UMA HISTÓRIA
DAS CIÊNCIAS
HUMANAS
Direcção de Jean-François Dortier
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UMA HISTÓRIA
DAS CIÊNCIAS
HUMANAS
Direcção de Jean-François Dortier
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Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre
– Ministère Français Chargé de la Culture –
Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro
– Ministério Francês da Cultura –
Título Original: Une Histoire des Sciences Humaines
Direcção de Jean-François Dortier
Tradução: Carla Gamboa e Hélder Viçoso
Revisão: Hélder Viçoso
Grafismo: Cristina Leal
Paginação: Vitor Pedro
© Sciences Humaines Éditions, 2005
Todos os direitos reservados para
Edições Texto & Grafia, Lda.
Avenida Óscar Monteiro Torres, n.º 55, 2.º Esq.
1000 -217 Lisboa
Telefone: 21 797 70 66
Fax: 21 797 81 03
E-mail: [email protected]
www.texto-grafia.pt
Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda.
1.ª edição, Janeiro de 2009
ISBN: 978-989-95884-1-7
Depósito Legal n.º 287467/09
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
sem a autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor
será passível de procedimento judicial.
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Nos movimentos e ritmos universais,
a História está sempre presente; o instante que passa é já história no instante
seguinte.
Além de homenagear esta disciplina do
saber como conceito aberto, esta colecção pretende oferecer ao público de língua portuguesa obras de valor indiscutível
para uma formação universalista, que se
integrem nos critérios de uma sólida cultura de base.
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Concepção e redacção: Jean -François Dortier
Com o contributo de: Claudie Bert, Philippe Cabin, Martine Fournier,
Catherine Halpern, Evelyne Jardin, Nicolas Journet, Eric Keslassy,
Alice Kreig-Planque, Michel Lallement, Pascal Lardelier,
Serge Lellouche, Laurent Mucchielli, Charles Pépin,
Jérôme Souty e Sandrine Teixido.
Coordenação: Emmanuelle Garcia
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ÍNDICE
Abertura ......................................................................................................
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PRIMEIRA PARTE
1800-1900 – O tempo dos pioneiros
Um projecto fundador: a Sociedade dos Observadores do Homem ..........
19
A grande história das línguas .......................................................................
25
Adam Smith inventa a Economia Política .....................................................
30
Alexander von Humboldt e o nascimento da Geografia .............................
35
Alexis de Tocqueville e o advento da democracia .......................................
42
Boucher de Perthes e a antiguidade do ser humano ...................................
47
Auguste Comte: da Sociologia à religião da Humanidade ...........................
52
Karl Marx, sábio e profeta ...........................................................................
59
Jules Michelet inventa a História de França .................................................
68
Lewis Henry Morgan: encontro com os Iroqueses ......................................
73
Léon Walras e os economistas neoclássicos ...............................................
80
Origens da Psicologia: uma história encoberta ...........................................
87
James Frazer e O Ramo de Ouro ..................................................................
94
SEGUNDA PARTE
1900-1950 – O tempo das fundações
De como Freud inventou a Psicanálise ........................................................ 103
A Sociologia francesa organiza -se ............................................................... 115
Franz Boas, pai da Antropologia Cultural ................................................... 118
Ferdinand de Saussure, «fundador» da Linguística Moderna ...................... 124
Alfred Binet: estudos sobre a inteligência e o pensamento ......................... 129
Os sociólogos alemães face ao mundo moderno ........................................ 136
7
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UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
A «ciência» da forma toma corpo na Alemanha ......................................... 139
Escola de Chicago: cidade, comunidades e marginalidade ........................... 143
Edmund Husserl e a fenomenologia ............................................................ 146
Em busca da «mentalidade primitiva» ......................................................... 154
O Círculo de Viena e o novo espírito científico ........................................... 158
Educação Nova: liberdade, criatividade, autonomia ................................... 161
A Escola de Praga ou o nascimento da Linguística Estrutural ...................... 164
1929 – Nascimento da revista Annales ........................................................ 167
Os intelectuais judeus no exílio ................................................................... 169
John Maynard Keynes revoluciona o pensamento económico .................... 172
Culturalismo: a personalidade é forjada pela cultura .................................. 176
Nascimento da Etologia – do animal ao ser humano .................................. 180
Existencialismo – da filosofia ao modo de vida ........................................... 183
Da Cibernética à Inteligência Artificial ......................................................... 186
Antropologia – o apogeu funcionalista ........................................................ 190
TERCEIRA PARTE
Após 1950 – O tempo dos investigadores
Os intelectuais e o marxismo ...................................................................... 197
Linguística: a revolução generativa .............................................................. 201
Cultura de massas: seus mitos, suas imagens .............................................. 204
A vaga estruturalista .................................................................................... 207
O impulso do interaccionismo – de Palo Alto à etnometodologia .............. 211
Os filósofos face à ciência ............................................................................ 214
Michel Foucault: poder, saber, loucura ........................................................ 218
Contracultura: a revolta dos seventies ......................................................... 222
A explosão da Nova História ...................................................................... 226
Rumo à revolução cognitiva ........................................................................ 230
De Lucy aos nossos dias... à descoberta das nossas origens ....................... 233
O retorno do actor ..................................................................................... 236
Economia, a vaga liberal .............................................................................. 240
Pierre Bourdieu, o anti -herdeiro ................................................................. 244
O tempo da comunicação ............................................................................ 248
Desordem e indeterminismo: uma nova visão do mundo ........................... 251
8
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ÍNDICE
Os etnólogos chegam à cidade ....................................................................
