional, e
será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios
básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao
instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são
correlatos. (grifo nosso). A submissão da Medida Provisória n. 495/2010 à apreciação do Congresso
Nacional, originou o Projeto de Lei de Conversão n. 13/2010. Durante o regular
trâmite pela Comissão Mista do Congresso Nacional na qual tramitou o Projeto de
Conversão, foram apresentadas 32 emendas ao texto original da Medida provisória,
porém destas, apenas duas, fizeram alguma remissão à inclusão da nova finalidade. (BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010).
O deputado federal Ronaldo Caiado, apresentou a Emenda n. 01, que objetivou a supressão da nova finalidade das licitações, sob a seguinte justificativa (BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010):
A expressão ‘e a promoção do desenvolvimento nacional’ tem um sentido muito amplo, o que pode gerar inúmeras interpretações. A expressão pode ser utilizada de forma indiscriminada como justificativa
para contratações irregulares.
A Emenda n. 8, proposta pelo Senador Francisco Dornelles, teve por objeto a
modificação da redação do artigo 1.º da MP 495/2010 conferindo nova redação aos
§§ 5º, 6º e 8º do artigo 3º, e ao inciso XVIII, do artigo 6º, da Lei n. 8.666/2010, para
acrescentar a expressão “obras” entre as possibilidades de se estabelecer margem
de preferência, a fim de se eliminar futura dificuldade hermenêutica por parte dos
operadores do direito quanto à extensão da expressão serviços nacionais. Argumentou o senador que a inclusão estaria alinhada com a nova finalidade licitatória
e considerando o potencial de demanda por obras públicas de infraestrutura, com
implicações diretas para o desenvolvimento sustentável do país. Foi a única vez
que a expressão desenvolvimento sustentável apareceu nos debates parlamentares
(BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010).
Conforme o parecer apresentado em plenário no dia 23/11/2010 pelo Deputado Severino Alves, concluiu-se pela constitucionalidade, juridicidade e técnica
legislativa e pela adequação financeira e orçamentária da Medida Provisória n.
495/2010, rejeitando, dentre outras, as emendas n. 01 e 08 (BRASIL. CÂMARA
FEDERAL. 2010).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 141
Quando da apresentação da versão final do texto do Projeto de Lei de Conversão n. 13/2010, inexplicavelmente, é acrescentada à expressão desenvolvimento
nacional, o adjetivo sustentável. Eis a redação (BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010):
Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa
para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os
princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade,
da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que
lhes são correlatos.
Aprovado na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei de Conversão n.
13/2010 seguiu para votação pelos senadores. O Relator Revisor, Senador Aloízio
Mercadante, proferiu o Parecer n. 1.530/2010. Nele, mesmo após a aprovação,
pela Câmara dos Deputados, do texto contento a expressão “desenvolvimento nacional sustentável” o Relator faz referência, no relatório do Parecer, à “promoção
do desenvolvimento nacional” (BRASIL, SENADO, 2010):
Nesse sentido, a MPV altera o caput e os §§ 1º e 2º do art. 3º da Lei
de Licitações e inclui os parágrafos 5º a 12 nesse dispositivo, além
de referências correlatas subsequentes. No caput do art. 3º inclui-se
a promoção do desenvolvimento nacional como um dos objetivos
da licitação, ao lado de garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e de selecionar a proposta mais vantajosa para a
administração. (grifo nosso).
Na conclusão do Parecer, o Relator, ainda, vota “pela admissibilidade e pela
adequação econômico-financeira da Medida Provisória n. 495, de 2010, e, no mérito, pela aprovação do Projeto de Lei de Conversão n. 13, de 2010”. O Projeto foi
aprovado pelo Senado e seguiu para sanção da Presidência da República, que ocorreu em 15 de dezembro de 2010, tendo sido publicada no dia seguinte à sanção
presidencial, originado a Lei Federal n. 12.349/2010.
Mostra-se completamente incompreensível que uma norma jurídica inove o
ordenamento de um modo, aparentemente descuidado. Aparentemente, há diferenças conceituais relevantes entre desenvolvimento nacional e desenvolvimento
nacional sustentável. Essa falta de zelo durante a elaboração da norma pode ter
ensejada uma inconstitucionalidade formal do dispositivo, pois claramente, se percebe que a Medida Provisória n. 495/2010 foi alterada sem que houvesse nenhuma
emenda que a justificasse e apreciada, pelas duas casas do Congresso Nacional,
como se a nova finalidade em questão fosse a promoção do desenvolvimento nacional, excluída a expressão sustentável. Entretanto, a pesquisa se aterá a análise
da finalidade da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como total
presunção de constitucionalidade, vez que vigente.
Desse modo, por iniciativa do Executivo Federal, exercendo sua função legislativa atípica, a lei de licitação foi dotada de nova finalidade: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Os estudiosos do tema já têm se debruçado sobre
o estudo dessa nova finalidade e sua repercussão dentro do ordenamento jurídico
pátrio, porém o temática, ainda, merece uma discussão, ainda mais aprofundada.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 142
Embora os manuais não sejam fontes recomendáveis à investigação científica, vez que não aprofundam o estudo dos temas que abordam, eles demonstram o
quão difundido está o conhecimento a respeito de determinados assuntos vinculados à área de estudo.
Os administrativistas, até por uma questão óbvia de afinidade temática, são
os pesquisadores que mais se debruçaram sobre o tema. Os manuais de Direito
Administrativo não exploram, nem superficialmente, o tema finalidades licitatórias. Com exceção dos manuais de Direito Administrativo de Di Pietro9 (2014) e
Justen Filho10 (2014), a maioria11 das obras do gênero, no máximo, indicam a mera
existência da alteração legislativa, sem explicá-la. Esse contexto pode denotar a
escassez de literatura sobre o tema e/ou a pouca difusão sobre o conhecimento
produzido relativo às finalidades da licitação. Desse modo, configura-se ainda mais
relevante este estudo.
4.
A promoção do desenvolvimento nacional sustentável enquanto norma
jurídica de inspiração constitucional
Quando o deputado federal Ronaldo Caiado, apresentou a Emenda n. 01 (BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010), que objetivava a supressão da nova finalidade licitatória do texto legal, alegou que ela teria um sentido muito amplo, o que poderia
gerar inúmeras interpretações. Esta preocupação é relevante e remete ao estudo
da tipologia das normas jurídicas, como um primeiro esforço na compreensão do
sentido e alcance da inovação legislativa no âmbito das licitações brasileiras.
É comum no Direito brasileiro a existência de dispositivos legais que albergam normas de elevado grau de abstração e generalidade. Nesta seara, autores
como Costa (1998, p. 02), Barroso (2008, p. 33), Grau (2006, pp. 173-186), Canotilho (2000, p. 1125) têm apontado o existência de regras, princípios, cláusulas
9 Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 357), ao abordar as finalidades das licitações, indica, a existência de três objetivos da licitação, colocando entre eles, o desenvolvimento nacional - omitindo o termo sustentável. Entretanto, aponta a
existência do Princípio da Licitação Sustentável (DI PIETRO, 2014, p. 389-392), fundado, dentre outros dispositivos, no
artigo 3º da Lei 8.666/1993 que tem como postulado central o incentivo à preservação do meio ambiente, autorizando o
aplicador da norma a fixar, nos instrumentos convocatórios, exigências que podem, numa primeira análise, mostrarem-se
discriminatórias, porém sem o sê-lo.
10 Marçal Justen Filho (2014, p. 497), ao abordar as finalidades da licitação, explicita o conteúdo da promoção do
desenvolvimento nacional sustentável, como crescimento econômico norteado pela proteção ao meio ambiente, salientando ainda, que essa promoção, via de regra, ocorre por meio da contratação administrativa. Explica, ainda, que o dever
de promover o desenvolvimento nacional sustentável, passou a redefinir o modo de aplicar o princípio da isonomia e deu
novos contornos ao critério de vantajosidade das propostas (JUSTEN FILHO, 2014, p. 503-504).
11 Nesta maioria cita-se: José dos Santos Carvalho Filho (2013, p. 249), menciona a existência da novel finalidade
como exceção ao princípio da indistinção, sem explicar nenhuma das finalidades da licitação. No mesmo sentido, Rafael Carvalho Rezende Oliveira (2013, p. 343), limita-se a indicar a promoção do desenvolvimento nacional sustentável
como objetivo da licitação. Por sua vez, Alexandre Mazza , apresentou o tema, (2012, p. 319), somente , indicando que
foi promulgada a Lei n. 12.349/2012 inserindo no artigo 3º da Lei de Licitações um terceiro objetivo do procedimento
licitatório, sem, contudo, explicá-lo de algum modo. Do mesmo modo Fernanda Marinela (2014, p. 362), também aponta a existência das três finalidades legais da licitação, inclusive mencionando, equivocadamente, que uma delas seria a
promoção do desenvolvimento nacional, transcrevendo, como se vigente fosse, a revogada redação do artigo 3º da Lei
n. 8.666/1993, dada pela Medida Provisória n. 495/2010. Já Fábio Bellote Gomes (2012, p. 103),
ao tratar sobre, sequer menciona a existência da nova finalidade licitatória, apesar de seu manual
ter sido lançado dois anos após a inclusão da promoção do desenvolvimento nacional sustentável
entre o rol das finalidades licitatórias, indicando, apenas, a existência de duas finalidades, a seleção
da proposta mais vantajosa e a observância da isonomia. Acompanhando os demais doutrinadores
citados, Celso Antônio Bandeira de Mello, (2014, p. 532), expressa que as licitações têm triplo objetivo, indicando entre eles a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 143
gerais, norma-objetivo, norma-fim, conceitos jurídicos indeterminados, enfim, um
variedade de proposições teóricas que podem ajudar na atividade hermenêutica do
operador do direito.
A nova finalidade licitatória representa uma norma cujos alcance e sentido
não estão expressos no próprio texto legal desafiando esforços hermenêuticos para
determiná-los. O primeiro deles é definir a natureza da própria norma. Trata-se de
uma norma regra ou uma norma princípio? Uma cláusula geral ou um conceito
jurídico indeterminado?
Pereira Júnior e Dotti (2012, p. 75-77) entendem prelecionam que existem
diferenças conceituais relevantes entre as concepções de conceito jurídico indeterminado e cláusula geral, abordando-as com técnicas de elaboração da norma
jurídica. Para eles:
[...] o elaborador da norma – qualquer que seja, legal ou regulamentar – não emprega somente, palavras e expressões de cunho unívoco,
certo e determinado, nem tal seria compatível com a infinita variedade de situações fáticas que a realidade cria, no presente e para
o futuro, em função da dinâmica da vida inteligente, o que obriga a
existência de técnicas próprias de elaboração normativa, como sejam
o conceito jurídico indeterminado e a cláusula geral, quando a conduta dos aplicadores da norma houver de depender de premissas,
condições ou objetivos genéricos ou abstratos.
Os conceitos jurídicos indeterminados, assim se caracterizam, quando a norma jurídica determina uma conduta a ser adotada após a sua configuração diante
de um caso concreto. Por exemplo, quando a Lei 8.666/93, em seu artigo 6.º, IX,
determina que o projeto básico de obra ou serviço deve conter, com nível de precisão adequado, o conjunto de elementos necessários e suficientes para caracterizar
a obra ou serviço, ela está albergando um conceito jurídico indeterminado, pois
a obrigatoriedade de precisão adequado do projeto básico se verificará diante das
especificidades do caso concreto e quando reconhecida ou não estabelecerá a conduta a ser adotada pelo aplicador da norma Pereira Júnior e Dotti (2012, p. 76).
Deste modo:
Os conceitos indeterminados se transmudam em determinados pela
função que têm de exercer na situação concreta. Servem para propiciar a aplicação equitativa do preceito abstrato ao caso concreto,
como resultado jurídico da valoração do conceito tornado vivo e atuante pelo aplicar do norma.
O conceito juridicamente indeterminado não se confunde com discricionariedade, visto que esta se funda nos critérios de conveniência e oportunidade do aplicador da norma, bem como existe apenas no âmbito dos efeitos da norma, enquanto aquele integra a descrição do fato ensejador da aplicação da norma12. Do mesmo
modo, não se confunde, conceito indeterminado juridicamente, com as cláusulas
gerais (PEREIRA JÚNIOR E DOTTI 2012, p. 77).
12 Eros Roberto Grau (2006, p. 239), nega a existência de conceitos jurídicos indeterminados sob
os seguintes argumentos: “Este ponto era e continua a ser, para mim, de importância extremada:
não existem conceitos indeterminados. Se é indeterminado o conceito, não é conceito. O mínimo
que se exige de uma suma de idéias, abstrata, para que seja um conceito é que seja determinada.”
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 144
Costa (1998, p. 09), analisou as cláusulas gerais no contexto do projeto de lei
que deu origem ao Código Civil de 2012. Conceituou a jurista:
Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, um a disposição normativa que utiliza, no
seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluída’ ou ‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu
campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe
um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos,
crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para ele mentos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual,
reiterados no tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada a
ressistematização destes elementos originariamente extra-sistêmicos
no interior do ordenamento jurídico.
A partir do estudo desenvolvido pela citada autora, pode-se entender a cláusula geral como uma técnica legislativa que serve à produção de texto normativo
genérico, cujo sentido e alcance deve ser extraído pelo operador do direito diante
do caso concreto. Didier Júnior (2010, p. 119), corrobora esse pensamento ao afirmar que a cláusula geral é uma técnica legislativa que, por possibilitar uma maior
abertura do sistema jurídico a valores que merecem proteção, vem sendo cada vez
mais utilizadas pelo legislador.
Deste modo, as normas que se configuram como cláusulas gerais, são normas
com natureza de diretriz, orientam a aplicação das demais normas, possibilitando
ainda a atualização do seu conteúdo aos parâmetros jurídicos vigentes em cada
época.
Para Pereira Júnior e Dotti (2012, p. 75-77) a terceira finalidade licitatória
constitui-se de uma cláusula geral:
A cláusula geral introduzida na Lei n. 8.666/93 pela Lei n. 12.349/10
é a da ‘promoção do desenvolvimento nacional sustentável’. Em outras palavras, e à conta da configuração jurídica da cláusula jurídica, toda contratação de obra, serviço ou compra pela Administração
Pública deve ser capaz, doravante, de contribuir para promover o
desenvolvimento sustentável. Descumprirá essa cláusula geral e padecerá de vício de ilegalidade o contrato inepto para promover o desenvolvimento sustentável.
Assim, em sendo a promoção do desenvolvimento nacional sustentável norma jurídica construída sob a lógica das cláusulas gerais, enquanto técnica legislativa, instituindo uma diretriz que, além possibilitar a congruência do sistema,
possibilita a proteção de valores juridicamente relevantes correlatos ao mandamento descrito no texto legal, um questionamento se mostra válido: seria a norma
expressa pela cláusula geral um princípio jurídico?
As cláusulas gerais, de um modo geral, não são princípios, mas podem expressar um (AGUIAR JÚNIOR, 2008, p. 8). Fica evidente, a partir desse pensamento, que há diferenças entre os dois conceitos. Para Barroso as normas jurídicas se
dividem em regras e princípios. Entende ele que (2003, p 33):
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 145
Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas
condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a
hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo
ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na
hipótese do conflito entre as duas regras somente uma delas irá prevalecer.
Segundo esse raciocínio, estar-se-á diante de uma norma-regra quando os
elementos do texto normativo forem suficientes a sua correta aplicação, sem demandar esforço hermenêutico complexo. Este tipo de norma pode ser verificada,
por exemplo, no artigo 23 da Lei 8.666/1993, que determina critérios para adoção
das modalidades de licitação em função do valor estimado da contratação. O inciso I, alínea “c”, daquele dispositivo legal, determina que para contração de obras
e serviços de engenharia acima de seiscentos e cinquenta mil reais, adotar-se-á a
modalidade concorrência. Assim, sempre que uma contratação se enquadrar na
hipótese descrita na Lei a regra deve incidir.
Os princípios, por sua vez, não se revestem de especificidade na prescri-
ção de condutas. A generalidade e o levado grau de abstração da norma são suas
características marcantes. Segundo Canotilho (2000, p. 1125), os princípios são
qualitativamente distintos das regras, essencialmente, por possuírem vários graus
de concretização, variando em razão de condicionantes fáticas e jurídicas, além de
poderem coexistir com normas antagônicas, sem necessariamente excluí-las do
ordenamento jurídico.
Este pensamento é corroborado pelas considerações realizadas por Barroso
e Barcellos (2003, p. 34):
Princípios contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo,
por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática,
os princípios frequentemente entram em tensão dialética, apontando
direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dar mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o
peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante
concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo
ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por
outras normas ou por situações de fato. [...] Quanto ao conteúdo,
destacam-se os princípios como normas que identificam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados. Trazem em si, normalmente, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. Isonomia,
moralidade, eficiência são valores. Justiça social, desenvolvimento
nacional, redução das desigualdades regionais são fins públicos.
Os princípios e normas foram objeto de estudos realizados por pesquisadores
como Dworkin, Canotilho, Alexy. Grau (2006, p. 173-186), analisou as proposições
destes autores, cujas conclusões elenca-se no quadro abaixo:
Quadro 1 – Diferenciação Entre Princípios e Normas
Fonte: Eros Roberto Grau (2006, pp. 173-186)
Autor
Definição de Norma
Definição de Princípio
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 146
Dworkin
Canotilho
As regras seguem o sistema tudo ou nada; são Os princípios possuem a dimensão do peso
aplicadas ou não são aplicadas, não há meio ter- ou importância na sua aplicação, podendo
mo.
coexistir com outras normas em sentido contrario, sem, contudo, serem revogados.
As regras prescrevem uma exigência que é ou Os princípios impõem a otimização de algo,
não cumprida; não coexistem com normas em podem coexistir com outras normas, inclusicontrário, em conflito uma exclui a outra.
ve numa relação conflituosa sem, contudo,
excluírem-se.
Alexy
As regras são normas que somente podem ser Os princípios são normas de otimização, pocumpridas ou não cumpridas.
dendo ser cumpridos em diferentes graus.
A promoção do desenvolvimento nacional sustentável imposta pela Lei de Licitações, configura-se, a partir destas premissas, como uma cláusula geral, pois relega ao aplicador do direito a competência para construção do seu sentido e alcance,
configurando-se, também como um princípio, pois a norma ali prescrita norteará
a aplicação de outras normas, dotando o sistema de congruência. Configura-se
como princípio, ainda, por seu atributo de coexistência com outras normas, regras
e princípios, além de identificar a sustentabilidade como um valor a ser perseguido
pela Administração Pública e o desenvolvimento nacional como um objetivo a ser
efetivado, revelando, assim, o seu conteúdo axiológico. E é neste particular, fixar
o sentido e alcance dessa dimensão valorativa, que surge relevante tarefa hermenêutica para o aplicador da norma - notadamente, os agentes públicos e órgãos de
controle.
A Lei n. 8.666/1993 está permeada por princípios advindos de normas jurídicas similares a nova finalidade licitatória. Não é por acaso que, afirma Di Pietro,
ser esta a era dos princípios (2008, p. 296):
Vivemos a era dos princípios. Ela começou quando a Alemanha inseriu na Lei Fundamental, promulgada em 8.5.49, a famosa fórmula
contida no artigo 20, item 3, segundo a qual “o poder legislativo está
vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judicial obedecem à lei e ao direito”. A referência à lei e ao direito significa que ficou para trás o período em que o princípio da legalidade significava a
submissão da Administração Pública à lei em seu sentido puramente
formal, para passar a abranger o direito em tudo o que isto significa
de valores e princípios contidos implícita ou explicitamente no ordenamento jurídico.
Superado o paradigma da legalidade, atingiu-se a compreensão que os princípios também são normas jurídicas, tem força cogente a medida que deve ser observado pelo operador do direito e mesmo que não esteja expressamente previsto
no texto normativo, conforme assevera Poli (2013, p. 189):
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 147
Registre-se que os princípios, para terem validade, não precisam estar positivados de forma expressa na ordem jurídica. Não há uma
enumeração taxativa, o que permite maior maleabilidade ao sistema
jurídico que pode agregá-los a qualquer tempo, sinalizando um movimento jurídico de incorporação de valores e que procura refletir os
anseios da sociedade.
Postas, desse modo, as bases da discussão teórica sobre a configuração da
promoção do desenvolvimento nacional como princípio, além de finalidade, mister
se faz a análise sobre as diretrizes que orientam a sua aplicação.
Definir um princípio, não é tarefa fácil, em virtude de seu caráter generalista
e aberto, da ponderação na sua aplicação e da sua flexibilização ante o caso concreto. Entretanto, embora, sua aplicação se amolde à situação fática, ele traz ínsito um mandamento que deve ser claro, sob pena de não cumprir sua função de
nortear a aplicação das demais normas. Não há como ser um norteador, se não é
possível vislumbrar para qual direção aponta.
A exposição de motivos da Medida Provisória n. 495/2012 revela um primeiro
sentido para o termo desenvolvimento. A alteração promovida pela Medida consignou na Lei 8.666/1993 o poder de compra do governo como instrumento de
promoção do mercado interno para aumentar o nível de atividade econômica, gerar
emprego e renda, criando assim condições favoráveis ao desenvolvimento do país.
(BRASIL, CÂMARA FEDERAL, 2010).
A intenção do Executivo-legislador era nítida: indução do crescimento econômico por meio do poder de compra do Estado. Não foi por acaso que no texto original da Medida Provisória, consta meramente como finalidade a promoção do desenvolvimento nacional. Do contexto infere-se, que por desenvolvimento, se adotou
uma concepção que traduz-se em mero crescimento econômico. Ocorre que com a
conversão em lei, o acréscimo do adjetivo sustentável, elevou a finalidade licitatória à uma outras categoria de desenvolvimento. O desenvolvimento como sinônimo
de crescimento econômico é uma concepção rejeitada por estudiosos como Sen
(2000, p. 17), para quem as visões restritivas de desenvolvimento, como aquelas
que o resume ao crescimento do produto nacional bruto ou aumento do nível industrialização são contrários as liberdades substantivas dos seus cidadão, afinal:
[...] o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes
de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidade
econômicas e destituição social, sistemática, negligência dos serviços
públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos (SEN, 2000, p. 18).
A concepção de desenvolvimento proposta por Sen, aproxima-se do conceito
de desenvolvimento sustentável preconizado por Freitas. Para este, a sustentabilidade se configura em pelo menos cinco dimensões do desenvolvimento: ética, ambiental, econômica, social e jurídico-política (FREITAS, 2012, pp. 20-21), podendo
ser conceituada como o “dever fundamental de, a longo prazo, produzir e partilhar
o desenvolvimento limpo e propício saúde, em todos os sentidos, aí abrangidos os
componentes primordialmente éticos, em combinação com os elementos sociais,
ambientais, econômicos e jurídico-políticos” (FREITAS, p. 40).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 148
Mas seria este modelo de desenvolvimento, aquele que permeia o texto constitucional Brasileiro? Parece que sim. O inciso II do artigo 3º da Constituição de
1988, inclui o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil. Os incisos I e VIII do artigo 170, referem-se a organização da ordem econômica nacional e a busca do pleno emprego. O artigo 219,
que trata de incentivos ao mercado interno, de forma a viabilizar o desenvolvimento
cultural e o sócio econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica
do país. O artigo 225 que preconiza a sustentabilidade como valor a ser efetivado.
Desse modo, vislumbra-se no texto constitucional os valores que fundam as cinco
dimensões do desenvolvimento sustentável propostos pelo autor, assim, desse contexto emergiria um princípio constitucional (FREITAS, 2012, p. 41):
Nessa perspectiva, eis o conceito proposta para o princípio da sustentabilidade: trata-se do princípio constitucional que determina com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade
pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial,
socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no intuito de assegurar, de modo preventivo e
precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar. (destaque
no original)
Assim para o autor, haverá sustentabilidade, quando o desenvolvimento de
processar de modo inclusivo, não se admitindo a discriminação negativa, de modo
a promover os direitos fundamentais sociais insculpidos na Carta da República de
1988. Essa dimensão de desenvolvimento reclama o incremento da equidade entre
as gerações presentes e futuras, fomento do desenvolvimento humano por meio de
educação de qualidade e engajamento na efetivação de um modelo de desenvolvimento continuado, duradouro e com respeito a todas as formas de vida. Em sua dimensão ética, a sustentabilidade demanda por reconhecimento de todas as formas
de vida em detrimento do antropocentrismo e da necessidade de universalização do
bem-estar, demanda ainda o reconhecimento da promoção da dignidade humana
sem exclusão da dignidade de todas as formas de vida. (FREITAS, 2012, pp. 58-63)
A dimensão ambiental da sustentabilidade encontra fundamento na preservação da espécie, do ambiente e das demais formas de vida, como modo de garantir
qualidade de vida e longevidade. Por sua vez, a dimensão econômica busca a efetivação do princípio da economicidade dos recursos naturais e combate ao desperdício, ao passo que a regulação do mercado volta-se à ponderação dos custos e dos
benefícios dos empreendimentos públicos e privados. Já a dimensão jurídico-política reclama a tutela jurídica, de eficácia direta e imediata, do direito ao futuro
(FREITAS, 2012, pp. 64-70).
O pensamento de Silva e Bustamante (2014, p. 139) mostra-se simétrico a
esta concepção de desenvolvimento sustentável:
O desenvolvimento sustentável se consolidou como o princípio orientador das iniciativas voltadas para a relação entre desenvolvimento e
meio ambiente, agregando-o aos componentes econômicos, ambientais e sociais com vistas a garantir a sustentabilidade do desenvolvimento. Tem por objetivo precípuo diminuir o consumo, controlar a
poluição, erradicar a pobreza, criar alternativas energéticas e políticas ambientais para gerar um crescimento econômico coadunado
com a proteção ambiental.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 149
No Brasil, quase dez anos após a Conferência de Estocolmo, em 1981,
foi sancionada a Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/81,
que tem por objetivo a preservação, recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar condições para o desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à
proteção da dignidade da vida humana.
Freitas, defende a sustentabilidade como princípio, em virtude dele congregar a efetivação de inúmeros direitos fundamentais, como direito a um ambiente
limpo, à educação de qualidade, ao trabalho decente, à boa administração pública,
direito a longevidade digna. Para ele, “a sustentabilidade, como princípio jurídico,
altera a visão global do Direito, ao incorporar a condição normativa de um tipo de
desenvolvimento, para o qual todos os esforços devem convergência obrigatória e
vinculante” (FREITAS, 2012, pp. 69-71).
Segundo Eleutério e Ferreira (2014, p. 17):
O art. 225 da Constituição Federal de 1988 contemplou o desenvolvimento sustentável como princípio norteador da ordem econômica,
sendo um direito fundamental diretamente ligado ao direito à vida,
que está expresso no caput do art. 5º, podendo ser entendido o direito
à qualidade de vida como um dos requisitos indispensáveis à existência digna do ser humano.
Desse modo, o desenvolvimento sustentável desponta do seio constitucional
para dar sentido ao novo ditame legal do artigo 3º da Lei 8.666/1993, aparentando
configurar-se como um novo princípio licitatório de inspiração constitucional.
5.
Conclusão
O regramento jurídico das licitações brasileiras foi substancialmente alterado
com a edição da Medida Provisória n. 495/2010, posteriormente, convertida na Lei
n. 12.349/2010. Dentre outras inovações, esta Lei introduziu uma nova finalidade
ao processo licitatório: o desenvolvimento nacional sustentável. A primeira consideração que se faz é que essa alteração ocorreu de modo injustificado, no plano formal, vez que o texto original daquela Medida Provisória dispunha sobre a promoção
do desenvolvimento nacional e o texto da Lei, que dela resultou, passou a dispor
sobre a promoção do desenvolvimento nacional sustentável sem que nenhuma
emenda fosse aprovada nesse sentido durante o processo legislativo. Entretanto,
em pese a possibilidade da existência de alguma irregularidade na forma, materialmente a alteração afigura-se como benéfico ao interesse público.
A nova finalidade legal, sob a perspectiva da técnica legislativa empregada,
constitui-se de uma cláusula geral, pois permite ao intérprete, dentro dos limites
do mandamento geral imposto, a sua aplicação, diante do caso concreto, em diferentes graus e modos de efetivação. Essa cláusula geral expressa princípio jurídico,
pois não prescreve conduta específica, mas um dever de elevado grau de generalização, que se concretiza na otimização de outras normas. Tem força vinculante,
aplicação imediata. É norma jurídica, incorporada ao processo licitatório, como
princípio das licitações, que têm seu sentido e alcance determinados a partir de
valores contidos na Constituição Federal de 1988. Deve ser efetivado mediante articulação harmônica com os demais princípios licitatórios e regentes da Administração Pública.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 150
O princípio do desenvolvimento sustentável se funda nos ditames constitucionais previstos no inciso II do artigo 3º da Constituição de 1988, inclui o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil; nos incisos I e VIII do artigo 170, que referem-se à organização da ordem
econômica nacional e a busca do pleno emprego; no artigo 219, que trata de incentivos ao mercado interno, de forma a viabilizar o desenvolvimento cultural e o sócio
econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país e no artigo
225 que preconiza a sustentabilidade como valor constitucional.
A promoção do desenvolvimento sustentável nas licitações é objetivo que deve
ser moldado a partir do caso concreto (por isso utilizou-se de cláusula geral) impondo ao Estado, com a participação da sociedade, o dever de promover o desenvolvimento do país, também, por meio das contratações públicas, criando desde o
processo licitatório mecanismos indutores do progresso nas dimensões econômicas, sociais, ambientais e política.
Diante desse contexto, outros estudos se mostram necessários de modo a
contribuir com a ampliação do arcabouço teórico sobre a promoção do desenvolvimento nacional sustentável nas licitações públicas, como, por exemplo, o estudo sobre as práticas administrativas que concretizam o desenvolvimento nacional
sustentável e a atuação dos tribunais de contas como controlador das práticas que
não o concretizam.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 153
ACESSO À INFORMAÇÃO, DIREITO FUNDAMENTAL GARANTIDO
Gabriel Filipe Avelino Soares1
1.
Introdução
Desde o início da evolução do racionalismo humano, a luta pelo Direito foi o objetivo maior de todas as sociedades. O direito à informação é uma garantia fundamental
do cidadão, prevista de forma expressa no artigo 5º da Constituição Federal, tendo em
vista que é de extrema importância para o ser humano. Como defende a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, que revela que a
proteção dos direitos fundamentais é feita através da institucionalização por cada país.
A proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado ou regras para se estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento
da personalidade humana, são fundamentais para garantia desse direito.
(UNESCO, 1978, p.11).
Com a regulamentação da Lei Federal 12.527/11, o Brasil deu um grande passo na
solidificação de sua transparência pública, ela obrigou os órgãos públicos a considerarem a publicação uma regra e o sigilo como exceção, pois ficaram obrigados a tornar célere a divulgação de suas informações. Para facilitar esse acesso foram disponibilizados
na internet, a serviço da população, o Portal Brasil e o Portal da Transparência.
Essas páginas eletrônicas disponibilizam à população informações sobre políticas
públicas governamentais, além de dados referentes a gastos públicos, acelerando a comunicação entre governo e comunidade, especialmente, servem para fiscalizar como o
dinheiro está sendo gasto, ou seja, como vivemos em uma democracia onde se tem o
“governo do povo” ou “povo no poder” nada mais justo que a população seja informada
de como recursos públicos estão sendo administrados e gastos. Por isso, a informação
deve ser a regra e o sigilo a exceção.
Tendo o escopo de promover uma administração pública mais transparente e acessível à participação popular, a fartura de informações favorece a tomada de decisões a
boa governança de políticas públicas e a inclusão do cidadão. Como defendia Dowbor
(2005,p.4).
A informação é um recurso precioso, e um poderoso racionalizador das
atividades sociais. [...] Na ausência de informações articuladas para permitir a ação cidadã informada, geramos pessoas passivas e angustiadas. A
informação constitui um gigantesco recurso subutilizado.
1 Gabriel Filipe Avelino Soares. Estudante de Direito na Universidade Católica de Pernambuco.
Bolsista do programa de iniciação cientifica PIBIC UNICAP. E-mail: [email protected]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 154
O direito à informação ganhou destaque depois da Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida com Pacto de São José da Costa Rica, que objetivou a
toda pessoa o direito à liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de
qualquer natureza.
O acesso à informação como direito fundamental é reconhecido por importantes
organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Além disso, o direito à informação é um princípio
básico do controle social, por meio do qual o povo exerce algum controle sobre a ação
da Administração Pública, elaborando, acompanhando ou monitorando as ações da
gestão estatal Portanto, a informação torna-se vital para o desenvolvimento material e
simbólico do homem.
2.
Informação, Direito Fundamental
Os Direitos Fundamentais, sob uma perspectiva clássica, consistem em instrumentos de proteção do indivíduo frente à atuação do Estado. Positivado na Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 no qual estão previstos os direitos e deveres
individuais e coletivos. De certa forma, ali está descrito um vasto rol de Direitos Fundamentais, mas a isso não se restringem, e nem sequer à Constituição Federal ou à sua
contemporaneidade. Eles referem-se àqueles direitos que são garantidos no âmbito nacional do Estado, não tendo caráter internacional, ou seja, cabe a cada Estado soberano
admitir os direitos fundamentais, pode ocorrer que determinado direito seja garantido
no Brasil e em outro país estrangeiro não seja, nesse caso o Brasil não poderá fazer
nada, pois não existe juiz entre iguais. Assim, cada país é soberano e não está obrigado
a seguir o ordenamento de outrem. São direitos construídos através da história, são
direitos que vão sendo reconhecidos e inseridos no ordenamento jurídico conforme o
evoluir do ordenamento de cada país.
O direto à informação pertence à quarta geração de direitos fundamentais, surge
como pressuposto do exercício pleno dos demais direitos, e de garantia da própria universalização. É Direito Social confirmado, líquido e certo. Inclui-se entre aqueles direitos
difusos, cujos titulares são dificilmente individualizáveis justamente porque todos, sem
distinção, são seus beneficiários. Como diz o Código de Defesa do Consumidor no seu
artigo 81:
(...). a) Interesses difusos (art. 81, par. ún. I, do CDC): são os interesses
transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato. É aquilo que transcende a um indivíduo, podendo ser exercido em conjunto em razão de
elementos comuns (circunstâncias de fato). As pessoas, aqui, são indeterminadas. (...)
Além disso, trata-se de um direito historicamente construído e reforçado conforme
aumenta a importância do acesso à informação pública para o pleno exercício da cidadania.
Vale à pena frisar as palavras de Paulo Bonavides (2006, p. 571-572):
É direito de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e
o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta
do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece
o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. [...] os
direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 155
sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à
paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam
a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia.
Pelo vocábulo “fundamental”, em seu significado lexical, compreende-se tudo aquilo “que serve de fundamento; necessário; essencial.” Tal conceito não se afasta do sentido real do termo na esfera jurídica. Assim, como entende Vladimir Brega Filho (2002,
p.66), direito fundamental “é o mínimo necessário para a existência da vida humana.”.
Ressaltando-se que o mínimo essencial deve garantir e proteger a existência de uma
vida digna, saudável e harmônica, conforme os preceitos do princípio da dignidade da
pessoa humana, tutelado pela Constituição Federal de 1988.
Neste caso, o acesso à informação pública compreende os objetivos mais importantes das democracias reais e transparentes que se preocupam com o respeito pelos direitos humanos, mercados econômicos estáveis e justiça socioeconômica. Caberia
mencionar então, que a informação pública ou informação de interesse coletivo não se
confunde com a informação pessoal, passível de ser obtida por intermédio de habeas
data (remédio que tutela o direito à intimidade). A informação pública não é o mesmo
que direito à informação. Isso porque este só abrange o direito de receber informação,
enquanto aquela é parte do direito à verdade e engloba tanto o direito de buscar, como
o de receber e também o de difundir a informação.
Dentre os tratados dos quais o Brasil é signatário, destaca-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica - de 1969, que, além de
prever normas de direito material, estabelece órgãos competentes para verificar o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados-partes, quais sejam a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. O
Brasil aderiu à convenção em 1992, porém reconheceu a competência jurisdicional da
Corte apenas em 1998.
É relevante destacar no rol de Tratados Internacionais de Direitos Fundamentais
ratificados pelo Brasil a sua posição, isto porque entre eles destacam-se: Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1992), Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (1992), Convenção para a Prevenção e Repressão do
Crime de Genocídio (1951), Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1989), Convenção sobre a Eliminação de todas
as formas de Discriminação contra a Mulher (1984), Convenção sobre a Eliminação de
todas as formas de Discriminação Racial (1968), Convenção sobre os Direitos da Criança (1990), Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa
Rica (1992) e seu Protocolo Adicional (1996), Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura (1989) e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (1995).O que demonstra a preocupação do país em participar
de pactos que visem à defesa dos direitos fundamentais.
3.
Direito à informação
O direito à informação tem ganhado destaque cada vez maior. No Brasil ele é
conceituado em vários artigos, entre eles o art. 5º da Constituição Federal. Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 156
(...) XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...] § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:
(...) II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações
sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
(...) § 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta
a quantos dela necessitem. (BRASIL. Constituição... 1988)
São estes os dispositivos que a Lei de Acesso a Informação regulamenta, estabelecendo requisitos mínimos para a divulgação de informações públicas e procedimentos
para facilitar e agilizar o seu acesso por qualquer pessoa. Ainda, no artigo 13 do Pacto
de São José da Costa Rica é possível observar a prescrição de que “Toda pessoa tem
direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de
procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza” [...]. (CONVENÇÃO..., 1992).
Portanto, o direito à informação é o direito de todo indivíduo de acessar informações
públicas, ou seja, informações em poder do Estado ou que sejam de interesse público.
A história das leis de direito a informação remonta à Suécia, onde, uma lei que
versava a esse respeito está em vigor desde 1766. Os Estados Unidos aprovaram uma
lei de direito à informação em 1976, que foi seguido por outros países como Dinamarca
– 1970, Noruega – 1970, França – 1978 dentre outros.
Houve, portanto, uma tendência mundial muito expressiva na intenção de adotar
legislação sobre direito à informação. Com o fim de garantir a efetividade democrática,
ela foi criada apenas para servir ao bem estar do maior número de pessoas. Segundo
Kelsen, (2000, p. 35)
A democracia, [...], é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem
está submetido a essa ordem, isto é, pelo povo. Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeitos e objeto do poder,
governo do povo sobre o povo.
Portanto, a participação no governo, ou seja, na fiscalização e acompanhamento
das normas que garantam o acesso à informação, gerais e individuais, da ordem social
que constitui a comunidade, deve ser vista como a característica essencial da democracia.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 157
A participação popular se faz essencial como uma forma de garantir o bem coletivo.
Esse direito é um instrumento essencial para a promoção de boa governança, além de
favorecer ouros benefícios sociais. Mais do que isso, a garantia do direito à informação
está intimamente relacionada com a dignidade da pessoa humana, já que o acesso à
informação de qualidade atua positivamente na proteção e no desenvolvimento de toda
a coletividade.
Assim, Paula Martins (2009, p.18) lembra que o acesso à informação é “essencial
para o desenvolvimento social”. Exemplifica, ao demonstrar que programas de promoção
social devem ser conhecidos por todos, desde o modo como foram concebidos até a sua
execução, visto que a ignorância das comunidades facilitaria a exploração por terceiros
mal intencionados e maus informados, o que acabaria ampliando a desigualdade social.
A publicação da Lei 12.527/2011 representa um marco na conquista pela garantia de acesso à informação, já que a desinformação é um importante fator de dominação
social, os cidadãos ficam a depender da discricionariedade burocrática de uma administração pública transparente, por isso os cidadãos bem informados têm melhores condições de conhecer e acessar outros direitos essenciais como saúde, educação e benefícios
sociais, que o tornam uma grade força reivindicatória, ampliando a participação cidadã
e fortalecendo os instrumentos de controle de gestão pública.
4.
LEI 12.527/2011 e a efetividade do Direito à informação
Publicada em 18 de novembro de 2011 e vigente desde 16 de junho de 2012, a
Lei Nº 12.527, conhecida como Lei de Acesso à Informação – LAI, é uma conquista da
sociedade, que tem como objetivo efetivar o exercício do direito à informação. Garantido
constitucionalmente, o direito de acesso só foi regulamentado por uma lei ordinária 23
anos após a promulgação da atual Constituição Federal, mostrando um grande clamor
social pela transparência nos gastos públicos, garantindo uma melhor governança.
Informação consiste em dados, processados ou não, que podem ser utilizados para
produção e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou formato. Conforme o Dicionário Aurélio, “informação” quer dizer, entre outras coisas, informe, dados, conhecimento, comunicação, notícia, parecer, entre outros. O acesso à
informação constitui-se num dos fundamentos para a consolidação da democracia, ao
fortalecer a capacidade dos indivíduos de participar de modo efetivo da tomada de decisões que os afeta. Ainda, constitui uma ferramenta essencial para combater a corrupção, transformando em realidade o princípio da transparência na gestão pública.
O direito à informação foi criado como o direito que todos os seres humanos têm
de obter informações ou conhecimentos para satisfazer às suas necessidades de saber,
compreender as faculdades de buscar ou procurar e receber informações, o que equivale a afirmar que a pessoas pode estar informada tanto por ter pesquisado, como por
lhe haver sido dada a informação, por exemplo, o que dispõe no art. 5º, inciso XIV da
Constituição Federal de 1988 “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Por sua vez, o direito
à comunicação é inerente às pessoas humana. É o direito de saber e compartilhar com
outras os saberes alcançados, compreende as faculdades de procurar, receber e comunicar ou transmitir ideias e informações. Garantindo o livre exercício da sua faculdade
de comunicar, sendo assegurado por mais de uma norma da Constituição, em especial
o art. 5º, inciso IV, que dispõe “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato”.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 158
Pelo visto, todo cidadão terá direito a obter informações nos órgãos públicos, assim
como a ser orientado sobre a maneira de conseguir esse acesso, sem que seja necessário justificar. Os órgãos públicos devem permitir pesquisa pela internet e gravação dos
dados em diversos formatos.
A lei abrange os Três Poderes, órgãos públicos da administração direta, como Tribunais de Contas e Ministério Público, autarquias, sociedades de economia mista, fundações e empresas públicas, entidades controladas pelo governo e instituições privadas
sem fins lucrativos que recebam recursos públicos. É considerada ampla e progressiva
criada com o intuito de ditar normas para assegurar a proteção deste direito fundamental.
O acesso à informação não é uma condescendência do Poder Público, mas um direito de todos os cidadãos. Já em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
estabeleceu que todo indivíduo tivesse o direito à liberdade de opinião e expressão, o
que inclui receber e transmitir informações.
Por oportuno, cabe demonstrar algumas das inovações trazidas pela nova Lei
(12.527/2011) conforme abaixo especificado:
1. O pedido não precisa ser justificado, apenas conter a identificação do requerente e a especificação da informação solicitada;
2. O serviço de busca e fornecimento das informações é gratuito, salvo cópias de
documentos;
3. Nos casos em que a informação estiver sob algum tipo de sigilo previsto em Lei,
é direito de o requerente obter o inteiro teor da negativa de acesso;
4. Quando a informação for parcialmente sigilosa, fica assegurado a acesso, por
meio de certidão, extrato ou cópia, com ocultação da parte sob sigilo;
5. Estão especificadas na lei as autoridades que têm a prerrogativa de classificar as informações nos diferentes graus de sigilo. Quanto mais estrito o sigilo,
maior o nível hierárquico do agente público;
6. No caso de negativa de acesso a informações, o cidadão pode interpor recurso
à autoridade hierarquicamente superior àquela que emitiu a decisão. Persistindo a negativa, o cidadão poderá recorrer ao Ministro de Estado da área ou, em
caso de descumprimento de procedimentos e prazos da Lei, à CGU. Em última
instância, caberá recurso à Comissão Mista de Reavaliação de Informações.
(BRASIL. Lei. 12.527/2011)
Com efeito, a nova Lei revela-se como um marco histórico do fortalecimento da democracia, cabendo ao Poder Público o desafio de dar efetiva aplicabilidade a norma, bem
como a toda sociedade cobrar do estado o cumprimento de cada dispositivo ali expresso.
Caberia mencionar que, segundo dados disponibilizados pelo ministério do Planejamento, mais de 210 mil pessoas visitaram o Portal Brasileiro de Dados Abertos (dados.
gov.br) em 2013. Na comparação com 2012, isso que significa um crescimento de 90%
nas visitas únicas do site. O conjunto de dados mais acessado no último ano foi o do
Portal de Convênios do Governo Federal, o Siconv, que gerencia as transferências voluntárias da União para Estados, Municípios, Distrito Federal e Entidades Privadas Sem
Fins Lucrativos. Somente os dados do sistema foram baixados 49.502 vezes.
Uma entre varias formas de assegurar o direito à informação é o Habeas Data. Esse
remédio constitucional está previsto no art. 5º, inciso LXXII, da Constituição Federal.
Conceder-se-á habeas data:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 159
1. Para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou
de caráter público;
2. Para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso,
judicial ou administrativo. (BRASIL. Constituição....1988)
Por meio de habeas data o impetrante requer sejam lhe revelados os dados e informações constantes de arquivos pertencentes ao Poder Público ou que, embora privados,
sejam de consulta pública. Em segundo lugar, serve para obter a correção (retificação)
das informações existentes nos bancos de dados. Contudo, o habeas data não poderá
ser utilizado para obter a indenização pelos danos provocados pelo uso abusivo ou ilícito
das informações.
3.
Considerações finais
A realização deste trabalho proporcionou uma revisão teórica de um assunto interessante e essencial, especialmente necessário à condição do exercício cotidiano de
profissionais preocupados com a sedimentação das garantias tuteladas pela Constituição Federal. O entendimento resultante de leituras e reflexões tem sido muito útil para
escolhas futuras na profissão.
O direito à informação é inerente a condição humana e social, as pessoas têm necessidade de saber e de compartilhar com outras os conhecimentos de que dispõem.
Assim, a participação popular se faz essencial como uma forma de garantir o bem coletivo. Esse direito é um instrumento essencial para promoção de boa governança, além de
favorecer outros benefícios sociais. Mais do que isso, a garantia do direito à informação
está intimamente relacionada com a dignidade da pessoa humana, já que o acesso de
qualidade atua positivamente na proteção e no desenvolvimento de toda a coletividade.
Com efeito, a nova lei revela-se como um marco histórico do fortalecimento da democracia, cabendo ao Poder Público o desafio de dar efetiva aplicabilidade a norma, bem
como a toda sociedade cobrar o cumprimento de cada dispositivo ali expresso.
Contudo, a Lei de Acesso à Informação não é suficiente para garantir a transparência. As leis da Transparência e de Acesso à Informação não estão sendo cumpridas,
a maioria, senão a quase totalidade de municípios e Estados em todos os governos, não
cumpre as leis. O exemplo são os próprios gastos com a Copa do Mundo, que a sociedade não tem acesso a essas informações. É necessária maior fiscalização pelos órgãos
responsáveis e principalmente pela sociedade. Fiscalizar os poderes públicos é participar das tomadas de decisão.
Ao obter informações o cidadão pode acompanhar como os recursos públicos estão
sendo gastos. Por isso, é de extrema importância para o bem da democracia que haja
um cidadão fiscal (ativo), que cobre das autoridades o respeito ao principio da transparência pública. A Lei de Acesso à Informação é um poderoso instrumento do cidadão
para fiscalizar o uso correto do dinheiro público.
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______, Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso à informação previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da
Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº
11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991;
e dá outras providencias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília,
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 161
ATIVISMO JUDICIAL NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Fábio Gabriel Breitenbach1
1.
Introdução
A transição do paradigma da modernidade para a pós-modernidade culminou em
profundas transformações, e não apenas no meio social, mas, principalmente, no meio
jurídico. A mudança paradigmática implicou, em apertada síntese, nas seguintes alterações no mundo jurídico: reconhecimento de força normativa à Constituição; expansão
da jurisdição constitucional; e estabelecimento de uma nova dogmática para a hermenêutica constitucional. A Constituição, como Lei Fundamental, estabelece, explícita ou
implicitamente, os valores, os princípios e as regras mais relevantes para a compreensão do fenômeno jurídico.
Na pós-modernidade avançamos para um Direito preocupado com os valores e costumes do povo, respeitando princípios, que norteiam todo o ordenamento, e garantindo
os direitos fundamentais de cada cidadão em face do Estado. Com o estabelecimento
do pós-guerra, a conjuntura político-filosófica trouxe à baila a elevação da Constituição
como documento mais importante de um Estado organizado e defensor dos mais aquilatados direitos individuais. A Carta Maior passou a ter força vinculante e se tornou
bússola normativa para os demais atos legislativos. As normas constitucionais, além de
ser parâmetro para aplicação de todas as outras normas do ordenamento, adquiriram,
por si só, aplicação imediata nos casos concretos.
Pois bem. Não obstante o Direito e a política sejam coisas diferentes, por vezes se
aproximam e até se interligam. Nesse contexto, frequentemente nos deparamos com situações de conflitos entre a justiça e a segurança jurídica – que movem o Direito; ou entre a soberania popular e a legitimidade democrática – que conduzem a política. Nesse
contexto, é indispensável analisar a relação existente entre Direito e política, bem como
verificar como o Judiciário se manifesta quando provocado para resolver questões que
interessam diretamente à dimensão política.
Em uma sociedade democrática moderna, é comum a existência de um pluralismo
de ideias religiosas, filosóficas e morais que são incompatíveis entre si. Nesse contexto,
cláusulas constitucionais como direito à vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade dão margem a construções hermenêuticas distintas. Com o reconhecimento da
condição de norma jurídica à Constituição, como consequente lógico temos que a interpretação constitucional é uma modalidade de interpretação jurídica.
A remodelagem do Estado e a consagração de novos direitos acabam criando uma
nova relação entre os poderes e o Judiciário deixa de ser um poder inerte e alheio às
transformações sociais. A judicialização, portanto, não depende do desejo ou da vontade
do órgão judicante; ao contrário, ele é derivado de uma série de fatores originalmente
1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco –
UNICAP, área de concentração: Direito, Processo e Cidadania, linha de pesquisa: Processo e Dogmática;
Professor de Direito Processual no Departamento de Tecnologia e Ciências Sociais (Campus III, Juazeiro/
BA), da Universidade do Estado da Bahia – UNEB; Assessor na 1ª Vara Cível de Petrolina, do Tribunal de
Justiça de Pernambuco.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 162
alheios à jurisdição, decorrentes do reconhecimento de um maior leque de direitos e da
ineficiência do Estado em implementá-los. A judicialização é, pois, um fenômeno inexorável e contingencial.
O ativismo judicial, embora comporte diversas definições, está associado a uma
participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins
constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos Poderes Legislativo e
Executivo. Quando é adotada uma decisão ativista, os juízes e tribunais se distanciam
da função típica de aplicação do Direito vigente e se aproximam de uma função que
mais se assemelha à de criação do próprio Direito. Não se pode, nesse enredo, compactuar com a criação livre do Direito, pois este papel é típico do Poder Legislativo.
Acerca da atuação criativa dos magistrados, Cappelletti (1999, p. 24) assevera que
este fenômeno é inevitável, notadamente quando toda interpretação tem uma porção
intrínseca de criatividade, o que, todavia, não pode ser confundido com arbitrariedade,
pois criatividade respeita elementos processuais e substanciais. Didier Jr. (2008, p. 68)
assevera que “Os textos normativos não determinam completamente as decisões dos
tribunais e somente aos tribunais cabe interpretar, testar e confirmar ou não a sua
consistência”.
O ativismo judicial se legitima pela atribuição que a própria Constituição confere
aos juízes e tribunais de fazer o controle de constitucionalidade. Contudo, é importante destacar que o controle de constitucionalidade somente alcança sua legitimidade se
concretiza a Constituição, atribuindo às demandas respostas constitucionalmente adequadas; em contrapartida, quando ele é feito a partir da vontade ou da consciência do
interprete, não representa uma concretização do texto constitucional, mas, sim, o seu
desvirtuamento.
Como assevera Barroso (2014, pp. 25-26), “Uma pesquisa empírica revelará, sem
surpresa, que os mesmos juízes nem sempre adotam os mesmos métodos de interpretação. Seu método ou filosofia judicial é mera racionalização da decisão que tomou por
outras razões”. Em face disso, é necessário estabelecer uma hermenêutica racional para
evitar decisões baseadas na “consciência individual” de cada julgador.
No Brasil, a Corte Constitucional – ou pelo menos alguns dos Excelentíssimos
Ministros que dela fazem parte atualmente –, além de aumentar, por conta própria,
suas funções, tem-se considerado competente para julgar até a própria Constituição.
O Judiciário brasileiro tem penetrado em áreas outrora reservada aos demais Poderes.
Todavia, é imperativo lembrar que o Estado Democrático de Direito é constituído a
partir de dois preceitos que jamais podem ser desprezados: a democracia e os direitos
fundamentais. Interpretar a Constituição e as leis não é um ato de vontade. Decidir não
é um ato de escolher aquilo que, no aspecto subjetivo, parece ser o mais acertado para
aquele que está decidindo.
O objetivo deste estudo é demonstrar que ao juiz não é permitido decidir conforme
sua consciência. Embora o ativismo seja um fenômeno inexorável na jurisdição constitucional, não podemos tolerar decisões que, envoltas no manto do ativismo, decorrentes da judicialização, e taxadas de legítimas em face de terem sido proferidas mediante
aplicação das normas constitucionais, na verdade são apenas decisões que satisfazem à
consciência do julgador, podendo configurar até mesmo arbitrariedades. O intuito, pois,
é contribuir para o combate ao decisionismo.
2.
Autonomia do Direito em relação à Política. Será?
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 163
É corrente a ideia de controle e vigilância recíprocos de um poder sobre o outro,
relativamente ao cumprimento dos deveres constitucionais de cada um. As democracias
modernas permitem, nesse contexto, que uma parte do poder político seja exercido
pelo Poder Judiciário. Quando são decididos litígios entre particulares não existe muita
polêmica sobre a legitimidade dos órgãos judiciais, sobretudo quando a Constituição
lhes conferiu a competência para solucionar as disputas em geral.
Na medida em que o Judiciário atua em litígios que envolvem a validade dos atos
estatais ou nos quais o Estado – que também é um órgão de Poder – seja parte, a questão ganha complexidade (BARROSO, 2014, p. 18). Quando é declarada inconstitucional
a cobrança de um tributo, quando se suspende a execução de uma obra pública por
questões ambientais ou quando é determinada a internação de um cidadão num hospital público, “juízes e tribunais sobrepõem sua vontade à de agentes públicos de outros
Poderes, eleitos ou nomeados para o fim específico de fazerem leis, construírem estradas ou definirem as políticas públicas” (BARROSO, 2014, p. 18). Essa sobreposição não
pode ser feita a partir da compreensão individual do julgador acerca do que seja certo
ou errado; deve apoiar-se no Direito vigente.
Não se pode abrir mão de um Judiciário independente, pois não há como
concretizar os direitos fundamentais sem desvincular-se das pressões da
maioria, dos detentores do poder, daqueles que financiam a imprensa ou
de quem quer que seja. Afinal, sem um Judiciário independente não há
como se promover a democracia. O Poder Judiciário é um defensor objetivo e independente da ordem constitucional (higher Law), servindo como
uma contraestrutura instituída ou um contrapoder que deve ser capaz de
contrariar qualquer ato ou manobra violadora da Constituição. (CAMBI,
2011, p. 201)
Na prática, talvez em decorrência da transição do positivismo para o pós-positivismo – que transformou o juiz boca-da-lei em intérprete dos textos normativos, em especial
das normas constitucionais –, o que se verifica, no entanto, é um alto grau de voluntarismo, notadamente porque no interior da dogmática jurídica a interpretação continua
a ser entendida como a escolha de um sentido que advém da consciência do julgador.
Isso determina a constante imprevisibilidade no Direito e ocorrência de múltiplas decisões para casos que, sob o aspecto de Direito, são absolutamente iguais. Os princípios
“tornaram-se uma espécie de máscara da subjetividade, na medida em que passaram a
ser aplicados como enunciados performativos que se encontram à disposição dos intérpretes, permitindo que os juízes, ao final, decidam como quiserem” (TRINDADE, 2012,
p. 118). Diante disso, é oportuna a advertência de Barroso (2014, pp. 19-20):
Pois bem: juízes não inventam o Direito do nada. Seu papel é o de aplicar
normas que foram positivadas pelo constituinte ou pelo legislador. Ainda
quando desempenham uma função criativa do Direito para o caso concreto, deverão fazê-lo à luz dos valores compartilhados pela comunidade a
cada tempo. Seu trabalho, portanto, não inclui escolhas livres, arbitrarias
ou caprichosas.
A separação do Direito da política é algo extremamente desejável. Contudo, são
inseparáveis. Tanto o Direito, como a política, cumprem a função de possibilitar uma
organização mais adequada das diferentes sociedades. Ao tratar da relação entre Direito
e política, Cambi (2012, p. 266) afirma que
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 164
(...) não deve haver rígida separação entre direito, política e economia. A
vontade política de uma comunidade jurídica deve ser capaz de buscar a
construção de um direito que se legitime pela consagração dos fins coletivos. Com isto, o direito não se reduz ao direito positivado, incluindo as
lutas sociais, as quais têm influenciado a afirmação histórica dos direitos
humanos. O direito é produto da política, podendo o seu conteúdo progredir ou regredir, com a perda de velhos direitos e a incorporação de novas
conquistas jurídicas, o que reafirma a ideia de que o direito – já positivado
ou a ser conquistado – é resultado de lutas culturais e sociais.
Na concepção tradicional: “Na política, vigoram a soberania popular e o princípio
majoritário. O domínio da vontade. No Direito, vigora o primado da lei (the rule of law)
e do respeito aos direitos fundamentais. O domínio da razão” (BARROSO, 2014, p. 15).
O Brasil consagra a separação de poderes no artigo 1º da Constituição da República, de 1988, além de estabelecer, no artigo 5º, um longo rol de garantias aos direitos individuais típicos de uma ordem liberal. Além destas garantias, a Constituição brasileira
também estabelece uma grande quantidade de normas que disciplinam direitos sociais
e até mesmo políticas públicas. Com o estabelecimento dessas garantias sociais e de
um longo rol de artigos que disciplinam os mais diversos assuntos, e consequentemente
afetam os mais diversos interesses, a Constituição de 1988 avançou significativamente
no intuito de estabelecer um Estado que alcance a justiça social. Nesse enredo, é natural que, em face da inércia dos demais poderes, abra-se espaço para a jurisdição, que
veio suprir as lacunas deixadas pelos demais braços do Estado.
Como acertadamente esclarece Tassinari (2013, p. 32):
É possível perceber, portanto, que a judicialização é muito mais uma
constatação sobre aquilo que vem ocorrendo na contemporaneidade
por conta da maior consagração de direitos e regulamentações
constitucionais, que acabam por possibilitar um maior número
de demandas, que, em maior ou menor medida, desaguarão no
Judiciário; do que uma postura a ser identificada (como positiva ou
negativa).
Sendo reconhecido, pois, que a judicialização é um fenômeno inexorável e contingencial (depende da eficiência – ou ineficiência – do Estado – Poder Executivo – em implementar os direitos individuais e sociais garantidos constitucionalmente), oportuna é
a advertência de Barroso (2014, pp. 24-25), para quem “Nos casos fáceis, a identificação
do efeito jurídico decorrente da incidência da norma sobre os fatos relevantes envolve
uma operação simples, de mera subsunção”; todavia, em contrapartida, reconhece que
“os casos difíceis envolvem situações para as quais não existe solução acabada no ordenamento jurídico. Ela precisa ser construída argumentativamente, por não resultar do
mero enquadramento do fato à norma”.
Com efeito, há um descompasso na esfera estatal que tenta conjugar uma política
de inclusão (democracia social) e uma economia de exclusão (capitalismo). Em face da
ausência do cumprimento (especialmente pelo Executivo) das promessas insculpidas no
texto constitucional, surge um apelo à jurisdição, que acaba por assumir, nas palavras
Jose Luis Bolzan de Morais (apud TASSINARI, 2013, p. 52), ares de “sacralização”2.
2 Acerca da expansão do controle normativo protagonizado pelo Poder Judiciário, com a demonstração
de que por trás de generosas ideias de garantia judicial de liberdades e da principiologia da interpretação constitucional podem esconder-se a vontade de domínio, a irracionalidade e o arbítrio cerceador da
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 165
Num sistema constitucional que consagra cláusulas gerais, por vezes o sentido
da norma terá que ser fixado pelo juiz. Isso não permite, no entanto, que o magistrado
decida de acordo com sua vontade, já que o ato de decidir não equivale ao ato de fazer
uma escolha. A Magna Carta precisa prevalecer quando existe algo expressamente posto nela. Com efeito,
(...) percebe-se, claramente, que os juízes, em sua função de concretização
dos valores constitucionais escolhidos legitimamente por uma assembleia
constituinte das mais democráticas e cidadãs, não podem, de modo algum,
transpor os limites naturais de sua atividade, bem como aos balizamentos
constitucionais que impõe aos demais poderes suas funções típicas, sob
pena de afronta direta à Carta Magna e, por conseguinte, a um governo
dos juízes, o que se afigura antidemocrático. (SAMPAIO JÚNIOR, 2008, p.
91)
Entretanto, a prática jurídica revela que existem múltiplas decisões para casos que
são simetricamente iguais e, muitas vezes, são proferidas decisões que desconsideram
completamente o ordenamento constitucional e infraconstitucional posto. Múltiplas decisões para casos iguais revelam uma ordem jurídica incoerente e injusta. A construção racional da decisão judicial não é um ato de escolha do magistrado, notadamente
quando ele tem o dever de fundamentar adequadamente suas decisões (CF/88, art. 93,
inciso IX).
3.
Ativismo Judicial
O ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é
dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar. (GARAPON, 1998, p. 54).
A problematização do ativismo judicial traz como pano de fundo uma busca pela
legitimidade do controle de constitucionalidade, contudo, somente é possível considerar
essa afirmação correta se compreendermos que esta legitimidade da jurisdição constitucional dá-se em termos de um efetivo controle das decisões judiciais. Devemos verificar
se as respostas dadas pelo Poder Judiciário são constitucionalmente adequadas.
Como a conceituação precisa do ativismo judicial é deveras difícil, a fim de estabelecer um corte epistemológico, optamos por debater, logo adiante, uma decisão do
Supremo Tribunal Federal. Trata-se da Reclamação nº 4.335/AC. Nos votos proferidos
pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau (atualmente aposentado), Tassinari (2013,
p. 25) identifica um viés progressista do ativismo judicial, pois fora adotada uma postura que permite a alteração do texto constitucional pelo Judiciário.
Pois bem. Segundo o entendimento tradicional, o controle concentrado de constitucionalidade é realizado pelo STF, de forma abstrata, nas hipóteses em que lei ou ato
normativo viole direta e frontalmente a Constituição Federal, produzindo, como regra,
efeitos ex tunc e gerando consequências erga omnes e vinculantes (Lei nº 9.868/1999,
art. 28, parágrafo único). O controle difuso é realizado por qualquer juiz ou tribunal
(inclusive no STF) em um caso concreto. Produz, como regra, efeito ex tunc. Gera consequências inter partes e não é dotado de força vinculante.
Nesse contexto, após declarar, em controle difuso, a inconstitucionalidade, o STF
deverá comunicar a decisão ao Senado Federal e este poderá suspender a execução, no
todo ou em parte, da norma viciada (CF/1988, art. 52, inciso X). Trata-se, na concepautonomia dos indivíduos e da soberania popular, constituindo-se como obstáculo a uma política constitucional libertadora, recomenda-se a leitura do importante texto de Ingborn Maus (2000, p. 183-202).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 166
ção clássica, de uma decisão discricionária do Senado Federal. Caso ele resolva pela
suspensão, os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, proferida pelo STF, que eram
inter partes passam a ser erga omnes.
A par disso, existem intensos debates doutrinários acerca da objetivação do controle incidental (ou difuso) de constitucionalidade. A questão foi debatida pelo STF no
julgamento da Reclamação nº 4.335/AC. A questão chegou ao STF porque, após a Suprema Corte ter declarado, em controle difuso (HC nº 82.959/SP), a inconstitucionalidade do § 1º, do art. 2º, da Lei nº 8.072/1990, o juiz da Vara de Execuções Penais de
Rio Branco/AC indeferiu o pedido de progressão de regime em favor de um condenado,
argumentando que a Lei de Crimes Hediondos proibia a progressão e que a decisão do
STF teria eficácia erga omnes somente se o Senado Federal suspendesse a execução do
dispositivo da Lei de Crimes Hediondos, o que ainda não teria ocorrido à época.
