UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARIA DAS GRAÇAS CARVALHO SILVA DE SÁ
CARTOGRAFANDO PROCESSOS INCLUSIVOS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL EM BUSCA DE MOVIMENTOS
INSTITUINTES
VITORIA
2008
1
MARIA DAS GRAÇAS CARVALHO SILVA DE SÁ
CARTOGRAFANDO PROCESSOS INCLUSIVOS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL EM BUSCA DE MOVIMENTOS
INSTITUINTES
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação do Centro de
Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Doutor em
Educação.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Denise Meyrelles
de Jesus.
VITORIA
2008
2
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
S111c
Sá, Maria das Graças Carvalho Silva de, 1966Cartografando processos inclusivos na educação infantil em
busca de movimentos instituintes / Maria das Graças Carvalho
Silva de Sá. – 2008.
215 f. : il.
Orientador: Denise Meyrelles de Jesus.
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação.
1. Inclusão em educação. 2. Educação de crianças. 3. Autismo
em crianças. I. Jesus, Denise Meyrelles de. II. Universidade
Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
3
MARIA DAS GRAÇAS CARVALHO SILVA DE SÁ
CARTOGRAFANDO PROCESSOS INCLUSIVOS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL EM BUSCA DE MOVIMENTOS INSTITUINTES
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação
da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de
Doutor em Educação.
Aprovada em 27 de novembro de 2008.
COMISSÃO EXAMINADORA
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Denise Meyrelles de Jesus
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientadora
________________________________________
Prof. Dr. Hiran Pinel
Universidade Federal do Espírito Santo
_________________________________________
Prof. Dr.ª Sonia Lopes Victor
Universidade Federal do Espírito Santo
________________________________________
Prof. Dr. Claudio Roberto Baptista
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_________________________________
Prof. Dr. Júlio Romero Ferreira
4
A Antonio que conheci na graduação, a Juliana que nasceu no
final da especialização e a Natalia que chegou junto com o
mestrado. A vocês mil perdões pela ausência e,
principalmente, meu agradecimento por compreenderem que
isto era apenas um momento numa caminhada longa na qual
sempre estaremos juntos nos fortalecendo mutuamente.
AMO MUITO VOCÊS!
5
AGRADECIMENTOS
Agradecer é sempre algo muito bom, visto que pressupõe o fato de termos sido
agraciado por alguém, em algum momento. Na atualidade, isso tem se tornado
cada vez mais desafiador, pois nesta roda vida em que vivemos, nem sempre
temos tempo para ajudar aqueles que nos rodeiam.
Permitindo-me brincar com meu nome ao produzir este texto, senti-me
literalmente agraciada e, por esse motivo, peço-lhes licença para deixar
registrado o quanto algumas pessoas me ajudaram neste caminhada.
A vocês que tanto colaboraram para este estudo muito obrigada, em especial:
À minha (des)orientadora querida, Denise Meyrelles de Jesus, meu carinho,
respeito e, principalmente, minha admiração por aceitar o desafio de transitar
em outrosnovos mares, no intuito de me auxiliar nesta caminhada. Muito
obrigada.
Aos professores: Hiran Pinel, pelas contribuições precisas. A Sonia Lopes Victor,
pelo inegável apoio e sensível contribuição. A Claudio Roberto Baptista, pelas
inestimáveis ponderações que me ajudaram a tecer firmemente alguns nós neste
texto e, finalmente, ao professor Júlio Romero Ferreira, pela carinhosa exceção
num momento tão significativo de minha vida.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação-UFES, pela oportunidade de
realizar mais um estudo, agora de Doutoramento.
6
Aos meus colegas do PPGE/UFES, em especial da linha de pesquisa Diversidade e
Práticas Educacionais Inclusivas: Agda, a amiga de todas as horas, Alex,
Andressa, Edson, Eldimar, Inês, Igor, Josi, Lílian, Mariângela, Reginaldo,
Wirlândia, Zinéia por partilharem comigo a busca utópica de um mundo mais
inclusivo.
As minhas irmãs/co-autoras/parceiras/incentivadoras, Ângela Carvalho Silva
Cassol e Maria Luiza Silva Zanotelli, que, apesar de quase me enlouquecerem com
tantos falas/orientações/debates/sugestões acerca da Psicanálise, foram ímpar
na construção deste processo.
Aos gestores, professores e funcionários do Centro Municipal de Educação
Infantil Zenaide Genoveva Marcarini Calvalcanti, em especial, Aline, Jória, Kênia,
Hellen e Luciana por me possibilitar dar visibilidade a tanto coisa boa que é
produzidagestadainstituída nos chão das escolas.
A Gabriel e a João Victor, por me permitirem compartilhar de pequenos/grandes
momentos de suas respectivas vidas: vocês são e, sempre serão, muito especiais
para mim !!!
Aos meus amigos queridos, Alice, Erineusa, Kefren, Sílvia, Iguatemi, Fábio e
Jeanine, companheiros que me fortaleceram nos momentos mais difíceis e não me
deixaram desistir.
A Alina que tanto me auxiliou na escrita “academicamentecorreta” deste texto.
7
RESUMO
Trata de um estudo qualitativo no intuito de conhecer acerca dos processos
educacionais que permeiam uma paisagem escolar infantil em relação aos
movimentos instituintes/instituídos como inclusivos que ali se forjam, em busca
de pistas que dêem visibilidades para se produzir coletivamente dispositivos que
favoreçam os processos inclusivos dos que ali habitam. O fio condutor desta
tessitura foi a busca pela inclusão de dois alunos autistas num Centro Municipal
de Educação Infantil em Vitória, ES. As ferramentas teórico-epistemológicas
utilizadas
fundamentam-se
nas
contribuições
dos
estudos
foucaultianos,
psicanalíticos e nas considerações tecidas pelos estudos nos/dos/com os
cotidianos, com vistas a ver/ ler/ouvir/sentir o mundo, tomando como referência
o debate tecido por Linhares acerca dos processos de escolarização, vendo, no
diálogo entre esses autores, uma interessante estratégia de pensar uma escola
pública comprometida com uma formação que tome o direito à diversidade
humana como uma premissa. Utiliza o método cartográfico, a partir de
entrevistas semi-estruturadas, de observações livres e participantes, de diário
de bordo e de registros fotográficos, objetivando contextualizar e analisar as
relações que permearam a paisagem investigada e seus possíveis engendramentos
com os processos inclusivos de ensino que ali se agenciavam. Outra intenção
deste estudo foi compreender os processos de subjetivação ali instituídos, tendo
como premissa: o lugar ocupado pela educação/educação inclusiva em suas
respectivas concepções de mundo. Busca, também, potencializar dispositivos
pedagógicos inclusivos, considerando os processos de subjetivação que ali se
forjaram, bem como fomentar a formação continuada em contexto, para pensar
coletivamente possibilidades pedagógicas inclusivas considerando os sujeitos
envolvidos na/pela pesquisa. Argumenta sobre a relevância que se apresenta
na/para a constituição da subjetividade humana, em especial para crianças ditas
8
com autismo e/ou psicoses infantis, a escuta e o olhar no sentido da presença e
da aposta, de forma que os envolvidos no/com essas crianças ofereçam-lhes
movimentos que ecoem em suas representações inconscientes no intuito de
promover mudança da condição alienante de objeto para uma unidade denominada
sujeito, já que, ao final desta experiência, percebeu o quanto esses movimentos
disparados no/com/pela paisagem favoreceram um acreditar na possibilidade de
criação como um caminho para a ressignificação de práticas hegemônicas e
excludentes, na medida em que o contexto envolvido toma o trabalho
colaborativo como fio condutor.
Palavras-chave: Inclusão. Movimentos Instituintes. Educação Infantil. Autismo.
Cotidiano.
9
ABSTRACT
This is a qualitative study aiming at understanding the educational processes
that
permeate
the
children
school
environment
in
relation
to
institutive/instituted movements, considered inclusive, made there. The study
searches for clues to allow us to collectively produce mechanisms that favor the
inclusive processes of those living there. The guiding strand of this weave was
the search for the inclusion of two students, who were said to be autistic, in an
public Daycare Center in Vitória, ES. The theoretical-epistemological tools used
were based on the contributions of Foucaultian and psychoanalytical studies and
on the considerations weaved by the studies in/of/with the routines, aiming at
seeing/reading/hearing/feeling the world. The study is supported on the debate
raised by Linhares about the school processes, and it sees, in the dialogue
between these authors, an interesting strategy for thinking a public school
committed to an educational process based on the premise of the human right to
diversity.
It uses cartographic method, from semi-structured interviews, free
and participatory observations, journals, and photographic records, aiming at
contextualizing and analyzing the relations that permeated the investigated
environment and their possible engendering with the inclusive processes that
were taking place. Another aim of this study is to understand the subjectivation
processes instituted therein, on the premise of the place occupied by
education/inclusive education in its respective conceptions of world. It also
intends to potentialize the inclusive pedagogical mechanisms, considering the
subjectivation processes created therein, as well as to foment contextualized
continuous teaching training, in order for us to think collectively about the
inclusive pedagogical possibilities considering the subjects involved in/by the
study. It argues about the relevance presented in/to the constitution of human
subjectivity, especially for children who are said to be autistic or psychotic. It
10
is done in a way that the subjects involved with these children offer them
movements that echo in their unconscious representations in order to promote
changes in the alienating condition of object into a unit called subject. At the
end of this experience, it was noticed how much these movements triggered
by/in this environment favor a belief in the possibility of recreating a way to
resignify the excluding and hegemonic practices, as the involved context uses
collaborative work as a guiding strand.
Key-words: Inclusion. Institutive movements. Children education. Autism.
Routine.
11
RESUMEN
Es un estudio cualitativo con el fin de aprender acerca de los procesos
educativos que constituyen un paisaje de los niños en edad escolar en relación
con los movimientos instituintes / establecido como incluyente forjar allí en
busca de pistas que dan visibilidad a los dispositivos que producen en conjunto el
apoyo que incluye los procesos los que viven allí. La idea central de esta trama es
la búsqueda la inclusión de dos alumnos autistas en una sala del Centro de
Educación Infantil en Vitória, ES. Las herramientas teóricos y epistemológicos
utilizadas
se
basan
en
las
contribuciones
de
Foucaultian
estudios
y
consideraciones de los estudios psicoanalíticos en / de / con la vida cotidiana,
para ver / leer / escuchar / sentir el mundo, tomando como referencia el tejido
para el debate Linhares acerca de los procesos de escolarización, al ver en el
diálogo entre estos autores, una interesante estrategia para pensar en una
escuela pública comprometida con una formación que tenga el derecho a la
diversidad humana como una premisa. Utiliza el método cartográfico, a partir de
entrevistas semi-estructuradas, libre de los comentarios de los participantes y
el cuaderno diario de pesca los registros y fotografías, para contextualizar y
analizar las relaciones que impregna el paisaje investigado y sus posibles cruces
con los procesos de la educación inclusiva hay agencia. Otra intención de este
estudio fue comprender los procesos de subjetivación allí establecido, con la
premisa: el lugar ocupado por la educación y la educación inclusiva en sus
respectivas concepciones del mundo. Buscar también impulsar dispositivos
inclusive la enseñanza, teniendo en cuenta los procesos de subjetivación que se
forjan, y fomentar la educación continua en su contexto, para pensar
colectivamente las oportunidades de educación inclusiva para las sujetos
implicados en el / la búsqueda.Argumentó acerca de la pertinencia se presenta en
/ a la constitución de la subjetividad humana, especialmente para los niños con
12
autismo y / o niños psicóticos, de escuchar y buscar la presencia y la apuesta, a
fin de que quienes implicados en / con estas los niños les ofrecen en sus
movimientos que ecoem inconsciente representaciones con el fin de promover el
cambio en la condición de objeto alienar a una unidad llamada el tema, desde el
final de esta experiencia, entender cómo estos movimientos dispararon en / con
/ favorecido por un paisaje de creencias la posibilidad de la creación como una
forma de restablecer las prácticas hegemónicas y excluyentes en el contexto que
hace que el trabajo de colaboración que participan como un hilo conductor.
Palabras clave: Inclusión. Instituintes movimientos. Educación Infantil. Autismo.
Vida Cotidiana
13
LISTA DE FIGURAS
Foto 1. Miguel em sala no início do ano..........................................................................60
Foto 2. Joana e Miguel ao final do estudo. ..................................................................67
Foto 3. Mateus em meu 1º dia de acompanhamento ...................................................69
Foto 4. Mateus e sua fixação com o som..... ................................................................71
Foto 5. Mateus chegando ao Parque da Vale ...............................................................78
Foto 6. Mateus vendo o freezer de picolés .................................................................78
Foto 7. Mateus em sala de aula......................................................................................105
Foto 8. Imagens de Miguel no pátio fazendo poses..................................................124
Foto 9. Imagens da escrita de Mateus........................................................................133
Foto 10. Crianças em sala à espera da hora de ir para casa....................................157
Foto 11. Cenas iniciais do cotidiano de Mateus...........................................................167
Foto 12. Mateus no refeitório........................................................................................167
Foto 13. Miguel realizando atividades no grupo no refeitório................................173
Foto 14. Miguel pintando com Joana.............................................................................173
14
SUMÁRIO
1
CONTEXTUALIZANDO O MERGULHO.................................................... 15
1.1
AS FERRAMENTAS TEÓRICO-CONCEITUAIS ..................................... 18
1.2
A ESCOLHA DA PAISAGEM ........................................................................ 31
1.2.1
Aprofundando o mergulho, dando foco à paisagem ............................ 32
1.3
INTENÇÕES DESSE MERGULHO............................................................... 41
1.4
DISPOSITIVOS INICIAIS.......................................................................... 43
2
AS PRATICAS PEDAGÓGICAS QUE BRILHAM NO CHÃO DAS
ESCOLAS INSTITUINDO PISTAS POTENCIALIZADORAS DA
INCLUSÃO ....................................................................................................... 49
2.1
OS
ESTUDOS
AJUDANDO
A
DO/COM/SOBRE
DIALOGAR
O
COM
COTIDIANO
OS
NOS
MOVIMENTOS
PEDAGÓGICOS CAPTURADOS.................................................................... 50
2.1.1
Ampliando
o
zoom:
a
percepção
produzida
acerca
dos
movimentos inclusivos capturados............................................................... 54
2.2
AS PRÁTICAS COTIDIANAS ATRAVESSANDO FRONTEIRAS
AO ENCONTRO DE PROCESSOS INCLUSIVOS.................................... 93
3
PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO: A CONSTITUIÇÃO DA
SUBJETIVIDADE HUMANA EM FRENTE AOS PROCESSOS DE
INCLUSÃO EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL................................................................................. 100
3.1
TECENDO FIOS NAS MALHAS DOS PROCESSOS DE INCLUSÃO
EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL: O MERGULHO NA TEORIA PSICANALÍTICA................ 102
15
3.1.1
Miguel e sua tessitura instituída............................................................... 103
3.1.2
As tramas tecidas com/por/para Mateus..............................................
3.2
AUTISMO E PSICOSE INFANTIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
104
ACERCA DESSE FENÔMENO...................................................................... 106
3.3
O EFEITO FUNDANDOR DA PALAVRA/LINGUAGEM NA/PARA A
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO.................................................................. 111
3.2.1.1 A palavra/linguagem ressignificando subjetividades .......................... 120
3.2.1.1.1 Re-direcionando
o
zoom
para
os
movimentos
disparados
com/por/para Mateus ..................................................................................... 127
4
AS POLÍTICAS INCLUSIVAS E SUAS ARMADILHAS
ÀS
PRÁTICAS INCLUSIVAS............................................................................. 136
4.1
FOUCAULT E AS PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO HUMANA............ 138
4.1.1
O movimento de organização das turmas .............................................. 142
4.1.2
O momento das refeições: o que temos para comer hoje? ............. 151
4.1.3
A espera dos pais ao final do dia: a dor e a delícia da
diferença ........................................................................................................... 156
4.2
INFÂNCIA,
PRÁTICAS
EDUCACIONAIS
E
PROCESSOS
INCLUSIVOS ................................................................................................... 162
5
O
LEGADO
QUE
FICOU:
O
DEVIR
ÉTICO
DE
UMA
EXPERIÊNCIA CONSCIENTEMENTE INACABADA .......................... 177
6
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 190
ANEXO A – Relato de experiência............................................................ 203
16
1 CONTEXTUALIZANDO O MERGULHO
Este projeto de tese vislumbrou aprofundar questões que emergiram ao longo da
pesquisa anterior de Mestrado, na qual busquei compreender como alunos
caracterizados como “deficientes mentais” se percebiam no contexto escolar
investigado, no que tange ao seu processo de escolarização. A conclusão a que
cheguei, em decorrência deste estudo, pode ser expressa com as palavras de Silva
(2003 p. 172-173), para quem,
[...] muito mais doloroso que apresentar um diagnóstico patológico sobre
1
as pessoas com necessidades educativas especiais (nee) é perceber a
forma como a sociedade considera essa condição, interagindo com
aqueles/as que não se enquadram nos estereótipos de comportamento
construídos hegemonicamente como ‘positivos’, de forma a condená-los a
uma morte simbólica, excluindo deles/as qualquer possibilidade de
reconhecimento de sua identidade singular.
Ao final desta pesquisa, percebi que, apesar do cansaço e da alegria pela tarefa
cumprida, havia algo que me inquietava em relação ao tema pesquisado, mas,
naquele momento, não sabia muito bem o que se configurava. Afinal, acabava de
defender minha dissertação de Mestrado num contexto particular muito delicado,
visto que, ao longo desse processo naturalmente difícil, como costuma ser para
todos nós, estava também envolvida com o nascimento de minha filha. Logo,
sentimentos como o de culpa por relegar a um segundo plano um ser humano tão
frágil, em um momento de sua vida tão significativo, misturavam-se a uma sensação
inquietante de incompletude.
Esses sentimentos, entrelaçados a um não saber como buscar nem o que buscar,
levaram-me, inclusive, a desistir da primeira oportunidade real que tive de participar
de uma seleção para o Doutorado, por não conseguir vislumbrar por qual caminho
seguir. Sentia-me como o próprio Raul Seixas se definiu na música Ouro de Tolo
(1973), ao assumir-se inquieto e insatisfeito com pequenas conquistas, enquanto
muita coisa ainda urgia por ser feita:
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
1 Necessidades educacionais especiais é uma expressão instituída na Modernidade para referir-se a grupos como “[...] sindrômicos; deficientes, psicopatas,
surdos, cegos, GLS, os pouco inteligentes, entre outros” (VEIGA NETO, 2001, p. 105).
17
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês
[...]Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto: e daí?
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado
Apesar de reconhecer que essas angústias afetam a todos nós – afinal, é isso que
nos movimenta cotidianamente, ou seja, o desejo faltoso de uma completude
impossível (FREUD, 1969) –, sentia-me angustiada, pois acreditava ser preciso
retornar à pesquisa a fim de aprofundar questões que haviam sido tangenciadas na
dissertação,
mas
que,
por
razões
diversas,
não
foram
suficientemente
analisadas/discutidas/compreendidas. Enfim, não consegui dar conta delas naquele
momento!
E foi daí que emergiu, inicialmente, a idéia de promover um mergulho em busca de
suprir algumas lacunas pendentes da pesquisa anterior, pois tinha a percepção de
somente ter contextualizado naquele estudo uma parte do que venha a ser os
desafios que permeiam a inclusão de pessoas com necessidades educacionais
especiais nas paisagens escolares.
Assim, concebia um estudo de Doutorado como uma possibilidade de maior
aprofundamento sobre essa questão, todavia fazendo agora uso de outras
ferramentas2 teórico-fiosóficas que me possibilitassem compreender melhor alguns
movimentos que ali se engendravam, pois, como nos diz Eizirik (2003, p. 3):
O conhecimento se constrói e se situa num campo de possibilidades que
avança à medida que se amplia seu objeto, se alastra e se ramifica,
buscando renovadas e variadas interfaces. Nesse movimento, o
conhecimento se areja, se reorganiza, busca parcerias, cumplicidades,
descobre novos campos, enfrenta seus limites e seus inimigos, que sempre
são da ordem da rigidez, do emperramento, do congelamento.
2 Conceito adotado por Foucault ao se referir ao seu arsenal conceitual, por entender que eles se forjam e se moldam em num
“laboratório da obra” (REVEL, 2005, p.8).
18
Por esse aspecto, apesar de já estar alinhavando uma idéia inicial de projeto, ainda
não havia conseguido eleger os equipamentos necessários que me possibilitassem
aprofundar tais lacunas, principalmente porque, segundo meu ponto de vista, estão
atravessadas também por questões de ordem subjetiva, ousaria dizer até de ordem
inconsciente.3
No entanto, uma viagem à cidade de Porto Alegre, RS, tornou-se significativa para
mim quando, ao participar de um encontro regional acerca de Estudos Culturais4 em
Educação, na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), tive a oportunidade de
aprofundar questões acerca da contribuição de Michael Foucault, no que tange aos
processos de sujeição humana e à atuação das instituições, em especial a escola,
operando como um dispositivo de regulação das ações humana. Para o autor, a
escola se utiliza, cotidianamente, dos mecanismos de controle e/ou de vigilância,
das formas mais sutis e veladas, para engendrar subjetividades preconcebidas,
tendo como base modelos hegemônicos de homem, mundo e sociedade.
Retomando os Estudos Culturais/Foucault, nesse encontro, houve a oportunidade de
perceber o quanto a cultura, aqui concebida como um campo de produções de
significados, se encontra atravessada por múltiplos modos de vida pertencentes a
diferentes grupos sociais e como, nesse jogo, se engendram relações de poder5 que
legitimam supostos saberes6 em detrimento de outros.
Em meu entendimento, esses dispositivos precisam ser analisados em sua
constituição numa perspectiva micromacroesturtural, considerando a forma como a
linguagem e as práticas discursivas operam nas teias das produções culturais de
subjetividades humanas, com vistas a compreendermos os movimentos que
permeiam nossa sociedade, com destaque para as paisagens escolares.
3 Para Freud, o inconsciente se constitui num campo de representação desconhecida estruturado na/pela linguagem onde habitam os impulsos humanos
mais primitivos responsáveis pelas ações incontroláveis (ROUDINESCO, 2000). Já para Rondas (2004), o inconsciente é aquilo que escapa e falha aos
humanos, seres compostos por signos, rompendo, de forma imprevisível, o curso lógico do pensamento e do comportamento humano pela via dos chistes,
atos falhos, lapsos, sonhos, esquecimentos, entre outros.
4 Campo de teorização e investigação que busca questionar a compreensão elitista sobre a cultura pela crítica literária britânica (SILVA, 1999).
5 Para Foucault (1997), o poder é exercido ou praticado nas relações estratégicas entre os indivíduos cuja questão central se refere à conduta do outro, ou
dos outros.
6 Nessa perspectiva teórica, o saber constitui-se num processo pelo qual o sujeito sofre uma modificação durante o trabalho da atividade de conhecimento
(REVEL, 2005).
19
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de
verdade, isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre
sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é
sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da
verdade, o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta
como verdadeiro [...] (FOUCAULT, apud GORE, 1994, p. 10).
A partir de então, a dúvida e a culpa deram lugar a um desejo (FREUD, 1969) de
atualizar alguns pressupostos teórico-filosóficos até então solidificados, levando-me
a buscar, numa outra seleção para o Doutorado, o tão desejado mergulho apontado,
no sentido apriorístico de conhecer acerca dos processos educacionais que
permeiam uma paisagem escolar infantil em relação aos movimentos
instituintes/instituídos como inclusivos7 que ali se forjam, em busca de pistas
que nos dêem visibilidades para produzirmos coletivamente dispositivos que
favoreçam os processos inclusivos dos que ali habitam, no sentido da escuta,
do rigor, da criação e da luta contra o aprisionamento das diferenças que se instalam
em/por nós a priori, uma vez que a “[...] diferença é justamente o que nos arranca de
nós mesmos e nos faz devir outro” (ROLNIK, 1995, p. 255).
1.1 AS FERRAMENTAS TEÓRICO-CONCEITUAIS
[...] muitas vezes um único campo de conhecimento torna-se insuficiente no
trato de determinado fenômeno (KASSAR, 2005, comunicação oral).
Para iniciar o mergulho, escolhi ferramentas pautadas primordialmente nas
contribuições dos estudos foucaultianos, psicanálíticos e das considerações tecidas
pelos estudos nos/dos/com os cotidianos com vistas a ver/ ler/ouvir/sentir o mundo,
tomando como referência o debate tecido por Linhares, cujo respeito à forma como
discutem a categoria do magistério tomei emprestado ao dissertar acerca dos
processos de escolarização, vendo, no diálogo entre esses autores, uma
interessante estratégia de se pensar uma escola pública comprometida com uma
formação humana que tome o direito à diversidade humana como uma premissa, já
que tais ferramentas se encontram atreladas a outro/novos modos de se pensar
7 Nosso entendimento acerca da educação inclusiva se apóia em Eizirik (2003), ao conceituar esse movimento como um processo qualitativo de inserção de
aluno(a)s com necessidades educacionais especiais na rede comum de ensino, em todos os seu níveis.
20
esses espaçoslugares, tecendo fios únicos e, ao mesmo tempo, comuns, em cuja
tecitura8 sempre haverá um fio ao qual se possibilitará tecer um novo bordado.
Reconheço não ser fácil, em nossa sociedade permeada por uma concepção una de
homem e de mundo, aceitar e até mesmo compreender outras possibilidades de
ser/estar, quanto mais de pensar processos educacionais que assegurem, de fato, e
não somente de direito, às pessoas com necessidades especiais o respeito à sua
condição humana singular.
Reporto-me, então, a Alves (2008), quando nos alerta que, para compreendermos a
complexidade9 tecida nos processos de vida em nossa sociedade, é necessário
bebermos de váriasoutras fontes no sentido da ampliação de lentes que nos
auxiliem a captar um maior número de fluxos possíveis.
Para tanto, busquei tecer nós com os estudos nos/dos/com os cotidianos, pela
possibilidade que esse campo nos fornece para dialogar com outrasnovas formas de
pensar os movimentos complexos e contraditórios que pulsam nas/das paisagens
escolares.
Outra relevante contribuição refere-se à preocupação que esse campo nos desperta
para o debate acerca das tendências políticas da educação contemporânea e
brasileira, e o seu intercruzar com as instituições escolares públicas, seus
professores e seus movimentos de institucionalização, principalmente ao destacar a
necessidade de promovermos uma metanálise acerca das práticas políticopedagógicas
engendradas
nessas
paisagens,
entrecruzando-as
com/pelas
experiências produzidas no/pelo/com/apesar do contexto, tendo como pano de fundo
a busca por uma sociedade mais criativa e solidária, como nos dizem Alves e Garcia
(2008, p. 9-10)
Estamos convencidas de que a existência de uma escola de qualidade
para os até agora excluídos, passa pela tomada da palavra pelas
8 Tecitura: De acordo com Piacentini ( LINGUA BRASIL, 2008, ACESSO EM 11 DE OUT DE 2008) essa palavra vem sendo comumente utilizada em
ensaios, dissertações e teses, com uma grafia que gera uma certa polêmica, visto que tessitura com dois s significa: disposição de notas musicais, etc.” em
detrimento do significado empregado que é de: "[...] entrelaçamento de fatos, idéias, etc., ou a maneira de urdir, tramar, engendrar, planejar a execução de
algo".
9 Concebo complexidade, com base em Morin (2004), como uma teia com múltiplas e diversas possibilidades de se conceber um nó e não simplesmente
como o contrário de algo simples e complicado.
21
professoras, historicamente impedidas de dizer a sua própria palavra, pois
sempre apareceu alguém para falar por elas, sempre aparece alguém para
lhes ‘ensinar’ como melhor ensinar, sempre aparece algum ‘iluminado’ para
lhes dizer o que devem fazer, quando a como devem fazer. Muda a
denominação, mas o espírito é sempre o mesmo – tutelar as professoras,
impondo-lhes o que lhes parece (aos que se sentem iluminados)
importante ser ensinado e a melhor forma de fazê-lo. Após o lançamento
badalado de pacotes, que se sucedem no tempo, seguem-se muitos
seminários, palestras, consultorias, livros e artigos publicados, pois, afinal,
é preciso ‘capacitar as professoras’ para o desempenho do papel que lhes
destinam os que no momento detêm o poder. E, também como sempre
aconteceu, após o primeiro momento de euforia se segue o momento da
desilusão – não está dando certo – e tudo continua como dantes. Pudera
não.... pois.
Como pode atuar competentemente quem é desqualificado em seu saber?
Como responder ao ‘chamamento’ quem é aviltado mensalmente por um
salário mais curto do que a extensão do mês?
Como conciliar a contradição entre a recomendação de ‘partir da realidade
do aluno’ e a sutil recomendação de seguir o ‘programa’ que desconhece a
realidade dos mesmos e precisa ser cumprido?
Como tender à recomendação de atuar disciplinarmente em uma parte do
tempo de aula e, de repente, como num passe de mágico, deve assumir
uma postura transdisciplinar nos chamados ‘temas transversais’?
Mas, dentro de tudo isto, há os que atuam no cotidiano da escola e que
lutam por transformá-la em um espaço/tempo de troca, de criação, de
relações amorosas e solidárias, isto sim, anúncio de novos tempos.
Nessa perspectiva, tomarei como base os estudos de Linhares (1999, 2001a,
2001b), ao refletir acerca das pesquisas em educação no País, que aponta a
necessidade de compartilhar os conflitos e tensões que se instituem cotidianamente
nas teias opressoras engendradas nos cenários educacionais vigentes, pois, mais
do que reafirmar o senso comum, deve-se ousar aprender com/nos espaços sob
neblina, como forma de ultrapassar os desafios e as incertezas que nos impõem a
complexidade, que atravessam nossa vida, como nos diria Gonzaguinha (BUSCA
LETRAS, acesso em 3 fev. 2008).