O laço social em crise? .................................................................................
O despertar da Filosofia ..............................................................................
Pós-modernidade: uma ideia finissecular? ...................................................
As Ciências Sociais no tempo das redes ......................................................
A inteligência dispersa .................................................................................
256
259
262
266
269
273
Guia de leitura ............................................................................................. 277
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ABERTURA
«A História é a narrativa das coisas dignas
de memória.»
Giambattista Vico tinha sonhado com uma ciência nova: a
scienza nuova.
Estávamos então nos anos 1725-1730. Uma grande revolução
científica tinha começado há já um século. Galileu apontara a sua
luneta para os astros. Bacon lançou as bases da ciência experimental. Newton estava a inventar as leis da gravitação universal,
Harvey tinha descoberto a circulação do sangue. Exploradores
sulcavam mares, descobriam ilhas, progrediam no interior dos
continentes até então inexplorados. Traziam descrições de plantas, animais, paisagens e povos desconhecidos. Das estrelas aos
micróbios, das plantas aos animais, a ciência progredia a passos
largos. Já nada podia escapar ao conhecimento dos humanos. «E
encarregar-nos-emos de explicar o mistério das coisas, como se
fôssemos espiões de Deus» (Shakespeare, Rei Lear).
Havia, contudo, um domínio em que os humanos continuavam
a ser estranhamente ignorantes: o conhecimento de si mesmos. Eis o que espantava Giambattista Vico: «Quem quer que
reflicta a este respeito não pode deixar de ficar estupefacto ao
ver que os filósofos consagraram toda a sua energia ao estudo
do mundo da Natureza […] e descuraram o estudo do mundo
das nações.» Esse «mundo das nações», a que hoje chamaríamos «sociedades humanas» ou «culturas» – eis o que devia ser
o objecto da «scienza nuova».
Será preciso esperar pelo fim do século XVIII para que a «ciência do Homem» se materialize. Será uma das grandes ambições dos filósofos das Luzes que convocarão todos à fundação
daquilo se denominava então «ciência do Homem», «ciência
social», «ciência moral» ou, muito simplesmente, «antropologia». Porém, ainda se tratava apenas de sonhos de filósofos.
No início do século XIX, finalmente, o projecto toma forma. É
o tempo dos pioneiros, que têm por nome Boucher de Perthes,
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UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
Alexander von Humboldt, Jules Michelet, Lewis Morgan e
muitos outros. Alguns, como Auguste Comte, Karl Marx ou
James Frazer, passaram a vida – em bibliotecas – a construir
grandes edifícios teóricos: teoria da sociedade, do capitalismo,
das mitologias da Humanidade inteira. Outros cruzam os
oceanos, partindo ao encontro de povos cujos costumes e instituições querem compreender. Outros ainda – como Boucher
de Perthes ou Edward Tylor – coleccionam, reúnem, classificam e organizam verdadeiros museus pessoais. Cada um à sua
maneira participa na construção de um novo saber. Enquanto
se completa a exploração do Planeta, parece começar a exploração do Homem.
Nessa época, meados do século XIX, as fronteiras disciplinares
ainda não estão bem estabelecidas. O método também ainda
não está bem definido. Por volta dos anos 1860, iniciar-se -á,
aliás, um grande debate a este propósito. Alguns pensam que
é preciso aplicar ao estudo dos humanos o método que tanto
êxito obteve nas Ciências da Natureza: observação, medição,
classificação, experimentação, investigação de leis. Neste espírito, são criados laboratórios de Psicologia. A Economia, que se
quer científica, decalca os modelos da Física. Outros inclinam-se de preferência para um novo método, específico do estudo
dos humanos e baseado na reconstituição dos valores, das
visões do mundo e dos universos mentais, pressupondo que
as acções humanas, sempre mutáveis e singulares, não podem
deixar-se encerrar em leis…
Depois, vem o tempo das verdadeiras fundações. A passagem
do século XIX para o século XX é um período -charneira, no
qual se organiza a Sociologia em França sob a égide de Émile
Durkheim, na Alemanha com Max Weber, vendo a luz do dia
nos Estados Unidos na Universidade de Chicago. No mesmo
momento, Sigmund Freud inventa a Psicanálise, Ferdinand de
Saussure faz entrar a Linguística numa nova era, enquanto
Franz Boas e Marcel Mauss formam as primeiras gerações de
antropólogos profissionais. A cristalização das disciplinas é
acompanhada da criação de revistas e associações profissionais. Cada disciplina estabelece os respectivos princípios e
um método, traçando as suas fronteiras, não sem dissensões
e querelas quanto a limites e legimitidade: já! Aplicada ao
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ABERTURA
conhecimento científico, a palavra disciplina diz bem aquilo que
pretende dizer: normas, poder, proibições.
É após a Segunda Guerra Mundial que as Ciências Humanas
ganham impulso. O seu desenvolvimento é imponente; quantitativo, a princípio. A partir dos anos 50, assiste-se à multiplicação
do ensino universitário e do número de estudantes. Há somente
um punhado de investigadores no início do século XX, contando-se dezenas de milhares no fim do mesmo. Cinco mil revistas,
dezenas de milhares de artigos e livros aparecem no Mundo em
cada ano. Tal crescimento quantitativo está ligado a uma tripla
evolução: especialização, tecnicização, profissionalização.