O réu, assistido pela Defensoria Pública da União, formulou a mencionada Reclamação nº 4.335/AC. Foi alegado que o entendimento do juiz ofendeu a autoridade da
decisão do STF no julgamento do HC nº 82.959/SP. Foi sustentado que, como o STF já
havia definido que o dispositivo era inconstitucional, ninguém mais poderia discordar,
mesmo que a decisão tenha sido tomada em controle difuso de constitucionalidade.
Em apertada síntese, pela teoria da abstrativização (também denominada de teoria da objetivação ou teoria da dessubjetivação) do controle difuso, defendida pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, se o Plenário do STF decidiu a constitucionalidade
ou inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, ainda que em controle difuso,
essa decisão tem os mesmos efeitos do controle concentrado, ou seja, eficácia erga omnes e vinculante. Segundo eles, o art. 52, inciso X, da Constituição Federal sofreu uma
mutação constitucional e, portanto, deve ser reinterpretado. O papel do Senado Federal
seria apenas o de dar publicidade à decisão do STF.
Todavia, os Ministros Sepúlveda Pertence (atualmente aposentado), Joaquim Barbosa (também aposentado, sem substituto escolhido até a data de conclusão deste artigo), Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio não endossaram a tese da mutação constitucional. Sintetizando os argumentos dos precitados Ministros, foi estabelecido que
suprimir competências de um Poder de Estado, por via de interpretação constitucional,
colocaria em risco a própria lógica do sistema de freios e contrapesos. Embora a Constituição Federal, de 1988, tenha redesenhado a relação entre os poderes, fortalecendo
o papel do Supremo Tribunal Federal, ao dotar, por exemplo, as suas decisões de efeito
vinculante e eficácia erga omnes nas ações diretas de constitucionalidade e nas ações
declaratórias de constitucionalidade (art. 102, § 2º), isso, no entanto, não se deu em
detrimento das competências dos demais poderes. A impossibilidade de se cogitar de
mutação constitucional decorre dos limites formais e materiais que a própria Lei Maior
estabelece quanto ao tema, a começar pelo que se contém no art. 60, § 4º, inciso III, da
CF/1988, que confere à separação dos poderes dignidade de cláusula pétrea, que sequer pode ser alterada por meio de emenda constitucional.
O Ministro Teori Zavascki, que foi acompanhado pelos Ministros Luis Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello, asseverou que, não obstante os debates acerca da
mutação constitucional, da necessidade de conferir eficácia à doutrina da separação de
poderes e da impossibilidade de se reconhecer inconstitucionalidade da própria Constituição, existem decisões do STF – além daquelas que declaram a inconstitucionalidade,
únicas que, por disposição constitucional expressa (art. 52, inciso X) estão sujeitas à
edição, pelo Senado Federal, de resolução para lhes conferirem eficácia erga omnes –,
proferidas em controle difuso, que gozam de força expansiva ultra partes. O Ministro Teori Zavascki ressaltou, então, que, enquanto a reclamação aguardava para ser julgada,
fora editada a Súmula Vinculante nº 26, que possui eficácia vinculante e que está em
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 167
confronto com o que havia decidido o juiz de Rio Branco/AC. Em face disso, conheceu
da reclamação e lhe deu provimento, não porque houve afronta ao que fora decidido no
HC nº 82.959/SP, mas em razão da violação do entendimento sedimentado na Súmula
Vinculante nº 26.
Como se percebe, a questão acerca da possibilidade de haver mutação constitucional – posicionamento ativista – não restou decidida de modo definitivo. Ademais, considerando que os Ministros Carmem Lúcia (que estava no exterior em viagem oficial), Dias
Toffoli e Luiz Fux (que sucederam Ministros aposentados e que já tinham votado) não
votaram, o entendimento poderá, em tese, mudar caso venha a ser novamente enfrentado no Supremo Tribunal Federal. Devemos ficar atentos!
Esclarecido isso, é oportuno citar as palavras de Lima (2014, p. 190), que escreveu
denso trabalho sobre ativismo:
(...) a classificação entre dimensões na tentativa de aproximação aos diversos temas e questões abarcadas pela contraposição entre ativismo e
autocontenção procedida mostra que esses aspectos – e os problemas teóricos que representam – estão entrelaçados. A possibilidade de intervenção
judicial é influenciada pela discussão doutrinária, de importante papel
na configuração dos limites para a atividade – sejam eles procedimentais
(modo de exercício) ou materiais (temas em que a intervenção das cortes
é recomendável). A perspectiva político-ideológica – importante na análise
empírica – também deve ser contextualizada na metodologia jurídica – que
fundamentou importantes escolas, como a defesa de um “formalismo”. E
todos esses pontos refletem na compreensão do espaço da fiscalização de
constitucionalidade, em suas relações com os demais órgãos jurisdicionais
e, principalmente, com os demais ramos de governo. O círculo completa-se, em virtude das repercussões deste tema no arranjo democrático.
Reverbel (2009, s/p), assevera que o sistema de controle de constitucionalidade
brasileiro favorece o ativismo. E justifica isso nos seguintes termos:
Se na Alemanha, na Espanha, na Itália, ou melhor, no sistema Europeu
a competência para declarar a inconstitucionalidade de uma lei é restrita
a uma Corte Suprema, a um Tribunal Constitucional; no Brasil, todos os
juízes e tribunais são capazes de declarar a inconstitucionalidade de uma
lei. O ativismo, assim, na busca de uma solução mágica, na extração de
um princípio que fundamente a decisão (razoável ou não), acaba por afrontar à separação de poderes, faz do juiz um verdadeiro legislador e inclusive
ex post facto, contrariando o Estado de Direito, em que impera a lei, como
decorrência justiça.
O controle de constitucionalidade alcança sua legitimidade se concretiza a Constituição, atribuindo às demandas respostas constitucionalmente adequadas; em contrapartida, quando ele é feito a partir da vontade ou da consciência do interprete, não
representa uma concretização do texto constitucional, mas, sim, o seu desvirtuamento.
4.
Argumentos contra os decisionismos
É inegável a estreita relação existente entre Direito e política. Contudo, o que temos visto, com frequência, em todas as esferas do Poder Judiciário, são decisões baseadas em juízos de consciência – ou de conveniência –, sem qualquer comprometimento
com a efetiva aplicação do Direito. Como afirma Trindade (2012, pp. 121-122):
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 168
(...) para concretizar os direitos fundamentais, conferiu-se aos juízes discricionariedade para invocar o justo contra a lei. E, assim, após muitos
anos de luta contra o positivismo legalista, incorremos em outro equívoco: substituímos o juiz boca de lei pelo juiz que pondera princípios e que,
portanto, decide conforme sua consciência, a partir de valoração de ordem
subjetiva, passando, assim, de um mecanismo na aplicação do direito para
um decisionismo (...), que vem reforçado pela ideia de que a discricionariedade é algo natural à decisão judicial.
É, pois, necessário combater os decisionismos. A atividade dos juízes não pode ser
permeada por subjetividade. O Judiciário não é legislador positivo. Rocha (2009, pp.
130-136) faz duras críticas ao que denominou de judicialização da sociedade. Argumenta que, ao ter sido permitida a edição, pelo Supremo Tribunal Federal, de Súmulas
Vinculantes, a Suprema Corte foi colocada na mais importante posição no processo de
produção do Direito, pois passa a ditar a forma como devem ser interpretados os textos
normativos, cuja interpretação deve obrigatoriamente ser seguida pelos demais órgãos
de decisão e, inclusive, pela administração pública.
O motivo pelo qual foi conferido tamanho poder para onze pessoas – escolhidas
pelas elites, indicadas pelo Presidente da República, cujos nomes são homologados
de modo burocrático pelo Senado Federal – é atender aos interesses de mercado capitalista. Quando é invocada a necessidade de resguardar os valores da igualdade e
da certeza jurídica, que são violados quando o Judiciário atribui sentidos diferentes à
mesma lei, em realidade está sendo atendida uma exigência fundamental do mercado,
pois “a moderna empresa capitalista requer uma justiça, cujo funcionamento possa ser
racionalmente calculado” (WEBER apud ROCHA, 2009, p. 134). Ao ser concentrado no
STF o poder de ditar, com força normativa vinculante, o sentido em que os textos normativos devem ser entendidos, o que pode ser feito através de procedimento sumário
(ações diretas), também são atendidos os interesses do mercado, pois, em verdade, exclui a competência dos juízes para interpretar as leis, eliminando, assim, o pluralismo
jurisprudencial, mediante o estabelecimento da garantia da previsibilidade das decisões
judicias (ROCHA, 2009, p. 134).
Rocha (2009, pp. 128-136) trabalhou as causas e consequências da adoção da Súmula Vinculante no ordenamento jurídico brasileiro. Em magistral colocação, esclarece:
Em essência, a súmula vinculante só em pequena parte atende aos interesses da coletividade, ao tutelar o princípio da igualdade. No mais, está
a serviço do sistema do mercado, que não tem condições de permitir que
seus interesses vitais (econômico) fiquem na dependência de sentenças
judiciais de milhares de juízes portadores de diferentes ideologias (...). De
modo que a súmula vinculante é uma solução “arguta” do sistema capitalista porque, sob o pretexto de defender valores relevantes para a sociedade, esvaziou a competência dos juízes que constituem mais de 90% dos
membros do Judiciário e, ao mesmo tempo, concentrou o poder no órgão
de cúpula do sistema, de fácil acesso às elites e o mais distanciado dos
problemas que afligem o povo. (ROCHA, 2008, pp. 134-135)
A ocupação, pelo Poder Judiciário, da esfera legislativa, desvirtua o sentido democrático das instituições. Para evitar isso, Cappelletti (1999, p. 100) aponta uma saída
muito lúcida:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 169
Certamente, também os juízes podem se transformar em burocratas distantes e isolados do seu tempo e da sociedade, mas, quando isto ocorre,
um sadio sistema democrático tem a capacidade de intervir e corrigir a
situação patológica, mediante instrumentos de controles recíprocos. Em
particular, a norma inaceitável, judicialmente criada, pode ser corrigida
ou ab-rogada mediante um ato legislativo e, no limite, até por meio de uma
revisão constitucional.
A solução apontada por Cappelletti, embora consciente e correta, se torna ineficaz
quando o Judiciário, de forma arbitrária, não respeita atos legislativos posteriores e
contrários ao que fora decidido. Para exemplificar, podemos mencionar que, após haver cancelado a Súmula nº 394, excluindo do foro privilegiado os agentes públicos que
deixassem o exercício da função (QO no Inq. nº 687/DF), o STF invalidou lei editada
pelo Congresso Nacional (Lei nº 10.628/02) que restabelecia a orientação anterior. O
acórdão do STF considerou haver usurpação de sua função de intérprete final da Constituição (ADI nº 2.797/DF). O exemplo dado serve de alerta!
Teorias que apostam no subjetivismo do aplicador acabam permitindo discricionariedades e arbitrariedades. Em regimes e sistemas jurídicos democráticos, não existe
espaço para que a convicção pessoal do juiz seja o critério para resolver as indeterminações da lei.
Para evitar o pernicioso decisionismo – e julgamentos autoritários e arbitrários,
não comprometidos com qualquer base teórica que os sustentem de maneira racional
– é necessário que “as decisões judiciais possam alcançar um nível de aceitabilidade
geral” (TEIXEIRA, 2002, p. 95), pois “a decisão a ser proferida não pode ser satisfatória
exclusivamente para quem a dita” (TEIXEIRA, 2002, pp. 94-95). Nesse contexto, é importante ressaltar que “o conceito de aceitabilidade encontra-se ligado ao conteúdo material da interpretação e não à forma do raciocínio ou às propriedades do procedimento
de justificação nele mesmo” (TEIXEIRA, 2002, p. 95). Com efeito,
(..) a aceitabilidade substancial teria como referência duas propriedade
distintas: de um lado a solução tem que estar de acordo com as leis, como
forma de assegurar a presunção de legalidade; por outro lado a solução
encontrada não pode ir contra a moralidade social vigente, como forma de
assegurar a presunção de razoabilidade. (TEIXEIRA, 2002, p. 96)
O Estado Democrático de Direito é constituído a partir de dois preceitos que jamais
podem ser desprezados: a democracia e os direitos fundamentais. Interpretar a Constituição e as leis não é um ato de vontade. Decidir não é um ato de escolher aquilo que,
no aspecto subjetivo, parece ser o mais acertado para aquele que está decidindo. Nas
linhas anteriores, demonstramos que é necessário estabelecer uma racionalidade para
legitimar a decisão judicial. Essa racionalidade não se dá a partir de decisionismos e
interpretações subjetivas dos textos normativos; pelo contrário, as decisões somente
serão racionalmente aceitáveis quando puderem ser universalizadas.
5.
COnclusões
Em um país como o Brasil, que consagra um extenso rol de direitos sociais – que
também são fundamentais –, é inevitável que ocorra um acentuado grau de judicialização da política, notadamente em razão da ausência de efetivas prestações sociais no
plano das políticas públicas. Como o governo não as faz, a população corre para o Judiciário, buscando a efetivação dos mais básicos direitos, tais como saúde, moradia e
educação.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 170
Ademais, existe uma flagrante inércia do Poder Legislativo, que gera certa desilusão
com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade
dos parlamentos em geral. E mais, os próprios atores políticos, muitas vezes, preferem
que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às
quais exista desacordo moral razoável na sociedade.
Nessa quadra, todos os dias ouvimos falar de juízes que decidem de acordo com a
consciência deles. Ao reconhecer que o juiz pode decidir conforme a consciência retira-se o caráter institucional de que devem se revestir as decisões do Poder Judiciário. Isso
não dá segurança para ninguém, mas apenas a sensação de que temos que torcer para
que o juiz que decide nossa causa seja um “homem de bem”.
Devemos preservar a autonomia do Direito e afastar decisões pautadas em juízos
morais, políticos ou econômicos. O ensino jurídico deve ser repensado e reorganizado.
É necessário que os alunos, tanto da graduação, quando – e principalmente – da pós-graduação, compreendam os diversos pensamentos que inspiram a teoria da decisão
judicial, bem como um aprofundamento da compreensão da realidade jurídica e social.
O uso da ponderação se transformou em álibi para decisionismos. Para mitigar
isso, é necessário estabelecer condições para a realização de um controle da interpretação. A adequada fundamentação das decisões é um dever fundamental dos juízes e tribunais e, nessa matéria, é necessário estabelecer uma cultura de prestação de contas.
O juiz não deve apenas estar convencido do acerto da decisão que está tomando; deve
convencer a coletividade de que, naquela situação, a decisão adotada é a correta para o
caso concreto.
REFERÊNCIAS
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a política. Migalhas. 5 fev. 2014. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014 /2/art20140204-06.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2014.
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LIMA, Flávia Santiago. Jurisdição constitucional e política: ativismo e autocontenção
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 171
REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. Ativismo judicial e estado de direito. Revista Eletrônica do Curso de Direito UFSM, Santa Maria, v. 4, n. 1, 2009. Disponível em <http://
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SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo constitucional: Nova concepção de jurisdição. Rio de Janeiro: Método, 2008.
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário.
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TRINDADE, André Karam. Garantismo versus neoconstitucionalismo: os desafios do
protagonismo judicial em terrae brasilis. In: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luis; e
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 172
A EFETIVIDADE DO MODELO DE GESTÃO DE RODOVIAS
EM REGIME DE PARCERIA PÚBLICO- PRIVADA:
UM ESTUDO CRÍTICO SOBRE A BR 232
Maria Ivanúcia Mariz Erminio
Roberta Cruz da Silva1
1.
Introdução
A concessão de serviço público no Brasil ganha destaque especial com o surgimento
do regime de Parceria Público-Privada (PPP’s), regidas no Brasil pela Lei 11.079/2004.
A Administração Pública se utiliza deste mecanismo com o intuito de viabilizar obras
e serviços de fundamental importância para o desenvolvimento econômico e social do
país. Destaque-se, que os contratos de PPP’s são de longa duração, com limite máximo
de 35 anos e valor não inferior a vinte milhões de reais, o que pode o que pode acarretar
riscos fazendo o instituto ser alvo de críticas.
Neste contexto, o presente trabalho, desenvolvido como projeto de Iniciação Cientifica da Faculdade Asces (INICIA) com cerne nas áreas de direito administrativo, econômico e constitucional, teve como objeto o estudo sobre as Parcerias Público-Privadas.
Por meio do método de pesquisa analítico e documental, e da análise crítica das minutas de Contratos de Parceria, como também doutrinas relacionadas às áreas de direito administrativo, direito constitucional e direito econômico, economia pública brasileira e finanças públicas, foram analisados os riscos econômicos como também possíveis
ilegalidades presentes no contrato de concessão administrativa da BR 232, sobretudo
em relação a publicidade/transparência do estado e competição em relação à licitação e
escolha do concessionário para execução do contrato.
Inicialmente, abordar-se-á os elementos característicos dos contratos de concessão
com ênfase na modalidade administrativa dos contratos de PPP.
Em um segundo momento, é feita a análise dos riscos e suas consequências para
as finanças públicas, e, por fim, a análise do objeto de estudo do presente trabalho, o
projeto de concessão administrativa da BR 232, por meio de analise crítica e comparação com outros projetos de concessão executados ou em andamento.
Assim, o presente trabalho propõe-se a realizar um estudo crítico sobre o regime
de Parceria Público-Privada em sua modalidade administrativa que foi proposta para a
revitalização da BR 232 (Recife-Caruaru), no estado de Pernambuco.
2.
Elementos característicos das modalidades Patrocinada e Administrativa dos
contratos de PPP
1 Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de Direito
Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e das pós-graduações da
Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 173
O instituto da Parceria Público-Privada, sancionado pela Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004, difere das concessões comuns devido ao compartilhamento de investimentos, riscos, responsabilidades e ganhos entre o parceiro privado e o Estado. As
condições do contrato podem variar, mas geralmente estão relacionadas ao financiamento, elaboração do projeto, construção, operação e manutenção buscando a rapidez
e eficiência do serviço. (DI PIETRO, 2012. p.147)
As parcerias público-privadas são divididas em duas modalidades, segundo o
artigo 2º da Lei 11.079/2004: a modalidade patrocinada e a modalidade administrativa.
Segundo Giambiangi:
Em termos gerais, a experiência internacional aponta como os principais
benefícios das PPP: i) a execução de projetos inviáveis como concessões
comuns; ii)a antecipação de investimentos; iii)a transferência dos riscos
de construção e operação do setor público para o parceiro privado; vi) e
a possibilidade de melhorar o sistema de contratação em razão do maior
nível de concorrência. (2008.p. 442)
A concessão patrocinada difere da concessão de serviço público comum principalmente a forma de pagamento, a repartição de riscos e ganhos econômicos e as garantias
dadas ao parceiro privado. (DI PIETRO, 2012. p.150)
Nesta modalidade, além da contraprestação dada pelo Estado, há o pagamento
de tarifas cobradas aos usuários dos serviços, diferentemente da concessão comum, na
qual apenas o parceiro privado arcar com custos. Pode envolver concessão de serviços
como também obras públicas. (DI PIETRO, 2012. p.153)
Já na modalidade de concessão administrativa, em uma primeira interpretação,
pode-se aferir que esta tem por objeto a prestação de serviço público, porém, há de se
concluir que a prestação não é o único objeto do contrato devido a aproximação com a
modalidade de empreitada. Segundo o parágrafo 2º da Lei 11.079/2004 “a concessão
administrativa é o contrato de prestação de serviços que a administração pública seja
usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obras ou fornecimento de
bens”. (DI PIETRO, 2012. p.153)
Para configurar o contrato de empreitada, a Administração Pública “comete ao
particular a execução da obra ou serviço, para que a execute por sua conta o risco, mediante remuneração prefixada”. (DI PIETRO,2013. p. 342)
Na modalidade de Concessão Administrativa, o parceiro privado recebe do poder
público o pagamento de uma contraprestação, começando a recebê-la assim que o serviço estiver disponível, não tendo nenhuma cobrança de tarifa ao usuário.(MOTTA, 2011.
p.267)
Os contratos de parceria também trouxeram algumas vedações previstas na
Lei 11.079/2004, não podendo haver contratos inferiores a vinte milhões de reais (R$
20.000.000,00) tendo como prazo mínimo de duração do contrato 5 anos e limite de
máximo 35 anos. (DI PIETRO, 2012. p. 151)
Estas características poderiam inviabilizar a adoção destas modalidades de parceria fora do âmbito federal, porém, com a evolução do instituto e com as mutações
socioeconômicas já se encontra a adoção nos âmbitos estaduais e municipais, como no
caso da parceria público-privada na modalidade patrocinada realizada pelo governo de
Pernambuco e Grupos Ricardo Brennand e Grupo Odebrecht, o Sistema Viário e Ponte
de Acesso a Reserva do Paiva no estado de Pernambuco. (www2.ppp.segov.pe.gov.br)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 174
Deve-se considerar que, tendo em vista o artigo 3º da Constituição Federal de
1988, “a ausência imediata de recursos não autoriza a que medidas de interesse público
não sejam imediatamente promovidas, sob pena de incorrer em estagnação econômica”,
o que justificaria a adoção de tal instituto para viabilizar obras de infraestrutura importantes para o desenvolvimento socioeconômico do país. (SOUTO, 2005. p. 28)
Assim, para que uma parceria tenha seu objetivo alcançado, estas devem trazer
para o setor público, além da economia inerente a instalação e gestão do projeto, algum
ganho relativo a eficiência e a técnica da experiência especializada do setor privado relativo a atividade. (SOUTO, 2005. p. 28)
O setor público planeja suas metas e prioridades, relativos ao exercício de suas
funções, dentre elas execução de projetos de infraestrutura, observando aspectos como
estes, relativos à eficiência e custo benefício de determinados projetos.
3.
Risco das Parcerias para as Finanças Públicas
As despesas públicas podem ser classificadas em três prismas principais: por
finalidade do gasto, que consiste nas funções desempenhadas pelo Estado; pela natureza, onde se identifica o tipo de despesa podendo ser de custeio, investimento, transferências ou intervenções; e por agente encarregado da execução do gasto, que consiste
na despesa quanto ao quadro funcional. (REZENDE, 2011.p. 68)
Nas classificações de despesas por finalidade, são tidos como parâmetros funções
que podem ser divididas por programas ou subprogramas, ou seja, a forma como se
dividem as atividades do governo federal, por exemplo: a produção de bens públicos,
seguridade social, saúde e educação, infraestrutura econômica, dentre outros projetos
do governo. Diante desta divisão, é feita a análise e planejamento do capital público tanto no que diz respeito à arrecadação como também a delimitação de objetivos e metas
para estipular como será aplicado os recursos da melhor maneira encontrada, em cada
função desempenhada pelo setor público. (REZENDE, 2011.p. 70)
A Constituição Federal de 1988 estabelece diretrizes, em seu artigo 165, relativas
à Lei Orçamentaria Plurianual, à Lei de Diretrizes Orçamentarias e à Lei Orçamentaria
Anual. Estas leis são de suma importância para o planejamento do gasto público, pois
é por meio dos projetos contidos nelas que o governo irá gerir o gasto.
rias:
Rezende explica como se dá o processo de envio e aprovação das Leis OrçamentaAté o dia 31 de agosto do primeiro ano de mandato presidencial, o Poder
Executivo envia o projeto do PPA (Lei Orçamentaria Plurianual) ao Congresso Nacional, que vigorará de seu segundo ano de mandato até o fim do
primeiro ano do mandato do próximo Presidente da República. A finalidade dessa vigência é a tentativa de assegurar continuidade administrativa
entre uma gestão e outra. (2011. p. 100)
O Plano Plurianual tem como objetivo estabelecer metas que serão executadas
durante todo o mandato do Chefe do Poder Executivo, que, atualmente consiste em quatro anos. É o plano de maior duração pois estabelece as diretrizes gerais dos programas
do governo vigente.(ALBUQUERQUE, 2008. p.19)
Ainda a respeito das Leis Orçamentarias, Rezende comenta:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 175
O Projeto da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentarias) é encaminhado ao
Congresso até o dia 15 de abril de cada ano. Entre outras atribuições, essa
lei estabelece metas e prioridades para a elaboração do orçamento, limita
as despesas de capital e estabelece a política de aplicação das agências
financeiras oficiais de fomento para o ano seguinte. (2011. p.100)
O Plano de Diretrizes Orçamentarias tem como finalidade viabilizar a execução
dos programas governamentais, pois estabelece quais programas do Plano Plurianual
terão prioridade e orienta a elaboração da Lei Orçamentaria Anual. (ALBUQUERQUE,
2008. p. 29)
Sobre a aprovação da Lei Orçamentaria Anual, o processo de aprovação ocorre da
seguinte forma:
O Poder Executivo envia o projeto de LOA ao congresso Nacional até 31
de agosto de cada ano, acompanhado de mensagem em que se analisam
a macroeconômica e a situação fiscal do país. Esse projeto de lei engloba
o orçamento fiscal, o orçamento da seguridade social e o orçamento de
investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto. (REZENDE, 2011.p.
100)
A Lei Orçamentaria Anual traz o orçamento público, e tem como objetivo principal estabelecer o orçamento fiscal, da seguridade social e o orçamento de investimento.
Esta é delimitada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que tem como proposito estabelecer normas de finanças públicas.
A Lei Complementar 101/00, que disciplina a Responsabilidade Fiscal, estipula
diretrizes para o administrador público, impôs disciplina fiscal em relação à elaboração
e execução dos orçamentos da União, Estados e Municípios, regulamentando o artigo
163 da Constituição Federal de 1988. (ALBUQUERQUE, 2008. p. 15)
É utilizado o método do Orçamento-Programa para planejamento orçamentário
dos projetos, pois traz como diferencial de outros métodos, a possibilidade de uma análise objetiva do gasto (REZENDE, 2011. p.104)
Dentro deste método, é feita a avaliação e projeção dos referidos projetos para que
se obtenham dados para tomada de decisões no que diz respeito a como serão alocados
os recursos, para que, mensurado o custo benefício, os melhores projetos sejam selecionados para cada função do Estado.
Esta divisão por função de responsabilidade do Estado é feita com o objetivo de
discriminar a despesa pública, como demonstrado por Mendes:
Em um processo de planejamento orçamento integrados, ressalta a imperiosa necessidade de que os fins os meios orçamentários sejam tratados
de uma forma equilibrada. Considerando que, desde o decreto-lei nº200,
de 25 de fevereiro de 1967, a Administração Pública Federal estabeleceu o
orçamento-programa anual como instrumento de planejamento, a ideia de
discriminar a despesa pública por objetivo, ou seja, de acordo com os seus
fins, já é bastante familiar a todos que atuam nessa área. (MENDES apud
CORE, 2011. p. 210)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 176
Não há um critério único para a seleção de projetos ou regras para ordem de preferência. Porém, para que haja a seleção, é feita a análise do custo beneficio de cada
projeto, então serão selecionados os que são julgados mais vantajosos em cada situação
especifica.
A fórmula base pode ser representada por:
Sendo: B_t= benefícios totais no ano t , C_t= custos totais no ano t, n= período
de tempo para o qual custos e benefícios são computados e i= taxa social de desconto.
A partir da análise, são selecionados os projetos de custo-benefício mais interessantes
ao orçamento público e incluídos nas leis orçamentárias. (REZENDE, 2011. p.114)
Este critério, apesar de ser um dos mais utilizados, é o que também apresenta mais
falhas, pois, o indicador consiste na relação entre o valor presente dos benefícios e o
valor presente dos custos, podendo variar a forma como são manipuladas as variáveis
produzindo resultados diferentes. (CONTADOR, 2012. p. 58). Ainda sobre este indicador, Contador disserta:
Este indicador consiste na relação entre o valor presente dos benefícios e
o valor presente dos custos. Segundo a regra, um projeto deve apresentar
B/C maior que a unidade para que seja viável e, quando maior esta a relação, mais atraente o projeto. Existem várias versões para este indicador.
Alguns autores colocam no numerador o valor presente dos benefícios líquidos e, no denominador, o valor presente dos dispêndios com a implantação. Outros colocam no numerador o valor presente de todas as parcelas
que representam um beneficio e, no denominador, o valor presente de todas as parcelas de custo de implantação, recomposição e até de operação.
(CONTADOR, 2012. p.45)
Assim, o maior problema em identificar quais projetos serão mais rentáveis, é como
mensurar da maneira correta o custo benefício e como manipular as variáveis para chegar a um resultado com a menor margem de erro possível.
A falha nesta programação orçamentária pode gerar a materialização de um risco
“negativo”, ou seja, a materialização de um resultado abaixo do esperado e consequentemente gerar um déficit no orçamento público e assim, o risco da junção de projetos
que foram mal sucedidos, ou um mau planejamento orçamentário, a partir de uma política monetária deficiente, pode gerar uma dívida pública extremamente danosa.
Os artigos 27 e 28 da Lei 11.079/04 mostram os limites da União em relação a
gastos financeiros com parcerias em conexão com a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Art. 27. As operações de crédito efetuadas por empresas públicas ou sociedades de economia mista controladas pela União não poderão exceder a
70% (setenta por cento) do total das fontes de recursos financeiros da sociedade de propósito específico, sendo que para as áreas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde o Índice de Desenvolvimento Humano
– IDH seja inferior à média nacional, essa participação não poderá exceder
a 80% (oitenta por cento).
Art.28. A União não poderá conceder garantia ou realizar transferência
voluntária aos Estados, Distrito Federal e Municípios se a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das parcerias já contratadas por esses entes tiver excedido, no ano anterior, a 5% (cinco por
cento) da receita corrente líquida do exercício ou se as despesas anuais
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 177
dos contratos vigentes nos 10 (dez) anos subsequentes excederem a 5%
(cinco por cento) da receita corrente líquida projetada para os respectivos
exercícios.
§1 Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que contratarem
empreendimentos por intermédio de parcerias público-privadas deverão
encaminhar ao Senado Federal e à Secretaria do Tesouro Nacional,
previamente à contratação, as informações necessárias para cumprimento
do previsto no caput deste artigo.
§2 Na aplicação do limite previsto no caput deste artigo, serão computadas as despesas derivadas de contratos de parceria celebrados pela administração pública direta, autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas, direta
ou indiretamente, pelo respectivo ente, excluídas as empresas estatais não
dependentes.
Dentro destes limites, o orçamento da parceria em somatório com os demais projetos não poderá exceder tal porcentagem, porém, tendo em vista ainda a incerteza do
sucesso de todos os projetos contidos na programação, e o risco do encargo aumentar
de maneira imprevisível, caso haja algum risco negativo materializado, todos os projetos
a serem executados por meio do orçamento público tem uma modelagem delicada.
O artigo 22 faz referência ao artigo 16 da Lei 11.079/04, que disserta sobre o Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP), que consiste em um mecanismo de
reserva ao qual permite a União, em um limite de 6 bilhões de reais, garantir o pagamento de obrigações decorrentes de Parcerias:
Art. 22. A União somente poderá contratar parceria público-privada quando a soma das despesas de caráter continuado derivadas do conjunto das
parcerias já contratadas não tiver excedido, no ano anterior, a 1% (um por
cento) da receita corrente líquida do exercício, e as despesas anuais dos
contratos vigentes, nos 10 (dez) anos subsequentes, não excedam a 1%
(um por cento) da receita corrente líquida projetada para os respectivos
exercícios.
Este mecanismo é alvo de várias críticas, dentre elas, um dos pontos que mais levanta controvérsias diz respeito ao artigo 18, § 7º “ em caso de inadimplemento, os bens
e direitos do Fundo poderão ser objeto de constrição judicial e alienação para satisfazer
as obrigações garantidas.”
Segundo Di Pietro, ainda que o FGP tenha natureza privada, e seu controle é de
responsabilidade de instituição financeira, o fundo é constituído de bens e receitas públicas. Logo, se os bens são da União, por força do artigo 100 da Constituição Federal
de 1988, estes são impenhoráveis. (2012. p. 166)
Se isso fosse possível, estar-se-ia, pela via indireta, alcançando objetivo que o constituinte quis coibir com a regra do referido dispositivo constitucional. A cada vez que
uma pessoa pública quisesse oferecer bens de seu patrimônio em garantia a dívidas, poderia instituir um fundo ao qual esses bens ficariam vinculados. Nem por lei isso pode
ser feito, sob pena de burla ao preceito constitucional. Alias, parece ter sido exatamente
esse o objetivo do legislador ao instituir o Fundo. (DI PIETRO, 2012. p.166)
Assim, o fundo garantidor se torna mais um encargo à receita pública e, caso seja
necessária a sua utilização, é outro instrumento gerador de déficit público.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 178
4.
Risco de déficit público em projetos de concessão
Antes de abordar os riscos envolvidos na adoção da PPP na gestão da BR 232, serão apresentados outros contratos relativos a rodovias públicas brasileiras, para que se
estabeleça uma comparação.
No ano de 2009, o Estado da Bahia iniciou o certame relativo à concessão comum
realizada para revitalização, operação e manutenção nas Rodovias Federais BR 116/BA
e 324/BA, com o inicio da concessão 20/10/2009 e o prazo de duração de 24 anos, a
concessionária Via Bahia, responsável pela execução da concessão divulgou em seu site
suas demonstrações financeiras ao final de cada ano. (http://www.viabahiasa.com.br)
No ano de 2013, a Companhia obteve a receita líquida de 598.137 milhões de
reais, o patrimônio líquido de 249.365 milhões reais e o lucro líquido no exercício de
40.077 milhões de reais, e espera investir recursos na ordem de 386 milhões de reais no
exercício de 2014. (http://www.viabahiasa.com.br/)
Sobre o projeto, o informativo divulgado pela concessionária explica:
A BR-324 compreende uma importante interligação estadual, atravessando uma região de alta densidade demográfica, com várias cidades de médio
porte e próximas entre si. Este trecho interliga a capital Salvador e o município de Feira de Santana que são polos de atração das viagens realizadas
neste trecho, com grande utilização de veículos de passeio e motocicletas.
A BR-116, por sua vez, caracteriza-se pelo intenso tráfego de veículos comerciais, com predomínio de viagens de passagem pela área de influência da rodovia, demonstrando que exerce um papel de eixo de integração
Norte-Sul do país, interligando a região Nordeste às regiões Sul e Sudeste.
(http://www.viabahiasa.com.br/)
Ainda segundo a Companhia, o tráfego se mostrou maior que o esperado no ano
de 2013, o que, segundo a empresa: “O aumento do trafego influencia diretamente na
melhoria da receita operacional”. (http://www.viabahiasa.com.br)
A concessão vem apresentando falhas, como em julho de 2013, onde devido a
uma determinação da Agencia Nacional de Transportes (ANTT), em decorrência das fortes chuvas na região metropolitana de Salvador, foi determinado a diminuição de 50%
da tarifa de pedágio, determinação esta que foi logo suspensa judicialmente, porém,
ainda assim, a resolução impactou no fluxo de caixa da companhia, sendo julho, o único mês em que a arrecadação foi inferior a do ano anterior no mesmo período. (http://
www.viabahiasa.com.br/)
A Companhia vem apresentando, apesar de considerável melhoria em 2013, um
capital circulante negativo. Desde 2012, para tentar reverter a situação, apostou no
alongamento do perfil da divida e também vem investindo na melhoria do serviço para
que através do pedágio, sua principal fonte de recursos, tenha uma maior arrecadação.
(http://www.viabahiasa.com.br/)
Segundo o art. 2°, inciso terceiro, da Lei 8.987/95, a concessão de serviço público
precedida de obra pública “à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre
capacidade para sua realização, por sua conta e risco”. Essas concessões pressupõem
uma certa autonomia de gestão do concessionário, disciplinada e controlada pelo poder concedente. Há riscos econômico-financeiros envolvidos na concessão, porquanto
a remuneração do concessionário estará proporcionada à exploração do negocio (risco
de utilização). Fundamentalmente, o que é de relevo na caracterização da concessão
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 179
está na assunção da obrigação de execução (ao modo de gestão) do serviço público ao
concessionário, extraindo sua remuneração diretamente da exploração do negócio (e de
receitas alternativas vinculadas ao negócio da concessão). (GUIMARÃES, 2012.p. 64)
Esta modalidade apresenta menores encargos ao Poder Público em relação às
parcerias, tendo em vista que o concessionário se responsabiliza totalmente pela obra.
Em 2009, foi aprovado o projeto em regime de Parceria Público-Privada na modalidade de concessão administrativa para a revitalização, operação e manutenção da
Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da Região Portuária do Rio de Janeiro.
(http://www.portomaravilha.com.br)
Este projeto tem como justificativa, além de sua revitalização, a melhoria na mobilidade urbana e melhor aproveitamento do espaço urbano, visando à proteção do patrimônio histórico da região e melhoria nas condições de vida dos moradores da região.
(Manual do Planejamento Estratégico 2009-2012, p.60)
O projeto apresentou um portal criado pela prefeitura do Rio de Janeiro, respeitando o Principio da Publicidade, que cumpre com as exigências da Lei de Transparência, onde foram apresentados relatórios trimestrais, atualizados, sobre a obra, contratos
e licitações, orçamentos e balanços, atas de reuniões dentre outras documentações relativas ao projeto ao alcance do domínio público. (http://www.portomaravilha.com.br)
A obra vem sendo implementada com sucesso. Seu planejamento foi bem estruturado tendo em vista que as obras estão executadas no prazo, e entregues ao usufruto
da população sem maiores transtornos.
Do ponto de vista orçamentário, segundo a minuta da licitação disponível no
portal do projeto, em sua cláusula sexta, a “contraprestação pública mensal será fixa
e correspondente ao montante mensal de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) reajustável, anualmente, segundo a cláusula décima quinta do contrato”. (http://www.
portomaravilha.com.br)
O edital de licitação também estipula como será paga a contraprestação pública
anual: em duas parcelas iguais semestrais obedecendo aos valores, termos e prazos
apresentados no plano de negócios do contrato. (http://www.portomaravilha.com.br)
Ainda na cláusula sexta, o edital de licitação disserta: “A contraprestação Pública
Anual máxima corresponde a duas vezes o valor estimado máximo do contrato, dividido
pelo número total de anos do prazo de vigência do contrato”. Tendo em vista que o valor
do contrato é de R$ 7.609.000.000 (sete bilhões e seiscentos e nove milhões de reais) e
a duração é de 15 anos, este limite será de R$ 1.014.533.333,00 (um bilhão, quatorze
milhões, quinhentos e trinta e três mil e trezentos e trinta e três reais). (http://www.
portomaravilha.com.br)
No Manual do Planejamento Estratégico 2009-2012 da cidade do Rio de Janeiro,
a presente obra se apresenta como meta de urbanização, onde primeira etapa do projeto
foi concluída no prazo, por intermédio do investimento inteiramente privado.
No Manual já mencionado, apresenta-se o cronograma de despesas, com o diferencial do financiamento, que ocorre por meio dos Certificados de Potencial Adicional
de Construção (Cepacs). O cronograma apresentado demonstra que, até 2016 as obras
já se encontrarão concluídas. (Manual do Planejamento Estratégico 2009-2012, p.60)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 180
Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) foram arrematados em lote único, o que garantiu recursos para todas as obras e serviços
da operação urbana Porto Maravilha nos 5 milhões de metros quadrados
(m²) da Região do Porto do Rio de Janeiro por período de 15 anos. (http://
portomaravilha.com.br/)
Por intermédio desta inovadora operação, o Porto Maravilha não receberá contraprestações dos cofres públicos, logo, não há que se falar em risco orçamentário e análise da Lei Orçamentaria anual do Estado do Rio de Janeiro já que todo o recurso será
oriundo dos recursos do CEPACS. (http://portomaravilha.com.br/)
O site informativo do projeto elenca detalhes sobre a operação:
Em uma engenhosa operação financeira articulada pela Prefeitura do Rio
de Janeiro, por meio da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região
do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), o Fundo de Investimento Imobiliário
Porto Maravilha (FIIPM), criado especialmente para a negociação dos Cepacs da operação, chegou ao mercado e abriu caminho para o investimento
orçado em R$ 8 bilhões em obras e serviços pelos 15 anos. Assim, a requalificação urbana da Região Portuária não recebe recursos do orçamento do
Município do Rio. À época, o prefeito Eduardo Paes acompanhou o leilão
eletrônico no Píer Mauá e comemorou. “A Operação Urbana Consorciada
requalificará a Região Portuária por meio da maior Parceria Público-Privada (PPP) do Brasil, sem ônus aos cofres públicos. Hoje vivi o dia mais feliz
do meu mandato”.(http://portomaravilha.com.br/)
Com isso, a concessão administrativa em questão encontrou um mecanismo alternativo para romper a dificuldade em conciliar o orçamento público limitado e comprometido com diversos projetos com a parceria em questão, como também, garantir de
maneira mais efetiva o capital privado, que, a depender da saúde financeira da concessionária, podendo entrar em falência e comprometer o sucesso da parceria, mecanismo
o qual não seria necessário caso os meios de garantia da concessão patrocinada se
mostrassem eficientes.
5.
A (in)efetividade do Projeto de Concessão Administrativa da BR-232(RecifeCaruaru)
No ano de 2013 o Governo do Estado de Pernambuco lançou o edital de licitação
na modalidade de concorrência com o critério da menor contraprestação básica para
concessão administrativa da Rodovia BR 232, em Pernambuco. (http://www.segov.pe.
gov.br/)
O governo do Estado sofreu duras críticas em relação a esta concessão, inicialmente em relação a problemas de transparência com a divulgação do edital e o prazo dado
para que eventuais interessados se manifestassem, o que pode ter prejudicado uma
competição efetiva entre grupos privados interessados no contrato.
Outro ponto a ser questionado é o fato de que a principal empresa ganhadora da
licitação, foi a mesma que realizou estudos do projeto e ofereceu a proposta, a Odebrecht Transport Participações S.A. Apesar da legislação permitir que grupos com interesse
realizem estudos necessários com a finalidade de encorajar grupos capazes de executar
o projeto, este instituto não poderá ser utilizado para beneficiar algum grupo especifico
na licitação. (http://www.segov.pe.gov.br)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 181
Tendo em vista que o prazo final para que grupos privados manifestassem interesse
na licitação da BR 232 se esgotou no dia 5 de novembro e a divulgação do edital se deu
no dia 7 de outubro, existiu uma grande chance do grupo que realizou o estudo tenha
obtido vantagem sob os demais caracterizando uma afronta ao Princípio da Isonomia e
um mau uso do instituto do PMI. (http://www.segov.pe.gov.br)
Tem se observado que o Estado de Pernambuco vem cometendo falhas no que diz
respeito à divulgação de informações de projetos de Concessões, mesmo em parcerias
que não se enquadram em exceções que admitem a ausência de publicidade, ou por
questões de contratação sigilosa. (http://www2.ppp.segov.pe.gov.br)
O artigo 37 da Constituição Federal de 1988, em seu caput, disserta a respeito dos
princípios a serem obedecidos pela Administração Pública: ”A administração pública
direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência”.
No que diz respeito ao Princípio da Publicidade, Justen Filho comenta:
A publicidade desempenha duas funções. Primeiramente, objetiva permitir
o amplo acesso dos interessados ao certame. Refere-se, nesse aspecto, à
universidade da participação no processo licitatório. Depois, a publicidade orienta-se a facultar a verificação da regularidade dos atos praticados.
Parte-se do pressuposto de que as pessoas tanto mais se preocuparão em
seguir a lei e a moral quanto maior for a possibilidade de fiscalização da
conduta. Sendo ilimitadas as condições de fiscalização, haverá maior garantia de que os atos serão corretos. (2012. p.54 )
Ainda sobre o Princípio da Publicidade, o artigo 4º, inciso VIII, da Lei 12.527/2011,
lei que regula o acesso a informações, prevê “VIII – integridade: qualidade da informação
não modificada, inclusive quanto à origem, trânsito e destino”.
O grupo Odebrecht realizou estudos técnicos e forneceu dados para o Projeto
da concessão administrativa da BR 232, sendo este o principal vencedor da licitação, e
vem sendo uma das principais organizações privadas a administrarem as parcerias do
estado de Pernambuco. (http://www2.ppp.segov.pe.gov.br)
Estudos técnicos, como os realizados pelo Grupo para tais empreendimentos, são
permitidos por meio do instituto do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI),
que consiste em um instrumento o qual a Administração Pública antes da fase de elaboração de contratos, da permissão ao setor privado, para executar estudos técnicos
para o desenvolvimento do projeto que se pretende implementar, não podendo este instrumento ser utilizado para privilegiar nenhum ente no momento da licitação. (MOTTA
apud JUNQUEIRA, 2011. p.362)
Com o intuito de garantir os princípios da isonomia e impessoalidade que devem
reger o procedimento, duas das principais preocupações ao se realizar uma licitação
são: encorajar a entrada no procedimento de participantes capazes de prestar o serviço
da melhor forma e maximizar a concorrência entre esses participantes, impedindo que
haja situações onde se materializem barreiras de entrada na competição desnecessárias
favorecendo algum concorrente. (RIBEIRO, 2011. p. 16)
Diante do exposto, há de se concluir que houve um uso inadequado do instituto
do PMI, instituto que não poderá ser utilizado para beneficiar algum grupo especifico na
licitação posterior ao estudo realizado, o que, com um intervalo de tempo para proposição de propostas por outros grupos privados tão reduzido, acabou de maneira direta
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 182
ou indireta ocorrendo, ferindo assim o Princípio Constitucional da Isonomia e princípios
básicos inerentes à Administração Pública, como a impessoalidade, moralidade, probidade administrativa, igualdade e publicidade.
Além de críticas em relação ao Princípio da Publicidade e transparência, houve
também, censuras ao planejamento orçamentário, onde o portal da Transparência Brasil classificou o projeto como “absurdo”. Diante de tantas críticas, o Governo do Estado
tentou alterar o tipo de concessão de Administrativa para Patrocinada sem sucesso,
ocasionando no arquivamento do projeto ao final de 2013.
Com relação a dados orçamentários do projeto da Concessão Administrativa da
BR232, o valor do contrato foi estipulado em R$ 1.011.810.000,00(um bilhão, onze
milhões e oitocentos e dez mil reais), com a duração de 25 anos. (http://www.segov.
pe.gov.br)
A contraprestação paga pelo Estado a partir do 25° mês, ou seja, no início do terceiro ano do contrato, quando as obras estivessem finalizadas e o projeto em operação,
de acordo com a Lei 11.079/04, onde a contraprestação a ser paga pelo Poder Público
se iniciaria ao termino das obras e início da execução do serviço. (http://www2.ppp.segov.pe.gov.br). Tal contraprestação ficaria estipulada em R$9.600.000,00 (nove milhões
e seiscentos mil reais) mensais, o que totalizaria, ao ano, R$115.200.000,00 (cento e
quinze milhões e duzentos mil reais). (http://www.segov.pe.gov.br)
Primeiramente, a contraprestação, em 23 anos, totalizaria a receita bruta de
R$2.649.600.000,00 ( dois bilhões, seiscentos e quarenta e nove milhões e seiscentos
mil reais), valor incoerente com o valor total do contrato, onde, em sua somatória já integralizaria o custo para revitalização, operação e manutenção do presente projeto.
O demonstrativo financeiro presente no anexo da minuta do contrato apresentou
na tabela de fluxo de caixa a receita líquida, R$2.415.000.000,00(dois bilhões, quatrocentos e quinze milhões de reais), valor que consiste a receita real, retiradas as deduções.
(http://www.segov.pe.gov.br)
No mesmo anexo, é apresentado o quadro de despesas ao longo dos 25 anos, onde,
incluídos os valores de recuperação e triplicação da BR 232, instalações operacionais,
conservação especial, equipamentos, veículos, sistemas de controle, indenizações , estudos prévios, meio ambiente e demais ampliações e melhoramentos durante os 25 anos
não ultrapassariam 900 milhões, totalizando R$868.300.000,00 (oitocentos e sessenta
e oito milhões e trezentos mil reais). (http://www2.ppp.segov.pe.gov.br)
O projeto, portanto, apresentou três valores incoerentes: primeiro o valor total do
contrato é superior ao valor apresentado pelo estudo dos valores necessários previstos
para execução da obra, e estes dois valores são extremamente inferiores à receita gerada
pela contraprestação ao longo do contrato que totalizou mais de 2,5 bilhões de reais.
(http://www2.ppp.segov.pe.gov.br)
Diante do exposto, há de se concluir que os cofres públicos do estado de Pernambuco seriam onerados, de maneira acentuada, pela revitalização da BR 232, onde o
grupo privado obteria um lucro extremamente alto.
Analisando a Lei Orçamentaria Anual do Estado de Pernambuco para o ano de
2014, o total de despesas do tesouro do estado, incluídas todas as funções, foi de R$
30.364.426.600,00 (trinta bilhões, trezentos e sessenta e quatro bilhões, quatrocentos
e vinte seis mil e seiscentos reais). (http://www2.transparencia.pe.gov.br)
Para encargos como saúde e educação, a título de comparação, a despesa não
ultrapassou 8,5 bilhões neste ano, e sua reserva de contingência não ultrapassou 94
milhões. (http://www2.transparencia.pe.gov.br)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 183
Tendo em vista estes dados, há de se concluir que, em um estado com um demonstrativo de despesas tão limitado, gastos com serviços essenciais baixos e reduzida reserva de contingência, o projeto seria demasiadamente dispendioso ao orçamento público,
observando que, diante deste cenário, o acréscimo de uma contraprestação no valor de
aproximadamente 115 milhões e 200 mil reais, em que o lucro privado viria a ser quase
duas vezes maior que o custo do contrato, a parceria não seria vantajosa ao Estado de
Pernambuco.
6.
Conclusão
O instituto das Parcerias Público-Privadas descritas na Lei 11.079/2004 vem
sendo utilizado pela Administração Pública com o intuito de viabilizar obras e serviços
de fundamental importância para o crescimento econômico e social do país. Porém, este
instituto vem sendo alvo de críticas, pois são contratos de longa duração e de valores
superiores a 20 milhões de reais, podendo gerar déficits no orçamento público. Diante
das concessões estudadas, a única que apresentou resultados positivos foi a concessão administrativa do Porto Maravilha, porém a mesma não se utiliza de remuneração
oriundas do tesouro do estado do Rio de Janeiro, e sim de uma operação financeira articulada pela Prefeitura do Rio de Janeiro onde se utilizou recursos da arrematação dos
Certificados de Potencial Adicional de Construção, valor o qual financiará a concessão
durante o prazo de 15 anos.
Em relação à proposta de PPP para a gestão da BR 232 (Recife-Caruaru), em Pernambuco, duras críticas foram realizadas. Inicialmente, em relação a problemas de
transparência com a divulgação do edital e o prazo dado para que eventuais interessados se manifestassem, que consistiu em aproximadamente um mês, o que prejudicou
uma competição efetiva entre grupos privados interessados no contrato, tendo em vista
ainda que a principal empresa ganhadora da licitação, foi a que realizou estudos do
projeto e ofereceu a proposta, a Odebrecht Transport Participações S.A., onde, apesar
da legislação permitir que grupos com interesse realizem estudos necessários com a finalidade de encorajar empresas capazes de executar o projeto, este instituto não poderá
ser utilizado para beneficiar algum grupo especifico na licitação, caracterizando uma
afronta ao princípio da isonomia e um mau uso do instituto do PMI, como também houve falhas graves no planejamento orçamentário.
Assim, há de se concluir que o projeto de revitalização da BR 232 teria um custobeneficio baixo, seria demasiadamente dispendioso ao Estado de Pernambuco e ainda
há indícios de que a licitação para escolha do parceiro privado se realizou de maneira
ilegal, ferindo princípios constitucionais e administrativos.
A ideia da PPP, para essa obra, não deve ser abandonada: a rodovia tem extrema
importância para o desenvolvimento socioeconômico do Estado. Mas, todas as falhas
apresentadas devem ser sanadas e, sobretudo, é preciso repensar o modelo de concessão administrativa, muito oneroso para o Estado, adotando-se a concessão patrocinada,
que divide os custos com os usuários, mediante a cobrança de tarifas módicas, e permite a prestação de um serviço público de qualidade, sem onerar, demasiadamente, os
cofres públicos.
REFERÊNCIAS
Legislação
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 184
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prestação de serviços públicos. Diário Oficial da República Federativa Do Brasil. Brasília, 1995.
BRASIL, Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Lei das Parcerias Público-Privadas. Diário Oficial da República Federativa Do Brasil. Brasília, 2004.
Doutrina
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GIAMBIANGI, Fábio. Finanças Públicas teoria e pratica no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
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Acesso
em: 20/03/2014.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 186
MECANISMOS DE TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
ATRAVÉS DOS SISTEMAS REGIONAIS EUROPEU E INTERAMERICANO
Caroline Alves Montenegro1
1.
Introdução
Este trabalho pretende abordar o Sistema Interamericano e o Europeu de proteção dos direitos humanos. As principais relações políticas e jurídicas entre os órgãos
de monitoramento, ou seja, naquele Sistema, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos humanos (CrIDH), baseadas na
Convenção Americana, que é o principal instrumento jurídico, e demais legislações específicas que estão relacionadas aos direitos humanos no continente americano. No
Europeu, a Corte Europeia é o principal órgão, após o protocolo nº 11/98 e a Convenção Europeia o mais importante instrumento jurídico. Outros pontos discutidos são
os seguintes: as propostas analisadas para que as decisões da CrIDH sejam acolhidas
no ambiente interno dos Estados e se tornem efetivas; o alcance dos avanços normativos necessários para o maior reconhecimento dos direitos humanos no continente
americano; a consolidação da democracia em alguns Estados que compõem o Sistema
Interamericano e as principais mudanças no Sistema Europeu, suas consequências,
sua importância para ampliar o processo de promoção dos direitos humanos na região,
assim como, as repercussões dessas mutações no Sistema Interamericano.
A busca da consolidação da democracia entre os Estados da América consiste em
uma importante atividade desenvolvida na região americana, sobretudo no pós-ditadura militar, que foi um período marcado por graves violações dos direitos e liberdades
fundamentais do ser humano. Além disso, busca-se realizar um trabalho de combate à
violência e à impunidade nesta região, que é palco tanto de um número elevado de ofensas à dignidade do ser humano, como de desigualdade social e econômica, com o escopo
de transformar a mentalidade local, para que se desenvolva um ambiente de respeito e
proteção aos direitos humanos.
O primeiro capítulo propõe-se ao estudo do Sistema Interamericano, uma vez que
nele são abordadas as principais funções dos órgãos de monitoramento, o modo como
eles têm realizado suas atividades para que haja a devida consolidação da democracia
no continente americano, que é um local de vastas violações dos direitos humanos. Para
tanto, será discutida uma maior proteção aos direitos fundamentais, ou humanos, a
partir de uma abertura da jurisdição constitucional e não apenas aquela positivada nas
constituições internas de cada Estado membro. Este fato tem como ser desenvolvido e
ampliado, pois o Brasil e um grande número de países que compõem a OEA ratificaram
a Convenção Americana e reconheceram a jurisdição da Corte Interamericana. Com
isso, procuram-se formas para melhor solucionar os problemas relacionados àqueles
direitos, através, inclusive, de um maior controle interno da obediência à Convenção,
1 Advogada. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco – Brasil - na linha
de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Especialista em Direito Processo Civil e Ciências Criminais
pela UNIPÊ. Especialização em jurisdição constitucional pela Universidade de Pisa/Itália. Contato – [email protected]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 187
por meio do controle de convencionalidade, assim com, a tentativa de um fortalecimento
das Cortes com jurisdições constitucionais no ambiente interno, para se adequarem a
um intercâmbio e maior discussão constitucional no continente.
Finalmente, o segundo capítulo refere-se à constituição, a evolução, o valor do seu
principal instrumento jurídico, a Convenção, no reconhecimento dos Direitos humanos no sistema europeu. Nesse sentido serão descritas as principais mudanças, após o
protocolo adicional nº11/98, os casos mais discutidos, as mais importantes simetrias
e assimetrias entre o Sistema Europeu e o Interamericano. Por fim, constata-se que no
continente Europeu há um maior compromisso com a proteção dos direitos humanos,
já que existem as instituições democráticas consolidadas e os Estados de direito, mesmo com a diversidade e heterogeneidade, após a inclusão e agregação no sistema dos
países do leste europeu.
2.
O sistema de interamericano de proteção dos dirietos humanos
2.1 Os órgãos de monitoramento e suas funções no sistema interamericano
O Sistema Interamericano engloba os países das Américas, que fazem parte da
OEA, possui como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos
ou Pacto de San José da Costa Rica, além de alguns protocolos e tratados de direitos
humanos, dentre os quais: Protocolo de San Salvador (1988), Protocolo para Abolição
da Pena de Morte (1990), Convenção Interamericana sobre o desaparecimento forçado
de pessoas (1994), Convenção Interamericana para Previnir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994) e Convenção Interamericana sobre a eliminação de todas
as formas de Discriminação contra pessoas com deficiência (1999) ( PIOVESAN, 2012).
Não resta dúvida de que existem outros importantes instrumentos que compõem a
estrutura básica deste Sistema, dentre os quais: a Declaração de Direitos e Deveres do
Homem de 1948 e a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 1948 com
suas emendas. Além disso, constata-se que o Sistema Internacional da ONU, o regional
Europeu e o Interamericano se constituíram em momentos muito próximos; por isso,
verificam-se mais semelhanças do que diferenças entre eles.
A Declaração Universal dos direitos humanos (DUDH) é também de suma importância, pois tem como uma de suas finalidades o reconhecimento e a garantia destes
direitos, uma vez que, através do pressuposto da universalidade, dar condições a qualquer pessoa ou Estado, onde quer que esteja e independente da situação concreta,
reclamar alguma violação as regras relativas aos direitos humanos. Além disso, os Estados passaram a ter obrigação de dispor de princípios e regras relativos aos direitos
fundamentais.
Por conseguinte, o Sistema Interamericano é constituído por dois subsistemas:
o subsistema da OEA – tem como base a Carta da OEA e a Declaração Americana de
Direitos e Deveres do Homem e o subsistema da Convenção Americana - este centrado na Convenção Americana de Direitos Humanos. A principal diferença entre esses
subsistentes consiste na atuação da Corte Interamericana, que geralmente exerce suas
funções com base na Convenção Americana e não na Carta da OEA. 2
Os órgãos de monitoramento do subsistema da Convenção Americana são os seguintes: Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CrIDH). A Comissão foi criada em 1959, por meio de uma reso-
2 Este trabalho será centrado no subsistema da Convenção Americana, uma vez que se pretende investigar a CrIDH.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 188
lução da quinta reunião de consultas dos ministros das relações exteriores em Santiago
- Chile, com a finalidade de promover o respeito aos direitos humanos na comunidade
americana (MARTIN, 2006).
Para Cançado Trindade (1993), a Comissão surgiu com o principal fim de dar consultoria aos Estados-membros da OEA em face de problemas urgentes que afetavam a
paz e a segurança no continente. Mas o que salta os olhos nas observações desse jurista
é que o referido órgão de monitoramento sempre procurou expandir suas competências,
não se podendo olvidar que a grande preocupação da CIDH consiste em velar pela proteção dos direitos humanos em relação aos Estados-membros da OEA, independentemente de ratificação da Convenção ou outro documento sobre direitos humanos.
A Comissão Interamericana tem sede na cidade de Washington, Estados Unidos,
é um órgão quase judicial com a seguinte composição: 07(sete) membros de diferentes
nacionalidades, que devem ser pessoas de condutas ilibadas e possuir grandes conhecimentos em direitos humanos. Além disso, esses cidadãos, que podem ser indicados pelos Estados, entre nacionais de qualquer Estado membro da OEA, atuam pessoalmente
com um mandato de 04 (quatro) anos, podendo ser reeleitos uma única vez. Durante
o período do mandato, os membros da Comissão, em razão das funções que lhes são
atribuídas, gozarão, nos Estados partes da OEA, de privilégios diplomáticos reconhecidos pelo direito internacional. Por fim, há uma proibição legal de mais de um membro
do mesmo Estado-membro neste órgão de monitoramento do Sistema Interamericano
(MARTIN, 2006).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão autônomo da OEA,
cuja principal função consiste em promover a observância e a defesa dos direitos humanos, servindo, também, de órgão consultivo da respectiva organização. Dentre suas
competências convém destacar as seguintes: receber petições apresentadas por qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental reconhecida legalmente em um ou mais Estados componentes da OEA, contendo denúncia ou queixa de
violação a quaisquer disposições da Convenção por ato destes; assim como examinar
comunicações (comunicações interestatais) de lesão a direitos humanos realizados por
um Estado parte em relação a outro, desde que ambos tenham reconhecido a competência de referido órgão de proteção.
Apenas serão consideradas petições sobre supostas violações de direitos humanos
definidas na Convenção Americana sobre direitos humanos, bem como em outros instrumentos aplicáveis, o que amplia a competência ratione materiae da comissão para
outros instrumentos internacionais, além dos referendados pela OEA.
Além disso, deve haver, ainda, obediência a requisitos de admissibilidade previstos
no regulamento da comissão, dentre os quais: 1- nome, nacionalidade e assinatura do(s)
denunciante(s) ou de seu representante legal, no caso de entidade não governamental;
2-manifestação do peticionário sobre manter sua identidade em reserva frente ao estado; 3-endereço para recebimento de correspondência da comissão; 4- relação do fato
denunciado, com especificação do lugar e data das violações; 5- se possível, nomes de
vítimas e autoridades públicas que tenham tomado conhecimento do fato; 6- indicação
do estado responsável; 7- esgotamento dos recursos internos; 8- não incorrer em duplicação de processos.
Ademais, poderão ser considerados inadmissíveis petições ou casos que não contenham a necessária exposição dos fatos que caracterizem violação a direitos; forem
manifestamente infundados ou improcedentes, segundo se verifique da exposição do
próprio peticionário ou do estado; ou resulte de informação ou prova superveniente
apresentada à Comissão.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 189
A análise da admissibilidade das petições é realizada pela Secretaria- Executiva da
Comissão Interamericana, segundo procedimento contraditório. Antes do pronunciamento final, as partes poderão ser convidadas para apresentar informações adicionais
por escrito ou em audiência. As decisões finais sobre a admissibilidade serão dadas sob
a forma de relatórios públicos, oportunidade em que a petição será registrada como
caso, ao que seguirá o início do procedimento relativo ao mérito.
Os relatórios finais são encaminhados ao Estado-parte que possui três meses para
dar cumprimento às recomendações realizadas. Dentro deste prazo, se não houver solução, ou, o caso não tiver sido encaminhado a CrIDH, a CIDH por maioria dos votos
emitirá sua opinião e conclusão. Dentro de três meses da emissão do relatório ao Estado
denunciado, o caso poderá ser encaminhado e apreciado na CrIDH ( PIOVESAN, 2011).
Sem maiores delongas, é necessário ressaltar a possibilidade de a CIDH, como
também os Estados-membros e outros órgãos da OEA, solicitar opiniões consultivas à
CrIDH sobre a interpretação da Convenção Americana e demais instrumentos relacionados aos direitos humanos no sistema interamericano.3
Dessa maneira, ressalta Pasqualucci (2003):
[...] The original draft of the Convention provided only that the Inter-American Commission and the General Assembly and Permanent Council of the
OAS could consult the Court concerning the interpretation of the American
Convention or other treaties, and that the States Parties could consult the
Court regarding the compability of their domestic laws those international
instruments. The Text of the provision was later expanded to its present
form to allow other organs and Member States of the OAS to request advisory opinion in particular circumstances. The Court views its advisory jurisdiction to be as extensive as may be necessary to safeguard the human
rights in the Convention, restricted only by the limitations imposed by the
Convention (PASQUALUCCI, 2003, p.32)
Para Pasqualucci, as opiniões consultivas têm crescido consideravelmente, pois
pode se chegar à solução de uma demanda sem conflito. Nesse sentido, apesar de essas
opiniões não criarem obrigações legais, com frequência exercem autoridade moral nos
Estados, assim como, possuem maiores influências que um caso contencioso discutido.
No entanto, a própria CrIDH não pode motu proprio solicitar uma opinião consultiva (
PASQUALUCCI, 2003)
Já a Convenção Americana criou a Corte Interamericana com o fim de
conhecer os casos de suposta violação dos direitos humanos, sempre que esgotados os
recursos de jurisdição interna e que sejam satisfeitos os requisitos de admissibilidade,
a saber: o procedimento prévio ante a Comissão e que os Estados tenham reconhecido
competência da Corte para isto.
A CrIDH tão somente julga os casos de Estados-partes da Convenção que reconheceram a jurisdição de forma expressa, nos termos do art. 62 deste Pacto, ao tratar das
competências contenciosas, como já descrito. Essas decisões, tanto na Corte Americana
como na Europeia possuem força jurídica vinculante e são obrigatórias, devendo ser
cumpridas imediatamente ( PIOVESAN, 2011)
3 Art.64 – Convenção Americana - 1. Os Estados-membros da Organização poderão consultar a Corte
sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção de direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la no que lhe compete, os órgãos enumerados no
capítulo X da Carta dos Estados Americanos, reformada pelo protocolo de Buenos Aires.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 190
Com sucedâneo nos artigos 52, 53 e 54 do Pacto de San José da Costa Rica, a CrIDH é composta por 07 (juízes), dentre nacionais dos Estados-membros da Organização,
com condutas morais elevadas e notáveis e reconhecidos conhecimentos jurídicos na
área de direitos humanos, que devem ser eleitos em escrutínio secreto e pela maioria
absoluta dos Estados-partes na Convenção para um mandato de seis anos, permitido
tão somente uma reeleição.