E a vida?
e a vida o que é diga lá, meu irmão?
ela é batida de um coração?
ela é uma doce ilusão?
mas e a vida?
ela é maravilha ou é sofrimento?
ela é alegria ou lamento?
o que é, o que é, meu irmão?
[...] somos nós que fazemos a vida
como der ou puder ou quiser.
[...] Viver, e não ter a vergonha de ser feliz
cantar (e cantar e cantar) a beleza de ser um eterno aprendiz [...]
Para tanto, a autora sugere um investimento constante/cotidianamente (re)criador,
cuja política, eticamente delimitada, não se canse de levantar a poeira e dar a volta
22
por cima, isto é, precisamos assumir uma postura instituinte. Termo tecido por
Linhares (2001a, p. 166), ao se remeter a uma
[...] política que não se acomoda com o poder
hegemonicamente sustentado. Um poder que precisa ser
criado, como um empenho por fazer-se e construir-se em
devir permanente criador, solitário, ético. É, assim, no
vamos construindo o caminho e o próprio caminhante.
constituído e
continuamente
liberdade, num
caminhar, que
Assim, neste devir, aproximei-me também de alguns pressupostos foucaultianos na
tentativa de buscar aporte para compreender e analisar como as relações de
saber/poder, emergentes da/nas práticas sociais, operam como tecnologias das
subjetivações, unas/plurais, instituídas em nossa cultura nos/pelos dispositivos
reguladores de controle e vigilância do Estado.
Para Foucault (1996b), o conhecimento é algo inventado nas/pelas práticas sociais,
e, portanto, resultado dos instintos, efeito de superfície, de luta, algo singular e, ao
mesmo tempo, coletivo e sempre da ordem da ideologia:
[...] as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que
não somente fazem aparecer novos objetivos, novos conceitos, novas
técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeito e de
sujeito de conhecimento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história,
a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade
tem uma historia (FOUCAULT, 1996b, p. 8).
Em meu entendimento, esta análise nos auxilia a compreender como o aspecto
político, inerente aos processos de constituição das subjetividades, se encontra
vinculado aos jogos de saber/poder, visto que: “A biopolítica lida com a população,
e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e
político, como problema biológico e como problema de poder, acho que aparece
neste momento” (FOUCAULT, 2000, p. 292-293).
Ao discutir os regimes de práticas, não concebidos apenas por uma forma histórica
de fazer ou praticar, e sim como algo político, histórico e cultural, estou também
analisando uma linha entre o dizer e o fazer, que se constitui em modos de
pensamento por meio das lógicas, das estratégias, das evidências e da razão.
Assim, ao analisar as formas fundamentais de saber/poder que permeiam as
práticas discursivas a partir de suas próprias relações de força refletidas nas
23
diversas formas de sujeição humana, estou também indo ao encontro de um novo
paradigma comprometido com pressupostos éticos, estéticos e políticos, no sentido
de pensar a vida como uma obra de arte, constituindo, uma estética da existência
(EIZIRICK, 1994).
A opção por compreender essas relações reside na concepção de que o saber se
constitui num produto da luta contra forças de opressão que geram mecanismos que
consolidam a dominação. Assim, “[...] não existe verdade no sentido absoluto do
termo como resultado de uma operação pura do intelecto” (COSTA, 2002, p. 100).
Ela se institui, neste mundo, pela via das correlações de forças, sendo a ciência
apenas uma das formas mais poderosas de saber.
Nessas múltiplas/polifônicas relações de forças, os pensamentos encontram-se
permeados por contextos que, direcionados para as paisagens escolares, aqui
concebidas como um espaço de compartilhamento de experiências, atravessam os
processos
pedagógicos
que
ali se
engendram,
instituindo cotidianamente
micropráticas de poder/saber.
Foucault (1997) nos alerta para ao fato de que as instituições que operam no campo
educacional, em especial nas modalidades iniciais, concebem a infância como um
relevante dispositivo de regulação/interdição humana, consolidado pela via de
políticas educacionais que agenciam os processos de ensino ali produzidos, tanto no
sentido de potencializar aquele considerado “o mais puro/sadio dos indivíduos”,
quanto de despotencializar o “dito anormal/impuro”, em virtude de o modelo
preestabelecido hegemonicamente de sujeito não se encontrar aberto à diversidade.
Para além dessas questões, identifiquei, nessas práticas, um atravessamento pelas
relações de saber/poder que permeiam as práticas discursivas, que repercutem nos
processos de ensino produzidos na/pela cultura, em especial nos processos
educacionais de alunos ditos com nee, em virtude de o modelo preestabelecido
hegemonicamente de sujeito/aluno/normal não se encontrar aberto à diversidade,
24
isto é, reafirma a cópia e desconsidera as potencialidades presentes nos simulacros
(DELEUZE, 1974).10
Estamos diante de um novo-antigo sujeito, cuja identidade múltipla continua sendo
“reformada” cotidianamente para/por nós mesmos, numa perspectiva burocratizante
em nome da inclusão curricular. Dessa forma, “[...] re-uniformizamos o Outro sob a
sombra de novas terminologias sem sujeito” (SKLIAR, 2002, p. 3).
Nesse contexto, as possibilidades de inter-relação constituíam-se num exercício de
poder, que se processava num plano ativo de força e de luta, produzindo
resistências múltiplas que disparavam outros modos de ser/estar, principalmente
quando pensamos na inclusão socioeducacional dos alunos/as com nee.
Faz-se
necessário,
então,
promover
múltiplos
mergulhos
no
sentido
da
compreensão acerca da complexidade que opera nas paisagens escolares pela via
das
relações
estabelecidas,
bem
como
compreender
suas
interfaces
micromacropolíticas, visto que toda relação de poder implica um suposto saber,
tanto no sentido do aprisionamento, quanto no sentido da libertação dos indivíduos
(FOUCAULT,1975).
Outro aspecto que despertou meu interesse foi compreender a constituição da
subjetividade humana em frente aos processos de inclusão socioeducacional na
Educação Infantil, tendo como elemento disparador de tais análises, o autismo e as
psicoses infantis.
Para dar suporte a tal debate, elegi como ferramenta os pressupostos psicanalíticos
propostos por Freud e Lacan, bem como por autores que analisam os processos de
inclusão com base nas contribuições psicanalíticas, pela possibilidade que esse
campo de conhecimento nos oferece para analisar as posições dos sujeitos diante
da incompletude que nos impõe o inconsciente humano, numa perspectiva histórica
singular/coletiva, contextualizando-a num cotidiano atravessado por diversas outras
10 Em Deleuze (1998), simulacro refere-se a uma tentativa de recusa de qualquer forma de aprisionamento que nos impõem
os modelos absolutos e hegemônicos de ser/estar no mundo.
25
subjetividades originadas numa sociedade cujas práticas de sujeição produzem
pessoas com dificuldades em lidar com a diferença nas suas mais diversas
manifestações, uma vez que esse encontro nos faz retornar a um possível desejo há
muito interditado pela repressão.
[...] se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se
compreender por que o uso lingüístico estendeu das Heimlich [homely]
(doméstico, familiar) para o seu oposto, das Unheimlich; pois este estranho
não é nada de novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito
estabelecido na mente, e que somente se alienou deste através do
processo de repressão (FREUD, 1976, p. 301).
Minha expectativa era que os envolvidos nesse processo, ao analisarem as suas
práticas discursivas, compreendessem um pouco melhor acerca da constituição da
subjetividade humana, em especial sobre o debate que permeia o autismo e as
psicoses infantis, de forma a ressignificá-lo em prol da existência humana, para que,
a partir daí, fosse possível contextualizar suas inter-relações com os Outros11 e
entender como essa inter-relação engendra dispositivos favorecedores ou não às
produções educativas dos alunos, em especial, dos alunos ditos com nee/autistas.
Birman (2001), corroborando essa afirmação, concebe a Psicanálise como um
campo de saber sobre o psíquico que pode contribuir para os contextos
educacionais, num processo de ensino/aprendizagem no qual a intersubjetividade
seja uma premissa, de forma que,
Nestes termos, a psicanálise e os demais campos de saberes sobre o
psíquico se inscrevem de fato e de direito no campo da educação, sendo
em torno dela que os operadores e engrenagens deste campo giram com
suas práticas e seus propósitos, em última instância [...]. Isso porque a
subjetividade em pauta se inscreve necessariamente numa polis nos
registros éticos, estéticos e políticos além, evidentemente, do cognitivo
(BIRMAN, 2001, p. 11-12, grifo do autor).
Ao longo desse percurso teórico, podemos destacar também a tese de Nicacio
(1999), intitulada O paradoxo do homem moderno: psicanálise e processo
civilizatório, que, ao mapear o sistema de idéias e valores subjacentes à
Psicanálise, pela via do estudo da teoria de Freud sobre a cultura, defende essa
11 O conceito de Grande Outro remete, na Psicanálise, à linguagem, à cultura, ou seja, ao lugar onde se estruturam as significações (RONDAS, 2004, p.
38).
26
teoria como uma forma particular de pensar o paradoxo do homem moderno, em
relação à questão da interiorização da lei.
Outra tese que também aprofunda tal debate é a de Menezes (2003): A psicologia e
a psicanálise sob o exame crítico da primeira fase de Foucault, que promove uma
investigação epistemológica no sentido de cartografar os encontros e os
(des)encontros entre a Psicanálise e a teorização de Michael Foucault, com vistas a
apontar não só seus limites, mas também, e principalmente, as possibilidades de
estabelecermos um diálogo fértil e eterno entre eles, bem no sentido do que estou
tentando desenvolver neste estudo.
Por conseguinte, pode-se conceber a relação que Foucault estabelece com a
Psicologia e com a Psicanálise sendo presidida por uma tensão. Mas sob a
leitura aqui cometida, é graças a essa tensão que o diálogo entabulado pelo
autor com esses saberes é fértil. Em todos os sentidos (e não em certo
sentido), sua crítica jamais pretenderá dispensar a Psicologia e a Psicanálise
após um uso que demonstre as suas mazelas, deficiências, debilidades. Ao
contrário: o que ele deseja, como sustentado em toda a leitura aqui proposta,
é manter um convívio no encalço da Psicologia e da Psicanálise, oferecendo
para elas um lugar capital em toda a sua obra. O simples fato de tais saberes
comparecerem de modo pontual em certos momentos, de insurgirem
continuamente no interior de certos textos ou, ainda, de o pensamento de
Freud ser perseguido de modo sistemático em tantos outros demonstra o
quanto esse contato com a Psicologia e a Psicanálise fertiliza a imaginação
inquieta do autor e o quanto esses saberes se constituem em oportunidades
apaixonantes na construção de encruzilhadas promotoras de reflexões
(MENEZES, 2003, p. 249).
Ao final, o autor conclui, acerca desses (des)encontros que acometem essas
teorizações, apontando que, apesar de as tensões provocadas por suas
especificidades epistemológicas convergirem na tessitura de uma crítica sobre os
modos de subjetivação humana presentes na complexa sociedade moderna, há uma
fertilização neste diálogo, na medida em que os pressupostos foucaultianos
promovem/ampliam o debate da Psicologia e da Psicanálise ao encontro de uma
postura mais reflexiva e crítica do que dogmática, acerca da necessidade de se
iluminar para poder reconhecer-se como um sujeito singular e, ao mesmo tempo,
instituído na/pela coletividade.
Ainda nessa perspectiva, Foucault (1996b, p. 9) chama a atenção para o fato de a
Psicanálise ter sido pioneira no rompimento com a concepção absoluta de sujeito,
ao encontro de alguém constituído na/pela história/cultura: “A psicanálise foi
certamente a prática e a teoria que reavaliou de maneira mais fundamental a
27
prioridade um tanto sagrada conferida aos sujeitos, que se estabelecera no
pensamento ocidental desde Descartes”.
Em Souza e Gallo (2002), ao discorrer sobre os limites/possibilidades/desafios de
dialogarmos a Psicanálise de Freud e Lacan com as contribuições de Foucault, no
que tange ao debate que perpassa a exclusão como efeito de mecanismos
assimilatórios e, ao mesmo tempo, segregacionistas, tal opção teórico-conceitual
justifica-se pela contribuição que cada um desses campos de conhecimento oferece
para entendermos acerca dos processos de subjetivação/sujeição humana:
Não se trata aqui de buscarmos pontos de contato entre duas abordagens
que, mais apropriadamente, talvez possam ser representadas sob forma de
paralelas-linhas de pensamento condenadas a jamais se encontrarem. Mas
sim o exercício de uma primeira mirada que nos permita considerar por
quais aspectos cada uma delas nos franqueia o entender da questão título,
se tomadas na condição de retas singulares. Mais especificamente, como
com base nelas poderíamos entender o (a)normal e o estranho (p.44).
Assim, a opção por esses autores, em especial Foucault e Freud, refere-se
primordialmente ao fato de que ambos, com os seus olhares ímpares, estudaram e
atuaram sobre a psique humana, isto é, sobre a constituição dos sujeitos, pela via
dos transtornos mentais e o seu atravessamento pela sexualidade. Isso se
presentifica em Foucault, ao analisar como os “regimes de prática” instituídos
na/pela sociedade moderna são perversos aos indivíduos, quando visam a
disciplinar e/ou punir os corpos com as mais diferentes técnicas de sujeição; e em
Freud, quando, ao estudar sobre a histeria humana, voltou-se para compreender
como a cura pode ser operada pela fala, ou seja, pela interpretação de uma
estrutura lingüística cujos significados se encontram deslocados no inconsciente. Ao
direcionarmos tal debate para os contextos escolares, mais precisamente aos
processos de inclusão social de crianças com nee, precisamos estar atentos aos
diagnósticos pautados em bases científicas apenas, tendo em vista o fato de que,
muitas vezes, uma situação de ”fracasso escolar” poderá estar atrelada a questões
subjetivas que poderão gerar uma situação de inibição do conhecimento
(SANTIAGO, 2000).
Por esse aspecto, acredito que ambos apontam para uma mesma direção, no
sentido de se observar como as práticas sociais engendram/instituem/produzem
28
subjetividades. Entretanto, para além das especificidades lingüísticas, Foucault
discute esse engendramento de forma mais generalizada, tomando com foco de
análise uma reflexão de ordem moral entre a loucura, a alienação e a autonomia,
como ele mesmo intitula, isto é, contextualizando o fato de essas práticas
produzirem novosoutros saberes que instituem sujeitos e, por conseqüência, sujeitos
do conhecimento.
No entanto, Foucault não privilegia refletir acerca de como esse processo se
desenvolve individualmente em cada um de nós, o que, em meu entender, é muito
bem contextualizado pela teoria freud-lacaniana, ao investigar as ações do
inconsciente e do desejo nas ações humanas. Tema que foi reconhecido, inclusive,
por Foucault, em seu livro A verdade e as formas jurídicas (2004, p. 10), quando
afirma: “A psicanálise foi certamente a prática e a teoria que reavaliou de maneira
mais fundamental a prioridade um tanto sagrada conferida ao sujeito, que se
estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes [...]. Ora, parece-me que a
psicanálise pôs em questão, de maneira enfática, essa posição absoluta do sujeito”.
Foucault, apesar de ter divergido de Freud no que tange ao Complexo de Édipo e
ao inconsciente, que, para ele, não operavam no nível individual, mas no coletivo,
reconhecia a Psicanálise como um campo teórico que reavaliou a concepção
sagrada de sujeito estabelecida no pensamento hegemônico ocidental. Para o autor,
[...] a posição singular da psicanálise no fim do século XIX não seria bem
compreendida se desconhecêssemos a ruptura que operou relativamente
ao grande sistema da degenerescência: ela retomou o projeto de uma
tecnologia médica própria do instinto sexual, mas procurou liberá-la de
suas correlações com a hereditariedade e, portanto, com todos os
racismos e eugenismos. [...] ela foi, até os anos 40, a única que se opôs,
rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversãohereditariedade-degenerecência (FOUCAULT, 2003a, p. 113).
A grande questão de Foucault, em consonância com Deleuze e Guatari, acerca da
teoria psicanalítica, reside no fato de eles questionarem a forma como o desejo
edipiano se encontra articulado na/pela Psicanálise pela sociedade vigente, de modo
muito semelhante a um “[...] pequeno drama, quase que burguês entre o pai, a mãe
e o filho” (2005, p.10), em que o desejo se torna um instrumento de coação por parte
dos psicanalistas para contê-lo, apesar de não desconsiderar a “[...] história interna
29
da verdade, a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios
princípios de regulação [...]” (p.11), ou seja, Foucault não nega a Psicanálise, mas,
sim, privilegia outro percurso para se compreender os assujeitamentos humanos.
Ele, inclusive, assume que, apesar de não concordar totalmente com essa
perspectiva, confessa sentir-se atraído em pesquisar acerca dessa estruturação,
todavia num contexto mais coletivo, buscando compreender, nesse processo, a “[...]
história de um poder, um poder político” (2005, p.30).
Assim, acredito que a tentativa de diálogo com esses campos de conhecimento teve
o objetivo de compreender que, apesar se de utilizarem de ferramentas próprias,
eles analisam os processos produzidos nos/pelos mundos plurais/singulares, cujos
fenômenos
surgem
deslocados,
gerando
imprevisíveis
e
significativos
(des)encontros, isto é, ajudam a compreender como se estruturam os processos de
individualização e de constituição do Eu, em cada um de nós, a partir de nossas
histórias de vida, como nos diz Safatle (2008, p. 40):
Talvez isso nos explique um pouco do forte interesse que o pensamento de
Lacan
ainda
desperta
e
diversos
projetos
intelectuais
da
contemporaneidade. Pois talvez todos eles partilhem da crença de que, se
quisermos forjar um dispositivo de pensamento capaz de forçar o
aparecimento de uma práxis renovada, não devemos procurar atualizar
regimes de humanismos, mas dar forma a nosso desconforto com um certo
projeto antropológico de homem. Nesse sentido, Lacan pode nos ajudar a
compreender como a modernidade foi também um espaço de uma outra
concepção de humano, uma concepção que insiste na importância de
experiência de confrontação com o inumano, com o despersonalizado, com
o indeterminado para a formação de uma práxis emancipada .
Essa opção significa, então, uma possibilidade de não só compreendermos os
mecanismos de subjetivação por nós instituídos cotidianamente, como também de
analisar o estranhamento que nos provoca o encontro com um possível estrangeiro,
aquele que difere de nossa imagem e semelhança, para que, a partir de então, se
possam instituir, nas mais diversas paisagens, em especial nas paisagens
escolares, práticas mais favoráveis à nossa existência singular/coletiva, no sentido
de vislumbrar espaços de liberdade que permitam emergir minhas pequenas
revoltas e, por que não dizer, nos permitam pensar em práticas pedagógicas de
bases mais inclusivas.
30
Certamente existiram algumas contradições e/ou limitações de tais ferramentas
teórico-filosóficas, afinal, como nos provoca Brandão (2002), qual é a teoria que não
se apresenta incompleta? Haja vista o fato de não existir campo de conhecimento
capaz de responder acerca dos nós tecidos nas teias dos fenômenos sociais. A
minha opção teórico-conceitual constitui-se, então, como uma hipótese a ser
investigada ao longo deste estudo, isto é, pretendo valer-me dessas lentes para
compreender os movimentos que se engendram nas paisagens escolares, até
mesmo para identificar quais são as fissuras que porventura irão emergir ao final.
Assim sendo, assumo os riscos das possíveis contradições que venham a emergir
nesta produção, tendo em vista a necessidade acadêmica de uma coerência textual
atrelada ao rigor cartesiano da indução, que desconsidera, muitas vezes, a
complexidade e a provisoriedade que caracterizam nossas ações cotidianas,
ignorando o fato de que somos sujeitos permeados por múltiplas subjetivações, em
constantes transformações nem sempre coerentes e até mesmo bastante
contraditórias, bem como de que somos constantemente atravessados, ao longo de
nossa formação acadêmica e/ou humana, por pressupostos hegemônicos, em
função dos quais a visão cristalizada de homem e de mundo foi/é sutilmente
impregnada em nossa existência.
Nesse sentido, reporto-me novamente a Brandão (2002, p. 49), quando discorre
sobre “[...] os limites que a Especialização disciplinar impõe à complexidade das
questões que emergem da educação enquanto prática social”, E reafirma que,
mesmo sem desconsiderar a necessidade de rigor no âmbito das ciências, é preciso
ampliar constantemente as nossas possibilidades de interlocução com áreas
circunvizinhas, na medida em que a verdade opera na atualidade não mais num
caráter permanente, mas, sim, como processo em constante devir.
No entanto, com o desenrolar deste texto, foi-me possível compreender que a idéia
então constituída sobre o mergulho não se limitava apenas a um simples
aprofundamento de questões: o que se configurava de fato neste estudo era a
possibilidade de analisar os múltiplos movimentos existentes nos oceanos, ora
sendo impulsionada pelas correntes do instituído, ora promovendo instituintemente
modificação nas marés das paisagens escolares. Afinal, as soluções para a
31
inclusão, cujo conceito se encontra num constante devir, não são facilmente
atingidas; são complexas e, muitas vezes, contraditórias, podendo, inclusive,
produzir outros múltiplos e imprevisíveis devires que impliquem mutações nas
concepções sobre a vida e o humano em suas diversas manifestações.
A minha movimentação teve como premissa, apesar de saber da provisoriedade
desse ato, o acompanhamento dos processos que ali se agenciam com múltiplas
outras conexões, produzindo, por conseqüência, novas/outras paisagens nas quais
a diferença não seja vista como uma cópia ruim (DELEUZE, 1974), mas como uma
outra forma de ser/estar produzida num contexto coletivo que não se deixa afetar
pelo tempo, cuja análise acerca de nossa implicação ou, por que não dizer, do nosso
atravessamento no/pelo outro se torne algo cotidiano.
Para tanto, foi preciso desprender-me de verdades inquestionáveis que se
encontravam presentes em minhas entranhas, para que pudesse estabelecer outras
múltiplas conexões com as diversas teias que se engendraram em nossas ações
num devir constante, cujos nós nem sempre nos levaram ao lugar inicialmente
almejado. Afinal, “[...] todo texto, como o mundo, como o próprio homem é fluido, é
um devir que nunca se aproxima ao ser, pois não existe ser, um movimento que
nunca se aproxima à verdade, pois não existe verdade” [...] (LARROSA, 2004, p.
30).
Este estudo não teve a pretensão de concluir nada, mas acompanhar os processos
que ali se presentificaram (KASTRUP, 2007), possibilitando-me, assim, contribuir
para a desconstrução de algumas categorizações fixas que permearam essas
paisagens, impedindo de vir à tona múltiplos outros/novos movimentos que ali se
forjaram, uma vez que não se encontravam hegemonicamente instituídos.
O que se constituiu como significativo não foi somente a interpretação das idéias
postas, ou o que se pensou a partir delas, mas o que com elas, contra elas ou a
partir delas pudesse disparar forças que me levassem para além de mim mesma,
cujo texto possibilitasse múltiplas interpretações, como afirma Larrosa (2004, p. 2021), remetendo-se à obra Nietzsche & a educação:
32
E o nome de Nietzsche na folha de rosto coloca seriamente a questão de que
se é, realmente, um só homem aquele que se oculta sob tantas máscaras: o
filósofo, o psicólogo, o moralista, o filólogo, o bufão, Dionízio, Zaratusta, o
Anticristo... A singularidade do seu estilo é ser muitos estilos, como a
singularidade de sua mensagem é ser muitas mensagens. E mais: a escrita
de Nietzche está dirigida contra a ilusão de que um livro exige um estilo
transparente, eficazmente ‘comunicativo’, uma personalidade única que
controla seu sentido, e uma verdade transmitida que seria seu ‘conteúdo’. O
estilo é, para Nietzche, uma forma múltipla para a expressão inexpressável,
uma música, um gesto, um punho, um martelo; a personalidade é um sistema
hierarquizado de forças; a verdade não é outra coisa senão a invenção que
esqueceu o que é.
Dessa forma, acredito que esta tessitura teórico-conceitual me possibilitou conhecer
e potencializar, na paisagem investigada, os processos instituintes/instituídos como
inclusivos que ali se engendraram, tendo sempre como eixo de meus movimentos
uma perspectiva educacional comprometida com a ruptura dos muros existentes
entre a experiência da vida e a escola, evidenciando movimentos que brilham no
chão das escolas (LINHARES, 2001b).
1.2 A ESCOLHA DA PAISAGEM
A paisagem investigada constituiu-se num Centro Municipal de Educação Infantil
(CMEI) pertencente à rede municipal de ensino da cidade de Vitória, ES. Tomei,
como ponto de partida, esse espaço educacional, em virtude de o meu objeto de
investigação se pautar na busca pela compreensão das múltiplas formas de
agenciamento
das subjetividades humanas,
considerando suas
respectivas
implicações nos processos de ensino dos indivíduos nos diferentes níveis, em
especial de pessoas que apresentam nee: crianças com transtorno invasivo de
desenvolvimento/autismo (TID).
Na medida em que os processos de subjetivação são engendrados culturalmente
na/pela relação com o/s outro/s, o fato de estar nesta paisagem me possibilitou
acompanhar de perto a chegada dos indivíduos nos contextos sociais propriamente
ditos, seus encontros e/ou desencontros com outras subjetividades que ali
habitavam, a atuação das famílias diante desses processos e seus respectivos
impactos na estruturação da subjetividade infantil, bem como o quanto as políticas
públicas instituem processos de subjetivação humana. Logo, quanto antes
33
acompanhassem a gênese de tais movimentos, melhor seria a compreensão acerca
de suas implicações e, também, me dariam pistas acerca dos possíveis fluxos a
seguir, a fim de contribuir para processos inclusivos que ali se instituíam.
Nesse sentido, apoiei-me em Heckert (2004), ao dissertar acerca dos motivos que a
levaram a eleger os contextos públicos de educação como um campo de
investigação, ao conceber, nessas paisagens, a personificação de nossa realidade
vivida e sendo, por isso, necessário de ser destacada a fim de percebermos que,
apesar da precariedade em que vivemos, muito coisa é produzida, mas, por
questões óbvias, não são destacadas: “Não é a melancolia que alimenta e
impulsiona este trabalho, tampouco o denuncismo. Ao contrário, é a possibilidade de
vislumbrar criações nos restos, detritos e sucatas que povoam este espaço” (p.16).
Buscarei, a seguir, contextualizar acerca da paisagem investigada no que tange à
sua origem, localização, população e composição do corpo técnico-pedagógico,
evidenciando alguns movimentos interessantes de se destacar neste processo. Fazse necessário reafirmar que os fatos narrados foram extraídos da experiência vividas
por esta pesquisadora, visto que essa paisagem era também, no
momento da
pesquisa, o local em que minha filha mais nova estabelecia seus primeiros contatos
com a educação formal.
1.2.1 Aprofundando o mergulho, dando foco à paisagem
O Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) investigado era recém-inaugurado,
tendo iniciando a gestão político-pedagógica em fevereiro de 2005. Sua construção
deu-se num momento de transição política, isto é, foi construído no final de uma
gestão e inaugurado efetivamente no início de outra, com posição partidária
contrária à anterior.
Esta mudança político-partidária, para além das questões ideológico-pedagógicas
que atravessaram tal situação, como a escolha da nova Secretária de Educação e,
por conseqüência, de toda a sua equipe, comprometeu significativamente o início do
ano letivo naquela CMEI, visto que não houve uma preparação para se receber as
34
crianças de forma que, em fevereiro de 2005, ocorre a “abertura” de suas portas à
comunidade sem nenhum material didático-pedagógico, tendo a escola que adiar o
início das aulas em 15 dias, até que chegassem materiais básicos para que,
efetivamente, se começasse o ano letivo.
Outra questão com sérias implicações constituía-se na falta de uma identidade
político-pedagógica legitimamente construída, em virtude de o Projeto PolíticoPedagógico ainda se encontrar em elaboração, apesar do início das aulas, bem
como o processo de transição para a escolha da direção daquele CMEI, fato que
destacarei a seguir.
Assim, com abertura das portas à comunidade, era preciso instituir uma infraestrutura básica para que, a partir de então, fosse organizada internamente a
escolha de seus gestores, isto é, a composição do Conselho de Escola, formado por
docentes, funcionários e membros da comunidade, e também da direção. Logo, ao
final de primeiro ano de funcionamento desse CMEI, foi realizada uma eleição cujos
concorrentes diretos, dentre vários candidatos, eram uma professora, da própria
creche e a outra candidata, também professora, todavia atuante na primeira série do
Ensino Fundamental de uma escola próxima ao CMEI.
Ao final, apesar dos esforços de grande parte dos docentes e dos funcionários na
eleição de seu representante direto, vence, com uma pequena margem de votos, a
candidata advinda da comunidade externa. Esse fato gerou conflitos internos,
contribuindo, inclusive, em meu entender, para que a candidata derrotada pedisse
remoção para outro CMEI ao final do ano letivo.
Em relação à diretora eleita, esta, por sua vez, vivenciou uma gestão conflituosa,
cujos enfrentamentos de resistência eram bem freqüentes, ocasionados tanto pela
resistência inicial de alguns funcionários do CMEI, como, também, pelo fato de ela
estar iniciando seu trabalho no campo de gestão, cujo contexto complexo e
caótico/desordenado pulsava a todo o momento.