Especialização. Cada disciplina é subdividida em secções: há
a Sociologia do Trabalho, das Classes Sociais, da Família, do
Estado, etc. A Economia é compartimentada: finanças, desenvolvimento, emprego, etc. Cada ramo evolui separadamente
com a sua linguagem e as suas referências. Assiste -se a uma
certa balcanização e a uma babelização dos conhecimentos.
Tecnicização. Os métodos querem -se mais rigorosos e codificados: análise de dados, estatísticas, abordagem clínica, testes
projectivos, observação participante… O tempo dos investigadores sucedeu ao tempo dos pioneiros e dos fundadores.
Profissionalização, por último. As Ciências Humanas entram
na sociedade, com o desenvolvimento do número de psicólogos e psiquiatras; economistas, demógrafos e geógrafos fornecem dados aos decisores; sociólogos tornam -se especialistas
em organização e política social… Até os historiadores são convocados para o pretório dos tribunais.
Há duas maneiras de contar a história das ciências. A primeira
– mais clássica – faz desfilar obras marcantes, momentos-chave e personagens importantes. As Ciências da Natureza
tinham os seus heróis: Galileu, Newton, Darwin, Pasteur, Einstein. As Ciências Humanas terão o seu panteão: Marx, Freud,
Durkheim, Chomsky, Foucault, Bourdieu… Encontrá-los-emos,
obviamente, ao longo deste livro.
Será uma visão ultrapassada conceder tanto espaço à biografia
dos «grandes autores» e aos momentos fundadores? Acreditou-se nisso durante um certo tempo. Porém, os historiadores
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actuais já não menosprezam o género biográfico. Sabe -se que
a História é edificante, por muito que já não ceda à exaltação
das suas personagens. Um exemplo? Para o conhecimento da
Psicanálise, não é indiferente saber que Freud não inventou o
conceito de Édipo ao observar crianças, mas ao remexer na
sua própria memória.
A História permite revelar a parte pessoal na elaboração de
uma obra. Pierre Bourdieu, tão cioso de rigor científico, sabia
bem aquilo que a sua teoria do habitus devia ao seu percurso
pessoal de jovem oriundo dum meio popular bruscamente
confrontado com uma elite culta.
Os conceitos e as teorias dependem de um passado. Restituir um pensamento no seu espírito fundador é compreender melhor o projecto, o ponto de vista, as ideias-chave e os
programas de investigação respectivos. É também encontrar
a parte humana sob a abstracção dos conceitos ou o aparelho
das demonstrações.
Quer-se social e panorâmica a outra maneira de fazer a história das ciências. Designada «externalista» pelos especialistas,
procura pôr em relevo mais os movimentos de fundo do que
as grandes figuras. Por detrás dos autores, procura as redes;
por detrás das ideias, persegue as instituições; por detrás dos
indivíduos, interessa-se pelas forças sociais. Prefere as correntes subterrâneas às datas e aos momentos fundadores.
A abordagem é fértil, porque as ideias, maiores ou menores,
nascem e desenvolvem -se num meio que, por sua vez, recriam
e reconfiguram. Os conceitos vagueiam de um universo para
outro, como veremos nas páginas seguintes. Em 1860, a evolução está na moda. Cem anos mais tarde, em meados do século
XX, as ideias de «estrutura» ou «sistema» inspiram as Ciências
Humanas. No fim do século XIX, a ideia de inconsciente circula
um pouco por todo o lado. No final do século XX, é o cognitivo que se difunde como uma vaga de fundo.
Em Les Mots et les Choses1, Michel Foucault tinha empreendido
uma «arqueologia das ciências humanas», visando actualizar
as estruturas do conhecimento ocultas. No mesmo momento,
Thomas Kuhn fala de «paradigma científico», Gerald Holton
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ABERTURA
de «themata», outras formas de falar dos modelos de pensamento de que é prisioneira cada época.
Porquê debruçar-se sobre a história das Ciências Humanas? O
olhar retrospectivo vacina-nos primeiro contra a ilusão do presente, o que nos leva a crer que estaríamos livres do peso do
nosso tempo. A História lembra-nos que as Ciências Humanas
são, em primeiro lugar, coisas humanas, o que quisemos muito
sublinhar neste livro.
Para tanto, será preciso admitir que o pensamento é errático e
está totalmente sujeito ao espírito do tempo? Isso seria desconhecer um facto importante: há um século, quando os pioneiros se lançaram à aventura, sabia-se muito pouca coisa sobre
os humanos, nada sobre as nossas origens pré -históricas, nada
sobre o funcionamento da memória, nada sobre as estruturas
de parentesco em diferentes civilizações, nem sobre o nascimento da inteligência infantil…
Porém, num século e meio, a quantidade de dados é imensa,
a tal ponto que ficamos desconcertados pela acumulação de
investigações, teorias e modelos, sendo -nos difícil dar conta de
achados, impasses e falsas pistas.
Esta História das Ciências Humanas visa também ajudar-nos a
medir o caminho percorrido, a colocar balizas, a dar pontos
de referência numa história prolífica, a encontrar até algumas
pistas esquecidas ou eliminadas, a reapropriar-se também de
uma parte do saber e das ideias enunciadas pelas gerações
anteriores.
Pois, como veremos, a história das Ciências Humanas não é
um cemitério de ideias mortas. Algumas continuam a viver
em nós. Numerosos foram os erros e impasses, assim como
foram eliminadas pistas promissoras. Aprendemos muito, mas
esquecemos outro tanto. E nem tudo o que se passou está
ultrapassado. J.-F. D.