As principais demandas da CrIDH são aquelas enviadas pela CIDH, após esgotar todo o procedimento deste órgão, para que haja o seu devido encaminhamento, e
as ajuizadas pelos Estados-partes, após submeter um caso a CrIDH. Os indivíduos e
ONGs, por exemplo, não possuem competência para ingressarem diretamente com uma
denúncia de violação dos direitos humanos na CrIDH, no entanto, as vítimas, seus
parentes ou representantes podem apresentar seus argumentos, arrazoados e provas
perante este órgão de monitoramento do Sistema Interamericano ( PIOVESAN, 2012).
Uma grande lacuna que ainda existe na CrIDH é a não possibilidade de um indivíduo por si só postular perante esta Corte, como acontece há muitos anos na Corte Europeia de Direitos humanos, ou seja, desde a entrada em vigor do Protocolo n.11 de 1º de
novembro de 1998. Este fato, para muitos estudiosos, enfraquece o Sistema Interamericano, pois seria muito mais coerente à concessão do jus postulandi aos indivíduos, que
diretamente poderiam ter mais condições de demandar pelas violações de seus direitos
humanos, sem a necessidade de qualquer intermediário, além de, ser ponto importante
para o desenvolvimento do Sistema Interamericano.
A CrIDH possui as seguintes competências: 1- a Contenciosa e 2- a Consultiva.
Além disso, nos termos do art.63(2) da Convenção Americana a Corte pode determinar
medidas provisórias, nos casos de extrema gravidade e urgência e que seja necessário
para evitar danos irreparáveis às pessoas (MARTIN, 2006). Estas medidas provisórias
em seus pressupostos e efeitos lembram as medidas cautelares do direito brasileiro.
A Corte Interamericana pode exercer a jurisdição consultiva, quando interpreta
a Convenção Americana e demais tratados de direitos humanos. Esse órgão de monitoramento do Sistema Interamericano pode também conceder uma opinião sobre a
compatibilidade de legislações domésticas, em face de os instrumentos internacionais,
como a Convenção Americana, fazendo isso, ela está realizando uma forma de controle
de convencionalidade (PIOVESAN, 2012).
Piovesan (2012) discorre sobre algumas opiniões consultivas solicitadas por qualquer membro da OEA, parte ou não da Convenção, sobre a interpretação da Convenção
ou qualquer tratado de proteção dos direitos humanos. Os principais temas objeto de
essas consultas são os seguintes: as restrições à adoção da pena de morte, os limites
do direito de associação, a exigibilidade do direito de retificação ou resposta, o habeas
corpus e as garantias judiciais no estado de exceção, direito de liberdade de expressão
de um indivíduo, dentre outros.
2.2 O controle de convencionalidade no âmbito dos estados que compõem o sistema
interamericano
A Corte Interamericana é um órgão judicial do Sistema Interamericano cujas decisões possuem como enfoque a proteção dos direitos humanos e/ou fundamentais do
ser humano. Os Estados membros que admitiram a jurisdição desta Corte precisam reconhecer gradativamente suas decisões internamente, principalmente, através de uma
Art.62 – Carta da OEA – Qualquer Estado membro pode solicitar a convocação de uma Reunião de Consulta. A solicitação deve ser dirigida ao Conselho Permanente da Organização, o qual decidirá, por maioria absoluta de votos, se é oportuna à reunião.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 191
participação mais ativa dos operadores do direito, que devem apoiar uma maior integração e abertura, para que haja um adequado cumprimento das obrigações internacionais acordadas em países, como o Brasil, em prol de um fortalecimento deste Sistema
Regional.
Para Mazzuoli (2009), há uma tendência a tornar o princípio internacional pro homine como princípio geral do direito, que no direito interno se divide em dois: princípio
da dignidade humana e o princípio da prevalência dos direitos humanos, uma vez que
em um caso que diz respeito ao direito internacional dos direitos humanos deve prevalecer a norma mais favorável à proteção e à dignidade humana. Isso significa que, o
Brasil está inserido na pós-modernidade jurídica, o que se constata por meio de uma
complementação da aplicação dos tratados internacionais reconhecidos na Constituição Federal, ambos, voltados à solução mais favorável ao ser humano.
O Controle de Convencionalidade, assim, é considerado um importante mecanismo, que se têm exigido dos Estados em seu ambiente interno, os quais firmaram obrigações internacionais decorrentes da Convenção Americana, ao aceitarem a jurisdição
da CrIDH. Portanto, precisa existir uma maior conscientização na sociedade da importância da fiscalização de seu cumprimento, e de uma interpretação mais aberta e
complementar dos magistrados para aplicar no tribunal interno o instrumento jurídico
convencional, já que é norma internacional regional relacionada aos direitos humanos
ratificada pelo Brasil, que deve cumpri-la; da mesma forma, que é realizado com o Controle de Constitucionalidade, em face da Constituição.
Constata-se, portanto, que este princípio da legalidade é transversal, no tocante,
a forma e a substância, uma vez que o texto convencional atende ao padrão nacional e
ao internacional, por isso, não se trata apenas de uma licitude formal, nem, um parâmetro restrito ao cenário doméstico de cada Estado. Assim, a CrIDH, por exemplo, não
é considerada uma quarta instância4, no entanto, nos assuntos relacionados ao direito
internacional dos direitos humanos, o Tribunal constitucional dos Estados não deve ficar restrita ao conhecimento do direito interno, visto que, nas palavras de Lázaro (2010)
é conveniente que se faça uma adequação das condutas dos Estados com os compromissos internacionais emanados da Convenção Americana.
Hitters (2008) argumenta que o processo hoje em dia não é como antigamente, ou
melhor, resolvido exclusivamente no cenário jurídico interno de cada Estado, pois a
partir da internacionalização dos direitos humanos há uma maior complementaridade
e integração entre o sistema jurídico internacional, leia-se regional, como o Interamericano e o interno do país signatário de instrumentos jurídicos internacionais, levando
a resolução de um conflito transcender as fronteiras nacionais e dirigir seus passos a
uma ceara transnacional (influência interna das decisões da CIDH e da CrIDH).
Os Estados membros da OEA que reconheceram voluntariamente a jurisdição da
CrIDH estão submetidos ao cumprimento das decisões desta Corte, sob pena de afronta
a Convenção (LÁZARO, 2010). Por isso, surgem os órgãos com o objetivo de supervisionar os compromissos internacionais acordados, por meio da ratificação e vigência de
um tratado internacional. Além disso, a CrIDH sustentou pela primeira vez em jurisprudência, ou seja, expressamente, a questão do controle de convencionalidade como
atribuição dos juízes nacionais no caso Almonacid Arellano versus Chile em 2006, este
país ratificou a Convenção Americana em 1990. Essa decisão dispõe que: “o Poder Ju-
4 Conforme jurisprudências da CrIDH no caso Nogueira de Carvalho e outro versus Brasil – exceções
preliminares e sentença de mérito no dia 28/12/06.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 192
diciário deve exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade’ entre as normas
jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos.”
Com a decisão interamericana contra o Chile no caso Arellano constata-se, de uma
forma simples, o controle de convencionalidade como uma adequação legislativa do
país signatário da convenção com as obrigações internacionais de proteção dos direitos
humanos. Assim, deve existir um cumprimento dos tratados e convenções internacionais ajustados, caso contrário, haverá uma responsabilização internacional do Estado
violador.
A CrIDH também entende que, suas decisões não devem ser descumpridas nos
Estados que os reconheceram sua jurisdição, em razão do dever de se comprometer com
as obrigações internacionais firmadas pelos Estados, de acordo com o art.1.1 da Convenção Americana. Assim, em caso de violação de algum dispositivo deste instrumento
internacional a parte prejudicada pode solicitar o devido controle de convencionalidade.
Piovesan (2013) sustenta o controle convencionalidade da seguinte maneira:
O controle de convencionalidade das leis contribuirá para que se implemente no âmbito doméstico os standards , os princípios e a jurisprudência
internacional em matéria de direitos sociais. Também é essencial assegurar que as sentenças internacionais condenatórias de Estados sejam
obrigatórias e diretamente executáveis, otimizando a justiciabilidade dos
direitos sociais (PIOVESAN, 2013, p.174).
Constata-se que o Brasil tem resistido ao intercâmbio de experiências constitucionais, entre ordens jurídicas como a CrIDH, em algumas situações relacionadas aos
direitos fundamentais e humanos, quando possuem seus interesses em divergência,
apesar de possuir em sua Constituição cláusulas abertas aos direitos e garantias previstos em Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos que complementam o texto constitucional. Portanto, em um momento de um crescente movimento de
internacionalização dos direitos humanos é preciso um maior respeito desses direitos
no ambiente interno.
O controle de convencionalidade no Brasil representa um importante avanço no
constitucionalismo interno, sendo uma das formas de se concretizar o desejado Estado
constitucional e humanista de direito, assim como, ser uma forma de validade normativa nacional. Ademais, leva ao Estado brasileiro e demais países da América, membros
da OEA e signatários do Pacto de San José da Costa Rica, a adequarem a sua produção
legislativa às obrigações internacionais ajustadas, caso contrário, eles se tornam sujeitos de responsabilidade internacional.
3.
O sistema europeu de Direitos Humanos
3.1 Organização, coomosição e órgão(s) de monitoramento
O Sistema Regional Europeu surgiu no período posterior a II Guerra Mundial,
momento em que as pessoas não suportavam mais as violações aos direitos humanos.
Associada as barbáries das Guerras Mundiais, a Europa ocidental vivenciou os regimes
totalitários (nazismo e fascismo), que foram responsáveis pela imposição de condutas
na sociedade e pelo suprimento de diversas garantias fundamentais. As pessoas indig-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 193
nadas com essas condutas desumanas e degradantes buscaram um fio de esperança
nesse sistema da Europa, como forma de readquirirem direitos e garantias fundamentais básicos perdidos.
Assim, no dia 05 de maio de 1949 alguns países da Europa Ocidental se reuniram
em Londres com a finalidade de fundar o Conselho de Europa, com sede na cidade de
Estrasburgo (França). Esse conselho apesar de em seu instrumento normativo, ou seja,
o estatuto, conter indicações não muito claras e precisas sobre os direitos humanos, foi
de suma importância, pois a partir de então houve a constituição da Convenção Regional Europeia em 1950, que entrou em vigor no dia 03 de setembro de 1953, com a ratificação de 08 Estados5, contando com temas ligados aos direitos humanos (MAZUOLLI,
2010).
Inicialmente, o Sistema Regional Europeu era constituído por dois órgãos de monitoramento, ou seja, Comissão Europeia de Direitos Humanos e Corte Europeia de
Direitos Humanos ou Corte de Estrasburgo. Com o crescimento do Sistema e conscientização das pessoas que buscavam maior eficácia e efetividade nos processos relacionados aos direitos humanos ocorreram algumas mudanças na Convenção europeia com a
instituição do protocolo adicional nº11, que uniu aqueles dois órgãos iniciais em apenas
um, a Corte Europeia e facultou ao cidadão a possibilidade de ingressar diretamente
com uma denúncia nesta Corte, sem precisar requisitar o Estado membro ou a comissão de direitos humanos deste Sistema Regional da Europa.
Surge então, uma nova Corte no Sistema Regional de Direitos humanos da Europa
com o protocolo adicional a Convenção Europeia n.11, que entrou em vigor em 1998
e alcança-se a maior justicialização, contendo uma importante inovação no tocante
ao reconhecimento do acesso direto e irrestrito aos indivíduos, grupos de indivíduos e
ONGs6 a sua jurisdição, tornando, portanto, o Sistema Regional mais democratizado
(PIOVESAN, 2012).
Outra mudança desta nova Corte Europeia permanente corresponde à divisão deste órgão judicial em salas (chambers) com a finalidade de agilizar o tramite processual,
pois o número de processos têm ampliado consideravelmente, sobretudo depois da entrada dos novos Estados membros7. Acrescenta - se também, o fato desse órgão judicial
não ter perdido a função de solução amistosa dos casos, apesar de ter predomínio a
solução contenciosa (BENVENUTO, 2011).
Por conseguinte, com as alterações na CEDH advindas do protocolo adicional nº11
os mecanismos de controle do Sistema Regional Europeu restou assim organizado: 1
– Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – órgão jurisdicional instituído pela CEDH
com a finalidade de assegurar o respeito das obrigações dela resultante para as partes
contratantes; 2- Comitê de Ministros do Conselho Europeu – órgão político que tem o
escopo de ser o guardião do Tribunal Europeu de forma a garantir o pleno cumprimento
das decisões da Corte perante os Estados violadores, não conhecendo casos que não são
conhecidos pelo Tribunal, como fazia anteriormente.
Nesse sentido, o Sistema Europeu de direitos humanos apresenta um aparato
eficiente de cumprimento de suas decisões por meio de um comitê de ministros que
pode ser constituído por um representante de cada Estado parte e tem a finalidade de
5 Segundo Piovesan (2012: p.105)” em 2011 a Convenção contava com 47 Estados-parte.”
6 Nas palavras de Piovesan (2012, p.113) – “A jurisdição da Corte é prevista agora por uma cláusula
obrigatória com aplicação automática”.
7 Novos Estados membros do Sistema Regional Europeu são os países do leste europeu, que ainda estão
em processo de reconhecimento ou consolidação da democracia. Esse fato resulta em uma série de graves
e sistemáticas violações aos direitos humanos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 194
informar a este se as medidas adotadas pelo Tribunal Europeu foram ou não cumpridas
sejam as referentes à justa indenização, ou, outras medidas. A última sanção ao Estado
violador em caso de descumprimento dos parâmetros internacionais consiste na expulsão deste do Conselho da Europa (PIOVESAN, 2012).
A Convenção Europeia de Direito Humanos e Liberdades Fundamentais, a Carta
Social Europeia e os protocolos adicionais são considerados os aparatos jurídicos de
proteção dos direitos humanos no sistema regional Europeu. Não é demais relembrar
que, esse sistema é competente para a solução de controvérsias não resolvidas no sistema jurídico interno, por isso, ser considerado complementar, não substitui as decisões
das Cortes Constitucionais domésticas, já que não é um tribunal recursal, portanto,
necessário se faz o esgotamento dos recursos internos, como atributo genérico para se
ingressar com uma denúncia neste sistema regional de proteção dos direitos humanos.
Piovesan (2012) assevera que o Sistema Regional Europeu surge em um período de
necessidade de transformação no cenário de ofensas aos direitos humanos na Europa
ocidental, portanto, ele é constituído em países que são interessados em se integrar no
sistema, portanto, precisam ser considerados Estados de direito democráticos e apoiarem a defesa dos direitos humanos.
Por conseguinte, dentre os enunciados da Convenção Europeia destaca-se aquele
que se refere ao fato dos Estados membros estarem aptos a realizarem um controle interno do cumprimento deste instrumento de proteção dos direitos humanos. Com esse
requisito observa-se que esse acordo internacional deve ser respeitado e há um maior
compromisso dos operadores do direito, em especial os magistrados, na interpretação e
adequada aplicação jurídica da Convenção Europeia em prol da defesa dos direitos humanos no continente europeu. Sem olvidar, o papel da sociedade com maior consciência
e sensibilizada para tratar dessas questões humanitárias.
Além disso, o Sistema Regional Europeu é conhecido como aquele com uma estrutura mais homogênea, com países em sua maioria democráticos e a constituição de Estados de direito. Por isso que a
sociedade mais consciente dos direitos humanos que lhes são assegurados pode colaborar para proporcionar
uma maior homogeneização e uma ampla garantia dos direitos que lhes cabe. O ingresso dos países do leste
europeu neste sistema alterou um pouco a homogeneidade local, pois esses Estados partes são estruturados
com diversidade e heterogeneidade, muitos deles não constituídos em Estados democráticos.
3.2 As principais discussões no sistema europeu de Direitos Humanos
Piovesan (2012) classificou os casos que são encaminhados ao Sistema Europeu de
direitos humanos da seguinte maneira: 1- contra a mulher; 2- baseada em raça/etnia;
3-contra a criança; 4-fundada em orientação sexual; 5- contra imigrantes e estrangeiros
e 5- contra pessoas com deficiência. Ademais, convém salientar, que os assuntos discutidos no Sistema Regional Europeu, por exemplo, que são relacionados aos direitos
internacionais inseridos nos tratados internacionais de direitos humanos têm a função
complementar e aprimorar os direitos já reconhecidos no ordenamento jurídico interno
de cada Estado parte, já que a intenção da internacionalização dos direitos humanos
corresponde a ampliar a proteção dos direitos humanos inseridos no plano normativo
constitucional.
A Corte Europeia após a vigência do protocolo adicional nº11/1998 tornou-se o
principal e único órgão de monitoramento do Sistema Europeu; responsável pela maior
efetivação da proteção aos direitos humanos neste continente; com funcionamento integral e ampliação da legitimidade ativa para ingressar com uma petição em casos de
violação daqueles direitos, como já descrito. Acrescenta-se também, que as decisões
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 195
da Corte geralmente são declaratórias, podendo ser também pecuniária a vítima. Como
consequência nos julgados do Sistema Europeu há alterações legislativas, reformas administrativas, alterações nas práticas judiciais ou capacitação em direitos humanos no
treinamento policial ( PIOVESAN, 2012).
Associado aos casos descritos acima, um assunto vêm sendo bastante discutido
no ambiente da Corte Europeia ou de Estrasburgo de Direitos Humanos, que consiste
no reconhecimento da liberdade de religião, inserida no art.9ºda convenção europeia,
que proporciona ao indivíduo, ampla faculdade, tanto de se manifestar publicamente,
quanto na esfera privada, sobre a opção religiosa. Nesse sentido, há estados como Turquia e França que defendem uma forte separação entre Estado e a Igreja, sob enfoque
do princípio da laicidade e outros como a Grécia continua com uma forte ligação entre
o Estado e a Igreja. Assim como, defende-se uma convivência pública harmônica com a
liberdade religiosa.
Uma situação identificada na Corte de Estrasburgo corresponde a independência
que existe em relação às tradições estatais de alguns Estados partes. Por conseguinte,
Benvenuto et al (2011) ressalta o seguinte:
De acordo com essa visão do método interpretativo da Corte Europeia, haveria
uma certa independência desta em relação ao conjunto de tradições nacionais
– tendo em vista a incapacidade de compatibilizá-las todas e de uma só vez e a
busca do bem comum em termos supranacionais – e uma certa dependência em
relação a componentes políticos, orientada pela busca de maior alcance futuro
para suas decisões. Essa característica pode explicar a decisão de garantir ganho
de causa a Lusting-Prean e Beckett [no caso Lusting-Prean e Beckett contra Reino
Unido] no que se refere à indenização pela discriminação por orientação sexual
sofrida e afirmada pela Corte, mas não fazê-lo no que se refere à reincorporação
dos denunciantes e a uma perda relativa para o Estado respectivo (BENVENU-
TO, 2011, p.175)
Enfim, voltando ao tema da religião, Biazi (2011) sustenta que apesar do multiculturalismo europeu e suas influencias na escolha religiosa, há grandes discussões
quanto ao símbolo religioso em escolas públicas. Assim, ela faz menção aos seguintes
casos, a saber: na França não é permitido símbolo religioso nas escolas públicas desde
2004; na Inglaterra é permitida a utilização de véus islâmicos nas escolas estatais; na
Alemanha o professor se quiser pode usar o véu, a princípio, não é contra a Constituição
Alemã8 e na Bélgica os professores de escolas estatais não islâmicas devem ser neutros
para evitar que funcionários usem vestuários que indiquem uma específica religião.
4.
Conclusões
Depois do desenvolvimento do presente trabalho, as seguintes conclusões são
apresentadas:
Com as mudanças ocorridas no mundo, sobretudo a partir do século XX, os assuntos relacionados às políticas internacionais passaram a ser abordados, aplicados e disseminados com as seguintes ideais: cidadania, nacionalismo, republicanismo, Estado
constitucional democrático de direito, política internacional, maiores preocupações com
assuntos relacionados aos direitos humanos.
8 Caso Ludin de 24 de setembro de 2003.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 196
O amparo aos direitos fundamentais expande-se, completa-se, não sofre antinomias, a partir da conjugação dos sistemas nacional e internacional de proteção dos direitos humanos, não fere a soberania, mas confere maior cooperação à efetividade dos
Direitos Humanos, frente às violações mundiais. Por conseguinte, amplia-se o número
de países signatários de tratados de direitos humanos tanto no âmbito Europeu e Interamericano, quanto universal (leia-se das Nações Unidas).
O Sistema Interamericano, apesar de incipiente, possui alguns Estados partes que
deram passos dinâmicos e evoluídos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos em suas constituições internas, o que é muito importante, pois associado a esse pressuposto deve existir instituições democráticas e Estados
de direito, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da potencialidade do Sistema no continente americano.
O Sistema Europeu de direitos humanos possui uma estrutura mais dinâmica e
procura dar maior efetividade as suas decisões, principalmente após as mudanças introduzidas pelo protocolo nº 11/98, que concedeu única e exclusivamente a Corte Europeia a função de órgão de monitoramento no Sistema. Além disso, esse Sistema tem
uma estrutura mais homogênea, com países em sua maioria democráticos e a constituição de Estados de direito, o que facilita tanto a conscientização dos direitos humanos,
que lhes são assegurados, quanto, a fiscalização, assim como, amplia as exigências por
melhores condições de uma vida digna.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 198
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DO DEPENDENTE QUÍMICO COMO
FORMA DE RESSURGIMENTO DO MODELO HOSPITALOCÊNTRICO:
ANÁLISE DA SUA (IN)CONSTITUCIONALIDADE
Ana Paula Cavalcanti da Matta Ribeiro Lessa1
Fernando Antônio Carvalho Alves de Souza2
1.
Introdução
Internar pessoas compulsoriamente é algo recorrente na história da humanidade.
Para isso utilizou-se de discursos legitimadores com a finalidade de justificar tal medida. Sob a pretensa finalidade de promover a proteção à saúde ou à segurança pública,
os leprosos e os loucos vivenciaram essa segregação.
Recentemente, os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro realizaram internações
forçadas de possíveis dependentes de drogas nas cracolândias, moradores de rua em
sua maioria. Ainda que vivendo em circunstâncias de miserabilidade e sub-humanas,
o que por si só já constitui uma grave violação aos Direitos Humanos, os meios de comunicação nas manchetes sensacionalistas sempre enfatizaram a droga como a grande
vilã, responsável pelo ambiente de degradação e exclusão ali vivido. Seguindo essa lógica equivocada, o recolhimento forçado cumpre sua função higienista e segregacionista,
retirando dos locais públicos e visíveis a razão do desconforto social.
A droga não instituiu a pobreza nem a exclusão social, mas é apenas um dos muitos problemas daquela região. Estigmatizar o usuário através da atual política de drogas
só aumenta o abismo que envolve a complexa questão.
Lançar um novo olhar ao usuário requer o reconhecimento de sua cidadania, devolvendo-lhe a dignidade humana. Aplicar penas disfarçadas de tratamento apenas reforça a atuação negligente do Estado. Significa penalizar duplamente os já segregados
e excluídos socialmente.
A autonomia de vontade é premissa de um Estado Democrático de Direito. Todos têm direito à manifestação de vontade, sendo admitida a ingerência estatal apenas
quando uma ação importar danos a terceiros. Legitimar atitudes totalitárias sob o pretenso manto da legalidade, através de discursos salvacionistas, importa em institucionalizar uma democracia de fachada, ilusória, pura ficção jurídica.
O conhecimento acerca dos danos causados pelas drogas em razão do uso, abuso e
dependência, ainda navega por águas distantes das confiáveis comprovações empíricas,
científicas, portanto. Muito do que se sabe está ancorado no senso comum, fundado em
mitos e opiniões pessoais.
1 Graduanda em Direito pela UNINASSAU.
2 Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor de Direito
Penal da UNINASSAU.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 199
Pesquisas recentes apontam para novos paradigmas, tais quais a demonstração
empírica da presença da autonomia de vontade em usuários de drogas, comprovando
que estes não são seres desprovidos de discernimento e completamente descontrolados.
Por fim, os manicômios ressuscitam o casamento histórico entre o Direito e a medicina fazendo brotar a violência e a violação dos Direitos Humanos. Aquilo que representou um grande avanço noutros tempos se vê ameaçado de, por uma armadilha das
circunstâncias sociais e políticas, tornar-se um grande retrocesso.
2.
Internação compulsória - uma breve perspectiva histórica
A internação de pessoas, conforme sua vontade expressa ou de forma compulsória,
foi utilizada desde tempos longínquos pelas mais variadas motivações, alheias a questões de saúde, seja como ferramenta de institucionalização da exclusão social ou como
forma de demonstração de poder de grupos dominantes, em detrimento de interesses
minoritários, a quem era imposta alguma forma de segregação.
Conforme Foucault (2004) em sua obra “história da loucura”, da alta Idade Média
até o final das cruzadas os leprosários multiplicaram-se por toda a Europa instituindo
um cenário de segregação e abandono, chegando a existir 19.000 desses centros nos
arredores dos centros urbanos, em toda a cristandade. Ao final da Idade Média a lepra
desaparece do mundo ocidental, no entanto, não como consequência das obscuras práticas médicas, mas como fruto da segregação e estigmatização impostas aos leprosos.
Ainda que com leprosários vazios, os valores e as imagens aderidas à pessoa do leproso
permaneceram entranhadas no meio social. “É o sentido dessa exclusão, a importância
no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à
sua volta um círculo sagrado.” (FOUCAULT, 2004, p. 9).
Adiante, indivíduos acometidos de doenças sexualmente transmissíveis não ficaram incólumes a esse processo segregacional, mas foram submetidos a internações em
ambientes coletivos com o único fim de isolamento das demais pessoas; no entanto,
posteriormente, foram acomodados em ambientes propícios ao tratamento médico. Diferentemente da lepra, a doença venérea passou a ser tratada como questão de saúde,
sendo utilizados hospitais para o acolhimento dos pacientes. Ainda que não houvesse
mais restrição de espaço físico, pairou a exclusão moral dos acometidos por esse mal.
No entanto, o modo de internamento no século XVI provocou o isolamento do doente,
promovendo uma integração com a loucura. Mais tarde, a loucura assumiria a herança
da lepra.
Os ditos loucos eram passíveis de internações compulsórias de forma indiscriminada junto de outras pessoas, tais quais, desempregados, vadios, prostitutas, pobres
e outros indesejados pela sociedade da época. Em 1956 houve a fundação em Paris do
Hospital Geral, local destinado ao alojamento e recolhimento daqueles que o desejassem
de forma espontânea ou dos encaminhados pela autoridade real ou judiciária. O Hospital Geral, ainda que assim fosse chamado, não se constituía uma unidade hospitalar,
mas sim uma entidade administrativa, estrutura semijurídica que decidia, julgava e
executava.
Ainda de acordo com Foucault, se a Idade Média inventou a segregação dos leprosos, o período Clássico criou o internamento. O vazio deixado pelos leprosos restou
ocupado pelos “internos”. Enquanto o leprosário tinha um sentido médico, muitas outras funções representaram o papel do internamento nesse gesto de banimento. O gesto
que aprisiona não pode ser considerado mais simples, possuindo significados políticos,
religiosos, econômicos e morais.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 200
No Brasil, o recolhimento de pessoas a instituições psiquiátricas, inclusive por razões não médicas, quais sejam, gravidez indesejada, questões patrimoniais ou sucessórias, ou ainda na ocorrência de qualquer outro motivo que torne o indivíduo socialmente
marginalizado, não é fenômeno novo.
2.1 Lei nº 10.216/2001 - Lei antimanicomial - um novo olhar sobre a loucura
Paulo Gabriel Godinho Delgado, autor do projeto de lei que mais tarde consagrou o
início de uma nova perspectiva e abordagem ao portador de transtorno mental, lei que
ficaria conhecida como antimanicomial, em artigo comemorativo dos 10 anos da Lei nº
10.216/2001, pontuou algumas questões a seguir expostas.
Na Constituição Federal a saúde é um direito social do cidadão. “A saúde é Direito
de todos e Dever do Estado”, conceito formulado em 1986 na 8ª Conferência Nacional
de Saúde, tornou-se o fundamento do acesso e responsabilidade do Estado, que vieram
a constituir o SUS - Sistema Único de Saúde, em 1990. O campo da saúde mental como
política pública já vinha construindo o processo de reforma psiquiátrica. O primeiro
CAPS, Centro de Atenção Psicossocial, serviço aberto para pacientes graves, havia sido
implantado, substituindo assim o hospital psiquiátrico fechado. Nesse contexto, após
intensos debates, surgiu a Lei nº 10.216/2001, ancorada nos direitos humanos, na
liberdade e nos modernos métodos de tratamento, criando novos paradigmas de enfrentamento de questão tão espinhosa e difícil, a fim de superar a abordagem hospitalocêntrica concedida ao paciente.
Como lidar, no Estado Democrático de Direito, com o tratamento involuntário nos
casos de risco para o paciente ou para outros era uma das muitas e difíceis questões a
serem resolvidas. A escolha de métodos e abordagens concedidas ao paciente, por certo,
não consideravam o cidadão dotado de direitos que precisava estar, não à margem, mas
no centro do debate.
Seguindo essa lógica do zelo, essencial a qualquer tratamento de saúde e que preserve a dignidade da pessoa humana, o cuidado deve ser o princípio norteador da lei
e sua posterior aplicação. Dedicada a cidadãos enfermos, vistos como sem vontades,
liberdades, autonomias, não é a doença que a lei questiona, mas a maneira de tratá-la.
A ideia de um hospital fechado que encerra, estigmatiza, isola, não tem
mais razão de ser. Só a reforma detém a má fé dos que utilizam o dispositivo psiquiátrico por razões não psiquiátricas para internar desprotegidos
ou fazer poderosos inimputáveis. Nem todos os problemas humanos são
psiquiatrizáveis ou psicologizáveis. A humanização do tratamento do doente mental não convive com o tratamento psiquiátrico desnececessário.
(Delgado, 2011, p. 4703).
O princípio essencial da reforma é a construção de um centro de gravidade baseado
no paciente e em suas possibilidades terapêuticas. É no sistema aberto que se vislumbra o futuro da psiquiatria moderna, ainda que se encontre em um processo lento de
transição entre o modelo antigo, que não domina, e o novo, que não predomina.
A Lei nº 10.216/2001 instituiu um novo estatuto jurídico e instaurou uma nova
lógica no tratamento dos portadores de sofrimento psíquico no Brasil.
A Lei da Reforma Psiquiátrica não apenas determina como diretriz central
que sejam realizadas políticas públicas de desinstitucionalização, como
fixa como premissa o respeito à autonomia dos usuários do sistema de
saúde mental. Assim, estes devem atuar como protagonistas na definição
de sua terapêutica. Além disso, a reforma psiquiátrica procura alterar a
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 201
linguagem que configurou historicamente a instituição manicomial, estabelecendo uma nova gramática nas práticas de internação. (SALO DE
CARVALHO, 2013, P.509).
A previsão legal, portanto, da medida de internação compulsória encontra-se na
Lei nº 10.216/2001, no seu art. 6º, III, sendo necessário para tanto, a emissão do laudo
médico circunstanciado caracterizando seus motivos.
3.
Práticas de internação compulsória na atualidade
Ainda que de alta relevância o estudo das drogas, suas consequências na vida social, bem como a sua possível influência no cometimento de delitos, ao presente estudo
caberá aprofundar as questões relativas à abordagem concedida ao usuário de drogas,
diante dos acontecimentos recentes envolvendo internações de dependentes químicos
em situação de vulnerabilidade social nas cidades de São Paulo e no Rio de Janeiro,
sem, contudo, a pretensão de esgotar tema tão rico e complexo. Ainda que, no momento, não se verifique tais ações de forma contingencial, conforme informação dada pelos
órgãos oficiais, o fato ocorrido na “cracolândia”, em São Paulo, bem como na cidade do
Rio de Janeiro, despertou a sociedade e as instituições governamentais para a discussão acerca dessa questão.
Aproximando o debate da realidade pernambucana, atualmente tramita projeto de
Lei na Câmara dos Vereadores da cidade do Recife que visa a regulamentação das internações compulsórias dos dependentes químicos.
A internação compulsória não é medida nova no ordenamento jurídico brasileiro,
no entanto, a população e as diversas entidades jurídicas, governamentais, associações
médicas e órgãos de defesa dos direitos humanos, só recentemente voltaram-se para
complexo tema de relevância social. Portanto, para a realização do estudo sobre a questão das internações forçadas é necessário que se entenda o contexto em que ela eclode
na sociedade. Para isso, uma breve exposição dos fatos se faz necessária.
O termo “cracolândia”, utilizado pela mídia, designa o local onde pessoas, em geral
moradores de rua, se reúnem para consumir droga, predominantemente o crack. Para
Carl Hart (2013), o termo “cracolândia” é estigmatizante promovendo a “vilanização” de
determinado grupo social. Segundo ele, o crack significa apenas uma pequena parcela
dos graves problemas que acometem o local.
As cracolândias são, em geral, locais a céu aberto povoados de pessoas que buscam
a droga e o seu consumo livremente, num cenário de degradação e abandono, composto
na sua maioria por moradores de rua, o que, por certo, não causam boas sensações em
quem vê, em quem circula pela região e naqueles que convivem com tal vizinhança.
3.1 Síntese da internação compulsória na cidade do Rio de Janeiro
Na cidade do Rio de Janeiro, em 2011, ocorreu a primeira internação compulsória
de crianças e adolescentes, em consonância com a Resolução nº 20, de 30 de maio de
2011, da Secretaria Municipal de Assistência Social. Em seu art. 5º, §3º, estabelece:
A criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso
de drogas afetando o seu desenvolvimento integral será avaliado por uma
equipe multidisciplinar e, diagnosticada a necessidade de tratamento para
recuperação, o mesmo deverá ser mantido abrigado em serviço especializado de forma compulsória. A unidade de acolhimento deverá comunicar
ao Conselho Tutelar e à Vara da Infância, Juventude e Idoso todos os casos de crianças e adolescentes acolhidos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 202
Conforme Boiteux (2013), o procedimento era realizado com a abordagem da criança e do adolescente em situação de rua pelos agentes da SMAS e conduzidos à Delegacia
de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) para que se averiguasse a existência de
mandado de busca e apreensão. Em sendo constatada a existência do mandado, seria
a criança ou adolescente encaminhado ao Poder Judiciário. Em caso negativo e encontrando-se nitidamente sob a influência de drogas, seria feito o recolhimento em abrigo
especializado de forma compulsória, só sendo liberados após a anuência do Conselho
Tutelar e a autorização do Juízo competente. Percebe-se a inversão da lógica no uso
da medida, sendo a sua aplicação vista como regra em detrimento do direito garantido
constitucionalmente à liberdade, considerada como exceção.
Na ocasião, a Resolução em comento foi alvo de duras críticas de vários setores
da sociedade, tais quais, grupos de Direitos Humanos, tendo a Defensoria Pública do
Estado do Rio de janeiro, conforme relato da Defensora Márcia Fernandes, movido ação
civil pública contra a prefeitura daquela cidade. No mesmo sentido, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), órgão nacional de controle da
política de direitos das crianças e adolescentes no Brasil, declarou a ilegalidade dessa
Resolução, emitindo para tanto nota técnica condenando as práticas de internações
compulsórias e outras similares ocorridas em outras cidades, pela inobservância das
normativas nacionais e internacionais que versam sobre os direitos da criança e do adolescente, assim como a política nacional de atendimento à saúde mental, sugerindo seu
imediato sobrestamento.
Posteriormente, em maio de 2012, foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta pelo Ministério Publico do Estado do Rio de Janeiro, no qual o município do Rio de
Janeiro se comprometeu a abster-se de empregar qualquer medida de remoção compulsória ou involuntária da população adulta em situação de rua, ressalvadas as hipóteses
de flagrante delito ou por determinação médica.
Diante disso, prossegue Boiteux (2013), em resposta às denúncias, uma subcomissão designada pela comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio
de Janeiro visitou as unidades de recolhimento dos adolescentes internados de forma
compulsória, constatando diversas irregularidades, dentre as quais:
1) Difícil acesso dos locais;
2) Grande número de adolescentes recolhidos na forma de internação/recolhimento compulsórios;
3) Confusão quanto a nomenclatura abrigamento e internação;
4) Ausência de qualquer comprovação da eficácia de tal procedimento sob os adolescentes sujeitos ao internamento forçado;
5) Medicalização diária e excessiva dos adolescentes.
Diante das observações apresentadas, concluiu-se que:
Considerando os fatores ora expostos, as violações de direitos e garantias
fundamentais de crianças e adolescentes, a ilegalidade e inconstitucionalidade da Resolução nº 20 da SMAS, a contrariedade a normas e princípios
consagrados no ECA, na Carta Magna de 1988, em tratados e convenções
internacionais de direitos humanos, e em parâmetros e diretrizes básicos
estabelecidos pelas políticas de saúde/saúde mental e assistência social,
os atores envolvidos na confecção deste relatório compreendem a necessidade da imediata suspensão das ações da SMAS que preconizam o recolhimento e internação compulsórios de crianças e adolescentes que fazem
uso de álcool e outras drogas. (Subcomissão de DH da ALERJ).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 203
A despeito dessa reação às medidas de internação compulsória, o Rio de Janeiro
ampliou esse tão contestado procedimento, tendo o governo municipal, em outubro de
2012, anunciado a política de internação compulsória para adultos em situação de rua,
modificando, no entanto, o embasamento legal de tais medidas, sendo utilizada para tal
fim a Lei nº 10.216/2001. “Atualmente, a prefeitura interna compulsoriamente adultos
com base na lei 10.216/2001, por meio da internação involuntária.” (BOITEUX, 2013,
p. 58).
Geograficamente, a distribuição das ocorrências dessa forma de intervenção estatal, nos bairros cariocas, demonstra que de um total de 90% dos internamentos, 46%
se dão na zona sul, 29% no centro e 15% na zona norte, confirmando as suspeitas ora
levantadas de que a motivação de tais medidas possui caráter higienista, de limpeza
social e não de tratamento de saúde, como tão amplamente divulgado. Na verdade, utiliza-se de tal argumento para dar uma vestimenta legal a ato meramente discriminatório
e marginalizador de grupos já vitimados pela exclusão social, conforme dados do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Sem adentrar mais do que o necessário nas demandas judiciais ora enfrentadas
pelo Rio de Janeiro, vale ressaltar, para finalizar, que o Ministério Público local ingressou com duas ações de improbidade administrativa, solicitando, numa delas a cassação
do mandato do prefeito e do secretário de governo do município do Rio de Janeiro por
abusos na remoção dos sem-teto.
3.2 Síntese da internação compulsória na cidade de São Paulo
Em São Paulo, a chegada do crack ocorreu no ano de 1980. Em meados de 1990 a
região da Luz e adjacências foi se tornando, progressivamente, um espaço onde os consumidores se concentravam para adquirir crack e consumir a droga livremente. O crack
não inventou as populações marginalizadas que moram no centro, mas foi acolhido por
muitos deles, principalmente aqueles em situação de rua. A existência desses grupos
tornou-se então socialmente insuportável devido a sua incômoda visibilidade. (FIORI,
2013).
Em 19 de maio de 2011, a Comissão Especial de Políticas Públicas de combate às
drogas da Câmara dos Deputados visitou a cracolândia, no Centro da cidade de São
Paulo, com o objetivo de analisar os problemas existentes na região e propor medidas
de âmbito nacional para o combate ao crack e outros entorpecentes.
Uma das soluções apresentadas pelas autoridades estaduais integrantes do DENARC, órgão responsável pelo combate ao tráfico da polícia civil paulista, foi a internação compulsória de usuários. A medida teria como finalidade retirar os dependentes das
ruas, diminuir o consumo das drogas e o seu comércio ilegal (BONIS, 2011).
Apenas em 03 de janeiro de 2012 aconteceu o que ficou conhecido por “Operação
Cracolândia”, operação policial planejada pelas autoridades estaduais e municipais na
cidade de São Paulo na região da cracolândia com o objetivo de dispersar os usuários de
drogas e prender os traficantes. Conforme dados da Polícia Militar, 400 pessoas perambulavam pelas ruas da cracolândia, no entanto cerca de 2 mil pessoas passavam pela
região todos os dias. A ação foi alvo de duras críticas devido à violência empregada e a
ausência do Poder Judiciário, do Ministério Público e Defensoria Pública, deixando em
desamparo os usuários (MACEDO, 2012).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 204
Após debates e integração entre diversos órgãos, foi assinado um Termo de Cooperação Técnica entre o governo do Estado de São Paulo, Tribunal de Justiça, Ministério
Público e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), criando, assim, uma equipe de médicos, assistentes sociais e juízes sediados no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e
outras Drogas (CRATOD), no Parque da Luz, próximo à região da cracolândia.
Os dependentes químicos seriam abordados por assistentes sociais e agentes de
saúde e conduzidos ao local a fim de serem avaliados pela equipe médica que verificaria
a necessidade de internar compulsoriamente ou não (KAWAGUTI, 2013).
Segundo dados oficiais, teriam sido realizadas cerca de 2.800 internações entre
2009/2012, dentre as quais, 300 casos contra a vontade do paciente. No período de
2013 e 2014, segundo dados do CRATOD, o total de atendimentos realizados foi de
14.090, sendo 4.625 internações voluntárias, 610 internações involuntárias e 12 internações compulsórias, totalizando 5.247 internações.
Conforme Boiteux (2013), de acordo com os dados apresentados observa-se claramente algumas diferenças substanciais. Enquanto São Paulo possui um sistema mais
centralizado e com maior controle judicial, no Rio de Janeiro a política é exclusivamente
municipal, sem a participação do judiciário na avaliação dos casos. Entretanto, verifica-se que ambas estão baseadas na internação forçada da população que vive nas ruas.
Diante da repercussão na mídia que a cracolândia teve e ainda tem, é importante
ressaltar, que, conforme Zaffaroni (2013), parcela da população possui uma visão em
torno da questão criminal construída pelas informações repassadas pelos veículos de
comunicação, o que ele denomina de criminologia midiática. A criminologia midiática
seria uma das fontes do discurso higienista, criando bodes expiatórios, que irão variar
conforme o tempo e o lugar. Nos anos de 1970, por exemplo, criou-se o estereótipo do
subversivo que obedecia um padrão no vestir, na forma de usar o cabelo e que fumavam
maconha, sendo, portanto, considerados uma ameaça à segurança coletiva.
De acordo com Karam (2011), a mídia e os políticos têm estimulado o pânico do
crack, gerando uma histeria social. “Não existe essa epidemia de crack de que tanto se
fala”, declarou o psiquiatra Dartiu Xavier (KAWAGUTI, 2013). Ainda que preocupante a
questão do crack, o álcool é considerado o maior problema de saúde pública envolvendo
as drogas. Num universo de 600 atendimentos mensais, cerca de 40% são dependentes
de crack, segundo Xavier. A psicóloga e presidente do Conselho Regional de Psicologia
– Pernambuco, acrescenta que há uma atuação da mídia promovendo medo e estigmatizando os usuários (OLIVEIRA, 2013).
Conforme Carl Hart (2014), os meios de comunicação são importante fonte de desinformação acerca das drogas, sendo a mídia responsável por semear histeria no meio
social.
4.
Breve análise da constitucionalidade da medida de internação compulsória
A seguir será analisada a pertinência da medida de internação compulsória perante os princípios explícitos, bem como, os implícitos da Constituição Federal
de 1988.
4.1 Da legalidade e do devido processo legal
O art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, assim estabelece: “Não haverá
crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Portanto,
a fim de promover o controle do poder punitivo estatal, amparando os direitos e garantias individuais, a lei deve indicar com precisão e de forma clara a conduta proibida, de
acordo com Bitencourt (2009).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 205
Nas palavras de Busato (2013, p.146) “o princípio da legalidade condiciona a atuação do Estado durante todo o processo criminal, influindo na forma do estabelecimento
da lei, dos delitos e de suas penas, de seus procedimentos e da forma de cumprimento
das penas”.
O princípio do devido processo legal está inserido de forma expressa na Constituição Federal, no art. 5º, LIV, ao determinar que “ninguém será privado da liberdade
ou de seus bens sem o devido processo legal.” Adiante, no inciso LV, é assegurado aos
acusados o contraditório e a ampla defesa dentro de um processo judicial.
O art. 5º, §2º, da Carta Magna, institui que “os direitos e garantias expressos na
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. 10, prevê o direito ao
processo justo:
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial
que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ele seja deduzida.
A Lei nº 10.216/2001 significou um grande avanço no tratamento do portador
de sofrimento psíquico, perante o modelo anterior, instaurando um novo olhar, desta
feita centralizado no paciente, reconhecendo-o, assim, como sujeito de direitos com
capacidade e autonomia de intervir no processo terapêutico. Em seu art. 2º, portanto,
enumera direitos a serem informados ao indivíduo e aos seus familiares. Fornecer um
tratamento cercado de cuidados, observando o princípio da dignidade da pessoa humana, foi, sem dúvida, o grande objetivo do legislador.
Portanto, a utilização da referida lei, a fim de fundamentar uma intervenção arbitrária de internação forçada dos usuários de drogas, sem a devida individualização
do problema, faz com que a exceção torne-se regra, retornando ao antigo paradigma
hospitalocêntrico que esteve em evidência durante a ditadura militar. Seguindo essa
lógica, a medida de internação compulsória, que deve ser usada em caráter excepcional
e de forma criteriosa, conforme a lei, ao invés de cumprir seu papel libertador, resta por
aprisionar, promovendo o ressurgimento da lógica segregacionista que regia os manicômios. A aplicação de tal medida, de forma indiscriminada, sob o manto legal da Lei
nº 10.216/2001, revela uma estratégia higienista, permitindo às autoridades a retirada
dos indesejáveis, promovendo segregação e acentuando a exclusão social, instaurando,
mais uma vez, um paradoxo legal, diante da almejada inserção social a que se propõe a
norma em comento.
A situação desses indivíduos recolhidos compulsoriamente, chama a atenção por
sua singularidade. São moradores de rua em sua ampla maioria e pertencem à camada
populacional fortemente atingida por situação de vulnerabilidade social. Ainda que, sem
o cometimento de nenhum ato ilícito, salvo o uso de drogas, são submetidos à imposição
de restrição do direito à liberdade, sujeitos de uma punição indevida e arbitrária, na
medida em que não lhes é concedido o devido processo legal, não havendo, para tanto, a
necessária formalização de culpa nem a presença de defesa técnica por profissional habilitado, entre outras garantias legais. Os indivíduos não são autuados como usuários
de drogas, mas internados compulsoriamente a fim de proporcionar tratamento médico,
sem nenhuma acusação criminal.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 206
A aplicação da internação mediante decisão judicial existente dentro do ordenamento pátrio, obedece a algumas exigências e condições legais. Dentro da esfera criminal, a medida de segurança pressupõe o cometimento de fato típico e antijurídico por
inimputáveis e só pode ser decretada por um juiz, de acordo com o devido processo legal
e ampla defesa. Esta permanece até que se comprove da cessação de periculosidade, por
meio de exame pericial que ateste tal condição.
No âmbito do Direito Civil, o instituto de interdição, previsto no Código Civil, admite, excepcionalmente, conforme dispõe, em seu art. 1.777, a internação do interditando em estabelecimento adequado, caso não consiga adaptar-se ao convívio familiar,
sendo aplicáveis a esse instituto as disposições da Lei nº 10.216/2001. Em sendo indispensável a aplicação da internação compulsória, o Ministério Público e o perito médico
deverão ser ouvidos para que seja justificada tal medida. Boiteux (2013) considera essa
modalidade de internação compulsória como sendo garantista frente à existência de um
processo judicial orientado pelo direito ao contraditório e à ampla defesa.
Em ambas as situações citadas acima, seja como medida de segurança ou utilizada dentro de um processo de interdição, a restrição de liberdade conferida ao portador
de sofrimento psiquiátrico enseja um conjunto de atos jurídicos que promovem a proteção do incapaz, assegurando-lhe o devido processo legal, conforme Boiteux (2013).
Para Salo de Carvalho (2013), as internações compulsórias como pretensas medidas de tratamento dispensadas ao dependente químico, não podem ser consideradas
como medida de segurança por faltar a previsão legal para tal conduta. Considerando
que, embora o uso de drogas continue criminalizado, não se constitui, o encarceramento ou a aplicação de qualquer outra medida que envolva privação de liberdade, como
aplicação legalmente possível ao usuário de drogas.
A possibilidade legal do tratamento coercitivo aos usuários de drogas através da
internação compulsória, amparada pela revogada Lei nº 6.368/76, em seu art. 10, solidificou o discurso médico-jurídico sanitarista, na medida em que associa dependência/
delito, abandonando a necessidade da adesão voluntária ao tratamento por parte do
usuário, aumentando assim a possibilidade de identificação do usuário como dependente químico.
Salo de Carvalho (2013) denominou de medida de segurança atípica a imposição
de tratamentos compulsórios aos não dependentes, independente da instalação do devido processo penal, aproximando assim o sistema de saúde das práticas punitivas de
repressão.
A utilização das internações forçadas em massa dentro desse cenário deve
ser analisada como um exemplo de política não penal no sentido estrito,
mas que acarreta uma atuação repressiva, ainda que “alternativa”, em relação aos usuários de drogas ilícitas em situação de vulnerabilidade (BOITEUX, 2013, p.55).
Conforme Karam (2011), o contexto de vulnerabilidade social em que estão inseridos a maior parte dos usuários de crack, submetidos à internação compulsória, constitui-se no problema de maior gravidade e não o crack em si, como tem sido alardeado. As
condições precárias de vida, a privação de direitos básicos e a extrema pobreza violam
a dignidade da pessoa humana, provocando a exclusão e marginalização social, uma
verdadeira negação da cidadania a esses indivíduos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 207
O recolhimento forçado dos usuários de drogas em situação de rua reafirma essa
conduta de violação e descaso por parte do Estado, que acomete essa parcela da população. Sendo assim, de detentor do dever de tutelar os direitos constitucionais através
da promoção de políticas inclusivas, penaliza os já penalizados socialmente. A política
proibicionista, além de criminalizar, submete-os a humilhação, a perseguição e ao recolhimento a instituições em tudo semelhantes a prisões, “acrescentando às suas miseráveis e traumáticas condições de vida a violência da privação de sua liberdade” (KARAM,
2011, p.46).
No momento atual, onde “a indústria perdeu os psicóticos para a reforma manicomial, foi criado um novo louco, criou-se o “louco do crack” (OLIVEIRA, 2013). A
função libertadora da lei antimanicomial, enquanto mola propulsora da extinção dos
manicômios vê-se ameaçada pela indevida utilização que vem sendo dada ao servir-se
aos órgãos de políticas públicas para fundamentar ações arbitrárias, inconstitucionais
e, portanto, violadoras dos direitos humanos. O uso de medidas simplistas e cômodas
para a sociedade implica num risco de que ressurjam os manicômios, com a equivocada
maneira de se abordar um problema tão complexo.
4.2 A autonomia da vontade e o princípio da alteridade como limitadores da atuação
estatal
A Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas, em 1948, enalteceu os direitos fundamentais do homem, consagrando
a dignidade da pessoa humana como fundamento central de toda e qualquer atuação
dos Estados soberanos. Em seu art. 29, 2, estabelece que:
No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito
apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de
assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de
outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e
do bem-estar numa sociedade democrática.
Segundo Fontes (2009), o usuário abusivo e o dependente de drogas poderão apresentar comprometida sua autonomia diante da afetação da capacidade de deliberação
racional do indivíduo, o que resultaria numa impossibilidade de livre escolha.
No entanto, existem algumas divergências acerca da capacidade de autodeterminação do usuário de substâncias psicoativas. Vale ressaltar que são muitas as contradições entre o que pensa a sociedade, baseada no senso comum, em meras opiniões, e
o que a ciência demonstra por meio de comprovações empíricas. Em que pesem as mais
recentes pesquisas científicas, importantes achados no que concerne à dependência,
foram obtidos por Carl Hart. Segundo os resultados observados através de estudos em
humanos, constatou-se que, “mesmo num ambiente de drogas, as pessoas viciadas não
são meros escravos da ânsia, elas são capazes de fazer escolhas racionais” (Hart, 2014,
p.259).
Premissas falsas acabam por induzir a conclusões equivocadas e, portanto, a escolhas de políticas públicas ineficazes e desastrosas. A adequada compreensão do usuário
de drogas, enquanto sujeito de direitos e plenamente capaz é essencial para a construção de uma nova abordagem acerca da questão.
A autonomia de toda e qualquer pessoa, inclusive da pessoa que usa, abusa ou é dependente de drogas, é premissa no Estado Democrático de direito. O mito de que o “viciado” é alguém que não sabe o que quer se presta a
legitimar invasões violentas. O autoritarismo se transveste de salvacionis-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 208
mo: é necessário proteger a pessoa dela mesma, importando menos o custo humano e psíquico que isso implica. A premissa é a capacidade de toda
e qualquer pessoa de fazer escolhas e não o contrário (Albuquerque, 2012).
Segundo Karam (2011), em um regime democrático é inadmissível o cerceamento
da liberdade do cidadão, constitucionalmente amparada, sob o pretexto de oferecer-lhe
proteção, negando-lhe a possibilidade de escolha. A imposição de tratamento compulsório vinculado ao sistema penal resulta numa violação, não somente ao direito a intimidade, ao dever de sigilo e à ética profissional, mas, acima de tudo, à liberdade individual. Portanto, desde que não cause dano a direito de terceiros, não há que se falar em
restrição de liberdade do cidadão, como forma de atuação estatal.
Ainda de acordo com Karam (2013), ao considerar o usuário de drogas como um
ser desconstituído do livre arbítrio, ressurge a concepção lombrosiana de que o “louco”
não seria capaz de se autodeterminar, perdendo seu status de cidadão, ”devendo assim
ser recolhido a uma instituição em tudo semelhante a uma prisão”. Os tratamentos
compulsórios restam, assim, ineficazes e violadores dos direitos fundamentais.
A opção pelo confinamento forçado resulta, portanto, no enfraquecimento
da vontade individual, fator mais relevante para o tratamento da dependência, nada colaborando para uma alegada proteção do dependente químico, consoante Fiore (2013).
De acordo com a abordagem médica, apenas 5% dos dependentes químicos são
acometidos de alguma psicose ou possuem algum problema mental associado, o que,
segundo Dartiu Xavier (2013), justificaria a aplicação da internação forçada como medida de exceção, em conformidade com a Lei nº 10.216/2001. Ainda assim, a reincidência
atinge o patamar de 95% após o internamento, mostrando-se ineficaz quanto à finalidade pretendida. A adesão voluntária ao tratamento é imprescindível para a obtenção de
resultados satisfatórios.
De acordo com Silveira (2013), o tratamento mais efetivo aplicado ao usuário de
drogas é o voluntário e envolve o comparecimento a clínicas e centros especializados. A
dificuldade maior reside nos altos índices de recaídas no primeiro mês após a internação, diante do retorno do paciente ao convívio social e aos conflitos cotidianos.
Necessário considerar ainda o índice de recuperação, questão que embora
controversa, aponta para resultados satisfatórios no âmbito ambulatorial em detrimento do recolhimento forçado.
O direito à autonomia e autodeterminação, o combate ao estigma, ao preconceito e
à descriminação e o respeito aos direitos humanos devem ser observados em qualquer
estratégia de tratamento para a dependência de drogas” (ONU), conforme documento
elaborado pela OMS orientando a abordagem direcionada ao tratamento da dependência de drogas.
5.
Projetos de lei de internação compulsória
O Projeto de Lei Complementar nº 7.663/2010, apresentado na Câmara dos Deputados pelo parlamentar Osmar Terra, do PMDB/RS, encontra-se atualmente em tramitação no Senado Federal sob a referência PLC nº 37/2013, prevê, dentre outras alterações na Lei nº 11.343/2006, a internação do usuário ou dependente de drogas nas
modalidades previstas na Lei nº 10.216/2010:
“Art.11. Inclua-se o seguinte art.23-A à Lei nº 11.343, de agosto de 2006:
Art.23-A A internação de usuário ou dependente de drogas obedecerá ao
seguinte:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 209
I-Será realizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional
de Medicina (CRM) do Estado onde se localize o estabelecimento no qual se
dará a internação e com base na avaliação da equipe técnica;
II- Ocorrerá uma das seguintes situações:
a) Internação voluntária: aquela que é consentida pela pessoa a ser internada;
b) Internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
c) Internação compulsória, aquela determinada pela justiça.”
O citado projeto de lei determina a utilização das medidas de internação, previstas
na Lei nº 10.216/2001, na abordagem terapêutica do dependente de drogas, estendendo ao usuário a possibilidade da sua aplicação, numa clara violação às liberdades
individuais.
A flagrante inconstitucionalidade consubstancia-se na ausência do contraditório,
na falta de previsão de prazo máximo de internação, igualando-se às penas de caráter
perpétuo, na privação da liberdade sem as mínimas garantias constitucionais concedidas aos presos, tornando-se uma violação da dignidade humana devido ao caráter asilar
da maioria das instituições, promovendo assim um tratamento degradante e cruel, similar às práticas de tortura, consoante Juan Méndez, Relator Especial da ONU, quando
da 22ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em fevereiro de 2013, na cidade de
Genebra.
Segundo Dartiu Xavier (2013), o projeto aumenta a demanda por vagas em instituições públicas habilitadas para tratamento de dependentes químicos. Ocorre que
em muitos Estados não há vagas sequer para os pacientes voluntários e com indicação
médica. Com a lei, as pessoas vão ter o direito de exigir vagas do Estado, que não tem
aparelhamento e vai recorrer à rede privada de hospitais. O lobby pela aprovação da lei
estaria aí. Quem está por trás disso são os hospitais privados que têm interesse no lucro
(BONNIS, 2011).
Quanto a essa questão, deve ser considerado o art. 10 do referido projeto, que, em
seu §2º, estabelece:
Na hipótese da inexistência de programa público de atendimento adequado à execução da terapêutica indicada, o poder judiciário poderá determinar que o tratamento seja realizado na rede privada, incluindo internação,
às expensas do poder público.
Retrocesso maior pode ser constatado no Projeto de Lei nº 111/2010, do ex-senador Demóstenes Torres (DEM), em tramitação no Senado, ao estabelecer pena de detenção de 6 meses a 1 ano ao usuário de drogas, retomando assim a sua já superada
criminalização.
Na esfera do município do Recife, o Projeto de Lei nº 17/2013, de autoria do vereador Luiz Eustáquio (PT), prevê “medidas de internação compulsória que serão realizadas
mediante avaliação feita por profissionais de saúde.” Conforme o texto apresentado,
falta clareza quanto à obrigatoriedade do laudo médico para que seja efetivado o recolhimento forçado. No entanto, condiciona o término da internação compulsória ao parecer
do médico. Ademais, não orienta quanto à reintegração do paciente ao meio social após
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 210
o período de internamento e o seu necessário retorno à vida em sociedade. Importante
ressaltar que a Lei Federal nº 10.216/2001 já aborda a questão a contento, sendo desnecessária a criação de lei municipal para tal fim.
Considerando que, conforme previsão constitucional, é de competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre proteção e defesa da
saúde, aos municípios caberá suplementar a legislação federal e a estadual naquilo que
couber. Diante da Lei Federal nº 10.216/2001, o citado projeto de lei municipal resta
absolutamente desnecessário e claramente inconstitucional.
6.
Considerações finais
A análise do uso das drogas e seus efeitos na sociedade necessitam de atenção e
cuidado. A boa informação se constitui na ferramenta mais importante para a adequada
compreensão das inúmeras questões que cercam tema tão rico e dotado de uma singular complexidade. Quando se fala em “drogas”, termo utilizado na acepção popular para
falar das diversas substâncias psicoativas capazes de causar as mais variadas alterações psicossomáticas no organismo, mais mitos e menos verdades científicas ocupam o
centro do debate.
A histeria emocional decorrente da falta de informação, ou ainda pior, da informação distorcida e equivocada, acaba por encobrir os verdadeiros problemas sociais que
acometem diariamente o cidadão.
As internações compulsórias, ao serem aplicadas amparadas sob o discurso legitimador de oferecer cuidado ao dependente químico, transformam-se, na verdade, em penas disfarçadas de tratamento. O cuidado, diferentemente da punição, requer atenção
às necessidades básicas e prementes do indivíduo no contexto de uma lógica multidisciplinar que envolve a questão. Para tanto, o marco orientador de qualquer abordagem
dispensada ao usuário deve ser o próprio usuário, enquanto cidadão de direitos, que
estigmatizado numa sociedade envolta em preconceitos, resta marginalizado e excluído.
Apenas enquanto cidadão de direitos, nem doente, nem delinquente, e tão somente assim, no centro gravitacional das decisões políticas, é que será possível encontrar soluções eficazes e adequadas ao problema das drogas.
Diante das evidências de fracasso da atual política proibicionista de enfrentamento
à questão das drogas, é necessário estimular e proporcionar o debate, envolvendo os diversos setores da sociedade, bem como a sociologia, a medicina, a educação e o Direito,
a fim de promover uma necessária e imprescindível mudança de paradigma.
As internações compulsórias, ora transvestidas de tratamento, ora de pacificadora
social, amparada sob o discurso legitimador de proteção contra possíveis delitos, revelam-se, na verdade, em graves violações aos direitos e as garantias fundamentais da
parcela mais vulnerável da população. O cerceamento da liberdade sem o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório se constitui medida abusiva e ilegal, enfim,
inconstitucional.
Ademais, ao adotar medidas repressivas, de cunho administrativo, alheias à esfera
penal, internando compulsoriamente, como forma de enfrentar as consequências da
dependência química, o Estado acentua a negação e recorrente omissão da concretização do direito fundamental à saúde. No lugar de cuidar, penaliza duplamente aqueles já
marginalizados da sociedade.
Por fim, observar atentamente as experiências de outros países e o caminho desenhado para o enfrentamento das drogas se faz extremamente importante no momento atual. No entanto, a escolha de adequadas políticas públicas a serem aplicadas no
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 211
Brasil deverá considerar atentamente a realidade social, econômica e cultural de nosso
país, dentre outros fatores relevantes, não sendo cabível copiar modelos que deram certo dentro de outros contextos sociais.
REFERÊNCIAS
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BUSATO, Paulo César. Fundamentos para um direito penal democrático. 4ª ed., São
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CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2013.
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doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.
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MACEDO, Letícia. Operação na cracolândia já contabiliza mais de 200 presos. São
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 212
OLIVEIRA, Mariana. Crack: internação involuntária. Isso é correto? Revista movimento médico. Recife, jun/jul/ago 2013.
SILVEIRA FILHO, Dartiu Xavier da. Drogas uma compreensão psicossocial das farmacodependências. São Paulo: Casado Psicólogo, 1995.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. 1ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2013.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 213
A IMPORTÂNCIA DO MARCO CIVIL NA DEMOCRATIZAÇÃO DA INTERNET
Danilo Scalzo Faro1
1.
Introdução
Na data de 23 de abril de 2014 foi publicada no Diário Oficial da União de 23 de
abril a Lei 12.965, conhecida, popularmente como Marco Civil da Internet, essa Lei foi
uma resposta da população civil ao suposto AI-5 Digital do Eduardo Azeredo. Lei essa
que estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres de todos que utilizam a Internet no Brasil, e até quem utiliza dela no exterior visando o povo brasileiro. Também
de questões como liberdade de expressão, privacidade e sigilo de dados pessoais dos
usuários, especificamente deles nesse caso. Houve um prazo de 60 dias, estabelecido
na própria lei, para que a mesma seja aplicada.
A Lei entrou em vigor, e já possui divergências, visto que o texto da própria Lei permite diversas interpretações de um mesmo artigo, abre precedente para interpretações
diversas, e ainda de julgamentos antecipados de efeitos de uma tutela dos Juizados
Especiais.
2.
O que é marco civil?
O Marco Civil se trata da Lei 12.965/14 e que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres em relação ao uso da internet no Brasil, como está descrito na própria
lei. Ela foi descrita por Luiz Paulo Barreto, como “A Constituição da Internet”. Ela entrou em vigor no dia 23/06/2014.
3.
A neutralidade da rede
A Neutralidade da Rede é um principio estabelecido na Lei, a qual aduz que o responsável pela transmissão dos dados deve fazer isso em igualdade a todos os serviços
prestados, por exemplo, ao acessar um site que reproduza vídeos ele não pode diminuir
a velocidade de sua conexão, como acontecia com alguns provedores de internet, antes
da Lei.