Retomando o foco à paisagem investigada, a escola se localizava em num bairro de
classe média urbana do município de Vitória, ES, cuja população apresenta uma
35
diversidade econômico-social-cultural bastante significativa, na medida em que
congregava, nessa comunidade, pessoas das mais diversas classes sociais,
abrangendo professores e estudantes, universitários e profissionais da própria rede
municipal de ensino, pesquisadores, pessoas de classe média, classe baixa e uma
número significativo de pessoas envolvidas com o tráfico e/ou com o consumo de
drogas, o que influenciava diretamente no comportamento das crianças, na mediada
em que muitas delas eram criadas por seus avós e/ou traziam para a sala de aula os
impactos do contexto familiar vivido.
Apesar de reconhecer que essa diversidade era bastante significativa para a
formação humana dos que ali habitavam, não poderia deixar de citar o fato de que,
no que tange ao envolvimento político-pedagógico entre comunidade interna e
externa, havia conflitos velados, em virtude de uma parte da equipe desse CMEI,
acreditar que a comunidade externa pretendia intervir, além de seus limites, na
gestão pedagógica daquela creche.
Esse entendimento se instituiu por uma conjunção de fatores, como a formação
acadêmica de uma boa parcela dessa população, conforme já descrito, que habitava
espaços que estimulavam à busca pela participação ativa na gestão daquele CMEI.
Entretanto, muitas vezes, esta participação ocorria de forma muito incisiva. Outra
questão a se destacar pautava-se no fato de, naquele momento, os docentes se
encontrarem
bastantes
insatisfeitos
com
as
condições
político-estruturais
vivenciadas, associando ao fato de acreditar que a diretora eleita tinha implicações
com a comunidade externa, na medida em que esse grupo ajudou a elegê-la.
Em relação ao quantitativo de alunos matriculados, o CMEI possuía em torno de 500
crianças nos turnos matutino e vespertino. Especificamente no turno vespertino, no
qual se desenvolveu este estudo, havia 250 crianças. No geral, eram atendidas 15
crianças ditas com necessidades especiais, das quais três apresentavam laudos
médicos fornecidos pela Associação de Pais e Amigos do Excepcional (APAE) de
autismos.
Do ponto de vista estrutural, o centro de educação infantil possuía 15 salas de aulas,
com turmas organizadas do Maternal ao Grupo 6. Tinha uma sala de vídeo que
36
funcionava também como biblioteca, um refeitório, um pátio interno descoberto, uma
quadra coberta para as aulas de Educação Física, uma quadra de areia descoberta,
uma sala de professores, uma sala de atendimento pedagógico, uma secretaria, a
sala da direção e uma cozinha industrial.
No que tange aos recursos humanos, o CMEI contava, no período vespertino, com
uma diretora, duas pedagogas, uma professora de apoio para crianças com nee,
duas professores de Educação Física, 13 professores regentes de sala, seis
estagiários de Pedagogia e, ainda, dois porteiros, duas secretárias, cinco auxiliares
de serviços gerais e três cozinheiras. Todos os professores apresentavam
graduação em Pedagogia, bem como havia especialistas e mestres no grupo, tanto
de professores quanto da gestão político-pedagógica, isto é, a diretora possuía
Mestrado em Literatura e a pedagoga, Especialização em Educação.
Das 13 salas de aula, duas eram voltadas para crianças em torno de seis anos
(Grupo 6), duas para crianças em torno de cinco anos (Grupo 5), duas para crianças
em torno de quatro anos (Grupo 4), duas para crianças em torno de três anos
(Grupo 3), duas para crianças em torno de dois anos (Maternal) e uma turma para
crianças em torno de um ano (Berçário).
Decidir nem sempre é algo fácil, principalmente quando envolvemos, num mesmo
contexto, metas, afetos/desafetos, desejos suprimidos, entre outros, de forma que
fiquei sempre dividida entre a razão e a emoção. Logo, resolvi deixar falar mais alto
a minha implicação12 (BARBIER, 1985) pessoal, ou seja, dei vazão ao que
eminentemente me afetava como pesquisadora, mesmo que, e/ou principalmente,
pelo fato de esse sentimento estar entrelaçado a questões subjetivas, afinal, não é
isto que nos movimenta à procura de um desejo faltoso: a busca incessante pelo
Falo (FREUD, 1969) que nos foi instaurando ao nascer?
Nesse contexto, a escolha da paisagem se deu em virtude de o CMEI investigado se
constituir, no momento desta pesquisa, no local em que minha filha mais nova
estudava, em cuja sala de aula havia uma criança, ali caracterizada como autista
12
Termo utilizado por René Barbier (2002) para definir um envolvimento singular/coletivo, consciente/inconsciente de práxis
científica, considerando os aspectos históricos, filosóficos, familiares, libidinais, políticas, sociais entre tantos outros.
37
que apresentava também múltiplas deficiências (deficiência visual, deficiência
auditiva, deficiência intelectual, dentre outras).
Apesar de saber dos riscos dessa escolha (afinal qual é a escolha que não tem seus
riscos?), resolvi assumir tal decisão na medida em que percebi, em relação a essa
criança, o fato de ela ainda não se encontrar, de fato, incluída no grupo, ou seja,
Priscila13 tinha um lugar físico garantido, mas, no âmbito simbólico, não havia sobre
ela uma aposta de crescimento, isto é, não havia uma possibilidade de ela se
constituir como um ser desejante (FREUD,1969).
Essas impressões foram se fortalecendo em mim, quando, certa vez, minha filha me
disse: “Ah, mãe, a Priscila parece doida, não escuta, não faz nada, só bate e puxa o
meu cabelo!”.
Essa fala me incomodou bastante, afinal, como poderia eu, mestre em
Educação/Educação Especial, atualmente doutoranda, ter uma filha com essa
concepção de mundo/sociedade e não fazer nenhum movimento que a impedisse de
ver essa criança dessa forma? O que escapava dentro de minha casa que a levava
a apresentar tal concepção sobre a diversidade humana?
A partir de então, comecei a me inquietar e, conseqüentemente, a refletir sobre
como seriam as percepções de seus colegas de sala, de sua professora, de
todos/as naquele CMEI sobre Priscila? Teriam a mesma visão? Como ocorria o diaa-dia dessa criança em sala de aula? Como o grupo havia sido preparado para
recebê-la? E a escola, em geral, como concebia a idéia de inclusão?
Em meio a tantas questões, surgiram-me outras mais, por exemplo: será que deveria
me manter alheia a esse problema pela minha implicação pessoal? Mas eu nunca
acreditei em pesquisador neutro! Afinal, como ficava a minha responsabilidade social
e ética como pesquisadora? Será que esse envolvimento poderia resvalar de forma
nociva ao processo educacional de minha filha? Estaria eu buscando uma
justificativa para realizar um mergulho no CMEI de minha filha apenas para me
13
Nome fictício.
38
aproximar dela? Tantas questões, tantas dúvidas, o que fazer? Eu precisava me
movimentar para algum lugar, sair daquele imobilismo, só precisava de um
empurrãzinho.
Um dia ocorreu um movimento que me levou a “mergulhar de cabeça nesta
paisagem”, desencadeado quando a turma se apresentou para a comunidade
escolar com uma manifestação artística, na qual Priscila ficava, durante todo o
tempo, sentada ao lado do grupo com movimentos estereotipados de balançar as
mãos e o corpo, apresentado um olhar de expectadora a tudo que ocorria, como se
não pertencesse àquele grupo, cercada pela estagiária para ali permanecer. Não, eu
não podia ficar alheia a isso. Esse era o sinal para que eu efetuasse o meu primeiro
mergulho!
Inicialmente, meio sem coragem, procurarei a pedagoga Kely a fim de marcar um
momento para conversarmos sobre Priscila, a turma e o CMEI. Percebi que, ao
apontar os motivos solicitados para esse encontro, deixei Kely um pouco mexida,
afinal, o que me levaria a solicitar uma reunião para falar sobre uma criança que não
era a minha própria filha, para falar sobre outra criança com características tão
específicas?
No dia marcado, encontrei-me com Kely e percebi que ela apresentava reservas em
relação à nossa conversa. Para tranqüilizá-la, disse-lhe que não estava ali para
cobrar e nem julgar nada, mas para oferecer minha contribuição como um membro
da comunidade escolar daquele CMEI e que, na condição de pesquisadora, me
interessava pelas questões acerca da Diversidade Humana em nossa sociedade.
Sendo assim, gostaria de fazer parte daquele grupo, pois estudava numa
Universidade Pública custeada pela sociedade, de forma que me sentia implicada
com aquela questão.
Percebi que essa fala a tranqüilizou, inicialmente, de forma que, em seguida,
procurei evidenciar o meu entendimento acerca dos processos de inclusão social
dos
indivíduos,
vendo,
nesse
movimento,
um
inexorável
processo
de
reconhecimento à singularidade humana una/plural. Reafirmei compreender as
dificuldades que atravessam esses processos, haja vista as nossas concepções
39
apriorísticas e essencialistas de homem/mundo que refletiam diretamente em nossa
percepção sobre a educação/educação inclusiva e que, por isso, precisavam ser
repensadas ao se pretender uma sociedade menos dicotômica e discriminatória.
Nossa conversa se desenrolou de forma tranqüila. Comentei sobre a minha futura
tese de Doutorado e a possibilidade de utilizar aquele espaço como um campo de
investigação. A partir de então, Kely me propôs vir ao grupo de professores/as falar
um pouco sobre a minha concepção de inclusão socioeducacional. Sugeri, então,
que iria, se o grupo assim desejasse, pois não gostaria de estar ali por uma
imposição e sim por um desejo do grupo. Despedimo-nos acordando que o grupo
seria
consultado
acerca
dessa
possibilidade
para
que
pudéssemos
dar
prosseguimento à nossa participação.
Passados alguns dias, Kely veio me procurar dizendo que o grupo concordou à
unanimidade, apesar de algumas falas do tipo: “Uma coisa é a teoria, outra coisa é a
prática!” “Se puder, não quero aluno com deficiência em minha sala de aula!”
Ao longo de nossas conversas, identificamos, naquele ano, no CMEI, 17 alunos/as
caracterizados como crianças com necessidades especiais por deficiência. No
entanto, até pelo fato de esse espaço ser recém-inaugurado, ainda não havia uma
proposta inclusiva estruturada no Projeto Político-Pedagógico. De acordo com a
pedagoga, o que ela fazia até então era trabalhar essa temática com o grupo pela
via da sensibilização, pois percebia muita resistência velada por parte de algumas
pessoas do grupo. Assim sendo, definimos, como uma tática inicial, começar pela
escuta do grupo para que, em seguida, juntas, elaborássemos alguns movimentos
que favorecessem a nossa intenção acerca da inclusão socioeducacional daqueles
alunos/as.
Nosso primeiro encontro com o grupo teve como premissa o fato de estarmos nos
conhecendo e, principalmente, a possibilidade de estabelecermos, ou não, laços de
afinidades acerca da temática. Nesse aspecto, a discussão foi se delineado de
forma que todos/as pudessem se colocar em frente à temática para que, a partir de
então, delineássemos, coletivamente, um eixo norteador dos encontros seguintes.
40
Nesse sentido, após me apresentar, tentei explicitar minha concepção acerca de
como se constitui o papel da academia nos processos de formação de professores,
não me limitando a apresentar um receituário, mas buscando contribuir para uma
autoformação em serviço, numa perspectiva reflexiva e crítica na e sobre a ação
(SCHÖN, apud JESUS, 2002). Assim sendo, o grupo definiu que discutiríamos num
segundo momento, acerca da síndrome de Down e do autismo e os processos de
inclusão/exclusão que perpassam as paisagens escolares.
O segundo e último encontro desse ano ocorreu um mês após o primeiro encontro
no qual pude conversar um pouco com o grupo de professores sobre o que se
constituía a síndrome de Down e as possibilidades pedagógicas de inclusão para
essas crianças.
Nesse momento, foi possível perceber o quanto a inclusão se apresentava para
algumas professoras como um desafio intransponível, seja por falta de
conhecimento específico emergindo em falas do tipo “[...] Essas crianças aprendem
mesmo?”, seja pela dificuldade de algumas em lidar com a diversidade social, como
quando uma professora se referiu à presença de uma criança caracterizada como
autista em sua sala: “Não sou contra, mas, não sei lidar com estas crianças, pois sou
muito afetuosa e por mais afeto que expressava para meu aluno ele não me
respondia!”.
A meu ver, essas falas remetiam a duas situações: se, por um lado, elas me
chocavam em seu conteúdo, eu também sentia que o grupo estava depositando em
mim uma confiança tal, que lhe permitia se abrir sem nenhum tipo de autocensura,
fato de suma importância, ao se pensar sobre a construção coletiva de uma
proposta instituinte de inclusão.
Em paralelo a esses encontros, fui convidada pela professora de Priscila a ir à sua
turma para realizar algumas atividades motoras de caráter lúdico, tendo como foco
deste estudo a aproximação da família com a escola. Confesso que não sabia se ali
estava como mãe ou como pesquisadora, talvez pelas duas condições. Na verdade,
o que percebi, naquela situação, era como se a professora estivesse me “colocando
em xeque” afinal, se estava ali para falar sobre essa questão, era preciso de fato
41
apresentar condições que legitimassem tal lugar, então, nada melhor que vivenciar
uma situação real de práxis nesse contexto.
Inicialmente, fiquei insegura em frente ao desafio, todavia “mergulhei de cabeça”
nesse mar desconhecido e confesso que não esperava que tudo desse tão certo. O
meu encontro com Priscila foi tão significativo que até a professora ficou surpresa.
O que fiz? Nada de especial, apenas a acolhi, deixando-a me conhecer em sua
curiosidade, de forma que Priscila me cheirou, me lambeu, sentou em meu colo,
correu de mim. Enfim, tentei mostrar a ela que a considerava como um sujeito
daquele grupo, cuja curiosidade acerca de mim era um fato e, a meu ver, isso fez a
diferença.
A partir daquele momento, percebi que havia estabelecido uma relação de confiança
entre mim e a professora de Priscila. Isso era fundamental neste estudo, pois não
gostaria que ela me aceitasse de forma pacífica, mas que realmente desejasse a
minha presença ao seu lado.
Entretanto, por motivos diversos tais como; as delimitações prévias de uma agenda
de formação continuada em contexto, cujas datas de encontros não batiam com
minha disponibilidade de tempo, não foi possível, naquele ano, dar prosseguimento
aos encontros com o grupo e nem ao trabalho específico com a professora de
Priscila, limitando-me a conversar sobre ela nos momentos informais, quando ia à
escola na condição de mãe.
O estudo só foi retomado no ano seguinte, mas com outro formato, pois Priscila
havia mudado de turno e, em virtude do meu trabalho pessoal, não poderia
acompanhá-la nessa nova turma. No entanto havia surgido um fato novo
significativamente relevante para a continuidade da pesquisa, que foi a presença,
em duas turmas distintas, de crianças com cinco anos de idade, aproximadamente,
ali caracterizadas como autistas, sendo que, uma das professoras dessas crianças,
era Joana a professora de Priscila no ano anterior.
42
Assim nos organizamos, inicialmente, de forma que eu, Kely, as professoras
envolvidas e suas respectivas estagiárias encontrássemos, coletivamente, um dia
por semana para realizarmos uma formação continuada em contexto, pela via de
leituras, discussões e planejamentos acerca dos contextos vividos, bem como
acompanhava, individualmente, cada criança uma vez na semana, em suas
respectivas salas de aula, a fim de produzirmos, coletivamente, um corpus de
conhecimento que contribuísse para a inclusão social das crianças envolvidas, com
vistas a potencializar aquele grupo no que tange aos processos de inclusão
socioeducacional de pessoas com nee.
A partir desses movimentos, estruturamos, coletivamente, algumas demandas
no/com o grupo, cujo delineamento será explicitado a seguir. Essas inquietações
produziram-se em virtude de acreditarmos que, apesar dos avanços legais
alcançados, no que se refere ao processo de inclusão socioeducacional dessas
pessoas, tal perspectiva não acontece de fato. Os motivos que me levaram a tal
afirmativa referem-se primordialmente ao entendimento de que a presença desses
alunos nas paisagens escolares promove movimentos múltiplos e contraditórios nas
pessoas que as vêem como estrangeiras nesse contexto. Já nos diz Caetano Veloso
(BUSCA LETRAS, acesso em 3 fev. 2008): “[...] Narciso acha feio o que não é
espelho”.
1.3 INTENÇÕES DESSE MERGULHO
Para efetuar, inicialmente, este mergulho, guiei-me em correntes cujas marés se
movimentaram em vários sentidos, de acordo com os fluxos que iam,
cotidianamente, atravessando a paisagem num dado instante. Logo, as rotas abaixo
delineadas não se apresentavam em ordem hierarquicamente organizada, muito
menos numa lógica organizacional, em seqüência, em que uma rota se completa na
outra.
Elas
se
apresentavam
simplesmente
como
estratégias
de
bordo
aprioristicamente delimitadas, como movimentos disparadores de vários outros
mergulhos, que foram ora seguidos, ora modificados com base nos movimentos
engendrados na/com paisagem investigada.
43
Assim sendo, foi intenção deste estudo contextualizar e analisar as relações que
permearam a paisagem investigada, cartografando seus possíveis engendramentos
com os processos inclusivos de ensino que ali se agenciavam.
Busquei, também, entender os processos de subjetivação ali instituídos, tendo como
premissa: o lugar ocupado pela educação/educação inclusiva em suas respectivas
concepções de mundo.
Outro fluxo por mim seguido, e tão significativo quanto os anteriores, referiu-se ao
fato de possibilitar um retorno mais efetivo em relação ao objeto de estudo, no
sentido de potencializar dispositivos pedagógicos inclusivos, considerando os
processos de subjetivação que ali se forjaram.
O motivo para tal expectativa fundamentou-se em minha experiência na docência
em Estágio Supervisionado que me possibilitou perceber o quanto a escola se
encontra incomodada com alguns pesquisadores que utilizam seus saberes/fazeres
como uma via de mão única, sem assumir de fato a responsabilidade social e a
postura ética que pressupõe uma pesquisa, principalmente no âmbito educacional.
Como diria Brandão (2002, p. 112 grifo nosso):
Parece-me inquestionável que, pelo menos por duas vias, a academia
desempenha (ou deveria desempenhar) o seu papel na construção da
escola pública: pela formação de quadros profissionais para a escola e pela
produção de conhecimentos sobre a escola, a educação (socialização) e os
fatores que interagem com elas.
Assim, apesar de não ter sido intenção limitar este mergulho, até porque estaria
caindo numa contradição teórica de que não há debate acerca da complexidade,
capaz de sustentar tal defesa, não gostaria de perder de vista o fato de que, como
pesquisadora, é preciso assumir a responsabilidade em relação ao contexto
investigado. Ou seja, a contrapartida do pesquisador, nesse momento, como diria
Barbier (2002, p. 19), significa organizar-se no sentido de uma ação autônoma de
múltiplas funções, uma ação não só pedagógica, não só política, mas também
existencial, ao encontro de um cidadão “[...] preocupado em organizar a existência
coletiva”.
44
Outro movimento ocorreu no sentido de fomentar a formação continuada em
contexto, com vistas a pensarmos coletivamente possibilidades pedagógicas
inclusivas considerando os sujeitos envolvidos na/pela pesquisa.
No intuito de potencializar as produções ali instituídas, estimulei, também, a
elaboração coletiva de um relato de experiência que discorreu sobre os avanços e
desafios que atravessaram as práticas pedagógicas inclusivas ali experenciadas,
cujo texto, em sua íntegra, se encontra no anexo A.
Concordo com Lapassade (2005), quando afirma que o fazer coletivo é um
interessante caminho para a valorização dialética de uma ação informada e
implicada por sujeito e pesquisadores.
1.4 DISPOSITIVOS INICIAIS
A opção pela cartografia, neste estudo, se deu numa busca incessante por conhecer
os processos que se engendram na/pela paisagem investigada como inclusivos, a
fim de captar as múltiplas “[...] formas de viver que ali se forjam” (BAPTISTA, 2005,
p. 35), com vistas a aprender sobre a coexistência de processos que alteram
incessantemente o curso das práticas educacionais, no sentido da potencialização
de seus habitantes, em prol de pressupostos de liberdade cuja estética da existência
preconize a diversidade humana. Como afirma Kastrup (2007, p.15),
De saída, a idéia de desenvolver o método cartográfico para a utilização em
pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de
definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. Não se busca
estabelecer um caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre um
método ad hoc. Todavia, sua construção caso a caso não impede que se
procure estabelecer algumas pistas que têm em vista descrever, discutir e,
sobretudo, coletivizar a experiência do cartógrafo.
Para tanto, optei por um percurso analítico cuja dinamicidade alerta para os riscos
que uma aproximação previamente delimitada pode oferecer, na medida em que o
fluxo e a circularidade das produções de vida nos tornam construtos/construtores de
uma trama originada em zonas fronteiriças, cujos entrelaçamentos são tecidos por
fios tanto de rupturas quanto de estabilidades (BAPTISTA, 2005).
45
Em face da complexidade que permeou esta paisagem, busquei captar os
micromacromovimentos pelos quais os sujeitos estabelecidos na/pela pesquisa
interagiram socialmente, seus acidentes e mutações, considerando as múltiplas
lógicas recursivas e imprevisíveis de produção de desejos, visíveis e/ou invisíveis.
Processos estes, cujos agenciamentos dos corpos e os movimentos de intensidade
produziram múltiplas criações de sentido num devir constante. Para tanto, tentei
evitar a ocorrência de colisões e/ou um aumento exagerado nas marés, que me
impedissem de transitar entrelugares que habitavam essa paisagem, sempre no
sentido do acompanhamento e da valorização de suas mutações, pois:
A cartografia – diferentemente do mapa, representação de um todo estético
– é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os
movimentos de transformação das paisagens.
Paisagens psicossociais [...] acompanham e se fazem ao mesmo tempo
que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a
formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se
obsoletos.
Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem,
dele espera-se basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de
seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe
parecem elementos possíveis para a composição das cartografias que se
fazem necessárias (ROLNIK, 1987, p. 15-16).
Assim, pautei minha atenção no movimento colaborativo cuja premissa constante de
aprendizado concentrado e aberto buscou rastrear em cada história que ali emergia
a sua contramemória, tendo como eixo desses processos o conhecimento sobre as
múltiplas e polifônicas produções que ali se instituíam, seus efeitos nos processos
de subjetivação engendrados, os equipamentos produzidos como inclusivos no/pelo
contexto e também o porquê dessa eleição.
Enfim, privilegiei, neste rastreio, tudo que me foi possível para pousar de forma
atenta às possibilidades de disparar dispositivos que engendrassem outrasnovas
práticas ao encontro de uma nova estética que favorecesse os processos inclusivos
que ali pulsavam. Todavia, retomava sempre Kastrup (2007, p.18), ao alertar para a
imprevisibilidade que pressupõem esses processos:
Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido,
ele surgirá de modo mais ou menos imprevisível, sem que saibamos bem
de onde. [...] o importante é a localização de pistas, de signos de
processualidades. Rastrear é também acompanhar mudanças de posição,
46
de velocidade, de aceleração e de ritmo [...]. Trata-se aí de uma atitude de
concentração pelo problema e no problema.
Para tanto, lancei mão, inicialmente, da produção de um diário de bordo que me
favoreceu visualizar outros espaçoslugares do relevo, olhando-os incessantemente e
de forma sensível, para capturar o que não conhecia, mas que já se encontrava ali,
ou seja, as mudanças que forjam o seu “fazer-se cotidiano”, de maneira que os
envolvidos nesse processo pudessem constantemente "[...] construir sua própria
trajetória, sempre experimental, sempre aventureira" (BAREMBLITT, 1998, p. 59).
Assim, meu empenho principal residiu, então, na captação da expressão, concebida
aqui como linguagem que faz irromper as tensões e os conflitos presentes nas
paisagens escolares, num desafio permanente de criação/recriação de sentidos
imbricados em pressupostos éticos, estéticos e políticos, cujas pistas vislumbradas
me impulsionassem para novos oceanos, onde os imperativos de liberdade, de
justiça e de paz fossem uma premissa.
Apoiei-me também nas observações, com vistas a captar os significados dos
acontecimentos que insinuam as vidas dos que ali habitam em relação,
principalmente, aos processos hegemônicos de sujeição constantemente forjados
em movimentos em que as relações de saber/poder se fazem presentes,
privilegiando, em minhas lentes, todas as possibilidades de movimentos que
atravessaram os processos instituintes/instituídos como inclusivos, seja no contexto
real dos ambientes educacionais, seja em situações informais nas quais as
condições de não-vigilância me permitiram compreender melhor acerca dos
saberes/fazeres possíveis/impossíveis.
Outro equipamento por mim utilizado foi a entrevista semi-estruturada, apesar de
reconhecer a complexidade desse instrumento, na medida em que entrevistadores e
entrevistados se encontram numa intrincada “arena de significados”, cujos
elementos discursivos são forjados com base no contexto, na situação e na escuta
que caracterizam o momento da entrevista (SILVEIRA, 2002).
Vislumbrei, também, respeitar o tempo individual/coletivo dos envolvidos para a
aproximação cartográfica nos processos de toque e de pouso, já que, “O toque pode
47
levar tempo para acontecer e pode ter diferentes graus de intensidades. [...] possui
múltiplas entradas e não segue um caminho unidirecional para chegar a um fim
determinado” (KASTRUP, 2007, p.19).
Assim sendo, tentei, num movimento constante e sensível de aproximação,
ampliação e, também, distanciamento de um zoom, entrevistar todas as pessoas
envolvidas neste estudo, em especial as responsáveis pelos alunos foco, bem como
as professoras das turmas investigadas, no sentido de aprofundar conhecimentos
acerca da relação entre a história delas e seu envolvimento com os múltiplos
processos de construção subjetiva desses alunos.
Nesse sentido, estava atenta para à escuta sobre mim e sobre os outros, num
processo contínuo de análise, considerando a complexidade das relações sociais e
tomando a vida dos atores que habitam as paisagens como uma premissa. Como
diria Morin (apud BARBIER, 2002, p. 89), ao contextualizar a complexidade que
permeia o ser/estar pesquisador coletivo:
Ser sujeito é ser autônomo, ao mesmo tempo que depende. É ser alguém
provisório, vacilante, inseguro, é ser quase tudo para si e quase nada para
o universo. Desse modo a noção de autonomia emerge do bojo mesmo de
um estado de dependência.
A complexidade aceita a incerteza, o imprevisível, o não-saber e a
contradição. Ela reconhece a solidariedade de tudo que está ligado.
Dessa forma, é primordial que o pesquisador reconheça sua implicação “implexa”
(JEAN-LUIS LE GRAND, apud BARBIER, 2002), isto é, se reconheça presente com
todo o seu ser emocional, sensitivo, axiológico, promovendo a tríplice escuta-ação
(científica, filosófica e mitopoética),
[...] nada se pode conhecer do que nos interessa (o mundo afetivo) sem que
sejamos parte integrante, ‘actantes’ na pesquisa, sem que estejamos
verdadeiramente envolvidos pessoalmente pela experiência, na integralidade
de nossa vida emocional, sensorial, imaginativa, racional (BARBIER, 2002, p.
70).
Outra estratégia elencada, e bastante complexa de se engendrar no/pelo/com o
contexto, foi estimular a formação continuada em contexto, no sentido das
demandas teórico-metodológicas emersa no/pelo/com o grupo de professoras, em
relação ao debate acerca da inclusão socioeducacional de alunos caracterizados
como pessoas com nee/autismo, com vistas a oferecer subsídios teórico-conceituais
48
que possibilitem instituir coletivamente propostas pedagógicas de caráter inclusivo
atreladas a pressupostos éticos, estéticos e políticos.
A meu ver, esse movimento, mais do que propiciar um melhor entendimento acerca
de algumas questões conceituais que se entrelaçam nos processos que ali se
instituíam sobre a inclusão de crianças ditas autistas, permite-nos, principalmente,
uma maior aproximação com as protagonistas envolvidas, pois, ao possibilitar uma
reflexão colaborativa em relação aos desafios cotidianos que lhes impõem os
processos educativos inclusivos, elas se sentiam mais confiantes para compreender
a perspectiva da diversidade humana numa sociedade plural, em que a análise
coletiva de sujeitos aprendentes é uma premissa para a instituição de novos
saberes (JESUS, 2006).
Para
além
dessas
questões,
essa
estratégia
facilitou
também
outras
movimentações, na medida em que me possibilitou, ao longo do trabalho, um
melhor conhecimento acerca dos sujeitos singulares/coletivos, principalmente a mim
como pesquisadora, dadas as condições reais de me fazer conhecer ao grupo, em
especial no que tange ao nosso entendimento sobre o complexo e desafiador
processo de inclusão socioeducacional.
Nesse aspecto, gostaria de problematizar o quanto me é desafiador ser/estar
pesquisador colaborativo numa sociedade permeada por valores hegemônicos
ditatoriais, pois, apesar de já ter apontado o fato de as escolas já não suportarem
mais tanta invasão de pesquisadores/as apontando do alto de sua arrogância o
certo/errado em relação às práticas educacionais, percebi que essa perspectiva
despertou, inicialmente, nos envolvidos com este estudo, uma incerteza em relação
à minha presença, em virtude de eu visar à potencialização das ações inclusivas
pela via do coletivo, em detrimento de ações individualmente diretivas.
Para finalizar, tentei buscar todos os equipamentos possíveis ao meu alcance, a fim
de obter pistas que me levassem a compreender como se engendravam, naquela
paisagem, as práticas educativas instituintes/instituídas como inclusivas, porquanto
minha pretensão foi de produzir dados que possibilitassem uma atualização
singular/coletiva acerca das múltiplas e polifônicas formas de pensar a diversidade
49
humana e sua relação com os movimentos engendrados no espaço escolar onde o
espírito da sensibilidade e da criação se fazem presentes (ARDOÍNO, apud
BARBIER, 2002).