Nota
1 Consultar nota 2 da página 285 [N. T.].
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PRIMEIR A PARTE
180 0 -190 0
O TEMPO
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PIONEIROS
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UM PROJECTO FUNDADOR
Sociedade dos Observadores do Homem
Em 19 de Outubro de 1800, duas fragatas (a Geógrafa e a Naturalista),
comandadas pelo capitão Nicolas Baudin, deixam Le Havre rumo à Austrália e à Tasmânia, descobertas alguns anos antes pelos exploradores Abel
Tasman, James Cook e Louis-Antoine, conde de Bougainville. A sua missão
é recolher o máximo de dados sobre a fauna e a flora dessas paragens,
assim como estudar os «povos selvagens» que aí habitam. Georges Cuvier,
célebre naturalista, deu instruções com vista a compreender que espécie
de seres humanos vive nessas terras, numa Nota Instrutiva sobre as Investigações a Fazer relativamente às Diferenças Anatómicas das Diversas Raças
Humanas1. Joseph-Marie de Gérando redigiu à intenção dos exploradores
Considerações sobre os Diversos Métodos a seguir na Observação dos Povos
Selvagens2, verdadeiro manual de Etnografia, o primeiro do género3.
Gérando sublinha primeiro que o estudo dos «selvagens» oferece o
interesse de observar os humanos num estádio original da civilização.
Junto deles como que remontamos às primeiras épocas da História, e
«podemos estabelecer experiências seguras sobre a origem e a geração
das ideias, a formação e os progressos da linguagem», pensa Gérando,
que acrescenta: «O viajante filósofo que navega para as extremidades
da Terra atravessa, de facto, a sequência das eras, viaja no passado; cada
passo que dá é um século que transpõe. As ilhas desconhecidas a que
chega são para ele o berço da sociedade humana.»
O autor preconiza um método original, muito avançado para a
época, sugerindo que os exploradores aprendam as línguas indígenas,
sem as quais não se pode compreender o sentido das suas tradições (da
sua «cultura», dir-se -á bem mais tarde). São formuladas instruções precisas. Primeiro será necessário recolher as «ideias simples», os nomes
que os indígenas utilizam para designar plantas, animais e partes do
corpo. Passar-se -á depois às «ideias complexas» que dizem respeito à
aldeia, à floresta, à guerra. Por fim, interessar-se -ão por ideias abstractas: «Deveremos interrogá -los acerca de ideias morais como o desejo, a
esperança, o temor e a morte.» Também será preciso recolher informações sobre a vida social, as técnicas, o parentesco, o pudor, a educação
das crianças…
É o programa inteiro da futura Antropologia que Gérando está a conceber, reconhecendo que se trata de «um trabalho imenso». Contudo, o
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UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
contributo para a ciência será gigantesco. Os exploradores que se aprestam a «lançar-se para fora do mundo civilizado» estão, portanto, investidos de uma grande missão. A sua viagem inscreve -se num vasto programa
de estudo definido alguns meses antes por um grupo de cientistas e ideólogos agrupados na Sociedade dos Observadores do Homem.
Ideologia, nova ciência das ideias. Por «ideólogos» entende -se
então os defensores da ideologia, uma filosofia cujo principal teórico é
Antoine -Louis-Claude Destutt de Tracy (1754 -1836), membro do Institut
de France. Oriundo de uma velha família escocesa, é um dos intelectuais
ligados à Revolução que começaram nas armas a respectiva carreira antes
de se consagrarem a assuntos políticos e a estudos eruditos.
A ideologia é definida por Destutt de Tracy como a «ciência das
ideias». Genealogia do conhecimento, visa descrever como as ideias nascem, se desenvolvem e se combinam na mente humana, mas pretende
ser também um guia para dirigir rigorosamente o pensamento. Tal teoria
é muito influenciada pelo filósofo Condillac (1795 -1780), que, em Essai
sur l'origine des connaissances humaines8 (1749), defendera a tese «sensualista»: as ideias nascem dos sentidos, e pensar é, antes de mais, sentir,
escutar, tocar. Nas origens do pensamento humano, não há razão, como
defende Descartes, mas percepção. Para Destutt de Tracy, todas as ideias
provêm não só dos sentidos externos (visão, tacto, audição), mas também dos «sentidos internos» (desejo, vontade). As ideias não são mais
do que a transformação de sensações em símbolos da linguagem. Do
sentido ao signo, das ideias simples às ideias complexas, do concreto ao
abstracto, das necessidades básicas às concepções morais, o espírito produz assim uma grande quantidade de pensamentos que vão propagar-se
pelas nossas mentes.
Ciência da formação das ideias, a ideologia deve, segundo Destutt de
Tracy, ter como efeito um método e uma pedagogia. Trata-se de aprender a separar e a combinar rigorosamente as ideias entre si. Tal trabalho
exige uma aprendizagem particular, em que a análise das ideias (ou seja,
a sua decomposição em proposições simples) ocupa um lugar particular.
Em 1795, Destutt de Tracy lê no Instituto a sua Idéologie, esperando fazer
dela o suporte de um manual de instrução para as escolas centrais.
A ideologia tal como Destutt de Tracy a concebe então é ainda apenas
um esboço, porque o autor está bem ciente de que, para construir uma
verdadeira «ciência das ideias», é necessário deixar a especulação para se
dedicar a observações exactas. Substituir a recolha dos factos por ideias
gerais é mesmo um ponto essencial do seu método, razão pela qual Destutt de Tracy e os outros ideólogos desejam que se desenvolvam estudos
comparativos acerca da mente humana em estado incipiente.
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1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS
Quem são os Observadores do Homem?