Segundo o art. 9º da Lei temos:
Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o
dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos
termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas
no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução
desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de
Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
1 Danilo Scalzo Faro: Estudante de Graduação do 8º período da Universidade Católica de Pernambuco
– UNICAP, email: [email protected]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 214
I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e
aplicações; e
II - priorização de serviços de emergência.
§ 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no §
1o, o responsável mencionado no caput deve:
I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no
10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;
II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente
descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e
IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.
§ 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como
na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar,
filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto
neste artigo.
O artigo, como já mencionado anteriormente, estabelece uma suposta igualdade
em qualquer forma de transmissão de dados, digo suposta, pois é inconstitucional proibir duas partes a estabelecer um contrato. Contudo, caso uma pessoa queira assinar
um pacote de dados onde é priorizado algum site especifico ou um fluxo de mídia para
vídeos. Inclusive no próprio artigo 9º, parágrafo 1º, inciso I, estabelece que a discriminação ou degradação do tráfego decorre de requisitos técnicos indispensáveis à prestação
adequada dos serviços e aplicações, o que permite que a prestação adequada do serviço
seja proporcional ao preço. O inciso II do mesmo artigo adiciona os sites de serviços
emergenciais a prioridade máxima, obrigando aos provedores do serviço colocarem esses sites em prioridade junto com os outros que foram contratados pelo usuário.
No mesmo artigo, o parágrafo 2º, inciso III, decreta que o serviço contratado deve
ser demonstrado de forma transparente à prática de gerenciamento de tráfego adotada. Um bom exemplo é a NET, ela deixa claro que seu pacote possui uma “franquia de
consumo”, em que o usuário tem uma cota de dados para utilizar, e caso ultrapasse ela
reduzirá a velocidade do fluxo de dados. Nesse caso cabe ao consumidor avaliar se o
serviço que ela oferece o agrada, e ela deixa claro, em seu endereço eletrônico, a forma
que funciona o seu serviço.
Para finalizar, a lei estabelece um princípio que não existia antes, embora as empresas que não seguiam a Neutralidade da Rede sempre foram discriminadas pelos
usuários, sofrendo até boicotes.
4.
Proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicções privadas
Essa seção da Lei Nº 12.965 decreta através do artigo 10 que os registros que os
provedores possuírem devem atender a preservação da intimidade, da vida privada, da
honra e da imagem de todos, também aduz que os provedores responsáveis pela guarda
dos registros só serão obrigados a disponibilizarem-nos através de uma ordem judicial.
Essa nova medida é uma nova medida, pois, antes da Lei entrar em vigor, não era necessária uma ordem judicial para obter essas informações, ou até exigir que alguma pessoa
jurídica ou física removesse algum conteúdo de seu endereço eletrônico.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 215
Tratando o mesmo artigo 10 estabelece, em seu parágrafo 2º, que todas as comunicações privadas só poderão ser obtidas através de ordem judicial. Como veremos
mais pra frente, todos os provedores são obrigados a manter um registro do usuário de
acordo com o serviço que propõe. Entretanto a Lei trata a todos como potenciais criminosos, visto que é necessário que haja um armazenamento de todas as informações
que o usuário possui, essas medidas passam a infringir algo que o próprio artigo tenta
estabelecer, pois ele aduz a necessidade de defender a intimidade do usuário mas passa a ter um registro de tudo que o mesmo possui, quebrando sua intimidade caso seja
necessário, ou útil.
O parágrafo 3º do mesmo artigo, ainda, autoriza que autoridades administrativas
que possuam competência legal adequada possuam acesso aos dados cadastrais sem
que haja necessidade de uma ordem judicial.
A Lei estabelece que o Marco Civil será aplicado a empresas brasileiras, pessoa
jurídica sediada no exterior que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma
integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil e aos usuários
que sejam residentes no Brasil.
5.
Guarda de registros de conexão
Com a aplicação do Marco Civil os provedores de conexão devem manter o registro
de conexão de cada usuário por um prazo de um ano, e estabelece que o Ministério Público - MP, a autoridade policial ou administrativa pode requerer cautelarmente que o
prazo seja prorrogado e, somente após o requerimento, terá um prazo de sessenta dias
para ingressar com um pedido de autorização judicial.
6.
Guarda de registro de acesso a aplicações de internet na provisçao de
aplicações
Quem for provedor de aplicação com fins econômicos devem guardar os respectivos
registros de acesso a aplicações de internet por um prazo de seis meses, e novamente a
autoridade policial, administrativa e o MP podem requerer que o prazo seja prorrogado.
O que em ambos os casos permite-se que a autoridade administrativa tenha seus dados pessoais, coisa que antes não possuía, invadindo a privacidade de todos, tratando
a todos como potenciais criminosos. E, ainda, a Lei permite que através de uma ordem
judicial pode-se obrigar os provedores de aplicação de internet que não estão sujeitos
ao caput do artigo que guardem, por um período determinado, registros relativos a um
fato específico.
7.
Respondabilidade decorrente de dano gerado por terceiro
Esse é um dos principais pontos positivos da Lei, pois segundo o artigo 18: O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes
de conteúdo gerado por terceiros.
Esse artigo protege, por exemplo, as redes sociais que todos utilizam no Brasil, pois
anteriormente caso um cidadão fizesse um texto em sua pagina pessoal no site Facebook onde denegriu a imagem de outrem, responsabilizariam quem denegriu a imagem
e a pessoa jurídica que permitiu aquele ato, no exemplo o Facebook.
Com o Marco Civil, o provedor de aplicação só será responsabilizado por ato de
terceiro caso, após o processo judicial, se houver uma ordem judicial e ele não retirar
o conteúdo tempestivamente. Essa ordem judicial deve conter a identificação clara do
conteúdo a ser retirado, sob a pena de nulidade.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 216
Entretanto o artigo 19, os parágrafos 3º e 4º, permitem que todas as causas que
tratem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na
internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade podem ser
apresentadas perante os Juizados Especiais e, ainda nesse caso, permite que o Juiz antecipe, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial.
8.
Efeitos da lei na democratização da internet
O Marco Civil traz pontos positivos e negativos, estabelece algumas normas que já
eram aplicadas, contudo sem nenhuma previsão legal, e também outras que passaram
a ser aplicadas com ele.
A maior virtude, eu acredito, é a não responsabilização do conteúdo produzido por
terceiros, era necessário essa alteração para que não aconteça, novamente, o que houve,
por exemplo, com o site do YouTube em relação aos vídeos da modelo Daniela Cicarelli,
onde, através de uma ordem extrajudicial, foi bloqueado todo o acesso dos protocolos de
internet – IP brasileiros, assim impossibilitando a todos que estavam no Brasil de visualizar o site. Contudo, ainda no mesmo ponto, há brechas a serem discutidas, como o
judiciário vai reagir caso seja publicado um vídeo que denigra a imagem de alguém por
diversas pessoas, dependendo da quantidade de usuários que compartilhem o vídeo, ou
que façam o upload do mesmo novamente, será o site multado por não conseguir controlar seus usuários? Se assim entender o judiciário, isso poderá provocar uma analise
previa de cada conteúdo a ser disponibilizado, e culminando em uma censura.
O entendimento de Fernando Gouveia em um texto , um advogado que também é
empresário e escreve para blogs, em um texto
Contudo já existem pensamentos contrários aos que foram citados, como o de Roberto Flávio Cavalcanti, onde defende a inconstitucionalidade do artigo 19 em virtude
da responsabilidade civil do servidor de aplicação. Segue um trecho:
“Assim, não há a menor razão de excluir os provedores de aplicações de
internet do campo de aplicação do CDC e despojar os consumidores de
direitos já consolidados, como é o caso de se ver indenizado pela responsabilização objetiva do fornecedor. O Marco Civil, ao reverso, impõe a
judicialização compulsória do conflito de interesses, o que além de onerar
substancialmente o consumidor, só apura responsabilidade do provedor
em caso de desobediência à ordem judicial. Sem embargo, o artigo 19 do
Marco Civil traz um maior ônus econômico ao consumidor, que terá que
levar obrigatoriamente seu caso à justiça para ver solucionado seu problema, amargando inevitável retardo na solução de lesões irreparáveis ou de
difícil reparação.”
Outro ponto é o tratamento que o usuário passou receber pelas as autoridades,
devido a o fácil acesso que qualquer autoridade competente possui a todos os seus
dados pessoais, pois tudo que se é acessado pelo usuário também é registrado pelos
provedores, tanto de aplicação quanto de conexão. Isso torna sua intimidade acessível
a todas as autoridades administrativas, onde não há nenhuma qualificação, surgindo
uma insegurança, pois há uma incerteza de quem tem o acesso aos dados dos usuários,
de acordo com esse mesmo entendimento Radamés Comassetto Machado reitera:
“No entanto, o §3º do art. 10 do Marco Civil possibilita às autoridades
administrativas a requisição de dados cadastrais que informem a qualificação pessoal, filiação e endereço de determinado usuário. Ora, tal regu-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 217
lamentação deixa uma cláusula aberta ao trazer apenas a expressa “autoridade administrativa”, sem especificá-la. Ao passo que se denota uma
insegurança quanto ao real sigilo das informações pessoais dos usuários.”
Contudo também impossibilita que esses mesmos dados sejam negociados
pelas empresas, pois as mesmas não tem essa autorização, somente se o
usuário a permita ter.
O Marco Civil já entrou em vigor precisando de regulamentações, visto que
tem alguns defeitos, e o seu próprio o seu próprio texto prevê que para
ocorrer o funcionamento de algumas de suas normas, deverá ocorrer uma
edição um regulamento através de um Decreto Presidencial, onde a presidente Dilma Rousseff já afirmou que esta regulamentação será feita na
forma de debate público, onde a Internet será sua plataforma, conforme foi
feito no texto da Lei, o que é um outro ponto positivo, pois deve-se levar em
consideração a todos que a lei abrange.
9.
Conclusão
A Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 veio com o intuito de regulamentar o uso
da Internet e tentar estabelecer os princípios a todos que a utilizam, seja para lazer,
usuários, ou para fins econômicos, provedores de conexão ou de aplicação. Regulamentações boas, que retiram a responsabilidade do provedor em virtude de atos de terceiro
e a tentativa, e o incentivo, de estabelecer a neutralidade da rede, sem atingir nenhum
princípio constitucional, ou regulamentações falhas, como permitir que autoridades
administrativas incertas, pois não foram estabelecidas na Lei, tenham acesso a dados e
informações que não possuíam antes.
Uma grande virtude do Marco Civil é sua constante tentativa de defender o usuário
brasileiro, que constantemente é colocado em situações abusivas sem outras alternativas e é obrigado a aceita-las, ou por questões culturais não tem o costume de ler o termo
de uso dos serviços encontrados na Internet, onde constantemente seleciona a opção
de prosseguir. Com a Lei em vigor, empresas como o Google estão impossibilitadas de
utilizar informações em conversas privadas, seja para fazer uma propaganda para si ou
para outrem, como era feito anteriormente.
Sites que prestam serviços aos brasileiros, porém estão “hospedados” em servidores nos exterior e não possuam Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica – CNPJ, estão
sobre a jurisdição da Lei, o que garante a todos uma facilidade caso seja necessário
recorrer ao judiciário em qualquer e eventual problema.
REFERÊNCIAS
SEMINÁRIO MARCO CIVIL DA INTERNET NO 3., 2010, Brasília. Instituto Brasilense
de Direito Público. 2010.
LEI Nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 218
CAVALCANTI, Roberto Flávio. A inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4047, 31 jul. 2014. Disponível em: <http://
jus.com.br/artigos/30560>.
MACHADO, Radamés Comassetto. Marco civil da internet - Análise dos pontos relevantes da Lei nº 12.965/2014. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4138, 30 out. 2014.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/30162>.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 219
EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
ENTRE PARTICULARES. ANÁLISE AMPLIATIVA
Felipe Soares Torres1
Graciliano de Souza Cintra2
1.
Notas introdutórias sobre os Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais são o conjunto de normas de um ordenamento jurídico
que formam um subsistema desse, fundados na liberdade, na igualdade, na seguridade,
na solidariedade e na dignidade da pessoa humana, consagrando um setor da moralidade procedimental positivada, legitimadora do Estado Social de Direito (MARTINES,
1999, p.469). Trocando em miúdos, os direitos fundamentais são os direitos básicos
para qualquer ser humano, independente de condições pessoais específicas.
Para o Jusnaturalismo, os direitos fundamentais são direitos pré-positivos, isto
é, direitos anteriores mesmo à própria Constituição; direitos que decorrem da própria
natureza humana, e que existem antes do seu reconhecimento pelo Estado. Já o Positivismo Jurídico entende que os direitos fundamentais são aqueles considerados como
básicos na norma positiva (norma posta), ou seja, na Constituição. Por fim, o Realismo
Jurídico norteamericano considera que os direitos fundamentais são aqueles conquistados historicamente pela humanidade (FILHO, 2012, p. 5).
Tais direitos encontram-se presentes em todas as cartas constitucionais do constitucionalismo hodierno. Estes são prerrogativas público-subjetivas previstas constitucionalmente, cuja finalidade clássica é limitar o exercício do poder estatal em face da
liberdade individual (DIPPEL, 2007, p. 03).
Diante de uma perspectiva liberal-burguesa, a derrota do Absolutismo Monárquico impôs a consolidação de uma nova forma no relacionamento entre Estado e sociedade, haja vista as marcas deixadas na memória pelos abusos perpetrados no período
imediatamente anterior. A estrita separação entre essas duas instituições se deu por
meio da concessão aos indivíduos de direitos fundamentais concebidos originariamente
para afastar as violações que partiam do Estado.
Nesse contexto, os direitos fundamentais seriam o ponto extremo perante o qual
as ações estatais não poderiam ultrapassar. Essas conquistas burguesas permitiram,
portanto, um amplo espaço de liberdade e autonomia nas relações travadas entre os
particulares, principalmente naquelas de caráter patrimonial. A razão de ser dessa abstenção estatal, além da suposição de que as ações privadas estariam sob o manto da
igualdade (formal), o que dispensava qualquer atenção do Estado, encontrava-se na
necessidade da expansão capitalista à época (LIMA, 2012, p.2).
Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra-PT.; Pós-Graduado em Direito das Famílias e
das Pessoas pela Universidade de Coimbra –PT.; Pós-Graduado em Proteção dos Menores pela Universidade de Coimbra-PT.; Pós-Graduado em Direito Público pela ESMAPE; Pós-Graduado em Direito Civil pela
Universidade Anhanguera –SP.; Advogado militante na área cível; Professor de Direito Civil.
1 Especialista em Direito Público pela Estácio do Recife; Advogado militante na área cível e consumerista.
2 Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 220
Denota-se, assim, que o único destinatário dos direitos fundamentais seria o Estado, pois dele viriam as ameaças à liberdade e autonomia privada. Nesse ponto é que se
diz que os direitos fundamentais teriam uma eficácia vertical, ou seja, a oponibilidade
exclusiva em face dos órgãos estatais, únicos sujeitos obrigados a respeitar tais direitos.
Essa noção enraizou-se na teoria e prática constitucionais, principalmente as dos ordenamentos vinculados ao modelo liberal.
Ocorre que, especialmente em Estados periféricos e ainda bastante desiguais
como o Brasil, não são os órgãos Estatais que são os Leviatãs modernos. Este papel
passa a ser protagonizado por entes privados, os quais respondem pela maioria dos
serviços por intermédio de delegação do Poder Público. Com efeito, em virtude da mitigação do Estado e do avultamento da iniciativa privada, as maiores ofensas aos direitos
fundamentais tem sido perpetradas por entes extra-estatais (AGRA, 2009, p.78).
Com efeito, as relações de poder estão disseminadas por toda a sociedade: megagrupos industriais, comerciais, financeiros e midiáticos, capazes de impor seus modelos
de políticas econômicas em face dos Estados, e que, de alguma forma, acabam condicionando, restringindo ou até mesmo eliminando, a liberdade dos indivíduos. Tais poderes,
em contextos específicos, podem representar uma ameaça aos direitos fundamentais,
não menor do que a representada nas ações estatais. Quiçá podem ser até mais perigosos que os Poderes Públicos, uma vez que são favorecidos pelas dificuldades existentes
para articular um sistema incisivo de controle de suas ações (LIMA, 2012, p.4).
Assim, não demorou muito para que as sociedades modernas percebessem
que a eficácia vertical dos direitos fundamentais é insuficiente. Tutelar os direitos fundamentais apenas quando eles são desrespeitados pelo Estado é realizar uma proteção
incompleta, pois deixa de vislumbrar os mais variados abusos perpetrados na esfera
privada, protegida pela concepção liberal dos direitos.
Como já mencionado, os direitos fundamentais são respostas contra as diversas
ameaças sofridas pelo homem. A mutabilidade dessas respostas impõe o desenvolvimento de novos instrumentos que ultrapassem a proteção da relação Estado-cidadão.
Perante essa realidade é que se atribui aos direitos fundamentais uma vertente denominada de eficácia horizontal.
A eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais no âmbito das relações jurídico-privadas passou a ser denominada, na doutrina e na jurisprudência
constitucional, sob vários títulos: “eficácia privada” , “eficácia em relação a terceiros” ,
“eficácia externa“ e “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”.
Pretende-se enfocar com essas expressões a tese de que os direitos fundamentais
não são oponíveis exclusivamente em face do Poder estatal, mas também em relação aos
particulares. Importa destacar que essa vinculação não se dá somente contra os poderes privados, pois alberga, além deles, as relações em que não há subordinação, ou seja,
nos vínculos igualitários, pois não importa de onde provem a violação, mas a tutela do
direito fundamental agredido.
2.
Eficácia horizontal dos direitos fundamentais (caso Lüth)
A história da influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado começou
no âmbito típico destes e até hoje produz resultados contundentes (FREIBURG, 2011,
p. 11). Tal problemática teve as suas primeiras discussões na doutrina constitucional
alemã, a partir da segunda metade do século XX, por meio da doutrina da “Drittwirkung
der Grundrechte”, ou seja, efeitos frente a terceiros dos direitos fundamentais, formulada pelo juiz do Tribunal Federal do Trabalho da Alemanha, Hans Carl Nipperdey (LIMA,
2012, p.4).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 221
Segundo Bilbao Ubillos (1997, p. 271), Nipperdey traz em sua teoria, a consciência do poder social e econômico de determinados grupos privados, poder esse capaz de
afetar intensamente um grande número de indivíduos. Em razão disso, há preceitos que
reconhecem direitos fundamentais frente a esses poderes privados. Não é de se estranhar, ainda, que a gênese teórica encontre-se num Tribunal em que a força dos poderes privados é mais evidente, pois é nas relações de trabalho que se vislumbram mais
claramente as violações dos direitos fundamentais dos particulares por meio de outro
particular.
Apesar da dificuldade de se estabelecer com precisão até que ponto a reivindicação do propagado pioneirismos e originalidade é correto, não há como negar ter sido na
Alemanha, especialmente a partir da Lei Fundamental de 1949, que o tema encontrou
o seu maior desenvolvimento (SARLET, 2005, p.163).
O marco de tal problemática foi a decisão emblemática do Tribunal Federal Alemã
no caso Lüth – um dos julgamentos mais debatidos desse tribunal. Em 1958 a Corte
alemã decidiu o caso Lüth com base em uma construção holística dos direitos fundamentais. Lüth conclamou um boicote aos filmes produzidos por Veit Harlan no pós1945, pois este produzira nos anos antecedentes filmes nazistas e de conteúdo anti-semita. O Tribunal de Hamburgo vedou o chamado boicote com sustentáculo no Código
Civil alemão. Inconformado, Lüth apelou ao Tribunal Federal alemão, alegando que tal
proibição feria o seu direito fundamental à liberdade de manifestação de opinião.
Nesse trilhar, o Tribunal Federal lançou os pilares da teoria da aplicação imediata dos direitos fundamentais às relações privadas, ao julgar que a norma inserta no
Código Civil não preponderava sobre o direito fundamental do apelante, pois tal sorte
de direito configuraria uma “ordem objetiva de valores”, com irradiação para todo o ordenamento jurídico (DIMOULIS, 2007, 264).
Assim, verifica-se no caso Lüth que um litígio entre particulares envolvendo direitos e deveres decorrentes de normas jurídico-privadas, mesmo influenciadas pelos
direitos fundamentais, segue sendo um conflito jurídico-civil, impondo-se ao juiz a tarefa de examinar se os dispositivos legais (privados) a serem aplicados encontram-se
materialmente influenciados pelos direitos fundamentais. Com efeito, cabe ao julgador
considerar tais modificações na sua decisão, não estando o juiz civil está desvinculado
dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
Nesse contexto, percebe-se que o caso Lüth revelou-se de suma importância ao
desnudar a preponderância, no que concerne à interpretação dos direitos fundamentais, do método axiológico e indutivo, embasado na ponderação, sobre o método silogístico-dedutivo, arrimado à subsunção (AGRA, 2009, p.81), bem como pelo fato de o
Tribunal Federal Alemão considerar o efeito irradiante dos direitos fundamentais sobre
o direito privado.
3.
Uma nova visão além do horizonte
Dentro do fenômeno da horizontalidade dos direitos fundamentais, pode-se ainda
aprofundar sua análise para a visualização de uma problemática específica que diz respeitos aos direitos sociais. O debate em torno dos direitos fundamentais e sua eficácia
nas relações entre particulares, apesar de estar longe de se tornar uma prática constante nos tribunais pátrios, alcançou, no âmbito doutrinário, uma considerável aceitação no sentido de que esses direitos atingem, de alguma forma, as tratativas privadas
(LIMA, 2012, p.5).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 222
Não se pode perder de vista, todavia, que o terreno é fértil e não completamente
aclarado, haja vista as implicações que a aceitação dessa teoria podem gerar no extenso
direito civil brasileiro, nas normas de direito empresarial, no debate processual e internacional da temática. Verifica-se, no entanto, que a discussão da eficácia horizontal
dos direitos fundamentais restringe-se, principalmente, aos direitos de defesa, ou seja,
àqueles direitos em que há mero dever de abstenção de agir, tanto dos Poderes Públicos,
como dos particulares: imposição de não discriminação, possibilidade de exercício de
ampla defesa, tratamento igualitário, liberdade religiosa e associativa. Estes são os direitos normalmente atingidos nas relações que se dão, exclusivamente, entre os agentes
privados que comportam tutela por meio da eficácia horizontal. Entretanto, o problema
não se encerra por aí, pelo contrário, o caráter multifuncional dos direitos fundamentais impõe diversas formas de atuação para que a sua proteção se torne real e efetiva. O
caráter defensivo é apenas uma face do potencial garantidor dos direitos fundamentais,
mas a atenção deve se voltar, também, para sua esfera prestacional e o respectivo raio
de incidência nos interesses privados (AGRA, 2010, p. 548).
Nesse sentido, a eficácia dos direitos sociais nas relações entre os particulares passa a ser um dos objetos principais dessa pesquisa. Frise-se que para se alcançar
uma delimitação mínima, o foco se volta primordialmente aos direitos sociais em seu caráter prestacional, conforme a classificação multifuncional dos direitos fundamentais.
3.1. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais sociais
A Constituição Federal de 1988 foi generosa, e ao mesmo tempo ambiciosa, no
que diz respeito à concessão de direitos fundamentais por meio do extenso rol desses direitos, da garantia de aplicabilidade imediata, da proteção contra o constituinte
derivado por meio das cláusulas pétreas e do controle amplo de constitucionalidade.
O Texto Constitucional, para além da concepção exclusivamente vertical dos direitos
fundamentais, estendeu os efeitos de tais direitos para a proteção em face dos agentes
particulares, como é o caso dos direitos fundamentais dos trabalhadores, que têm em
sua gênese o amparo diante das violações perpetradas pelos empregadores (LIMA, 2012,
p.6).
No que diz respeito aos direitos sociais prestacionais, a Constituição de 1988 deu
sinais de que esses direitos não seriam tarefas exclusivas do Poder Público, ou seja,
dispôs em algumas normas uma nota de corresponsabilidade no tocante à sua concretização. Tais disposições não podem deixar de ser levadas em conta quando se investiga
os direitos sociais nas relações particulares.
O Texto Constitucional é expresso no sentido de atribuir deveres à sociedade na
promoção dos direitos sociais à assistência, educação, proteção à criança, ao adolescente, ao jovem e aos idosos. Em que pese haver comando constitucional nesse sentido,
as dificuldades para especificar o alcance e os limites dessa intervenção dos direitos
fundamentais ainda são grandes, mas acredita-se que não seja impossível a superação
desses obstáculos.
A doutrina brasileira específica sobre o tema entende por incorreta a tese de que
também os direitos sociais prestacionais operam eficácia no âmbito das relações entre
particulares. Para grande parte dos doutrinadores, as prestações dos direitos sociais
obrigam apenas o Estado, eximindo os particulares de qualquer atuação nesse sentido,
exceto no que diz respeito aos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores que,
para ele, vinculariam os particulares. A retórica carreada pela doutrina contrária a essa
horizontalidade, aponta no sentido de que a eficácia externa não agrega nada de novo
a tais direitos, pois a origem destes é a proteção em face dos agentes privados. (STEINMETZ, 2004, p.278).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 223
Afirma o referido autor que não há obrigação para os particulares criarem escolas
e universidades, em face do direito fundamental à educação, bem como não estão obrigados a criarem hospitais e postos de saúdes em cumprimento ao direito fundamental
à saúde.
Por meio desses argumentos, alguns doutrinadores negam a possibilidade da horizontalidade fundamentando-se em situações limites em que mesmo quem adotasse a
teoria, poderia dela discordar em razão de a vinculação exigir muito mais cautela em
suas formas de atuação na esfera privada do que a que exige uma mera abstenção. Data
Vênia ao posicionamento dos eminentes juristas, sofismar apresentando situações extremas para negar qualquer forma de eficácia dos direitos fundamentais sociais prestacionais às relações privadas, não é o melhor caminho a ser seguido.
Em que pese a discussão dessa temática não ter alcançado ainda muitos adeptos,
não há como excluir de forma absoluta os particulares das obrigações provindas dos
direitos sociais prestacionais, haja vista que o projeto de sociedade que a Constituição
Federal visa, ultrapassa o individualismo egocêntrico que norteia os interesses privados. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um dever do Estado, mas
que também pesa sobre toda a sociedade na medida de suas responsabilidades (LIMA,
2012, p.8).
Observa-se, portanto, que a permissão de influência dos direitos fundamentais junto às relações privadas denota uma corresponsabilidade com a diminuição
das desigualdades sociais, sem excluir a obrigação primária do Estado. É importante
salientar que não se pretende isentar os órgãos públicos do planejamento e execução
das políticas públicas necessárias e urgentes para a sociedade brasileira tão desigual e
excludente. Ocorre, no entanto, que a convivência em sociedade une os indivíduos em
prol de um objetivo político comum, expresso na Constituição.
3.2. Eficácia indireta e direta dos direitos sociais prestacionais.
Deve-se reconhecer que o projeto expansivo dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares não encontra razões suficientes para negar a geração dos
efeitos horizontais dos direitos sociais em seu aspecto prestacional. A Constituição Federal de 1988 impõe o dever de redução das desigualdades sociais, tarefa essa que ultrapassa as obrigações públicas e atinge, de certa forma, a atuação privada, principalmente no âmbito negocial.
Os valores de solidariedade que o Texto Constitucional carrega são potencializados
quando se aliam à perspectiva neoconstitucional do direito. Em razão disso, ao atingirem as relações privadas, os direitos fundamentais sociais provocam uma reordenação
nos objetivos perseguidos nessas relações, definindo como pauta da hora, também, a
busca pela melhoria das condições de vida da sociedade.
Dessa maneira, consolida-se o caminho para que os direitos fundamentais
sociais prestacionais possam levar a transformação da realidade social, com fins inclusivos. Se parte da posição de que os direitos sociais também se aplicam às relações
privadas e que tal vinculação deve atender a rigorosa cautela, deve-se, nesse ponto,
observar como essa incidência pode ocorrer sob a luz das duas principais teorias explicativas do tema: teorias da eficácia indireta e direta (LIMA, 2012, p.12).
A eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas não nega que
tais direitos possam atingir a esfera particular. Ocorre que a forma como essa vinculação pode aparecer exige uma intermediação legislativa, no sentido de criar a legislação
privada conforme os ditames constitucionais e, ainda, uma atuação judicial interpretativa das cláusulas gerais, com o objetivo de complementar a eficácia horizontal. A nota
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 224
distintiva encontra-se, portanto, na mediação feita pela legislação, que dará conta de
fazer chegar os direitos fundamentais junto às tratativas privadas. No que diz respeito
aos direitos fundamentais sociais, não é nenhuma novidade a existência de legislação
intermediadora, no sentido de conceder esses direitos por meio de uma iniciativa particular.
Como exemplo, verifica-se a Lei 11.096/2005, que instituiu o Programa Universidade para Todos (Prouni). Tal legislação impõe a concretização do direito social à
educação aos estudantes egressos de escolas públicas, bem como aos portadores de
deficiência, mediante a concessão de bolsas de estudos em universidades particulares.
Estas, por sua vez, recebem isenção fiscal para promover a inclusão daqueles que nunca tiveram a oportunidade de acesso a esse espaço social de conhecimento e emancipação. Ainda na esfera da educação, a Lei 9.870/1999 dispõe sobre o valor das anuidades
escolares e protege, em seu art. 6.º, o educando em face do inadimplemento contratual.
Outra referência importante pode ser observada na Lei 8.899/1994, que concede
às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual. Tal legislação foi objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 2.649/DF), julgada improcedente pelo STF. Ainda no que diz
respeito ao transporte coletivo, o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) prevê a concessão
de duas vagas gratuitas aos idosos maiores de 65 anos e com renda igual ou inferior a
dois salários mínimos, além de desconto de 50%, no mínimo, no valor das passagens,
em caso de esgotamento das gratuitas (LIMA, 2012, p.14).
Da análise das referidas legislações percebe-se que os direitos sociais se aplicam
às relações privadas e que tal vinculação já se dá de forma indireta. Essas disposições
normativas indicam que a correponsabilidade na concretização dos direitos sociais, não
exime o dever estatal, mas conclama a participação dos agentes privados.
Tarefa mais difícil, no entanto, é postular a eficácia direta dos direitos sociais
prestacionais. Tal eficácia se dá sem uma medida intermediária por parte do legislador
ou do juiz, nesse caso, os direitos fundamentais consolidar-se-iam, por si sós, em razões
suficientes para a solução dos conflitos na esfera privada. Essa concepção concede uma
proteção reforçada aos direitos fundamentais, já que não os faz depender de qualquer
ação legislativa para sua efetivação (LIMA, 2012, p.15).
Essa pesquisa filia-se à possibilidade de os direitos fundamentais sociais prestacionais se aplicarem às relações privadas, pois a estágio constitucional atual impõe a
rematerialização das relações jurídicas (SARLET, 2005, p.592)
Faz-se necessário observar que, apesar de não se ter abordado a questão teórica
envolvendo a horizontalidade dos direitos fundamentais, fato este que demonstra a, ainda pouca, repercussão jurisprudencial do tema, já há decisões no sentido de conceder,
de forma direta, os direitos sociais prestacionais. Nesse caso, o direito à saúde, perante
as relações entre particulares, independentemente de medida intermediadora.
Tutela antecipada. Plano de saúde. Medida concedida para obtenção de
cobertura negada pela operadora. Existência de prova inequívoca de risco
de vida sofrido pelo agravado, consubstanciado em estenoses severas em
95% das artérias coronarianas. Tutela concedida com o fim de realização
de angioplastia percutânea, uma vez existente risco de acidente isquêmico, fatal, como comprovado. Presença de periculum in mora e fumus boni
iuris, ao lado de prova inequívoca, sustentando a verossimilhança das
alegações. Aplicação do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade
acerca dos bens em conflito. Direito fundamental à vida do agravado, garantido pela Carta Magna (LGL\1988\3), sobreposto a questões obrigacio-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 225
nais e contratuais, a serem examinadas oportunamente. Improvimento do
Agravo” (TJRJ, AgIn 2004.002.01706, rel. Des. Nascimento Povoas Vaz, DJ
17.08.2004).
O STJ, em recente decisão, fez prevalecer a proteção à saúde na esfera contratual
privada de forma direta. Ou seja, o direito fundamental à saúde foi assegurado superando a estipulação realizada com o plano de saúde, tal solução foi alcançada sem a
necessidade de se fundamentar em uma legislação infraconstitucional autorizadora.
Direito do consumidor. Plano de saúde. Período de carência. Situações
emergenciais graves. Negativa de cobertura indevida. I – Na linha dos precedentes desta Corte, o período de carência contratualmente estipulado
pelos planos de saúde, não prevalece, excepcionalmente, diante de situações emergenciais graves nas quais a recusa de cobertura possa frustrar
o próprio sentido e razão de ser do negócio jurídico firmado. II – No caso
dos autos o seguro de saúde foi contratado em 27.10.2003 para começar a
viger em 01.12.2003, sendo que, no dia 28.01.2004, menos de dois meses
depois do início da sua vigência e antes do decurso do prazo de 120 dias
contratualmente fixado para internações, o segurado veio a necessitar de
atendimento hospitalar emergencial, porquanto, com histórico de infarto,
devidamente informado à seguradora por ocasião da assinatura do contrato de adesão, experimentou mal súbito que culminou na sua internação
na UTI. III – Diante desse quadro não poderia a seguradora ter recusado
cobertura, mesmo no período de carência. IV – Recurso especial provido
(STJ, REsp 1.055.199/SP, rel. Sidnei Beneti, DJe 18.05.2011).
Desse modo, é possível, portanto, superar o argumento da exclusividade estatal
na efetivação dos direitos fundamentais para atingir a esfera privada. Além disso, acredita-se que o discurso irradiante dos direitos fundamentais não pode ser limitado aos
direitos de cunho primordialmente defensivo. As prestações sociais também podem vincular os agentes privados, pois são posições jurídicas que carregam uma potencialidade
muito acentuada de transformação da realidade e diminuição das desigualdades sociais
(LIMA, 2012, p.11).
Tal vinculação pode se dar tanto de forma indireta como direta em razão da suficiência normativa dos direitos fundamentais. Nesse ponto, supera-se o argumento contrário à eficácia direta que se fundamenta na afirmação de que a empresa seria surpreendida com uma obrigação não decorrente de lei, pois o dever de concretização desses
direitos provém diretamente das normas constitucionais. Não se quer dizer com isso
que se trata de uma eficácia absoluta. A intensidade dos efeitos depende de cada direito
fundamental envolvido. Assim, a partir dessas considerações, pretende-se avançar na
constante construção de um estágio constitucional de participação ativa na promoção
dos direitos sociais prestacionais.
4.
Conclusão
Palmilhado esse curto caminho, acredita-se que alguns pontos merecem ser enfatizados para uma maior clareza da ideia apresentada. O primeiro arremate que deve ser
feito está relacionado ao fato de que a presente análise não teve a pretensão de esgotar
a temática, muito pelo contrário. Esse tema continua vivo em toda a sua complexidade,
necessitando de constantes estudos e aprofundamentos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 226
O objetivo do presente artigo foi apontar a existência de um problema no
âmbito do direito constitucional e das relações que se dão na sociedade, e, a partir daí,
trazer argumentos no sentido de demonstrar a possibilidade de os direitos fundamentais sociais prestacionais atingirem a esfera privada de forma mais contundente e efetiva.
De forma ampla, a problemática das relações entre os direitos fundamentais e a
ordem jurídica privada assume posição destacada no contexto de um fenômeno habitualmente denominado de constitucionalização do Direito Privado, significativamente
qualificado como representando uma autêntica “virada de Copérnico” (FACHIN, 1998,
317). Tal fato verdadeiramente consagra uma nova cultura jurídico-civilista objetivando
repensar o Direito Privado através de uma base calcada em preceitos constitucionais.
Em uma visão mais específica, apesar da relevância da discussão das teorias da
eficácia horizontal, constatou-se que esse debate tem sido restrito àqueles direitos fundamentais que se expressam na classificação doutrinária de direitos fundamentais de
primeira dimensão. Tais direitos se caracterizam pelo caráter de abstenção exigido do
obrigado na relação jurídica. Por tal motivo, o trabalho caminhou um pouco além na
discussão para trazer o problema da horizontalidade na esfera dos direitos fundamentais sociais, principalmente em relação àqueles que têm como nota principal a exigência
de uma prestação, uma ação positiva.
Dentro desse contexto, não se encontrou óbice jurídico para limitar a incidência
dos direitos fundamentais sociais apenas perante o Estado. A responsabilidade pela
realização da vida digna é interesse de todos e consubstanciam-se em obrigações aos
agentes privados na medida de suas capacidades, em especial àqueles conhecidos como
poderes privados. Além disso, e em que pese o número reduzido de decisões a respeito,
a jurisprudência já deu sinais de que os direitos fundamentais sociais podem ser efetivados pelos particulares, independentemente de legislação que os obrigue a tanto, o que
aponta para a teoria da eficácia direta.
Deve-se considerar que não é o Estado o único a agredir tais direitos, mas também o mundo dos negócios, em seu afã de expansão econômica e conquista de novos
mercados. Por isso, este poderia ser agente corresponsável na concretização de direitos,
tais como os direitos sociais.
Manter a esfera das grandes corporações empresariais imunes aos direitos fundamentais é fraudar os objetivos expostos pelo constituinte originário. Com efeito, não há
diferença de onde provenha a violação à dignidade humana, se pública ou privada, os
direitos fundamentais sociais ensejam sim, uma eficácia horizontal, pois recepcionam
um padrão mínimo de humanização das relações privadas.
Observa-se, desde já, que o modo como seriam aplicados os direitos fundamentais nas relações entre particulares não seria igual ao que se aplica às obrigações de políticas públicas a cargo do Estado. Não se pode simplesmente substituir o Estado como
destinatário de um direito fundamental por um particular, e exigir desse as mesmas
prestações, pois nas relações privadas há sempre dois titulares de direitos fundamentais. Assim, a eficácia horizontal sempre envolverá um conflito de direitos fundamentais
que não possibilita soluções a priori sem levar em conta as peculiaridades dos casos
concretos. Mesmo assim, essa elevada dose de prudência e bom senso no reconhecimento de direitos subjetivos a prestações, tendo por destinatário os particulares, não
poderá, por si só, levar à negação dessa possibilidade.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 227
Do exposto, ressalta-se que ainda existe muito a evoluir. Corresponsabilizar o
mundo dos negócios pela concretização desses direitos não deve ser visto como uma
proposta asfixiadora ou totalizante, mas como uma ideia que pretende aproximar da realidade social brasileira o potencial transformador que a Constituição de 1988 exprime,
consagrando, cada vez mais, a proteção da dignidade humana em sua plenitude.
REFERÊNCIAS
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 228
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO INSS QUANTO AOS
EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS FRAUDULENTOS
Graciliano de Souza Cintra1
1.
Introdução
Em 2003 fora criada uma nova modalidade de empréstimo denominada de
consignado, tendo sido introduzida no ordenamento jurídico pátrio através da Lei Federal n.º 10.820/03.
Nesta modalidade de empréstimo não é necessária a existência de um bem para
se dar em garantia, como nas garantias reais – hipoteca, penhor, anticrese e para parte
da doutrina, alienação fiduciária, nem é necessária a fidúcia de terceiros, como nas garantias pessoais – penhor e fiança.
Nos empréstimos consignados a garantia é prestada pela instituição pagadora
que através de convênio firmado com a instituição bancária se compromete a repassar
mensalmente o valor da parcela do empréstimo para o banco. Para os aposentados e
pensionistas da Previdência Social, cabe ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS
proceder com esses repasses.
O empréstimo consignado demonstrou rapidamente ser uma das melhores formas de contratar crédito, uma vez que não é necessário possuir nenhum bem para dar
em garantia sendo ainda a garantia prestada melhor do que as fidejussórias, razão pela
qual o empréstimo consignado passou a ser amplamente utilizado.
O problema reside no fato de que onde há um bom negócio lícito sempre surgirá
oportunistas querendo ganhar dinheiro de forma ilícita. Formaram-se então verdadeiras
quadrilhas visando obter vantagem indevida causando danos tanto a quem desejava o
crédito quanto às instituições financeiras.
Aí surge a dúvida que este trabalho busca responder: quem deverá responder
pelos danos causados às vítimas? Focando no caso dos aposentados e pensionistas do
INSS, este estudo buscará responder essa pergunta, analisando o empréstimo consignado e sua normatização, a responsabilidade civil das instituições financeiras, assim
como a responsabilidade civil do INSS e por fim, a existência ou não da responsabilidade solidária entre estes dois entes, focando o estudo na análise da jurisprudência pátria
para chegar à conclusões.
2.
Empréstimo consignado
A Lei Federal n.º 10.820/03, posteriormente alterada pela Lei Federal n.º
10.953/04, institucionalizou no âmbito jurídico os empréstimos consignados em benefícios previdenciários para aposentados e pensionistas do INSS – Instituto Nacional do
Seguro Social, o que possibilitou aos beneficiários da Seguridade Social melhores con-
Especialista em Direito Público pela Estácio do Recife; Advogado militante na área cível e consumerista.
1 Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 229
dições de contratação perante as instituições financeiras conveniadas ao INSS, uma vez
que a consignação se demonstra garantia melhor para as empresas do que as prestadas
no crédito pessoal, que muitas vezes nem ao menos existem.
O empréstimo consignado para beneficiários da seguridade social está previsto
no caput do Art. 6º c/c Art. 1º da Lei Federal n.º 10.820/03, que permite que os beneficiários de aposentadorias e pensão do Regime Geral autorizem o Instituto Nacional do
Seguro Social – INSS a realizar descontos em seus vencimentos para amortização de
empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil perante instituições financeiras.
O §1ª da lei diz que caberá ao INSS a tarefa de regulamentar as formalidades de
habilitação das instituições financeiras, assim como dispor sobre quais benefícios poderão recair as consignações, e ainda quanto às questões ligadas às rotinas para prestação do serviço, e o valor dos encargos operacionais.
Apesar de deixar quase toda a regulamentação da matéria ao ente da Seguridade
Social, o legislador estabeleceu como limite de consignação o percentual de 30% (trinta
por cento) do valor do benefício, conforme regra estabelecida no §5º do Art. 6º da lei,
sob pena de a instituição financeira que descumprir esta regra vir a perder as garantias
previstas na lei (§6º do Art. 6º).
Essa limitação legal visa resguardar a saúde financeira do segurado, tendo o legislador entendido que qualquer diminuição mensal dos vencimentos maior que 30%
poderia vir a comprometer sobremaneira suas finanças.
O INSS, cumprindo seu papel regulador, adquirido por força da Lei Federal n.º
10.820/03, como dito em linhas anteriores, editou a Instrução Normativa nº 28/2008,
que passou a definir as regras acerca dos empréstimos consignados.
Consoante a Instrução Normativa, nem todos os benefícios previdenciários podem
ser objeto de empréstimos consignados. Segundo a regra contida no Art. 3º da Instrução
Normativa supracitada, somente poderão receber consignação as aposentadorias, de
qualquer espécie, e as pensões por morte, sendo assim, benefícios como auxílio-reclusão, auxílio-acidente, auxílio-maternidade, não podem ser objeto de consignação.
As pensões especiais vitalícias pagas pelo INSS como Encargos Previdenciários da
União – EPU, são equiparadas à aposentadoria previdenciária, para efeito da norma.
2.1. Espécies de empréstimos consignados
Pelo que se pode extrair da Lei n.º 10.820/03, posteriormente alterada pela Lei
Federal n.º 10.953/04, assim como pela Instrução Normativa n.º 28/2008, existem três
espécies de empréstimo consignado para os beneficiários do INSS.
A primeira espécie está prevista na primeira parte do Art. 6º que é a consignação
direta do benefício pelo INSS, que fica responsável pelo repasse do valor consignado à
Instituição Financeira.
A segunda espécie é a retenção, sendo que este hipótese está apenas prevista
para o banco pagador do benefício, uma vez que o INSS repassa todo o valor a ser retido à instituição financeira, que fica responsável por fazer as retenções mensais. Esta
espécie foi instituída pelas modificações do texto original advindas da Lei Federal n.º
10.953/04.
Por fim, a última espécie é a do cartão de crédito consignado, prevista no Art.
15 e 16 da Instrução Normativa n.º 28/08. Funciona da seguinte forma: o consumidor
não possui crédito suficiente para ter um cartão de crédito, com determinado limites e
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 230
vantagens, contudo, consigna uma percentual de sua renda para garantir o pagamento
mínimo do cartão de crédito, sendo assim, a instituição financeira possui a garantia de
que irá receber, pelo menos o mínimo da fatura mensal.
Neste tipo de empréstimo consignado, fica proibida a instituição financeira de
cobrar mais do que R$ 15,00 (quinze reais) pela emissão do cartão, podendo este valor
ser dividido em até três parcelas. Fica permitida a contratação de seguro de roubo ou
extravio, entretanto, não pode o seu valor ultrapassar R$ 3,90 (três reais e noventa centavos) por mês.
Vale ainda ressaltar que o § 3º do Art. 16 foi taxativo no sentido de proibir a utilização do cartão de crédito para saque. Essa proibição visa proteger o consumidor de
eventuais golpes, uma vez que caso ele deseje realizar algum tipo de saque, existem
espécies de empréstimos consignados adequadas para tal, as duas primeiras. Se o consumidor realizar um saque no cartão de crédito, ele ficaria obrigado a proceder com o
pagamento da totalidade do saque no mês seguinte, sob pena de pagar juros rotativo do
cartão, sendo descontado apenas a margem consignada. Em pouco tempo ocorreria um
super-endividamento do consumidor.
A jurisprudência pátria vem enfrentando questionamentos quanto aos saques em
cartão de crédito consignado e decidido pelo sua ilegalidade, conforme acordão abaixo.
APELAÇÃO CÍVEL. DANO MORAL. CONTRATAÇÃO INDEVIDA. CONSUMIDOR INDUZIDO EM ERRO. ATO ILÍCITO. DEVER DE INDENIZAR.
QUANTIFICAÇÃO. EXTENSÃO DO DANO. - Responde pelo pagamento de
indenização por danos morais o banco que induziu o consumidor em erro,
fazendo-o contratar produto diverso do que desejava, o que lhe causou
danos morais, passíveis de reparação financeira. - A indenização deve ser
suficiente exclusivamente para reparar o dano, pois este se mede por sua
extensão, nos termos do art. 944, caput, do Código Civil, não podendo ensejar enriquecimento indevido do ofendido. - Havendo condenação, os honorários advocatícios devem ser fixados em atenção aos critérios estabelecidos no art. 20, § 3º, alíneas a, b e c, do Código de Processo Civil. Recurso
não provido. (TJMJ - APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0145.10.032892-4/001, Relator: GUTEMBER DA MOTA E SILVA, Data de Julgamento: 1º/03/2011,
DÉCIMA CÂMARA CÍVEL, Publicado em ISSN 0447-1768). Disponível em:
http://bd.tjmg.jus.br:80/jspui/handle/tjmg/2207.
3.
A proteção legal do consumidor
Ensina Flavio Tartuce que:
(...) o Código de Defesa do Consumidor é tido pela doutrina como uma norma principiológica, diante da proteção constitucional dos consumidores,
que consta, especialmente, do art. 5º, XXXII, da Constituição Federal de
1988 ao enunciar que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do
consumidor”. (TARTUCE, 2003, p.124).
Publicada em 11 de setembro de 1990, a Lei Federal n.º 8.078/90 instituiu o
Código de Proteção e Defesa do Consumidor, cuja criação possui base constitucional,
como dito em linhas anteriores, além de previsão no Art. 48 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A norma consumerista prevê um leque de proteções que visam equilibrar a relação de consumo. Isso porque a Constituição da República de 1988
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 231
(...) busca não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, na medida
em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de duas desigualdades. (LENZA, 2008. p.595).
O consumidor é reconhecido como parte vulnerável na relação de consumo, sendo assim, deve-se buscar a igualdade material para as partes envolvidas nesta relação,
razão pela qual se justifica a proteção conferida pelo diploma legal.
No intuito de equilibrar a relação de consumo, importantes inovações foram instituídas pela Lei Federal n.º 8.078/90, entre as principais, a responsabilidade objetiva
como regra nas relações de consumo, a responsabilidade solidária dos fornecedores,
também como regra, além da inversão do ônus da prova, quando preenchidos os requisitos de hipossuficiência verossimilhança das alegações, nos termos do Art. 6º, inciso
VIII.
4.
Responsabilidade civil dos bancos pelos empréstimos consignados.
Durante muito tempo se discutiu se as normas protetivas da legislação consumerista deveriam ou não ser aplicadas às instituições financeiras, havendo um forte lobby
dos bancos para que não fossem enquadrados no conceito de fornecedor previsto no §2º
Art. 3º da Lei Federal 8.078/90 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor).
O STJ então fulminou a discussão com a edição da Súmula 297, que prevê a aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor às instituições financeiras, tendo
a Ministra Nancy Andrighi escrito em sua obra que:
Realmente, o CDC é expresso quanto à inclusão dos serviços bancários
sob a sua égide (§ 2º do art. 3º) e, por ser lei principiológica, o CDC será
aplicado sempre que houver uma relação de consumo, exista ou não uma
lei específica que cuide do negócio jurídico. (ANDRIGHI, 2006).
Esta decisão é de suma importância para a apuração da responsabilidade civil
das instituições bancárias quanto aos empréstimos consignados fraudulentos. Isto porque a responsabilidade civil nas relações de consumo é em regra do tipo objetiva.
Flavio Tartuce leciona que
Na verdade, o CDC adotou expressamente a ideia da teoria do risco-proveito, aquele que gera a responsabilidade, sem culpa justamente por trazer
benefícios ou vantagens. Em outras palavras, aquele que expõe aos ricos
outas pessoas, determinadas ou não, por dele tirar um benefício, direto ou
não, deve arcar com as consequências da situação de agravamento. Uma
dessas decorrências é justamente a responsabilidade objetiva e solidária
dos agentes envolvidos coma a prestação ou fornecimento. (TARTUCE,
2013, p. 124).
A jurisprudência caminha de mãos dadas com a doutrina quanto à responsabilidade objetiva dos bancos.
APELAÇÃO CIVIL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. INEXISTÊNCIA. DESCONTO INDEVIDO. FALHA NO SERVIÇO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS. DANO MATERIAL. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. 1.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 232
Não comprovando o Banco demandado a existência de contratação pelo
Apelado, que autorizou os descontos na conta corrente, resulta caracterizada a falha de serviço e a conduta ilícita, ensejando o dever de indenizar.
Responsabilidade objetiva. Dano in re ipsa. 2. Deve o autor/apelado ser
ressarcido em dobro pelo que foi descontado indevidamente da sua conta
corrente, conforme o art. 42, parágrafo único, do CDC, tendo em vista que
a instituição financeira não apresentou qualquer documento que comprovasse a autorização para os referidos descontos. 3. Recurso de Apelação a
que se nega provimento.
(TJ-PE - APL: 2858902 PE , Relator: Stênio José de Sousa Neiva Coêlho,
Data de Julgamento: 23/09/2014, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação:
01/10/2014). Disponível em: http://tj-pe.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/143461443/apelacao-apl-2858902-pe.
Na decisão supra, verifica-se que o relator fazer menção expressa a que responsabilidade da instituição financeira seria do tipo é objetiva, tendo ainda condenado o
banco a restituir em dobro o valor descontado indevidamente, nos termos do Art. 42,
parágrafo único do CDC.
Vê-se, ainda, que além da responsabilidade objetiva outros dispositivos de proteção ao consumidor são aplicados à matéria, como a inversão do ônus da prova.
DIREITO DO CONSUMIDOR. DESCONTOS INDEVIDOS EM CONTRACHEQUE. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. FRAUDE. FORTUITO INTERNO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO FORNECEDOR. INVERSÃO DO
ÔNUS DA PROVA. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. INOVAÇÃO RECURSAL QUE NÃO SE ADMITE. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. MULTA
NECESSÁRIA E ADEQUADA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E
DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. 1. À luz da exegese do disposto no
art. 517 do Código de Processo Civil, a fim de evitar violação ao princípio
do duplo grau de jurisdição, bem como a supressão de instância, revela-se
inadmissível a inovação em sede recursal, vedando-se, nessa quadra, a
apreciação de questões não suscitadas oportunamente, tais como a falta
de comprovação dos descontos alegados pelo recorrido, matéria levantada pelo réu apenas em grau de recurso. 2. Fundamentada a pretensão
na alegada inexistência de relação jurídica entre as partes, recai sobre a
parte demandada o ônus da prova quanto à inverdade de tal afirmação
do consumidor, à luz do que estatui o artigo 6º, VIII, da Lei 8.078/90 e,
sobretudo, diante da impossibilidade de se exigir a prova de fato negativo
(prova diabólica). 3. Revestidas de verossimilhança as alegações do autor,
sobretudo em face da documentação juntada aos autos (fl. 13), suficiente
a demonstrar a realização, junto à parte adversa, de fraudulento empréstimo consignado, a comprometer seus proventos. Deixando o banco réu,
por sua vez, de carrear qualquer prova de que o mútuo fora efetivamente
contratado pelo consumidor, de modo a atestar a existência do negócio
jurídico subjacente, ressai configurada a indevida subtração patrimonial,
em virtude da ausência de estofo hábil a justificar os descontos, conduta,
a toda evidência, afrontosa aos ditames preconizados pelo ordenamento
consumerista. 4. Trata-se de situação de responsabilidade fundada no risco-proveito da atividade desenvolvida, que não pode ser arredada em razão
de haver a fraude sido perpetrada por terceiro, em evidente situação de fortuito interno. 5. Cuidando-se de relação de consumo, o fundamento para
o pedido de repetição do indébito reside na regra estabelecida pelo artigo
42, parágrafo único, do Estatuto Protetivo, segundo a qual não se mostra
imprescindível, para o reconhecimento do direito à dobra, a existência de
dolo ou má-fé, sendo bastante, para a incidência da sanção, a constatação
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 233
de erro injustificável. 6. A falha nos mecanismos de segurança e na prestação dos serviços empreendidos pela instituição financeira, consubstanciada nos descontos indevidos e que comprometeram, de forma substancial, os proventos de aposentadoria do consumidor, afetando a sua digna
subsistência, mostra-se apta a ensejar ofensa a direito da personalidade
e a atrair o dever de compensar os danos morais suportados. 7. A despeito de haver sido reconhecido o gravame imaterial, inexistindo, por certo,
condenação pelos danos morais experimentados, posto que, na forma bem
exposta na sentença, fora alcançado, com a restituição devida em dobro, o
teto de alçada previsto no artigo 3º, inciso I, da Lei 9.099/1995, não comporta conhecimento, por ausência de interesse recursal, a insurgência manifestada pelo réu, em sede de recurso inominado, tendente a afastar ou
reduzir a condenação inexistente. 8. A multa cominada, para a hipótese de
descumprimento da obrigação de não fazer, ostenta caráter notadamente
preventivo e inibitório, vez que voltada a obstar a recalcitrância quanto ao
cumprimento do provimento jurisdicional, sendo oportuno gizar, ademais,
que seu valor, caso venha a ser imposta, não se acha adstrito ao limite de
alçada dos juizados especiais. Noutro vértice, cumprida, a tempo e modo,
a ordem judicial, e, consequentemente, prestigiado o comando do julgado,
nenhum encargo, a tal título, será imputado àquele obrigado ao dever de
abstenção, na forma judicialmente determinada. 9. Recurso parcialmente
conhecido e desprovido. Condenado o recorrente vencido ao pagamento
das custas processuais e dos honorários advocatícios, que arbitro em 10%
(dez por cento) do valor corrigido da condenação, ex vi do art. 55 da Lei nº.
9.099/95.
(TJ-DF - ACJ: 20130111662290 DF 0166229-24.2013.8.07.0001, Relator: LUIS MARTIUS HOLANDA BEZERRA JUNIOR, Data de Julgamento:
04/11/2014, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 06/11/2014 . Pág.: 284).
http://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/150071067/apelacao-civel-do-juizado-especial-acj-20130111662290-df-0166229-2420138070001.
O leque de decisões aplicando a proteção conferida aos consumidores nas lides
envolvendo discussões quanto a empréstimos consignados não é recente sendo vasta a
jurisprudência no assunto.
A responsabilidade civil da instituição financeira está mais do que pacificada em
nossos tribunais, não havendo dúvidas também quanto ao tipo de responsabilidade;
objetiva.
5.
Responsabilidade civil do INSS pelos emprestimos consignados
Muito se discute nos tribunais quanto à responsabilidade civil do INSS pelos
empréstimos consignados fraudulentos. Não incomum os Procuradores Federais ou Advogados da União defenderem com unhas e dentes a responsabilidade exclusiva das
instituições financeiras quando da ocorrência de empréstimos consignados fraudulentos sob o argumento de que o INSS apenas repassa os valores, sendo que caberia aos
bancos zelar pela lisura das informações repassadas ao ente da Seguridade Social.
O Procurador Federal Adler Anaximandro de Cruz Alves defende em artigo sobre
a matéria que:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 234
(...) o INSS, nas operações de concessão de crédito via empréstimo consignado, possui a responsabilidade de reter valores, repassando os às instituições credoras. Além disso, tem o dever de manter o pagamento do
benefício na mesma instituição financeira enquanto houver saldo devedor.
(ALVES, 2012).
Para ele, o INSS não teria a obrigação de conferir as informações prestadas pelas
instituições financeiras, sendo que sua responsabilidade restringe-se ao repasse de valores à instituição financeira.
Conclui que nos casos de empréstimos consignados fraudulentos: “Diante desse
quadro legal de competência, nenhuma conduta do INSS é, a priori, passível de causar
lesão ao segurado”. (ALVES, 2012).
No mesmo artigo, defende-se a ideia de que o INSS apenas teria responsabilidade
em caso de receber alguma denúncia do segurado e não tomar providências para apurar os fatos, se autorizasse a consignação decorrente de uma transação com instituição
financeira não conveniada ou permitisse que fosse descontado mais de 30% do benefício
do segurado.
Em sentido contrário caminha a jurisprudência pátria, tendo o STJ se pronunciado por diversas vezes sobre o tema.
ADMINISTRATIVO. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO FRAUDULENTO. DESCONTOS INDEVIDOS EM PROVENTOS DE APOSENTADORIA. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. LEGITIMIDADE PASSIVA
DO INSS CONFIGURADA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DEMONSTRADA. DANOS MORAIS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 284/STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE
OS ARESTOS CONFRONTADOS. 1. A Corte de origem dirimiu a controvérsia de forma clara e fundamentada, embora de maneira desfavorável
à pretensão do recorrente. Não é possível se falar, assim, em maltrato ao
art. 535, II, do Código de Processo Civil. 2. Nos termos do art. 6º da Lei
10.820/03, cabe ao INSS a responsabilidade por reter os valores autorizados pelo beneficiário e repassar à instituição financeira credora (quando o
empréstimo é realizado em agência diversa da qual recebe o benefício); ou
manter os pagamentos do titular na agência em que contratado o empréstimo, nas operações em que for autorizada a retenção. Ora, se lhe cabe reter e repassar os valores autorizados, é de responsabilidade do INSS verificar se houve a efetiva autorização. 3. Consignado no aresto recorrido que
o ente público agiu com negligência, o que resultou em dano para o autor,
fica caracterizada a responsabilidade civil do Estado. 4. É indispensável
para o conhecimento do recurso especial sejam apontados os dispositivos
que o recorrente entende violados, sob pena de incidência, por analogia,
da súmula 284/STF. 5. O conhecimento da divergência jurisprudencial
pressupõe demonstração, mediante a realização do devido cotejo analítico,
da existência de similitude das circunstâncias fáticas e do direito aplicado
nos acórdãos recorrido e paradigmas, nos moldes dos arts. 541 do CPC e
255 do RISTJ. 6. Recurso especial conhecido em parte e não provido.
(STJ - REsp: 1260467 RN 2011/0140025-0, Relator: Ministra ELIANA
CALMON, Data de Julgamento: 20/06/2013, T2 - SEGUNDA TURMA,
Data de Publicação: DJe 01/07/2013). Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23577072/recurso-especial-resp-1260467-rn-2011-0140025-0-stj.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 235
Faz-se mister não olvidar que a Lei Federal n.º 10.820/03 permitiu que o INSS
regulamentasse a matéria relativa aos empréstimos consignados, tendo o ente assim
agido através das Instruções Normativas citadas no decorrer deste trabalho. Ninguém
melhor que o próprio INSS para regulamentar a matéria, uma vez que seria ele quem
intermediaria o repasse dos segurados para as instituições financeiras.
O INSS quando intermedia esta operação dos consignados não está fazendo um
favor para os seus segurados, mas está cumprindo com uma obrigação legal que lhe
fora imputada, sendo assim, deve agir de forma zelosa e eficiente, não podendo eximir-se de responsabilidade pela falha no serviço.
Como bem assevera a Relatora no Acordão supra: “Ora, se lhe cabe reter e repassar os valores autorizados, é de responsabilidade do INSS verificar se houve a efetiva
autorização”.
5.1 Responsabilidade subjetiva do estado
Pode-se verificar que a natureza da reponsabilidade jurídica do INSS é diferente
da responsabilidade da instituição financeira. A do banco decorre da Lei Consumerista,
que prevê a responsabilidade objetiva, enquanto a do INSS é do tipo subjetiva, uma vez
que a responsabilidade civil do estado, apesar de em regra ser objetiva, quando em casos de omissão é do tipo subjetiva.
Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que:
É que, em princípio, cumpre ao Estado prover a todos os interesses da
coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um
assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma agressão sofrida em
local público, o lesado poderia sempre argüir que o ‘serviço não funcionou”. A admitir-se responsabilidade objetiva nestas hipóteses, o Estado
estaria erigido em segurador universal! Razoável que responda pela lesão
patrimonial da vítima de um assalto se agentes policiais relapsos assistiram à ocorrência inertes e desinteressados ou se, alertados a tempo de
evitá-lo, omitiram-se na adoção de providências cautelares. Razoável que
o Estado responda por danos oriundos de uma enchente se as galerias
pluviais e os bueiros de escoamento das águas estavam entupidos ou sujos, propiciando o acúmulo de água. Nestas situações, sim, terá havido
descumprimento do dever legal na adoção de providências obrigatórias.
Faltando, entretanto, este cunho de injuridicidade, que advém do dolo, ou
culpa tipificada na negligência, na imprudência ou na imperícia, não há
cogitar de responsabilidade pública (MELLO, 2007. p.979).
Assim, não se presume que o INSS seja responsável por empréstimos fraudulentos, entretanto, quando ele não possui cópia do contrato de empréstimo, ou quando a
assinatura do contrato é visivelmente diferente da constante nos documentos do Segurado, resta demonstrada a negligência do ente, que deveria ter sido zeloso e diligente e
não ter permitido a concretização do negócio.
5.2 Da responsabilidade solidária
Já que no caso dos empréstimos consignados fraudulentos se verifica que a responsabilidade pelo dano causado ao consumidor/segurado, é tanto do INSS quanto da
instituição financeira, é mister então averiguar qual o tipo de responsabilidade será
imputadas aos entes, uma vez que para efeitos e recurso e execução será essencial está
definição.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 236
ria.
A jurisprudência pátria segue no sentido de ser a responsabilidade do tipo solidáDIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO.
FRAUDE. LEGITIMIDADE DA UNIÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS.
FALTA DE DILIGÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA ENTIDADE CONSIGNATÁRIA. 1. O ente público consignante é parte legítima em ação de indenização por danos materiais e morais decorrentes de empréstimo obtido
mediante fraude quando a ele se imputa falha que viabilizou o ocorrido.
Rejeitada preliminar de ilegitimidade da União; 2. A falta de diligência da
Administração em fiscalizar a regularidade da consignação gera responsabilidade solidária pelos descontos indevidos resultantes de empréstimo
obtido mediante fraude, sobretudo quando se tem notícia frequente de
fatos dessa natureza; 3. Responsabilidade civil da entidade consignatária
que independe da existência de culpa. Aplicação do artigo 14. Código de
Defesa do Consumidor; 4. O dano moral resultante de descontos indevidos nos proventos de pensionista prescinde de comprovação uma vez que
decorre do próprio fato operando-se in re ipsa. Mantida a quantia arbitrada em R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Precedente (AC n.º 400004/RN, Rel.
Des. Leonardo Resende Martins (Conv.), Segunda Turma, DJ 27/05/2009,
unânime); 5. Apelações improvidas.
(TRF-5º REGIÃO – AC: 412603 PE 200583000139759 Relator: Desembargador Federal Convocado FREDERICO WILDSON DA SILVA DANTAS, Data
de Julgamento: 17/02/2011, 3ª Turma, DJE 10/03/2011, Pág.: 214/215).
Disponível
em:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/25239959/pg-215-tribunal-regional-federal-da-5-regiao-trf-5-de-10-03-2011.