A seguir, apresentarei alguns recortes do que me foi possível captar acerca do
cotidiano da/na/com/sobre a paisagem investigada, no que tange à constituição da
subjetividade
humana:
seus
encontros
e
desencontros
com/na
paisagem
investigada, as práticas pedagógicas que brilham no chão das escolas, capturando
fissuras potencializadoras dos processos de inclusão socioeducacional de duas
crianças autistas e, também, como as políticas inclusivas instituídas forjaram fluxos
instituintes.
Em cada um desses recortes, tive como premissa captar os fluxos, as histórias, as
contra-histórias, os meus erros/acertos, enfim, apresentarei o que me foi possível
produzir no momento do mergulho, apesar de reconhecer os limites atravessadores
à minha condição humana, contraditoriamente opressora, faltosa, ou seja, complexa.
Afinal, nesses caminhos em que me aventurei, tenho a clareza de que se trata
apenas de movimentos de tentativas de vida, cujos fluxos podem me levar a
diversos espaços de interseção em que só temos como certeza a incerteza que nos
guia. Sendo assim,
Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei....
[...] Penso que cumprir a vida seja simplesmente
compreender a marcha e tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada
eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou,
estrada eu sou
Todo mundo ama a um dia, todo mundo chora
Um dia a gente chega, no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz
(SATER; TEIXEIRA, 2001)
50
2 AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS QUE BRILHAM NO CHÃO DAS
ESCOLAS INSTITUINDO PISTAS POTENCIALIZADORAS DA
INCLUSÃO
(LEONARDO DA VINCI, 1503-1507)
[...] é necessário partir da ‘escola que somos’, com suas
memórias de resistências, com as narrações dos saberes e
fazeres dos seus trabalhadores e estudantes, para fabricar
cotidianamente processos de significação que lhes facultem
a legitimação de espaços sociais (LINHARES; HECKERT,
2005, p. 7)
51
Como forma de melhor situar este estudo, trarei, a seguir, o cotidiano da paisagem
investigada, tendo como foco o contexto organizacional, no que tange ao
entendimento produzido no/com grupo acerca da educação/educação inclusiva,
problematizando as ações inclusivas experenciadas (PINEL, 2000), com destaque
para os movimentos potencializadores, ou não, desses processos.
Busco, também, discutir as práticas pedagógicas presentes em sala de aula, bem
como algumas ações das principais protagonistas deste estudo, isto é, das
professoras, das estagiárias e da pedagoga, considerando, primordialmente, seus
fazeressaberes no que se refere à inclusão dos alunos foco.
Faz-se necessário reafirmar que este movimento vislumbrou a captura de todas as
formas de expressão inclusiva que ali eram possíveis de serem instituídas, sem
perder de vista o fato de que este olhar é, reconhecidamente, singular, cujo contexto
plural aponta diversas outras possibilidades de devir. Para ilustrar tal contexto,
apoiei-me na tela Monalisa pintada por Da Vinci (1503-1507), cuja expressão da
modelo permite a todos que a apreciam múltiplas interpretações, considerando as
diferentes percepções de quem a contempla.
2.1 OS ESTUDOS DO/COM/SOBRE O COTIDIANO NOS AJUDANDO A
DIALOGAR COM OS MOVIMENTOS PEDAGÓGICOS CAPTURADOS
Para sustentar tais considerações, tomarei como base os estudos nos/dos/com os
cotidianos, tendo como foco o debate acerca das múltiplas e polifônicas formas de
se tecer conhecimento, considerando as complexas e contraditórias dinâmicas que
são produzidas nos/pelos/com cotidianos (CERTEAU,1994) escolares, aqui
concebidas como espaços privilegiadores de produção de conhecimento, “[...] a
partir do rompimento de fronteiras disciplinares e da criação de redes de relações,
de comunicação, de conhecimento e de significações” (ALVES; GARCIA, 2008,
p.13).
Nesse movimento, gostaria de iniciar esta reflexão, chamando a atenção para uma
fala de Ferraço (2007), quando nos alerta para entender que os conflitos que pulsam
52
na/da escola emergem de uma crise socialmente paradigmática, cujos valores,
éticos, políticos, institucionais, econômicos, entre outros, que ali se instituem, não
dão conta dos movimentos da sociedade vigente.
Outro ponto em que também concordo com Ferraço (2007) refere-se à possibilidade
das produções acadêmico-científicas, ao suscitarem tais reflexões, privilegiarem a
escuta dos protagonistas dessas cenas para que, a partir de então, junto com eles,
se instituam outranova forma de gestão educacional cotidiana, estabelecendo
pontes entre o conhecimento sistematizado e a realidade de cada paisagem.
Nesse aspecto, vislumbro, numa expressão tecida por Linhares e Heckert (2005),
denominada experiência instituinte, um interessante caminho a percorrer, visto que
essa expressão representa uma ação política historicamente produzida, no sentido
de uma outra educação e cultura, de forma a considerar a pluralidade ético-política
que permeia nossa sociedade, em seus aspectos educacionais, escolares, políticos,
econômicos, sociais e culturais.
Acredito que essas experiências podem ajudar a ressignificar algumas paisagens
escolares em prol de uma perspectiva educacional atrelada a pressupostos que se
pretendam inclusivos, pelo compromisso que elas assumem no sentido de se
constituírem em pontes representadas por tendências de interligação entre a
universidade, a escola básica e os movimentos político-sociais, ético-estéticos e
teóricos e também fortalecendo os protagonismos docentes.
No entanto, Linhares e Heckert (2005) nos recomendam não colocar essas
experiências em redomas, separando-as do que já se encontra instituído, visto que
elas se movimentam num constante devir, ora em litígios, ora incorporadas ao que
se está processando no contexto.
Por sua vez, as experiências instituintes estão sempre em ‘devir’, pisando
em um terreno movediço, sem certezas e comprovações da história, mas
infiltrando-se nas tramas instituídas, para aproveitar frestas e, assim,
afirmar a outridade. Afinal, não podemos esquecer que, a despeito de
profetas agourentos, a escola pode ser outra, como outra pode ser a
sociedade, e as próprias políticas e racionalidades que nos organizam
(LINHARES; HECKERT, 2005, p. 4).
53
Assim, diante da realidade complexa que habita as paisagens escolares, é preciso
dar visibilidade às múltiplas práticas educacionais que ali se instituem, a fim de
produzirmos coletivamente movimentos que fortaleçam ações de investimento na
liberdade e na criação, com vistas a superar algumas perspectivas negativistas que,
em detrimento das modificações ocorridas em nossa sociedade, ao longo dos
tempos, vêm sofrendo mudanças muitas vezes direcionadas a uma cultura de guerra
cujo estilo bélico e perverso nos pulveriza cada vez mais, já que,
O medo, a desagregação, a violência, a exacerbação de particularismos, a
fragmentação dos saberes, os avanços tecnológicos sob o comando de um
capitalismo tardio e as agregações ao meio ambiente vêm – em ritmo
acelerado – modificando a paisagem vital (LINHARES, 2002a, p. 103).
No entanto, isso se torna desafiador quando, de forma leviana e equivocada,
deslocamos os focos de discussão à procura de um “culpado” para o que está posto
à realidade escolar, sem que se promova uma análise mais rigorosa acerca do
contexto micromacropolítico que perpassa essas discussões.
Em geral, encontramos sempre, na figura do professor, o artista ideal para exercer
esse papel, ou seja, para ser o vilão dessas histórias, principalmente quando nos
deparamos com profissionais massacrados por um capitalismo instalado, que sabota
o nosso direito de sonhar profissionalidade com mais dignidade em detrimento de
jornadas de trabalhos excessivas, apesar de seus vencimentos nem sempre serem
suficientes para sobreviverem, quanto mais para se tornarem um professor/reflexivo
de sua própria prática. Como nos diria Bueno (2006, informação verbal): “Como
podemos cobrar de alguém que trabalha muitas vezes os três turnos que sejam
reflexivos de sua própria prática! Em que horário? Ora bolas, o que eles desejam é
poder dormir em paz!”.
Para Linhares e Garcia (2001), é possível que este olhar culpabilizador, que
atravessou/a as práticas educativas vigentes, tenha contribuído para transformar os
contextos escolares, em paisagens que (re)afirmam o exercício do controle e da
punição exacerbando personalidades autoritárias e controladoras, responsáveis pelo
desânimo que acomete os protagonistas que habitam essas paisagens.
Assim, ao pretendermos captar movimentos pedagógicos inclusivos num contexto
escolar, precisamos, primordialmente, dialogar não só com os diversos campos
54
teórico-epistemológicos que nos ajudam a compreender este movimento em
constante ebulição, mas, também e principalmente, com aqueles que atuam no/em
contexto. Só assim, poderemos, realmente, conhecer de onde partem os seus
saberesfazeres, suas reais condições de prática situada, suas referências e
concepções acerca de suas produções.
Devemos ter sempre em mente o fato de que a escola é um espaço constituído para
produzir, junto com os seus habitantes, a sistematização das múltiplas formas
culturais de saber, considerando o fato de que esse espaço é apenas um no qual a
cultura letrada está inserida, mas não é o único existente, apesar da sua indiscutível
relevância.
Os estudos de Vilar (2003) vão ao encontro dessa perspectiva, quando, ao
investigar os saberes subjacentes ao saberfazerdizer de professores da rede
estadual de ensino do Rio Grande do Norte, coloca em cena a necessidade de
pesquisa da/sobre a prática como instância produtora de saberes tanto no cotidiano
quanto na programação da formação docente.
Outro estudo realizado nesse sentido foi o de Costa (2004) que, ao desenvolver sua
dissertação pela via da pesquisa do cotidiano escolar, buscou discutir os caminhos
por ela percorridos em sua prática pedagógica com os alunos classificados pela
escola como “incapazes”. Suas considerações finais apontam que, ao assumir uma
postura investigativa, ela, pesquisadora/educadora, teve maiores condições de
ajudar seus alunos a acreditar em si mesmos, bem como de contribuir para que a
escola olhasse para as possibilidades de aprendizagem dos que se encontram à
margem dos processos pedagógicos, especialmente dos alunos das classes
populares.
Para tanto, reafirmo o pensamento de Linhares (2002a, p. 118), no sentido de que,
A busca de alternativas para a educação e, mais particularmente, para as
instituições de ensino e de formação de professores nos levou a
compreender o quanto dependemos de nossa capacidade de interlocução
com os mais variados campos de conhecimentos para projetar os
processos de aprendizagem e ensino escolar [...].
55
Em meu entender, a partir desses movimentos, poderemos iniciar uma outranova
lógica de vida, em que o respeito e o reconhecimento à diversidade humana nos
sejam uma premissa, apesar de reconhecer os desafios que essa perspectiva nos
impõe, no que diz respeito a “[...] nos aproximar não só uns dos outros, mas nos
apropriarmos das múltiplas conexões com a vida, decifrando-as sem perder o
sentido da solidariedade” (LINHARES, 1999, p. 11).
Na tentativa de estabelecer pontes entre as contribuições teórico/epistemológicas
sistematizadas neste estudo e os movimentos captados acerca dos processos
pedagógicos inclusivos, apresentarei, a seguir, alguns dos principais protagonistas
deste estudo, dando visibilidade a seus fazeressaberes no contexto da sala de aula.
Na continuidade, destacarei o processo de construção coletivo de um relato de
experiência por compreender tal movimento com uma iniciativa instituinte que
favoreceu os processos de inclusão socioeducacional ali instituídos.
2.1.1 Ampliando o zoom: a percepção produzida acerca dos movimentos
inclusivos capturados
Para iniciar tais reflexões, remeto-me a Oliveira (2007), ao dissertar sobre as
armadilhas que nos impõe a tentação de utilizarmos os dados produzidos na/pela
pesquisa como verdades absolutas nos moldes hegemônicos presentes na
Modernidade. Segundo a autora, existe, no cotidiano das escolas, para além das
práticas cristalizantes já tão evidenciadas, saberesfazeres e emoções que não
apenas reproduzem movimentos, mas também os ressignificam, na medida em que
são operados cotidianamente e, nesse sentido, é preciso muito cuidado ao realizar
tais recortes.
Corroborando essa questão, Ferraço (2007) nos provoca a refletir sobre os desafios
presentes nas diversas tentativas da organização dos dados produzidos
na/pela/com o cotidiano, na medida em que esse movimento sempre estará atrelado
à possibilidade de engessamento de um movimento que é contínuo, ao nos
questionar:
Qual a legitimidade no uso de estruturas para falar de algo que é efêmero,
incontrolável, caótico e imprevisível? Qual o sentido em extrair conceitos,
56
atribuir classificações, estabelecer relações hierárquicas, propor estruturas
conceituais ao permanente devir cotidiano? (FERRAÇO, 2007, p. 77).
Na tentativa de adequar nossas análises às metodologias academicamente
legitimadas, pagamos um preço alto que, freqüentemente, repercute negativamente
em nossas produções acadêmico-científicas. Em frente a essa realidade, Ferraço
(2007, p.77), nos instiga a privilegiar “[...] pensar o cotidiano como redes de
fazeressaberes tecidas pelos sujeitos cotidianos”, cuja delimitação de sujeito, ou
melhor, protagonista desse enredo, envolve a todos que, de uma forma e/ou de
outra, teceram nós, promovendo movimento nesse cotidiano.
Outra possibilidade que o autor nos aponta se remete ao fato de que, ao se delimitar
e narrar alguns trechos por nós capturados nas/pela investigação, estamos muitas
vezes, em busca de nós mesmos, seja na condição de alunos, seja na de
professores
que
somosfomos,
isto
é,
retornamos
a
lugares
que
nunca
abandonamos, numa tentativa de nos analisar, seja numa perspectiva Freudlacanaina, seja também na perspectiva foucaultiana de narrar sobre si, sempre a
partir de nossa interação com o outro.
Logo, precisamos estar vigilantes para tais questões, visto que, possivelmente, pela
nossa condição humana de sujeito faltoso, em algum momento das reflexões
apresentadas a seguir, poderemos sucumbir a essa tentação que não só interfere,
mas também prejudica nossa compreensão acerca dos movimentos que lá
emergiram.
Para tanto, devemos ter, como premissa, o trabalho coletivo, reconhecendo, nos
possíveis modos de perceber o mundo, suas convicções, fazeres saberes e
“sentires” diversos daqueles que formam, a cada momento, as redes de
subjetividades em que somos produto/produtor cotidianamente. O que evidenciarei a
seguir serão apenas,
[...] possíveis olhares/escutas/leituras/sentimentos a respeito da vida
cotidiana das escolas pesquisadas, na busca por viabilizar, por meio do
estímulo imagético, a emergência de realidades vivenciadas, ainda não
narradas, de uma percepção e interpretação melhor da complexidade
desses cotidianos e das possibilidades de nele encontrar algumas das
tantas existências tornadas invisíveis pelo ‘olhar’ universalizante e
generalizante da modernidade (OLIVEIRA, 2007, p. 61).
57
Direcionando o foco para o contexto das protagonistas que ali habitavam, reafirmo o
fato de que as ações humanas nem sempre se movimentam numa perspectiva
linear e progressiva. Ao encontro dessa fala, resgato Morin (1995), quando afirma
que
essas
ações
apresentam
diversas
interfaces,
móveis,
contraditórias,
autobiográficas (todo conhecimento é autoconhecimento) e autopoiéticas (autoorganização contínua e não linear), cujas rupturas, continuidade/descontinuidade e
dinamicidade atravessam os processos inclusivos que se instituem num constante
devir.
[...] todos os indivíduos, apresentem eles alguma deficiência ou não,
expõem emoções e pensamentos que interagem com outras emoções e
outros
pensamentos,
quando
inseridos
num
grupo
social.
Conseqüentemente, esse grupo social (seja ele familiar, seja comunitário,
seja qualquer outro) também se emociona, também pensa de forma
singular e coletiva, construindo assim as suas redes sociais (SILVA, 2003,
p. 50).
Nesse sentido, ao organizar os dados produzidos na/pela pesquisa, optei por trazer,
primeiramente, alguns dos principais protagonistas deste mergulho, com suas
respectivas realizaçõespensamentosfalas situadas em contextos humanamente
complexos e encarnados (NAJMANOVICH, 2001), a fim de compreendermos
melhor de que ponto essas teias tecem seus nós. Na continuidade, problematizarei
algumas práticas cotidianas e suas implicações para os movimentos instituintes que
ali pulsavam.
Gostaria de destacar que os elementos narrados foram constituídos não só pela
percepção desta pesquisadora, a partir dos diários de bordo, mas também por
algumas imagens14 captadas ao longo deste mergulho e, ainda, por uma narrativa
pessoal elaborada pelas envolvidas neste estudo, quando lhes solicitei que fizessem
um breve relato sobre o que acreditavam ser significativo dizer acerca de si, tendo
como eixo norteador o processo de inclusão educacional de crianças com nee.
a) A sala de aula da professora Joana e seus movimentos inclusivos possiveis
O primeiro contexto apresentado será a sala de aula da professora Joana, regente
de sala da Turma B do Grupo 5. Esta, atuava naquele CMEI desde de sua
inauguração e, com relação à Educação Infantil, acumulava 16 anos de experiência.
14
Todas as imagens apresentam Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE)
58
Sua participação neste estudo se deu em virtude de ela ter como aluno regular
Miguel, uma criança de cinco anos de idade, ali caracterizada como autista, cuja
apresentação mais detalhada se dará mais adiante.
Minha relação com Joana iniciou-se no ano anterior, quando ela, então professora
de minha filha, trocava algumas palavras comigo, ao longo das reuniões de pais
ocorridas nesse ano, acerca do desafio que lhe apresentava a inclusão da aluna
Priscila. Confesso que, ao saber, pela pedagoga Kely, que ela havia solicitado
minha colaboração como pesquisadora, não imaginava a dimensão da experiência
vivida, pois, conforme já discutido, não existe um modelo preestabelecido de
ser/estar pesquisador colaborativo. Logo, fui compreendendo, ao longo do
mergulho, o quanto é desafiador pensar os processos educativos numa perspectiva
autopoética, como diria Meirieu (2002, p. 32):
Não digo que tudo isso tenha sido fácil. Não digo que não tenha enfrentado
um pouco de dificuldade [...] nem que não tenha me sentido mortificado(a)
muitas vezes, criticando-me por não ter sabido reagir [...]. Digo
simplesmente que compreendi um pouco melhor nessas situações [...] o
que ocorreu no ato educativo.
Joana era efetiva nesse CMEI, atuando com turmas do Grupo 5, cuja idade oscilava
em torno de quatro a seis anos, desde o início de seu funcionamento no ano de
2005. Ela sempre trabalhou com a Educação Infantil, com crianças em vias de
alfabetização. Perguntada pela escolha do segmento, ela disse ter uma maior
identificação com esta faixa etária.
Percebia
Joana
como
uma
pessoa
um
pouco
reservada
em
suas
falasaçõespensamentos, ficando mais a observar e refletir sobre tudo que ocorria ao
seu redor, do que a se expor. Ela jamais criticava o comportamento de alguém; se
não podia elogiar, preferia o silêncio à crítica.
Sua relação em sala de aula com as crianças era tranqüila, apesar de Joana
confidenciar-me saudades da turma do ano anterior em virtude da forma
comprometida com que os alunos lidavam com as questões do conhecimento. Em
meu entender, o grande desafio de Joana, e até mesmo da professora Ana, que
traremos a seguir, remete ao fato de que as crianças deste ano apresentam-se com
um grau de agitação um pouco além do que estamos acostumadas, o que
59
realmente nos é desafiador, quando pensamos numa realidade de 25 crianças para
uma professora, tendo o direito a uma estagiária, apenas, se tiver em sala alunos
com nee.
No que tange à presença do aluno Miguel em sala de aula, Joana apresentava-se,
inicialmente, receosa acerca de como lidar com ele, deixando-o bem à vontade em
sala de aula, isto é, não sistematizava uma proposta pedagógica que o envolvesse
com/nas questões de sala de aula e, nesse sentido, Miguel ficava muito pelos
cantinhos da sala repetindo sempre os mesmo jogos, todavia, com o passar do
tempo, ressignificamos essa condição, apesar dos desafios iniciais.
A seguir, narro um dos momentos iniciais em sala de aula, registrado no diário de
campo, que acredito ter sido delimitador, no que se refere à minha inserção no/com
o grupo,
Chego à escola juntamente com Miguel por volta das 13h15min. Ao chegar em sala,
encontro as crianças sentadas fazendo uma atividade de escrita. Dirijo-me à professora
perguntando se ela precisa de ajuda em relação ao grupo e, ela me pede que auxilie os
pequenos na atividade.
Confesso que fiquei incomodada com o fato de, na entrevista do dia anterior, a professora
ter confirmado minhas suposição de que: “[...] como as professoras não sabiam o que fazer
com as crianças autistas, acaba por deixá-las soltas na escola”. Neste sentido o fato de
Miguel chegar e ficar brincando livremente, sem nenhuma proposta, saindo e entrando em
sala quando bem desejava, indo, inclusive, para o pátio a brincar, enquanto as crianças
faziam atividade me incomodava!
Neste sentido, procuro a professora e converso com ela sugerindo que deveríamos ir
introduzindo, aos poucos, algumas rotinas à Miguel, a fim de que ele pudesse ir se
integrando, de fato, à escola, bem como deveríamos ir introduzindo aos poucos a noção de
referência e de autoridade na sala de aula em relação a ela e à sua estagiária Sandra.
Joana diz concordar com isto, pois, para ela se todos se encontram fazendo atividades na
mesa ele também deveria estar e, não solto no pátio.
Desço ao pátio na tentativa de trazê-lo para sala de aula com base no diálogo, no que não
obtemos (eu e Sandra/estagiária) sucesso. Assim, numa atitude meio kamicassi, tomo
Miguel no colo, brinco com ele simulando um avião, apesar dele não se mostrar muito
satisfeito.
Entro em sala com Miguel esbravejando, gritando e, para culminar, se joga no chão. Sandra
sai de perto; Joana não se aproxima e eu, também em dúvida acerca da minha atitude, tento
terminar o que comecei. Eis que, após inúmeras tentativas de conversar com Miguiel que
está aos prontos, falo com ela novamente da seguinte forma:
60
Eu − Miguel olha para mim, você quer descer? (puxo-o para meu colo e, ele se senta e para
de chorar)
Miguel − Quero!
Eu − Então vamos combinar como fazer isto tudo bem?
Miguel − Tudo bem!
Digo a Miguel que, antes de sair de sala, deve pedir a Joana e Sandra e que, quando elas o
chamassem para subir, ele deveria atendê-las.
Miguel vai até Sandra, que escuta tudo de longe, pede para descer e ela desce com ele.
Confesso que me senti aliviada com a situação, pois, se tudo desse errado, aí é que
perderia de vez a confiança tanto da professora quanto da estagiária.
Passado um tempo, eles sobem e a turma está realizando um desenho na folha. Miguel fica
brincando pela sala quando resolvemos trazê-lo à mesa (FOTO 1). Ele resiste um pouco,
mas resolve desenhar na folha. Como que por provocação e/ou investigação, começa a
desenhar de forma incisiva, riscando toda a mesa. Para não pressionar muito a professora e
a estagiária, fico a observar de longe Sandra dizer para ele não fazer aquilo, pois iria ter que
limpar a mesa. O que não se configurou. Miguel termina o desenho e vai, como todas as
crianças, brincar com os jogos.
Chega a hora do pátio. Todos arrumam os brinquedos e vão lavar as mãos para lanchar,
menos Miguel que, agora não quer descer, pois tem um caminhão-cegonha juntando carros
batidos fora do CEMEI e ele quer ficar a ver tudo pela janela, fascinado.
Toda a turma está no refeitório, menos Miguel que, quando desce, não lancha, indo direto
para o pátio. Converso com Joana que, “na minha esquizofrenia”, já demonstra estar
incomodada comigo. Digo a ela sobre a importância de se instituir uma relação de
autoridade com Miguel, no que Joana concorda afirmando que também acredita que ele
deveria ficar no momento do lanche no refeitório.
Chega o momento do pátio para todos onde, num calor infernal de 36º, todos soltam suas
energias ao longo de 40 minutos e, onde Miguel brinca só nos brinquedos, sem problemas.
Sua única obsessão é tentar ficar no telhado da casinha, coisa que, para mim, é um lugar
perigoso, mas que, naquela gritaria, até eu gostaria de subir.
Ao final do pátio, todos sobem para as salas, com exceção de Miguel e de Felipe. Joana
sobe, deixando-os para trás. Sandra consegue trazer Miguel, mas ele fica pouco tempo em
sala. Desço para ajudá-la, trago-o novamente e, quando chegamos à sala, ele não aceita
que Sandra calce seus sapatos. Ele tenta sair, eu o pego no colo, levando-o para a janela
onde fica observando os carros no caminhão-cegonha. Brinco com ele batendo minhas
mãos uma contra a outra dizendo que os carros baterão. De repente, Miguel bate suas
mãos e diz:
− Bateu imitando-me.
Digo a ele que iremos passear no dia seguinte e mostro, pela janela, um ônibus que irá nos
levar ao parque da Vale do Rio Doce, no que ele me diz:
− Eu quero passear!
Ficamos, então, na janela até sua irmã vir buscá-lo (22-2-2007).
61
Foto 1. Miguel em sala no inicio do ano
Tentando dialogar com esses fatos acima, acredito que, somente agora, ao narrar
essa experiência vivida com o grupo e, especialmente, a forma com interagi com
Joana, eu tenha tido possibilidades para entender o contexto que atravessou esse
encontro, bem como pude atentar para o que Kastrup (2007) nos alerta, ao afirmar
que o toque do cartógrafo pode ocorrer em diferentes tempos e intensidade.
Nesse sentido, apesar de não ter sido minha intenção, reconheço que esse
movimento produzido no intuito de dizer a Joana o quanto era possível
investir/apostar em Miguel e em todo o grupo talvez tenha suscitando sentimentos
que dificultaram minha inserção naquele contexto.
Uma outra questão foi que, somente no final deste estudo, me foi possível
compreender que a inserção do cartógrafo pode se dar por diversas entradas e que,
para isso, devemos compreender e reconhecer o quanto a psique humana institui
simbolicamente marcas inconscientes responsáveis por pulsões incontroláveis em
nossas ações (LECHTE, 2003)
Para tanto, trago uma narrativa feita por Joana acerca de si mesma, como forma de
contextualizar melhor a discussão acima:
62
Prezada Graça,
Em atendimento à sua solicitação segue breve relato sobre Eu, minha vida
e coisas mais!!!
Minha infância foi muito gratificante, pois vivia no interior de Afonso
Cláudio, onde nasci e morei por muitos anos, juntamente com minha
família. A escola onde estudei, ficava entre árvores e perto de um riacho.
Na hora do recreio, merendávamos embaixo das árvores e comíamos
frutas. Que saudade! Para chegar à escola, eu e meus irmãos
caminhávamos bastante, subíamos e descíamos morros, que pareciam
retas pequenas. As crianças não se cansam, são sonhadoras naturais,
tanto cá como lá. Éramos felizes!
a
No lugar em que morava somente havia ensino até a 4 série e quando
terminei esta série fiquei um bom tempo sem estudar. Depois meus pais
mudaram para cidadezinha mais próxima e, então, retomei os estudos.
a
Estava com 16 anos, quando iniciei a 5 série. Meu pai não permitia que eu
estudasse à noite. Desta forma, precisei enfrentar uma turma de crianças
de 10 e 11 anos. Que desafio! Minha cabeça era muito diferente das
crianças de minha sala. Foi nesse período que senti o peso da exclusão.
Logicamente, eu não conhecia a palavra para definir aquela situação, mas
hoje eu sei que fui bastante excluída. Todos queriam saber minha idade...
Curiosos! A vontade de desistir era constante, mas não desisti, por isso
hoje estou aqui. Yés !!!!!
Terminei o ensino fundamental e acabou a batalha, quando cheguei ao
magistério, já não havia mais diferença de idade, já que em minha turma
havia adultos e até uma amiga casada com filhos grandes. Depois veio a
faculdade, pós-graduação e tudo ficou tão natural e distante que parece
que não foi comigo que tudo isso aconteceu...
Hoje percebo como vivemos numa sociedade que exclui o idoso, o gordo, o
negro... Sem falar nos portadores de necessidades especiais que pelo
menos são vistos como os que precisam ser incluídos. Porém, as políticas
públicas os querem dentro da escola, mas a maioria das instituições não
têm condições de lhes proporcionar atendimentos necessários, pois falta
espaço adequado, pessoas que, realmente, se comprometam com o
trabalho e formação. Enfim, falta ação coletiva, em que pelo menos haja
compreensão e solidariedade.
Neste pensamento, tenho feito de minha prática uma luta diária para
vencer meus desafios enquanto professora de educação infantil num
contexto de inclusão. A falta de capacitação específica tenho combatido
com amor e dedicação incondicional. Sou educadora. Tenho um
compromisso comigo mesma e com a sociedade. Poderia ser melhor,
menos penoso se houvesse por parte dos poderes estabelecidos um pouco
mais de atenção para todos os envolvidos neste grande desafio, que é a
inclusão.
Seria muito bom, se houvesse menos discurso e mais ações práticas!
Professora Joana
Na busca de lerouvir as falas de Joana, gostaria de evidenciar o fato de ela ter
experimentado logo cedo a condição de inclusão/exclusão por não se enquadrar
numa condição “hegemonicamente” determinada como correta para pertencer a um
grupo (FOUCAULT, 1975). Em meu entender, talvez essa experiência tenha inserido
63
marcas inconscientes em Joana, tornando-a mais sensível ao debate que envolve a
inclusão social e a diversidade humana.