No fim do século XVII, a Sociedade dos Observadores do Homem
compreende uns sessenta membros: cientistas de primeiro plano
como os naturalistas Georges Cuvier e Bernard de Jussieu, linguistas e filósofos (Joseph-Marie de Gérando, Destutt de Tracy, o
abade Sicard), médicos de renome (Pierre Cabanis, Philippe Pinel,
Moreau de la Sarthe), geógrafos e historiadores (como o conde
de Volney) e exploradores como Bougainville e Nicolas Baudin.
Esses homens conhecem -se bem. Alguns encontraram -se antes
da Revolução no salão de Madame Helvétius, já frequentado
por Condorcet, Condillac, Cabanis, Diderot e Volney, formando
um clube de pensadores, portadores de um ideal filosófico e
educativo idêntico. Trata-se de promover o espírito das Luzes,
prosseguir a obra dos enciclopedistas participando no desenvolvimento das ciências, criando primeiro a mais importante delas,
a «ciência do Homem», que terá por objectivo estudá-lo sob um
prisma tanto «fisiológico» como «moral». Por «moral» entende-se então o conjunto das faculdades relativas ao pensamento, à
vontade e aos costumes, aquilo a que hoje se chama as dimensões psicológicas e culturais.
Para eles, o progresso dos conhecimentos passa também por
uma reforma da educação. Durante a Revolução, os principais
membros desse clube de eruditos empenharam -se na reorganização do ensino.
Entre 1792 e 1799, a sua obra será impressionante. Condorcet
tinha redigido um projecto de Reforma da Instrução Cívica4 que
define os princípios de um ensino popular. É com esse objectivo
que as primeiras escolas normais, destinadas a formar professores primários, vêem a luz do dia em 1795. A criação das escolas
centrais, precursoras dos liceus, é igualmente um ponto a favor
deles.
É o mesmo clube de pensadores que está na origem da Escola
Normal Superior5, em 1794, e da Escola Politécnica, no ano
seguinte. Por último, criaram novas instituições científicas: o
Museu de História Natural6 e o Conservatório Nacional de Artes
e Ofícios (Cnam7).
Para fechar com chave de ouro, o Institut de France é fundado
em 1795. Destinado a promover as actividades científicas, substitui as antigas academias reais. No seio do Instituto, a secção de
«Ciências Morais e Políticas» tornar-se -á o foco daqueles que são
designados daí em diante por ideólogos.
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UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
Louis-François Jauffrey, o secretário, redigiu com esse propósito um
texto programático que resume bem as orientações da Sociedade9. Trata-se de lançar um vasto programa de «antropologia comparada» destinado a observar os humanos sob todos os horizontes: descrever a sua
constituição física, os seus costumes e as suas faculdades intelectuais ou
«morais», como então se diz. Tais estudos comparativos deverão tomar
diversas direcções. Primeiro, o estudo dos «povos antigos», que nos dá
uma retrospectiva sobre os primeiros tempos da Humanidade. É a tarefa
empreendida pelo historiador Volney, membro da Sociedade e autor
de diversos trabalhos sobre os «povos da Antiguidade». O estudo dos
«povos selvagens» é um outro eixo de investigação, motivo pelo qual a
expedição de Baudin foi organizada e revestiu tão grande importância.
Jauffrey sugere também outro tipo de estudos, nomeadamente o de
pessoas surdas-mudas. De facto, admitia-se até então que elas estão no
mesmo estado das pessoas com deficiência intelectual: por não poderem aceder à linguagem, carecem de inteligência. Ora, nos anos 1770, o
abade [Charles-Michel] de l'Epée, fundador da primeira escola para pessoas surdas-mudas, mostrou que era possível educá-las mediante a língua
dos sinais.
O abade Sicard, que lhe sucedeu, aperfeiçoou o seu método. Jauffrey
propõe -se, pois, questionar os seus alunos «sobre a época que precedeu
a instrução deles». Poder-se -á assim conhecer em que estado mental eles
estavam antes de adquirirem a linguagem, e «as suas respostas tornar-se-ão matéria preciosa para uma história filosófica do ser humano».
Jauffrey sugere outrossim um programa totalmente original para a
época: o estudo da origem do pensamento infantil. «Por que razão não
teremos o mesmo prazer em considerar com olhar atento o alvor da
mente que se desenvolve, em manter o diário pormenorizado dos progressos da inteligência de uma criança, em ver nascer as suas faculdades?»
A Sociedade proporá até um prémio destinado a recompensar tais estudos sobre «os primeiros desenvolvimentos das faculdades do ser humano
no berço». Jauffrey evoca ainda a possibilidade de proceder a uma experimentação, no mínimo, espantosa. Seria preciso, diz ele, «observar
cuidadosamente, durante doze ou quinze anos, quatro ou seis crianças,
metade de cada sexo, colocadas desde o nascimento num mesmo recinto,
afastadas de qualquer instituição social e abandonadas – para o desenvolvimento das ideias e da linguagem – só aos instintos da natureza». Poder-se -ia assim distinguir aquilo que, no ser humano, depende da natureza
e da educação. Porém, reconhece Jauffrey, tal experiência seria difícil de
realizar… «Efectivamente, semelhante empresa exigiria o sacrifício de
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1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS
uma vida inteira.» Não a vida das crianças, mas antes a vida do pobre
erudito que deveria consagrar a tal experiência tanto tempo e dinheiro!