O fundamento para a responsabilidade ser solidária decorre tanto do Art. 942 do
Código Civil pátrio quanto do parágrafo único do Art. 7º do Código de Proteção e Defesa
do Consumidor.
O Art. 942, contido no Título IX (Da Responsabilidade Civil) do CC, diz que “se a
ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação”.
No caso em tela, se está diante de uma concausa ordinária de responsabilidade.
Se a instituição financeira tivesse sido diligente, não ocorreria a fraude na contratação.
Da mesma forma não ocorreria se o INSS tivesse verificado o contrato e os documentos
que serviram de base para o desconto.
Já o parágrafo único do Art. 7º do CDC diz que: “Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas
de consumo”.
A priori, pode causar estranheza se defender a responsabilidade solidária do INSS
com fulcro na legislação consumerista, contudo, após uma rápida análise do dispositivo
legal supracitado, verificar-se-á não haver razões para tal.
Ocorre que o dispositivo legal em comento trata de autores de ofensa e não de
fornecedores. Não diz a lei, neste momento, que os fornecedores responderão solidariamente pelos danos causados ao consumidor, mas faz referência a autores. Em outro
momento, o legislador irá fazer referência expressa à responsabilidade solidária dos
fornecedores, não utilizando a expressão autores ou autor.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 237
Ademais, o caput do Art. 7º do CDC trata justamente sobre a integração da legislação consumerista com outras normas, sendo assim, é plenamente justificável que a
norma trate de autores da ofensa no parágrafo único, visto que esses podem ser pessoas
diversas das conceituadas na norma de consumo.
Assim, por ser a responsabilidade do INSS e da instituição financeira do tipo solidária, poderá a vítima da fraude promover ação contra qualquer um desses entes ou
contra ambos, cabendo posteriormente, no caso de ação ser proposta apenas contra
uma das pessoas, caberá o direito de regresso do ente que pagou contra aquele que não
fora demandado.
5.3 Competência para julgar a matéria
Se a ação pode ser proposta contra a instituição financeira, contra o INSS ou contra ambos, faz-se necessário definir quem será competente para julgar a matéria.
Ensina Moacir Amaral dos Santos que:
Jurisdição é a fundo do Estado de compor conflitos de interesse, de fazer
justiça. Competência é a medida da jurisdição, isto é, a órbita dentro da
qual o juiz exerce as funções jurisdicionais. (...) os juízes, para conhecer
das ações, muito embora tenham jurisdição, deverão ter atribuições que
permitam conhece-las, isto é, competência para conhece-las. (SANTOS,
2004, p.208).
Assim, a lide deverá ser levada ao juiz competente para julgá-la sendo essencial
determinar quem será o competente para apreciar a matéria.
Para se determinar o juízo competente para a lide, pode-se utilizar esquema desenvolvido por Nelson Nery e Rosa Nery:
a) verificar se a justiça brasileira é competente para julgar a causa (arts.
88/89); se for, investigar se é o caso de competência originária de Tribunal ou órgão jurisdicional atípico (Senado Federa: art. 52, I e II, CF/88;
Câmara dos Deputados: art. 51, I, CF/88; Assembleia Legislativa estadual
para julgar governador de Estado; c) não sendo o caso, verificar se é afeto
à justiça especial (eleitoral, trabalhista ou militar) ou justiça comum; d)
sendo competência da justiça comum, verificar se é da justiça federal (art.
109, CF), pois não sendo, será residualmente da estadual; (...) (NERY Jr.,
NERY, 2002, p.421).
A competência da justiça federal é determinada pelo art. 109 da CR/88, como exposto no esquema supra. Desta forma, a competência será da justiça federal quando a
“União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição
de autoras, rés, assistentes ou oponetes”. (DIDIER Jr. 2014, p.185).
O INSS é uma autarquia Federal, sendo assim, quando a vítima do empréstimo
consignado fraudulento a incluir na lide, seja de forma exclusiva, ou em litisconsórcio
com a instituição financeira, a competência será da justiça federal.
Caso a ação seja proposta exclusivamente contra a instituição financeira, neste
caso a competência será da justiça estadual.
6.
Conclusão
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 238
Percorrido este curto caminho pode-se chegar a algumas conclusões quanto à
responsabilidade do Instituto Nacional do Seguro Social nos empréstimos consignados
fraudulentos.
Fora analisada, ainda que forma perfunctória, a normatização do empréstimo
consignado no ordenamento jurídico pátrio, a proteção dada ao consumidor nas relações jurídicas, em especial as de natureza bancária, a responsabilidade civil das instituições financeiras quanto à fraude em empréstimos consignados, para se chegar à
responsabilidade civil do INSS.
Quando da análise da responsabilidade, buscou-se ainda determinar se a responsabilidade seria do tipo objetiva ou subjetiva, concluindo-se pela responsabilidade
subjetiva, face ser esta a regra para os casos de omissões do Estado, assim como foram
expostas as razões pela qual se vislumbra ser solidária a responsabilidade entre o INSS
e as instituições financeiras.
Por fim, buscou-se determinar a competência para julgar as lides envolvendo a
matéria estudada na pesquisa, levando-se em consideração cada pessoa demandada
individualmente, assim como em litisconsórcio.
Ao final do trabalho, parece acertado dizer que o INSS e sim responsável pelos
empréstimos consignados fraudulentos, na medida em que a lei determinou que ele
normatizasse a matéria assim como intermediasse o negócio, sendo que não pode o ente
da seguridade social esquivar-se da responsabilidade quando agir com omissão, sendo
a jurisprudência e a doutrina fortemente dominante neste sentido.
REFERÊNCIAS
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em benefícios do INSS. Conteudo Juridico, Brasilia/DF: 27 jun. 2012. Disponível em:
http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.37780&seo=1
ANDRIGHI, Fátima Nancy. O CDC e o STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1236, 19
nov. 2006. Disponível em:
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Martius Holanda Bezerra Junior, Data de Julgamento: 04/11/2014, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Data de Publicação: Publicado no DJE :
06/11/2014 . Pág.: 284).
BRASIL. STJ - REsp: 1260467 RN 2011/0140025-0, Relator: Ministra Eliana Calmon,
Data de Julgamento: 20/06/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe
01/07/2013).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 239
BRASIL. TRF-5º REGIÃO – AC: 412603 PE 200583000139759 Relator: Desembargador Federal Convocado Frederico Wildson da Silva Dantas, Data de Julgamento:
17/02/2011, 3ª Turma, DJE 10/03/2011, Pág.: 214/215).
DIDIER Jr. Fredie. Curso de direito processual civil: parte 1. 16 ed. Salvador: Jus Podyum. 2014.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12 ed. ver., atual., e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.).
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24 ed. São Paulo:
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NERY Jr., Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e
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SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23 ed. rev. e atual.
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TARTUCE, Flávio. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor:
direito material e processual. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2013).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 240
A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E A COOPERAÇÃO PENAL
INTERNACIONAL: RESTRIÇÕES CONSTITUCIONAIS À EXTRADIÇÃO
Andreia Cadore Tolfo1
Eliane de Almeida Broker2
1.
Introdução
A extradição é umas das formas mais antigas de colaboração entre os Estados,
tendo como finalidade evitar que um indivíduo que é acusado ou condenado em determinado país tente se refugiar em território de outro, com a intenção de esquivar-se da
reprimenda penal (MAZZUOLI, 2008, p. 660).
Como as sentenças penais não são executadas no estrangeiro, não sendo sequer
homologadas em outros países, salvo para surtir efeitos civis no exterior, a solução é o
auxílio mútuo entre os Estados para reprimir os crimes dos acusados ou condenados
em um país que se refugiam em território de outro (MAZZUOLI, 2008, p. 662).
Desta forma, a extradição é usada quando um indivíduo pratica um crime em um
país e se desloca para outro país, com o objetivo de se esquivar da aplicação da Justiça
penal. Trata-se da entrega de uma pessoa a um Estado, para que o indivíduo responda
a processo penal ou cumpra pena resultante de sentença judicial. É uma forma de garantir a ordem social, impedindo que um criminoso fique impune por ter ido para outro
país.
As regras básicas da extradição são as mesmas em quase todos os países, pois decorrem de direito costumeiro bastante consolidado, contudo, a extradição é realizada,
geralmente, a partir de tratados bilaterais entre os Estados envolvidos (VARELLA, 2010,
p. 179). O Estado brasileiro celebrou tratados de extradição com diversos países, tendo
participação bastante ativa em processos extradicionais.
No Brasil, a Constituição Federal, em seu artigo 4º estabelece os princípios das
relações internacionais, destacando-se a prevalência dos direitos humanos na atuação
externa do país. Assim, os direitos humanos devem ser utilizados como parâmetro de
atuação do Estado brasileiro na esfera internacional, o que abrange a utilização da extradição pelo Brasil. Ao decidir a respeito da extradição, o Estado brasileiro deve ater-se
à prevalência dos direitos humanos.
Além disso, no Brasil, a Constituição brasileira contempla um sistema protetivo do
indivíduo, impedindo ou impondo limitações à extradição em casos em que a mesma
configura desatendimento de direitos fundamentais. Diante desse contexto, o presente
trabalho objetiva analisar as situações em que a Constituição Federal de 1988 impõe
obstáculos à realização da extradição tendo em vista a proteção dos direitos humanos.
Utiliza-se o método dedutivo.
1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do curso de Direito
da Universidade da Região da Campanha (URCAMP).
2 Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC). Professora do curso de Direito da Universidade da Região da Campanha (URCAMP).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 241
2.
Extradição
A extradição é definida pelo ato em que um Estado entrega à Justiça de outro Estado pessoa que foi neste último processada ou condenada na seara criminal e que lá
esteja refugiada, a fim de que possa ser julgada ou para que cumpra a pena já imposta
pelo Estado requerente (MAZZUOLI, 2008, p. 659-660).
Valério Mazzuoli (2008, p. 661) observa que a extradição sempre envolve dois Estados soberanos, bem como que o ato de extraditar não se trata de pena, mas sim de
cooperação penal, que objetiva a administração da justiça penal. A extradição tem por
base jurídica um tratado internacional ou uma promessa de reciprocidade.
A extradição pode ser ativa ou passiva. A extradição ativa ocorre quando um criminoso foge da Justiça brasileira e tenta se refugiar em outro país, sendo que o governo
brasileiro deverá requerer a extradição do indivíduo àquele Estado. A outra forma é a
extradição passiva, que ocorre quando um país estrangeiro solicita à Justiça do Brasil
indivíduo que esteja foragido no território brasileiro (MAZZUOLI, 2008, p. 662).
Na extradição configura-se um ato bilateral, pois depende, de um lado, do pedido
do Estado interessado e, de outro lado, da manifestação de vontade, no sentido de aceitar, do Estado a quem foi solicitada a extradição e em cujo território o extraditando se
encontra (VARELLA, 2010, p. 178).
O tratado internacional é a fonte do direito extradicional mais importante, pois
reflete a vontade firme dos Estados partes de cooperar um com o outro para a repressão dos crimes internacionais (MAZZUOLI, 2008, p. 660). Para Mello (2004, p. 1021), a
extradição tem em favor de sua existência diversas razões, sobretudo a própria noção
de justiça, que exige a punição dos criminosos. Pode-se observar ainda, que existe uma
solidariedade entre os países no combate ao crime.
Conforme já destacado anteriormente, o tratado é a fonte do direito internacional
aplicável à extradição por excelência, sendo que, na sua falta, os países poderão se submeter à declaração ou promessa de reciprocidade, que é um acordo entre dois Estados
para a entrega de determinado criminoso. Frise-se que deverá haver reciprocidade por
parte do país requerente para que ocorra o acordo (MAZZUOLI, 2008, p. 663).
3.
Procedimento e competência
De acordo com Rezek (2014, p. 236), a extradição cuida-se de relação executiva
(envolve o Poder Executivo), mas há também envolvimento do Poder Judiciário em ambos os lados, pois o governo requerente só toma a iniciativa em razão da existência de
processo penal perante sua Justiça; e o governo requerido toma a decisão de extraditar
ou não o indivíduo depois do pronunciamento do seu Judiciário.
O pedido extradicional feito por Estado requerente ao Brasil deverá ser encaminhado mediante via diplomática ou diretamente do governo requerente ao governo brasileiro, sendo que o órgão apto a receber o pedido é o Ministério das Relações Exteriores,
que logo após o enviará ao Ministério da Justiça para elaboração do Aviso Ministerial
de Solicitação de Medida da Extradição ao Supremo Tribunal Federal (MELLO, 2004, p.
1037).
De acordo com Moraes (2012, p. 101):
O pedido deverá ser feito pelo governo do Estado estrangeiro soberano por
via diplomática, nunca por mera carta rogatória, e endereçado ao Presidente da República, autoridade autorizada constitucionalmente a manter
relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 242
Porém, a Constituição de 1988, em seu art. 102, inciso I, alínea “g”, estabelece que
cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente a extradição solicitada por Estado estrangeiro.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) é o órgão competente para analisar
os requisitos de legalidade, a fim de decidir a concessão ou não do pedido extradicional
realizado por Estado requerente (MAZZUOLI, 2008, p. 665). Recebendo do Executivo o
pedido de extradição, o STF inicia o processo, determinando a prisão do extraditando
(REZEK, 2014, p. 240).
Quando o pedido da extradição chegar ao STF, deverá este tribunal somente se manifestar quanto à legalidade do pedido e seus requisitos de admissibilidade, mas nunca
sobre o mérito do processo que tramita no exterior contra o extraditando (MAZZUOLI,
2008, p. 665).
Após a decisão do STF, segundo Mello (2004, p. 1037-1038), “cabe ao Poder Executivo decidir da extradição ou não de um indivíduo”. Ou seja, depois da análise legal do
pedido, é o Poder Executivo que analisa a oportunidade e a conveniência de extraditar
a pessoa, pois a última palavra sempre será do Presidente da República (MAZZUOLI,
2008, p. 665).
No processo, o Supremo Tribunal Federal examina a legalidade da extradição com
base na legislação interna e no tratado aplicável. São analisados diversos pressupostos,
como por exemplo, a condição pessoal do extraditando (sua nacionalidade), o fato que
lhe é atribuído (deve ser crime comum, com certa gravidade) e o processo que teve curso contra ele no Estado requerente, já que a extradição pressupõe um processo penal
(REZEK, 2014, p. 241-242).
Assim, se depois de analisados os requisitos de legalidade do pedido de extradição,
o STF o indeferir, ficará vedada a extradição. No entanto, caso esteja o pedido legalmente correto e for deferido pelo STF, caberá ao chefe do Poder Executivo (Presidente da
República) determinar ou não a extradição do indivíduo, uma vez que se trata de direito
inerente à soberania (MORAES, 2012, p. 103).
Nesse sentido, o art. 84, inciso VII da CF determina que:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[...]
VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos
[...];
Sendo da competência do Presidente da República as relações com outros países,
cabe ao chefe do Executivo, usando a discricionariedade, decidir pela efetivação ou não
da extradição, cujo pedido foi anteriormente analisado pelo STF no que tange ao cumprimento dos tratados internacionais, das normas constitucionais e das normas infraconstitucionais aplicáveis.
Após ser concedida a extradição, será feita a comunicação do fato por meio do Ministério das Relações Exteriores à missão diplomática do Estado requerente, o qual terá
o prazo improrrogável de sessenta dias para retirar o extraditando do território brasileiro às suas expensas, sendo que o prazo começará a fluir a partir da comunicação do
fato (MAZZUOLI, 2008, p. 665).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 243
Caso não seja o extraditando retirado do território nacional no prazo exigido, o
mesmo será solto, não podendo o processo ser renovado (REZEK, 2014, p. 247). Sendo
negada a extradição pelo STF, o extraditando é libertado e o Executivo deve comunicar
a decisão ao Estado requerente (REZEK, 2014, p. 246).
4.
O Princípio da prevalência dos direitos humanos
No Brasil, a Constituição Federal, em seu artigo 4º, estabelece os princípios das
relações internacionais, dentre os quais se destaca a prevalência dos direitos humanos
na atuação externa do país. Conforme o dispositivo mencionado:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
II - prevalência dos direitos humanos;
Ao assim proceder, o constituinte prescreveu diretrizes que repercutem na ordem
jurídica interna e também na ordem jurídica internacional, condicionando a atuação estatal. A prevalência dos direitos humanos é um desses princípios responsáveis por guiar
as relações exteriores do Brasil. Conforme destaca Bulos (2011, p. 511), o constituinte
reforçou “a ideia de que o respeito às prerrogativas do homem também devem guiar as
relações exteriores da República Federativa do Brasil”.
Desta forma, os direitos humanos devem ser utilizados como parâmetro de atuação
do Estado brasileiro na esfera internacional, devendo se aplicar, inclusive, à extradição,
que é uma forma de cooperação penal entre os Estados. Ao decidir a respeito da extradição, o Estado brasileiro deve ater-se à prevalência dos direitos humanos, conforme
determina da Constituição.
Neste sentido, Accioly et al. (2014, p. 535) ressaltam que a extradição deve ocorrer
após se verificar que os direitos humanos do indivíduo envolvido no processo extradicional serão garantidos. Além do cuidado com o respeito aos direitos humanos do extraditando no país que pede a extradição, os órgãos brasileiros envolvidos na tomada de
decisão sobre a extradição também precisam atentar para certas normas constitucionais brasileiras que protegem os direitos humanos, as quais podem impedir ou impor
obstáculos à extradição.
5.
Restrições conctitucionais à extradição
Em consonância com o princípio da prevalência dos direitos humanos, a Constituição brasileira contempla um sistema de proteção do indivíduo contra a extradição que
possa configurar violação dos direitos fundamentais. Esse sistema protetivo é composto
por normas que estabelecem restrições constitucionais à extradição.
Ao decidir sobre o pedido de extradição, tanto o Supremo Tribunal Federal, como
o Presidente da República tem o dever de zelar pela proteção dos direitos humanos do
extraditando. Em decorrência disso, a seguir são analisadas as situações em que o sistema constitucional brasileiro impõe obstáculos à realização da extradição tendo em
vista a proteção dos direitos do homem.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 244
a) Extradição do Nacional
Quanto à análise da admissão da extradição, um dos pressupostos que condiz à
pessoa do extraditando é a sua nacionalidade. Um princípio consagrado em diversos
países é o de que não se concede extradição de nacionais (MELLO, 2004, p. 1024).
No Brasil, até a entrada em vigor da Constituição de 1988, somente se extraditava estrangeiros, nunca brasileiros natos e naturalizados. Atualmente, a Constituição
Federal de 1988 também não permite a extradição de nacionais, mas admite exceções,
vez que autoriza a extradição de brasileiros naturalizados, por crime comum que tenha
praticado antes da naturalização ou por tráfico de drogas, sendo que no segundo caso,
independe da cronologia (REZEK, 2014, p. 242).
De acordo com o artigo 5º, inciso LI, da Constituição Federal:
LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de
crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;
Desta forma, pelo referido dispositivo constitucional, está totalmente vedada a extradição do brasileiro nato, independentemente do tipo de delito praticado. Seja pelo
critério jus soli ou pelo critério jus sangüinis, havendo a comprovação da nacionalidade
originária brasileira não será possível a concessão da extradição. Mas, nesse caso, o
acusado do crime que motivou o pedido de extradição não ficará livre de julgamento,
pois deverá ser julgado pelo Estado brasileiro, com a aplicação da extraterritorialidade
da lei penal.
Lenza (2013, p. 1185) observa que a proteção do brasileiro nato em relação à extradição decorre da ideia de soberania e de preservação da jurisdição nacional, incluindo-se a eventual parcialidade dos tribunais estrangeiros, bem como as condições das
instituições penais de vários países.
Já para o brasileiro naturalizado, ou seja, aquele indivíduo estrangeiro, que adquire a nacionalidade brasileira como uma nova nacionalidade, passando, portanto, a ser
um brasileiro naturalizado, a norma constitucional é diversa. A Constituição, em regra,
também não permite a extradição do brasileiro naturalizado, protegendo-o, mas prevê
duas exceções: em caso de crime comum, praticado antes da naturalização e em caso de
comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.
Na primeira situação, o brasileiro naturalizado somente pode ser extraditado por
crime cometido antes da naturalização. Se após a naturalização (com a efetiva entrega
do certificado de naturalização), o naturalizado praticar crime comum, o mesmo não
poderá ser extraditado para ser julgado ou cumprir pena decorrente do referido crime.
Nesse caso, o indivíduo, sendo brasileiro, já estará gozando dos direitos e da proteção
do Estado conferidos aos seus nacionais.
A principal razão para a proteção do nacional, impedindo-se a sua extradição, é
que o Estado tem a obrigação de proteger os seus nacionais. Essa proteção decorre do
direito de nacionalidade, o qual configura um direito fundamental. Outras razões decorrentes de direitos humanos podem ser citadas para justificar a não extradição de
nacionais, como o princípio de que ninguém pode ser subtraído a seus juízes naturais e
o direito do nacional de habitar seu próprio Estado (MELLO, 2004, p. 1025).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 245
Contudo, nota-se que a regra constitucional é mais rígida se o crime praticado pelo
brasileiro naturalizado for o tráfico de entorpecentes e drogas afins. Nessa segunda situação excepcional prevista constitucionalmente, poderá ser efetuada a extradição, não
importando o momento da prática do crime, se foi antes ou depois da naturalização.
A regra referida justifica-se pela gravidade e pelas repercussões decorrentes do tráfico de entorpecentes e drogas afins. Assim, por atribuir uma reprovação mais intensa
a essa conduta, a Constituição permite a extradição do brasileiro naturalizado acusado
desse crime.
b) Extradição por crime político
A Constituição Federal traça limites à possibilidade de extradição quanto à pessoa
acusada e também quanto à natureza do delito. Com isto, veda-se a concessão de extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (SILVA, 2006, p.341). Conforme a
Constituição, em seu artigo 5º:
Art. 5º. [...]
LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de
opinião;
Embora a Constituição se refira ao crime político ou de opinião, a mesma não estabeleceu o conceito dos referidos crimes, não havendo consenso na doutrina a respeito. Contudo, conforme Bulos (2011, p. 652), crime político “é todo cometimento ilícito
motivado por razões de natureza pública, as quais violam o bem-estar social. É o caso
das ameaças, ações subversivas [...] contra a ordem pública vigente no Estado”. Para
Varella (2010, p. 181), o crime político “é aquele que tem por escopo a desestruturação
das instituições públicas e a ordem social do Estado”.
Já o crime de opinião é aquele em que o agente ultrapassa os limites da liberdade
de manifestação do pensamento, ofendendo desmotivadamente pessoas e órgãos, deturpando fatos e comprometendo a dignidade alheia (BULOS, 2011, p. 652).
Mello (2004, p.1026) nota que os criminosos políticos não são passíveis de extradição no Brasil, contudo, há uma grande dificuldade em caracterizar e definir este delito,
não havendo consenso a respeito na ordem jurídica internacional. Assim, quem qualifica o indivíduo como criminoso político é o Estado que recebe o pedido de extradição.
No caso do Brasil, Bulos (2011, p. 653) observa que “cabe ao Supremo Tribunal Federal
dizer quais os crimes que podem ser rotulados como tais”.
A não extradição por crimes políticos tem por fundamento o fato de que o aspecto
antissocial destes crimes é relativo, pois, como exemplo, um governo capitalista não
poderia considerar criminoso o indivíduo que tenta derrubar um governo comunista, e
vice-versa. Por conseguinte, um criminoso político não teria um julgamento justo e imparcial no seu Estado nacional (MELLO, 2004, p. 1028).
Também se pode observar que a não extradição por crimes políticos envolve o respeito aos direitos humanos, já que no Brasil, a Constituição Federal assegura o direito
à liberdade de opinião política, visto que nos regimes democráticos a pluralidade de
opiniões políticas é uma característica básica.
c) Extradição em caso de aplicação de pena de prisão perpétua e pena de morte
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 246
Na extradição passiva, existem situações em que a extradição é solicitada ao Brasil
por países que podem aplicar como pena a prisão perpétua ou a pena de morte. Ocorre que no Brasil, o art. 5º, inciso XLVII, da Constituição Federal, veda a aplicação das
penas de morte e de prisão perpétua, sendo que, desta previsão legal, interpreta-se que
não é possível extraditar pessoas para cumprir as referidas penas.
De acordo com a Constituição Federal:
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
[...]
Em razão da norma constitucional mencionada, o Brasil fica impossibilitado de extraditar pessoas em casos que a pena a ser aplicada no país requerente seja a de prisão
perpétua ou pena de morte, uma vez que tais penas contrariam direitos fundamentais
protegidos constitucionalmente, como a inviolabilidade do direito à vida e o direito à
liberdade.
A proibição da aplicação das penas de prisão perpétua e da pena de morte no sistema constitucional brasileiro encontra ligações estreitas com o princípio da dignidade
da pessoa humana. Enquanto a pena de morte contraria flagrantemente o direito à vida,
a pena de prisão perpétua impede a ressocialização do preso e a sua volta a sociedade.
Varella (2010, p. 180) salienta que em termos de extradição, não se admite penas
que não existam no país que envia o extraditando, como a pena de morte ou a prisão
perpétua. No caso de aplicação dessas penas, o Estado que pede a extradição deve comprometer-se a comutá-las em prisão de até trinta anos (que é o máximo de pena permitido no ordenamento jurídico brasileiro), sem o que não poderá ocorrer a extradição.
A respeito da pena de morte especificamente, nota-se que a Constituição traz uma
exceção à regra, pois da sua interpretação decorre a permissão para a extradição de indivíduo para outro Estado em situação em que a medida a ser aplicada seja a pena de
morte. Com efeito, o artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da CF, consente com tal forma de
extradição quando estabelece que “não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra
declarada, nos termos do art. 84, XIX”.
O art. 84, inciso XIX, determina que:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[...].
XIX - declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo
Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo
das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional [...].
Assim, em caso de guerra declarada, o Brasil poderá realizar a extradição do indivíduo ao Estado que efetuou o pedido extradicional, mesmo que esse tenha condenado
o extraditando a pena de morte, não precisando ser comutada a pena para o máximo
permitido no território brasileiro (prisão por trinta anos) para que seja efetivada a extradição, pois nesse caso há previsão legal a respeito.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 247
No mesmo sentido dispõe o art. 91, inciso III, do Estatuto do Estrangeiro (lei
6.815/80), o qual refere que “não será efetivada a entrega sem que o Estado requerente
assuma o compromisso de comutar em pena privativa de liberdade a pena corporal ou
de morte, ressalvados, quanto à última, os casos em que a lei brasileira permitir a sua
aplicação”. É esse o caso da guerra declarada.
Desta forma, quando existir possibilidade do extraditando ser condenado à pena
de morte no país que pede a extradição, e não estiver configurada a única hipótese em
que essa pena é admitida no Brasil (guerra declarada), só será concedida extradição se o
país solicitante se comprometer a comutar as penas, ou seja, substituir a pena de morte
por pena privativa de liberdade (PAULO; ALEXANDRINO, 2010, p. 170).
A exigência de comutação das penas proibidas no Brasil (pena de morte e pena de
prisão perpétua) no país que pede a extradição é mais um reflexo do sistema protetivo
do indivíduo, vez que a Constituição protege a pessoa envolvida na referida situação
tendo em vista os direitos humanos.
6.
Considerações finais
A extradição é um instituto do direito internacional que possibilita a cooperação
penal entre os Estados, impedindo que criminosos se esquivem da aplicação da lei e da
Justiça. Entretanto, na Constituição brasileira encontram-se regras que impõem restrições à extradição que possa representar desrespeito aos direitos fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 estabelece um sistema protetivo do indivíduo em
relação à extradição que possa violar direitos humanos. Em razão disso, o nacional
brasileiro (brasileiro nato) não pode ser extraditado, em decorrência do direito fundamental à nacionalidade e do princípio do juízo natural, previstos constitucionalmente.
Essa proteção também se aplica ao brasileiro naturalizado, com determinadas exceções.
Também não pode ser extraditado indivíduo acusado de crime político, já que a Constituição assegura o direito à liberdade de opinião política.
Da mesma forma, caso o extraditando esteja sujeito à pena de morte ou pena de
prisão perpétua no país que pede a sua extradição, o Estado brasileiro somente concederá a extradição se houver a comutação dessas penas em pena de prisão de até trinta
anos (que é a pena máxima admitida no Brasil). Busca-se proteger, desta forma, direitos
como a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à liberdade e a possibilidade de
ressocialização do preso.
Como a extradição envolve tanto o Poder Judiciário como o Poder Executivo no
Brasil, referidas restrições constitucionais devem ser analisada pelo Supremo Tribunal
Federal, bem como pelo Presidente da República por ocasião da decisão de concessão
ou não da extradição de indivíduos a países estrangeiros.
Essas regras que criam obstáculos à concessão da extradição baseiam-se em diretrizes de proteção aos direitos humanos que estão previstas na ordem jurídica brasileira
e também na ordem jurídica internacional, sendo de fundamental importância para a
configuração do Estado Democrático de Direito.
O Estado Democrático de Direito, que foi estabelecido no texto constitucional e
adotado pelo Brasil, implica na exigência da atuação do país reger-se pelo Direito e por
normas democráticas, com respeito aos direitos e garantias fundamentais. Assim sendo, a Constituição delineia os limites e a direção para o exercício do poder do Estado,
inclusive para sua atuação externa, que no caso da extradição deve considerar a proteção dos direitos humanos.
REFERÊNCIAS
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 248
ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual
de Direito Internacional Público. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17. ed. São Paulo: Saraiva,
2013.
MAZZUOLI, Valério O. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2007.
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de Janeiro: Renovar, 2004.
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PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 6.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. 15. ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2014.
SILVA, José A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros
Editoras, 2006.
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional Público. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 249
UM OLHAR SOBRE A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E INTEGRIDADE DOS
REEDUCANDOS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
Isabelle Laís Simões de Oliveira1
Wedja Carla de Souza2
1.
Introdução
Em consonância a uma acepção histórica, que a pena possuía apenas caráter de
vingança, expiação de pecados, executada com crueldade, com objetivo de causar o
máximo de dor e sofrimento ao condenado, na antiguidade, então, não havia a privação
de liberdade como sanção penal, existia no entanto salas de suplícios para a pena de
morte, segundo Foucault em Vigiar e Punir “o suplício judiciário deve ser compreendido
também como ritual político, pois através dos espetáculos realizados em praça pública,
o Judiciário manifestava seu poder, neste período histórico se recorriam às penas corporais: mutilações e açoites (FOUCALT, 1975). Havia também o que Zaffaroni chamava
de “justiça com as próprias mãos”, onde imperava a vingança privada e o triunfo da barbárie (ZAFFARONI, 1999). Contudo a pena ao decorrer dos séculos passou por um período reformador, a penalização das condutas criminalizadas e a prisão manifestou-se
com caráter de sanção, em que a pena era instituída para punir pelo crime cometido, a
prisão como elemento essencial no conjunto das punições, marca um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à humanização.
Na atual Constituição Federativa brasileira essa humanização se concretiza na
enunciação dos direitos expostos principalmente no art. 5º, que dá legitimidade a ordem
constitucional e ao Estado, isto é, não apenas como “governo das leis” (normas positivadas, ou seja, normas emanadas pelo Estado com poder coercivo), mas, como expressão
da concepção de um Estado material de Direito. (Sarlet, 2009). No mesmo artigo, inciso
XLIX lê-se: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” isso quer
dizer que mesmo na situação condicionada de liberdade do apenado nem todos os seus
direitos devem ser tolhidos.
Em consenso com isso, o fundamento que norteia a nossa Carta Magna em seu
art.1º, III têm como princípio a dignidade da pessoa humana, dignidade essa que deveria ser concebida a todos os cidadãos como explicita o caput do art. 5º, onde todos
são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. Ainda na mesma linhagem
temos A Lei de Execuções Penais que em seu art. 1º, estabelece: “A execução penal tem
por objetivo efetuar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para harmônica integração social do condenado e do internado.” como também,
prevê a assistência, a educação e trabalho aos sentenciados. Sobre os últimos pontos
abordados, um questionamento foi a peça principal do nosso trabalho: Na situação carcerária pátria, esses direitos e princípios são realmente efetivados?
1 Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES
2 Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 250
Para discorrer sobre a realidade do sistema penitenciário basta assistir aos noticiários, ler jornais, ou mesmo pesquisar na internet como os cidadãos presos são tratados,
os indivíduos que ao adentrar nas prisões na maioria das vezes sadios e dotados de garantias constitucionais, passam a ser tratado como coisa, infelizmente sendo acometido
a uma dupla penalização, o cumprimento da pena propriamente dita, e a perda muito
mais do que sua liberdade, a perda de sua dignidade e integridade física e moral. O que
acaba sendo esquecido é que esse mesmo indivíduo encarcerado vai voltar- ou espera-se
que ele volte – para a sociedade, numa situação muito pior.
2.
Das pesquisas
2.1 Da estrutura penitênciária e assistência material
De acordo com o levantamento feito pelo G1 com os governos dos 26 estados e
do Distrito Federal em janeiro de 2014, mostra que o Brasil tem hoje um déficit de
200 mil vagas no sistema penitenciário, sendo que a população carcerária atual é de
563.723 presos. (Só há, no entanto, 363.520 vagas nas unidades prisionais do país.)
Ou seja, o espaço que seria destinado a uma pessoa, está ocupado por 1,55 pessoa.
Então se até hoje a ideia primária que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no
espaço, infelizmente no sistema carcerário brasileiro pode. E no estado de Pernambuco
a proporção chega ainda mais gritante: 2,85 pessoa por vaga.
Dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) entre março de 2012 e
fevereiro de 2013, nas 1598 prisões inspecionadas: quase metade dos estabelecimentos
não possui cama para todos os presos e quase 25% não tem colchão para todos. Cerca
de 60% dos estabelecimentos não contam com biblioteca e falta espaço para prática
esportiva em 47%.
Como também, não é fornecido material de higiene pessoal em 40% locais e não
há fornecimento de toalha de banho em 66%. A distribuição de preservativo não é feita
em 42% dos estabelecimentos, as visitas íntimas não são garantidas em cerca de 33%.
2.2 Da saúde, integridade física e segurança
Ainda sobre os dados do CNMP: Foram registradas mais de 20.000 fugas, evasões
ou ausência de retorno após concessão de benefício, em contrapartida, apenas 3.734
foragidos foram recapturados. (Isso significa que 16.266 infratores, até o final da pesquisa, continuam foragidos). Nesse período, foram registradas também 121 rebeliões,
23 das quais com reféns.
Outra pesquisa realizada, desta feita por Rafael Damaceno de Assis, intitulada:
“A realidade atual do sistema penitenciário brasileiro” expõe que: A superlotação das
celas, sua precariedade e sua insalubridade tornam as prisões um ambiente propício à
proliferação de epidemias e ao contágio de doenças. Todos esses fatores estruturais aliados ainda à má alimentação dos presos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a falta de
higiene e toda a lugubridade da prisão, fazem com que um preso que adentrou lá numa
condição sadia, de lá não saia sem ser acometido de uma doença ou com sua resistência
física e saúde fragilizadas.
Os presos adquirem as mais variadas doenças no interior das prisões. As mais
comuns são as doenças do aparelho respiratório, como a tuberculose e a pneumonia.
Também é alto o índice da hepatite e de doenças venéreas em geral, a AIDS por excelência. Conforme pesquisas realizadas nas prisões, estima-se que aproximadamente 20%
dos presos brasileiros sejam portadores do HIV, seja seu contágio por meio da violência
sexual praticada por parte dos presos ou do uso de drogas injetáveis. Além dessas doenças, há um grande número de presos portadores de distúrbios mentais, de câncer e com
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 251
deficiências físicas (paralíticos e semiparalíticos). O que acaba ocorrendo é uma dupla
penalização na pessoa do condenado: a pena de prisão e o lamentável estado de saúde
que ele adquire durante a sua permanência no cárcere.
3.
Da efetividade dos pressupostos constitucionais e infraconstitucionais
“Apesar da contribuição para eliminação da pena sobre o corpo (suplícios,
mutilações) a pena de prisão não tem correspondido com as finalidades
de recuperação do preso. No sistema de penas privativas de liberdade e
seu fim constituem verdadeira contradição.” (MIRABETE, Julio Fabbrini,
2007)
A situação das penitenciárias pátrias é bastante lúgubre. Há constantes rebeliões
e fugas, com um aumento da violência dos presos. Isso se deve, em parte, a situação
degradante do sistema penitenciário brasileiro, que submete o condenado a condições
precárias dentro da prisão. O baixo investimento do Estado é o principal fator que provocou o colapso do sistema penitenciário brasileiro. Os presídios foram se deteriorando
ao longo dos anos, com essa condição a vida da população carcerária vem se agravando
cada vez mais. Todos os fatores acima mencionados resultaram na inaplicabilidade da
tríplice finalidade da pena, e dos direitos fundamentais velados pela constituição e normas infraconstitucionais.
A Constituição Federal brasileira em seu artigo 1º, III, tem como princípio e que
precede a própria constituição, a dignidade da pessoa humana. “Um indivíduo, pelo só
fato de integrar o gênero humano, já é detentor de dignidade. Esta é qualidade ou atributo inerente a todos os homens, decorrente da própria condição humana, que o torna
credor de igual consideração e respeito por parte de seus semelhantes.” (SARLET, Ingo
Wolfgang, 2010) O respeito à dignidade humana, por esse prisma, não constitui ato de
generosidade, mas dever de solidariedade. Dever que a todos é imposto pela ética, antes
que pelo direito.
O direito à integridade física, moral e psicológica do apenado é consagrado pela
Carta constitucional em seu art. 5º, XLIX, assim como a proibição de penas cruéis e
desumanas, demonstrando, desse modo, a preocupação com os direitos fundamentais
que são inerentes ao ser humano. Corroborando com o exposto, a Lei de Execuções Penais no art. 40 impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos
condenados e dos presos provisórios. Posto isto, vale salientar que qualquer descumprimento deste preceito vai de encontro aos Direitos Humanos, garantias constitucionais e
aos tratados internacionais que foram ratificados pelo Brasil.
Também pode ser constatado o descumprimento dos dispositivos da Lei de Execução Penal, a qual prevê no artigo 40, VII o direito à saúde por parte do preso, como uma
obrigação do Estado.
Eis o que existe é uma mera “folha de papel” como afirma Lassalle em “A essência
da Constituição” (LASSALLE, Ferdinand, 1862). A realidade, no entanto, passa ao largo
de qualquer resquício mínimo de dignidade humana e integridade dos reeducandos.
3.1 Tratados internacionais
Em relação aos tratados e convenções internacionais que têm como alicerce a valorização da dignidade da pessoa humana em especial na aplicação das penas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, foi um marco fundamental, desse
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 252
modo reconhece Sarlet: “Tão somente a partir da Segunda Guerra Mundial a dignidade
da pessoa humana passou a ser reconhecida nas Constituições, notadamente após ter
sido consagrada pela Declaração Universal de 1948”. (SARLET, Ingo Wolfgang, 2010)
Em consonância com a mesma, advieram e também foram ratificados pelo Brasil
o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, o qual exaltava em seu
preâmbulo o princípio da dignidade humana como também enuncia e amplia inúmeros
direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, assim como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) de 1969,
que em seu art. 5º consagra o direito à integridade dos apenados, proibindo a tortura
e qualquer tratamento desumano e degradante. Nesse mesmo contexto se encontra a
Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, desumanos ou degradantes.
É notório a vasta quantidade de tratados e convenções internacionais ratificados
pelo Brasil que possuem como objetivo a dignidade na aplicação das penas, porém na
realidade atos degradantes, como: presos amontoados nas celas e estrutura insuficiente
são comuns, comprovando o descumprimento desses tratados de forma evidente e
inegável.
4.
Penas alternativas
As penas alternativas são mais um recurso para humanização já citada anteriormente. Para preencher os requisitos necessários para a substituição das penas, recomenda-se que a pena privativa de liberdade seja substituída por restritiva de direitos,
reservando aos criminosos de indiscutível periculosidade a pena privativa de liberdade;
logo, diminuindo a superlotação dos presídios. Com isso evita-se que o delinquente sofra os males que o sistema carcerário acarreta.
As penas alternativas tratam de medidas punitivas de caráter educativo e socialmente útil representando um meio eficaz de prevenir à reincidência criminal, cumprindo o delinquente a pena em liberdade, devendo ser monitorado pelo Estado e pelos
demais habitantes tutelados por ele, facilitando sua reintegração a sociedade. Como as
sanções visam reeducar, recuperar e reintegrar o indivíduo ao convívio social as penas
alternativas possibilitam a propensão de uma vida diferente pós-infração.
5.
Da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC)
Além das penas alternativas como humanização das condutas criminalizadas, se
aliaram a essa corrente as APACs. APAC é uma entidade sem fins lucrativos. Trabalha
com parceria do Poder Judiciário, do Executivo e a participação da comunidade na execução penal e na administração das penas privativas de liberdade, no regime fechado,
no semiaberto e no aberto. Seu objetivo é a recuperação do preso, a proteção da sociedade, o auxílio à vítima e a promoção da Justiça.
Seu método socializador espalhou-se por todo o território nacional (aproximadamente 100 unidades em todo o Brasil) e no exterior. Já foram implantadas APACs na Alemanha, Argentina, Bolívia, Bulgária, Chile, Cingapura, Costa Rica, El Salvador, Equador, Eslováquia, Estados Unidos, Inglaterra e País de Gales, Latvia, México,
Moldovia, Nova Zelândia e Noruega. O modelo desta entidade foi reconhecido pelo Prison Fellowship International (PFI), organização não-governamental que atua como órgão
consultivo da Organização das Nações Unidas (ONU) em assuntos penitenciários, como
uma alternativa junto aos Direitos Humanos em favor dos recuperandos, como são chamados os condenados.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 253
As unidades em funcionamento no País são de pequeno, médio e grande porte,
com a restrição de que o número de detentos não deve ser superior a 200. Todos eles
passaram por rigoroso processo de avaliação, que atestou seu bom comportamento. Os
indisciplinados, violentos e líderes de facções criminosas dificilmente têm acesso a essa
metodologia. Nelas, os próprios recuperandos, têm as chaves das unidades e cuidam da
segurança. Não há agentes penitenciários e armas de fogo.
“Acreditamos que o sistema prisional pode melhorar muito e que a APAC pode contribuir com essa melhora. O método é desenvolvido há mais de quarenta anos e nunca
houve um caso de grave violência no interior de suas unidades, nunca houve um homicídio e jamais ocorreu motim ou rebelião. A reincidência chega a ser 10 vezes inferior à
convencional, e a manutenção dos centros de reintegração social é, em média, três vezes
inferior ao custo do sistema comum”, observou o juiz Luiz Carlos Rezende e Santos.
6.
Conclusão
“Ninguém conhece realmente uma nação até estar atrás das grades. Uma nação
não deveria ser julgada pelo modo como trata seus melhores cidadãos, e sim, como trata
os piores.” (MANDELA, Nelson, 1995.)
Este célebre pensamento de Mandela explicita a importância que deveria ser dada
pelos Estados à forma de penalização de seus cidadãos-presos, percebe-se, ainda, o
descaso por parte do Estado brasileiro no tratamento dos inclusos neste sistema que
se encontra superlotado e com condições insatisfatórias para efetivar os pressupostos
constitucionais e realizar a democracia em sua totalidade.
Em face do exposto é notório que os direitos dos reeducandos acabam sendo tolhidos, reflexo direto do tratamento e das condições que o condenado foi submetido no
ambiente prisional. A intenção final das medidas punitivas é que sejam efetivados os
princípios de caráter retributivo e preventivo, com intuito de reintegrar o cidadão ao
convívio social para que ele não volte a cometer novas infrações penais.
Como afirma Rogério Greco: “Se a pena é um mal necessário, o Estado deve buscar
aquela que seja mais adequada para a proteção dos bens jurídicos, mas por outro lado
não atinja de forma brutal a dignidade humana, de acordo com o princípio da proporcionalidade” (GRECO, Rogério, 2008). Nessa mesma linha de pensamento se encontra
a obra dos delitos e das penas de Beccaria (BECCARIA, Cesare, 1997), que foi um marco na humanização das penas, em especial na exigência de legalidade, anterioridade e
proporcionalidade que hoje formam os princípios basilares do Direito penal brasileiro.
Sendo de fundamental importância, também, a melhor capacitação dos funcionários que lidarão com esse público, não somente para segurança da sociedade como um
todo, mas para a preservação do princípio da dignidade da pessoa humana e da integridade dos apenados.
Quando se defende que os detentos usufruam das garantias legais e constitucionais depende, em especial, do controle do Estado através dos promotores, que devem
fazer a inspeção mensal programada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, já
a respeito da superlotação e condições estruturais do cárcere, os problemas devem ser
solucionados através da construção de estabelecimentos carcerários e uma adequação
dos existentes aos valores defendidos ao longo deste artigo.
REFERÊNCIAS
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 254
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REIS, Thiago, VELASCO, Clara. Brasil tem hoje déficit de 200 mil vagas no sistema
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ZAFFARONI, Eugenio Rául. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 255
EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E
CULTURAIS – UMA ANÁLISE SOBRE A CARACTERIZAÇÃO
DO DIREITO À INFORMAÇÃO PARA A EFETIVAÇÃO
DA TRANSPARÊNCIA FISCAL BRASILEIRA
Géssyca Correia1
1.
Introdução
A sociedade brasileira do século XXI vive uma descaracterização de sua política.
Isso ocorre através dos mais absurdos e frequentes casos de corrupção que vêm sendo
descobertos entre nossos representantes do legislativo, executivo e judiciário. No entanto, todos nós sabemos que a questão da corrupção no Brasil é bem mais profunda. Acredita-se que apenas uma pequena parte dos casos são descobertos e levados a público,
ou seja, grande parcela fica escondida nas entranhas públicas. Temos a corrupção política, a corrupção de servidores e de cidadãos desonestos. Porém, para fazer uma análise
adequada sobre esse tema, seria necessário um estudo mais direcionado à corrupção,
o que não é o caso. A questão analisada aqui é a de como a transparência no acesso à
informação pode auxilia a promover a consolidação da democracia no Brasil e a viabilizar sua real prestação de contas de uma forma acessível e clara a todos, construindo
uma ferramenta no combate à corrupção e a outras formas de irregularidades públicas.
É importante destacar que temos o acesso à informação como um direito fundamental previsto em nossa Constituição Federal. Por promover a participação democrática, temos, também, o direito à informação garantido por lei. Em 18 de novembro de
2011 ocorreu a promulgação da Lei 12.527, que regulamenta o direito constitucional de
obter informações públicas. Essa norma entrou em vigor em 16 de maio de 2012 e criou
mecanismos que possibilitam a qualquer pessoa, física ou jurídica, sem necessidade de
apresentar motivo, o recebimento de informações públicas dos órgãos e entidades. A
Lei vale para os três Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive aos Tribunais de Conta e Ministério Público. Entidades privadas sem fins lucrativos
também são obrigadas a dar publicidade a informações referentes ao recebimento e à
destinação dos recursos públicos por elas recebidos.
De acordo com Bertazzi (2011) com a reabertura democrática e a promulgação da
Constituição de 1988, o acesso à informação pública foi elevado ao patamar de direito
fundamental, previsto no Art. 37. O acesso à informação como direito fundamental também é reconhecido por importantes organismos da comunidade internacional, como a
Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA)
(BRASIL, 2011 a). Dessa forma, fica claro que a participação popular é de extrema importância para transparência fiscal, que ocorre através do efetivo acesso as informações
públicas.
Nossa sociedade carece de clareza e veracidade nos processos referentes a ela.
Quanto mais o povo se omite e não busca esclarecimentos sobre o direcionamento das
decisões, investimentos e procedimentos que os orientam, mais fica distante a efetiva1 Aluna do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista do programa de iniciação
científica PIBIC UNICAP. Email: [email protected]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 256
ção da realidade social ao regime de governo que nos orienta. Nossa democracia só será
efetiva quando a participação popular for além do voto e abranger também a participação nas decisões, fiscalização, busca e atividade social nos meios que nos governa.
Como não podemos estar presentes em todos os procedimentos, precisamos da clareza
dos atos e dos reais investimentos sociais dos que nos representam.
Por tudo isso é possível inferir como é importante a analise do alcance da Lei
12.507/11 no combate a corrupção e sua contribuição para a consolidação da democracia no Brasil. Assim, o objetivo do trabalho será no primeiro momento, esclarecer como
o acesso á informação serve como um dos meios para o combate à corrupção e, consequentemente, auxilia na efetivação da democracia. Após passa-se a discutir o acesso à
informação pública no Brasil, com a inclusão desse direito na Constituição Federal de
1988 e a promulgação da Lei 12.527/11. No tópico posterior, analisa-se a necessidade
da efetivação dessa lei pelas OSCIP´S- entidades privadas sem fins lucrativos que recebem recursos públicos para prestação de serviços sociais. Por fim, buscamos analisar
as consequências sociais do acesso à informação, através da ação e omissão popular.
2.
Acesso à informação como combate à corrupção
O combate à corrupção deve ser realizado de forma sistemática, efetiva e determinante. Por essa razão, o Governo Federal brasileiro prioriza as medidas preventivas
capazes de evitar que irregularidades sejam cometidas. Quando se fala em prevenção da
corrupção, a promoção da transparência pública e o acesso à informação constituem a
principal medida a ser implantada. O cidadão deve ser ativo e ter acesso fácil e claro as
informações referentes a organização, investimentos, decisões e outros fatores governamentais que interfiram drasticamente na sociedade.
O Governo brasileiro acredita que a transparência através do acesso á informação é
o melhor antídoto contra a corrupção, pois incentiva os gestores públicos a serem mais
responsáveis em sua atuação e permite que a sociedade, de posse das informações, controle a ação dos governantes e fiscalize a aplicação do dinheiro público. Além de ser o
principal meio, a transparência segue sendo a maneira mais justa e democrática. Nosso
sistema de governo defende a proteção dos direitos humanos fundamentais e entre eles
está a participação na vida política, o direito expresso, e o dever de participar do sistema
político que vai proteger seus direitos e sua liberdade. É evidente que para um melhor
controle e fiscalização, não deixando em total liberdade nossos governantes, a participação popular deve ir além do voto. É preciso uma sociedade atenta aos procedimentos
governamentais.
É importante ressaltar que para o cidadão ser ativo e ciente do que ocorre no seu
governo, deve se ter um alto índice de escolaridade no seu país. “O cidadão esclarecido
é sem dúvida uma peça incômoda, reivindicadora. Sem ele, no entanto está comprometido nosso próprio futuro como nação” (CARVALHO, 1998, P. 287-288). Mas segundo as
palavras de Viana (1999, p. 487):
O povo brasileiro nunca teve escolas que o preparassem para a democracia. Nem
como homem da cidade, nem como homem do campo- o nosso homem do povo nunca
pode organizar instituições sociais que educassem na prática do direito de voto e na
tradição de escolha dos seus administradores e dirigentes, habituando-o a manejar esta
pequenina arma delicada: uma cédula de eleitor.
É válido analisar também que o esforço que o Brasil vem fazendo para aumentar
a transparência pública tem sido reconhecido no cenário mundial, tendo o Portal da
Transparência sido apresentado na Conferência dos Estados Partes da Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção como uma das cinco melhores práticas no mundo de
prevenção da corrupção.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 257
O Portal funciona como instrumento de prestação de contas dos administradores
públicos, incentivando o controle social. A ideia é que os cidadãos possam acompanhar
a execução dos programas e ações do governo federal. O “cidadão-fiscal” é um agente
relevante no processo de fiscalização da utilização responsável dos recursos públicos,
atuando como elemento inibidor da corrupção, de fraudes e da malversação de recursos
públicos. O Portal da Transparência oferece também um sistema de mala direta, pelo
qual o cidadão se cadastra para receber, via e-mail, informações referentes a liberações
de recursos para a sua cidade. Para a Controladoria Geral da União (BRASIL, 2011 a,
p. 8):
O acesso a esses dados – que compõem documentos, arquivos, estatísticas – constitui-se em um dos fundamentos para a consolidação da democracia, ao fortalecer a
capacidade dos indivíduos de participar de modo efetivo da tomada de decisões que os
afeta.
Ainda segundo a Controladoria Geral da União (BRASIL, 2011 a), o cidadão bem informado tem melhores condições de conhecer e cessar outros direitos essenciais, como
saúde, educação e benefícios sociais. Na cultura de acesso, o fluxo de informações favorece a tomada de decisões, a boa gestão de políticas públicas e a inclusão do cidadão.
Dessa forma, “o acesso a informação constitui uma ferramenta essencial para combater
a corrupção, transformar em realidade o princípio da transparência na gestão pública e
melhora a qualidade das nossas democracias” (MAZANO FILHO, 2012).
Devemos aprender a devida importância dos direitos que nos são dados, como exposto por Canela e Nascimento (2009, p. 35):
A população saberá que as informações públicas são um bem de propriedade de
todos os brasileiros [...] e não um instrumento de poder deste ou daquele governante,
deste ou daquele funcionário público. Os corruptores e os corruptos que se escondem
sob o mantos da desinformação e do segredo serão expostos pelo dever da transparência, pela luz do dia. A ética e os éticos só tendem a ganhar.
Esses mecanismos e procedimentos que estão levando os governantes a prestar
contas dos resultados de suas ações e que acarretam na exposição pública das políticas
públicas, surgem como consequência da falsa democracia em que vivemos, demonstrando a falta de ética dos nossos governantes e a necessidade de uma sociedade mais
ativa e consciente do processo governamental, onde realmente todas as importantes
decisões políticas estejam com o povo e fiscalizadas por ele.
3.
A Constituição Federal de 1988 e o acesso à informação
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 vieram também os vários
direitos do cidadão. Ela ganhou quase que imediatamente o apelido de constituição
cidadã, por ser considerada a mais completa entre as constituições brasileiras, com
destaque para os vários aspectos que garantem o acesso à cidadania. É fácil notar que a
Constituição de 1988 veio como resposta ao período histórico anterior ao da promulgação da Constituição, a chamada ditadura militar. Nesse contexto, percebe-se que a nova
Carta Magna foi considerada um marco em relação à cidadania e aos direitos humanos,
pois aprovou conquistas significativas em áreas como saúde, previdência, assistência
social, direitos do consumidor, direitos femininos, direitos da criança e do adolescente,
direitos indígenas, jornada de trabalho e o novo Código Civil. Porém, para que todos
esses direitos trazidos pela nova Carta sejam realmente respeitos e efetivados é necessário, entre outros fatos, o controle de um poder pelo outro, sendo todos fiscalizados pelo
povo, que é de onde emana a força do Estado existente.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 258
A nova Constituição trouxe com ela os tão destacados Direitos Fundamentais, que
são aqueles atribuídos a todos os cidadãos, de todas as sociedades espalhadas pelo
globo terrestre, que têm como finalidade assinalar as condições mínimas com as quais
cada ser humano deve dispor para conduzir sua vida de modo pleno e sadio. São direitos indispensáveis ao ser humano, que garantem a vida digna e respeitada na terra.
Na Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida por Pacto de
São José da Costa Rica, em seu artigo 13 é possível observar a prescrição de que “Toda
pessoa tem o direito à liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideais de
qualquer natureza [...].” (CONVENÇÃO..., 1992).
Dessa forma, entre esses Direitos Fundamentais podemos ressaltar o direito do
cidadão de ter acesso á informação. Sua importância tem sido destacada por todo o
mundo e nos últimos tempos vem sendo muito evidenciado e discutido no Brasil, como
consequência dos graves e consecutivos casos de corrupção descobertos no pais. Foi
através da Constituição de 1988 que tivemos o acesso à informação como Direito Fundamental, sendo um tema muito evidente e trabalhado nos dias atuais.
Embora previsto no texto constitucional desde sua promulgação, o direito de acesso à informação carecia de um instrumento legislativo que o regulasse. Mas o que se
percebeu foi que o nosso país sempre optou pelo sigilo de documentos públicos, o que
caracteriza uma afronta aos Direitos do Homem e do Cidadão e uma descaracterização
da nossa tão deseja democracia. Só com muita luta e processos legislativos foi que se
conseguiu que a Lei 12.527 fosse promulgada em 18 de novembro de 2011. Ela entrou
em vigor seis meses depois, sendo regulamentada pelo Decreto nº 7.724, de 16 de maio
2012. A Lei de Acesso à Informação é resultado de um esforço da Administração Pública
para trazer mais transparência ao Governo e de disponibilizar ao cidadão as informações de caráter público, instituindo obrigações, prazos e procedimentos para a divulgação de dados, prevista pela Constituição Federal de 1988 no art. 5º, inc. XXXIII; art. 37,
§3º, inc. II; e art. 216, §2º. Apesar de ter ocorrido um longo processo com várias outras
leis promulgadas, essa foi a que efetivou a real intenção da proposta, pois estabeleceu a
obrigatória prestação de contas por todo e qualquer órgão ou entidade da Administração
Direta e Indireta- incluindo empresas públicas, sociedades de economia mista e outros
entes controlados direta ou indiretamente pela União- e entidade privada sem fins lucrativos que receba recursos públicos, como exemplo as Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público.
A publicação da Lei 12.527 representa um marco na conquista pela informação,
já que, na sua falta “o cidadão e a sociedade civil ficam, portanto, a depender da discricionariedade burocrática, situação perniciosa para a construção de uma administração
pública transparente” (GRAU, 2006 apud BERTAZZI, 2011. P. 26).
Por isso, fica claro que todo o processo para se chegar ao acesso à informação é uma
luta constante e apenas inicial para sua efetivação. A Lei 12.527 representa o marco de
início para o seu desenvolvimento na sociedade, que só será real com o desenvolver de
muitas outras questões como o conhecimento da Lei por todos os cidadãos, a efetivação
de um meio fácil e acessível a todos, a destruição do monopólio da elite e veracidade das
informações públicas. Essas são questões garantidas pela Lei em questão, mas que ainda estão sendo trabalhadas e buscadas pela sociedade, que encontra muitas barreiras
que são impostas pelo próprio governo. Vivemos nessa luta entre o controle político e a
cobrança dos cidadãos. Vale ressaltar:
Se identifica a “transparência” com a inteligibilidade do governo ou da sociedade,
leva à redução da política, pois no domínio objetivo do transparente existirá a única e
mais eficaz solução para todos os problemas e conflitos, a ser definida de forma monológica pela racionalidade tecnoadministrativa e seus suportes tecnológicos. Se explici-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 259
tada como condição e expressão da comunicação pública, pressupõe-se já como dado
aquilo que o conceito deveria abrir para sua indagação: o perfeito exercício do controle
argumentativo de uma sociedade democrática e de direito, onde pode ser afirmada a realização normativa e legitimadora da racionalidade comunicativa. Se reforçada em sua
dimensão simbólica, como expressão mítica ou efeito simbólico e afetivo da representação coletiva, ou como uma illusio saudosista de uma modernidade iluminista irrealizada, dar-se-ia um peso absoluto ao posto da transparência, a opacidade. (GONZÁLEZ
DE GOMES, M. N., 1999).
Dessa forma, fica evidente que não basta a promulgação da Lei de Acesso à Informação, é necessário a efetivação de um conjunto de ações recíprocas nas diferentes
áreas e dimensões sociais para que se possa alcançar uma verdadeira transparência
nas finanças públicas (fomento da necessidade de aumento da transparência). Tudo
isso visando a efetivação do Direito Fundamental referente não apenas a informação,
mas também a um melhoramento do investimento público nas questões básicas sociais
como educação, saúde, alimentação, saneamento e, consequentemente se tendo uma
evolução democrática dentro da própria democracia, ou seja, um avanço para se chegar
a verdadeira democracia colocada por nossa Constituição.
4.
A transparência nas entidades privadas sem fins lucrativos
As entidades privadas sem fins lucrativos são entes do direito privado, dotados de
personalidade jurídica e caracterizados pela reunião de pessoas que possuem o mesmo objetivo, sem nenhuma finalidade lucrativa. As entidades podem exercer diversas
funções, incluindo regulamentação de profissões, entidades religiosas, recreação, educação, algumas funções sociais determinadas da administração pública. Essas últimas
vão ocorrer quando a administração pública delegar alguma das suas funções referentes à prestação de serviços sociais a uma dessas entidades privadas sem fim lucrativo,
frente às necessidades não atendidas pelo governo. Ao ocorrer essa delegação, os investimentos não serão mais apenas privados, passando a ocorrer também o investimento
da administração pública, porém continuam sendo entidades de direito privado e do
terceiro setor, ou seja, sem fins lucrativos. É o que ocorre com as OSCIP’S (Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público).
As OSCIP’S estão cada vez mais se colocando com grande destaque na economia
brasileira devido ao grande crescimento e aumento dos serviços prestados à sociedade.
De acordo com Lambranho e Militão (2007), em matéria publicada no sítio eletrônico
jornalístico Congresso em Foco, o Governo Federal repassou mais de R$ 13 bilhões
para estas entidades no período de 1999 e 2006, de acordo com dados obtidos no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI).
No entanto, é importante destacar que esta notoriedade do Terceiro Setor não surge apenas por causa da prestação cada vez maior de serviços sociais, mas também pela
ocorrência frequente de vários escândalos de repasse de dinheiro público que resultaram
na criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONG’S, em outubro/2007
pelo Senado Brasileiro. Nesse contexto, fica evidente a importância da transparência fiscal através do acesso à informação em todos os setores sociais. Segundo Araújo (2009),
Embora pareça existir um certo ranço de controle do Estado sobre a OSCIP, o legislador procurou, acima de tudo, garantir a transparência no uso da coisa pública, pois
ao terceiro setor é imposta a transparência acima de qualquer outro princípio que se
venha exigir de seus gestores ou aplicar a eles na condução dos negócios desse tipo de
organização, pois o recurso que utilizam são públicos, ainda que não governamentais,
em sua maioria. (p.30)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 260
Além da Lei de Acesso à informação, nossa Constituição é bem clara na questão
referente à publicidade. Através do seu art. 37 aborda os princípios que a administração pública direita e indireta deve seguir, levando o não cumprimento à ocorrência de
penalidades civis ou criminais.
A transparência desse setor é de extrema importância, principalmente das OSCIP’S,
pois essas entidades recebem investimentos que devem ser aplicados na prestação de
serviços sociais não disponibilizados pela administração pública direta (governo), mas
delegados à administração pública indireta para que sejam efetivamos. Por isso, fica
evidente que esses serviços delegados as OSCIP’S são essenciais a população, devendo
de uma forma ou de outra serem corretamente prestados, seguindo todas as normas
referentes a eles e cumprindo sua função social.
5.
As consequências sociais da efetivação do acesso à informação
O governo de cada país é o espelho de sua sociedade. Na época da Ditadura Militar
tínhamos uma sociedade desinformada sobre as ações e procedimentos do seu governo,
consequentemente, dominada e submetida aos absurdos e explorações governamentais.
Tanto é assim que mesmo com a transição da Ditadura para a Democracia, temos na
nossa Constituição Federal, direitos individuais para limitar a atuação do Estado. Nesse
contexto, vemos como é importante a atuação do cidadão para se efetivar a Democracia,
pois quanto mais nos omitimos, mais regredimos e nos assemelhamos aos costumes
ditatoriais. Segundo a Controladoria Geral da União (BRASIL, 2011 a), o cidadão bem
informado tem melhores condições de conhecer e acessar outros diretos essenciais,
como saúde, educação e benefícios sociais. Para ter-se Democracia, o cidadão deve estar
ciente do que se passa no seu governo e ser participante fundamental nas suas decisões
e consequências.
Podemos ver como desenvolvimento da nossa forma de governo, a legislação que é
muito clara ao trazer como Lei a obrigação de todos os órgãos e entidades públicas promoverem, independentemente de requerimento, a divulgação em local acessível a todos
de informações de interesse coletivo ou geral. Além de ter que promover a realização de
audiências ou consultorias públicas, incentivo à população ou outras formas que façam
com que essas informações cheguem mais fáceis a todos.
Como diz o especialista Fabiano Angélico, jornalista pós-graduado em estudos sobre transparência de dados e combate à corrupção, “compartilhar informação é compartilhar poder”. Só poderá se efetivar o real monitoramento dos nossos governantes
se tivermos conhecimento das informações públicas. O acesso a essas informações nos
levará também ao conhecimento da eficácia das políticas implantadas, dos recursos
utilizados e todos os procedimentos necessários para os direitos ditos pela Constituição
Federal serem reais.
6.
Considerações Finais
Por tudo isso, vemos na concretização do acesso à informação um dos principais
meios para o combate à corrupção e, consequentemente maior aproximação da real democracia. Não basta dizer que vivemos em um regime de governo democrático, devemos
caminhar buscando meios para sua plena existência através do acesso a todos de modo
igual. Nosso regime de governo exige muito de todos e para sua plena concretização vemos no acesso à informação um dos melhores e mais eficazes meios.