Nesse aspecto, Freud (1969) nos diria que nossas experiências de vida tatuam
marcas em nossa estrutura psíquica que levamos muito tempo para entender e,
quem sabe, ressignificar de forma potencializadora e não imobilizante.
Ainda para o autor, os processos psíquicos são regulados diretamente pelo prazer,
e os humanos, ao se verem diante de uma tensão desprazerosa que se acumula, na
tentativa de diminuir a tensão e evitar o desprazer vivido, desencadeiam processos
psíquicos cujo curso muitas vezes transita por territórios obscuros e inacessíveis à
vida psíquica:
[...] somos obrigados a admitir que existe na psique uma forte tendência ao
princípio de prazer, mas que certas outras forças ou circunstâncias se
opõem a essa tendência, de modo que o resultado final nem sempre poderá
corresponder à tendência ao prazer (FREUD, 2006, p. 137).
Tentando estabelecer uma relação com a forma de serestar de Joana, reconheço
que, provavelmente, esses fatos por ela narrados possam ter contribuído para tornála uma pessoa mais reticente em relação ao diferente/estrangeiro. Entretanto,
gostaria de evidenciar que, apesar deste comportamento apresentado inicialmente,
isso não a impedia de assumir a sua responsabilidade didático-pedagógica naquela
paisagem, apesar da forma singular com que construía o seu processo de formação
e que confesso: mexeu com a minha arrogância acadêmico-científica.
Nesse sentido, conforme já dito, nossa convivência inicial foi desafiadora, pois,
apesar de nossa aproximação ter ocorrido anteriormente, percebia que, para Joana,
a minha presença em sala de aula era um incômodo. Conseqüentemente, com o
passar do tempo, também me sentia desconfortável quando ia à sua sala. A
sensação que tinha em era como se Joana desejasse evidenciar a minha condição
de estrangeiro (SKLIAR, 2002), isto é, uma visita que chegou, mas que não fazia
parte daquele contexto. Sentia-me tão angustiada que, muitas vezes, relutei em ir à
sala da professora Joana conforme os relatos que se seguem registrados no diário
de campo:
64
Em relação à Joana, percebo-a bastante distante de mim. É como se tentasse, de forma
educada, me ignorar. Na verdade, não sei se sou eu quem ela tenta ignorar ou se somos eu
e Miguel, pois a vejo bastante distante dele, mantendo uma respeitosa distância, como se
não suportasse lidar com o contexto desafiador que envolve a sua inclusão naquela turma
(10-4-2007).
Reconheço o fato de essa ser uma percepção singular produzida coletivamente,
pois, provavelmente, a minha forma de ser/estar também possa ter contribuído para
tal, afinal a minha subjetividade consciente/inconsciente ia ora ao encontro, ora de
encontro a outra subjetividade consciente/inconsciente ali presente.
Nesse contexto, gostaria de chamar a atenção para a possibilidade de refletirmos
acerca das múltiplas formas existentes de ser/estar pesquisador nos contextos
coletivos, já que, na medida em que saí de cena efetivamente, isto é, deixei de
freqüentar sistematicamente a sala da professora Joana a partir da segunda metade
do ano, a seu pedido, em reunião de avaliação semestral em que ela, alegando o
fato de minha presença em sua sala de aula desencadear nas outras crianças
tentativas de chamar a minha atenção e, conseqüentemente, agitar mais a turma,
percebi que nossa relação fluiu melhor, isto é, Joana passou a não esboçar
desconforto com a minha presença, bem como passamos a trocar idéias com mais
colaboração.
Confesso que ponderei, inicialmente, alegando que vir quinzenalmente à sala
poderia celebrar a minha condição de ser “estrangeira” ao grupo, todavia
compreendi que essa era uma forma sutil e delicada de Joana me dizer o quanto eu
a incomodava agindo daquela forma e, a partir de tudo que já discutimos
anteriormente, não poderíamos deixar de reconhecer.
Assim, a partir do momento em que sutilmente percebi o quanto as pessoas são
atravessadas por múltiplas e contraditórias identidades, por nós tecidas nas redes
de nossas inter-relações sociais, num processo contínuo e complexo no qual nos
encontramos “[...] imersas em, constituídas por e submetidas a essa malha e, a um
só tempo, ativamente [...]” (FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004, p. 23), as coisas
começaram a se desenvolver melhor e, por incrível que pareça, apesar de ter me
distanciado fisicamente de Miguel, passei, efetivamente, a instituir, junto com Joana,
ações inclusivas voltadas para ele e o grupo.
65
A seguir, narro alguns relatos que reafirmam como os movimentos foram tecendo
nós de base inclusivas, conforme registro no diário de campo:
Episódio 1. A busca pelas teias dos movimentos inclusivos
Chego à sala por volta de 13h15min e encontro as crianças brincando numa roda com a
professora de mímica de animais. Miguel chega junto comigo, no entanto não participa da
brincadeira. Em uma outra mesa encontram-se duas crianças terminando de fazer uma
atividade no papel. Dirijo-me à roda e tento interagir com o grupo também fazendo uma
mímica.
Miguel é trazido pela estagiária Sandra à roda, fica por uns três minutos observando,
atravessa a roda e sai sem brincar com as crianças, apesar de Joana tentar trazê-lo ao jogo.
Nesse momento, ela vira-se para mim de forma decepcionada e diz: “Puxa vida, pensei que
Miguel ia gostar dessa brincadeira!”.
Em seguida, as crianças que estavam fazendo atividades terminam e se voltam para o
grupo. Miguel, então, senta-se à mesa das crianças e fica olhando as atividades realizadas.
Aproximo-me de Sandra e sugiro que ela ofereça a mesma atividade para Miguel. Ela o faz,
todavia ele não interage com a atividade e sim fica a fazer ponta nos lápis por muito tempo.
Quando todos se cansam da mímica, Joana pede a Sandra para contar a história do trocatroca às crianças. Ao longo do tempo, percebo Miguel que se encontra em uma mesa a
fazer pontas, atento à história contada por Sandra. Chamo a sua atenção para que ela se
volte também para Miguel, o que ela passa, então, a fazer. Ao final, Joana pede a todos que
façam um desenho sobre a história, mas Miguel não se propõe a desenhar. Nesse
momento, Joana pega uma revista em quadrinhos e mostra a Miguel que passa a folheá-la
com bastante atenção. Joana tenta fazê-lo retornar à mesa para interagir com a atividade,
mas ele foge.
Ao se dirigir livre pela sala, Miguel se depara com uma revista passatempo da Mônica,
personagem com que ele muito se identifica nos gibis. Ele, então, começa o olhar a revista.
Imediatamente sugiro a Sandra que ofereça lápis e borracha para ver se ele se interessa
pelas atividades, o que acontece de fato. Miguel começa a pintar as atividades e, em
seguida, busca apagá-las. Aproximo-me de Sandra e comento com ela que acredito que
essa possa ser uma pista em relação a Miguel, e ela me diz que Joana havia comprado
alguns passatempos a fim de pensar atividades para toda a turma (19-5-2007).
A partir da fala de Joana em relação à Miguel, percebi que, apesar da forma
resistente com que me tratava, havia ali reais reflexos de nossos encontros de
planejamentos, em especial do ocorrido no dia anterior. Nesse dia, busquei discutir
com o grupo o princípio fundamental que perpassa o paradigma da inclusão, isto é,
o entendimento de que é a sociedade quem deve se adaptar às reais condições das
crianças com nee e, não elas a nós/escola. Com isso, era preciso estar atentos às
múltiplas outras formas de se pensar os processos educacionais bem como às
pistas que estas crianças nos apontavam:
66
Episódio 2. Tecendo os nós que sustentam esta teia
Hoje realizamos uma reunião para avaliarmos nosso processo de formação em contexto.
Começamos, então, com Joana fazendo uma interessante auto-reflexão acerca de como
deveria ser pensado o trabalho colaborativo acerca da inclusão de crianças com nee, tendo
em vista o que vem sendo praticado naquele CMEI. Nesse sentido, ela aponta que todos
deveriam se unir em prol destas crianças, mas que isto não ocorre ali. Digo a ela que é
preciso pensar num processo mais coletivo, afinal hoje as crianças estão sob a
responsabilidade primordial delas, mas amanhã seguirão por outros caminhos, para além
disto, provavelmente todos receberão um dia uma criança com nee assim [...]. Digo as duas
que elas têm uma responsabilidade no sentido de apontar para as colegas que isto é
possível, afinal não estamos fazendo juntas (20-6-2007).
Episódio 3. Fortalecendo os nós
Confesso que cheguei para a reunião com Joana insegura em relação à forma como ela iria
me receber, porém, para minha surpresa, Joana estava bem receptiva, o que me deixou
menos armada em relação a ela.
Comecei a reunião lendo o registro feito sobre a conversa com a mãe de Miguel para um
melhor entendimento acerca de como as coisas se dão no contexto familiar dele. Nesse
registro, esta mãe destaca, inicialmente o fato de que, pela primeira vez, ela percebe que
seu filho é realmente acolhido naquele CMEI.
Percebo que Joana fica orgulhosa de minha fala e isso me leva a refletir que talvez a sua
resistência em relação à minha presença em sua sala de aula talvez seja pelo fato de que,
como acredita não estar dando conta de incluir Miguel em sala, o fato de eu estar ali poderia
evidenciar isto para ela [...] (24-6-2008).
A nossa conversa foi bastante interessante, tanto para nos aproximar como também
para reafirmar o que pretendia no/com o mergulho, isto é, contribuir para os
processos inclusivos que ali se instituíam, entendendo, nesse movimento, a
possibilidade de desejar, potencialmente, aquele aluno com nee, considerando os
campos de relações nos quais ele se encontra inserido, como nos diria Oliveira
(2007, p. 49):
A compreensão de que as formas de ver o mundo são desenvolvidas a
partir das experiências sociais, embora quase lugar-comum nos discursos
hegemônicos sobre a construção das subjetividades e identidades
individuais e coletivas, infelizmente não se tem feito acompanhar do devido
aprofundamento quando se trata de buscar compreender em que
condições concretas de possibilidades se inscrevem os diferentes fazeres
docentes e discentes nos cotidianos das diferentes e incontáveis escolas
dos diferentes sistemas de ensino. Em que pese o discurso que, cada vez
mais, busca evidenciar a aceitação/tolerância da existência de uma
diversidade de ‘olhares’ sobre o mundo, ou de leituras de mundo, as
políticas de educação e particularmente as de currículo insistem em
negligenciar este dado, desenvolvendo propostas fechadas em
generalizações fundamentadas no pensamento cientificista que restringe o
conhecimento àquilo que, supostamente, é universal e formalmente
explicitado e desenvolvido, num claro descompromisso com as
67
aprendizagens cotidianas e experiências de vida de educandos e
professores.
Em meu entender, isso se refletia nos saberesfazeres da Joana, pois Miguel já
havia avançado da condição inicial dos cantinhos da sala de aula, para brigar, para
fazer as matrizes que eram produzidas em sala (FOTO 2). Afinal, a minha função ali
não era de atuar diretamente com Miguel, mas potencializar os protagonistas
daquela paisagem: “Yes estávamos caminhando !!!!!”, como diria Joana.
Foto 2. Joana e Miguel ao final do estudo.
Nesse aspecto, gostaria de socializar um diálogo entre mim e a professora Joana,
quando, certa vez, após não mais freqüentar sua sala semanalmente, sentamos
para que eu lhe relatasse a conversa que tive com a mãe de Miguel. A partir desse
relato, começamos a discutir a contribuição que a Psicanálise nos dá para entender
o autismo e as psicoses infantis,15 com base em Freud e Lacan e a instauração do
estádio do espelho16 ao evidenciar o quanto a relação mãe/filho é significativa para
a construção das estruturas psíquicas das crianças.
De acordo com as considerações feitas a esse respeito, Joana, inesperadamente,
fez um relato pessoal acerca da sua relação inicial com seu primeiro filho na época
de seu nascimento e dos possíveis impactos desta relação à estruturação subjetiva
deste filho ao longo de sua vida.
15
Item a ser aprofundado melhor no próximo capítulo.
68
Analisando tal narrativa, apoiava-me em Freud (1969), ao dissertar sobre a
estruturação da psique humana, e, também, no debate tecido por Oliveira (2007),
acerca da concepção de que as formas de ver o mundo são desenvolvidas a partir
das experiências sociais. Acredito que, provavelmente, a minha presença em sua
sala de aula, apesar da intencionalidade colaborativa, a incomodava bastante, até
porque, talvez como não percebi isso antes, eu tomava esse incômodo com algo
pessoal.
Entretanto, ao aceitar a proposta de distanciamento, apesar de não desistir da
aposta, possa tê-la deixado mais segura em relação às minhas reais intenções. Isso
me remete a duas questões significativas a serem analisadas: estaria eu agora
realmente conquistado o lugar de colaboradora na percepção de Joana, ao confiarme um sentimento tão pessoal? Teria ela aberto, verdadeiramente, a porta de sua
sala de aula para mim, ou será que fez esse movimento exatamente porque saí de
cena?
Infelizmente, essa conversa foi uma das últimas que tivemos em virtude não só da
dinâmica do CMEI, como do tempo Cronos determinado pelas políticas de pesquisa
no Brasil, ou seja, no momento em que a pesquisa disparou um outro, e bastante
significativo movimento, como era final de ano e tinha prazo para o término da
pesquisa, tive de me afastar.
Todavia, retomo Oliveira (2007, p. 5), quando nos alerta que, ao tentarmos
verlerouvir os diferentes modos de pulsam a vida cotidiana, precisamos considerar
não somente os limites culturais e epistemológicos, mas também os limites
emocionais, tendo em vista o fato de que “[...] a realidade é opaca, ou seja, que ela
não é captável enquanto tal, mas só por meio dos indícios que conseguimos dela
captar”.
Nesse sentido, finalizo o debate acerca do contexto que permeou a sala de aula da
professora Joana e seus possíveis movimentos inclusivos, apontando o fato de que
a Psicanálise pode não só nos ajudar a captar tais indícios, como também nos
auxilia na compreensão de que somos instituídos nos/com/pelos Outros, fato este a
ser mais bem aprofundado no capítulo que se segue. Logo, ao pensarmos os
69
processos pedagógicos de base inclusiva, precisamos estar atentos para os efeitos
que esse movimento instituiu:
[...] o saber da psicanálise poderá inclinar o educador a transmitir a fazer
aprender por meio de um ato educativo tal como ele é entendido pela
psicanálise: como transmissão da demanda social além do desejo, como
transmissão de marcas, como transmissão de estilos de obturação da falta
no Outro (KUPFER, 2001, p.119).
b)
Os
movimentos
tecidos
na/pela
sala
da
professora
Ana:
os
seus
encontros/desencontros com a perspectiva inclusiva
O segundo contexto apresentado refere-se à sala de aula da professora Ana,
responsável pelo Grupo 5 A (FOTO 3). Sua participação neste estudo se deu em
virtude do aluno Mateus, de cinco anos de idade, também caracterizado como
autista, cujo olhar solicitando acolhimento e as constantes manifestações de afeto
me conquistaram logo no primeiro momento em que o vi.
Foto 3: Mateus em meu 1º dia de acompanhamento.
Meu contacto com Ana também se iniciou no ano anterior, todavia de forma menos
próxima do que com Joana, limitando-se a alguns encontros coletivos com o grupo
de professoras desse CMEI, para conversarmos sobre os processos de inclusão
socioeducacional de crianças com nee. Ao longo desses encontros, Ana, até então
responsável por uma criança hemofílica e microcefálica, trazia-me suas angústias
acerca desse processo.
70
Ana era movimento em pessoa, apresentando um comportamento impulsivo,
bastante agitado, como se desejasse abraçar o mundo de uma só vez. Apesar das
dificuldades que esse desejo lhe acarretava, essa inquietude não lhe permitia
acomodar-se, buscando sempre um desafio a superar. Em meu entender, isso fez a
diferença neste estudo, conforme os trechos narrados ao longo da pesquisa.
Assim, para melhor compreender o universo que habitava o pensamento de Ana,
trago, a seguir, sua narrativa, na qual buscou priorizar como se encontrou com a
educação e a educação especial.
Entrei no Curso de Pedagogia por acaso no ano de 1990, mas me apaixonei
pela educação! Eu tinha uma professora que me dizia que seria uma ótima
professora e eu afirmava: “Deus me livre!”. Entretanto, comecei a dar aulas
em sala de reforço e gostei. Antes, fiz concurso para trabalhar na Ufes em
Alegre na parte administrativa. Quando lá estava, fiquei sabendo da
necessidade de professora para a Criarte. Fui lá, fiz a entrevista e logo
afirmei não ter experiência, porém muita vontade de ser professora. Fui
chamada, começando a atuar no Grupo 2 com crianças de dois anos.
Confesso que fiquei meio apavorada, pois tinha que dar banho nas crianças
dentro de um tanque. Em 1995, trabalhei no Grupo 3 e só aí me apaixonei
pela educação!
Em 2000, comecei na Prefeitura de Vitória na Educação Infantil, numa
comunidade carente que me levou a repensar várias coisas como, por
exemplo, a necessidade de não só educar estas crianças, mas também de
cuidá-las, pela carência que estas crianças apresentavam. E, aí, cada vez
que entrava em sala de aula, me apaixonava mais ainda.
Há sete anos atrás, tive um aluno com síndrome de Down e, a partir de
então, comecei a estudar sobre o tema. Aqui, no CMEI, foi o Luis Paulo que
me aproximou destas crianças.
Gosto do que faço, porém há dias em que chego cansada em casa. Outra
coisa, toda vez que venho trabalhar chateada, quando chego aqui, fico
alegre ao me deparar com as crianças.
Interessante é destacar que, segundo a fala da pedagoga Kely, Ana foi quem mais
demonstrou desejo por minha presença ao seu lado e isso foi se fortalecendo ao
longo do ano. Sentia, por parte de Ana, uma ansiedade muito grande para que
começássemos logo a pesquisa, porque, segundo sua própria fala: “Ela era alguém
que queria resolver logo tudo”.
Assim sendo, disse-me desejar me ter ao seu lado de segunda à sexta-feira, pois já
havia, anteriormente, pedido ajuda a outros pesquisadores amigos seus, porém eles
71
não tinham condições, naquele momento, para ajudá-la e, apesar de saber que não
existem receitas: “Sentia falta de alguém para apoiá-la em suas ações”.
A relação entre Ana com as crianças era de muita cumplicidade, apesar de, em
alguns momentos, ela se exceder nas ameaças que, pelo afeto que apresentava em
relação à turma, não dava conta de “bancar”. Com Mateus isso não era diferente,
todavia, ao longo do tempo e, a partir das nossas conversas no/com o grupo de
estudos, buscamos instituir uma nova forma de lidar com essas questões,
principalmente no que tange a rotinas mais definidas para Mateus, pois ele, em
detrimento da sua condição, precisava conhecer/exercitar algumas regras
coletivamente construídas acerca da convivência social, em virtude de algumas
fixações que apresentava, como na imagem que segue (FOTO 4), que registra
Mateus quando, sempre ao chegar à sala, escutava uma mesma música numa
altura tamanha que quase nos enlouquecia.
Foto 4: Mateus e sua fixação com o som.
Em frente a esse contexto, o caminho percorrido, com vistas a dar visibilidades aos
movimentos instituídos com/por aquele contexto, especialmente a inclusão
socieducacional de Mateus, era colaborar com a formação pedagógica da
professora Ana, no intuito de que esse movimento disparasse possibilidades de
ações inclusivas voltadas não só para Mateus, mas, também, para todo o grupo que
o envolvia.
72
Corroborando com Baptista (2005), a busca por disparar fluxos potencializadores à
inclusão nos torna desafiadores, em virtude da dinâmica de produção de vida que
pulsa a cada momento em nossos caminhos. Logo, precisamos estar atentos às
zonas de fronteiras com suas possibilidades de rupturas, mas também de
estabilidades.
Assim sendo, um dos maiores desafios que identifiquei naquela paisagem em geral,
porém, em maior evidência com Ana, refere-se ao fato de que, apesar da excelente
receptividade e da cumplicidade pedagógica com que me relacionava com ela,
sentia-me, em alguns momentos, pouco escutada, na medida em que muitas coisas
planejadas, freqüentemente, não ocorriam, não só pela complexa e singular rotina
de um CMEI com mais de 250 crianças/turno, mas, também, pela falta de
sistematização como as coisas se desenvolviam.
A seguir, narro um trecho extraído do diário de campo, em que busco evidenciar tal
percepção:
Neste dia, aproveitamos de fato nosso dia de planejamento. Foram 40min para leitura e
discussão teórica e 50 min livres para o planejamento coletivo das professoras. Em seguida,
discutirmos parte do texto: AUTISMO - SÍNDROME DE ASPERGER: ao longo da vida de
Stephen Bauer(APSA.ORG.PT,1996, acesso em 9 de març 2007). Texto este selecionado
pelo grupo anterior à minha chegada.
Confesso que estou me situando neste cotidiano. Senti este encontro um pouco agitado
demais para o meu gosto, pois, para além das múltiplas intervenções externas que
ocorriam, havia também a presença de Mateus, e ele hoje se encontrava um pouco agitado,
dificultando nossa organização inicial. No momento em que Mateus resolve sair da sala,
chega uma outra professora com uma criança chorando sem parar, entrega a mesma para
que a pedagoga Kely ficasse com ela, pois, segundo ela, estava difícil de segurar a turma
com uma criança naquelas condições. Paramos tudo, Ana o acolheu dando uma folha para
desenhar, a criança se calou e seguimos nosso planejamento.
Apesar destes múltiplos movimentos, iniciei o encontro tentando problematizar o fato de que
o ato educativo é um desafio que se impõe a todos nós e, neste sentido, nossas angústias
não devem ser compreendidas como uma impossibilidade, mas, sim, como algo que, juntas,
numa ação colaborativa, devemos enfrentar cotidianamente.
Assim sendo, neste dia, discutimos conceitos, origem e manifestações comportamentais das
diversas manifestações autistas, trazendo alguns exemplos reais de Mateus para a
discussão, pois, até este dia, ainda não havia conhecido Miguel, em virtude dele não estar
freqüentando as aulas, porém Joana se reportava a ele nos dando exemplos que achava
pertinente. Apesar de não termos certezas de que estas crianças eram realmente autistas,
este texto poderia nos dar base para refletir nossas ações em sala de aula.
73
A primeira barreira que tentei desmistificar foi a organicidade do autismo com uma questão
delimitadora para a ação pedagógica. Discutimos também sobre alguns cuidados em
relação ao trato com estas crianças, como a atenção à rotina, a preparação da criança
quando houver necessidade da professora se ausentar ou mesmo nos futuros passeios.
Problematizamos, também, a idéia da limitação cognitiva destas, a incidência desta
síndrome em crianças do sexo masculino, entre outros.
Ao discutirmos a necessidade de que todas as pessoas envolvidas com essas crianças
deveriam estar juntas neste encontro, a professora Ana se queixou da ausência de sua
auxiliar pelo fato dela ter que acompanhar Mateus no pátio neste momento. Assim, ao
deixamos para completar a leitura do texto na próxima semana, pedimos à pedagoga que
pensasse num horário coletivo em que todas as pessoas envolvidas pudessem participar
deste grupo. Foi quando Kely se prontificou a ajudar, mas lembrou-me de que algumas
professoras, no caso a de Educação Física e a de Artes, estavam com as crianças neste
momento para que Joana e Ana pudessem planejar, de forma que eu deveria encontrá-las
em outro momento que não aquele horário coletivo. Fiquei de procurá-las para marcarmos
um horário. Começando pela professora de Educação Física, pois a de Artes acabava de
chegar à escola e, a meu ver, precisava de um tempo maior para se situar.
Combinamos também, de comunicar às respectivas famílias envolvidas sobre minha
presença bem como pedir autorização para que eu pudesse registrar audiovisualmente suas
ações para estudarmos coletivamente estratégias pedagógicas.
Ao final, lembro-me que, ao discutir sobre o fato das pessoas autistas terem dificuldades em
reconhecer-se como um sujeito, sugeri às professoras que levassem todos os seus alunos
a expressar a imagem construída acerca de si, a partir da comparação entre as imagens
delas ainda bebês, frente ao momento atual, com o intuito de não só promover um resgate
coletivo acerca da história de vida de cada uma das crianças, mas, primordialmente,
identificar em que medida Miguel e Mateus reagiriam. Elas gostaram da idéia e se
organizaram para tal (22-2-2007)
Ao direcionarmos tal movimento para a sala de aula da professora Ana, em relação
à busca por incluir Mateus no/com o grupo, definimos que, primeiramente,
buscaríamos investigar, junto com ele, qual era a percepção que Mateus tinha
acerca de si e de sua identidade. Para tanto, utilizaríamos fotografias que
reproduziam o seu cotidiano. Em seguida e, somente a partir de então,
ampliaríamos tal apresentação às imagens de todos os colegas de sala, mas
sempre a partir do interesse dele.
Entretanto, Ana acabou por apresentar a Mateus todas as imagens trazidas pelas
crianças de uma só vez. A meu ver, isso fez com que ele, de certa forma, não desse
a menor importância às fotos, em virtude do excesso de informação que lhe
acometeu simultaneamente e, nós, pela falta de persistência e sistematização, não
conseguimos ressignificar a idéia, até porque, em meu entender, Ana se
74
desmotivou. Eu, talvez, por estar começando minha ação colaborativa, respeitei tal
posição.
Direcionando tal consideração para as ações de Ana, entendo que, em alguns
momentos, isso comprometia, inclusive, a possibilidade de reavaliar o que ali
tentávamos instituir como prática pedagógica inclusiva, sem contar com o fato de
estarmos lidando com uma criança autista, cujos cuidados com a sistematização
das ações se fazem necessários, em virtude de seu processo de subjetivação se
encontrar por constituir (KUPFER, 2001).
Aprofundando o debate e, ao mesmo tempo, buscando outras lentes para analisar
essa questão, eu, apesar de a priori, não ter a intenção de, num exercício de poder,
aprisionar e disciplinar os que ali estavam (FOUCAULT, 1975), confesso que me
sentia incomodada com tal situação. Por este aspecto, entendo que os movimentos
disparados junto/com Ana nem sempre eram planejados conforme os trechos que
se seguem, extraídos do diário de campo, que evidenciam tal análise:
Ao chegar à sala Ana me mostra um bilhete de uma mãe dizendo que seu filho não fez o
dever de casa solicitado, em virtude de Mateus tê-lo prejudicado ao ouvir a história contada
pela professora, impedindo-o de reproduzir a mesma na atividade encaminhada para casa.
Finalizando, essa mãe sugere que tire Mateus de sala a fim de que Ana possa contar a
história para as crianças sem as desagradáveis palmas de Mateus.
Leio o bilhete e digo-lhe para ter calma, pois seria de se esperar que as crianças
começassem a perceber Mateus. Digo-lhe também que devemos entender que a concepção
sobre a inclusão desses pais não deve ser próxima do que defendemos, afinal, eles,
provavelmente, não tiveram a oportunidade de conviver com pessoas com deficiência em
seus momentos escolares. Lembro-lhe de que o fato de as crianças se “incomodarem” com
a presença de Mateus poderia ser um fato positivo e, em seguida, pergunto-lhe se ela,
alguma vez, já falou sobre ele com as crianças, em relação à sua forma de comunicação
pela via das palmas. Para tranqüilizá-la, sugiro que talvez o problema do dever de casa nem
seja de fato as palmas.
Imediatamente, Ana junta o grupo para conversar sobre a forma “diferente” de Mateus se
comunicar, apesar de ela falar mais do que as crianças, isto é, não deu espaço para que
elas falassem e perguntassem o que pensam sobre ele. Assim sendo, Ana começa a
conversa dizendo ao grupo que estou ali para fazer uma pesquisa de Doutorado e, nesse
sentido, tenho como objetivo ajudá-la com o Mateus. Em seguida, fala para as crianças que
ele bate palmas para se comunicar e por não saber que isso incomoda aos outros, logo será
preciso dizer isso a ele.
Como estou “literalmente” na rodinha, afinal Ana diz a todos que estou ali para ajudá-la com
Mateus, proponho, meio que no susto, combinarmos um gesto a ser sempre repetido
quando ele estiver batendo palmas muito forte. As crianças propõem colocarmos as mãos
nos ouvidos e mostrar para ele a fim de que ele perceba a necessidade de parar. Pergunto-
75
lhes se esse gesto poderia ser utilizado também quando outras crianças estivessem fazendo
barulho e todos concordam. Em seguida, Ana recomeça a reler o livro, lido na aula anterior.
Enquanto isso, Mateus, apesar de não sair de sala (percebo que ele também está ficando
mais tempo dentro de sala), fica rodando pela sala batendo palmas e beijando a mim, a
Carla (a estagiária) e Ana. Percebo que, a partir de agora, toda vez que Mateus bate palmas
ele fecha os olhos, como se já tivesse entendido o combinado, de forma a brincar conosco.
Em um determinado momento, ele entra na rodinha e tenta interagir com Ana, de forma
provocativa, colocando os pés no livro dela, que continua a contar a história, como se nada
tivesse acontecendo. Mateus sai da roda e começa a andar pela sala de forma ansiosa,
abraça Carla, beija-a e volta às palmas e a andar pela sala [...].