Ao fim de quatro anos, a expedição Baudin regressa a França. A viagem foi terrível. Nada poupou os exploradores: tempestades, avarias das
embarcações, escorbuto, motins… Exausto e doente, o capitão Baudin
morreu durante o trajecto de regresso. Apesar de tudo, a expedição
trouxe da Austrália uma rica colheita científica: milhares de plantas, insectos e pequenos animais desconhecidos. Charles-Alexandre Lesueur, desenhador naturalista, delineou mais de 1500 croquis relativos à fauna e à
flora australianas. Pelo contrário, em matéria antropológica, o balanço é
limitado. François Péron, contratado como «naturalista e antropólogo»,
recolheu sobretudo informações sobre a constituição física dos «selvagens» e respectiva aparência (penteado, trajo), mediu -lhes a força, fez
um inventário dos seus utensílios e teceu algumas considerações sobre a
sexualidade deles. Está-se muito longe do programa de investigação do
pensamento e da linguagem estabelecido por Gérando.
De qualquer maneira, no regresso da expedição de Baudin, em 1804,
as actividades da Sociedade vão por mau caminho. Napoleão Bonaparte
tomou o poder em 1799. Até então, os ideólogos tinham feito figura
de pensadores da Revolução. Uns vão opor-se ao imperador, enquanto
outros se aliam ao novo regime. Tais dissensões vão minar a Sociedade,
que se autodissolve em 1805.
Os ideólogos perante Napoleão. Napoleão, por seu turno, quer
votar ao silêncio os ideólogos, cujos projectos não são do seu agrado. Julgando perigosa a instrução do povo, «porque gera ambiciosos», ordena
a dissolução da secção de Ciências Morais e Políticas do Instituto, sede
principal dos ideólogos. «São sonhadores, fraseadores, metafísicos, bons
para atirar ao mar!» Na sua boca, os termos ideologia e ideólogos adquirem conotação pejorativa10. O seu sentido vai mudar então. A ideologia
já não é a «ciência das ideias» concebida por Destutt de Tracy, mas uma
doutrina filosófico -política mais ou menos obscura… A partir de então,
cada qual prosseguirá o seu próprio percurso. Alguns desempenharão um
papel importante na história da respectiva disciplina: Pinel em Psiquiatria,
Cuvier em Paleontologia… Volney é considerado um dos precursores da
Geografia Humana. Destutt de Tracy levará por diante a redacção de Elementos de Ideologia11, e entrará na Academia Francesa. Afecto ao regime
imperial, Gérando tornar-se -á referendário do Conselho de Estado, prosseguindo a reflexão sobre a génese do pensamento humano. Todavia, tais
êxitos individuais não impedirão o desaparecimento da ideologia. Banida
por Napoleão, a doutrina oficial da Revolução será esquecida. Paradoxo:
os ideólogos, que tanto tinham feito pela implantação de instituições
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UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
educativas e científicas, não terão eles próprios feito escola! O estudo da
génese das ideias e do seu impacto sobre a vida humana será suspenso
durante quase um século. Será preciso esperar pelo final do século XIX
para que a Antropologia Cultural, a Psicologia Social, a Epistemologia, a
Sociologia do Conhecimento, etc., retomem à sua maneira o programa
iniciado por Destutt de Tracy e os seus.
Mas isso é outra história. J.-F. D.
Notas
1 Note instructive sur les recherches à faire relativement aux différences anatomiques des
diverses races d'homme, no original [N. T.].
2 Considérations sur les diverses méthodes à suivre dans l'observation des peuples sauvages,
no original [N. T.].
3 Reeditado por Jean Copans e Jean Jamin em Aux origines de l'anthropologie française,
Paris, Éditions Jean -Michel Place, 1994.
4 Marquês de Condorcet, Instrução Pública e Organização do Ensino, tradução de
Eduardo Cruz, Porto, Educação Nacional, 1943 [N. T.].
5 Depois designado «École normale supérieure» (ENS), esse estabelecimento de
ensino parisiense denominou -se primeiro «École normale de l'an III» [N. T.].
6 Muséum d'histoire naturelle [N. T.].
7 Conservatoire national des arts et métiers [N. T.].
8 Ensaio sobre a Origem dos Conhecimentos Humanos, tradução de José Bragança de
Miranda e João Afonso Santos, Lisboa, Via Editora, 1979 [N. T.].
9 «Introduction aux Mémoires de la Société des observateurs de l'homme», in Aux
origines de l'anthropologie française, op. cit.
10 Mais tarde, Marx retomará o termo para designar os filósofos alemães, sendo assim
que ele ganhará a sua significação actual de uma doutrina política e moral assente em
bases pretensamente científicas. Ver Raymond Boudon, L'Idéologie ou l'Origine des
idées reçues, Fayard, 1986, reedição, Seuil, 1992.
11 Élémen[t]s d'idéologie (4 volumes, 1825 -1827), que constam de quatro partes publicadas antes em 3 volumes: I. Idéologie proprement dite; II. Grammaire; III -IV. De la
logique [N. T.].
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A GRANDE HISTÓRIA DAS LÍNGUAS
Cada língua comporta vestígios do seu passado e do seu laço genealógico com outras línguas.
Comparemos os primeiros três numerais franceses (un, deux, trois),
italianos (uno, due, tre), espanhóis (un, dos, tres) e portugueses (um, dois,
três). Não é preciso ser linguista para compreender que existe um laço de
parentesco entre estas quatro línguas. Não é necessário ser historiador
para saber que elas derivam do latim.