A Lei de Acesso à Informação é a conquista de maior destaque nessa luta para se
ter o real acesso as informações públicas necessárias. Informações essas, que como já
foi destacado anteriormente, devem ser disponibilizadas pelos Três Poderes da União,
Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive os Tribunais de Conta e Ministério
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 261
Público, incluindo também as Entidades privadas sem fins lucrativos, que também são
obrigadas a dar publicidade a informações referentes ao recebimento e à destinação dos
recursos públicos por elas recebidos. Através da Lei, por ser uma regra jurídica e impor
o seu cumprimento, ficou mais fácil de exigir a sua efetivação, que deve ser realizada
pelo meio mais acessível à toda a população, independentemente de classe, cor ou qualquer outro tipo de diferença.
Assim, de acordo com a abrangência da Lei 12.527, que veio regulamentar o direito
constitucional de obter informações públicas, é muito importante, também, a análise
das OSCIP’S- Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, tendo-se uma melhor visão da regulamentação das relações entre o Estado e as organizações da sociedade civil, direcionando-se para ampliação da atuação no terceiro setor e tentando-se
alcançar uma verdadeira transparência nas finanças públicas em geral (fomento da
necessidade de aumento da transparência).
Todo esse estudo foi feito visando um melhoramento do investimento público nas
questões básicas sociais como educação, saúde, alimentação, saneamento e, consequentemente, o aumento da atenção dada a efetivação dos direitos fundamentais, como
um meio de combate à corrupção e caminho para democracia verdadeira. Buscamos a
transparência como garantia constitucional à informação, ao direito social, cultural e
fundamental.
REFERÊNCIAS
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os serviços públicos. In: ARTICLE 19. Leis de acesso à informação: dilemas da implantação. 2011. p. 25-39. Disponível em http://artigo19.org/. 2011. Acesso em 4 out. 2014.
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______. Lei n° 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5°, no inciso II do § 3° do art. 37 e no § 2° do art. 216 da
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e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília,
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GONZÁLES DE GOMES, Maria Nelíta. Da política de informação ao papel da informação
na política contemporânea. Revista Internacional de Estudos Políticos, Rio de Janeiro,
n. 1, p. 67-93, abr. 1999.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 263
DA ANÁLISE DO DESFECHO DOS PROCESSOS CRIMINAIS
NA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A
MULHER DO RECIFE: A REAL FUNDAMENTAÇÃO DA POLÍTICA
CRIMINAL DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Débora de Lima Ferreira1
Marília Montenegro Pessoa de Mello2
1.
O papel da mulher no direito penal brasileiro
As dimensões das relações na sociedade sempre inferiorizaram a mulher, tendo
em vista os pilares de seus estabelecimentos: o patriarcalismo e o capitalismo. Reservaram-se a elas os aspectos estáticos e privados, em razão de um controle social neutralizado, que reflete padrões e comportamentos construídos e aceitos culturalmente. O
poder exercido sobre as mulheres é reflexo de fundamentos ideológicos e não naturais e
condiciona a repartição dos recursos e a posição superior de um dos sexos (BARATTA,
1999, p. 32), estabelecendo, assim, limites específicos para as mulheres exercerem sua
cidadania e autonomia.
Foi comum haver, na cultura ocidental, a divisão entre o masculino e o feminino,
entre o público e o privado, entre o ativo e o passivo, entre o forte e o fraco e entre o
viril e o recatado. Foi, pois, a partir dessa divisão, que os espaços, papéis e estereótipos
femininos foram criados, posto que, em cada uma dessas dicotomias, ao homem era associada a primeira categoria, hierarquicamente superior à segunda, atribuída à mulher
(BARATTA, 1999, p. 27).
Na estrutura da sociedade patriarcal, portanto, o varão é o produtor e as mulheres
não precisam se preocupar em ganhar dinheiro; a “prestação” que lhes cabe no contrato
do casamento, em contrapartida, é a satisfação de seu marido, provedor da casa, e a
manutenção da instituição familiar (LARRAURI, 2008, p. 1-13).
Desenvolveu-se, nesse contexto, uma sociedade patriarcalista e, obviamente, o direito não ficou alheio à reprodução da diferenciação entre os gêneros. Nesse sentido,
afirma Marília Montenegro:
A grande preocupação do direito era limitar a mulher na sua capacidade
cível, no seu poder patrimonial, na sua educação, e, de forma geral, no
seu poder de decisão no seio social e familiar. E essa limitação cabia ao
Direito Civil. Já para o Direito Penal, a preocupação era mínima, pois as
mulheres, como regra, representavam o papel de vítima. Um ser frágil, doméstico, dependente, pouco ou nenhum perigo oferecia à sociedade e não
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Professora de Direito Penal da Faculdade Marista do Recife-PE. Advogada.
2 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco e da Graduação em Direito da UNICAP e UFPE.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 264
precisaria, assim, sofrer tutela do Direito Penal. O papel de cometer crimes
cabia ao homem sujeito ativo, dominador e perigoso (MELLO, 2010a, p.
138).
A força da ordem masculina é tão forte que dispensa qualquer forma de justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar
em discursos que visem a legitimá-la (BOURDIEU, 2003, p. 75). O direito é também,
sem dúvida, uma das formas de legitimar essa visão.
Nesta sociedade patriarcalista, os estigmas impostos pelo sistema penal, especialmente os relacionados à sexualidade, legitimavam exigências de padrões comportamentais femininos, e também contribuíam para ressaltar os mecanismos de controle sobre
as mulheres, que, neste contexto, resumiam-se à aplicação, pelos homens, de penas
privadas no núcleo da instituição familiar, em nome da “proteção da família”, da “defesa da honra” e da “garantia do pátrio poder”. Nesse ínterim, com frequência, o controle
patriarcal resultava na prática de violência contra a mulher (BARATTA, 2002, p. 19-80).
Como não havia igualdade de direitos entre homens e mulheres, a maioria dos
crimes praticados contra as mulheres não chegava ao conhecimento das autoridades
ou, quando chegava, por algum motivo, não resultava em processo criminal, gerando a
chamada “cifra oculta” do crime (SUTHERLAND, 1985, p. 86). Por conseguinte, tinha-se
falsa impressão de que não havia violência alguma contra a mulher. Após a vigência da
Constituição Federal Brasileira de 1988, com a equiparação dos direitos das mulheres
aos dos homens, contudo, a violência de gênero passou, paulatinamente, a ter um tratamento diferenciado no sistema jurídico brasileiro.
Com o objetivo de reformar o Poder Judiciário, maculado pela morosidade e sobrecarregado de processos, em 1995, foi promulgada a Lei n.º 9.099 que, em atenção
ao disposto no artigo 98, I, da Constituição Federal, regulamentou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Pautados pela oralidade, economia processual e informalidade,
buscando, na medida do possível, a conciliação e a transação, os Juizados Especiais
foram bastante aclamados por terem recepcionado preceitos minimalistas voltados para
a despenalização e não carcerização, gerando um aparente avanço na política criminal
brasileira.
Os Juizados Especiais Criminais passaram a ser competentes para julgar as infrações penais definidas pela Lei como de menor potencial ofensivo e, conforme o modelo
de justiça consensual, a solução dada era sempre voltada para a conciliação, transação
penal ou suspensão condicional do processo.
Os delitos praticados contra a mulher no contexto da violência doméstica são, majoritariamente, ameaças, crimes contra a honra e lesões corporais leves. Em razão da
pena a eles cominada, passaram a ser concebidos como crimes de menor potencial ofensivo e, portanto, julgados no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. Não se esperava,
entretanto, que estes crimes praticados contra a mulher chegariam a corresponder a
cerca de 70% (setenta por cento) dos processos julgados nesses Juizados (CAMPOS;
CARVALHO, 2006, p. 419). Na cidade de Recife, capital do Estado de Pernambuco, por
exemplo, a demanda foi tão grande que tornou necessária a criação de um Juizado Especial Criminal específico para atender a enorme demanda dos casos de violência contra
a mulher.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 265
Dentro dos Juizados Especiais constatou-se, pois, que a família, espaço de proteção, onde laços de amor e afeto são construídos, é também, paradoxalmente, um local
de violência e violação. No contexto da violência doméstica, então, o homem, marido e
companheiro passou a ser confundido com o agressor (ANDRADE, 2005, p. 95).
O conceito de crime de menor potencial lesivo da Lei 9.099/95, todavia, não compreendeu a natureza específica da violência doméstica, visto que desconsiderou a relação hierarquizada e de poder sobre as mulheres presente no ambiente afetivo e familiar
(ROMEIRO, 2009, p. 54). Logo, na prática, o julgamento da violência de gênero nos
JECrims demonstrou-se ineficaz, pois o propósito de escuta das vítimas era inverso ao
procedimento utilizado, e as soluções apresentadas, através da transação penal, composição civil, aplicação de multas e “penas de cesta básica”, findaram em banalizá-la
(CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 421).
Assim, sob forte pressão política, dada ao aparente aumento dos casos de violência doméstica contra a mulher e a evidente incapacidade dos Juizados Especiais e em
julgar casos de violência doméstica contra a mulher e consequente disparidade com o
estabelecido na Convenção de Belém do Pará e Convenção Sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Contra a Mulher, das quais o Brasil é signatário, surgiu a
Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha.
2.
O movimento feminista e o empoderamento via direito penal
No Brasil, o reconhecimento das mulheres enquanto novo sujeito social deveu-se,
essencialmente, ao estabelecimento do feminismo, um movimento que visa consagrar
não só os direitos das mulheres, mas também os direitos sociais, humanos e políticos.
Neste sentido, as feministas têm um desafio político e pedagógico - o da formação de
mulheres conscientes da experiência de ser mulher sob o sistema patriarcal e o capitalista (CAMURÇA, 2007, p. 19).
O feminismo, como movimento social, é um movimento essencialmente moderno,
surge no contexto das ideias iluministas e das ideias transformadoras da Revolução
Francesa. Desde os primórdios da Revolução Francesa, no século XVIII, é possível identificar mulheres, que de forma mais ou menos organizada, lutaram por seu direito à
cidadania, a uma existência legal fora da casa, único lugar em que tinham algum tipo
de reconhecimento como esposas e mães. No entanto, os movimentos feministas só
passaram a ganhar reconhecimento e a se organizarem no Brasil, a partir da década de
setenta, empreendendo muitas lutas em favor da emancipação e da igualdade entre os
sexos (ANDRADE, 2003, p. 133-134).
As mulheres aceitaram o princípio da diferença sexual, mas o rechaçaram
como fundamento para a discriminação injustificada. As líderes dos movimentos de mulheres criticaram seu tratamento diante da lei e impugnaram os termos de sua exclusão social e política, mas o fizeram de forma
que reconheciam a importância do seu papel na família, um argumento
que foi utilizado tanto pelas feministas quanto pelos estados, ainda que
com fins distintos (MOLYNEUX, 2003, p. 79).
O feminismo busca a transformação de um nascer mulher, para um tornar-se
“mulher”, baseando-se no enfrentamento das questões de gênero, um termo identificado como categoria de análise para demonstrar e sistematizar as relações de dominação
e subordinação, que envolvem homens e mulheres, em que aqueles se impõem sobre
estas (TELES, 2003, p. 16).
Sobre a construção do conceito de gênero Joan Scott destaca:
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 266
Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua aparição
entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra indicava uma
rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou
“diferença sexual”. O gênero enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam preocupadas pelo fato de
que a produção de estudos femininos se centrava sobre as mulheres de maneira
demasiado estreita e separada utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma
noção relacional em nosso vocabulário de análise (SCOTT, 1990, p. 5).
A perspectiva de gênero para a mulher enquanto sujeito político pode ser sintetizada: para nós, trata-se de uma categoria de análise sobre como se constroem e se manifestam as relações de poder na sociedade, fundamentadas na percepção das diferenças
entre os sexos (LARANJEIRA, 2008, p. 13).
Na esteira das evoluções dos direitos das mulheres, salienta-se a importância do
feminismo brasileiro na realização de políticas públicas a fim de estabelecer cidadania
e democracia. Sabe-se, ademais, que a luta dos movimentos feministas são contínuas
e árduas, pois as injustiças e mazelas causadas em nossa sociedade como consequência de uma colonização patriarcal capitalista fragmentam-se no espaço e no tempo,
atingindo gerações. A cartografia da opressão nunca está terminada, nem mesmo agora
(CAMURÇA, 2007, p. 15).
Na perspectiva de emancipação da mulher e seu respectivo empoderamento, o pleito dos movimentos feministas foi uma novel legislação – Lei nº 11.340/2006 - a título
de equilíbrio, que pretende proteger a mulher nas situações em que ela possa ser fragilizada pela violência. Cabe à lei ordinária tratar desigualmente os desiguais em determinadas situações excepcionais e específicas (MELLO, 2009, p. 474).
A Lei Maria da Penha nasce no sentido de atender esta demanda feminista, e a
despeito de inúmeras críticas que foram lançadas, afastou do âmbito do JECRIM o julgamento dos crimes perpetrados com violência doméstica e familiar contra a mulher.
Assim, todas as infrações, quando cometidas em razão de vínculo de natureza familiar, estão sob a égide da Lei Maria da Penha. Nesses casos há possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, exceto as de natureza pecuniária, e penas privativas
de liberdade. A pretensão do legislador de retirar a possibilidade de apenar o agressor
com medidas que são, reconhecidamente, inócuas – sob o olhar daqueles que têm a
crença na prevenção geral, atendendo as demandas de castigo de algumas vertentes
do movimento feminista - e que por certo não cumpririam com uma das finalidades da
pena, qual seja a chamada prevenção geral negativa (cujo fundamento é a intimidação
do criminoso levada a efeito pela espécie e quantidade da pena atribuída àqueles que
cometem determinada conduta criminosa) (DIAS, 2010, p. 141).
O movimento feminista, portanto, representou um grande marco na história do
Brasil e de importância indiscutível no combate à violência contra a mulher. As pretensões de inibição das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher fundamentaram o discurso criminalizador, isto é, a estratégia penal, em falência no cenário
atual, foi selecionada como maneira de enfrentamento daquelas formas, representando
o falacioso discurso oficial de emancipação da mulher.
3.
As estratégias sistemáticas da Lei Maria da Penha: o recrudescimento do
tratamento da violência doméstica contra a mulher como reflexo de um direito
penal simbólico
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 267
O posicionamento político-ideológico que defendeu a criminalização da violência
doméstica e familiar contra a mulher e o recrudescimento das normas penais e processuais penais no enfrentamento dessa violência tendeu por afastar a aplicação das
medidas despenalizadoras por tê-las como representação da impunidade. O principal
argumento para essa postura se funda, em síntese, na banalização do crime praticado
contra a mulher, decorrente da brandura da resposta penal proposta pela Lei 9.099/95,
de modo que além de não contribuir para a prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, têm contribuído para exarcebar o sentimento de impunidade e
alimentar o preconceito e a discriminação contra as mulheres na sociedade brasileira
(CUNHA, 2009, p. 116).
A Lei Maria da Penha nasce a partir deste discurso a depeito de inúmeras críticas
que foram lançadas sobre a Lei dos Juizados Especiais no tratamento dos conflitos domésticos e familiares.
No entanto, resta questionar: as aspirações de emancipação feminina viabilizadas
via discurso criminalizador têm sido atendidas? As situações de violência domésticas
e familiar contra a mulher reduziram desde a promulgação da Lei Maria da Penha?
Ou vislumbra-se, ainda que por meio dessa nova legislação penal específica, que as
situações de violência doméstica contra a mulher ganharam outras formas, fazendo
funcionar a ordem social como uma imensa máquina simbólica tendente a ratificar a
dominação masculina sobre a qual se alicerça, condenando tudo que pudesse ofuscar
tal dominação, já que os discursos não mudaram muito do final do século XIX até hoje?
(BOURDIEU, 2003, p.18).
Com efeito, as soluções contemporâneas dadas ao crime ganham um novo semblante bastante paradoxal, visto que na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a
segurança populacional e educar a moral societária, são utilizadas leis penais. Contudo,
tais legislações são simbólicas, pois não conseguem cumprir, sequer minimamente, as
funções que lhes são atribuídas, como também, muitas vezes, põem em risco os próprios
bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89).
É bem verdade que o conceito de direito penal simbólico não guarda nenhuma
sistematicidade e significado preciso, mas não se pode olvidar que representa, pelo
menos do ponto de vista crítico, a oposição entre o explícito e o implícito, entre realidade
e aparência, entre manifesto e latente, entre o verdadeiramente querido e o que de outra
forma é aplicado (HASSEMER, 1991, p.103).
Face, portanto, ao compadecimento social com a história de Maria da Penha, à fácil
aderência por todos às causas feministas, no que tange à violência doméstica contra a
mulher, como também aos fortes anseios e apelos vindicativos midiáticos e coletivos por
uma máxima intervenção penal, o Estado, por meio de seus discursos políticos-demagogos, não inovou e decidiu governar através da simbólica intervenção punitiva e fez por
encerrada sua suposta atuação voltada para a solução do problema social “iluminado”.
Surgiu, assim, no cenário jurídico nacional a Lei n.º 11.340/2006 como resposta política às fortes demandas midiáticas e populacionais por ações mais incisivas contra a
criminalidade doméstica.
Com o fim de compreender a realidade da aplicação da Lei Maria da Penha, está
sendo realizada uma pesquisa de campo na Vara de Violência Doméstica e Familia contra a Mulher da cidade do Recife com o objetivo de avaliar em que medida aquelas pretensões do movimento feministas foram atendidas, isto é, a pesquisa de campo trouxe
uma análise do desfecho dos processos-crimes.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 268
Dos 71 processos-crimes, dos anos de 2009 e 2010, analisados, destacam-se os
seguintes dados: 94,3% dos processos-crimes foram extintos sem resolução do mérito,
dos quais 77,6% por retratação da vítima, 14,9% por decadência e 7,5% por prescrição;
4,2% dos processos-crimes analisados houve condenação; 1,4% dos processos-crimes
analisados houve absolvição.
Assim, conclui-se que o maior enrijecimento das penas abstratamente previstas
na legislação específica no combate à violência doméstica e familiar é apenas simbólico,
tendo em vista que a amplíssima maioria das vítimas se retrata antes do recebimento
da denúncia, em seguida, de acordo com os dados coletados, provocam a extinção ao
longo do processo, em virtude da decadência, que é o perecimento de um direito por
não ter sido exercido nos prazos prefixados em lei. Observa-se também que, na maioria
esmagadora dos processos não resultou em pena privativa de liberdade ou restritiva de
direitos (condenações).
A Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas
alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante aclamada pelos militantes em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para
autonomia e segurança feminina. No entanto, as pretensões da criminalização provedora são tidas como falaciosas e inócuas.
Nesse sentido, Marília Montenegro assegura:
O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento
feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas
penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia
de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a
afirmação que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos,
mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder
punitivo e sua carga simbólica (MELLO, 2010b, p. 940).
A legislação, portanto, trouxe, através de sua redação, a simbólica criminalização
de complexos problemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto,
os estudos de criminologia crítica comprovam o quanto esse sistema está deslegitimado
por produzir um falso discurso de erradicação da violência e promoção da segurança
(CASTILHO, 2007, p. 104-106).
A lógica da imposição de sanções do sistema penal, através da teoria da pena,
apresenta-se aparentemente perfeita, porque, além da promessa de acabar com a criminalidade e garantir a segurança, afirma-se que o delinquente será corrigido. Com efeito,
alude-se ao sistema penal, diante de suas promessas, como melhor forma de solução de
mazelas sociais.
Entretanto, pesquisas revelam que existe uma relação direta de proporcionalidade
entre as variantes: índice de encarceramento e taxas de criminalidade. Portanto, contrariamente ao que se espera como consequência da crescente utilização do cárcere como
meio de prevenção do crime, os índices da criminalidade não diminuem, mas aumentam concomitantemente ao aumento dos indicadores da população encarcerada (CID;
LARRAURI, 2009, p. 3-13). As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se
aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos
permanece estável, ou, ainda pior, aumenta (FOUCAULT, 1999, p. 292).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 269
Outrossim, o cárcere revela-se como uma instituição degradante que não realiza a
promessa de recuperação do delinquente. A prisão, que ainda é uma pena corporal, só
gera sofrimento: impõe um modo de vida peculiar, controlado e negativo ao detento, priva-o a da forma cotidiana de viver, do contato com familiares, amigos e pertences, das
relações amorosas, do trabalho, de modo que despersonaliza e dessocializa o prisioneiro
(ZAFFARONI, 2001, p.135-136).
Nesse diapasão, é contraditória a utilização da segregação pessoal e consequente
afastamento de todas as regras sociais extramuros, com a intenção de integrar o preso,
como um passe de mágica, às regras sociais das quais foram afastados. Sem mencionar,
ainda, a crise institucional pela qual o cárcere passa em razão das degradantes condições de vida proporcionadas aos prisioneiros. Ademais, as dificuldades de readaptação
são potencializadas pelo estigma social que marca um ex-condenado, de modo que,
mesmo com a cessação do sequestro institucional, a exclusão social perdura para além
do tempo atrás das grades. Como consequência da exclusão constante, altos índices de
reincidência são apresentados à sociedade.
Nesse contexto, assevera Vera Andrade:
A pretensão de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efetivo
controle (e redução) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias da pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a reincidência é uma
constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente. Em geral, está demonstrado,
nesse sentido, que a intervenção penal estigmatizante (como a prisão) ao invés de
reduzir a criminalidade ressocializando o condenado, produz efeitos contrários a
uma tal ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas
(ANDRADE, 1999, p. 291).
4.
Em busca de uma conclusão: funções declaradas versus não declaradas sob
o enfoque da Criminologia Crítica
Em momento propício, entrou em vigor a Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, com
o fim de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma diferença de tratamento entre os
gêneros, mesmo quando praticado o mesmo crime. A lei não criou nenhum tipo penal,
mas alterou o tipo já existente e eliminou a aplicação das medidas despenalizadoras da
Lei 9.099/95, quando a vítima for mulher, bem como algumas penas alternativas.
Essas estratégias de empoderamento, via enrijecimento penal até as suas últimas
consequências, defendidas pelos movimentos feministas supostamente retribuiriam o
mal ao homem e evitaria a violência doméstica contra a mulher. No entanto, esses resultados não são alcançados na realidade brasileira. Pesquisas demonstram (FERREIRA,
2011) que a maioria das mulheres desistem de seguir com a ação penal pública condicionada ou privada e, consequentemente, poucos agressores são encarcerados, sendo,
muitas vezes, a situação resolvida com as medidas protetivas previstas na legislação.
Reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema
social, portanto, não implica que seja, o Direito Penal, necessariamente a melhor solução. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados quais os objetivos declarados e não declarados da Lei Maria da Penha, a fim de que haja o rompimento com o
paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com
rigor penal.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 270
A crescente demanda criminalizadora da violência doméstica no Brasil, como uma
forma de evitar a vitimização da mulher nesse tipo de conflito, legitima o objetivo do ordenamento jurídico, mas a regra do direito penal máximo é inapropriada para os problemas domésticos e familiares. Trata-se da manifestação de um direito penal simbólico,
porque há uma incongruência entre os objetivos declarados pela norma e os alcançados
com a aplicação dela. Deve-se destacar que, nesses casos, a proteção de um bem jurídico, que legitimou a criação da norma, não se verifica na aplicação dela, predominando
os efeitos latentes sobre os manifestos.
A abordagem utilizada na análise dos dados da presente pesquisa reflete o discurso
da criminologia crítica, o qual atribui o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos
ideológicos (funções aparentes) e identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito
histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de reprodução do poder social (SANTOS, 2008, p. 88).
A vertente criminológica parte do pressuposto de que o direito deve declarar a função de proteger a ordem social e assim o fazer, sem mistificações a essa pretensão. O
que se quis, pois, foi investigar essa coerência por meio de uma metodologia dialética, a
qual visou identificar funções latentes – não declaradas, ideologicamente encobertas e
tendentes a assegurar a manutenção dos papeis sociais que ela tem no interior do conjunto da sociedade (BARATTA, 2004, p. 95) – e as funções declaradas – que no caso dos
movimentos feministas se dá pela emancipação da mulher e a diminuição dos crimes de
violência doméstica e familiar contra a mulher.
Mais especificamente, a criminologia feminista surge no âmbito da criminologia
crítica com o objetivo de trazer a apreciação feminista ao direito e à ciência penal. No
entanto, tendo em vista a crescente tendência dos movimentos feministas de buscarem
no sistema penal um suporte para a defesa dos direitos das mulheres, essa criminologia
percebeu-se também no papel de trazer para esses movimentos uma base teórica que
possa orientá-los em suas opções político-criminais (ANDRADE, 1999, p. 111), já que
constatou que esse sistema (enrijecimento penal legislativo) não está apto, por si só, a
garantir direitos, uma vez que atua, muito mais, no plano simbólico, criando a sensação
apenas ilusória de segurança jurídica. O que se pretendeu, pois, na presente pesquisa,
foi o aprofundamento do referencial teórico e empírico dessa constatação, possibilitando
um clareamento, aos movimentos feministas, das melhoras formas para a realização de
seus objetivos reais.
Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – combater a
violência e estabelecer a paz social – e realiza outras funções não declaradas, mas, na
verdade, a qual perpetua aquela, o que Vera Andrade denomina de eficácia invertida,
pois a eficácia das funções não declaradas sobrepõe-se à das declaradas (ANDRADE,
2003, p. 74).
O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta ineficaz no âmbito das políticas, uma vez que esse reproduz o sistema social no
qual está inserido - em sendo a sociedade culturalmente patriarcalista, naturalmente o
sistema o será.
Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha não causaram
mudanças na realidade da violência ora tratada, apenas instituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema, forjando uma falsa imagem de que as mulheres,
agora, estão protegidas.
Enfim, o sistema penal é só mais umas das instâncias do controle social, inclusive
sobre as mulheres, resproduzindo desigualdades, razão pela qual esse sistema não pode
favorecer qualquer processo de emancipação.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 271
O processo de empoderamento que as mulheres têm buscado construir nas últimas décadas e a associação à figura da vítima, de sujeito passivo, em nada contribui,
antes ratificam a imagem da mulher como ser frágil, carente de proteção especial, reproduzindo, assim o papel social que lhe foi historicamente determinado, esclarecendo
a real fundamentação da política criminal de combate a violência contra a mulher. Nesse contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas
de resolução dos conflitos domésticos para além do sistema penal. Importante, assim,
que sejam discutidos e apresentados meios alternativos para a solução de conflitos,
principalmente através transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito,
como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 274
A PREMÊNCIA DA REESTRUTURAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO
COM VISTAS À EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL
Arthur Albuquerque de Andrade1
1.
Introdução
Há entre os conceitos de constituição e democracia um vínculo indissociável. O
fulcro dos movimentos responsáveis pela existência e força de uma constituição – historicamente, as revoluções francesa e americana e, em um contexto recente e nacional,
a doutrina brasileira da efetividade – é o pleito ao Estado democrático. Nesse cenário,
constituições de Estados antidemocráticos não são reconhecidas tal como já foram em
outras épocas – constituições napoleônicas (1799 a 1815), legitimadoras da restauração
(1815-1830) e as autoritárias (1919-1937). A consequência da evolução e da simbiose
dos termos resultou na base da maioria das sociedades ocidentais contemporâneas: o
Estado de Direito e, posteriormente, o Estado Constitucional Democrático.
Estado de direito e direitos fundamentais sem democracia não encontram nenhuma garantia de realização, pois todo modelo de exclusão política põe em xeque
os princípios jurídicos da legalidade e da igualdade, inerentes, respectivamente,
ao Estado de direito e aos direitos fundamentais. Por seu turno, a democracia
sem Estado de direito e direitos fundamentais descaracteriza-se como ditadura
da maioria. Essas são as dimensões da complementariedade (NEVES, MARCELO,
2013, p.57).
Embora, portanto, seja coerente presumir só haver Estado constitucional quando
democrático, defini-lo como tal é tarefa árdua, todavia premente, já que essencial, conforme explanado, para solidificar a própria base das sociedades, sobretudo ocidentais,
contemporâneas. O presente artigo tem esse objetivo: definir democracia, para que se
possa alcançar a efetividade constitucional desejada. Para tanto, faz-se uma análise
etimológica e filosófica do termo e dos efeitos práticos no dia-a-dia dos cidadãos, em
questões essenciais, como o voto direto, os instrumentos indiretos às políticas públicas
e os processos legislativo e judicial.
2.
A reformulação da acepção democrática no âmbito do estado.
A luta pela implementação ou ampliação da democracia, iniciada nas revoluções
burguesas ocorridas entre o final do século XVIII e metade do XIX, tornou-se recorrente
nos discursos políticos de todos os setores, grupos e partidos da sociedade contemporânea. Por consequência, o ideal democrático diluiu-se e se converteu em alicerce aos
planos e medidas de grande parte dos governos hodiernos, inclusive os de regime autocrático, uma evidente contradição demagógica, extremamente nociva à real persecução
do mencionado ideal. Nesse contexto, é mister delimitar os valores essenciais à construção de um Estado democrático, no intuito de evitar a fluidez e a perda do significado
deste.
1 Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 275
No Fórum Mundial pela Democracia, realizado em Varsóvia, no ano 2000, representantes de 103 países garantiram ser “a vontade do povo” a base da “autoridade do
governo”2. Entre os participantes, encontravam-se Estados reconhecidamente autocráticos no plano internacional, como o Egito, a Venezuela e a Rússia. A apropriação do
pleito democrático, sem considerar a política pública internamente praticada, deve-se,
em grande parte, ao entendimento atual sobre democracia, limitado à sua correspondência etimológica, em detrimento da estrutura e dos princípios por ela demandados.
Ao se restringir o termo à concepção de “governo do povo”, tem-se a possibilidade de
elaborar um discurso para qualquer regime e, sendo assim, impregnado de contradições
e falácias. Na verdade, desde a Revolução Francesa, não há Chefe de Estado capaz de
legitimar ato com base no argumento “L’État c’est moi” de Luís XIV, presente na França
absolutista - o poder do governante contemporâneo está, inclusive por este, sempre justificado pelo povo, direta ou indiretamente. Nesse sentido, a fluidez do conceito de povo
transpassa para a acepção de democracia.
Nietzsche (2003), na obra “Assim falou Zaratustra”, afirma: “o Estado é o mais
frio de todos os monstros. Ele mente friamente; de sua boca sai esta mentira: ‘Eu, o Estado, sou o povo’”. Kelsen (2000), em continuidade, expõe ser inviável o entendimento
de povo de um ponto de vista sociológico. De acordo com jusfilósofo, é ilógico pensar
em uma unidade formada por um conjunto de indivíduos congregados para o mesmo
fim; vive-se em sociedades cujos grupos são plurais e divergentes dos modos mais variados. Aduz, então, como única abstração lógica de povo a jurídica-normativa. Nessa
análise, retoma-se a elasticidade na oratória da democracia, porque o povo, enquanto
“governo do povo”, sendo visto sob a ótica jurídica, é encarado como objeto do poder e
não como sujeito do poder. Isto é, a unidade povo só existe enquanto submisso à norma
jurídica: esse é o único meio para uniformizar grupos tão distintos entre si. Por óbvio,
no imaginário coletivo, não se aceita a ideia de povo, em uma democracia, como sendo
única e exclusivamente a de objeto de poder. Intenciona-se ser o povo objeto do poder
e, concomitantemente, o sujeito do poder, promovendo-se o governo da autogestão ou
autoadministração, ideal bastante confortável. Essa identidade é, todavia, inexecutável
nos Estados contemporâneos, já que não se conseguiria a participação de todos os indivíduos nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Na prática, então, o povo resta
como objeto do poder, cabendo-lhe exigir a devida representação pelos governantes.
Extrai-se a problemática: os representantes, ainda que autoritários, sempre se identificarão como legítimos e, destarte, atribuirão seus atos ao povo, beneficiando-se não
só pela pretensa legitimidade, como também pela desresponsabilização desses atos, já
que praticados para a suposta proteção do interesse coletivo. A única solução ao equivocado enquadramento da democracia é compreendê-la além do esquema “governo do
povo”, afinal, conforme exposto, trata-se de um entendimento deveras fluido. Deve-se
estabelecer: (i) o objetivo na adoção do regime democrático; (ii) os direitos por este são
debatidos e o modo de debate; (iii) a função dos poderes do Estado e os mecanismos de
acesso, direto e indireto, por ele estabelecidos. A percepção fática de democracia deve
partir da resposta a essas três questões, todas contempladas em subtópicos ao longo da
pesquisa.
2.1. Objetivo da democracia: promoção igualitária da liberdade.
Afirmou-se, através dos ensinamentos de Kelsen, ser a ótica jurídica a única a tomar o povo como unidade. Pois bem, há de se fazer uma ponderação: essa uniformidade
diz respeito à relação do povo com o poder. Isto porque há outro elemento capaz de dar
uniformidade a grupos díspares e, portanto, concretizar a abstração “povo”: a liberdade.
2 WHAT’S gone whrong with democracy and how to revive it. 2014. Disponível em: <http://www.economist.com/news/essays/21596796-democracy-was-most-successful-political-idea-20th-century-why-has-it-run-trouble-and-what-can-be-do>. Acesso em: 01 abr. 2014.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 276
Ser livre é o anseio de todo indivíduo, em qualquer época ou lugar. Deseja-se a liberdade na escolha da profissão, do(a) parceiro(a), da religião, dos produtos a consumir, da
forma e do conteúdo da expressão, de como se posicionar diante dos eventos cotidianos,
do destino pretendido, ou até mesmo, paradoxalmente, de não ser livre. Nesse diapasão,
um Estado democrático tem por fulcro a preservação máxima da liberdade, uma vez que
esta é a vontade do povo. À primeira vista, aparenta conveniente atrelar a máxima liberdade com a anarquia: um equívoco. Uma sociedade sem Estado e sem ordenamento não
está livre da imposição de limites, os quais passam a ser definidos pelo próprio homem.
A liberdade de um indivíduo, pois, esbarrará, em algum momento, na liberdade de outrem. O resultado é a prevalência da total liberdade de determinados grupos sobre outros, estes então presos aos primeiros, revelando-se uma afronta à noção de igualdade
em ser livre, viga-mestre da democracia, pois esse regime implica na liberdade enquanto
desejo do povo como um todo, sem discriminações formais entre os grupos nele presentes. As diferenciações entre grupos devem ocorrer à medida da própria desigualdade
presente, funcionando, em última instância, à promoção da igualdade.
Prova-se, em conclusão, a imprescindibilidade da ordem social à manutenção
da liberdade e a democracia como regime indicado ao equilíbrio desses dois valores. A
anarquia, por priorizar, demasiadamente, a liberdade – não admitindo ordem proveniente de um sistema hierarquizado – acaba por coloca-la em risco. Por outro lado, os
regimes antidemocráticos tendem a utilizar a ordem social desvencilhada do anseio à
liberdade do indivíduo. O contraponto liberdade e ordem social é a equação do regime
democrático, cujo saldo é a promoção da maior liberdade possível (KELSEN, 2000).
A mencionada promoção é uma tarefa árdua, porém primordial para o Estado
democrático, e envolve, em síntese, quatro etapas. A primeira é a distinção entre liberdades impróprias das próprias, cujo julgo não se submete ao princípio majoritário;
a segunda é a formação de uma dialética entre a maioria e a minoria, mormente no
Parlamento; a terceira é a abertura do acesso ao poder; e a última é a garantia de uma
qualidade de vida digna à população.
2.2 Os direitos debatidos no estado democrático e o modo de debate.
Antes de se adentrar no tópico, preme uma observação: o estudo, por ora, recairá sobre os direitos debatidos em uma democracia, os quais não se confundem com os
direitos por ela garantidos. Por exemplo, o sufrágio universal, embora seja passível de
debate, trata-se, com efeito, de direito garantido, por ser parte integrante do arcabouço
democrático; em oposição estão as cotas raciais nas universidades públicas, direito decorrente do debate existente na democracia, esta, contudo, não o tem como essencial à
sua estrutura. O escopo da primeira etapa é separar os direitos a liberdades próprias das impróprias, para, com a complementação da segunda etapa, traçar como ocorre o jogo
democrático quando do planejamento e execução das ações governamentais. Essa categorização é relevante por deduzir quais liberdades podem ser alvo de uma democracia
e, dessa forma, delimitá-la.
As liberdades impróprias possuem suporte no coletivo, expressam-se e se demonstram efetivas quando são ambicionadas por um grupo; ou seja, enquanto permanecem no âmbito de vontade de um ou de poucos indivíduos, sua efetividade fática é
nula. Seguindo essa orientação, depreende-se a relevância da dialética e do ajuste ou
acordo entre lados discordantes, afinal, se essa liberdade apenas será efetiva quando
almejada por um conjunto de pessoas e aplicada à coletividade – ambos podem corresponder, em menor grau, a uma comunidade ou, em maior grau, a todo o Estado –,
nota-se a afetação direta a inúmeros sujeitos, inclusive àqueles contrários à liberdade
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 277
almejada por outros. Em paralelo, as liberdades próprias são efetivas e podem ser reivindicadas, ainda quando pretendidas por um ou por poucos indivíduos, já que são
aplicadas diretamente a estes, sem interferir em esferas alheias.
Para ilustrar a dicotomia apresentada, três liberdades assinaladas tanto como
próprias, quanto impróprias, a depender do alcance a elas atribuído: a racial, a religiosa
e a de orientação sexual. Um indivíduo, ao se identificar com determinada orientação
sexual, raça ou religião, deverá possuir os mesmos direitos de outros cuja identidade
lhe seja diferente, independentemente de fazer parte de uma maioria ou de uma minoria. A dialética à elaboração das normas será mínima, pois as diversidades citadas
podem coexistir sem haver ingerência de uma para com a outra ou entre si. Um cristão
não é reduzido em sua crença por conviver com não-cristãos; a existência do homossexual não minimiza a sexualidade do heterossexual; a presença do negro não limita a do
branco; ou, ainda, em um cotejo transversal: a crença de um cristão não se reduz pela
convivência com homossexuais. A liberdade na escolha das identidades referidas é uma
liberdade própria, enquanto não interferir nas convicções de outrem – nenhum direito é
absoluto (BOBBIO, 1992).
Nesse aspecto, há de se distinguir duas formas de ingerência, para se entender
qual o caráter dessas liberdades pode ser dialetizado e, então, introjetado no espectro
das liberdades impróprias. A interferência repressora do direito de um indivíduo ser
livre – liberdade própria – para escolher a sua identidade deve ser combatida e não debatida.
Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro
grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em maior
número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e
direitos fundamentais (BARROSO, 2012, p.12).
Interpreta-se o experimento descrito no sentido de não poder um grupo, embora
majoritário, impor-se à liberdade de outro, por ser este diferente. No entanto, consoante
alegado, há uma forma legal de ingerência de um grupo sobre o outro, a qual adquire
natureza de liberdade imprópria, cuja edificação lançará mão da dialética e do acordo e,
assim sendo, representará a face mais inerente à democracia.
O pleito de um grupo, cujo pretexto seja o direito à liberdade de sê-lo, pode, por
vezes, afetar diretamente os direitos dos demais, tornando-o submisso ao jogo democrático. Por exemplo, o lobby das entidades religiosas, na promulgação da Carta Magna
de 1988, garantiu-lhes a imunidade tributária, tangente a impostos, sobre templos de
qualquer culto. O anseio teve como justificativa a liberdade religiosa, a qual sofreria suposta limitação acaso tributada. A decisão do constituinte afeta diretamente toda a sociedade brasileira, por diminuir a arrecadação tributária. Além disso, setores contrários
à imunidade argumentam a violação ao princípio da isonomia, por haver um benefício
a determinados grupos, em detrimento de outros. Urge, nessa conjuntura, o jogo democrático, cujo manual aufere, via de regra, a vitória à maioria – princípio majoritário. Há
inúmeros outros casos nos quais a liberdade perpassa a órbita individual e se propaga
na de outro(s): as cotas raciais, para maximizar a representatividade dos negros e pardos; no Brasil, o pleito da comunidade LGBT em divulgar materiais do Programa Escola
sem Homofobia – uma vez que ambos são prestações do Estado e incidem na receita
orçamentária – adquirem caráter de liberdade imprópria.
Por óbvio, não sempre se consegue distinguir a prevalência da natureza ou da
categoria de uma liberdade, condicionando-a, algumas vezes, inclusive, à própria distinção. O direito ao uso das drogas ou ao aborto, ambos genericamente criminalizados no Brasil, são paradigmáticos. A defesa dos dois direitos tem como sustentáculo
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 278
a liberdade individual sobre o corpo, esta incapaz de prejudicar esferas alheias. A tese
contrária alega ser esse direito oriundo de uma liberdade imprópria, porque intervêm na
coletividade ou em outro individuo. O reconhecimento dos dois direitos só ocorrerá se
prevalente a ideia de se tratarem de liberdades próprias – não submissos ao jogo democrático. Em contrassenso inescapável, na prática, esse reconhecimento só se realizará
quando da dialética, o que os submete, em última via, ao aludido jogo.
Paulo Bonavides (2014) entende a democracia como o regime com a responsabilidade de albergar direitos decorrentes tanto do desejo da maioria como da proteção às
minorias. Não há o intuito de categorizar as liberdades em próprias e impróprias, com
vistas a circunscrever a democracia à segunda categoria. De acordo com o constitucionalista, a democracia situa-se nos direitos de 4ª geração (dimensão). O intuito é ampliar
o significado comumente atrelado à democracia, ultrapassando a acepção formal – vontade da maioria – concebida na 1ª geração, para somar-se à concepção material, como
regime protetor das minorias. Um equívoco. Justamente pelo significado de democracia estar relacionado ao princípio majoritário de forma tão solida, poderia haver uma
confusão entre as citadas acepções e a proteção às minorias restaria prejudicada. Por
segurança, o melhor amparo às minorias é o escudo dos direitos humanos, plano internacional, ou fundamentais, plano nacional (KOERNER, 2003, p.143-181), como sugere
Barroso, na interpretação da supracitada hipótese.
Estabelecidos os direitos passíveis de debate democrático, deve-se formular como
a dialética será realizada. O princípio-base a regulamentar as ideias e, a posteriori, as
ações e os direitos delas advindos é o majoritário, pelo qual, há a prevalência da vontade
da maioria sobre a da minoria. Vale decompor ontologicamente a norma. Kelsen (2000)
indica ser a liberdade em conjunto com a igualdade, e não esta isolada, a origem e o norte do princípio. Na lição do jurista, o princípio majoritário, se assimilado exclusivamente
sob a lógica da igualdade (dos votos), estabeleceria uma superioridade dos valores da
maioria, sobre os da minoria, simplesmente pela primeira ter reunido um número maior
(de votantes). A incoerência, alega Kelsen (2000), é não haver valor superior dentre os
da maioria ou os da minoria: são valores apenas divergentes. Diante disso, sustenta o
princípio na igualdade de todos em se ter a liberdade. Pondera: o objetivo da democracia
é preservar, ao máximo, a liberdade – liberdade total não existe nem em uma anarquia,
como já elucidado. Ou seja, objetiva-se o maior número de indivíduos livres e a limitação, para tanto, imposta pela ordem social e produzida pela norma jurídica, deve ser
fruto do acordo do maior número de indivíduos possível. Alberga-se, sob esse pensamento, a liberdade da maior quantidade de pessoas, uma vez que a limitação a elas imposta decorreu da vontade (liberdade) das mesmas. Clarifica-se o paradoxo explícito no
quarto parágrafo da pesquisa: a liberdade de não ser livre significa o poder de se impor
as próprias regras, de escolher qual será o limite a ser respeitado. Nas lacunas ou nas
omissões dessas regras estariam as demais liberdades – distintas da liberdade de não
ser livre.
Não obstante a maioria alocar-se no centro do princípio majoritário, este só se
concretiza com o diálogo aberto e atuante às minorias. Kelsen (2000) argui a impossibilidade da “ditadura da maioria” a longo prazo, pois tal conduta ocasionaria na renúncia
da minoria aos mecanismos oficiais do poder, afinal estes restariam ineficazes. Ausente
a minoria não se formaria a maioria. Estas são, na essência, relações simbióticas. A
participação da minoria como condição à existência da própria maioria seria para Kelsen (2000) o porquê de o Estado democrático dever protegê-la, tanto ao considerá-la no
labor do parlamentar, como ao ofertá-la a capacidade de influir nos atos do Executivo.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 279
Nas últimas décadas, a teoria kelseniana foi relativamente comprovada nos Estados democráticos. Os representantes do povo perceberam a importância de incluir no
discurso eleitoreiro a atenção a posicionamentos políticos minoritários, seja ao mencioná-los expressamente, seja ao omitir posições a eles divergentes. Entretanto, o discurso, por vezes, não se torna efetivo e o contraponto maioria-minoria termina por ocorrer
em forma de disputa – na qual apenas os vitoriosos passam a gozar da liberdade – em
dissonância ao pretendido jogo democrático intencionado no discurso, cuja vitória é
simbolizada no acordo, o qual permite a maior número de indivíduos livres: fulcro da
democracia. Esse descompasso, embora deva ser corrigido, possui uma faceta positiva: só pode existir, em tese, nos Estados não-autoritários. O propósito da atenção às
minorias políticas nos discursos dos atuais ou futuros representantes é atraí-las, para
aumentar o eleitorado ou, em uma visão mais ampla, a legitimidade representativa dos
mesmos. Essa preocupação não costuma surgir em regimes autoritários. Líderes antidemocráticos utilizam-se do medo para se manter no governo e não da união dos ideais
majoritários-minoritários. Recorre-se ao temor à hierarquia sanguínea; à religião; à possibilidade de caos social decorrente de um conflito externo ou interno; ou, até mesmo,
à preponderância absoluta dos valores políticos minoritários, os quais não são vistos
como agregadores à Administração Pública, mas como ameaça a esta. Nesse raciocínio,
o papel da minoria é imperioso, já que estrema os regimes democráticos dos demais. Um
dos indícios de democracia é, pois, a presença real das minorias políticas nas decisões
dos Chefes do Executivo e do Parlamento.
Afora da função da minoria, há outros elementos importantes na identificação e,
por conseguinte, na edificação de um Estado democrático. Demarcá-los é fundamental,
mormente em um mundo onde há regimes, conquanto mantenham a fachada de democracia ao convocar eleições periódicas, possuem toda a fundação construída com os
materiais das ditaduras mais escancaradas. Não há o reconhecimento de determinadas
instituições e direitos, sem os quais, as próprias eleições perdem o sentido3. O voto torna-se mecanismo de controle do governo sobre o povo e não o contrário. Há medo de se
votar na oposição, pelos temores elencados no parágrafo anterior.
Vale diferenciar o medo enquanto marketing eleitoral, estratégia recorrente entre
líderes democráticos, do medo utilizado para controlar o eleitor. É comum entre os concorrentes à representação popular, no Executivo ou no Legislativo, o estímulo ao temor
dos indivíduos em elegerem os adversários daqueles. Candidatos conservadores incitam
o medo na vitória dos liberais, ao vender a ideia de probabilidade de desordem social se
as políticas dos segundos forem executadas. Estes, por sua vez, alegam o medo na violação dos direitos humanos na hipótese dos ideais dos primeiros serem concretizados.
Grupos com arrimo maior às políticas sociais atiçam o medo no esquecimento das classes hipossuficientes por parte de grupos com interesses preponderantemente econômicos. Os últimos sustentam o temor de uma recessão ou crise econômica na vitória dos
opositores. O medo, nas hipóteses descritas e correlatas, somente abandona a forma
de marketing e se converte em controle, quando desacompanhado de certos direitos e
instituições, os quais devem ser garantidos em toda democracia.
Seguindo-se a problemática ora analisada, destaca-se, entre os ditos direitos, o
voto secreto e a paridade de armas. Respeitante ao primeiro, em não havendo o sigilo,
o medo do eleitor não se limita à sociedade e atinge, diretamente, a si próprio. Teme-se
pela profissão, pelo respeito da coletividade, pela integridade física e, mais grave, pela
vida. O voto ocorre em razão de uma coação moral irresistível, situação na qual é retirada do eleitor a liberdade e o ato, em consequência, é caracterizado como antidemocrá3 WHAT’S gone whrong with democracy and how to revive it. 2014. Disponível em: <http://www.economist.com/news/essays/21596796-democracy-was-most-successful-political-idea-20th-century-why-has-it-run-trouble-and-what-can-be-do>. Acesso em: 01 abr. 2014.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 280
tico. No tocante ao segundo, caso um grupo detenha espaço majoritário na mídia, em
todos os meios de comunicação, à propagação do medo de um grupo, inexistirá defesa
viável e tampouco a contrapartida do medo do outro. Ausentes, tanto a defesa, quanto
o balanço entre as publicidades de medo, não há o jogo democrático. Os dois direitos
referidos têm por cerne dar sustento à democracia contemporânea. Nesse desígnio, há
muitos outros, todos relacionados com os Poderes do Estado, porquanto são estes os
responsáveis pela elaboração, administração e julgamento das normas jurídicas.
2.3 A função dos poderes do estado e os mecanismos de acesso, direto e indireto,
estabelecidos no regime democrático.
A ideia de democracia como governo do povo já foi devidamente explanada no primeiro subtópico. Apesar de ser apreendido, na realidade fática, apenas como objeto, o
povo pretende ser sujeito do poder. Dessa forma, o regime democrático contentar-se-ia
com a correspondência plena entre a população e os líderes do Estado. No cotidiano, a
identificação total entre governantes e governados é inviável, restando a representação
dos primeiros pelos últimos.
Todavia, excepcionalmente, é possível haver a referida identificação, esta implementada através de mecanismos os quais permitem o acesso direto do povo ao poder.
Nessas oportunidades, a dialética do jogo democrático, cujo resultado é um acordo de
interesses, guiado pelo princípio majoritário, ocorre entre todos os grupos da sociedade
e o poder de decisão – de limitar e/ou expandir a liberdade – encontra-se, de logo, no
próprio povo. Entre os mecanismos diretos mais comuns na contemporaneidade estão
o referendo e o plebiscito. Enquanto este se trata de uma consulta popular realizada
previamente à elaboração de leis ou atos administrativos, aquele ocorre posteriormente,
no intuito de ratifica-los ou vedá-los (MENDES, 2011, p.766).
A eficácia dos mecanismos deve ser debatida, no intuito de aprimorá-los, uma vez
que são, no presente, os meios mais conhecidos e utilizados à democracia direta. Foram
sintetizadas três críticas, consideradas basilares ao referendo e ao plebiscito.
No Brasil e na maioria dos Estados onde os institutos estão previstos, costuma-se
remeter a um dos Poderes – em geral, o Parlamento (BRASIL, Lei 9709, 1998) – a possibilidade de convoca-los. Isto revela a primeira crítica: o povo apenas deteria o poder
de decidir acerca dos assuntos os quais os representantes considerassem convenientes.
Não se cogitaria de uma democracia direta; esta seria, no máximo, semidireta – inclusive, poder-se-ia suspeitar da utilização dos mecanismos à legitimação democrática
de um Estado autocrático, assim como no caso já suscitado das eleições de fachada.
A segunda crítica é posta pelo constitucionalista Canotilho e endossada pelo Ministro
do Supremo Gilmar Mendes (2011, 767). Retratam a importância da politização dos
cidadãos à efetividade dos meios. Ausente a politização, o referendo e o plebiscito não
corresponderiam a uma vontade própria do povo, mas dos grupos de domínio. Por fim,
a terceira crítica é válida tanto aos mecanismos direitos como indiretos da democracia.
Na exposição de Marcos Criador de Diego (2013, p.56), professor titular da Universidade de Extremadura, há um forte descompasso entre o modo como os jovens interagem
atualmente e os mecanismos em análise. O desenvolvimento da tecnologia, com efeito,
nos meios de comunicação, e o advento da internet, permitiu aos jovens uma maior
transparência, imediaticidade e uma menor hierarquia nas relações sociais, questões
ainda embrionárias à democracia, seja a direta – nos marcos referendo e plebiscito –,
seja a indireta – no que toca aos partidos políticos. Cabe estender as alterações do modo
de vida do jovem para o da população em geral, porque as transformações ocorridas
afetaram a todos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 281
A partir das críticas expostas, há de se reformular os mecanismos de democracia
direta, ampliando-os e os tornando mais acessíveis e adequados à nova realidade. Esta
é, inclusive, uma das propostas do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Nota-se
nas Constituições vigentes da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009)
uma releitura ao entendimento de “soberania popular”, sobretudo tangente à questão
ora avaliada, quando as submetem à aprovação popular (referéndums aprobatórios) ou
estabelecem instituições cujo objetivo é a aludida participação. São exemplos o “Controle Social” na Bolívia, o “Poder Cidadão” na Venezuela e o “Quinto Poder” no Equador4.
O estudo das instituições do Novo Constitucionalismo Latino-Americano é precípuo à
almejada reformulação.
Em paralelo aos mecanismos diretos, estão os indiretos, instrumentalizados no
voto e, portanto, na representação: a principal forma de exercício dos Poderes do Estado. A legitimidade da representação é observada, no voto e, em seguida, nas políticas
implementadas pelo Legislativo, Executivo e Judiciário. O voto, conforme ilustrado no
subtópico anterior, deve ter escrutínio secreto, igual valor para todos, ser preferencialmente direto e fazer parte de eleições periódicas, nas quais os concorrentes possuam
paridade de armas. As políticas implementadas são legítimas, quando as liberdades
impróprias passam pelo jogo democrático, com todas as regras do princípio majoritário,
resultante no acordo entre minorias e maiorias.
No Legislativo, o jogo democrático é, em tese, patente. A elaboração de leis, principal função do Parlamento, concretiza-se, invariavelmente, na aprovação de uma maioria
simples ou qualificada. Configura-se o princípio majoritário. O respeito e a abertura
às minorias adviriam dos acordos, necessários para atrair um número maior de parlamentares à maioria, ou seja, converte-las em maioria em um projeto presente ou futuro; para garantir alianças estratégicas nos períodos eleitorais; e à própria existência
da maioria. Na prática, a legitimidade democrática do Legislativo depara-se com óbices
graves, como a compra de apoio político, o qual se torna ilegítimo, por visar ao interesse do corrupto, em detrimento dos eleitores por ele representados; e a imposição de
vontade – não de acordo – à qual se submete, muitas vezes, a minoria. Esses desvios
são assim denominados, por estarem em dissonância aos propósitos do parlamentar. O
cumprimento correto da função legislativa, por si só, garante a legitimidade democrática
intencionada.
Em sentido oposto estão o Executivo e, com ênfase, o Judiciário. A gerência dos
recursos públicos por parte da Administração costuma a se restringir a um único governante, o Chefe do Executivo federal, estadual ou municipal; os demais membros tendem
a funcionar apenas como longa manus. O debate, primeira etapa ao acordo democrático,
existe em um grau infinitamente inferior ao efetivado pelo Parlamento. A legitimidade
democrática, nesse contexto, é atribuída, em maior parte, ao voto, à escolha do povo por
um determinado governante. Analogamente, o Judiciário encontra-se em uma situação
ainda mais complexa: os magistrados sequer foram eleitos, não funcionando, destarte,
como representantes da população. Logo, o cumprimento correto das funções administrativa e judicante, prima facie, parece não ser suficiente à composição da democracia.
A lógica do parágrafo anterior deve ser devidamente interpretada. Não se sustenta
uma preponderância do legislador, por ter este a função mais passível às regras do jogo
democrático. Esta lógica faz parte dos discursos demagógicos antidemocráticos cujo
pleito é a democracia – contradição já explorada na pesquisa. Defender a democracia,
objetivando uma preponderância de um determinado Poder sobre os demais é ir de encontro a um dos princípios mais significativos à mesma, a limitação do Poder do Estado.
4 Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Disponível em: mestrado.direito.ufg.br/up/14/o/
24243799-UFRJ-Novo-Constitucionalismo-Latino-Americano.pdf?1352144063. Acesso: 09/10/14.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 282
Além disso, são imprescindíveis Poderes os quais não estejam vinculados, em
essência, ao jogo democrático. Kelsen (2000) aponta à melhor apuração da responsabilidade pela gestão dos recursos públicos órgãos menos afeitos aos debates democrático.
Infere-se do pensamento do doutrinador a dificuldade em se responsabilizar o Legislativo por atos dele decorrentes, por serem tais acordos realizados com o aval da maioria – a
própria individualização dos atos é complexa. Um Estado cuja totalidade das políticas
não possa ser atribuída a determinados representantes estaria fadado a, no mínimo,
uma menor transparência dos serviços públicos. Outrossim, a celeridade empregada
à correta prestação das competências do Executivo, em geral, não se alinha ao tempo
despendido ao jogo democrático. No que concerne ao Judiciário, percebe-se à função
deste uma necessidade de conhecimento técnico bastante superior a quaisquer outros
requisitos necessários à boa gestão de um cargo político-democrático. Isto é, os atributos à formação de um político estimado distinguem dos exigidos de um juiz de renome.
Nesse toar, há ainda um fator prevalente: o magistrado é responsável pelo julgamento,
exercendo-o com o caráter imparcial, característica dissonante aos líderes do povo.
O fato de o Legislativo ter uma tendência natural maior à democracia em equiparação ao Executivo e o Judiciário não pode ser visto sob uma ótica negativa. É um
imperativo ao funcionamento do Estado. Contudo, esse fato não os exime à busca de
uma legitimidade democrática. A responsabilidade e a celeridade, tão caras à Administração, não se sobrepõem à democracia, excluindo-a; a formação técnica dos juízes não
os impede de considerar a estrutura de um regime democrático. Todos os valores devem
coexistir harmonicamente. Para tanto, impõe-se o respeito aos parâmetros e vetores
axiológicos legais. Decisões derivadas da lei são não só legais, como legítimas, por ser
esta o principal produto do ideal democrático, já que se submete ao jogo multicitado.
Hodiernamente, não se pode negar a criatividade das funções judicante e administrativa (DIDIER, 2014, p.35). As duas possuem certa discricionariedade, donde se
extraem os valores já defendidos – aqueles não vinculados, em essência, à democracia.
O limite para a discricionariedade está no princípio da legalidade, cujo conteúdo é formado democraticamente. A título de curiosidade, nas últimas décadas, constata-se a
expansão ou a ruptura – o termo depende posição doutrinária adotada – do limite referido, pelo Poder Judiciário, em um fenômeno conhecido por ativismo judicial, em específico, na denominada dificuldade contramajoritária (BARROSO, 2012, p.10).
3.
Conclusão
A democracia é, como todo ideal, permeado de princípios e regras e, para alcança-la, devem-se cumprir as normas dela oriundas. Toda norma surge a partir de um
vetor axiológico e para, entendê-la, é indispensável sabe-lo. O valor mais significativo à
democracia é a máxima liberdade dos indivíduos. As principais normas para a efetivação do dito valor: o princípio majoritário, no qual se inclui o respeito às minorias; o voto
secreto, preferencialmente direto, universal e periódico; a paridade de armas entre os
concorrentes a um cargo político; e o princípio da legalidade. Nesse sentido, devem-se
estabelecer quais são os direitos passíveis de acordos democráticos, ao separar a liberdade em duas espécies: próprias e impróprias.
Uma Constituição cujas normas democráticas não estejam estabelecidas não
pode se considerar como tal. Da mesma forma, um Estado antidemocrático não pode
se intitular constitucional. Nesse contexto, entender a democracia de modo menos generalista, como o pretendido quando simplesmente traduzida na ideia de “governo do
povo”, para abarcar todas as normas dela oriunda e o modo de debate dos direitos por
ela pretendido é imprescindível. Pedir democracia é efetivar um conjunto de normas nos
dois aspectos, do texto à realidade fática. Compreender a relação e as dificuldades entre
Constituição e Democracia é essencial à concretude de ambas em qualquer Estado.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 283
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática.
2012.
BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. São Paulo: Editora Campus/Elsevier: 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Malheiros:
2014.
BRASIL (Estado). Constituição (1988). Lei nº 9709, de 18 de novembro de 1998.
DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, V. 1. São Paulo: Editora Juspodivm,
2014.
DIEGO, Marcos et al. Por uma Asamblea Constituyente. Madrid: Sequitur, 2013.
KELSEN, Hans. A Democracia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.
KOERNER, Andrei. O Papel dos Direitos Humanos na Política Democrática: Uma análise preliminar. Rbsc, São Paulo, v. 18, n. 53. Out. 2003.
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin. Claret, 2003.
Coleção A obra-prima de cada autor, v. 22.
MENDES, Gilmar. BRANCO, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora
Saraiva, 2011.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 284
A PROBLEMÁTICA DA RECEPÇÃO DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO: A
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº45 E SEU IMPACTO NAS
CONVENÇÕES QUE VERSAM SOBRE DIREITOS HUMANOS
Tereza Margarida Costa de Figueiredo1
1.
Introdução
Em 2004, a Emenda Constitucional nº 45, conhecida como a emenda de reforma
do Poder Judiciário, adicionou o §3º ao artigo 5º da Carta Magna de 1988, de modo a
equiparar à emenda constitucional os tratados que versem sobre direitos humanos e
que sejam aprovados por três quintos, em dois turnos, nas duas casas do Congresso
Nacional. Antes, a disciplina era regulada pelo §2º do mesmo artigo, o qual dispunha
que os direitos e garantias expressos naquela Carta Magna não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais celebrados pelo Brasil.
Tal dispositivo concedia amplitude aos tratados em nosso ordenamento, e passou
a colocar, por ora, o ordenamento interno e o internacional como únicos, ambos se
complementando no que fosse cabível. Este entendimento pode ser corroborado com a
leitura do artigo 4º, também da Constituição Federal, que nos mostra dentre os princípios que regem a República Federativa Brasileira em suas relações internacionais a cooperação entre os povos, a igualdade entre os Estados e, principalmente, a prevalência
dos direitos humanos.
A chamada “cláusula de abertura” da Constituição Federal, expressa no artigo 5º,
§ 2º da CF, consoante acima exposto, estabelece que os direitos previstos na Constituição não excluam outros decorrentes de tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Combinando o disposto neste com o que versa o parágrafo seguinte, obtém-se que os
tratados internacionais de direitos humanos poderão ser incorporados ao direito interno
com força de norma constitucional, com a mesma hierarquia normativa das emendas
constitucionais caso seja respeitado o quórum qualificado previsto no artigo 5º, § 3º da
CF.
A EC 45/04 restou silente acerca de todas essas indagações, deixando para a doutrina e o entendimento jurisprudencial a tarefa de as pacificarem; o que, até o presente
não ocorreu. De acordo com posição dominante percebida nas decisões do STF, os tratados que versam sobre Direitos Humanos integrados ao nosso ordenamento com quórum
inferior ao de três quintos nos dois turnos nas duas Casas do Congresso Nacional devem
ser enxergados com status supralegal, de modo que se encontram abaixo da Constituição e acima das leis ordinárias; nada impedindo que passem pela votação disposta no
artigo 5º, §3º da Carta Magna e assim conquistem o status de emenda constitucional.
1 Mestranda em Direito pela UFRN na linha de pesquisa “Direito Internacional e Concretização
de Direitos”. Pós-graduada (especialista) em Direito Material e Processual do Trabalho pela ESMAT-13.
Graduada em Direito pela UEPB. Graduanda em Comunicação Social/ Jornalismo pela UFPB. Advogada.
E-mail: [email protected].
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 285
Quanto aos demais tratados, estes são equiparados à lei ordinária federal, consoante disposto de forma expressa no artigo 102, III, b, da Constituição Federal. Impende ainda destacar o posicionamento adotado pelo Código Tributário Nacional que, em
seu artigo 98, dispõe que os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, não fazendo ressalvas acerca de seu conteúdo,
em um claro posicionamento de primazia do Direito Internacional sob o Direito pátrio.
Diante da clara falta de uniformidade no que tange à recepção do Direito Internacional em nosso ordenamento interno há de se questionar se a posição doutrinária
adotada pelo STF, atualmente, é de fato eficaz ou se acaba por tornar tais instrumentos
normativos de difícil execução. Assim, o presente trabalho discute acerca do quórum
qualificado presente no § 3º do artigo 5º e a impossibilidade deste ser utilizado para
reduzir o rol de Direitos Humanos integralizados em nosso ordenamento, tratando este
apenas do aspecto formal da recepção de tais tratados, posto que, independentemente
de quando foram tais tratados internalizados ou do quórum com que isto ocorreu, são,
de modo inegável, matéria constitucional por tratarem de direitos e garantias fundamentais, discutindo-se apenas se estes adquirem ou não o status formal de emendas à
Constituição. Discute-se ainda acerca do posicionamento do CTN, bem como o status
normativo relegado aos tratados que não versam sobre Direitos Humanos posto que,
estes igualados à legislação federal são passíveis, portanto, de serem substituídos consoante os critérios cronológicos, por lei interna, ferindo o disposto no artigo 27 da Convenção de Viena, que dispõe que não se pode invocar as disposições do direito interno
para justificar o não cumprimento de um tratado.