Enquanto essa situação permanece, Ana mostra ao grupo as atividades de casa feitas pelas
crianças que trouxeram o dever de casa. Ao final, pergunta à criança cuja mãe se queixou
se ela entendeu a atividade. A criança diz não ter entendido, Ana olha para mim e sugiro
que pergunte às crianças quem quer explicar ao coleguinha o que é para ser feito. Vários
falam, porém ele continua a dizer que não sabe o que é para fazer. Ana, meio sem
paciência, diz para ele: “Então pede à sua mãe para desenhar o que é paz para ela!”
[...] Eu e Ana seguimos para a sala da pedagoga para discutirmos acerca de minha
presença como pesquisadora. Iniciamos discutindo o acontecido, pois, apesar dessa
situação ter sido esclarecida, conversamos sobre a necessidade de planejarmos algumas
ações para se discutir a presença de Mateus naquele contexto. Neste sentido, sugiro a ela
dar um retorno à família desta criança, inclusive contando como procedeu em sala após o
bilhete, bem como mostrando a dificuldade persistente da criança em relação à atividade.
No que se refere a Mateus, combinamos de ela chamar essa mãe para maiores
esclarecimentos, em relação à condução que estava tendo com ele na/com turma (13-42007).
Antes de dar prosseguimento à narrativa, gostaria de ponderar o fato de que, apesar
de reconhecer a dinamicidade que atravessa os cotidianos escolares, não podemos
perder de vista o nosso foco em relação aos processos de ensino que ali se
instituem sob o risco de nos perder nesse caminho. Entendo que isso ocorria com
muita freqüência naquela paisagem, especialmente em relação à sala de aula da
professora Ana. Nem mesmos as leituras, previamente escolhidas no/pelo grupo nos
encontro de formação, eram lidas, conforme o relato que segue que dá continuidade
à narrativa anterior:
[...] Para não perder o foco, digo-lhe que sei que as mudanças não se dão da noite para o
dia, mas, sim de forma gradual e constante e, com relação a Mateus, gostaria de saber
como estava analisando a minha atuação como pesquisadora. Ela me disse que, se eu
pudesse, gostaria que eu ficasse com ela todos os dias da semana, pois passava uma
segurança que ela não sentia. Nesse sentido, aproveito para lhe dizer que, para ajudá-la
ainda mais, deveríamos buscar apoio também na literatura e, nesse sentido, havia lido
algumas coisas interessantes que gostaria de compartilhar com ela, mas não estava
sentindo muito interesse por parte do grupo. Ana se desculpa em relação ao texto anterior, e
afirma não ter gostado dele.
76
Digo que o mantive por ter sido indicação da Secretaria, porém fizemos um “pacto” para
garantir nossos encontros de planejamento [...].Terminamos o planejamento e voltamos à
sala. Lá chegando, pergunto a Ana o que vamos fazer. Ela, então, me responde que nossa
conversa a deixou tão “light” que iria deixar as crianças livres. Ajudo-a com uns bilhetes no
caderno e vamos para o lanche (13-4-2007).
Ao me remeter a Linhares (1997, 2001a), ela nos lembra o quanto é fértil aos
processos pedagógicos a coragem para ousar outrasnovas formas de se produzir
conhecimento, bem como reconheço que muitos saberesfazeres que pulsam no
cotidiano são preteridos em detrimento de conteúdos engessados que não
estabelecem pontes entre o conhecimento culturalmente sistematizado e o
conhecimento instituído em cada realidade escolar. Todavia não concebo o fato de
deixar as crianças livres como uma estratégia promovedora de processos
pedagógicos que acreditamos serem potencializadores.
Buscando contextualizar um pouco mais, reconheço o fato de que, numa estratégia
de sobrevivência, instituímos burlas/táticas (CERTEAU, 1994), conscientes, ou não,
para a sistematização do cotidiano. Esses movimentos nos provocam a produzir
outrasnovas formas de se tecer os nós que atravessam nossas vidas e,
conseqüentemente, potencializam nossa capacidade de criação.
Entretanto, faz-se necessário que nós, educadores, na tentativa de transpormos os
abismos entre a escola real e a imaginária, reavaliemos cotidianamente nossas
ações. Afinal, é preciso correr riscos, já que tudo o que fizermos terá sempre duas
possibilidades: ou refundaremos à mesmice, isto é, utilizaremos a escola, única e
exclusivamente, como um espaço de sujeição e regulação dos indivíduos, indo ao
encontro do pressuposto fascista do capital, ou transgrediremos o que está posto,
reinventando a cultura e a civilização, utilizando a educação num contexto plural, de
forma a contribuir para reverter a situação a partir da autonomia, isto é, valorizando
a transgressão em prol da libertação, ou, como nos diria Linhares (2001b, p. 20),
assumindo “[...] a educação como depositária da esperança”, vendo na liberdade um
permanente devir”.
Assim sendo, defendo a premissa de que o professor não deve perder de vista o seu
compromisso pedagógico com a formação de seus alunos, no sentido da autonomia
e da responsabilidade com a vida, bem com o fato de que, para tanto, precisamos
77
reavaliar cotidianamente nossas ações, a fim de que estas não caminhem de
encontro a esse objetivo no campo da educação e uma perspectiva inclusiva.
Para além dessas questões, um outro desafio que nos apresentava refere-se aos
conflitos vividos por Ana no/com o grupo em relação ao entendimento ali instituído,
acerca
da
presença
de
Mateus
em
frente
aos
processos
de
inclusão
socioeducacional.
Como forma de evidenciar tal contexto, trago, a seguir, um recorte extraído do diário
de campo, que destaca uma visita realizada ao parque da Vale do Rio Doce, em que
nossas concepções sobre a inclusão, ações colaborativas, formação de alunos
foram postas em xeque:
Hoje as duas turmas do Grupo 5 que acompanho no CMEI combinaram um passeio ao
parque de Vale do Rio Doce. Havia, por parte do grupo, certa ansiedade em relação ao
comportamento tanto de Miguel quanto de Mateus, pois, apesar de termos o cuidado de
avisá-los sobre o passeio, não sabíamos como eles se comportariam, principalmente porque
em relação a Mateus, a professora de apoio Tina, não concordava com a ida dele ao
passeio, alegando que ele não estava em condições de sair com o grupo.
Por mais que não desejasse passar por cima de ninguém, não concordava com essa
recomendação. Afinal como incluir excluindo?
Bom! O passeio teve início e todas as crianças ficaram muito bem no ônibus. Fomos eu ,
Kely, Joana, Ana, Karla e Sandra. Chegamos à Vale sob um forte calor de final de verão
(FOTO 5). Fomos recebidos por um funcionário bem treinado que tenta organizar o grupo à
sua forma. Imagina você, naquele calor, pedir que todos fiquem em silêncio (+/- 50 crianças)
e, em seguida, formem fila sem sair do lugar. Mateus até que tentou, chegando a entrar na
fila, mas não agüenta tanto formatação e é aí que começa o nosso sufoco, pois ele solta-se
da fila, dá de cara com uma cantina, acha um freezer aberto cheio de picolés (FOTO 6)! Ele
tem uma compulsão por comida.
Nem precisa dizer o sufoco que passamos: primeiro, ele fica muito desestruturado por não
conseguir o picolé. A pedagoga nos pergunta o que está acontecendo e quando a explico
ela nos diz:
− Por que vocês não dão picolé a ele escondido?
Digo a ela da necessidade de irmos incutindo, gradualmente, regras sociais de convivência,
bem como o fato de todas as crianças ali também estarem na mesma condição e nem por
isso elas teriam picolé.
No entanto, Mateus não esquece, tenta a todo o momento pegar o picolé, até mesmo
porque todas as atividades giram ao redor da cantina. Sinto tanto Ana quanto Carla um
pouco desestruturadas neste momento. Tento ajudá-las, impedindo-as de, simultaneamente,
ficarem com Mateus esquecendo o grupo. Crio um revezamento entre nós três de forma que
duas ficam com ele e uma fica com a turma juntamente com a pedagoga.
78
A meu ver, todos se sentem culpados por não darem o picolé e eu sinto-me culpada e
confusa por bancar tal situação! No momento do lanche das crianças, Mateus se esquece
do picolé, chegando a pegar um pirulito de uma criança. Ana, como já estava exausta, pede
desculpa à criança dizendo que, na próxima aula, irá levar um pirulito para ela. Acho uma
bala no meu bolso e dou a ela. Após lanchar e brincar um pouco no parque Mateus tenta
novamente o picolé e o distraímos levando-o ao balanço.
Ao final da brincadeira, vamos embora exaustas! (30-3-2007).
Foto 5. Mateus chegando ao Parque da Vale
Foto 6. Mateus vendo o freezer de picolés.
Ao analisar tal episódio, tomo por base as contribuições de Assumpção (1999),
quando discute acerca dos estigmas, preconceitos e estereótipos que construímos
em relação às pessoas com deficiência. Para a autora, em virtude de alguns
(des)conhecimentos acerca das reais capacidades humanas dessas pessoas,
produzimos generalizações indevidas que, simbolicamente, são muito mais
incapacitantes do que a própria deficiência:
79
[...] um preconceito gera um estereótipo, que cristaliza o preconceito, que
fortalece o estereótipo, que atualiza o preconceito [...]. Círculo vicioso
levando ao infinito. Paralelamente o estigma (marca ou sinal) colabora com
essa perpetuação (p. 40).
Ao tecer os fios de tais contribuições com/nas teias tecidas na/pela/com a paisagem
investigada, identifiquei alguns movimentos nesse relato que, em meu entender, não
favorecem os processos de inclusão que almejamos. A começar pela sugestão da
professora de laboratório pedagógico de que não levássemos Miguel e,
principalmente, Mateus. Ora, corroborando o pensamento de Freud (1969), ao nos
lembrar que a estruturação de nossa psique humana ocorre por meio da interação
com o Outro, como socializá-los, segregando-os? Por mais que elas apresentassem
dificuldades com mudanças de rotinas, era esse o nosso papel como educadoras: a
formação dos indivíduos singulares em contextos plurais/adversos/contraditórios/
complexos!
Como nos diria Linhares (2001a), é função da escola promover a interligação entre
os saberes culturalmente sistematizados e os saberes instituídos na vida. Sabemos
que isso é desafiador, como viver é um desafio constante!
Para tanto, precisamos estar atentos para sentimentos que reafirmam a cultura da
exclusão, tais como: pena, abandono, rejeição, negação, atenuação, superproteção,
compensação e a simulação, pois, estejam eles disfarçados ou não, possibilitarão a
percepção de que, quando, “preconceituosamente”, temos pena de alguém, e/ou,
fazemos algo por ele, não lhe possibilitamos a vida (ASSUMPÇÃO, 1998).
Nesse sentido, trazemos, a seguir, outras narrativas em que são evidenciadas essas
tensões:
[...] ao chegar à sala de Ana, ela me recebe com um grande abraço dizendo que serei
responsável por ela estudar sobre Educação Especial e me agradece pelo texto sugerido:
Saberes e práticas da inclusão (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2004), pois
esse texto lhe ofereceu a dimensão desejada para cobrar a concepção de inclusão em que
ela sempre acreditou.
Em seguida, cumprimento as crianças e me deparo com Mateus correndo com sua mochila
livremente, juntamente com as outras crianças, também bem agitadas. Falo com cada uma
delas. Ana tenta conter a turma, mas, para variar, não consegue por não dar seguimento às
suas marcações, isto é, briga com as crianças, porém, logo em seguida, deixa-as fazer o
que querem.
80
Ana me solicita ajuda com Mateus, a fim de que ele pinte uma tela para a exposição que
acontecerá na semana seguinte. Sinto-me um pouco perdida, afinal estava retornando ao
grupo após 30 dias do recesso escolar. Pergunto-lhe como as coisas estavam sendo
encaminhadas em relação às atividades com Mateus. Vejo que Ana também fica perdida.
Sugiro, então, que, primeiro, ofereça uma folha para ver com irá se portar, porém Ana
sugere (ou seja, só desejava o meu endosso!), que uma criança desenhasse para que ele,
em seguida, pintasse o quadro.
Carlos, então, faz o desenho e Ana me dá o quadro para que eu faça com que Mateus o
pinte. Chamo-o para pintar, e ele se senta à mesa para começarmos, entretanto Ana não se
contém e pega na mão dele e começa a pintar com ele. Sugiro deixá-lo conduzir a pintura,
Ana atende, e Mateus resolve, então, não seguir as linhas do desenho, mas, sim, escrever o
seu nome.
Ao final, Ana me diz ficar sentida com a diferenciação que poderão fazer ao expor o que
Mateus produziu em relação à produção dos colegas. Digo entendê-la, porém aponto que
deveríamos ter planejado antes como realizar tal atividade, a fim de que as coisas não se
desenvolvessem de forma tão atropelada. No mesmo momento, meio para que Mateus
parasse de bater palmas, Ana oferece a ele um pincel grosso e uma folha mimeografada
contendo alguns desenhos para que pinte livremente. Ao contrário da tela, Mateus pinta
somente as figuras e vai trocando as folhas.
Retomo a questão do planejamento com Ana afirmando que, se tivéssemos planejado
antes, ou mesmo dado as folhas como sugeri inicialmente, poderíamos ter feito as coisas
diferentes, por exemplo, ter dado um pincel mais grosso a ele.
Ana, então, pega outra tela e refaz a atividade com Mateus, porém fica uma pergunta: Qual
era a sua preocupação: mostrar a real condição de Mateus ou, em detrimento disso, ser
também avaliada no/pelo grupo? [...]. No dia da exposição, Ana expõe tanto o que Mateus
pintou com sua ajuda como também o que fez só (15-8-2007).
Apesar de compreender o cuidado e o compromisso que Ana sempre apresentou
em relação a Mateus e ao grupo, fico a me questionar se realmente estamos
favorecendo a perspectiva inclusiva defendida neste estudo, quando não permitimos
evidenciar as reais produções dessas crianças? O instituímos socioculturalmente por
uma “produção adequada” no campo da Educação Infantil?
Responder a essa complexa e contraditória questão exige também uma resposta na
mesma configuração, haja vista o fato de concebermos os processos educacionais
de base inclusiva tecidos em redes de significações15 produzidas na/pela história, e
que se encontra diretamente vinculada ao ouvir, ao contar, ao inventar e reinventar
histórias, entre outros, como nos diria Larrosa (apud BUJES, 2001, p. 4)
15 As redes de significações constituem um conjunto de elementos de ordem pessoal, relacional e contextual, atravessado na/pela cultura, pela ideologia e
por relações de poder, cuja matriz se atualiza constantemente nos atravessamentos das relações cotidianas (FERREIRA, 2004).
81
Toda cultura deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de
si, e todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em
alguma das modalidades incluídas nesse repertório. [Portanto], em qualquer
caso, é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiência
objetiva do mundo exterior, construísse e transmitisse também a experiência
que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como sujeitos.
Tentando me colocar no lugar de Ana, admito que apresentar a produção de Mateus
para a comunidade também seria algo que me provocaria a refletir. Entretanto, sinto
que, mais uma vez, se tivéssemos socializado essa questão no/com o grupo
previamente, poderíamos pensar novasoutras formas que não o pedir a um colega
que realizasse o desenho para ele.
Logo, não poderia deixar de me remeter novamente a Linhares, quando nos alerta
que a educação poética não tem regras nem garantias de sua realização, mas não
se faz sem a participação do aprendente, aliada à sua vida, de forma coletivamente
colaborativa.
Entretanto, a autora afirma que a escola tem se afastado bastante dessa perspectiva
ao se submeter aos estreitamentos dos “pacotes educacionais”, voltados a um dado
perfil de aluno, desconsiderando temas relacionados com a vida.
Uma escola que não seja hierárquica tende a ser includente. Mas includência
não representa apenas colocar todo tipo de aluno na escola [...]. A
includência da escola também se endereça a um outro tipo de ensino e de
aprendizagem, que respeitem mais o que o estudante tem a oferecer para
seu próprio processo escolar. A escola, além de ser inclusiva para todo tipo
de raça, de cultura, e mesmo para os deficientes, deve incluir também os
próprios professores e estudantes — suas histórias de vida, com suas
relações de poder que se articula com sua classe social, preferências
pessoais, entre tantas marcas (LINHARES, 2002a, p. 2).
Apesar desses desafios, Certeau (1994) afirma que os caminhos para um projeto
pedagógico promovedor à vida se inscrevem em zigzagues, cujos terrenos já se
encontram há tempo muito habitados. Logo, nessas idas e vindas de ser/estar
produtora de dados numa paisagem escolar, acredito ter aberto caminhos cujas
“maneiras de fazer” instituíram práticas criadoras que favoreceram os processos de
inclusão que ali se presentificaram.
82
No entanto, é preciso evidenciar que esses movimentos só ocorreram em virtude da
colaboração que se instituiu entre mim, Ana e Carla e Kely, conforme os trechos que
se seguem do diário de campo, cuja ordem de apresentação nos apontam que a
perspectiva inclusiva, possível para aquele momento, foi se instituindo no/com/pelo
grupo:
Episódio 4. Tentativas/erros iniciais de ressignificar práticas pedagógicas
Chego à sala, encontro as crianças brincando. Mateus está andando livremente pela sala,
batendo palmas insistentemente. Ana está organizando um material. Quando a estagiária
Carla chega, fala-me que no dia anterior, Mateus ficou um bom tempo fazendo uma
atividade voltada para crianças de três anos, que se caracteriza por colar macarrão numa
folha seguindo as linhas de seu nome.
Como o percebo bastante agitando, batendo palmas, digo a Carla para tentarmos envolvê-lo
numa atividade a fim de minimizar sua agitação. Ela, então, pega o material que Mateus
produziu no dia anterior, oferece para pintar com tinta, pois essa é uma atividade apreciada
por ele.
Conforme acreditávamos, ele se acalma e fica a pintar o macarrão colado na folha. Algumas
crianças, seduzidas pela atividade, juntam-se a ele para fazer a mesma coisa, momento em
que Carla reconhece que todos gostariam de fazer a mesma atividade, porém como não tem
material suficiente para todos, prioriza Mateus.
Quando a atividade acaba, colamos as folhas no quadro, até mesmo para ver como ele
reage ao ver seu material exposto. No entanto, essa idéia não surte nenhum efeito, de forma
que Mateus volta a agitação com movimentos estereotipados e as palmas (20-4-2007).
A denominação de tentativa/erro dada a essa narrativa não tem como foco a
preocupação de delimitar, de forma dicotômica, a noção de certo ou errado. O que
busquei evidenciar foi que, inicialmente, percorremos diversos caminhos, até
encontrar algumas pistas que passaram a nortear nossas ações, conforme os
trechos a seguir:
Episódio 5. Tentativas de ressignificar práticas pedagógicas: eis que surge uma luz
no fim do túnel
Ao chegar à sala encontro todos já presentes, isto é, as crianças, Carla e a professora
substituta Maria. Em relação à turma, vejo-os muito agitados como sempre e percebo que
isto agita mais ainda Mateus.
Como a professora substituta não propõe nada para Mateus, ele fica agitado, batendo
palmas indiscriminadamente. Resolvo, então, buscar Carla a fim de propormos algo para
ele. Ela, então, me dá uma folha e uns lápis e pincéis para oferecer a Mateus enquanto ela
desce para conversar com a pedagoga. Eu me sento com ele que pega a minha mão e
levando a folha como se me pedisse para escrever algo. Enquanto isto, a professora
substituta está a orar com os alunos que parecem estar subindo pelas paredes de tanta
83
agitação! Como ela não sabe muito bem o que fazer, resolve pedir a eles que façam um
desenho dizendo que vai escolher o mais bonito.
Voltando a Mateus, percebo que ele deseja que eu escreva seu nome na folha. Quando
termino a escrita, Mateus pega um lápis e fica a riscar em cima das letras escritas. Quando
termina, volta-se para mim como se me pedisse para repetir o que escrevi. Faço isto para
várias vezes na folha, viro-a, porém agora tento escrever outra coisa. Neste momento,
Mateus interrompe minha mão e imagino ser porque ele não queria que eu escrevesse
qualquer coisa e sim o seu próprio nome.
Após escrever em toda a folha, Mateus começa a correr pela sala de aula e a bater palmas
insistentemente. Pergunto a Carla se podemos propor outra coisa a fim de evitar esta
situação que, a meu ver, ocorre quando ele se sente sem ter o que fazer na sala. Carla,
então, sugere oferecer-lhe massa de modelar. Mateus aceita e começa a manuseá-la com
interesse.
As crianças terminam o desenho pedido pela professora e se aproximam de Mateus, para
ver o que ele está a fazer. Meio que incorporando a questão da fruta, a professora substituta
pergunta-nos se já está na hora das crianças descerem para lanchar a fruta, porém Carla a
desaponta, quando diz que hoje é dia de maçã, logo não precisa descer. Ela então, deixa-os
livre até a chegada da professora de Artes que atrasa dez minutos, levando mais dez
minutos, para “organizar” as crianças em sala.
Quando elas descem, Carla diz que vai ficar na sala com Mateus para terminar uns bilhetes
e, depois, irá levá-lo à aula de Artes, pois a professora diz não conseguir ficar com Mateus
sem a sua ajuda.
Enquanto estamos a escrever os bilhetes, Mateus fica bem tranqüilo em sala com a
massinha como nunca vi. Aproveito para conversar com Carla sobre Mateus, evidenciando o
fato de que ele precisa ser estimulado constantemente para parar com o excesso de
palmas, e que isto, para mim, é ansiedade. Digo também que, para além de termos um
planejamento mais específico para as necessidades dele, devemos tentar manter os alunos
menos agitados pois esta agitação prejudica a Mateus que também agita a turma formando
aí uma bola de neve!.
Ficamos nesta sala por, mais ou menos uns 30 minutos e Mateus ficou o tempo todo lá
manuseando a massinha como se fosse outra criança, sem agito, sem palmas
supertranqüilo. Terminamos o bilhete e descemos para o pátio ao encontro da professora de
Artes. (11-5-2007)
Para encerrar as reflexões suscitadas, apoio-me em Foucault (apud CERTEAU,
1994), ao se referir aos modos de proceder perante a criatividade cotidiana, quando
nos lembra que, apesar das tentativas diciplinarizantes que nos impõem a vida
cotidiana por meio de dispositivos minuciosos que tentam gerir nossa vida cotidiana
a todo o momento, há possibilidade que nos permitem jogar com esses dispositivos,
num movimento de contrapartida, em prol de uma novaoutra organização
sociopolítica.
84
Acredito que um interessante fio a se percorrer se encontre atrelado às tramas
tecidas pelas pesquisas colaborativas (JESUS, 2002), cujo entendimento sobre a
responsabilidade do pesquisador, no contexto das práticas cotidianas, reafirma uma
ação
pedagógica
fundamentada
em
movimentos
de
ação/reflexão/ação,
privilegiando, nesse espaço, momentos de reflexão política com/na/sobre essa
prática, construindo, assim, verdadeiros espaços de teoria em movimento
(FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004; LINHARES; HECKERT, 2005) e isso também,
e principalmente, se aplica aos processos de inclusão socioeducacional de crianças
com nee.
Assim sendo, problematizarei, a seguir, o contexto que envolve o ser/estar
pedagogo nos CMEI’s do município investigado, buscando evidenciar o quanto nos é
desafiador pensar práticas colaborativas em contextos que visam a tutelar nossas
ações, pela via de dispositivos reguladores e nos instituem práticas subjetivantes
nem sempre favoráveis a nós mesmos (ALVES; GARCIA, 2008; FOUCALT, 1997)
c) O ser/estar pedagoga na Educação Infantil: a pedagoga Kely e os desafios
vividos na busca por uma gestão pedagógica autônoma e, ao mesmo tempo,
coletiva
Dissertar acerca dos saberesfazeres que atravessaram as ações da pedagoga Kely
é muito significativo, visto que é sempre muito bom falar de pessoas que chamamos,
pedindo licença poética, de pessoas “do bem”. No entanto, essa postura humana,
muitas vezes, trazia-lhe algumas implicações nem sempre favorecedoras à sua
gestão, principalmente quando buscamos (re)organizar espaçostempos pedagógicos
com vista a torná-los mais inclusivos.
Assim sendo, trago uma narrativa feita por Kely, ao contextualizar seu processo de
escolarização até a chegada aos bancos universitários, com vistas a possibilitarmos
um maior entendimento acerca da ótica em que ela conduzia suas ações no/com o
grupo investigado. Assim narra a pedagoga Kely:
85
A minha vida escolar teve início aos sete anos de idade, numa sala
multisseriada, em uma escola rural, no interior da Bahia. Ingressei na
primeira série com muita vontade de aprender a ler e escrever. E as
primeiras palavras que li foram ‘Ivo viu a uva’.
Lembro-me que adorava brincar. E brincava muito. Os brinquedos não
eram muitos nem como os de hoje, mas a alegria e o prazer estavam
presentes em todos os momentos. Entretanto, ao entrar na sala de
aula acabava a ‘brincadeira’.
Acredito que esta experiência tenha sido fundamental na escolha de
minha profissão. Não tive dúvidas ao decidir ser professora/pedagoga.
E, ao ingressar em um Centro Municipal de Educação Infantil, porque
eu decidi trabalhar nessa faixa etária, tinha um ideal de escola pública de
qualidade. Acredito que cheguei à escola com muitas dificuldades e, como
muitas professoras também estavam iniciando na profissão, fomos
aprendendo juntas.
Durante alguns anos, vivenciei a experiência de trabalhar como pedagoga e
como professora de turmas de séries iniciais. Esta experiência foi muito
importante para mim, pois possibilitou a compreensão de que é necessária
ao professor uma formação teórico/prática/reflexiva permanente e
consistente. E isto não é nada fácil, pois exige profissionais envolvidos e
comprometidos com a construção de uma escola que cumpra com o seu
papel, que é o de favorecer a construção do conhecimento para todos, e que,
ao mesmo tempo, promova experiências significativas para as crianças.
Talvez por ter tido a oportunidade de vivenciar a ‘brincadeira’ em minha
infância mesmo que tenha sido fora da escola, acredito que é uma grande
oportunidade de a criança aprender pela própria experiência com a
participação/mediação/envolvimento do professor.
Nestes anos de atuação como pedagoga, uma questão que tem me
desafiado muito é como construir/implementar um Projeto PolíticoPedagógico que tenha como meta uma prática inclusiva, buscando uma
escola pública de qualidade que favoreça o acesso do conhecimento para
todos.
O papel do pedagogo é muito importante neste processo, pois cabe a ele
articular questões, tais como: formação dos profissionais, construção e
desenvolvimento do projeto curricular da escola, apoio no trabalho de sala de
aula, ajudar na busca de resposta às dúvidas, inseguranças do grupo, etc. E
acredito que chegará o dia em que todos, professores, funcionários e equipe
técnica se tornarão cada vez mais responsáveis, coletivamente, pela
construção e pelo resultado do trabalho de toda a instituição.
Kely atuava com educação infantil há anos e, em relação à paisagem investigada, se
encontrava no seu segundo ano na condição de pedagoga dos Grupos 4, 5 e 6. Meu
relacionamento com a pedagoga Kely iniciou-se no ano anterior à pesquisa, ao
longo do grupo de estudos desenvolvido com os professores desse CMEI, acerca da
inclusão de crianças com nee. Logo de início, percebi que ser pedagoga nesse
CMEI não era fácil, em virtude da sobrecarga de responsabilidade que a pedagoga
recebia. Por diversas vezes, Kely precisava exercer mais de uma função, deixando
de lado a sua principal responsabilidade, que era a gestão pedagógica, ou seja, ela
86
era coordenadora de disciplina, supervisora, diretora, enfermeira, dentre tantas
outras funções.
Em nossos encontros de planejamento, éramos, freqüentemente, interrompidas em
virtude de alguma interferência externa e, por mais que nos escondêssemos,
sempre vinha alguém para dizer e/ou pedir alguma coisa a Kely. Certo dia, criei
coragem e disse-lhe que, a meu ver, isso comprometia sua real função naquele
CMEI, no que ela me confessou num tom de desabafo:
− Pois é eu poderia estar na sala junto com as professoras, porém isto, quase nunca
acontece por estes motivos!.
Kely era uma pessoa muito íntegra, paciente e, principalmente, humana. Acreditava
no diálogo e, no fato de as pessoas se auto-implicarem nos processos educacionais
como uma filosofia de vida. No entanto, isso não era nada fácil, considerando a
realidade complexa e contraditória que ali pulsava, cujo contexto singular/plural
produzia movimentos nada favorecedores aos processos de inclusão das crianças
investigadas.
Assim sendo, confesso ter ficado algumas vezes a questionar a forma singular de
Kely para conduzir sua gestão pedagógica, em virtude de algumas situações
delicadas por mim captadas, conforme o relato abaixo, extraído do diário de campo:
[...] Retorno à escola por volta das 16h20min a fim de assistir a uma apresentação cênica sobre a
vida de Candido Portinari, que foi representada pela turma do pré. Chego um pouco antes da
apresentação e me encontro com Ana logo na chegada. Pergunto-lhe sobre a visita e ela me diz que
foi tudo bem, mas, que ao chegar ao CMEI, eles se depararam com um carrinho de picolés e, em
virtude disso, Mateus está incontrolável!
Vou ao encontro dele e o vejo a chorar e a se bater, mas, a meu ver, está se acalmando. Combino
com Carla de fingir que não o estamos vendo, porém ficamos observando como ele se comporta.
Mateus sobe a rampa e se depara com uma turma que está descendo, ele abraça a professora dessa
turma, como se estivesse pedindo a Margarida para ajudá-lo. Ela retribui o abraço e ficamos
acompanhando junto com a turma, de longe. Ao chegarmos perto do local em que seria apresentada
a peça, a professora Margarida se vira para nós e pede, de forma agressiva para retirá-lo de seus
braços, apesar de que ele já havia se desvencilhado dela. Quando dizemos à professora que ele já
se soltou, ela se volta de forma bem agressiva para a estagiária Carla e diz aos gritos: “Estou sozinha
com 25 crianças e você fica aí conversando com uma mãe!” (referindo-se a mim).