Os linguistas sabiam, desde há muito, que as línguas mudam, evoluem,
se transformam e subdividem. Porém, para reconstituir a respectiva
árvore genealógica, examinando a sua estrutura e o seu vocabulário, era
preciso que emergisse uma nova disciplina científica: a Linguística Comparada, que será a grande obra dos linguistas do século XIX.
Do sânscrito ao indo -europeu. Um dos pontos de partida dessa vasta
investigação começa com a descoberta do sânscrito por ocidentais.
O sânscrito foi a língua da Índia Antiga. Em sânscrito clássico foram
escritos os Veda, primeiros grandes textos religiosos do Hinduísmo (que
remontam ao final do segundo milénio antes de Cristo). Todos os textos
importantes da cultura indiana foram igualmente retranscritos em sânscrito: a epopeia do Mahabharata, os textos poéticos, a prosa literária e
filosófica, o Kamasutra… Depois, como sucedeu com o latim ou o grego
antigo, o sânscrito desapareceu sob a forma oral, sobrevivendo só sob a
forma escrita entre letrados.
Foi William Jones (1746 -1794) o primeiro a ter compreendido a relação que o sânscrito mantinha com as outras línguas europeias. Filho de
um ilustre matemático, Jones é um estudante -prodígio, que manifesta
muito prematuramente um talento excepcional para línguas. Já formado
em Cultura Clássica, sobressaindo em Grego e Latim, aproveita as férias
para se aperfeiçoar em francês, italiano, espanhol e português. Mas são
sobretudo as línguas orientais que o apaixonam. Na adolescência, lança-se sozinho no estudo do hebreu e do árabe. Entrando na Universidade
de Oxford para cursar Direito, o jovem Jones passa os tempos livres a
estudar chinês, inicia-se no persa, aperfeiçoa-se em árabe graças a um
amigo sírio, Mirza, que lhe serve de tutor. Em 1764, apenas com 18 anos,
licencia-se em Oxónia! Enceta então uma carreira de preceptor e tradutor. Lança-se numa actividade editorial desenfreada: em 1770, tendo
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UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
traduzido do persa Histoire de Nader Chah, connu sous le nom de Thahmas
Kuli Khan, de Perse [História de Nader Xá, conhecido sob o nome de Thahmas
Kuli Khan, Imperador da Pérsia], publica um Tratado sobre a Poesia Oriental;
dois anos depois, traduções de poemas persas (em verso!). Aos 25 anos,
publica uma Dissertação sobre a Literatura Oriental e, sobretudo, a sua
Gramática da Língua Persa, que será uma referência duradoura. Os anos
seguintes não são menos férteis em publicações e traduções. Com menos
de 30 anos, Jones é já uma autoridade reconhecida e incontestada em
matéria de estudos orientais.
Contudo, tais actividades editoriais não bastam para fazer viver o
rapaz. Paralelamente a elas, tinha encetado uma carreira de jurista imediatamente brilhante. Inscrito na Ordem dos Advogados de Londres em
1774, ei -lo comissário da falência apenas dois anos depois. Em 1778,
publica um notável ensaio de Direito: Essay on the Law of Bailments.
Almeja então um lugar de professor na Universidade de Oxford; não
obstante o seu extraordinário currículo, as suas opiniões liberais não lhe
dão qualquer oportunidade.
Finalmente, a oportunidade da sua vida apresenta-se em 1783. Consegue obter o lugar de magistrado na corte suprema de Calcutá, colónia
britânica então chamada Fort William. É o sonho da sua vida: ir às Índias,
encontrar e ver a civilização oriental que ele só conhecia dos livros.
A bordo do Crocodilo, barco que o leva à Índia em Setembro de 1783,
William Jones redige o seu grande projecto: «Objects of Enquiry during
my Residence in Asia». Entre os seus objectos de estudo, integra as leis
hindus, a geografia e a organização política da Índia, do Tibete e do
Nepal, as matemáticas e as ciências indianas, a poesia, a literatura, e até
a música, o comércio, a agricultura, em suma, toda a civilização indiana!
William Jones não está simplesmente fascinado pelo Oriente: pensa que
essa antiga civilização é o berço da ciência e da cultura.
Chegado à Índia, não tarda a empreender a tarefa. Primeiro objectivo:
o estudo do sânscrito. Bastante depressa, Jones descobre paralelismos
espantosos entre o sânscrito, o grego e o latim, perguntando -se se não
haveria um parentesco entre essas línguas antigas.
Em 1787, perante a Sociedade Asiática de Bengala, uma instituição
erudita que ele próprio fundara três anos antes, aventa pela primeira vez
esta hipótese audaciosa: o sânscrito e as línguas europeias poderiam estar
ligadas entre si por uma história comum. «O sânscrito, por mais antigo
que possa ser, tem uma estrutura espantosa; mais completo do que o
grego, mais rico do que o latim, prevalece, pelo seu distinto requinte,
sobre essas duas línguas, tendo com elas, tanto nas raízes das palavras
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1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS
como nas formas gramaticais, uma afinidade bastante forte para que
possa ser fruto do acaso.»
Quando as ideias se encadeiam. Foi um grande achado. Pela primeira
vez, sugere -se a hipótese de uma família de línguas indo -europeias1.
Pela primeira vez? Não totalmente. Para ser justo, importa assinalar
que, dois séculos antes, o mercador italiano Filippo Sassetti, também fascinado pela cultura indiana, já fizera a comparação entre o sânscrito e o
latim. Igualmente, desde o século XVIII, vários eruditos holandeses notaram que o latim, o grego, o persa e as línguas europeias possuíam muitas palavras próximas. Pensa-se então que isso procede de uma origem
«cítica», comum a essas línguas. Mas os preconceitos religiosos não permitem ir mais longe: não afirma a Bíblia que todas as línguas derivam do
hebreu? Todos esses trabalhos permanecem, pois, isolados, não podendo
desenvolver-se, por falta de um clima propício. Assim ia a história das
descobertas científicas.