Neste diapasão, busca-se problematizar a recepção dos tratados internacionais no
ordenamento jurídico brasileiro, analisando-se o atual posicionamento do STF, através
de pesquisa jurisprudencial e bibliográfica, atentando para a necessidade de se honrar
o compromisso firmado quando da celebração do tratado também no âmbito nacional
e, no que tange aos documentos que versam sobre matéria de Direitos Humanos, estes
devem ser recepcionados por nosso ordenamento com status constitucional, tendo em
vista seu conteúdo, não necessitando para isso que se submetam ao quórum qualificado presente no artigo 5º, § 3º, da Lei Maior, posto que este trata apenas de aspectos
formais de equiparação às emendas constitucionais, sendo necessária uma interpretação sistemática deste com o que dispõe o artigo 5º, §2º, do mesmo dispositivo, à luz da
proteção aos Direitos Humanos como princípio que rege o Brasil em suas relações com
outros Estados, aumentando-se e não restringindo o bloco de constitucionalidade.
2.
Evolução histórica do posicionamento do STF acerca da recepção dos tratados
internacionais
O Supremo Tribunal Federal já adotou diversas posições quando suscitado algum
conflito no que tange à recepção, na hierarquia normativa nacional, de algum dispositivo internacional. Até 1977, o entendimento jurisprudencial pátrio consagrava a primazia do Direito Internacional. Por sua vez, a decisão no Recurso Extraordinário 80.004,
naquele ano, pode ser considerada o marco da mudança de paradigma quanto ao entendimento da posição hierárquica dos tratados internacionais no direito brasileiro, estes
agora sendo equiparados a lei federal, posição mantida mesmo após a promulgação da
Constituição Federal de 1988, sendo mister destacar que com esta adveio o tratamento
diferenciado aos documentos que dispusessem acerca de Direitos Humanos, consoante
disposto no artigo 5º, em seus parágrafos §1º, o qual prevê a sua aplicabilidade imediata
desde a recepção, e § 2º, responsável por alargar o bloco de constitucionalidade no que
tange aos dispositivos que versem sobre direitos e garantias fundamentais.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 286
Em 2004, com a EC nº 45 – conhecida como emenda de reforma ao Poder Judiciário – e a incorporação do § 3º ao artigo 5º da Lei Maior, vislumbra-se um outro tratamento diferenciado – e polêmico – aos tratados que tivessem como conteúdo disposições
atinentes aos Direitos Humanos. Por fim, com o julgamento proferido no Recurso Extraordinário 466.343, de 2008, acerca da possibilidade ou não da prisão por alienação
fiduciária tentando equipará-la à prisão do depositário infiel, bem como na abordagem
da problemática acerca deste nos autos do HC 87.585-8, no mesmo ano, percebe-se,
ainda que de forma gradativa, uma certa abertura do STF no que tange aos tratados
que versam sobre Direitos Humanos e sua posição na hierarquia das normas do direito
brasileiro (TRINDADE), passando-se a se vislumbrar, ainda que de forma bastante fragmentada e longe de ser uniforme, o reconhecimento do status materialmente constitucional destes dispositivos, independentemente de passarem ou não pelo quórum qualificado ou de terem sido integralizadas antes ou após a vigência da EC nº 45/04, apesar
de ter prevalecido – e se mantido desde então – a posição que defende a supralegalidade
dos dispositivos que não se submeterem à votação mencionada para sua equiparação
às emendas constitucionais.
No que tange aos tratados internacionais de conteúdo que não o de Direitos Humanos, atualmente, mantém-se a posição adotada pela Suprema Corte em 1977, a qual
determinava a equiparação dos tratados internacionais às leis federais, consoante disposto no artigo 102, III, b, da Constituição Federal, havendo portanto a possibilidade de
que uma lei interna possa revogar um tratado.
Tal posicionamento, todavia, vai de encontro ao disposto no artigo 27, da Convenção de Viena, a qual dispõe que um Estado não pode invocar dispositivos do seu direito
interno para eximir-se de cumprir um tratado internacional, visto que, se um Estado
não deseja mais ser parte de uma convenção deve denunciá-la para que, só então,
quando possível, fique isento de seu cumprimento; nos moldes em que esta determinar.
Neste diapasão, um tratado em que o Brasil seja parte, independentemente de seu
objeto, o obriga não apenas no cenário internacional, mas também interno, sem que
isso signifique a perda de sua soberania ou a desvalorização da legislação nacional, não
devendo haver tanta burocracia para apenas reforçar o que já foi firmado e não podendo
assim, a partir da adoção do critério cronológico, nosso país eximir-se de cumprir seus
compromissos firmados com outros Estados. Deve, portanto, haver maior responsabilidade do Brasil quando celebrar negociações internacionais, de modo a observar, pormenorizadamente, seus efeitos no cenário interno e, quando não mais desejar ser parte
destas, recorrer ao instituto da denúncia, não podendo burlar tal procedimento através
de critérios de cronologia, pois um tratado internacional, mesmo integralizado a um ordenamento jurídico, não deixa de ser um compromisso firmado pelo Estado com outros
Estados, de igual soberania, não podendo nenhum destes agir com discricionariedade
quanto ao cumprimento de seu conteúdo, aplicando-o apenas quando conveniente ou
deixando de aplicá-lo conforme entender que assim deve, ferindo a esfera de negociações
internacionais. Caso isto ocorra, não há razão de existir para o Direito Internacional.
Neste sentido, dispõe Hesse (2009, p. 16) que
De todas as formas, é inegável uma profunda mudança: a evolução do
Estado desde sua concepção tradicional como soberano, nacional, relativamente hermético, para o Estado atual, internacionalmente imbricado
e supranacionalmente vinculado, corresponde à perda da primazia e do
valor e importância que até muito recentemente teve sua Constituição.
3.
Os tratados que versam sobre Direitos Humanos antes e após a EC nº 45/04
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 287
O artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal brasileira dispõe que os direitos e garantias expressos nesta não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte, colocando o ordenamento jurídico como único, sem hierarquização dentre
os instrumentos nacionais ou internacionais, exigindo, portanto, uma interpretação no
sentido de complementariedade dentre o ordenamento interno e o internacional, demonstrando assim significativo avanço no que tange a este tema em relação a Lei Maior
que a antecedeu.
Com a EC 45/04 os tratados que versam sobre direitos humanos e que sejam internalizados pelo quórum de 3/5, em dois turnos, em cada casa do Congresso Nacional,
mesmo quórum destinado às emendas constitucionais, equivalem, formalmente, a estas. Todavia, a leitura do artigo 98 do Código Tributário Nacional, por sua vez, nos leva
a interpretação de que os tratados internacionais sobre Direito Tributário são hierarquicamente superiores à lei interna, não estabelecendo ressalvas no que tange ao seu conteúdo; posição corroborada pela decisão proferida nos autos do RE n. 229.096-0/2007
(CARVALHO), nos remetendo a uma posição com prevalência do Direito Internacional
sob o Direito pátrio.
O entendimento jurisprudencial dominante, consoante mencionado anteriormente, dispõe que os tratados acerca de Direitos Humanos já vigentes em nosso ordenamento antes da emenda de reforma ao Judiciário e que não atingiram o quórum de 3/5,
em dois turnos, nas duas casas do Congresso Nacional, têm status supralegal, encontrando-se acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição. O mesmo entendimento
é aplicado para aqueles que, também versando sobre Direitos Humanos, mesmo recepcionados após a emenda de 2004, não atingiram, igualmente, o referido quórum. Tais
interpretações causam insegurança na aplicação de instrumentos externos, bem como
dificultam sua integração em nosso ordenamento. Um tratado versando sobre Direitos
Humanos deve mesmo ser relegado à supralegalidade e, dessa forma, assumir um posto
inferior na hierarquia normativa do nosso ordenamento, apenas por não cumprir um
aspecto meramente formal?
Tal posição, ainda controversa no âmbito do próprio STF, divide ainda o pensamento dos doutrinadores pátrios. Neste sentido, Flávia Piovesan (2012) defende que os
tratados que versem sobre Direitos Humanos e tenham sido internalizados anteriormente à EC 45/04 devem gozar de status material e formalmente constitucional, sem
necessidade de que sejam submetidos à nova votação, posto que mesmo não atingindo
quórum qualificado, a votação quando de sua integralização fora expressiva. No que
tange aos tratados que, embora versem sobre matéria atinente aos Direitos Humanos e
que, mesmo recepcionados após a EC nº 45/04, não atingiram o quórum qualificado,
a estes deve ser concedido o status material de norma constitucional, tendo em vista o
conteúdo de que dispõem. Ademais, ressalta ainda a autora a aplicabilidade imediata
dos tratados de Direitos Humanos a partir de sua internalização, consoante disposto
no artigo 5, §1º, CF, sem necessidade de qualquer outro instrumento normativo que
determine a sua execução.
Neste mesmo sentido, interessante posicionamento é o adotado pelo autor Valério
Mazuolli, em sua tentativa de aclarar a relação de coordenação (aparentemente inexistente) entre os §2º e §3º do artigo 5º da Constituição, de modo que a incongruência
entre ambos seja dissipada. Para Mazuolli (2013), o que o parágrafo terceiro faz, de fato,
é conceder a equivalência a uma emenda constitucional, e não o status desta, tratando
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 288
de um aspecto meramente formal. O status de emenda constitucional já seria inerente
ao tratado devido à natureza de seu conteúdo, e, portanto este viés é o assegurado pelo
§2º daquele artigo.
Desse modo, este trabalho corrobora com o entendimento apresentado pelos autores acima mencionados, defendendo-se assim que a EC nº 45/04 não revoga de forma
tácita o conteúdo do §2º, apenas adicionando um quórum diferenciado para que haja
a equivalência e também a recepção formal – além da material - do tratado enquanto
emenda constitucional, em nada prejudicando ou atingindo o status constitucional inerente a este instrumento internacional em razão do conteúdo que o mesmo dispõe.
Diante do exposto, determinada explicação é uma das mais claras acerca da função
e eficácia do §3º do artigo 5º, este não tendo vindo para diminuir o bloco de constitucionalidade, mas apenas para apresentar requisitos formais de equiparação de um tratado
a uma emenda constitucional, não ferindo, de modo algum, a cláusula de abertura do
artigo 5ª, § 2º, esta protegida pelo princípio de proteção aos Direitos Humanos que rege
as relações internacionais travadas pelo Brasil expresso em nossa Carta Magna.
Em suma, A EC 45/04, por si só, não se mostrou de fato efetiva, posto que o parágrafo adicionado ao artigo 5º não trouxe aclaramento à matéria, apenas fez com que
adviessem conturbações e levasse a uma segregação aparente na hierarquia normativa
dos tratados, mesmo estes versando sobre o mesmo conteúdo.
4.
Status do tratado internacional sobre Direitos Humanos no ordenamento
jurídico pátrio e o artigo 60, § 4º, da Constituição Federal
Outra questão que deve ser discutida, quando da recepção de instrumentos normativos internacionais que versem sobre Direitos Humanos, é a possibilidade ou não de
sua denúncia.
Diante do posicionamento atual do STF, apenas os tratados internalizados pelo
quórum diferenciado de 3/5, em dois turnos, nas duas casas do Congresso Nacional serão equivalentes às emendas constitucionais e, como tais, em consonância com o artigo
60, § 4º, da Constituição Federal, passam a integrar o rol de cláusulas pétreas da Lei
Maior, em razão de seu conteúdo.
Assim, a partir do momento em que passam a ser consideradas cláusulas pétreas, os tratados internacionais equivalentes às emendas constitucionais não podem ser
denunciados, o que, em consonância com o princípio da vedação ao retrocesso social, é
benéfico ao indivíduo que, assim, tem a segurança de que seu rol de proteção não seja
estreitado.
Entretanto, isto remete aos tratados que, apesar de versarem sobre Direitos Humanos, não foram recepcionados com o quórum qualificado destinado para sua equivalência às emendas constitucionais. Assim, diante do entendimento jurisprudencial
dominante, que os coloca na categoria de dispositivos supralegais, ou até mesmo diante
do entendimento de que tais dispositivos são, sempre, materialmente constitucionais,
o fato de não serem considerados, pelo aspecto formal, equivalentes às emendas constitucionais, não os coloca no rol de cláusulas pétreas do nosso ordenamento e, assim,
permite-se que tais tratados sejam denunciados. Mesmo diante do posicionamento da
autora Flávia Piovesan (2012), explicitado em tópico anterior, em que os tratados internalizados antes da EC 45/04 gozam de status formal e materialmente constitucional,
nos restariam ainda aqueles tratados que, sendo recepcionados após a entrada em vigência da emenda de reforma do Poder Judiciário, não atingiram o quórum qualificado
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 289
e assim, apesar de tratarem de conteúdo constitucional não têm o aspecto formal desta
e, portanto, ao admitir-se a possibilidade de que sejam denunciados, prejudicar-se-ia de
pronto o indivíduo ao reduzir o seu bloco de proteção.
Será que, seria mesmo necessário que se colocassem para nova deliberação os
tratados já internalizados afim de que atinjam o quórum destinado às emendas constitucionais para que sejam consideradas enquanto tais em nosso ordenamento, e assim
possam integrar o rol de cláusulas pétreas em razão do conteúdo de que dispõem? Um
aspecto burocrático e meramente formal deve reduzir o rol de proteção do indivíduo,
sobrepondo-se ao aspecto material destes documentos?
5.
O princípio pro homine e o princípio da vedação ao retrocesso social como
formas de diálogo para dirimir a problemática da posição hierarquia dos tratados
no ordenamento brasileiro
Acima de qualquer aspecto formal, a recepção dos tratados internacionais deve ser
vista de forma sistemática, de modo que não podemos nos ater, meramente, a aspectos
monistas ou dualistas para definir as relações entre os ordenamentos interno e internacional, sendo necessário se pensar em uma coordenação, muito mais do que sobreposição, entre ambos. Apenas a partir da adoção de uma nova postura neste sentido serão
sanados aspectos de conflito entre ambos, proporcionando assim uma maior proteção
ao indivíduo, além do que maior segurança jurídica deste.
Neste sentido, consoante expõe Canotilho (2003, p.26-27), aborda-se, atualmente,
a partir do que se chama de “novo constitucionalismo” - no que tange às recentes tendências do Direito Constitucional – a releitura de programas políticos, com maior foco
em problemas políticos locais abrangidos também pelo Direito Constitucional global ou
comunitário.
No que tange às novas atribuições da Lei Maior na contemporaneidade, destacam-se a sua força normativa e conformadora frente ao pluralismo social e político antes
ignorado. Quanto à tarefa integradora da Constituição, Hesse (2009, p.16) dispõe que
em conjunto, a Constituição e o ordenamento jurídico nacional tornam-se
uma ordem fundamental e um ordenamento jurídico parciais aos quais se
sobrepõe o Direito comunitário, o que, entre outras coisas, não deixará de
afetar a ação e o significado da jurisdição constitucional.
Diante do exposto, fica clara a necessidade de que devem ser buscados novos mecanismos de interpretação e diálogo entre tais ordenamentos, tendo em vista que, muito
mais que se debater sobre soberania nacional deve-se enxergar o indivíduo e sua proteção como questionamentos centrais. Neste diapasão, surge o importante princípio pro
homine, que, ao estabelecer uma cláusula de comunicação entre distintos ordenamentos, permite entre estes uma complementariedade em vez de uma necessária exclusão;
o que é fundamental para que se garanta uma máxima proteção do indivíduo no que
concerne aos dispositivos normativos, especialmente no que tange ao bloco de proteção
dos Direitos Humanos.
Assim sendo, pode-se afirmar que
toda a exegese do Direito Internacional dos Direitos Humanos, consagrada pela jurisprudência internacional, tem como epicentro o princípio da
interpretação pro homine, que impõe a necessidade de que a interpretação
normativa seja feita sempre em prol da proteção dada aos indivíduos. (RAMOS, 2012, p. 62)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 290
Apesar de ainda incipiente, pode ser notada uma leve abertura na visão do STF
no que tange a posição que os tratados internacionais ocupam em nosso ordenamento,
especialmente aqueles que versam sobre Direitos Humanos. Neste sentido, deve ser ressaltada a posição do Ministro Celso de Mello, apesar de não predominante, quando da
deliberação do HC 87.585-8, que tratava acerca da problemática do depositário infiel,
em que este reconsidera sua posição anterior e passa a visualizar o status material dos
tratados sobre Direitos Humanos mesmo que estes não sejam recepcionados através do
quórum qualificado.
Ademais, deve ser ressaltada também a imprescindibilidade da consideração do
princípio da vedação ao retrocesso social no que tange a efetividade de tais tratados,
sendo possível enxergar este princípio através do artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, o qual dispõe acerca da eficácia imediata destes instrumentos desde que já internalizados, à luz do princípio da proteção aos Direitos Humanos que rege nosso país em
suas relações internacionais.
Consoante Ramos (idem, p. 67),
De acordo com tal princípio, nenhuma norma de direitos humanos pode
ser invocada para limitar, de qualquer modo, o exercício de qualquer direito ou liberdade já reconhecida por outra norma internacional ou nacional.
Assim, caso haja dúvida na interpretação de qual norma deve reger determinado caso, impõe-se que seja utilizada a norma mais favorável ao indivíduo, quer seja tal norma de origem internacional ou mesmo nacional.
Não se pode ainda olvidar a importância de uma interpretação sistemática, à luz do
princípio pro homine e da vedação ao retrocesso social também na recepção de tratados
internacionais que não disponham sobre Direitos Humanos pelo nosso ordenamento,
posto que a equiparação destes à lei federal e a consequente possibilidade de sua revogação por uma lei nacional afronta de forma direta o artigo 27 da Convenção de Viena,
posto que escusa o Brasil, a partir da adoção do critério cronológico, de cumprir com
compromissos firmados no âmbito internacional.
Na realidade, tais princípios devem ser enxergados como vasos comunicantes entre
ordenamentos, em um verdadeiro desdobramento da dignidade da pessoa humana em
via de aplicação prática, mostrando-se muito mais como métodos de concretização, possibilidades de diálogo e harmonização entre o ordenamento interno e o internacional.
6.
Conclusão
Diante da realidade, é inegável a necessidade de que se travem relações entre os
mais diversos Estados e, portanto, tem o Direito Internacional a função de equilibrar os
interesses, da melhor forma possível, entre estes. Para tanto, os documentos que são
discutidos e assinados pelos Estados devem ter validade não apenas no âmbito externo,
mas também devem ser recepcionados no ordenamento jurídico interno destes, variando apenas, de acordo com cada ordenamento, a posição hierárquica bem como a forma
de recepção destes tratados.
No Brasil a matéria é controversa, de modo que, encontramos para tratados que
versem sobre conteúdos distintos posições hierárquicas distintas. Ademais, apesar de o
STF ter dirimido, ao menos aparente e temporariamente, as questões que envolvem estas distinções de posicionamentos na hierarquia das convenções em nosso ordenamento pátrio, algumas questões ainda carecem de maior debate, posto serem controversas
até mesmo na Suprema Corte e dentre os doutrinadores.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 291
Não se pode pensar nos tratados apenas no tange as suas obrigações no cenário
exterior ou interior, mas sim em ambos. Assim sendo, ao conferir a um tratado internacional o status de lei federal, este poderia ser revogado por uma lei ordinária o que, internamente não traria grandes questões, a não ser que a lei superveniente apresentasse
algum problema, mas no plano internacional iria de encontro ao disposto no artigo 27,
da Convenção de Viena, que impede que um Estado se utilize de seu direito interno para
eximir-se de cumprir um tratado do qual é signatário.
No que tange aos tratados que versam sobre Direitos Humanos, deve ser observada
a peculiaridade destes, posto que somente aqueles aprovados pelo quórum qualificado
serão equivalentes às emendas constitucionais e, em consonância com o disposto no
artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, integrarão o rol das cláusulas pétreas, não
podendo assim tais tratados serem denunciados. Aos tratados não aprovados por tal
maioria, seja sua posição a de norma supralegal – consoante entendimento dominante
– ou seja reconhecido o seu aspecto materialmente constitucional, estes não serão, formalmente, considerados emendas constitucionais e, como consequência, não integram
o rol de cláusulas pétreas, podendo ser denunciados e assim seria reduzido o bloco de
direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, em afronta ao princípio da vedação
ao retrocesso social.
Os tratados com conteúdo atinente ao Direito Tributário gozam, por sua vez, em
nosso ordenamento, de primazia sob as normas de direito interno, independentemente
do seu conteúdo, consoante disposto no CTN.
Neste diapasão, verifica-se uma dissonância quanto a posição que os tratados ocupam em nosso ordenamento a qual só pode ser superada se os ordenamentos internacional e interno forem visto como complementares, dialogando entre si, e não como
excludentes, em que um deve prevalecer sob o outro. Para tanto, deve-se observar a
aplicação do princípio pro homine e da vedação ao retrocesso social em uma interpretação sistemática destas questões, o que já se nota a partir do posicionamento de alguns
ministros do STF, demonstrando assim uma provável abertura de seu entendimento,
ainda que de forma bastante tímida.
REFERÊNCIAS
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sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial, Brasília, 27 out. 1966. Seção I, pt 1.
_______.Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.
_______. Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de
Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva
aos Artigos 25 e 66. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Decreto/D7030.htm Acesso em: 28/11/2014 Diário Oficial, Brasília, 14
dez. 2009.
_______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 87.885-8/TO. Este HC é emblemático, pois mostra a mudança de posicionamento do ministro Celso de Mello no que
tange aos tratados internacionais sobre Direitos Humanos, passando este a admitir a
natureza materialmente constitucional destes.
______. ____________________. Recurso Extraordinário nº 80.004/SE. EMENTA: CONVENÇÃO DE GENEBRA, LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CAMBIO E NOTAS PROMISSORIAS, AVAL APOSTO A NOTA PROMISSORIA NÃO REGISTRADA NO PRAZO
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 292
LEGAL, IMPOSSIBILIDADE DE SER O AVALISTA ACIONADO, MESMO PELAS VIAS
ORDINARIAS. VALIDADE DO DECRETO-LEI N. 427, DE 22.01.1969. Rel. Min. Marco
Aurélio.
______. _____________________. Recurso extraordinário nº 229.096-0/RS. EMENTA:
DIREITO TRIBUTÁRIO. RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
DO ACORDO GERAL DE TARIFAS E COMÉRCIO. ISENÇÃO DE TRIBUTO ESTADUAL
PREVISTA EM TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO PELA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL. ARTIGO 151, INCISO III, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ARTIGO 98
DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE ISENÇÃO HETERÔNOMA. Relator originário: Min. Ilmar Galvão. Relatora para o acórdão: Min. Cármem
Lúcia. Recorrente: Central Riograndense de Agroinsumos LTDA. Recorrido: Estado do
Rio Grande do Sul.
______. _____________________. Recurso Extraordinário 466.343/SP. Este RE merece
destaque, pois marca a mudança de paradigma no âmbito do STF quando do enfrentamento da questão da constitucionalidade da prisão do depositário infiel. Recorrente:
Banco Bradesco S/A Recorrido: Luciano Cardoso Santos. Rel. Min. Cezar Peluso.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Como se ensina e o que se ensina. In: Direito Constitucional e a teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: ed. Almedina, 2003. p.21-27.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 293
O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMÉRICANO
E OS CRITÉIOS ADOTADOS EM CASO DE DISSENSO
NA APLICAÇÃO DE UM DISPOSITIVO LEGAL1
Fernando Flávio Garcia da Rocha
2
João Manoel Moury de Barros Coelho3
1.
Introdução
Neste diapasão, será analisado as peculiaridades do novo constitucionalismo latino americano no que diz respeito às constituições dos países Colômbia (1991), Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009). Tendo em vista a inesgotável dogmática que
trata sobre o assunto e a complexidade do tema vai-se analisar de maneira geral quais
são os mecanismos positivos e negativos desde marco
Esta pesquisa tem como foco dialogar sobre a necessidade de novos paradigmas
que servirão de base para cessar litígios normativos. O interessante para o raciocínio
desde surge em razão de perceber-se que os países estão preocupados em positivar direitos mas não se preocuparam em criar ou elaborar métodos eficientes que deem tratamento dignos aos direitos fundamentais.
O Brasil vem adotando uma metódica que deixa muitos pensadores da ciência
jurídica estarrecidos em razão do não respeito à historicidade de cada direito positivado.
O judiciário brasileiro entende que a melhor forma pertinente a ser utilizada em caso de
conflito de regras é o critério de validade, enquanto na colisão de princípios o critério da
razoabilidade (imbricamento/sopensamento).
A título exemplificativo das técnicas que o Judiciário utiliza cita-se o caso das biografias não autorizadas , que será dissecada mais adiante e dentre outras polêmicas.
Todavia, antecipa-se a insatisfação até que ponto um direito pode se sobrepor a outro.
A partir disso, vai-se analisar técnicas empíricas que os países que compõem o revolucionário novo constitucionalismo latino americano utilizam e sobretudo tendo como
ponto central os paradigmas e novidades que este marco traz de novidade para os países
mais próximos.
2.
Desenvolvimento histórico
Atualmente a América Latina, vem passando por uma sucessão de revoltas populares cuja finalidade modificar os países de maneira profunda, ao ponto de haver
a promulgação de novas constituições, frutos da revolta popular por um estado mais
democrático, como nos diz a mestra em Direito público (VITORIA, 03/08/2012, p.139).
1 Artigo sob a orientação do Professor Alexandre Henrique Tavares Saldanha.
2 Graduando, 7* período do curso de Direito da AESO BARROS MELO; Monitor de Direito Constitucional no ano de 2014 e também no de 2015; e, por fim, é beneficiário do programa de Iniciação Científica,
pesquisa voluntária, PIVIC, na mesma Instituição, desde do ano 2014.
3 Graduando de direito, pela Faculdade AESO BARROS MELO; Monitor de Processo Civil 1; Membro do
grupo de estudos: Direitos Autorais,Criatividade e Liberdade na Cibercultura.”
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 294
Neste caso podemos citar, as constituições do Equador(2008) e da Bolívia (2009) como
exemplos dessas revoluções e assim fazem parte do fenômeno denominado: “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”.
O novo constitucionalismo latino americano portanto surge, da necessidade do
povo de exercer o poder que lhe é inerente (poder originário) com relação a construção
da constituição, direitos fundamentais com sua eficácia para toda população, participação popular, do viver com plenitude (Sumak kawsay) e de questões ambientais. Por
se tratar de um fenômeno recente, fica difícil explicar as razões dele ter ocorrido assim
como seus efeitos, apesar disso é possível analisar o novo constitucionalismo, devido
as suas características, citadas acima como afirma o professor de direito constitucional
(MARTÍNEZ, 2008, p. 18 e p 20).
Importante, relembrar-se que a América Latina dês de sua descoberta, foi constantemente explorada pelas grandes metrópoles Europeias, vivendo num sistema de
colonialismo, ao qual as metrópoles importaram para os países da América Central e
América do sul (América Latina) um regime jurídico Europeu, assim afirma o Acadêmico
de Direito da Universidade Regional de Blumenau (RAFAEL, 2013, p. 1006 p. 1007).
Desta forma, o novo constitucionalismo tem o objetivo de quebrar com as ideias do
Liberalismo ou Neoliberalismo trazidas pelos Europeus, assim o fenômeno novo constitucionalismo latino-Americano cria a ideia, de construir um novo modelo social partindo de ideias como: pluralismo social, étnico, político e cultural.
Quanto ao aspecto histórico, entende-se que o novo constitucionalismo latino
Americano, vem como uma nova etapa na história do constitucionalismo. Abordando:
temáticas novas, uma nova visão sobre participação popular, justiça social, proteção
ambiental, bem viver, princípios fundamentais e sua eficácia para todos. Estes são alguns dos pontos que o novo constitucionalismo vem abordando, fazendo com que os
países latino americanos repensem seu modelo constitucional atual.
2.1. Necessidade de Positivação
Diante da sofrida vida dos povos nos países acima citado criou-se constituições
cuja finalidade assegurar direitos que não eram previstos em seus ordenamentos e isso
para a América é um avanço extremamente significante, pois, sabe-se que em regra todo
poder emana do povo e através dele deverá ser exercido.
Ademais, perante o clamor social, as pessoas podem participar ativamente dos
processos de positivação de direitos. O Equador é um exemplo clássico, pois, vê-se que
além de ser uma constituição inovadora põe no ápice da pirâmide kelseniana, o povo, e
mais atribui legitimidade de escolher o que é mais importante para o desenvolvimento
nacional.
No capitulo inaugural da Constituição equatoriana, observa-se onde será elencado os princípios fundamentais do estado equatoriano, esse capitulo será denominado de
“Elementos Constitutivos Do Estado”. O art. 1ºnos trará
El Ecuador es un Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático, soberano, independiente, unitario, intercultural, plurinacional
y laico. Se organiza en forma de república y se gobierna de manera descentralizada. La soberanía radica en el pueblo, cuya voluntad es el fundamento de La autoridad, y se ejerce a través de los órganos del poder público
y de lãs formas de participación directa previstas en la Constitución. Los
recursos naturales no renovables del territorio del Estado pertenecen a su
patrimonio inalienable, irrenunciable e imprescriptible.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 295
Assim, o estado equatoriano será constituído por direitos e justiça social (democrático, soberano, plurinacional e laico). Organiza-se em forma de república e a ser
governada de maneira descentralizada. A soberania vem do povo cuja vontade é fundamental para exercer a autoridade. Os recursos naturais não renováveis do território do
estado pertencem a seu patrimônio inalienável, irrenunciável e imprescritível, essa seria
uma tradução do mencionado art. 1º da Constituição do Equador (LORENCINI B, 2011,
p.2).
Em análise ao artigo transcrito, vê-se influência que os movimentos sociais, tiveram
na criação da constituição e sobretudo dos direitos fundamentais. Não obstante, uma
constituição que traz justiça social e estado plurinacional como elemento constitutivo
do estado, demonstra ser uma ruptura com o modelo Neo-Liberal (MATOS, 2010, p.6).
Partindo destes pontos, é valido mencionar mais dois direitos fundamentais presentes na constituição do Equatoriana. A questão da defesa do meio ambiente (la Pacha
Mama) e o conceito do viver em plenitude (sumak kawsay) ambos presentes no preâmbulo constitucional, o “bom viver” está presente como, um dever primordial do estado,
elencado no art. 3º do capitulo I e o respeito ao meio ambiente, está presente no capitulo
sétimo do título II direitos a natureza.
O Bom Viver, é uma um estado (estado espiritual) e sendo assim, o Estado(Equador) se propõem a elevar todos os cidadãos, a este estado(espiritual). Será garantido por
meio de: Planejamento e desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, promover o desenvolvimento sustentável e redistribuição equitativa dos recursos e da riqueza. Assim
esse dever primordial busca que a população viva de uma maneira digna (MATOS, 2010,
p.7).
No primeiro momento, é necessário analisar que la Pacha Mama, ou seja, a natureza como um todo, é um titular de direito fundamental como nos traz o art. 71º da
Constituição do Equatoriana:
“La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene
derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento
y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos”.
Assim sendo, a natureza recebera um grau de proteção de direitos fundamentais, ao mesmo tempo que, ira cumular com um dos deveres primordiais do estado, na
construção de um viver em plenitude, isto é, dever do estado manter o habitat para que,
desta forma sustente-se, o bom viver (MATOS,2010, p.8). Cria-se assim a base dessa
nova sociedade, plurinacional onde vivemos em harmonia e não em competição.
Diante disso, denota-se o quanto o Brasil deve se desenvolver em matéria de proteção aos direitos fundamentais, sobretudo no sentido de pôr eficácia nos que há na
Magna Carta de 1988. Não obstante, denota-se que nos países que compõe esse marco
lático americano, como exemplo o Equador preocupou-se em positivas, no entanto não
se questionou e ao mesmo tempo não criou mecanismos para cessar litígios normativos.
É de salutar importância que os estados sempre procurem se atualizar incorporando ou retirando normas que são de interesse da sociedade, e que o povo mediante
proposta se faça presente formulando ideias para o bem-estar social. Afinal só há novidade se houver interesse em legitimar, além disso, deve-se ter cuidado para não se tornarem robôs (positavação), pois não adianta olhar para uma face sem olhar para outra,
ou seja, o agora e esquecer do amanhã (conflitos normativos).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 296
Observa-se que os direitos fundamentais que são entendidos como absolutos, outrora relativos, são as vigas mestras dos ordenamentos jurídicos e eles devem ser entendidos essenciais para uma vida digna em sociedade. Por isso, que os estados devem se
esforçar para positivar direitos sob a perspectiva do bem-estar social.
2.2. Não preocupação em caso de antinomia normativa
Quando a esse ponto merece um olhar profundo, pois como ficou acima posto os
estados devem promover políticas que tenham a finalidade assegurar o bem-estar social, assim mediante propostas oriundas do povo e, também, mediante experiências de
outros países por intermédios dos representantes políticos.
Não há dúvida da importância disso, mas os juristas devem refletir sobre a temática, pois o novo constitucionalismo latino americano se preocupa em positivar direitos,
todavia, não se preocupou com possíveis antinomias normativas, ou seja, em caso de
litígios de princípios o que fazer. Entende-se ser um problema ou até mesmo ser uma
crítica ao movimento latino americano.
Na América Latina um direito se sobrepor a outro virou costume, isto é, de um
lado você tem o princípio da privacidade e de outro o acesso à cultura havendo antinomia perante um caso concreto um deve ficar afastado para aplicação do outro. -Isso é
questionável porque nenhum direito pode ser colocado de lado em razão de outro, afinal
cada direito positivado tem o seu papel social, eles são oriundos a lutas sociais, então
esse senário deve ser repensado.
Por conta disso, entende-se que o instituto o novo constitucionalismo latino americano tem aspectos positivos e negativos. Sendo os positivos porque aproxima o povo
do estado nas decisões políticas de bem-estar, isso, sim, é democracia direta, diferente
de muitos países que tem previsão normativa, mas não tem aplicação prática, os positivos produzem efeitos no Equador, Bolívia, Venezuela e Colômbia. Todavia os negativos
também produzem efeitos, como no caso da Venezuela e a constante violação de direitos
humanos e fundamentais.
3.
Será que há novos paradigmas para cessar antinomia
Antes de adentrar à problemática faz-se necessário, analisar o modelo que o Brasil vem adotando em matéria de distinção de regras, princípios e qual é a metódica adotada em caso de dissenso na aplicação do direito, perante um caso concreto.
Entende-se que, primeiro, para desmiuçar regras e princípios tem-se que pegar
emprestado o conceito de norma do português José Joaquim Gomes Canotilho, citado
no Livro Racionalidade das Decisões Judiciais, “segundo o qual princípios e regras são
espécies normativas.” (TEIXEIRA, 2002, p.77).
Como pôde ver regras e princípios são especiais normativas, esse conceito é pertinente para que em seguida possa haver distinção das espécies normativas, denota-se
pertinente porque a depender do derivado vai ser diferente a técnica utilizada como se
verá adiante.
Humberto Ávila cita o critério hipotético-condicional que diferencia regras de princípios, assim sendo a regra possui uma hipótese e uma consequência. Este entendimento
fundamenta-se no fato de as regras possuírem uma hipótese e uma consequência, sendo aplicadas ao modo se, então, enquanto os princípios apenas indicam o fundamento
a ser utilizado pelo aplicador para futuramente encontrar a regra para o caso concreto.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 297
Quanto ao dissenso na aplicação de um dispositivo legal deve-se refletir pois até
que ponto um direito é melhor que o outro. Paulo Bonavides e Robert Alexy entendem
que há duas formas a serem utilizadas, sendo primeiro o critério de validade, no caso de
regras, segundo o critério do sopensamento (peso e contra peso).
Para Robert havendo antinomia entre duas regras a uma incidência processual, o
aplicador deverá criar uma “cláusula de exceção” ou “invalidar” uma ou outra. Citemos
alguns exemplos, no primeiro caso, suponhamos: “certa regra, escolar, proíbe a saída
da sala de aula antes que o sinal toque, e outra, que diz o aluno deixar a sala no caso
de incêndio”. (ALEXY, 2008, p. 93. BONAVIDES,2009, p.279).
Neste caso, se não houver soado o alarme(escolar), entretanto, o alarme de incêndio tiver soado, haverá conflito no caso concreto, assim sendo, o problema deve ser solucionado mediante criação de uma exceção. No caso de invalidação, correrá quando duas
regras forem contraditórias entre si, e esta não pode ser dirimida mediante a criação de
uma exceção, logo declara-se invalida uma, desde que leve em consideração o critério
da proporcionalidade.
E no caso de colisão entre princípios? Robert Alexy define que “devem ser solucionadas de forma completamente diversa”. O autor cita como exemplo: “quando algo
é proibido segundo um princípio e, de acordo com outro, permitido um dos princípios
terá que ceder” (ALEXY, 2008, p.93). Haverá assim, precedência em face de outro sob
condições de sopesar.
Verifica-se que este é o modelo consolidado no Judiciário brasileiro e que tem
muita incidência em outros países(Alemanha). Diante disso, indaga-se, até que ponto
um direito fundamental pode se sobrepor a outro; portanto, utilizando-se do critério
mencionado dará margem à arbitrariedade do magistério, e isso leva à insegurança jurídica.
Tendo em vista o novo constitucionalismo latino americano, é de se observar que
não há preocupação em criar novos paradigmas para cessação de antinomia normativa,
pesquisou-se cautelarmente as Constituições do Equador, Bolívia, Venezuela, Colômbia
e Brasil, e não se verificou nada de novo, simplesmente uma teoria consolidada (Robert
Alexy e Paulo Bonavides).
Quanto aos pesquisadores da dogmática jurídica cabe refletir; cada direito positivado tem sua finalidade, então como pode existir uma teoria que diante de um caso
complexo utiliza o critério da proporcionalidade, isto é, um princípio se sobrepõe a outro. Tal insatisfação com a teoria de Robert Alexy e Paulo Bonavides repousa no fato de
não haver respeito à historicidade de cada dispositivo legal.
Como fora citado acima, sobre a insatisfação da teoria de Alexy cabe ao novo constitucionalismo latino americano, a busca por novos paradigmas no que diz respeito à
antinomia de princípios, conseguindo assim atingir o plano da eficácia, ou seja para que
o novo constitucionalismo latino americano se firme, é necessário ir além da participação social e da positivação de direitos fundamentais, deve atingir o plano da eficácia.
Para isso é necessário à utilização de novas técnicas, no caso de dissenso entre direitos
fundamentais.
4.
Considerações Finais
Considerando o que foi arrolado acima é evidente o progresso nas Constituições
da América Latina, porém entende-se oportuno fazer uma crítica a não preocupação dos
Estados com possíveis litigâncias de princípios em face de casos concretos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 298
É de ressaltar os caracteres positivos das constituições do Equador, Bolívia, Colômbia e Venezuela que de certa forma, tem contribuído com os demais estados do
continente em termos de sofisticação dos direitos fundamentais. Os que foram fixados
no início(países) do trabalho são de louvável significância. Temos assim, como características destes estados: Participação Social, o Bom Viver, o Resgate do Poder Originário,
a Proteção do Meio Ambiente e uma disciplina própria para os natos (indígenas), que é
pouco protegido no Brasil.
Quanto a isso não há dúvida, pois geram efeitos positivos para os irmãos de continente, sendo assim surge de forma sutil o porquê da não preocupação dos estados que
estão fazendo parte do constitucionalismo latino América com futuros litígios normativos. Dessa forma critica-se parcialmente em razão de não existir prerrogativas para
cessar conflitos normativos. Com isso, cabe aos pesquisadores pensarem em outros
paradigmas para limitar ou extirpar do sistema do século XXI o método que gera insegurança jurídica, afinal Robert Alexy, ao trazer suas técnicas não se preocupou com a
historicidade dos dispositivos legais.
Ademais, é nítido o equívoco do constitucionalismo latino América, pois vênia segundo Roberto Viciano, estudioso da matéria, em conferência na Faculdade de Direito
do Recife (UFPE), no dia 15.10.2014, quando foi questionado sobre a não preocupação
dos Estados (Bolívia, Equador, Venezuela e Colômbia) a despeito de não ser discutido
novos paradigmas para cessar antinomias normativas. Sendo assim, respondeu com
muita propriedade, que as constituições devem criar mecanismos contundentes para
dar subsídios para o interprete diante de um caso concreto.
Tendo em vista a problemática, adequar-se-ão ao entendimento de Marcelo Neves,
que ora foi tratado no Congresso na Universidade Católica(UNICAP-PE), no dia 05.11.14
de direito Constitucional que reuniu palestrantes do território nacional (Brasil), e nesta
foram apresentados trabalhos dos quais, um dos temas tratava-se do transconstitucionalismo. Com isso entendeu-se que o diálogo entre cortes é de lastimável importância
para a resolução de conflitos (antinomia normativa).
Com base nesta corrente entende-se que à análise empírica é de salutar importância estudar a natureza epistemológica de cada espécie normativa (principio ou regra), diferente da corrente outrora mencionada e defendida por Robert Alexy, Paulo Bonavides
e utilizada pelo STF, que se preocupa com o aspecto formal. Desta forma, cabe ao novo
constitucionalismo buscar novas teorias no caso de antinomia normativa para sanar
velhas lacunas constitucionais.
Conclui-se este pequeno trabalho, dizendo que não se pretendeu esgotar a complexidade do tema, mesmo assim digna foi a pesquisa porque teve a preocupação em
buscar subsídios para reforçar ideias controvertidas na teoria da constituição contemporânea sobretudo sob a égide da hermenêutica. Parafraseando Paulo Freite: O saber é
oriundo da socialização do conhecimento, no qual tanto o pesquisador, quanto o orientador participam do processo aquisitivo.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios (Da definição à aplicação dos princípios
jurídicos), 2007. 4º Edição. Ed. Malheiros Editores.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais (tradução Virgilio Afonso da Silva),
2008. 2º Edição. Ed. Malheiros Editores.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 299
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 1997. 6º Edição. Ed. Malheiros
Editores.
BURCKHART, Thiago Rafael. “O Novo constitucionalismo Latino Americano e a positivação de direitos pluralistas (Uma análise crítica acerca do direito indígena nas recentes
constituições)”. p.1006 p.1007. Pesquisado no dia 20.10.2014 em: file:///C:/Users/
jm/Downloads/5469-14637-1-SM.pdf
DALMAU, Rubén Martínez. “El nuevo constitucionalismo latinoamericano y el proyecto
de Constitución de Ecuador de 2008” in Alter Justitia: Estudos sobre Teoría y Justicia
Constitucional. “Nueva Constitución Política: régimen del buen vivir e poder ciudadano”. Año 2, n° 1, Universidad de Guayaquil, Ecuador, 2008. p.18 e p.20. Pesquisado no
dia 20.10.2014 em: https://sites.google.com/site/martinezdalmau2/home
NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules (princípios e regras constitucionais), 2013. 1º
Edição. Ed. Wmfmartinsfontes.
TEIXEIRA, João Paulo Allain. Racionalidade das Decisões Judiciais, 2002. 1º edição.
Ed. Juarez de Oliveira.
VITORIA, Mariana Alves “neo constitucionalismo e novo constitucionalismo latino americano: características e distinções”. p.139.2012. Pesquisado no dia 20.10.2014 em:
http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/363/289
SOBREIRA, Francisco de Matos. “Equador e a Constituição de 2008 (Um contraponto
teórico face ao Estado Liberal de Direito)”. p.1 e p.2. Pesquisado no dia 21.10.2014 em:
http://www.sinteseeventos.com.br/ciso/anaisxvciso/resumos/GT17-03.pdf
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 300
CIDADANIA E EDUCAÇÃO: A CRISE DO DIREITO À
EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DE HANNA ARENDT
Joseane Batista Azevedo Barros1
1.
Introdução
O presente trabalho aborda a concepção de educação e cidadania em Hanna Arendt
(2005), destacando o papel da escola como espaço coletivo, permitindo que as crianças
e adolescentes possam se apropriar do mundo e desenvolver as suas singularidades.
Nesse sentido, a educação possui a missão de preparar os alunos para o exercício
da cidadania no espaço público, correlacionado com a condição humana da natalidade
e da pluralidade2, haja vista que as crianças nascem no mundo já constituído, todavia
não estão preparadas para inserir-se nele. Com isso, a educação é o mecanismo político
de formação do sujeito para assumir seu papel no espaço público.
Educar para
a cidadania é o pressuposto da contemporaneidade, seja através da educação formal ou
informal, considerando que se trata do dever partilhado entre a família, escola, Estado e
a sociedade civil organizada. Então, a cidadania é a condição humana da vida pública,
na medida em que o sujeito já nasce cidadão, contudo o pleno exercício dos direitos de
cidadania depende da ação e do discurso no espaço público. No tocante à problemática deste artigo analisa-se a concepção de educação elencada por Arendt (2005), tendo
em vista que o sujeito ao adquirir a escolarização formal politizada, poderá utilizá-la
como instrumento da cidadania. Para tanto, utilizou-se da pesquisa bibliográfica de
abordagem qualitativa das categorias teóricas de Arendt (1983; 2005).
Pensar a cidadania como prática pedagógica é correlacionar a educação com fins
sociopolíticos, em razão disso a escola é o espaço democrático e político, onde ocorre o
convívio social e o exercício da cidadania. Assim, a crise da educação advém das problemáticas educacionais no contexto da sociedade de massas, utilizando a educação como
instrumento do conformismo e da dominação. A politização da educação deve buscar a
conscientização e a emancipação do sujeito, por isso, a escola não deve moldar o comportamento dos alunos, negando sua autonomia e individualidade. Em contrapartida, a
autora destaca o papel da autoridade na relação educativa como diretriz da vida pública. A educação possibilita o direcionamento para a participação coletiva, valorizando a
tradição, os costumes, os valores morais e éticos da comunidade. Só assim a educação
terá sentido, na medida em que interliga o velho ao novo. Nessa concepção, as futuras
gerações precisam aprender os saberes e competências necessárias ao convívio social,
podendo instrumentalizar o saber-fazer da participação política. Todavia, a educação
tradicional centra-se no ensino utilitário e funcionalista dos interesses privados, negligenciando a formação educativa do cidadão, tanto nos aspectos da vida privada, como
1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Direito pelo CCJ-UFPB. Área de concentração em
Direitos Humanos. Email: [email protected].
2 O nascimento na concepção de Arent (1983) é a efetivação para a condição humana da natalidade
e o discurso propicia a condição humana da pluralidade. Assim, a ação e o discurso revelam-se na convivência humana, pois “Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da
condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição
humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais.” (ARENDT, 1983, p.191)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 301
também do espaço público e do bem comum. Por fim, a crise do sistema educacional
vai além do investimento econômico, da infraestrutura e da formação dos profissionais
em educação, haja vista que há diversos interesses ideológicos na manutenção do tecnicismo utilitarista na prática pedagógica. Porquanto, a ausência da formação cidadã na
escola faz com que as crianças e jovens desrespeitem a autoridade, a tradição, a família,
os valores morais e éticos da comunidade.
2.
CIDADANIA, EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS
A discussão sobre os direitos humanos não se restringe ao plano doutrinário e legal, mas sim político, pois conforme Bobbio (1992, p. 24) “O problema fundamental em
relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los”.
Com isso, é importante destacar o papel histórico dos direitos humanos.
No contexto das Revoluções burguesas pode-se mencionar a Revolução Inglesa de
1688, na qual os poderes do soberano passaram a ser limitados pelo Parlamento Inglês.
Destacam-se também o movimento de Independência dos Estados Unidos e a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia (1776), propiciando a fundamentação basilar para
as declarações universais posteriores. A Revolução Francesa de 1789, trouxe à tona
o novo modelo de sociedade, surgindo uma nova concepção de cidadania, eliminando
os privilégios dos nobres e reconhecendo os ideais de igualdade, liberdade e a fraternidade.Cita-se como marco da cidadania moderna a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), doravante DUDH, vista não apenas como instrumento jurídico, mas
sim como meta jurídica, compreendendo a dignidade da pessoa humana como preceito
geral dos direitos humanos.3 Ressalta-se a DUDH não possui força vinculante, pois tecnicamente é tida como a recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas para os
Estados. (COMPARATO, 2007)
Embora tenha sido elaborada no cenário pós-guerra visando encerrar o clima de
hostilidade entre os Estados, a DUDH recebe diversas críticas a respeito da ideologia
hegemônica dos vencidos presente na redação do seu texto. Por essa razão, afirma
Sorto (2008, p.22) que “Não há negar que a Declaração é fruto das tradições jurídicas,
políticas, filosóficas ocidentais. Acusam-na desse defeito de origem, espécie de pecado
original que acompanha a Declaração desde o seu nascimento.” N ã o
obstante, não se pode negar a legitimidade da DUDH como autoridade moral, tendo
como primórdio a universalização da proteção aos direitos humanos. Ademais, em seu
artigo XXVI destaca o direito à instrução visando o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o respeito aos direitos humanos, através da tolerância, da alteridade
e da busca pela cultura de paz4. Outro marco da educação em direitos humanos foi a
Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), assegurando que os Estados garantam que a educação esteja voltada para reforçar, disseminar e formar cidadãos atuantes
na defesa dos direitos humanos, promovendo a tolerância e a paz social.
3 Com relação à positivação dos direitos humanos, leciona Sorto (2008, p.10): “Por outro lado, afirmam-se os direitos humanos quando eles são positivados em instrumentos aceitos universalmente como
vinculantes pelos Estados, quando essa codificação é acompanhada dos devidos mecanismos de conscientização, fiscalização e garantia; quando se estabelecem políticas preventivas visando à remoção das
causas que motivam violações.”
4 No tocante à importância da educação em direitos humanos, assegura: “Na superação dessa problemática certamente a Educação e o desenvolvimento têm papel de grande importância. A referência não
e a qualquer tipo de educação, mas à Educação que forma cidadãos comprometidos com a comunidade
política à qual pertencem e igualmente comprometidos com os valores comuns da Humanidade.” (SORTO,
2008, p.13)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 302
Educar para a cidadania implica em perpassar valores morais, políticos, éticos,
estéticos e intelectuais da comunidade, imprescindíveis ao convívio humano. O valor da
cidadania é exercido na escola, quando há a participação ativa dos alunos, dos profissionais da educação, da família e da comunidade na gestão escolar. Pode-se conceituar
o termo cidadania como o direito a ter direitos com suas respectivas obrigações, atrelada aos valores, costumes e regras da comunidade. Por essa razão, a educação encontra-se vinculada à cidadania, pois possibilita disseminar as formas de conhecimento,
a cultura, os valores, os direitos, os deveres e o papel das instituições necessárias à
manutenção da ordem social. De acordo com Sorto (2009, p. 42) “A cidadania refere-se,
por sua parte, ao exercício de determinados direitos e deveres, dentro e fora do espaço
estatal. Por isso, esta se ocupa da práxis política, da participação do cidadão na vida
pública.” Dessa forma, como o espaço público é compartilhado em comum, precisa-se
da educação para formar os cidadãos na atuação conjunta e na participação das deliberações coletivas, construindo a identidade pública da comunidade.
Os valores da educação em direitos humanos inserem-se na defesa e promoção
dos direitos da pessoa humana, visando negar a violação marcada pela discriminação,
pelo preconceito e pela e intolerância no ambiente escolar. Todavia, o desafio maior é
na luta pelo direito a ter direitos, pois as políticas públicas educacionais são negligenciadas pelo poder público estatal, comprometendo a qualidade do ensino público e gratuito para todos. Destaca-se que a teoria dos direitos sociais em Marshall e Bottomore
(2007) elucida que a classe social determina os direitos sociais, pois cada categoria cria
os seus próprios direitos e o seu ideal de justiça. Para tanto, não existe cidadania sem
educação, haja vista que esta aproxima os desiguais e concede-lhes igualdade de oportunidade. Nesse sentido, a educação é a pré-condição para o exercício da cidadania,
tendo como instrumento jurídico a Constituição do país, visando concretizar os direitos
e garantias fundamentais, como o direito à educação de qualidade, o acesso à saúde
pública, a moradia, o lazer, a profissionalização, entre outros. A educação em direitos
humanos é voltada para os valores, componentes intrínsecos da pessoa humana, pois
afirma Cortina (2005, p.272) que “Por isso, urge educar nesse tipo de valores, seja pela
‘educação formal’, isto é, na escola, seja por intermédio da família, da rua ou dos meios
de comunicação. Mas como a tarefa, embora atraente, é ao mesmo tempo um tanto
complexa [...]” Para que a educação em direitos humanos possa
perpassar os valores da cidadania necessita que o educador ensine os valores da comunidade, integrando o conhecimento de mundo à tradição do povo, haja vista que a
finalidade da cidadania é construir a identidade individual e coletiva.
3.
A condição humana da educação
A educação possui a função primordial de preparar o sujeito para ação no mundo,
contribuindo para o desenvolvimento da personalidade e a convivência comunitária.
Nesse sentido, afirma Arendt (1983) que o mundo é o espaço construído pelo trabalho
e constituído pela ação e o discurso, por isso, a condição humana da educação deverá
priorizar a formação para o trabalho, o agir no mundo e o conhecimento científico e cultural. Frisa-se que a criança entra no mundo através da categoria natalidade, contudo
não está integrada ao espaço pública, portanto a educação é o mecanismo de integração do sujeito com o mundo, permitindo obter competências e habilidades para a vida
individual e coletiva. Assim, a educação é um projeto comunitário e político, fazendo
com que as novas gerações conheçam a tradição, a autoridade e os conhecimentos adquiridos ao longo do processo civilizatório. A função da educação é introduzir os novos
sujeitos em um mundo que precisa ser preservado, de modo que as crianças assumam
a responsabilidade pelo mundo, familiarizando-se com os saberes e as práticas políticas. Por isso, a escola precisa preparar os sujeitos para os desafios da vida individual
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 303
(trabalho, empreendedorismo, convívio familiar etc.), mas o esforço educacional não
pode apenas ocupar-se dos interesses individuais imediatos, mas também dos valores
essenciais à existência em comunidade.
A educação que, por um lado, cuida do que é velho e de sua preservação, por
outro lado, deve cuidar do novo, que vem ao mundo, e da singularidade que lhe
é inerente. A singularidade, de certo modo, é o contraponto ao mundo comum.
Precisamos proteger o novo contra o velho, porque a singularidade é muito frágil
em relação ao peso do mundo. (ARENDT, 2005, p. 290)
Inicialmente, a criança precisa da proteção diante do mundo, proveniente da relação familiar, imprescindível ao desenvolvimento da sua singularidade. Já na escola,
o aluno irá consolidar as relações interpessoais e a sua personalidade vai se revelar ao
mundo “Isso significa que a singularidade não teria nenhum valor se não convivêssemos
com outros - no âmbito protegido da educação e, depois, no espaço público.” (ARENDT,
2005, p.288) Destaca-se que a pluralidade é formada pela ação e o discurso, permitindo
que os sujeitos insiram-se no mundo através dos atos, gestos e da fala, relacionando-se
uns com os outros. Com isso, quando o agente é revelado no espaço público, passará
por outro nascimento: a pluralidade. Dessa forma, o binômio singularidade-pluralidade
coexiste no espaço público, pois não é possível ao homem conhecer a sua singularidade
por meio da introspecção5, necessitando da convivência com os outros, haja vista que o
sujeito não domina a sua individualidade, todavia esta é perceptível na sua relação com
o mundo. Explica Arendt (1983, p.192) que “na ação e no discurso, os homens mostram
quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares”, nesse contexto,
a singularidade é constitutiva da ação no mundo. Para tanto, a educação é o espaço
público que permite desenvolver a singularidade e a pluralidade (pressupostos da vida
política), pois permite perpassar a herança cultural e intelectual da comunidade, auxiliando a criança na formação do seu papel ativo no mundo. Por isso, o educador dará
ênfase aos aspectos descritivos do conhecimento (detalhando como são as coisas do
mundo), porém no plano prescritivo (determinar como serão as coisas do mundo) é de
incumbência das gerações futuras, pois estas transformarão o mundo.
Da análise da crise da educação, percebe-se a crítica com relação à educação
progressista no sistema educacional norte-americano, cujos preceitos visavam desconstruir a ação pedagógica voltada aos padrões tradicionais e conservadores da sociedade.
Contudo, na sociedade de massa não se pode desvincular os padrões tradicionais na
formação da criança, caso contrário ocorrerá a falta na participação do espaço público.
No seu ensaio sobre educação, a ênfase maior recai no papel da tradição e
da autoridade, já que a crise na educação está relacionada à ruptura e perda destas. Contudo, sustentamos que existe uma relação essencial entre
os seus conceitos de educação e liberdade, sem a qual não é possível compreender o que para ela significa educar. O sinal mais claro dessa relação
é que ambos os conceitos se sustentam num mesmo alicerce: a natalidade
(ALMEIDA, 2008, p.1)
5 O conceito de introspecção para Arendt (1983) diz respeito à perda do interesse comum, de modo que
o indivíduo se centra em seu mundo interior.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 304
O avanço da educação progressista6 norte-americana acentuou a crise da educação na América, propondo a substituição da aprendizagem teórica pelo saber-fazer,
habilidade imprescindível à sociedade moderna e ao processo produtivo; desconsiderando o conhecimento científico e filosófico, em detrimento do saber imediatista Para
Dewey (1980) fazia-se necessária a reformulação didática na educação infantil, pois a
criança não é o adulto em miniatura. Assim, o papel da escola é simplificar o mundo nas
operações mentais do aluno, para que possa resolver os problemas mais complexos no
seu cotidiano. Para tanto, critica o resgate ao passado comparando-o com a “galharia
seca”, por isso, pregava que a escola não poderia ocupar-se apenas com a transmissão
da tradição e do conservadorismo por meio dos conteúdos programáticos, mas também
deveria propiciar o empirismo diante das situações práticas. Ao passo que Arendt (2005)
destaca a importância do papel da autoridade do adulto com relação à criança, orientando-lhe e dando as diretrizes para a vida social. Destacando a abordagem do ensino
consciente, o qual valoriza as habilidades e competências do aluno, tendo em vista que
o programa curricular deve estar associado às necessidades da comunidade. As pessoas
sempre estarão dominadas pelo papel da autoridade, pois a criança ao se libertar da
autoridade dos pais e dos professores, posteriormente deverão obedecer à autoridade
política. Por isso, instruir a criança sobre o mundo não significa negar infância, mas
constitui ensiná-la sobre a arte de viver no mundo político. Em razão disso, a educação
encontra-se inserida na dimensão da dignidade da pessoa humana, haja vista que “a
suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância,
tudo o que ela possa fazer ou produzir é elemento indispensável da dignidade humana.”
(ARENDT, 1983, p.223). É por meio da educação que o sujeito age no mundo, conhece a sua identidade e relaciona-se com outras pessoas. Ressalta-se que o objetivo da
educação libertadora é a conscientização, fazendo com que o sujeito possa lutar pela
humanização das relações sociais. Dessa forma, o processo educativo leva o sujeito à
tomada de consciência do seu tempo e espaço, formando a cidadania democrática. Por
isso, o direito à educação é o instrumento para o exercício da cidadania, pois as políticas
públicas educacionais precisam viabilizar o acesso e à permanência na escola, nesse
sentido afirma Freire (1967, p.106):
O que teríamos de fazer, uma sociedade em transição como a nossa, inserida no
processo de democratização fundamental, com o povo em grande parte emergindo,
era tentar uma educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável
organização reflexiva de seu pensamento. Educação que lhe pusesse à disposição
meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua
realidade, por uma dominantemente crítica. Isto significava então colaborar com
ele, o povo, para que assumisse posições cada vez mais identificadas com o clima
dinâmico da fase de transição. Posições integradas com as exigências da democratização fundamental, por isso mesmo, combatendo a inexperiência democrática.
Para que a criança assuma o compromisso com a política, precisa conhecer o
mundo através do processo educativo. Dessa forma, a nova geração não pode receber
comandos impostos para determinar o futuro, transformando as crianças em meros
instrumentos dos objetivos políticos, pois a educação não é a técnica para prever os
encaminhamentos das gerações futuras, tão somente serve como mecanismo de socialização e adaptação ao mundo político
6 O filósofo John Dewey (1859-1952) representou o cenário educacional americano, contribuindo com
a teoria da educação progressista, a qual defendia a educação pela ação e não pela intelectualidade e
memorização. Assim, o processo de ensino-aprendizagem é construído pela vivência e pelo saber-fazer no
meio social.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 305
Assim sendo, a educação coexiste com os direitos de cidadania, não sendo possível
exercê-los no espaço público sem o conhecimento, os valores, os costumes e a cultura
de determinada sociedade. Conclui-se que aprender e ensinar são pressupostos da condição humana da pluralidade no meio escolar, logo, com a ausência desses agrava-se a
crise da educação.
4.
A crise da educação em Hanna Arendt e seus reflexos na conteporaneidade
É pertinente a menção de Arent (2005) ao afirmar que o mundo moderno
está em plena crise nos diversos aspectos da vida humana, compreendendo a crise da
educação como problema político, assim, menciona a periculosidade social da crise
educacional: “Na verdade, não é necessária grande imaginação para se avaliarem os
perigos decorrentes de uma baixa constante dos padrões elementares ao longo de todo
o sistema escolar.” (ARENDT, 2005, p. 274)
Dessa feita, a crise da educação também se refere à crise da autoridade e da
tradição. “Por vários momentos, em A crise na educação, Arendt se referirá à crise de
autoridade. Para ela, a responsabilidade pelo mundo assume, na educação, a forma de
autoridade. Esta, por sua vez, é recusada pelo adulto, que recusa igualmente a responsabilidade pelo mundo.” (ANDRADE, 2008, p.37)
Embora tenham ocorrido ações por parte das autoridades para democratizar a escolarização na América Latina, o problema continuava a agravar-se em face das experiências políticas do século XX, em que havia a eclosão dos movimentos revolucionários
imanente ao período entre guerras, bem como a violação aos direitos humanos. Diante do cenário pós-guerra, emergia
a prosperidade econômica na Europa e nos Estados Unidos, contudo, não havia espaço
para a educação, pois “toma-se difícil dedicar-se se na educação toda a atenção que ela
merece.” (ARENDT, 2005, p. 274). Nesse sentido, não se pode considerar a educação,
sem a vinculação aos aspectos sociopolíticos, pois não se trata de um fenômeno isolado,
mas inter-relacional.
Por isso, a crise na educação ultrapassa as questões pedagógicas e de ensino-aprendizagem, como a evasão, o insucesso escolar e o analfabetismo, ambos não são
problemas específicos da esfera educacional, pelo contrário há diversos fatores propulsores, como a desigualdade social, a ausência de políticas públicas assistenciais, entre
outros, todavia criam-se discursos simbólicos para ocultar as verdadeiras problemáticas.
Nesse sentido, Arendt (2005) insiste na questão do exercício do pensamento, haja
vista que diante da crise pode-se exercer a reflexão, porque “Uma crise só se torna desastrosa quando lhe pretendemos responder com ideias feitas, quer dizer, com preconceitos.” (ARENDT, 2005, p. 275). Com isso, a atividade de pensar reconduz o sujeito à
vida ativa, pois onde quer que esteja levará sua liberdade política, vinculada ao pensamento.
Salienta-se que na América Latina, precipuamente no Brasil, país de diversidade
cultural, em razão da presença de diversos grupos étnicos no processo de formação do
povo brasileiro. Todavia, esses povos foram excluídos da esfera política, tornando-se
escravos ou trabalhadores explorados, formando a grande massa de marginalizados.
Ressalta-se que toda crise possui características universais, contudo também há
peculiaridades locais, por isso, não se pode afirmar que a crise da educação no Brasil é
a mesma em outras localidades. Percebe-se que a educação na América Latina tomou
contornos políticos devido à assimilação e a domesticação do povo subjugado, herança
histórica do processo de colonização. É interessante perceber que Arendt (2005) tratan-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 306
do da exploração colonial, ilustra a questão do ensino da língua inglesa, que embora
não seja a língua materna dos povos latino-americanos, deve ser ensinada nas escolas,
com o intuito de expandir o imperialismo dos Estados Unidos.
Com o processo de globalização, as problemáticas locais intensificaram-se universalmente, haja vista que as potências imperialistas criaram a ordem social vinculada à
ideia de modelo perfeito, pregando a eliminação da pobreza, da exploração e da miséria.
Para tanto, é complexo ver o indivíduo inquietar-se com questões alheias ao seu meio
social, assim, a intencionalidade da globalização acentua a crise educacional. Fazendo
uma relação da educação com a política afirma Arendt (2005, p.276): “Como não é possível educar adultos, a palavra «educação» tem uma ressonância perversa em políticahá uma pretensão de educação quando, afinal, o propósito real é a coerção sem uso da
força.” Por isso, só é possível mudar a ordem política por meio da educação, para que
não se faça uso da força e da violência.