Carla responde de forma agressiva e o bate-boca se instaura. Tento intervir, pedindo licença para
explicar o que aconteceu, quando Margarida vira sua fúria para mim dizendo: “Eu conheço o Mateus,
não sou uma professora de dois anos, mas sim de 20 anos!”.
87
Vejo que o clima não está bom, não respondo, e ela se volta para Carla e começa a bater boca.
Tento pedir calma a Carla. Em seguida, a professora Margarida vai à procura de Ana que, por estar
longe de nós, nada sabe sobre o acontecido. Quando essa professora encontra-se com Ana, ela lhe
diz que se ela não mandar Carla ficar nos seu lugar, ela iria bater nela.
A peça de teatro começa, Ana se mostra revoltada com a situação, mas vira-se para mim e diz: “Eu
fiquei calada para não perder a razão, como você me falou!”.
Ao final, procuro Kely para explicar o que aconteceu, sugerindo uma reunião para esclarecermos o
acontecido. Ela diz que prefere falar só com a professora Margarida no dia seguinte, todavia afirma
em seguida, que não seria possível, em virtude de, nesse dia, se realizar um passeio com a turma.
Ofereço-me para ir em seu lugar ao passeio e nos despedimos combinando, então, a reunião.[...] (155-2007)
Como forma de não deixar as coisas se perderem no tempo, no dia seguinte à
confusão, chego ao CMEI no horário combinado com Kely e a encontro logo no
portão. Digo estar pronta para o passeio, a fim de deixá-la em condição de
conversar com a professora Margarida que se desentendeu com Carla e Ana, no
entanto ela diz que precisa ir ao passeio, afirmando que, na volta, conversará a sós
com a professora, fato este que, infelizmente, acabou não acontecendo.
Apesar de reconhecer que a condução pedagógica de Kely era bastante humana,
haja vista o fato de sempre respeitar a nossa também condição complexa e,
contraditoriamente, humana em constante mutação, acredito que, em alguns
momentos esta forma de serestar pedagoga era mal interpretada por algumas
pessoas e, abriam brechas para ações não muito favorecedoras ao desenvolvimento
das crianças que ali habitavam. Nesse sentido, era necessário que Kely não
perdesse de vista sua implicação e responsabilidade no gerenciamento pedagógico
daquele CMEI.
Logo, para que avançássemos em prol da inclusão almejada naquela paisagem, era
preciso, em alguns momentos, “organizássemos a casa”, e isso, muitas vezes,
escapava, visto que tinha sempre como premissa o respeito aos processos
individuais de cada um.
Apesar de compreender tal posicionamento, entendo que em alguns momentos, isso
favorecia a algumas ações cuja perspectiva de mundo e de sociedade iam de
encontro ao nosso entendimento acerca de uma educação inclusiva que se pensa
ser una/plural. Neste sentido, acredito que apesar de Kely não corroborar com estas
ações, as questões do cotidiano falavam mais alto, de forma que, estes
88
acontecimentos não eram problematizados no/com/pelo grupo, se repetindo com
mais freqüência do que desejávamos.
Nesse sentido, aprofundando mais o debate, uma outra situação bastante incômoda
e, a meu ver, com implicações até mais significativas, refere-se à forma como a
Direção Administrativa, conjuntamente com a pedagoga Kely, acaompanhavam a
participação da professora Tina, responsável pelo apoio pedagógico nesse ano no
CMEI, cujas ações serão contextualizadas no texto que se segue.
Conforme dito, a professora Tina tinha, como função primordial, naquele CMEI,
gerenciar ações em prol da inclusão de alunos ditos com nee, do ponto de vista
pedagógico, atitudinal e/ou estratégico, todavia suas ações, pelo menos em relação
aos sujeitos investigados, eram merecedoras de questionamentos que serão
problematizadas a seguir.
Para começar, Tina sempre retirava as crianças da sala de aula para realizar um
atendimento especial, indo de encontro à perspectiva de inclusão preconizada pela
própria Divisão de Educação Especial/SEME/PMV. Apesar de sempre se encontrar
no CMEI, bem como ter disponibilidade para juntar-se ao grupo nos horários de
planejamento coletivo, afinal atendia Mateus e Miguel semanalmente, ela, quase
nunca, participava do grupo, até mesmo porque, freqüentemente, era substituída por
outra professora, que, por sinal, se tornou muito mais presente à escola do que ela
própria.
Ao questionar Kely acerca da legalidade dessas ações, ela me disse nada poder
fazer, pois Tina era subordinada à Divisão de Educação Especial da Secretaria
Municipal de Educação (SEME). Conforme as transcrições do diário de campo
delimitadas, e essa situação perdurou por todo o ano de 2007:
Quando as professoras se vão, questiono Kely sobre mais uma ausência de Tina no encontro de
planejamento coletivo. Ela tenta ponderar, mas reconhece que ela não está se esforçando para nos
acompanhar. Pergunto-lhe se ela já conversou com Tina sobre o fato dela ficar atendendo Miguel e
Mateus em separado no laboratório pedagógico, em detrimento de atendê-los na sala de aula, como
é defendido pela SEME.
89
Kely me diz ter conversado com Tina, porém ela insiste em defender um atendimento em separado
para eles. Digo-lhe que muitos estudos já discutiram o quanto isto é prejudicial a criança, porém
reafirmo que a decisão é dela (27-6-2007).
Infelizmente, esta situação se manteve por todo o segundo semestre letivo conforme
os relatos abaixo:
Chego à sala e encontro a professora de Educação Física conversando com a pedagoga Kely [...].
Em seguida, percebo que a substituta de Tina está na sala, isto é, ela mais uma vez, não virá á
reunião. Kely apresenta-me à professora que, em seguida, justifica a ausência da Tina, em virtude
dela estar viajando ao Sul do País, acompanhando alguns alunos da Apae, numa competição
artístico-cultural. Todavia fica a seguinte dúvida: se ela sabia desta viagem há tempos, por que não
nos avisou, quando confirmou a participação no encontro?(13-8-2007).
Hoje nos reunimos para finalizar a leitura do texto “Saberes e Práticas da Inclusão”, iniciado no
encontro anterior. A professora do laboratório pedagógico não participou, novamente, do encontro.
Pergunto por ela e Kely me diz não tê-la visto no CMEI ainda, apesar de hoje ser um dia em que ela
já deveria ter voltado de viagem. Faz 15 dias que ela não aparece no CMEI....!? (27-8-2007).
Hoje, finalmente, conseguimos juntar todo o grupo para planejarmos ações voltadas para a inclusão
de Miguel e Mateus. Todavia Kely precisou mandar chamar as professoras, pois elas não desciam
para o grupo de estudos.
Uma outra questão positiva foi a adesão de Tina ao grupo (EUREKA!!!). Na verdade, ela chegou à
sala para se justificar da ausência na semana anterior bem como para dizer que talvez saísse do
CMEI, pois sua nomeação para professora na SEME saiu no final de semana passada. Nesse
sentido, ela deveria escolher entre assumir uma sala de aula e, conseqüentemente, deixar o CMEI,
ou ficar lá, desde que a SEME garantisse sua vaga até o final do ano, coisa que, segundo ela, seria o
ideal em virtude dela achar complicado ter de assumir uma turma assim, já quase no final do ano (39-2007).
A partir de então, as coisas ficaram ainda piores visto que Tina desapareceu do
CMEI:
Chego por volta das 13h e fico, para variar, esperando a chegada dos participantes do grupo de
estudos. Kely chega e me avisa que Joana não veio trabalhar hoje, logo só poderemos discutir com
Ana, já que Tina “[...] desde a semana passada não dá notícias!”, fala de Kely. Comento achar isto
muito complicado....
[...] Lembro a Ana que Tina ficou de ajudá-la neste trabalho, porém Ana diz que ela não a ajudou.
Olho para Kely que afirma: “Estranho este comportamento dela, a gente para resolver um problema
pessoal é orientado a fazer isto em horário alternado ao trabalho. Como é que ela falta sem dar a
menor satisfação!”
Digo-lhes que, se acharem pertinente, poderia ligar para a SEME a fim de saber o que está
acontecendo quando fico sabendo que Tina, no início da semana anterior, procurou a chefe de
Educação Especial da Seme a fim de pedir para ficar no CMEI. Ela disse-lhe ver possibilidades desde
que Tina fosse lá entregar a sua documentação, o que ela não fez, de forma que orienta a escola a
ligar para a casa dela a fim de saber por que não vem trabalhar (24-9-2007).
No intuito de ouvir/entender e, quem sabe, ajudar de alguma forma a Tina, marquei
com ela alguns encontros com vistas a trocarmos algumas idéias, mas ela faltou a
90
todos eles. Apesar dos “bolos” recebidos, fiz uma última tentativa, solicitando-lhe
que me entregasse uma autonarrativa para que, pela via escrita, pudesse conhecêla melhor, porém ela não me entregou o texto. Então entendi o momento e respeitei
sua posição. No entanto, gostaria de destacar o quanto essas ações, bem como a
permissão para que elas ocorram, não instituem práticas educacionais inclusivas, ao
contrário, reafirmam práticas segregadoras que há muito buscamos ressignificar ao
receber alunos com nee, nos contextos educacionais. Neste aspecto, penso que
tanto a SEME, quanto a Direção Administrativa, bem como a pedagoga Kely, de
forma direta e/ou indireta, corroboraram com estas ações, na medida em que não
dialogaram entre si, para acompanharem tal processo.
Uma outra questão para dialogarmos remete-se, mais uma vez, ao lugar e a forma
instituídos no/com o grupo acerca da formação continuada em contexto. Em meu
entender, o excesso de atraso que nossos planejamentos sofriam, associado à falta
de leitura dos textos escolhidos para serem lidos, apontavam a necessidade urgente
de se refletir acerca dessas ações.
Para tanto, apoio-me numa fala de Caparroz e Bracht (2007), ao dissertaram acerca
do tempo e o lugar da didática no contexto das aulas de Educação Física, quando
nos provocam a refletir sobre o quanto a prática pedagógica se encontra atrelada a
uma ação ético-política em que o compromisso com a formação, inicial e continuada,
é uma premissa:
[...] o exercício da docência demanda do processo de formação (inicial e
continuada) dos professores que este garanta a apropriação e
(re)construção dos conhecimentos necessários para desenvolver a prática
pedagógica com qualidade.
A segurança com que a autoridade se move implica uma outra, a que se
funda na sua competência. O professor que não leva a sério sua formação,
que não estuda, que não se esforça para estar à altura de sua tarefa, não
tem força moral para coordenar as atividades de sua classe (CAPARROZ;
BRACHT, 2007, p. 31).
Tentando compreender tal situação, apoio-me num estudo de Dias (2003), ao
analisar um possível mal-estar vinculado à condição de ser professor, quando ele
não consegue autorizar-se nessa ação, produzindo, assim, um discurso melancólico
que o imobiliza. De acordo com esse estudo, ao articular a escola, a educação e a
sociedade, de forma a chamar a atenção para o modo como as transformações da
91
educação têm atingido a figura do professor nesse contexto, reafirma o fato de a
escola apresentar-se ainda como um espaço promovedor de aspectos da sociedade
hegemonicamente instituídos, embora seja ela passível de modificações, em virtude
da existência de contradições inerentes à vida.
O autor enfatiza a necessidade de o professor enxergar-se nessa dinâmica, para
conseguir lidar com essas questões, pois acredita que o mal-estar que o acomete
seja fruto tanto de conflitos pessoais relativos à sua subjetividade diante da ação
educativa quanto das contradições produzidas na/pela sociedade.
Dando continuidade, Linhares (2001a) nos alerta sobre os diversos espelhos
produzidos sócio-historicamente nas/pelas escolas, ao refletirem imagens que muitas
vezes nos (de)formam, ou seja, projetam sobre nós/acerca de nós imagens em que
não nos reconhecemos.
Tais imagens são fabricadas pelo espelho do Estado, quando impõe políticas
educacionais que visam a refletir uma imagem fracassada dos professores, sem
oferecer-lhes oportunidades de escuta ou mesmo possibilidades de mudança de
rumo e, também, pelo espelho de pesquisadores negativistas, quando destacam um
quadro pessimista do contexto educacional, deixando evidentes somente as
dificuldades em detrimento das possibilidades que apresenta.
Assim sendo, se desejamos pensar uma prática educacional inclusiva, não podemos
nos furtar às nossas responsabilidades cotidianas, sob pena de nos tornar espelhos
de nossa própria falta de compromisso. E, nesse sentido, apesar de não pretender
buscar um culpado para algumas ações questionáveis naquela paisagem, destacarei,
a seguir, conforme a notação do diário de campo, o quanto esse conjunto de fatores
influenciava na lógica organizativa daquele CMEI:
Dirijo-me, então, à sala de informática para organizar e formatar a introdução do texto, ficando lá por
toda a tarde. Ao longo do período em que lá fiquei, pude observar algumas situações que gostaria de
comentar antes de discutir sobre o texto propriamente dito, como o fato de que, enquanto lá estava,
fui interrompida por Amélia(substituta de Tina), pois ela desejava ficar lá com uma criança. Ofereci
para que ela lá trabalhasse, porém disse-me que poderia fazer a mesma coisa em outro lugar. Neste
ponto, retomo a questão: Cadê Tina? Ultimamente tinha mais visto Amélia lá do que ela. Será que
isso é recebido de forma natural pelas crianças que precisam desse serviço?
92
Outra coisa: por que o atendimento na sala de informática e não na sala de aula? Não era essa a
política recomendada pela Divisão de Educação Especial do Município.
[...] Outro fator a se comentar refere-se ao fato da sobrecarga sofrida pelos pedagogos nesse CMEI,
haja vista o fato deles terem de ocupar mais de uma função, isto é, são coordenadores, supervisores,
diretores, enfermeiro e, quando dá, são também pedagogos!
Hoje, mais do que nunca, tive a certeza disso, pois, todas as vezes que Kely me procurava para ver o
texto que estávamos organizando (e olha que estávamos “escondidas” na sala de informática), vinha
alguém para dizer que tinha uma pessoa chorando querendo vê-la; uma criança que a mãe a havia
impedido de ver, alguém pedia um quadro para ser exposto na apresentação, pedir de tudo e um
pouco mais. Por fim, criei coragem e conversei com ela sobre este assunto visto que, a meu ver, isso
comprometia sua real função naquele CMEI (12-9-2007).
Em meu entender, esses exemplos produzem imagens (de)formadas sobre a vida,
na medida em que desconsideram uma premissa maior que é a educação para o
sujeito,
em
detrimento
de
uma
ação
descomprometida
com
princípios
emancipatórios (SANTOS, 1999) que visam a educar o sujeito numa perspectiva
ética, estética e política. Isso se configura, no caso de Tina, pela forma como
conduzia suas ações didático-pedagógicas, reafirmando uma concepção nociva
sobre a educação, cujos pressupostos desconsideravam princípios básicos como a
relevância da afetividade, construída cotidianamente na/pelas relações sociais, em
especial quando falamos de crianças com nee, em nosso caso, autistas, observando
suas dificuldades de estabelecer laços sociais, associadas ao desconforto que lhes
impõem as alterações das rotinas, que são desconsideradas por essa professora.
Já em relação a Kely, entendo que, em virtude de ela se responsabilizar não só pela
gestão pedagógica de sete turmas, mas, também,
acumulando funções outras,
como coordenadora de disciplina, auxiliar de direção, supervisora dos serviços
terceirizados da cozinha, motorista, dentre outras, isso a impedia de exercer a sua
principal função naquele espaço.
Entendo que esta sobrecarga de funções prejudicava Kely, especialmente no que se
refere ao acompanhamento pedagógico das práticas que ali se instituíam. Em meu
entender, este contexto favorecia algumas praticas cuja falta de compromisso
profissional era uma prática, conforme já relatado no caso da professora Tina.
Em frente ao exposto, proponho como premissa a busca pelo envolvimento de todos
nesse processo, no intuito de que compreendam essa dinâmica social,
93
considerando os conflitos que atravessam as implicações inconsciente de seus
respectivos desejos, a fim de que se vislumbrem fissuras a serem preenchidas por
caminhos que apontem a ressignificação do contexto da impossibilidade.
Para tanto, precisamos operar no sentido de iluminar uma perspectiva educacional
que renuncie aos modelos hegemonicamente cristalizados colocando em xeque tais
pressupostos, em prol de possibilidades que operem em favor dos sujeitos/alunos
nas suas mais diversas formas de se manifestar, sendo, por conseqüência, mais
inclusivas.
Nesse sentido, destacarei, no item que se segue, um movimento instituído
no/pelo/com o grupo que, em meu entender, tece fios dessa perspectiva.
2.2 AS PRÁTICAS COTIDIANAS ATRAVESSANDO FRONTEIRAS AO ENCONTRO DE
PROCESSOS INCLUSIVOS
Buscando estabelecer pontes entre as considerações teórico-epistemológicas até
aqui apresentadas em frente aos dados captados na/pela paisagem, percebo que,
apesar da dinâmica singular que habitava aquele CMEI, tendo em vista o fato de
algumas ações politicamente instituídas nem sempre se legitimarem de fato ou, num
contexto mais nocivo ainda, tais ações dispararem movimentos diferentes e/ou
contrários à sua intencionalidade inicial, gostaria de afirmar que, no contexto geral, o
grupo se movimentou bastante na busca por um projeto inclusivo possível àquele
momento.
Ao me remeter ao contexto da paisagem investigada, percebia que tanto Joana, Ana
quanto Kely, apesar de suas condições singulares, instituíram diferentes e
interessantes práticas inclusivas, que acredito terem sido disparadas no/pelo grupo
de formação, ao buscar trilhar caminhos pedagógicos inclusivos, considerando as
crianças ditas autistas, pela via de ações coletivamente colaborativas, conforme
alguns exemplos extraídos do diário de bordo apresentados a seguir:
Episodio 6. Tecendo os primeiros fios
Hoje, finalmente, terminamos de discutir o primeiro texto de nossa formação. Ufa! Apesar das
intermináveis intervenções na sala, fomos firmes e não deixamos a peteca cair! A discussão foi
interessante porque ao longo da leitura, tivemos condições de fazer algumas ponderações, tais como:
94
a necessidade de uma proposta de ação coletiva; a percepção que a criança tem acerca de quem
interage com ela (no caso a professora); a influência do comportamento emocional do professor
para/na criança; a importância da inserção lenta e gradual de regras sociais de convivência; a
possibilidade de se oferecer atividades pedagógicas em outros espaços que não somente na sala de
aula propriamente dita, buscando aí pistas que apontem por onde seguir; pensar estratégias
pedagógicas baseadas no concreto; negociar sempre que possível, mesmo que seja para atender, a
princípio, à intenção da criança; estimular os laços afetivos entre as crianças e, neste caso, explicar
para o grupo sobre a condição desse aluno para que não haja uma interpretação de privilégio em
relação à criança com autismos; atenção às alterações de humor (agitação, ansiedade,
agressividades, entre outros) e, em caso do excesso, encaminhar a um especialista e, para finalizar,
produzir um relatório o mais detalhado possível acerca de quem é essa criança.
[...] Ao final, apresentei ao grupo as imagens de Miguel (o tempo só me permitiu mostrá-lo), pois
defendia a idéia de que seu diagnóstico é discutível, apesar de saber que o nosso problema maior
não é o diagnóstico em si, mas o que fazemos com ele. A minha intenção nessa ação era
problematizar o fato dele só vir à escola três dias na semana, o que, a meu ver, era um equívoco, na
medida em que ele nos mostra o quanto vem crescendo, mesmo nessas condições. Ao final das
imagens, Kely virou-se e disse: “Graça, como as imagens são importantes para percebermos como
as coisas estão se modificando né?” (18-4-2007).
O destaque dado a esse episódio tem como premissa o fato de que, nós
pesquisadores, ao primarmos por um entendimento de pesquisa, cuja ação seja
pautada por pressupostos de colaboração, precisamos tomar os envolvidos neste
estudo como sujeitos produtores de conhecimento. Entretanto, não podemos
esquecer que isso se dá na/com/sobre a dimensão coletiva e contextualizada
institucional e historicamente (PIMENTA, 2005). Logo, o tempo processual de
tomada
de
conhecimento
é
muito
singular,
de
forma
que
precisamos
criar/propor/ousar várias formar para provocar os envolvidos a compreender e se
envolver com esta proposta.
No entanto, a partir do momento em que este movimento se dá, novos e múltiplos
fluxos são disparados conforme os episódios que se seguem:
Episódio 7. O movimento do/no grupo disparando novos movimentos
[...] Tudo começou quando parei na porta de Ana para saber como Carla havia passado o final de
semana após o incidente de sexta com a professora da sala ao lado. Carla me mostrou o roxo que
ficou com a mordida de Mateus, dizendo ainda que, ao chegar em casa, chorou pra valer, pois ficou
muito sentida com a forma como trataram Mateus.
Neste instante, Ana chega agitada como sempre, pedindo-me ajuda na reunião que terá com a mãe
de Mateus. Digo-lhe para contar comigo. Ela nos diz que teve de tomar remédios para dormir no final
de semana de tão agitada que se encontrava e, como havia lido no texto de Baptista sobre a ação
pedagógica de professor influenciando no comportamento das crianças autistas, sabia que isso
poderia ter prejudicado Mateus bem como toda a turma na aula anterior, quando ele foi expulso da
sala dos professores.
95
Para tranqüilizar, digo para não tomar as coisas somente para si, lembrando acerca de um livro lido
por mim, neste final de semana, em que o autor discute o comportamento das crianças na educação
infantil, de forma a ir alinhavando várias questões e o comportamento das crianças. Lembramo-nos
da condição do pátio pequeno, cimentado, coisa, a meu ver, pouco favorecedora ao desenvolvimento
das crianças, e que poderia também contribuir para tal agitação.
Ana vira-se para mim e comenta o quanto precisamos ler para poder crescer profissionalmente. Em
seguida, solicita-me o livro a fim de tratar disso com mais afinco, mas afirma que, após nossa
conversa, tentará se conter para não perder a razão ao conversar sobre isto com a diretora. Fiquei de
levar no final do horário o livro lido por mim sobre educação infantil denominado: A práxis na
formação de educadores infantis (SOUZA; BORGES, 2002), sem compromisso, para ela ler, quando
puder (22-5-2007)
Para mim, ouvir essa fala de Ana era como fazer um gol ao final de uma partida que,
inicialmente, não tinha começado bem! Afinal, despertar no/com o grupo, em
especial com Ana, sobre a importância da formação continuada para a práxis
pedagógica do professor era muito importante para mim.
Por outro lado, o fato de Ana estar me procurando para, não só falar sobre sua
formação, mas, também, de suas angústias e receios, me dava a certeza de que, de
alguma forma, já havia conquistado a sua confiança e isso não se limitava a ela. Aos
poucos fui percebendo que outras pessoas do grupo tomaram aquele espaço,
coletivamente instituído, como um lugar em que pudessem falar sobre si, professor,
mas também e, principalmente, sujeitos.
Episódio 8 Os diversos outrosnovos caminhos percorridos no/com/pelo grupo
Hoje, apesar de Ana e Tina não terem comparecido ao nosso encontro marcado para as 14h, o
mesmo começou pontualmente às 14h30min com a presença de Joana, Sandra, Kely e Eu.
Conseguimos sentar e discutir um pouco acerca da contribuição que a literatura pode fornecer à
formação dos educadores/as, especialmente no que tange aos processos de inclusão
socioeducacional de crianças que apresentam necessidades educacionais especiais.
Iniciamos a discussão do capítulo do livro: ‘Autismo e Educação’, organizado por Cláudio Roberto
Baptista e Cleonice Bosa, que apresenta um artigo, escrito por Hugo Bayer, que discute sobre o
autismo infantil e os contextos pedagógicos, intitulado: “A criança com autismo: propostas de apoio
cognitivo a partir da ‘teoria da mente”.
Na verdade, ficamos apenas no parágrafo em que ele discute a dificuldade de representação mental
dos autistas, em relação a relações socioafetivas, pois, a nosso ver, não se enquadra no perfil de
Miguel.
A meu ver, esse encontro foi bem proveitoso para o grupo, bem menos pela discussão teórica, mas
por ter me dado condições para saber um pouco mais acerca do contexto de vida de kely e suas
expectativas acadêmicas/profissionais já que, num dado momento da conversa, ela se permitiu falar
que tem expectativa de fazer um mestrado em Educação, apesar de, em 98/99, ter sido preterida
numa entrevista num situação que para ela não parecia clara.
96
[...] Para não desviar do tema no momento, disse a Joana e a Kely que o PPGE era um espaço
voltado a pessoas como elas e, que nesse sentido, elas precisavam se organizar e sistematizar suas
idéias e/ou intenções de pesquisa, colocando-me inteiramente à disposição delas para tal (6-6-2007).
Outro interessante movimento a se destacar acerca da inclusão foi a construção
coletiva de um texto (ANEXO A) intitulado: Experiências instituintes colaborativas
forjando práticas inclusivas na educação infantil: um relato de experiência, que foi
apresentado no seminário de dez anos do Núcleo de Educação Infantil (NEDI), no
qual se buscou dissertar acerca das experiências instituintes colaborativas como
possibilidade de inclusão de crianças com diagnósticos de autismo em turmas finais
de um Centro Municipal de Educação Infantil, localizado no município de Vitória, no
Estado do Espírito Santo.
Apesar de reconhecer que, pela lógica liberal/capitalista em que vivemos, sempre
nos sentimos em débito, achando que poderíamos ter feito muito mais do que
produzimos coletivamente, concebo esses movimentos como uma interessante pista
instituída no/pelo grupo, no intuito de minimizar algumas estratégias de resistência
que se forjaram diante do aprisionamento que acomete algumas instituições
escolares, uma vez que esse espaço se constitui como premissa maior na busca de
imperativos de justiça, liberdade e paz, que nos tornam imbricados uns com os
outros de forma a nos responsabilizar por uma história que é, ao mesmo tempo,
individual e coletiva, apesar dos riscos/abismos que essa perspectiva nos impõe por
trilhar caminhos múltiplos.
Nesse sentido, articular coletivamente o tempo processual de cada um dos
habitantes foi, para mim, reconhecidamente, um grande exercício, já que trabalhar
na/com a diversidade exigiu-me uma movimentação constante, no sentido da
humildade, da paciência, da busca pelo encantamento com/na formação, isto é, da
reavaliação de paradigmas muitas vezes em mim cristalizadas, acerca do que se
constitui ser/estar educador na atualidade. Os trechos apresentados a seguir,
extraídos do diário de campo, visam a contextualizar como nos organizamos para
produzir o texto apresentado nesse Seminário, considerando o fato de sermos
pessoas cuja lógica de sistematização de ações era bastante díspar:
Hoje irei ajudar ao grupo de professoras a escrever a experiência que estamos construindo
coletivamente para apresentar no Seminário de Educação Infantil a ser realizado na UFES. Assim,
logo que chego, sou avisada por Kely que todos irão participar da elaboração do texto. Joana e Kely
97
disseram até que já escreveram algumas linhas. Dirijo-me, então, à sala de informática para organizar
e formatar o texto, ficando lá por toda a tarde [...]. Em relação ao texto, organizei-o de forma que eu o
fundamentasse teoricamente e as professoras, estagiárias e pedagogas apresentassem suas
impressões sobre a experiência vivida com a inclusão daqueles alunos/as e, todas juntas,
construíssemos as (in)conclusões finais.
Quando Kely leu a introdução disse que percebia o quanto precisamos estudar para podermos
produzir um texto de forma academicamente correta. Percebi que Ana também se sentiu implicada,
visto comentou: “É, como a gente precisa trabalhar a escrita, né?”. Disse às duas que a
responsabilidade maior com a parte teórica do texto era minha, afinal, eu era a doutorando ali, né?
Porém comentei também que estava me sentindo mal, pois desejava que elas se reconhecessem no
texto, isto é, que o texto também tivesse a “cara delas” e que talvez, na ansiedade, eu tivesse
exagerado no tom. Assim, combinamos que segunda-feira, organizaríamos juntas o texto para que
ele tivesse, realmente, uma formação coletiva (12-9-2007).
Hoje, conforme combinado, era o dia em que organizaríamos o texto coletivo para inscrevê-lo no
evento sobre a Educação Infantil. Havíamos nos organizado de forma que cada uma digitaria sua
parte do texto no final de semana a fim de juntas, hoje, editarmos o texto no formato solicitado pela
organização do evento. Todavia, infelizmente, nenhuma delas conseguiu trabalhar seus respectivos
textos.
Confesso que, fiquei bastante chateada com esta postura visto que desejava muito que as cosias
acontecessem e, neste sentido, não consegui disfarçar minha decepção! Kely ficou a me olhar
e,inicialmente, não via outra saída se não desistir, afinal, já era segunda-feira: o único dia que o
grupo teria para, juntas, sentar e discutir o texto. Para piorar, Ana e Joana desceram quase meia hora
atrasadas, por voltas das 14h25min. Eu, bastante aborrecida, questionei, então, o grupo indagando
se elas desejavam, mesmo, apresentar o trabalho?
Kely respondeu que sim, porém devolve para mim a responsabilidade, perguntando-me se eu tenho
uma idéia sobre o que fazermos? Digo ao grupo que não tenho, afinal, a minha sugestão era que elas
já estivessem com o texto organizado, para que, juntas, o editássemos dando a “cara” do grupo e
não somente a minha.