No final do século XVIII, a situação altera-se. A expansão colonial
trouxe para a Europa uma quantidade considerável de dados linguísticos
provenientes da América, da Ásia, de África e de ilhas longínquas. Soada a
hora das comparações, William Jones é pontual. Os seus trabalhos fazem
já parte de um movimento emergente, de que ele é simplesmente um dos
actores. Na mesma época, Johann Christoph Adelung, contemporâneo
de Jones, reuniu em Mitrídates uma descrição sumária de sensivelmente
quinhentas línguas do Mundo inteiro, propondo inclusive uma dúbia tradução do Pai -Nosso em cada uma delas…
Nascimento da gramática comparada. Dessa vasta compilação das
línguas só podia nascer a ideia de um método comparativo.
A expressão gramática comparada surge efectivamente pela primeira
vez em 1808, pela pena do escritor Friedrich von Schlegel (1772-1829),
na obra Über die Sprache und Weisheit der Indier2. Mas foi ao alemão Franz
Bopp que coube sistematizar o método e fundar, assim, a gramática linguística comparada. Em 1816, publica Über das Konjugationssystem der
Sanskritsprache in Vergleichung mit jenem der griechischen, lateinischen, persischen und germanischen Sprache3, no qual mostra as estreitas ligações entre
o vocabulário, assim como entre as estruturas gramaticais do sânscrito
e das línguas europeias. Tal estudo será prolongado pelos três volumes
de Vergleichende Grammatik des Sanskrit, Zend, Griechischen, Lateinischen,
Litauischen, Gotischen und Deutschen4, publicados entre 1833 e 1852.
Os estudos filológicos e a gramática comparada vão conhecer, pois,
uma verdadeira explosão em meados do século XIX, nomeadamente
com os trabalhos do linguista dinamarquês Rasmus Rask (1787-1832) e
do filólogo alemão Jakob Grimm (1785 -1863).
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UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
O método comparativo baseia-se numa ideia simples: quando duas
línguas têm alguns vocábulos em comum, tal pode dever-se a um mero
empréstimo. Assim, a presença na língua portuguesa das palavras cheque ou café, que provêm do árabe, em nada indica um parentesco entre
as duas línguas. Para que se estabeleça uma origem comum, é preciso
que existam relações sistemáticas entre os sons ou as estruturas gramaticais. Assim, Rasmus Rask tinha mostrado que o /p/ que se encontra em
palavras latinas como pai e pé (père e pied em francês), pater (em latim)
ou pod (grego), corresponde geralmente a um /f/ germânico em foot
ou father (em inglês). Do mesmo modo, ao /k/ germânico corresponde
sempre um /g/ latino ou grego. Tais correspondências termo a termo
indicavam um deslocamento progressivo na pronúncia que tem decerto
uma origem comum.
O alemão Jakob Grimm – um dos dois folcloristas «irmãos Grimm»
– procurará estabelecer leis sistemáticas de correspondência entre as línguas indo -europeias.
Da génese à estrutura. A linguística histórica e comparada será a
grande ocupação dos linguistas alemães em meados do século XIX. Tal
gramática baseia-se na ideia de evolução que se difunde então na maior
parte das ciências sociais e biológicas. Franz Bopp tinha, aliás, estabelecido explicitamente a analogia entre a evolução das línguas e a evolução
das espécies.
A ideia de evolução integrava o princípio genealógico segundo o qual
as línguas evoluem de forma divergente a partir de origens comuns. A
esse princípio está associada a ideia de lei de organização. Bopp imagina
que, à semelhança dos seres vivos, as línguas são organizadas, tendo, por
isso, uma estrutura interna: «As línguas devem ser consideradas como
corpos naturais construídos com leis.»
No final dos anos 1870, sucedendo à gramática comparada, uma
escola de jovens linguistas denominados «neogramáticos» (Georg Curtius, Johann Kaspar Zeuss, Friedrich Diez, Franc Mikloši , etc.) aprofundará essa ideia. Para eles, a língua já não é simplesmente concebida como
o produto de uma história, mas forma um sistema cuja coerência se baseia
nas suas leis de organização interna.
As palavras estrutura e sistema ainda não estão lá, mas não tardarão
a emergir. Virão nomeadamente na pena de um jovem linguista suíço de
nome Ferdinand de Saussure, que sistematizará a concepção «estruturalista» da língua e impulsionará uma outra orientação a toda a linguística.
J.-F. D.
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1800 -1900. O TEMPO DOS PIONEIROS
Notas
1 Foi o inglês Thomas Young que lançou o termo indo -europeu em 1813, mas foram
sobretudo os alemães Friedrich von Schlegel e Franz Bopp, empregando antes indo-germânico, que desenvolveram a comparação científica entre todas as línguas da
Europa e a língua antiga da Índia.
2 Sobre a Língua e a Sabedoria dos Índios [N. T.].
3 Acerca do Sistema de Conjugação da Língua Sânscrita, Comparado com o das Línguas
Grega, Latina, Persa e Germânica [N. T.].
4 Gramática Comparada do Sânscrito, do Zende, do Grego, do Latim, do Lituano, do Velho
Eslavo, do Gótico e do Alemão [N. T.].
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Uma História das Ciências Humanas