Tratando da América Latina, a autora destaca o papel dos interesses políticos na
escola, pois servia para americanizar as crianças e iniciar o processo de assimilação da
cultura norte-americana, abandonando o costume e as tradições locais. Em razão disso, os países da América Latina não construíram o sistema educacional independente
devido à influência das teorias educacionais européias e norte-americanas.
Porquanto, o questionamento sobre o panorama educacional pode ser do específico ao geral como afirma Arendt (2005, p. 278) que “De qualquer forma, a resposta
à questão de saber porque razão o Joãozinho não sabe ler ou à questão mais geral de
saber porque é que os níveis escolares da escola americana média permanecem tanto
aquém dos níveis médios atuais de todos os países da Europa.” É interessante observar
que na América Latina aceitou-se as teorias progressistas, contudo e houve dificuldades
na aplicação destas concepções na sociedade de massa. A crise da educação é proveniente da ineficácia das políticas públicas educacionais, tendo em vista que não garante
oportunidades para todos. Outra questão é a crise da autoridade dos adultos, fazendo
com que as crianças percam o sentido do respeito e dos valores sociais. Por isso, a relação professor-aluno deve pautar-se na autoridade do professor e não no autoritarismo.
Porque o professor não tem necessidade de conhecer a sua própria disciplina,
acontece frequentemente que ele sabe pouco mais do que os seus alunos. O que
daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios
meios, como ao professor é retirada a fonte mais legítima da sua autoridade enquanto professor. Pense-se o que se pensar, o professor é ainda aquele que sabe
mais e que é mais competente. Em consequência, o professor não autoritário,
aquele que, contando com a autoridade que a sua competência lhe poderia conferir, quereria abster-se de todo o autoritarismo, deixa de poder existir. (ARENDT,
2005, p.280)
Frisa-se que a crítica de Arendt (2005) centra-se na mecanização do ensino, através da teoria do tecnicismo educacional, substituindo o saber pelo fazer. Assim, não é
necessário que o professor tenha domínio dos conteúdos da disciplina, mas que saiba
ensinar, a saber-fazer, transformando a escola em uma instituição profissionalizante.
A pedagogia tecnicista surgiu nos Estados Unidos na década 70, inspirando-se nas
teorias behavioristas da aprendizagem (estímulo-resposta) e na abordagem sistêmica do
ensino, visando adequar o ensino às exigências do processo de industrialização e da era
tecnológica. Dessa forma, a prática educativa centrava-se nas atividades mecanizadas
e pré-determinadas pelos manuais, não permitindo o pensamento crítico e a reflexão.
No Brasil na década de 60, o tecnicismo educacional foi adotado no sistema de ensino
favorecendo a ideologia do período ditatorial, o qual não permitia a educação conscien-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 307
tizadora e emancipatória. Com isso, privilegiou-se a tecnologia, através dos manuais didáticos e das disciplinas técnicas, em detrimento do papel professor como facilitador do
processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, a educação foi utilizada na manutenção dos interesses do sistema capitalista e do regime militar, possibilitando a formação
para o mercado de trabalho, surgindo assim à necessidade de mão-de-obra qualificada
para compor os postos de emprego (PILETTI, 2004). Deste modo, a função da escola
restringiu-se na adaptação do ensino às condições do mercado econômico. Quando a
escola insere o mundo do trabalho no currículo escolar desenvolvendo o ensino mecanizado, como ensinar a costurar, a dirigir e a montar, entre outras ações mecânicas. O
tecnicismo educacional relaciona o mundo do trabalho com o lúdico, negando a infância
e juventude dos alunos. Com relação ao ensino que favoreça o desenvolvimento sociopolítico da criança, leciona Arendt (2005, p.285):
Aquilo que, precisamente, deveria preparar a criança para o mundo dos
adultos, o hábito adquirido pouco a pouco de trabalhar em vez de jogar,
é suprimido em favor da autonomia do mundo da infância. [...] Também
aqui, sob pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos para ser artificialmente mantida no seu, tanto
quanto este pode ser designado um mundo.
No contexto da América Latina, a autora ressalta o currículo escolar e a e a formação dos professores deram ênfase ao mundo do trabalho e aos interesses do processo
industrial. Por isso, a crise da educação reflete a tensão mais ampla da sociedade moderna. “Assim, a criança, objeto da educação, apresenta-se ao educador sob um duplo
aspecto: ela é nova num mundo que lhe é estranho, e ela está em devir.” (ARENDT,
2005, p.184). Referindo-se à formação política da criança, afirma Almeida (2011, p.4):
As crianças que educamos, no entanto, ainda não assumem responsabilidade política e ainda não são totalmente responsáveis pelos seus atos. Antes de assumirem qualquer compromisso público, elas precisam conhecer
este mundo que compartilham com os outros. Assim, o “remédio” contra
a imprevisibilidade pouco ajuda nesse caso, já que ainda não podemos
cobrar delas promessas que envolvem uma responsabilidade pelo mundo.
Isso não significa desobrigar-nos perante elas e deixar que tudo se resolva
por si, mas nos desafia a apresentar o mundo aos novos de tal modo que
mais adiante se sintam impelidos a cuidar dele.
Precisa-se repensar o papel da educação no processo civilizatório, pois as crianças e jovens precisam preparar-se para os desafios do mundo moderno. “O «século da
criança», como lhe podemos chamar, pretendia emancipar a criança e libertá-la dos padrões de vida retirados do mundo dos adultos.” (ARENDT, 2005, p. 281). Nesse sentido,
a liberdade é imprescindível à formação da personalidade, relacionada ao bem-estar da
criança, pois é na escola que a criança faz a sua primeira entrada no mundo civilizado,
qual seja no espaço público.
Dessa forma, a educação como função política deve ser coerente com as convicções éticas e morais da sociedade, contudo a problemática centra-se no domínio da política na vida pública dos cidadãos, utilizando-se da educação para limitar a liberdade
das pessoas. Assim, a crise da educação reflete a conjuntura do espaço público, em
razão do desinteresse pela tradição e a autoridade.
5.
Considerações finais
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 308
Diante do exposto, conclui-se que Arendt (2005) ao correlacionar a natalidade com
a educação, retirou-lhe o caráter biológico para introduzir esta categoria no contexto da
liberdade, pois ocorre o nascimento do sujeito no espaço público. Por isso, o papel da
educação é conservar a tradição e possibilitar a inserção da criança no mundo. Porquanto, neste trabalho observou-se nas categorias teóricas de Arendt (1983;
2005) e nos demais autores analisados, que tratam da temática educação, cidadania e
direitos humanos, demonstrando a criticidade em face da educação utilitarista voltada
tão somente para os interesses da ordem socioeconômica, formando a criança para o
espaço privado, entretanto, desconsiderando a participação no espaço público.
A crise da educação na modernidade é perceptível na perda da autoridade e na
coação para legitimar o poder, criando o ciclo de violência simbólica. Na perspectiva de
Arent (2005) quando a autoridade dos pais, professores e demais agentes públicos é respeitada, não limita a liberdade do sujeito, pelo contrário preserva a tradição, os costumes, os valores e a convivência harmônica entre todos.
Outro ponto
em destaque é considerar a natalidade como essência da educação, tendo em vista que
as crianças inserem-se no mundo já construído, por isso, precisam conhecê-lo por meio
da ação e do discurso. Dessa feita, percebe-se que Arendt (2005) preconiza a inter-relação entre a educação e o espaço público, criticando o método tecnicista da educação, o
qual se centra na profissionalização do aluno, desconsiderando o pensamento crítico e
a liberdade de aprender do discente.
Ademais, a significância do
mundo é formada a partir da consciência do sujeito com relação à pluralidade humana
e a sua atuação no espaço público. Assim, a ação e o discurso na educação permitem ao
aluno vislumbrar o ensino-aprendizagem, para além dos interesses do mercado econômico.
Percebe-se que Arendt (2005) destaca o contexto
de crise da educação na década de 60, precipuamente a realidade norte-americana e da
América Latina, ressaltando a necessidade da formação das crianças frente aos desafios
do mundo moderno, dando ênfase aos valores da tradição e da liberdade. Ressalta-se,
da mesma forma, o impacto negativo do ensino tradicional, impondo o autoritarismo e
o abuso de poder, fomentando a mecanização do ensino-aprendizagem.
Assim, a crise da educação insere-se na desumanização das relações humanas,
pois os interesses socioeconômicos utilizaram o tecnicismo educacional para retirar o
caráter político e reflexivo da prática pedagógica, negligenciando a formação cidadã dos
alunos para assumirem as responsabilidades no espaço público.
Nesse
sentido, a atuação profissional do docente é primordial na compreensão das coisas do
mundo e no incentivo à participação política das pessoas, todavia o ensino tradicional
descuida da função social da educação: preparar o aluno para os desafios da vida moderna. Assim, as futuras gerações precisam aprender as competências e habilidades
para atuarem no espaço coletivo, mediante a ação e o discurso.
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Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 310
ASSENTADOS DO PRONERA E DIREITO À EDUCAÇÃO
SUPERIOR: ESTUDO ANALÍTICO DOS PARECERES
JURÍDICOS DA PROCURADORIA DO INCRA
Joseane Batista Azevedo Barros1
Maria Creusa de Araújo Borges2
1.
Introdução
Entende-se que o direito à educação é imprescindível à formação da participação
cidadã e importante para o fortalecimento das instituições democráticas. Nesse sentido,
a concretização deste direito fundamental é palco de lutas e disputas, haja vista que
os grupos minoritários, excluídos historicamente deste processo educacional, vislumbram a ampliação das políticas públicas educacionais. Sabe-se que o processo educativo encontra-se vinculado aos movimentos sociais extrapolando a perspectiva de sujeito
singular, focando sob o prisma do sujeito coletivo, sendo problematizado a partir da
categoria emancipação. Assim, o processo educativo é formatado a partir da coletividade
educativa, associando às práticas sociais à realidade educativa, incorporando a autonomia do sujeito e a sua autogestão. Ao pensar na justiça social para os assentados,
necessita pensar também na equidade da justiça do conhecimento, pois a escola e a
universidade são as instituições estatais que entram no assentamento, proporcionando
um diálogo com o universo científico e a práxis do educando. Ressalta-se que a efetivação dos direitos sociais, como o direito à educação para os povos do campo, depende da
responsabilidade compartilhada dos movimentos sociais do campo, das universidades,
do Estado e da parceria com a sociedade civil. A análise do direito à educação superior
para os trabalhadores do campo toma como corpus empírico os pareceres jurídicos
elaborados pela Procuradoria do INCRA na execução do curso de História na UFPB.
Utiliza-se, como referência teórico-metodológica a abordagem proposta por Santos denominada de Sociologia das Ausências e das Emergências (2004, 2010), assim Freire
(1982, 1987). Assim, compreende-se que, nessa seara, a questão do acesso à educação
superior torna-se problemática, verificando-se tensões dentro do campo e relações conflituosas e desiguais de poder. Nesse sentido, são necessárias políticas afirmativas que
visam concretizar o direito social à educação superior dos povos do campo à luz de uma
hermenêutica constitucional de promoção e proteção dos direitos fundamentais.
Trata-se, nesse cenário, de uma política pública estatal de ação afirmativa, a qual
precisa ser concretizada, por intermédio do acesso e permanência desses grupos vulneráveis nas universidades públicas, as quais resistem à oferta de cursos para a afirmação
das políticas de educação do campo. Destaca-se que, no panorama das políticas públi1 Mestranda da linha Filosofia e Teoria dos Direitos Humanos, Teoria Crítica do Direito, Democracia,
Cultura e Educação em DDHH pelo PPGCJ/UFPB. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Direitos Humanos.
2 Doutora em Sociologia, Mestre em Ciências Jurídicas e Mestre em Educação. Professora do Centro
de Ciências Jurídicas e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas e em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Direitos
Humanos (GEPEDH/UFPB/CNPq). Editora Dirigente da Revista Prima Facie International Law. E-mail:
[email protected]
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 311
cas educacionais para os movimentos do campo, o Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (PRONERA), instituído pelo Decreto nº 7.352/2010, operacionaliza a
educação nas áreas de reforma agrária, visando dar suporte educacional no meio rural,
permitindo o desenvolvimento sociocultural, político e econômico.
Com essa política, o Estado brasileiro assume o compromisso de promoção da
educação para todos, adequada às necessidades dos povos do campo. Porquanto, a
concretização do direito social à educação superior, por meio da política pública educacional do PRONERA, necessita além da operacionalização do acesso às universidades
públicas dos sujeitos do campo, mas também da permanência desses grupos nos cursos, com fundamento na adequação pedagógica e metodológica, articulando à práxis da
atividade social dos movimentos sociais do campo ao conhecimento científico. Em razão disso, é imperiosa a formação científica dos povos do campo para que
possam compreender as formas de violência simbólica, indo além do conformismo propagado pelas instituições estatais, as quais visam manter a inércia popular. No contexto da educação do campo, precipuamente na formação acadêmica dos
assentados da reforma agrária, o Decreto nº 7.352/2010 instituiu o Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), como política pública educacional. Todavia, mesmo com as diretrizes do referido texto legal, ainda há entraves burocráticos na
execução dos cursos do PRONERA, como foi o caso do Curso de História turma 2014.2
na Universidade Federal da Paraíba. Assim, o curso que deveria ter iniciado no mês de
setembro de 2013 foi prorrogado para 17 de novembro de 2014, dando início em razão
da resistência do grupo de alunos e docentes, como uma postura de luta pela emancipação. Ressalta-se que o curso de História não diferencia o currículo do curso regular, demonstrado que não há violação dos princípios constitucionais da isonomia e da
legalidade, porquanto, o diferencial do convênio do PRONERA é a forma de acesso e a
perspectiva do tempo campo-escola.
Nesse cenário, o diferencial foi o papel dos atores sociais, pois o direito está normatizado, contudo
ainda há entraves na fase da execução. Assim, a sociedade civil precisa se apoderar, reinventando a ideia
de democracia, pois as minorias não usufruem dos direitos sociais. Porquanto, a ideia de ensino superior democrático para índios, quilombolas e camponeses permite que o conhecimento
acadêmico estabeleça reflexões e indagações diante das injustiças e desigualdades sociais no âmbito educacional, pois há tensões entre os interesses estatais e os movimentos sociais do campo. Em razão disso, precisa-se pensar na universidade no contexto
da relação cosmopolita, uma relação horizontal do conhecimento científico e dos demais
saberes.
2.
Das sociologias das ausências e das emergências na luta pelo direito à
educação superior para os povos do campo
A proposta das categorias da sociologia das ausências e da sociologia das emergências propostas por Santos (2010) visa reinventar a emancipação social, através do
projeto de investigação que cria alternativas possíveis diante da globalização neoliberal,
por meio dos movimentos sociais na luta contra a desigualdade. Assim, o objetivo é
verificar os conflitos mais intensos entre globalização hegemônica e a contra-hegemônica nos países do Sul. As alternativas giram em torno das seguintes áreas temáticas:
democracia participativa; os sistemas de produção alternativa e economia solidária; o
multiculturalismo; direitos coletivos; cidadania; biodiversidade; alternativas em face do
direito de propriedade intelectual e pluralismo jurídico. Dessa feita, a sociologia das
ausências e das emergências visa identificar os outros discursos sobre o mundo e não
apenas a narrativa hegemônica da produção científica.Propõe-se a criação de uma comunidade científica internacional, isenta da influencia das concepções hegemônicas,
fazendo uma interação entre a cultura, o conhecimento não científico e o conhecimento
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 312
científico, haja vista que não se pode desprezar a experiência social das diversas sociedades, desperdiçando a experiência desses povos, dessa feita, esta é a bandeira de luta
dos movimentos sociais, qual seja: buscar a visibilidade dos grupos excluídos.Entende-se que a compreensão do mundo exorbita a visão ocidental, haja vista que contrai
o presente e expande a perspectiva do futuro. Ressalta-se que a proposta não é criar
uma nova ciência, mas sim um modelo diferente de racionalidade, precipuamente uma
alternativa à razão indolente3, propondo assim, a razão cosmopolita que se utiliza dos
seguintes procedimentos meta-sociológicos: a sociologia das ausências; a sociologia das
emergências e o trabalho de tradução.
Ademais, a racionalidade cosmopolita pretende expandir o presente, através da
sociologia das ausências e contrair o futuro, por meio da sociologia das ausências,
diversificando as experiências sociais que não podem ser explicados, sem utilizar-se
de uma teoria geral. Nesse sentido, Santos (2010)
sugere o processo de tradução
como procedimento que cria a integibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis, valorizando a identidade das experiências sociais, pois na razão indolente os
outros saberes estão foram do debate, pois há o conflito entre as ciências sociais e a
popularização das ciências.Faz-se necessário desafiar a razão indolente, por meio de
mudanças na estruturação do conhecimento. Assim, se insere o grande paradoxo: a
extensão do conhecimento e o atrofiamento da experiência, haja vista que a razão metonímia4 propiciou a transformação dos artefatos intelectuais do sistema capitalista.Nesse
cenário, impera a pobreza da experiência em função da arrogância científica, por isso,
tem-se como alternativa a crítica da razão metonímica recuperando a experiência desperdiçada. Logo, para ampliar as experiências e diversificar o presente necessita-se de
outra razão, coexistindo com outras totalidades, rompendo com as dicotomias, que camufla as identidades.Sobre a crítica da razão metonímica, afirma Santos (2010, p.101):
A crítica da razão metonímica é, pois, uma condição necessária para a
experiência desperdiçada. O que está em causa é a ampliação do mundo
através da ampliação e diversificação do presente. Só através de um novo
espaço-tempo será possível identificar e valorizar a riqueza inesgotável do
mundo e do presente. Simplesmente, esse novo espaço-tempo pressupõe
uma outra razão.
Da mesma feita, Santos (2010) elenca as cinco lógicas da não-existência5, a saber:
a) monocultura do saber e do rigor do saber (torna a ciência moderna como verdade
com cânones exclusivos da produção do conhecimento e da cultura); b) monocultu3 Santos (2010) critica a indolência da razão, na medida em que o conhecimento ocidental e moderno padroniza as formas de pensar, desconsiderando as experiências e vivencias das sociedades, assim
propõe por meio do pensamento utópico, a construção de uma visão pós-moderna e emancipatória da
ciência. Além disso, a razão indolente transforma os interesses hegemônicos em interesses verdadeiros.
Ademais, a indolência da razão possui quatro formas da razão indolente, do conhecimento hegemônico
filosófico e científico, a saber: a) a razão impotente (é uma razão inerte, pois defende que não pode fazer
nada diante das necessidades sociais, que são exteriores à razão, a exemplo do determinismo e do realismo); b) razão arrogante ( não pretende ser exercida, haja vista que se considera incondicionalmente
livre. É o caso da teoria do livre arbítrio e do construtivismo); c) razão metonímica ( se considera como a
única forma de racionalidade, assim as outras formas de racionalidade são desconsideradas, a exemplo
da teoria reducionista e o dualismo); d) razão proléptica ( não se aplica a pensa no futuro, pois acredita
que conhece tudo sobre ele, a exemplo do evolucionismo e do progresso).
4 A razão metonímica é uma razão seletiva que se centra na ideia de totalidade, pois reflete a compreensão ocidental do mundo.
5 A não-existência materializa-se pela perspectiva natural da inferioridade. Conforme Santos (2010,
p.103): “De acordo com esta lógica, a não-existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável
porque natural. Quem é inferior, porque é insuperavelmente inferior, não pode ser uma alternativa cre-
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 313
ra do tempo linear (concebe que a história tem o sentido único e conhecido, como a
ideia de progresso, modernidade e globalização), assim, nega a existência do atrasado
relacionando-o com o avançado; c) lógica da classificação social ( é a monocultura da
naturalização das diferenças e das hierarquias); d) lógica da escala dominante ( nega a
existência de outras escalas, pois na modernidade ocidental a escala é a universal e global)6; e) lógica produtivista (a monocultura é proveniente da produtividade capitalista,
logo, a não-existência é produzida pela improdutividade). Assim, as formas sociais do
não-existente é a ignorância, a residual, o inferior, o local e o improdutivo. Essas categorias estão inseridas no contexto da oferta a educação superior para os assentados da
reforma agrária, haja vista que as formas sociais dos camponeses foram excluídas da
realidade da razão metonímica. Porquanto, a educação superior para os camponeses insere-se no contexto da
produção das ausências, pois houve a contração do presente, desperdiçando a experiência. Com isso, a sociologia das ausências é uma alternativa epistemológica, identificando essas experiências subtraídas e ausentes para que possam aparecer nas relações
de produção.Tratando das ausências dos camponeses, destaca Freire (1982, p.33):
Os camponeses desenvolvem sua maneira de pensar e de visualizar o
mundo de acordo com pautas culturais que, obviamente, se encontram
marcadas pela ideologia doa grupos dominantes da sociedade global de
que fazem parte. Sua maneira de pensar, condicionada por atuar ao mesmo tempo em que se condiciona, de há muito e não de hoje, se vem constituindo, cristalizando. E se muitas destas formas de pensar e de atuar
persistem hoje, mesmo em áreas em que os camponeses se experimentam
em conflitos na defesa de seus direitos, com mais razão permanecem naquelas em que não tiveram uma tal experiência. Naquelas em que a reforma agrária simplesmente aconteceu.
Tornar essas experiências presentes significa torná-las como alternativas às experiências hegemônicas, ampliando o mundo e dilatando o presente, aumentando a
compreensão do mundo. Ademais, a sociologia das ausências questiona os motivos
pelos quais a razão metonímica é excludente, assim como visa identificar os modos de
confrontar e superar as totalidades homogêneas e excludentes. Para tanto, a sociologia
das ausências substitui as monoculturas pelas ecologias, a exemplo da ecologia dos saberes que propõe dar credibilidade ao conhecimento não científico, utilizando o conhecimento de forma contra-hegemônica. Destaca-se que a sociologia das ausências segue
o princípio da incompletude de todos os saberes, como condição sine qua non na possibilidade de diálogo e no debate epistemológico das diferentes formas de conhecimento.
As tensões em torno da acessibilidade e permanência no ensino superior para os povos
do campo reside no fato da injustiça social encontrar-se embasada na injustiça cognitiva, pois a sociedade capitalista valoriza tão só o conhecimento científico. Nesse sentido,
a luta centra-se na distribuição socialmente equitativa do conhecimento científico, a
luta por uma justiça cognitiva. Esse confronto entre saberes transformam as práticas
consideradas ignorantes em práticas sábias, pois todo conhecimento possui limitações
internas e externas, com isso, a ecologia dos saberes supera a monocultura do saber
científico, estabelecendo relações concretas entre o conhecimento e os poderes provenientes dele, desafiando as hierarquias naturalizadas pela história. O desafio é romper
com a “cultura dos silêncios”, proveniente do contexto repressor, o qual condiciona a
sujeição do camponês. Dessa feita, quando o sujeito compreender a realidade, tomandível a quem é superior.”
6 Ressalta-se que o universalismo é a escala das realidades globais, excluindo os contextos específicos.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 314
do consciência da sua condição, só assim poderá ocorrer à transformação, mediante a
inserção crítica no processo educativo. Além disso, a “cultura dos silêncios” impõe seus
mitos e falácias para manter a estrutura opressora do latifúndio e dos interesses do
agronegócio.
Daí que, frente a estas, fatalistamente, esta modalidade de consciência
busque suas razões fora das situações mesmas, encontrando-as quase
sempre, no destino ou no castigo divino. A este nível, não é possível, realmente, uma percepção estrutural dos problemas de que resultaria sua
inserção crítica no processo de transformação. Isto só é possível quando,
através de uma permanente mobilização dos camponeses, de sua participação ativa numa prática política, na defesa de seus interesses e na
compreensão de que estes não devem ser antagônicos aos de seus companheiros, trabalhadores urbanos, conseguem superar o estado de Goldman chama de “consciência real” pelo “ máximo de consciência possível”.
(FREIRE, 1982, p.34)
O direito à educação superior para os assentados do PRONERA precisa ser pensada no contexto do assentamento, pois não é apenas uma unidade de produção, mas
também é uma unidade cultural produção ( FREIRE, 1982), por isso, a necessidade da
educação dialógica na formação do sujeito como agente da ação social.
Busca-se, outrossim, a ecologia das temporalidades que rompe com a lógica do
tempo linear , entendendo que a subjetividade e a identidade da pessoa perdura por um
dado momento. De tal modo, na perspectiva da sociologia das ausências há a construção de tempos e temporalidades, libertando as práticas sociais, a exemplo no processo
de devolução da temporalidade do povo camponês.
Os movimentos sociais do campo lutam contra a exclusão e a discriminação fomentada pela globalização neoliberal, assim, o direito à educação superior para os assentados da reforma agrária depende da articulação de forças dos diversos setores sociais para a execução das políticas públicas educacionais.
Com relação à valorização do conhecimento não científico dos povos do campo,
ressalta Freire (1982, p.32):
Desta forma, se esquece de que as técnicas, o saber científico, assim como
o procedimento empírico dos camponeses se encontram condicionados
histórico-culturalmente tanto as técnicas dos especialistas quanto o comportamento empírico dos camponeses. Subestimar a capacidade criadora
e recriadora dos camponeses, desprezar seus conhecimentos, não importa
o nível em que se achem, tentar “enchê-los” com o que os técnicos lhes
parece certo, são expressões, em última análise, da ideologia dominante.
Nisto, se instaura a ecologia dos reconhecimentos7 que segue a lógica da classificação social, tendo como principal crítica a lógica da produção que conduz as ausências, pois desqualifica as práticas dos agentes, suas práticas e saberes. Essa é a luta
dos movimentos sociais do campo, uma luta pelo reconhecimento. Como aduz Santos
(2010, p.111):
7 Destaca-se que a ecologia do reconhecimento expõe como gênese da lógica excludente, a colonização
capitalista, que determinou o que seria diferente e desigual. Assim, a colonização inseriu as relações de
hierarquia nas relações de classe, de cultura, de língua, raças, sexo entre outras. “A colonialidade do
poder capitalista moderno e ocidental consiste em identificar a diferença com desigualdade, ao mesmo
tempo que se arroga o privilégio de determinar quem é igual e quem é diferente.” ( SANTOS, 2010, p.110)
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 315
Na América Latina os movimentos feministas, indígenas e afro-descendentes têm estado frente da luta por uma ecologia dos reconhecimentos. A
ecologia dos reconhecimentos torna-se mais necessária à medida que aumenta a diversidade social e cultural dos sujeitos coletivos que lutam pela
emancipação social, a variedade das formas de opressão e de dominação
contra as quais combatem e a multiplicidade das escolas (local, nacional e
transnacional) das lutas em que se envolvem.
Assim, a ecologia dos saberes busca o reconhecimento recíproco na nova articulação entre o princípio da igualdade e da diferença, seguindo esses preceitos os sujeitos
coletivos lutam contra as formas de opressão e dominação visando à emancipação social, através do reconhecimento da diferença cultural para terem acesso equitativo aos
direitos coletivos e a promoção da cidadania multicultural8.
Porquanto, propõe-se alargar o círculo de reciprocidade e das diferenças, criando
novas exigências e integibilidades recíprocas, surgindo assim, como uma forma de resistência e de luta dos atores coletivos, redefinindo o papel político da luta pela efetivação dos direitos humanos devido à necessidade de tradução.
De acordo com Santos (2010) as principais formas de ausências partem da pluralidade de aspirações universais alternativas de justiça social, pois há a imposição do
universalismo dominante. Da mesma feita, não há como se pensar na globalização sem
a localização, por isso, necessita-se de localizações alternativas, de modo a “des-globalizar”o local. No tocante à sociologia das emergências, a qual visa investigar as alternativas que se enquadram no horizonte das possibilidades concretas, possibilitando a
ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes, dessa feita, nega a perspectiva de
contração do futuro9, pois visa substituir o tempo linear por um futuro com diversas
possibilidades plurais e concretas, chamando atenção para as emergências. Dessa feita,
propõe uma nova semântica das expectativas contextuais, apontando novos caminhos
para emancipação social. Destaca-se que essas correntes incitam ações coletivas de
transformação social, embora estejam inseridas no contexto da globalização hegemônica. Em razão disso, a sociologia das ausências atua no campo das experiências sociais.
Ao passo que a sociologia das emergências opera na esfera das expectativas sociais, ampliando a construção simbólica das novas práticas como possibilidade futura,
investigando a ausência do silenciado e do marginalizado.
No tocante à crise da universidade no século XXI, Santos (2004) elenca as seguintes crises, a saber: a) crise da hegemonia, na qual a função tradicional da universidade
de perpassar os saberes e valores para a formação da elite foi expandida para outros setores, descaracterizando o seu papel; b) crise da legitimidade, que segmentou o sistema
universitário hierarquizando o conhecimento e restringindo o acesso ao ensino superior;
8 Conforme Santos (2010, p.111) a respeito da cidadania multicultural “ Assim, a ideia de uma cidadania multicultural, individual ou coletiva adquire um significado mais precioso como palco privilegiado de
lutas pela articulação entre a exigência do reconhecimento cultural e político e a redistribuição econômica
e social.”
9 A contratação do futuro na visão de Santos (2010) objetiva eliminar a discrepância entre o futuro
social e o futuro individual.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 316
c) crise institucional10, em que se percebe a contradição entre a reivindicação da autonomia universitária e a pressão sobre a instituição para que se enquadre na lógica do
produtivismo acadêmico e da responsabilização social.
Conforme Santos (2004), a universidade é capaz de superar as crises supramencionadas, por meio dos princípio da emancipação e da reforma universitária, assim, os propósitos reformistas tornam-se um desafio institucional. Nesse sentido, leciona Santos (2004, p.15) que “a perda de prioridade na universidade pública nas políticas
públicas do Estado foi, antes de mais, o resultado da perda geral de prioridade das políticas sociais (educação, saúde, previdência) induzida pelo modelo de desenvolvimento
econômico.” Porquanto, compreendendo a universidade como bem público, percebe-se
que o poder público influencia a consolidação ideológica da academia, reduzindo a autonomia universitária e impedindo a democratização do ensino superior. Nessa perspectiva, a educação superior para os assentados do PRONERA possibilita o desenvolvimento das reais necessidades dos povos do campo, dando a visibilidade
as suas práticas sociais, através do empoderamento do saber e do protagonismo social
em face das suas lutas e disputas em torno dos direitos humanos.
3.
Rompendo as cercas da universidade: o direito à educação superior como
campo de disputa
No processo de execução dos cursos do PRONERA na UFPB, teve-se por meio do
processo nº 54320.000869/2012-11 a abertura da terceira turma do Curso de Licenciatura em História para os Movimentos Sociais, com 60 vagas para os educandos dos assentamentos, vinculados ou não aos movimentos sociais do campo executado pelo PRONERA. Utilizando-se como técnica de pesquisa o diário de campo e a análise documental
dos pareceres e documentos condizentes à abertura do referido curso, constatou-se pela
análise do Projeto Político-Pedagógico11, doravante PPP, o instrumento pelo qual ocorre
o direcionamento coletivo da instituição de ensino, de modo que deixa explícito o seu
comprometimento sociopolítico e os interesses na formação política do aluno, pois nenhuma prática educativa é neutra, pelo contrário, há valores e crenças propagados em
sala de aula. Segundo Santos (2004, p.16) a respeito da
problemática que permeia o Projeto Político-Pedagógico“ programa político-pedagógico
de reforma da universidade pública, foram declaradas insuperáveis e utilizadas para
justificar a abertura generalizada do bem universitário à exploração comercial.” Conforme Brocanelli (2013, p.39), o PPP possui intencionalidade pedagógicas, mas também
política, visto que:
Para ser construído é preciso uma ação com intenção; o PPP deve traçar
um rumo para a escola completamente declarado e claro. Sua intenção política está no compromisso com os interesses da maioria e também na sua
responsabilidade com a formação do cidadão para uma sociedade que se
almeja; sua intenção pedagógica encontra-se na capacidade de determinar
as ações e as características que a escola necessita para realizar o que foi
decidido e intencionado.
10 Segundo Santos (2004, p.12) “ A crise institucional era e é, desde há pelo menos dois séculos, o elo
mais fraco da universidade pública porque a autonomia científica e pedagógica da universidade assenta
na dependência financeira do Estado.”
11 O Projeto Político-Pedagógico (PPP) direciona a ação educativa da escola. Conforme a Lei 9.394/1996
estabelece no inciso I do art.12 que “Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as
do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: elaborar e executar sua proposta pedagógica;” Assim,
o PPP delimita a intencionalidade sociopolítica na formação educativa da comunidade escolar.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 317
Através da análise do PPP do curso de História para educadores dos movimentos
sociais do campo vinculados aos assentamentos da Reforma Agrária do INCRA, aprovado pela Resolução nº 17/2004, antes mesmo da promulgação do Decreto nº 7.352
de 2010 (decreto que instituiu o PRONERA), demonstrando a postura vanguardista do
curso de História.
Percebe-se que no currículo do curso de História objetivam-se ações sociopolíticas
direcionadas à formação profissional, conferindo o grau de licenciado em História, com
a carga-horária de 2.805 horas-aula distribuídas, assim como com estágio supervisionado e avaliação de desempenho.
É interessante observar que o curso de História segue as diretrizes da Pedagogia
da Alternância12, conforme elucidado no art.4° da Resolução nº 17/2004, pois adota o
regime acadêmico seriado semestral que ocorre em tempo integral e é desenvolvido pelo
sistema de alternância do tempo escola e tempo comunidade.
A Resolução nº 17/2004 (p.4) destaca a mudança da postura acadêmica que:
Não menos importante, a potencialidade do curso reside na abertura de um
canal comunicativo entre universos sociais distintos, mas complementares,
se se quer encontrar respostas tanto para a situação agrária quanto para
a situação universitária, mediante uma interação de saberes onde cada
parte pode se fortalecer mutuamente.
A proposta demonstra a vinculação da concretização do direito social à educação
na formação dos educadores dos assentamentos rurais, uma iniciativa desafiante para
a universidade, haja vista que precisou propor novas técnicas e metodologias de ensino
significativas para o este público-alvo, assim como a reformulação curricular, as práticas pedagógicas interdisciplinares e transversais.
.
A perspectiva dialógica da educação do campo colida com o ensino tradicional,
pois considera as peculiaridades dos alunos provenientes dos movimentos sociais. Assim, a UFPB permitiu vivenciar tal experiência educacional, comprometida com a formação acadêmica dos movimentos sociais do campo, compreendendo e refletindo sobre
suas ações, a sua luta e a historicidade.
O curso de História para educadores dos movimentos sociais do campo vinculados aos assentamentos da Reforma Agrária do INCRA propiciou a concretização do
direito à educação, como direito constitucional do cidadão, precipuamente na formação
de professores de História para lecionarem nos assentamentos. Da mesma feita, permitiu a integração entre movimentos sociais e a Universidade, promovendo a troca de
experiências entre profissionais da área acadêmica e os camponeses, enriquecendo as
práticas pedagógicas na academia.
Com base no PPP do curso de História, observou-se a estrutura do curso, destacando os seguintes aspectos:
O Curso será ofertado para 60 educadores que possuem certificado de
conclusão do Ensino Médio, oriundos dos movimentos sociais do campo,
vinculados aos assentamentos da Reforma Agrária do INCRA;
12 A pedagogia da alternância possui dimensão contra-hegemônica, pois rompe com o tempo escola
tradicional e oportuniza o processo educativo voltado para a formação cidadã, contemplando a realidade
do aluno. Assim, a alternância relaciona a teoria e a prática, incluindo a organização pedagógica distribuída no campo e na escola.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 318
Proposta Metodológica: repensar, redefinir e revalorizar o papel do professor entendido como o profissional que, no sistema escolar, é o agente
precípuo do processo educativo, na medida em que é o responsável pelo
desenvolvimento do conteúdo específico;
A metodologia empregada no estudo da História deve propiciar, através da
reflexão crítica, a formação da consciência histórica que se constitui como
forma de ver o mundo e de ser no mundo e, assim, aprofundar a vinculação entre história e vida;
Avaliação: O sistema de avaliação do Curso deverá considerar a concepção de avaliação assumida pela Universidade. Nesta perspectiva a análise
do processo proporcionado pela Universidade/Curso/professor e a síntese
pessoal do aluno são componentes fundamentais do processo avaliativo.
Assim, cabe, também, a avaliação da atuação do professor por parte dos
alunos, bem como, a avaliação do Curso como um todo.
No tocante à forma de ingresso no curso, seguiram-se os requisitos básicos de
escolarização para o acesso ao ensino superior. E o a estrutura curricular orientou-se
pelas diretrizes para a formação de professores, com componentes pedagógicos da educação do campo. Ressalta-se que a grade curricular é a mesma do curso regular, não
ferindo o princípio da isonomia.
O curso de História – Licenciatura, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Campus I, desta Universidade, para educadores dos movimentos sociais do campo
vinculados aos Assentamentos da Reforma Agrária do INCRA, no Brasil, ao analisar o
parecer da Controladoria Geral da União (CGU) que orientou a retirada da terminologia
“movimentos sociais do campo”, pois constituía apologia ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, ferindo os princípios constitucionais da legalidade e da isonomia no
acesso à universidade.
Contudo, o Manual de Operações do PRONERA (2011) orienta: “Não pode haver
inserção, nos projetos educacionais, de disciplinas curriculares ou extracurriculares
que visem à formação de técnicos militantes ou à concessão de privilégios indevidos a
movimentos sociais ou entidades afins;” (MDA, p.19). Dessa forma, após diversas reuniões de departamento o conselho de curso, com base no princípio da autonomia da
universidade, deliberou pela manutenção da referida terminologia. Por fim, nesse cenário de disputa ideológica na execução do curso de História para assentados do PRONERA na UFPB, percebe-se a crise do direito à educação superior, por meio das políticas
afirmativas, precipuamente nos casos dos cursos de graduação para os assentados da
reforma agrária.
4.
Considerações finais
Da análise do processo de execução do curso de História para assentados do PRONERA na UFPB, dos pareces e do Projeto Político-Pedagógico, observou-se que o curso
possui justificativas, princípios, filosofia e concepções de justiça social e democratização do ensino superior para os grupos minoritários.
Analisou-se no currículo que a oferta de disciplinas, a estrutura curricular, a proposta do curso não colide com os princípios da legalidade e da isonomia, haja vista que
o PRONERA insere-se no contexto das ações afirmativas e na democratização do ensino
superior na universidade pública.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 319
O curso de História para educadores dos movimentos sociais do campo vinculados
aos Assentamentos da Reforma Agrária do INCRA propõe, ademais, a Educação Popular
voltada para o campo, demonstrando a necessidade do diálogo com os aspectos regionais e locais do público-alvo, diferentemente das concepções elitistas, as quais visam
mercantilizar o ensino público superior.
Destaca-se que a democratização do acesso e permanência no ensino superior
precisa romper com o elitismo acadêmico e a meritocracia tradicional no ingresso nas
universidades públicas. Assim, necessita-se de novas práticas sociais, educativas e políticas para fomentar a ideia de educação permanente e acessível a todos.
Percebeu-se que quanto mais democrático e dialógico for o curso superior, haverá
integração aos programas de expansão universitária e as políticas públicas de acesso
ao ensino superior para os grupos excluídos. Destarte, a democratização do ensino superior visa minimizar as injustiças sociais, permitindo que as pessoas provenientes das
classes populares e dos movimentos sociais possam desenvolver suas intelectualidades
no espaço acadêmico É imprescindível a mudança da gestão pedagógica na estrutura
institucional da universidade, tornando-se o grande desafio no cenário educacional brasileiro. A proposta é romper com a seletividade no acesso ao ensino superior, por isso, o
PRONERA é a política de acesso democrática e igualitária.
Portanto, a universidade democrática é aquela que está aberta para todos os membros da sociedade, não só pelo aspecto da seleção, mas sim no diálogo contínuo com a
comunidade, negando o elitismo acadêmico. Com isso, é primordial a igualdade de oportunidade aos níveis mais elevados de ensino para as classes populares, nisto o PRONERA apresenta-se como alternativa para a expansão para os povos do campo.
Por fim, como os assentados da reforma agrária não tiveram acesso ao ensino
superior, em razão do recrutamento oligárquico das instituições de ensino superior, impedindo que aperfeiçoassem suas competências e habilidades. Através do PRONERA, a
universidade tornou-se porta de entrada para a ampliação do conhecimento científico,
minimizando as injustiças da desigualdade social.
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Reforma Agrária do INCRA, no Brasil. Resolução nº 17/2004, de 07 de junho de 2004.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 321
CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: A DUALIDADE DO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL
Ana Catarina Silva Lemos Paz1
Igor Santiago de Oliveira2
1.
Introdução
A tensão existente entre democracia e constitucionalismo instalou-se com a instituição do controle judicial de constitucionalidade das leis. Ora, embora constitucionalismo e democracia estejam intimamente ligados, uma vez que são interdependentes,
eles se contrapõem, funcionando como limitadores recíprocos. Como colocou Frank
Milcheman (MILCHEMAN, 1999:1), o paradoxo da democracia constitucional pode adquirir várias formas: enquanto que a democracia aparece como autogoverno do povo, ou
seja, a população decidindo os conteúdos fundamentais das normas que organizam e
regulam a comunidade política; o constitucionalismo é o próprio limite desse autogoverno, uma vez que aparece como uma contenção da decisão popular, na medida em que
define como, por quem e de que forma as normas podem ser feitas.
Sobrevive a tensão entre a afirmação da supremacia dos direitos fundamentais
pelo constitucionalismo e a efetividade da democracia sustentada pela soberania popular, quando o fortalecimento do ideal constitucional se converte em freio para o processo
democrático e, por outro lado, quando a expansão do segundo leva a um enfraquecimento do primeiro (NINO, 1997:14).
Esse questionamento se resume a uma simples pergunta: como pode ser justificada a atuação do juiz constitucional no controle da atividade da maioria parlamentar, no
âmbito democrático?
1.1. Noções de Democracia
A democracia não é um termo de fácil definição, como aponta MORO (2005). Dentre
aqueles que se aventuraram em seu estudo, podemos perceber dois posicionamentos
distintos. Uns definem democracia de forma cética e restritiva, como sendo apenas o
meio formal de destituição de um governo sem derramamento de sangue, como preleciona POPPER (1995). Outros, designam ao termo um contexto material, seja fundado
no princípio da isonomia (DWORKIN, 2000), seja limitado pelos direitos fundamentais
(TOURAINE, 1996).
Um entendimento recorrente é o que se refere à própria etimologia da palavra, ou
seja, democracia enquanto “governo do povo”. Nesse contexto, é essencial para a democracia a participação do povo no governo.
1 Aluna da graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco; bolsista da PROCAD no programa “Tutela Multinível de Direitos Fundamentais”.
2 Aluno da graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 322
Ensina Claude Lefort (LEFORT, 1991:29) que a democracia não pode ser reduzida
a um sistema de instituições, pois é antes, selvagem, sempre marcada pelo conflito, pela
indeterminação e pela falta de defesas definitivas, estando sempre às voltas com sua
própria definição.
Na concepção de Sérgio Fernando Moro (MORO, 2005: 113), a democracia direta
tornou-se inviável nos Estados modernos, sendo assim exercida através de representantes, que praticam indiretamente a vontade popular. Desta forma, devido à crise da
representação política gerada pelo ceticismo em aceitar a vontade do representante individual como vontade do povo, torna-se mistificadora.
Segundo Flávia Piovesan (PIOVESAN, 2000:102), a democracia não se vincula apenas ao modo pelo qual o poder político é exercido, envolvendo, fundamentalmente, a
forma pela qual os direitos humanos são implementados. Dessa forma, antes de analisar de que forma a democracia está sendo exercida, é imperativo que se analise a real
efetivação dos seus princípios.
Este é também o entendimento de Robert A. Dahl (1998), segundo o qual a democracia é um princípio a ser perseguido, no qual a participação popular deve ser a mais
ampla possível no regime democrático.
Assim, explica Moro o pensamento de Dahl:
Segundo Dahl, a palavra “democracia” é normalmente utilizada para designar um conjunto de regras ou princípios, uma constituição, que determina como serão tomadas as decisões de uma asssociação política, na
qual todos os membros são tratados como se fossem igualmente qualificados para participar do processo de tomada de decisões. A democracia e
o governo do povo estariam fundados no princípio material de que todos
os membros da associação devem ser considerados como politicamente
iguais (MORO, 2005:113)
Contextualiza Dahl sua afirmação, elencando o que ele defini como instituições
essenciais à democracia moderna:
● oficiais eleitos
● eleições livres, justas e periódicas
● liberdade de expressão
● fontes alternaivas de informação
● liberdade de associação
● cidadania inclusiva
Podemos perceber que a jurisdição constitucional não é um elemento imprescindível ao regime democrático. Mas, como evidenciamos no início, o intuito do presente
estudo é identificar de que forma a jurisdição constitucional pode ser tida como elemento compatível e complementar à democracia; para tanto, expomos no próximo ponto
algumas considerações acerca do tema do constitucionalismo.
1.2. Noções de Constitucionalismo
O constitucionalismo se origina nos Estados Unidos, e implica na preservação de
regras jurídicas fundamentais determinadas, limitadoras do poder do Estado (NINO,
2003, p. 16-17).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 323
Assim, o constitucionalismo pode ser definido, de forma prática, como uma técnica
específica de controle do exercício do poder com fins garantísticos (CANOTILHO, 2003,
p. 51).
A Constituição, por sua vez, expressa não apenas um ser, mas também um dever-ser, devendo ser protegida por processos complexos de modificação (NINO, 2003, p.
16-17). E, por ser norma a constituição, seus princípios devem ser aplicados de maneira
a compreender todas as demais espécies normativas, especialmente através da interpretação que fazem os órgãos públicos legais – em especial o judiciário – e o próprio povo.
O constitucionalismo, portanto, carrega em sua essência a imposição de limites a
um determinado exercício de poder. Com isso, o constitucionalismo vincula não apenas
algumas espécies normativas, mas todas que estejam sob a égide da constituição, pois
o princípio da constitucionalidade, ou soberania da constituição, implica a sujeição de
todo ordenamento jurídico aos ditames constitucionais cuja expressão máxima é a rigidez constitucional.
Assim, evidencia-se um dos desafios da teoria constitucional, qual seja, o de tornar
viável a existência de uma constituição com estabilidade, mas que ao mesmo tempo seja
capaz de garantir e proteger as liberdades e as garantias fundamentais, sem no entanto,
abrir mão de uma limitação de poder mesmo que seja do autogoverno (GARGARELLA,
1996, p. 128).
Partindo do pressuposto de que os estados para fazerem uso dos benefícios do
constitucionalismo, precisam da democracia, para o constitucionalismo democrático, o
espaço da deliberação democrática deve limitar-se pelos valores substantivos plasmados na Constituição. Dessa forma, a deliberação democrática não pode contrariar os
direitos fundamentais garantidos na Constituição (BARBOZA, 2005, p. 16). Em síntese,
como diz Barboza:
O constitucionalismo tem como pedra angular, os direitos fundamentais,
que, por sua vez, representam os valores substantivos escolhidos pela sociedade no momento constituinte – de máxima manifestação da soberania
popular – que garantem o funcionamento da democracia, isto é, quando
os direitos fundamentais impõem limites materiais aos atos de governo,
estão na verdade a proteger o povo como um todo e não apenas maiorias
eventuais. E quem está incumbido de proteger estes valores é o Poder Judiciário, conforme determinação do próprio Poder Constituinte (BARBOZA,
2005, p. 43).
A concepção de Barboza, é portanto, a de afirmar a importância da existência
da democracia, para limitar o constitucionalismo, da mesma forma que este assegura
aquele, por permitir a aplicação das normas constitucionais de direitos fundamentais.
A supremacia constitucional também decorre da experiência americana e é hoje
o postulado no qual se assenta o próprio direito constitucional, e dela se extraem diversos elementos, como a posição de preeminência do poder constituinte sobre o poder
constituído, a rigidez constitucional, o conteúdo material das normas e seu carácter
permanente.
A fim de garantir esta posição de superioridade, a ordem jurídica contempla um
conjunto de mecanismos chamados de jurisdição constitucional, o qual, por vias judiciais, tem o papel de fazer prevalecer os comandos contidos na constituição. Parte significativa da jurisdição constitucional consiste no controle de constitucionalidade, cuja
finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam
incompatíveis com a constituição.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 324
É nesse contexto que se insere a problemática existente entre democracia e
constitucionalismo, uma vez que o controle de constitucionalidade se apresenta como
medida contramajoritária. Seria a decisão de um juiz constitucional acerca da validade
ou não de atos normativos provenientes do próprio legislativo, como expressão maior da
soberania popular.
1.3. Constitucionalismo versus Democracia
Constitucionalismo e democracia foram percebidos como opostos inconciliáveis,
uma vez que o constitucionalismo vincula e restringi a ação do governo atual e futuro
por meio de normas editadas por uma geração pretérita.
Tradicionalmente, se entende que a criação de normas constitucionais dotadas de
supremacia – ou seja, aquelas que não são facilmente modificadas pelo legislador infraconstitucional, necessitando de um rito mais complexo para sua edição – significam
uma restrição à ação do legislador, o qual é representante direto do povo, e portanto,
uma limitação ao poder da maioria atual.
Exerce, portanto, a jurisdição constitucional, mais precisamente o controle de
constitucionalidade pelo judiciário, um papel importante nessa limitação. Ora, ao menos
no Brasil, o Juiz constitucional não é representante eleito pelo povo. Indaga-se: de que
forma pode ser ele legitimado para instituir a inconstitucionalidade de uma lei editada
pelo legislativo?
Esse impasse se deve a atribuição à Constituição de um sentido negativo de limitação, de restrição da vontade do povo, o qual não seria tão soberano. Mas, se o controle
de constitucionalidade diminui a soberania popular, pode ele ser uma instituição democrática?
Segundo Sérgio Fernando Moro (MORO, 2004; 114), a legitimidade da jurisdição
constitucional não depende de sua compatibilidade com a democracia, primeiro porque
a própria constituição brasileira prevê sua existência, e segundo por que algumas das
teorias destinadas à justificação desse mecanismo, configuram-se em bases não democráticas, como no apelo exclusivo aos direitos fundamentais, ou como retromencionado,
no governo limitado.
Entretanto, é importante evidenciar, que, ainda sim são preferíveis os argumentos
que tentem provar o carácter democrático da jurisdição constitucional, como pode ser
percebido por argumentos de diversos autores.
Um argumento recorrente é o de que o acesso ao juiz constitucional é mais fácil do
que ao legislador, uma vez que grupos minoritários ou mesmo cidadãos isolados podem
ter acesso ao controle de constitucionalidade. Entretanto, essa acessibilidade ainda não
reprimi o fato de que a decisão final do processo ainda pertence ao juiz constitucional,
que não foi eleito e não pode ser destituído do seu cargo por força popular.
Uma resposta interessante para o impasse foi formulada por Dworkin e envolve a
própria reformulação do conceito de democracia.
Para o autor referido autor, a democracia é um ideal a ser seguido, é um princípio
segundo o qual não basta que o Estado possua caráter procedimental democrático, não
basta eleições majoritárias. Para que o povo, de fato, se autogoverne, é preciso que sintam que fazem parte de uma determinada comunidade e esse status é atingido quando
é possível o tratamento igualitário entre os membros da comunidade.
A partir das ideias de constitucionalismo e democracia, o papel da igualdade é determinar a mesma dignidade moral para todas as pessoas, e que essas são iguais em
suas capacidades mais elementares. Da mesma forma, todo indivíduo tem igual direito
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 325
de intervir na resolução dos assuntos que afetam a sua comunidade, vale dizer, todos
merecem participar do processo decisório em pé de igualdade (GARGARELLA, 2004, p.
77).
Por um lado, portanto, se presta o seu compromisso com a democracia, atrelando
sentido material ao termo, também é possível manter a ligação com o constitucionalismo, uma vez que são preservados certos direitos fundamentais, responsáveis pela manutenção da vida segundo os ideais comunitários, e ainda preservando a estrutura da
decisão democrática, ou seja, a equivalência de opiniões. Assim, a igualdade resulta no
fundamento último da democracia e do constitucionalismo (DWORKIN, 2002, p. 305369).
2.
A participação popular no Estado Democrático
Fixado o ponto de partida sobre a ideia de democracia, cabe observar de que formas os postulados democráticos moldam a postura de organização e funcionamento
do Estado, promovendo aqueles valores erigidos e para que se chegue a uma conclusão sobre a compatibilidade e viabilidade de uma jurisdição constitucional (controle de
constitucionalidade).
Segundo PASQUINO (2002), participação política é o conjunto de atos ou de atitudes convergentes a influenciar de forma mais ou menos direta nas decisões daqueles
escolhidos para deter o poder no sistema político, com o propósito de manter ou modificar a estrutura e os valores do sistema de interesse majoritário.
No cenário brasileiro, a participação popular ganha assento com o advento da
democracia e a promulgação da Constituição de 1988, desdobrando-se em institutos
constitucionais que declaram a soberania popular para além do sufrágio universal e do
voto direto, secreto e com igual valor a todos, revelando as mais variadas experiências
participativas.
Efetivamente, o povo não só elege seus representantes a fim de uma democracia
estritamente indireta, mas também terá a sua disposição mecanismos de participação
direta, ensejando uma democracia semidireta, onde administrará, legislará e fiscalizará, chegando a atuar junto ao Poder Judiciário em determinadas circunstâncias; deste
modo, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 14, elenca como espécies de participação popular no processo legislativo brasileiro: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Sendo de competência exclusiva do Congresso Nacional a autorização de referendo
e a convocação de plebiscito (CF, art. 49, XV).
O plebiscito e o referendo são verdadeiros instrumentos de consulta
formulada ao povo, para que manifestem sua opinião acerca de matéria de acentuada
relevância, onde, em ambos os casos, a aprovação ou rejeição será por maioria simples.
A sutil diferença entre os dois é que, o referendo consiste na consulta que se faz à opinião popular depois de tomada uma decisão, para que esta seja ou não confirmada,
enquanto o plebiscito resume-se numa consulta prévia à opinião pública, para que,
dependendo do resultado adotem-se as devidas providências legislativas.
Quanto ao instituto da iniciativa popular, este confere a um determinado
número de eleitores o direito de propor um projeto de lei, onde, conforme o art. 61, § 2º
da Constituição Federal, poderá ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional,
distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos
eleitores de cada um deles.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 326
Como mencionado, no âmbito do judiciário, onde surge a discussão sobre
o tema de estudo deste trabalho, também se apontam manifestações de abertura democrática como a figura do Tribunal do Júri, que segundo entendimento de Guilherme
de Souza Nucci, trata-se de um órgão especial do Poder Judiciário, que dialoga com a
sociedade através da participação popular direta nas suas decisões. Tratando-se aqui
de uma instituição com apelo cívico, que demonstra compromisso de cidadania e de
democracia. (NUCCI, 2008, p.45).
O juri é, normalmente, a primeira instituição lembrada quando se fala sobre democracia no âmbito judiciário. Entretanto, o objetivo deste trabalho é abordar acerca de
outros institutos de participação popular do âmbito do Poder Judiciário, cuja manifestação se dá, especificamente, em seara de controle de constitucionalidade.
Como observado por DALLARI (2012), o que se pode concluir, tendo em conta
experiências mais recentes, é que vem sendo ampliada a autoridade dos institutos de
democracia participativa, com intuito intensificar o caráter democrático das decisões
e ações das autoridades públicas. Tal ensinamento incita perfeitamente a discussão à
qual pretendemos chegar. Acontece que em comparação com os outros Poderes, o Judiciário é o único o qual seus integrantes (no caso, os juízes) não foram eleitos através de
um processo democrático e poucas são as oportunidades de participação popular nas
atividades judiciárias.
O debate se torna mais crítico quando se trata, mais especificamente da jurisdição
constitucional, em que uma força contramajoritária deverá apresentar suas justificativas de adequação com os preceitos de um Estado Democrático, criando oportunidade
para o surgimento de institutos de participação popular no controle de constitucionalidade.
3.
Jurisdição constitucional
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitas foram as mudanças
inseridas no contexto do estudo constitucional brasileiro. É importante destacar a posição da jurisdição constitucional como tema relevante para a discussão proposta neste
trabalho, e também as mudanças ocorridas no controle de constitucionalidade que vieram com a EC nº 3 e a inserção das Leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999, o que tornou
possível a inserção de dispositivos de ordem democrática como a maior participação
popular no ordenamento jurídico brasileiro.
A jurisdição constitucional é inaugurada nos Estados Unidos da América em 1803,
com decisão da Suprema Corte norte-americana, sob presidência de John Marshall,
acerca do notável caso Marbury v. Madison.
Apesar de ser este o caso mais famoso e que de fato instituiu um sistema de controle de constitucionalidade das leis, na Inglaterra, em 1610, o Chief of Justice Edward
Coke, no Dr. Bonham’s case, já havia admitido a possibilidade de controle judicial dos
atos do parlamento (MORO, 2004).
Marbury v. Madison foi, portanto, a inauguração do controle de constitucionalidade no constitucionalismo moderno, e deixou algumas consequências importantes, como
o princípio da supremacia da Constituição, a subordinação de todos os poderes estatais
e da competência do judiciário como seu intérprete final, podendo invalidar os atos que
lhe contravenham (BARROSO, 2011: 32).
Luís Roberto Barroso (BARROSO, 2012: 235), define jurisdição constitucional
como a interpretação da constituição por órgãos judiciais. Essa competência é exercida,
no caso do Brasil, por todos os juízes e tribunais, sendo o Supremo Tribunal Federal o
topo máximo do sistema.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 327
Inseridos na jurisdição constitucional encontram-se duas particularidades. A primeira consiste na aplicação direta da constituição às situações nela contempladas. A
segunda refere-se ao uso indireto da constituição, seja no controle de constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público em geral, seja na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a constituição.
Imperioso elencar alguns dos motivos pelos quais levaram a implementação da jurisdição constitucional em muitos países da Europa e América Latina.
Para começar, o reconhecimento da importância de um judiciário forte e independente para uma democracia saudável, foi de suma importância. Ora, entendendo
a separação dos poderes, percebemos que não é interessante que o próprio legislativo
julgue seus atos. Dessa forma, como pode o legislativo, mesmo que eleito segundo requisito majoritário, decidir sobre a constitucionalidade de atos normativos editados por
ele mesmo? Cabe, então, essa função para o judiciário, que por competência originária
de interpretar e aplicar as normas, uma vez que a constituição possui status de norma
constitucional.
Também, há o envolvimento de certa desilusão com a política majoritária, em razão
da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Hoje, no
Brasil é fato notório o descontentamento popular com o sistema político vigente, causa
que pode ser comprovada pelas grandes manifestações ocorridas no ano de 2013. Há
também um terceiro fator, que é a abstenção dos atores políticos na discussão sobre
temas de elevada controvérsia moral, preferindo deixar essas questões a cargo do judiciário, do que desgastar-se na deliberação desses temas, como é o caso da união homoafetiva, da interrupção da gravidez, da demarcação das terras indígenas brasileiras.
Ainda, segundo Luiz Roberto Barroso (BARROSO, 2012), esse fenômeno tomou
proporções ainda maiores no Brasil, devido a constitucionalização abrangente e analítica e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o
acesso do Supremo Tribunal Federal através de ações diretas.
3.1. As mudanças inseridas pela CF88, a lei 9868, a lei 9882
Como modelo jurisdicional de controle de constitucionalidade, aderiu, a Constituição Federal de 1988, ao sistema misto ou híbrido de controle constitucional, como bem
assevera (BARROSO, 2012). Assim, a Carta Magna combina o modelo difuso ou por via
incidental (sistema americano), implantado no início da República, com o modelo concentrado ou por via principal (sistema continental europeu), que surgiu com a EC n.
16/65.
Destaca o referido autor, um conjunto amplo de inovações no texto da Constituição
de 1988, que revelam a tendência brasileira para o alargamento da jurisdição constitucional, as quais cita: a) a ampliação da legitimação ativa para propositura de ação
direta de inconstitucionalidade (art. 103); b) a introdução de mecanismos de controle
da inconstitucionalidade por omissão, como ação direta com esse objeto (art. 103, §
2º) e o mandado de injunção (art. 5º, LXXI); c) a recriação da ação direta de inconstitucionalidade em âmbito estadual, referida como representação de inconstitucionalidade (art. 125, § 2º); d) a previsão de um mecanismo de arguição de descumprimento
de preceito fundamental (art. 102, § 1º); e) a limitação do recurso extraordinário às
questões constitucionais (art. 102, III) (BARROSO, 2012: 87-88).
Posteriormente, há a criação da ação declaratória de constitucionalidade,
produto da EC n. 3, de 18 de março de 1993.
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 328
No dia 10 de novembro de 1999, a Lei n. 9.868 veio a disciplinar o processo
e julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal, tanto da ação direta de inconstitucionalidade como da ação declaratória de constitucionalidade, ao passo que a Lei n.
9.882, de 3 de dezembro do mesmo ano, pretendeu regulamentar o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 2º do
art. 102 da Constituição, que até então, permanecera sem eficácia.
3.2. Inserção do amicus curiae e das audiências públicas no controle de
constitucionalidade
É certo que o final do ano de 1999 foi um divisor de águas para a efetividade do controle de constitucionalidade com a entrada em vigor da Lei 9.868/99 e da
Lei 9.882/99. Além de disporem sobre o processo e julgamento de ações de controle
de constitucionalidade, inovaram, demonstrando preocupação em aproximar jurisdição
constitucional e democracia. Cuidaram, ambas as leis, de preverem institutos específicos de participação popular dentro do processo de controle constitucional exercidos
pelo Supremo Tribunal Federal, quais sejam, o amicus curiae e as audiências públicas.
A Lei 9.868/99, menciona sobre o amicus curiae em seu art. 7º, § 2º, onde
“o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes,
poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.”; já em seu art. 9º, § 1º, prevê que
“em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de
notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar
informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer
sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas
com experiência e autoridade na matéria”.
Já na Lei 9.882/99, seu art. 6º, § 1º, diz que “se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre
a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com
experiência e autoridade na matéria”, ao passo que o § 2º profere que “poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento
dos interessados no processo.
4.
Amicus curiae e audiências públicas como participação democrática no
controle de constitucionalidade
Já foi dito que a jurisdição constitucional foi inaugurada com o célebre caso de
Marbury v. Madison, e que já em sua gênese, trouxe dois problemas fundamentais ao
exercício do juiz constitucional: o primeiro é que ele não foi eleito pelo povo, sendo assim, um sistema contramajoritário, e o segundo é que suas decisões não ficam a par de
nenhum controle democrático.
A partir desse momento, a doutrina norte-americana veio buscando argumentos
capazes de defender a legitimidade democrática da jurisdição constitucional. Dentre
eles, destacam-se: (i) a Constituição é obra do poder constituinte originário e, portanto,
a expressão mais alta da soberania popular, estando acima do poder constituído, podendo subordinar, inclusive, o legislador, e assim, prevalecer sobre as maiorias eventuais; (ii) se a constituição tem status de norma jurídica, cabe ao judiciário interpretá-la
e aplicá-la; (iii) mesmo que o judiciário esteja decidindo questões de ordem política, os
métodos e procedimentos utilizados são de ordem jurídica (GONÇALVES, 2008).
Constituição e Direitos Fundamentais em Perspectiva · 329
Entretanto, esses argumentos não se sustentaram, por ainda se basearem em um
positivismo mecanicista, o qual entende que a interpretação constitucional é uma atividade mecânica, em que o juiz apenas aplica a lei, sem espaço para qualquer interpretação. Sociedades que possuem como ponto centralizador o pluralismo, não podem
admitir que a interpretação da Constituição seja monopolizada apenas pelos tribunais.
Para a resolução desse impasse – quanto a legitimidade do controle de constitucionalidade pelo judiciário – é fundamental que as sociedades busquem meios de
democratização desse instituto, a fim de calcar maior embasamento para a jurisdição
constitucional pelo judiciário.
Não se pode aceitar uma aplicação do direito que não seja comprometida com a
realidade social, muito menos a construção de decisões públicas sem a participação
popular.
É nesse contexto que o direito brasileiro inseriu a possibilidade de exercício de dois
institutos que pluralizam e ampliam a discussão constitucional: o amicus curiae e as
audiências públicas.
O amicus curiae tem origem norte-americana e já podia ser encontrado no ordenamento jurídico brasileiro desde 1976. Entretanto, ainda não exercia função no processo
constitucional, apenas servindo como previsão de intervenção em processos que discutissem questões de direito societário perante a Comissão de Valores Imobiliários. O STF,
por sua vez, em sua jurisprudência, já aceitava peças produzidas por amicus curiae em
ADIs, mesmo antes da edição da Lei 9.868/99.
Como o Advento da supracitada Lei, a inserção do instituto no controle de constitucionalidade brasileiro se deu através do § 2º do art. 7º. Essa previsão excepciona a
regra de que no controle concentrado e abstrato não se admite a intervenção de terceiros de qualquer espécie, uma vez que não existe interesse jurídico subjetivo na causa
que enseje tal intervenção.
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