Ana, apesar de reconhecer que nada fez, lembra-se de ter digitado a avaliação de Mateus em seu
pendrive, de forma que isto poderia ser a sua parte no texto. Joana afirma que nem sabia que era
para ter digitado o texto em casa, e Kely assume que não ter deu conta de fazer sua parte. Eu, então,
digo ao grupo, não fazer sentido o texto ser feito só por mim, afinal não era esta a intenção, mas, sim,
uma construção coletiva acerca da nossa experiência.
Proponho ao grupo que, se elas garantissem a digitação de seus respectivos textos, entregando-o a
mim até o final da tarde, eu poderia organizá-lo em casa, durante à noite, para que elas, dessem uma
olhada no dia seguinte. Todas aceitam a sugestão e Ana passa a avaliação de Mateus para o meu
Laptop, a fim de eu transpô-lo ao texto, enquanto Kely e Joana buscam alguém para digitar suas
respectivas partes.
Em casa, com mais calma, tento organizar o texto, porém tenho a idéia de passar para Kely a parte
restante do texto, pois, penso que ele deveria ter outrasnovas caras. Até porque ela,desejava
apresentá-lo, caso ele fosse aprovado. Então, ao retornar ao CMEI, entrego a Kely o CD com a parte
do texto que trabalhei e sugiro a ela que insira sua parte e a de Joana no texto. Kely aceita meio que
sem opção e combinamos de ver o texto no dia seguinte, porém, quando chego lá, ela, novamente,
me diz que “não deu conta” de organizá-lo, mas promete fazê-lo ainda naquela tarde de terça-feira
para o dia seguinte (17-9-2007).
Chego ao CMEI para acompanhar a sala de Ana. Todavia, antes de subir, vou encontrar-me com
Kely a fim de saber como ficou o texto. Lá chegando, recebo a boa noticia de que ela havia
organizado o texto e que só faltava agora inscrevê-lo na Ufes.
Como forma de fazer os ajustes, solicito, então, o texto, para fazer a verificação e percebo que o
mesmo tem aproximadamente 17.000 caracteres, sendo que o limite é de 10.000. Assim, fico, ao
longo da tarde, organizando-o de forma a atender ao limite sugerido. Imprimo o material, gravo no
98
CD, considerando que o programa do computador do CMEI é Linux, que é um programa diferente do
Word e isso complica bastante todas as minhas tarefas (19-9-2007).
No intuito de analisar esses trechos, retomo Oliveira (2003), ao pesquisar o
processo de reprodução-transformação na escola, quando afirma que a noção de
sujeito se constitui também pelas práticas institucionais e delas é constituinte, no
entanto a realidade neoliberal perversa de apropriação da força de trabalho humano
nos leva, muitas vezes, a buscar estratégias de sobrevivência que, ao invés de nos
libertar a fim de que possamos, de fato, gozar do direito à vida, somos, com
freqüência, capturados em armadilhas sutis e veladas que somente nos permitem
refletir/reproduzir o que nos é determinado.
Entretanto, para finalizar tais considerações, reporto-me ao fato de que a escola,
como a vida, não se explica e sim se vive. Logo, no que tange à paisagem
investigada, ousaria afirmar que, apesar de, ou em virtude daquele contexto, captei
brilhantes imagens, por mim concebidas como experiências instituintes (LINHARES,
1997, 2000, 2001a), cujo ponto de partida é o conhecimento válido não somente
para a ciência, mas, principalmente, para as singularidades presentes em nossas
múltiplas formas de ser/estar no mundo.
Nesse sentido, a autora nos convida a operar com a escola que somos,
estabelecendo as possíveis conexões entre a vida e a sociedade ali engendradas,
considerando suas interfaces econômicas, culturais, éticas, políticas, entre outras,
sempre por meio da negociação, na qual a observação/reflexão/observação singular
e coletiva constitua uma prática cotidiana significativa, que promova religações entre
as diferentes esferas de atuação humana, a fim de ampliarmos nossas lentes para
dar visibilidade às potências criadoras que ali existem.
99
3 PALAVRAS EM TORNO DO BERÇO:17 A CONSTITUIÇÃO DA
SUBJETIVIDADE HUMANA EM FRENTE AOS PROCESSOS DE INCLUSÃO
EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Nós todos sabemos a importância que Lacan dá a esse tempo
particular de reconhecimento pelo Outro da imagem
especular, esse momento onde a criança se vira para o
adulto que o carrega, que o segura, e onde ela lhe demanda
por esse olhar confirmar isso que ela percebe no espelho
como assunção de uma imagem de domínio ainda não
adquirido (LAZNIK, 2004, p. 53).
17 Título inspirado num artigo de Marie-Christine Laznik (2004)
.
100
Na tentativa de entender os processos de subjetivação instituídos na/pela paisagem
investigada, seguirei os fluxos de Miguel e Mateus como foco de análise neste
capítulo, a partir das contribuições das teorias psicanalíticas de Freud e Lacan. Esta
movimentação visa compreender não só essa estruturação, mas também em que
medida a sexualidade18 institui em nós processos de humanização, de ordem
consciente
e/ou
inconsciente,
que
tanto
podem
nos
aprisionar
em
sintomas/neuroses que nos adoecem no corpo e na alma, quanto nos libertar, ao
possibilitar-nos interpretar seus significados, muitas vezes inconscientemente
deslocados.
As falas fundadoras que envolvem o sujeito são tudo aquilo que o
constitui, seus pais, seus vizinhos, toda a estrutura inteira da comunidade,
e o que não só o constitui como um símbolo, mas o constitui em seu ser.
São leis da nomenclatura que determinam – até certo ponto – e canalizam
as alianças a partir das quais os seres humanos copulam entre si e
acabam criando, não apenas outros símbolos, mas também seres reais
(LACAN, apud VASQUES, 2003, p. 48).
A opção por este debate se fundamenta no fato de, algumas denominações dadas
culturalmente às crianças ditas com nee, ao ecoarem nos contextos sociais, em
especial nos CMEI’s, tornam-se estruturalmente nociva a estas crianças.
As narrativas anteriores reafirmam tal concepção como quando, uma mãe acusa
Mateus de ter prejudicado seu filho no entendimento de uma atividade escolar, o
encaminhamento da professora Tina, para que não levássemos Miguel e Mateus ao
parque da Vale do Rio Doce, ou mesmo, a fala da mãe de Mateus quando afirma
que ele se encontra no seu dia de autista.
Os estudos de Albuquerque (2001) reafirmam essa posição, ao colocar em
discussão a Psicanálise como uma modalidade de saber, cuja especificidade,
delimitada inicialmente por Freud, foi trilhada por concepções pautadas na tradição
iluminista, com formulações baseadas no movimento romântico, como instrumento
para se questionar a cultura, o modo de fazer ciência e os processos literários. Para
a autora, a espinha dorsal do trabalho de Freud centra-se na concepção de uma
18 Para Freud, a sexualidade não se reduz a um ato genital orgânico, mas, sim, a um ato psíquico, que se refere a todas as formas de signos e símbolos de
vida social e cultural (LECHTE, 2003; RONDAS, 2004).
101
subjetividade dividida, atravessada por conflitos e contradições irreconciliáveis, por
afetações dissonantes, num permanente devir.
Corroborando essa perspectiva, Vasques (2003) diz ser a educação um caminho
nos múltiplos processos de inserção do indivíduo na sociedade, pela via do
fornecimento de objetos do mundo simbólico que lhe permitam constituir-se como
um sujeito inscrito em uma história singular/plural, cabendo, então, aos envolvidos
nesses processos (educadores, pais, entre outros) oferecer elementos que
possibilitem esse movimento.
Assim sendo, tecerei considerações sobre a constituição do autismo no que tange
ao conceito, terminologia, caracterização e principais representantes. Apoiar-me-ei,
também, em algumas contribuições de Lacan, tendo como foco a constituição da
subjetividade humana pela via da linguagem, simbolicamente construída na/pela
cultura, considerando suas implicações na instauração das manifestações psicóticas
e autistas e observando, também, como a noção psicanalítica de pulsão e a
metáfora do estádio do espelho são delimitadoras nesse processo e o quanto um
olhar de presença/aposta pode contribuir para ressignificar tal condição e, por
conseqüência, favorecer os processos de inclusão socioeducacional das crianças
focos deste estudo.
3.1 TECENDO FIOS NAS MALHAS DOS PROCESSOS DE INCLUSÃO
EDUCACIONAL DE CRIANÇAS AUTISTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O
MERGULHO NA TEORIA PSICANALÍTICA
A seguir, farei uma breve contextualização acerca de Miguel e de Mateus, no intuito
de melhor compreendermos quem são estes sujeitos, considerando a paisagem em
tela.
102
3.1.1 Miguel e sua tessitura instituída
Miguel é uma criança de cinco anos pertencente à sala B do Grupo 5 do CMEI
investigado. É aluno da professora Joana. Ele me foi apresentado como uma criança
autista, com base no diagnóstico (discutiremos tal diagnóstico em capítulo mais
adiante), da Apae/Vitória/ES, instituição a qual se encontrava vinculado no momento
deste estudo. Sua freqüência ao CMEI era de três dias/semana, pois às segundas e
quartas-feiras ele ia para a Apae, no mesmo horário de aula, a fim de ter um
acompanhamento multidisciplinar. A escolha pelo horário foi, de acordo com a fala
de sua mãe, em virtude de ele não conseguir acordar pela manhã.
Segundo informações, Miguel era filho de pais separados e tem uma irmã por parte
de mãe. No momento da pesquisa, seus pais se encontravam, além de separados,
em conflitos bem delicados que interferiam significativamente em seu processo de
desenvolvimento. Para sua mãe, Anelise, um dos motivos principais desse conflito
residia no fato de o pai não aceitar a condição de seu filho, acusando-a de tê-lo
mimado além da conta!
Miguel estava há três anos naquele CMEI. Nos dois últimos anos, de acordo com os
relatos de sua mãe e da pedagoga Kely, ficava pouco tempo em sala de aula
propriamente dita optando pelo pátio ou, quando permanecia em sala, ficava sempre
pelos cantinhos, evitando o grupo, jogava sempre os mesmos jogos: jogos da
memória e de associação às formas.
Conforme informações captadas em reunião com as professoras e a pedagoga, sua
família demorou muito para levá-lo a uma avaliação mais detalhada acerca de sua
condição, o que só se deu no final de 2006, comprometendo mais ainda seu
desenvolvimento, no medida em que a inserção de Miguel em serviços
multidisciplinares só se efetivou após esta avaliação.
Em nossa primeira reunião coletiva, Joana me disse que Miguel falava somente
algumas palavras, repetindo frases soltas (semelhantes ao desenho animado do
Discovery
Kids),
reconhecia
cores,
formas
geométricas,
animais,
figuras
103
semelhantes (mesmo com tamanhos diferentes), adorando jogos que tratavam
desses temas.
Em relação ao cotidiano escolar, Miguel, inicialmente, não se alimentava de nada
que era oferecido, não sentava na rodinha, preferindo os cantos da sala e o pátio
vazio, ficando sempre à parte em relação aos alunos/as, de forma a não interagir
com os colegas, muito menos aceitava compartilhar os brinquedos. No horário do
recreio, optava por ficar observando, a distância, tudo que ocorria, preferindo
lugares altos com o corrimão da escada, janela ou telhado da casinha. Havia
também momentos em que ele subia para sua sala ou ia para a sala de aula da
professora Ana.
3.1.2 As tramas tecidas com/por/para Mateus
Quando conheci Mateus, ele tinha cinco anos de idade e apresentava diagnóstico de
autismo, de acordo com laudo do Instituto Veras/RJ. Ele era uma criança ativa,
observadora e bastante carinhosa com as pessoas com quem se identificava.
Mateus apresentava dificuldades para aceitar alguns limites e, nesses momentos, se
auto-agredia fisicamente, bem como tentava morder a si e aos que procuravam
contê-lo. Todavia, após acalmar-se, demonstrava uma profunda tristeza com o
ocorrido.
Sua comunicação limitava-se a alguns grunhidos, ocorrendo, principalmente, por
meio da linguagem gestual e de rituais motores estereotipados, pela via excessiva
de palmas que se acentuavam bastante quando se sentia ansioso e, quando
contrariado, batia muito em sua cabeça.
Outro fator que desejo destacar era uma insistência obsessiva na manutenção da
rotina, por ele instaurada em relação à música, de forma que, todo dia, ao chegar à
sala, sempre que podia, buscava o som, ligava-o bem alto numa mesma música,
ficando a ouvi-la, se pudesse, por todo o dia, não permitindo a ninguém se
aproximar do aparelho.
104
Quanto à sua produção, apresentava apenas rabiscos e, para produzir algo escrito,
era preciso que pegassem em sua mão, apresentassem o local da atividade, para,
em seguida, ele percorrer com os dedos a letra e depois rabiscava tudo por cima.
Com o passar do tempo, Mateus foi descobrindo a escrita de seu nome conforme o
relato que trarei mais adiante (FOTO 7)
Foto 7. Mateus em sala de aula
Com relação ao grupo, inicialmente aceitava apenas duas crianças da turma para
interagir que, por coincidência, apresentavam traços físicos semelhantes aos dele,
mas, com o passar do ano, ampliou esse leque, porém sempre focando crianças
cujos traços eram semelhantes aos seus. Quanto aos professores, além de sua sala
de aula, Mateus aceitava a professora de Artes, mas interagia com a de Educação
Física do primeiro semestre. Segundo a fala da professora Ana: “Acho que é porque
ela não tem muito contato físico com ele. Ela é ótima, mas é mais fechada e Mateus
adora ser abraçado, Já com a professora de Artes, como ela pega, abraça e aperta,
ele, Mateus, vai à aula!”.
Mateus ficava pouco tempo em sala de aula e, quando lá estava, resistia em sentar
na rodinha com o grupo e, quando o fazia, logo se levantava, preferindo ir para a
rampa e/ou para o pátio. Na hora do recreio, não permanecia lá. Acreditávamos que,
por apresentar uma acuidade auditiva muito desenvolvida, a agitação e o barulho do
pátio o incomodavam. De acordo com falas de sua mãe, Mateus era capaz de captar
a chegada de alguém pelo simples toque numa maçaneta de porta.
105
Sem sombra de dúvida, Mateus foi uma das crianças que mais sofreu preconceito
ao longo dos momentos em que lá estive, inclusive por algumas professoras do
CMEI que o viam como uma criança autista e, não como o aluno Mateus,
principalmente por ele apresentar com mais evidências alguns movimentos que,
socialmente, delegamos aos autistas.
Para efeito melhor compreendermos tais considerações, retomaremos o debate que
perpassa o autismo, a psicanálise e os processos educacionais, trazendo como
pano de fundo algumas narrativas de uma experiência vivida acerca da inclusão
socioeducaicional de duas crianças consideradas autistas num Centro Municipal de
Educação Infantil na cidade de Vitória/ES, com vistas a potencializar dispositivos
favorecedores aos processos inclusivos que ali se presentificaram.
3.2 AUTISMO E PSICOSE INFANTIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA
DESSE FENÔMENO
A temática que perpassa as discussões sobre o autismo ainda nos é de profundo
desconhecimento acadêmico, haja vista o fato de que tanto as ciências naturais
quanto as ciências humanas ainda não chegaram a um acordo no que se refere à
origem, evolução, avaliação e intervenção desse fenômeno. Entretanto, ambas as
perspectivas coadunam com o entendimento da necessidade de uma equipe
multidisciplinar para que possamos compreender a singularidade em que cada
indivíduo que apresenta esse fenômeno nos impõe (AMY, 2001; BOSA, 2002).
Ao direcionarmos tal discussão a paisagem investigada, o movimento de se
conhecer/questionar/entender tal etiologia, se evidencio no desejo do grupo que me
acolheu, visto que, antes mesmo de minha chegada ao grupo, já haviam eleito tal
temática para balizar a formação continuada até então realizada.
Com relação à sua evolução histórica, há registros de que, em 1906, o médico
Plouller introduziu o adjetivo autista na literatura psiquiátrica, ao estudar pacientes
esquizofrênicos em idade adulta com comportamentos de mutismo e indiferença. Em
106
1911, Eugen Bleuler, psiquiatra suíço, descreveu a síndrome da esquizofrenia, ao
estudar o comportamento de um indivíduo que se apresentava “estando fora da
realidade”, vivendo predominantemente sua vida interior.
No entanto, o grande delimitador de fronteiras sobre o autismo, termo que é
derivado do grego “autos” cujo, significado se remete ao conceito de si mesmo,
ocorreu em 1943, quando um médico austríaco, radicado nos EUA, denominado Leo
Kanner, dá evidência a essa terminologia, ao descrever um quadro específico de
adoecimento infantil, e não mais do sintoma de esquizofrenia adulta, a partir de um
estudo realizado com um grupo de 11 crianças gravemente lesadas com certas
características comuns em relação à interação social, as quais identificaram uma
inabilidade no relacionamento interpessoal, na aquisição e uso da linguagem, na
manutenção de rotinas, porém sem comprometimentos maiores no campo motor e
cognitivo (BOSA, 2002; KUPFER, 2001).
Outra significativa contribuição para os estudos sobre o autismo deu-se a partir
de1944, com Hans Asperger, também austríaco, que aprofundou questões iniciadas
por Kanner no campo do comprometimento orgânico, da fixação do olhar, dos
gestos, da fala e da atuação da família, ao descrever crianças bastante
semelhantes.
Direcionando nossas considerações para o campo conceitual, compreendemos o
autismo como um fenômeno multidisciplinar caracterizado, primordialmente, por um
conjunto de sintomas qualitativos que acomete as crianças, em geral, nos 30
primeiros meses de vida, no que tange à sua comunicação social, interatividade e
comportamento, cuja incidência predominante se dá em meninos, na proporção de
três
a
quatro
vezes
mais
(AMY,
2001;
BOSA,
2002;
KUPFER,
2001;
LEBOYER,1995; RUBLESSCKI, 2004).
A literatura aponta também outras características, como problemas nas áreas de
comunicação e interação social e padrões restritos, repetitivos e estereotipados de
comportamento, interesses e atividades factuais. Quanto ao isolamento em relação
ao outro, predominantemente, mostra-se indiferente a qualquer tipo de contato
físico.
107
Aprofundando um pouco mais, Leona Wing (FUNDO DE NAÇÕES UNIDAS PARA A
INFÂNCIA, 1982, p. 20-21) classifica outros 13 sinais para caracterizar o autismo
infantil, a partir de um estudo por ela realizado com 11 crianças com características
de isolamento cujos comportamentos semelhantes eram:
1- Não respondem de forma adequada aos sons e, muitas vezes, são
confundidos com surdos.
2- Não prestam atenção à linguagem falada. Aparentemente, não se dão
conta de que tem significado.
3- Alguns não falam nunca.
4- Problemas articulatórios e com o tom de voz.
5- Não podem expressar por gestos seus desejos.
6- Usam o tato, olfato e paladar para explorar o mundo que os rodeia.
7- Não gostam do toque.
8- Apresentam pouca sensibilidade ao frio, calor ou dor.
9- Atitudes monotonamente repetitivas e necessidade de manter as coisas
sempre iguais.
10- Boa relação com objetos que lhe interessam, podendo jogar com eles
durante horas.
11- Todos tinham boas potencialidades cognitivas e fisionomia inteligente.
12- Fisicamente eram essencialmente normais.
13- Provêm de famílias bastante inteligentes.
Conforme já defendido por Kanner, apesar de os estudos no campo da
Epidemiologia apontar que 70% dos indivíduos com autismo apresentam deficiência
intelectual (GILBERG, apud BOSA, 2002), não existem pesquisas suficientes que
comprovem a associação do autismo à deficiência intelectual. Em meu entender, o
que ocorre é um atraso no desenvolvimento humano em relação à aquisição de
padrões culturalmente sistematizados, em virtude da dificuldade de interação social.
Ao nos remetermos à terminologia do autismo, vários autores (BOSA, 2002;
KUPFER, 2001; LEBOYER, 1995; RUBLESSCKI, 2004; VASQUES, 2003)
reconhecem o quanto esse conhecimento é complexo e desafiador e se encontra em
aberto, haja vista esse conceito atravessar diferentes classificações internacionais e,
por
conseqüência,
diferentes
concepções
teórico-filosóficas
acerca
do
desenvolvimento infantil, como afirma Amy (2001, p. 21):
De cento e cinqüenta a duzentas publicações internacionais anuais
testemunham igualmente este interesse, e as discussões em torno da
classificação da síndrome autística deram lugar a debates apaixonados,
opondo as diferentes teorias. Embora as classificações psiquiátrica
internacional (CIM 10), americana (DSM III-R e IV) e a francesa (CFTMEA)
partam todas da descrição sintomática de Kanner, elas não concluem de
modo idêntico. A classificação francesa mantém o autismo dentro de uma
perspectiva psiquiátrica da psicose infantil, enquanto a internacional e a
108
americana falam de ‘distúrbios invasivos de desenvolvimento’. Essas
diferentes definições contribuem, elas também, para alimentar as
discussões entre os profissionais de determinadas correntes educativas e
da psicanálise.
Em relação ao Brasil, adota-se a Classificação Internacional de Doenças (CID 10)
publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que compreende o autismo
como um Transtorno Invasivo de Desenvolvimento (TID) manifesto antes dos três
anos de idade, caracterizado, de maneira geral, por problemas nas áreas de
comunicação e interação social, bem como por padrões restritos, repetitivos e
estereotipados de comportamento, interesses e atividades, que se manifestam, em
geral, antes de três anos de nascimento. (AMY, 2001; BOSA, 2002; KUPFER, 2001;
LEBOYER,1995; RUBLESSCKI, 2004).
De acordo com Araújo (2004), o National Center for Clinical Infant Program (NCCIP)
propôs,
em
1997,
uma
outra
classificação,
ainda
não
muito
divulgada
academicamente, que concebe tais transtornos com as mesmas dificuldades
descritas nos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, porém destaca “[...] uma
certa capacidade de manter relações afetuosas e interativas com seus cuidadores,
lado a lado com um progresso razoável em seu desenvolvimento cognitivo” (p.45),
denominados de “Transtornos Multissistêmicos do Desenvolvimento” que, quando
identificados e tratados apropriadamente, permitem que as crianças que apresentam
esse transtorno desenvolvam relações de afeto e proximidade com seus pares.
No que tange às discussões que perpassam a etiologia do autismo e as psicoses
infantis, como já citado, existem diferentes concepções teórico-filosóficas e, por
conseqüência, diferentes concepções etiológicas que procurarei organizar para
efeito de entendimento, em duas grandes correntes: as perspectivas organicistas
pautadas nas ciências naturais que buscam sua gênese em fatores endógenos
geneticamente determinados e, de outro lado, as perspectivas das ciências
humanas que analisam esse fenômeno pelo viés comportamental. Todavia,
nenhuma dessas perspectivas dá conta, sozinha, de responder às diversas questões
que esse tema nos impõe, como aponta Araújo (2004, p.44):
Apesar da descrição de Kanner ter identificado uma síndrome, as tentativas
de um consenso em relação à compreensão de sua etiologia, tratamento e
prevenção têm se mostrado impossíveis. As divergências não são
109
encontradas apenas por virem de diferentes saberes, como neurologia,
psiquiatria, psicologia e psicanálise. Constata-se que além do fato de haver
várias abordagens dentro de um mesmo saber, existem quadros muito
variados, com múltiplos fatores convergindo para a determinação de cada
um deles [...]. Assim, um único ponto de vista não consegue abarcar o
tema, e tomar em consideração um lado da questão não elimina os outros.
Considerar, por exemplo, fatores relativos à interação humana não exclui
uma falha na condição física.
Neste texto, tomarei como eixo norteador a segunda concepção etiológica, cujas
interpretações se fundamentam nos estudos do comportamento humano, tendo na
Psicanálise a sua grande representatividade, por acreditar que, indepedentemente
das questões etiológicas, essa perspectiva possibilita compreender melhor a
complexidade que atravessa esse fenômeno, ao refletir acerca da nossa condição
de sujeitos faltosos19 inconscientemente inscritos na/pela cultura pela via do outro
que nos serve, ao mesmo tempo, de suporte de si mesmo, como também de
alteridade (CABASSU, 1997).
Outra questão a se evidenciar é que, em momento algum, a Psicanálise nega a
existência de possíveis alterações orgânicas que também podem promover um
comportamento autista. O que está em jogo nessas considerações é uma tentativa
de compreender essa estruturação para que, em seguida, possamos pensar saídas
favorecedoras à inclusão social dessas crianças, como nos alerta Kupfer (2001, p.
51) “[...] de nada adiantará um organismo absolutamente são se não houver quem o
introduza no mundo do humano, vale dizer, da linguagem”.
Para tanto, faz-se necessário, compreender como se institui a constituição dos
sujeitos na perspectiva psicanalítica freud-lacanaina, na busca por ressignificar
algumas estruturas que se cristalizam de forma alienante, impedindo este sujeito de
gozar do seu próprio desejo.
3.2.1 O efeito fundandor da palavra/linguagem na/para constituição do
sujeito
19
Para Freud, o falo constitui uma representação psíquica inconsciente personificada pela falta do pênis tanto para os
meninos quanto para as meninas. Sua instauração se dá pela via de uma operação de corte entre mãe e filho denominada
Função Paterna, na qual aquele que ocupa esse lugar atua de forma simbólica, instaurando uma lei que interdita o incesto
entre mãe e filho. Simbolicamente, acreditamos na premissa de que, ao consegui-lo, nos tornaremos sujeitos completos e não
mais faltosos/castrados (RONDAS, 2004).
110
Ao analisar as principais produções acadêmico-científicas acerca da constituição do
autismo e das psicoses infantis, considerando a perspectiva psicanalítica, identifiquei
diferentes concepções e entendimentos acerca do conceito, diagnóstico e etiologia,
visto que, também, não existe um consenso sobre o que se constitui por esse
fenômeno. Especialmente em relação aos diagnósticos, algumas correntes
psicanalistas acreditam que, para definirmos tal conceito, precisamos debater o
entendimento construído acerca das estruturas humanas como mecanismos de
defesa humana, pois segundo Kupfer (apud MARQUES; ARRUDA, 2007, p.116),
“[...] a psicanálise entende o diagnóstico como o estabelecimento de algumas
chaves de leitura orientadoras da ação terapêutica, e não como uma afirmação
categórica e conclusiva a respeito do autismo infantil”.
Nesse sentido, traremos alguns dos principais representantes deste debate, com
vistas a retomar a discussão que atravessa os estudos da Psicanálise sobre a
constituição dos sujeitos e a instauração dos comportamentos autistas e psicóticos,
para que, em seguida, possamos compreender em que medida essas considerações
podem nos ajudar a pensar os processos de inclusão socioeducacional de pessoas
com nee, em especial de crianças autistas.
Assim sendo, para além de Kanner, outras três significativas contribuições de base
psicanalítica nos ajudam a pensar as discussões que perpassam o autismo, são os
estudos de Bruno Bettelheim, ao relacionar a causa do autismo à indiferença da
mãe. O debate tecido por Melaine Klein, considerada a criadora da Psicanálise com
crianças, em especial no campo das psicoses, e as considerações de Donald Woods
Winnicott, ao questionar a etiologia do autismo somente relacionada com questões
de ordem fisiometabólica, por acreditar que o meio emocional que acomete os
bebês, principalmente a interação mãe/filho, pode influenciar/refletir na forma como
esse bebê se vê como um sujeito (AMY, 2001; ARAÚJO, 2004; COSTA, 2007;
KUPFER, 2001; MARQUES; ARRUDA, 2007).
No que tange a Bruno Bettelheim, a partir de 1944, ele produz interessantes
contribuições a esta temática, tendo como eixo o autismo, a Psicanálise, o
sofrimento humano e o isolamento autístico, tendo em vista o fato de ter ficado preso
num campo de concentração no período de 1938-1939. Com base nos momentos de
111
isolamento e sofrimento que atravessavam sua vida e a de alguns prisioneiros, ele
construiu a hipótese de que,
[...] a criança encontra no isolamento autístico (como os prisioneiro de
Dachau) o único recurso possível a uma experiência intolerável do mundo
exterior, experiência negativa vivida muito precocemente em sua relação
com a mãe e seu ambiente familiar (AMY, 2001, p. 35).
A principal crítica à pesquisa de Bruno Bettelheim refere-se ao fato de que seus
estudos abriram portas para teorias de extrema culpabilização dos pais,
considerados os verdadeiros vilões do comportamento de seus filhos. Fato este
polemizado pela própria Psicanálise, cujas diversas interpretações acerca dessa
questão têm evidenciado a necessidade de se discutir com responsabilidade tal
consideração, por reconhecer o quanto a presença familiar é fundamental nos
processoS com crianças autistas.
Outra precursora relevante nos estudos sobre o autismo é Melaine Klein que, no
período entre 1932-1945, investigou acerca das emoções vividas pelos bebês ao
nascer, tendo na alimentação o ponto disparador desses sentimentos numa interrelação em que esta criança se torna, ou não, um objeto de investimento libidinal
desta mãe. Para Klein, é exatamente nesse momento que pode se instaurar uma
estrutura autística (KUPFER, 2001; MARQUES; ARRUDA, 2007).
Uma outra significativa contribuição de Melaine Klein, em relação à Psicanálise com
crianças, refere-se à técnica de análise lúdica por ela criada, por considerar que, ao
brincar, a criança traduz de forma simbólica todos os seus desejos e fantasias
inconscientes (COSTA, 2007).
Não poderia deixar de citar Winnicotti, cuja interpretação sobre o autismo nas
crianças é concebida como fruto de imaturidade emocional que promove uma
organização defensiva, que se instaura no início de sua vida, quando elas se vêem
numa condição de desordem mental, promovendo a perda do sentido real e da
capacidade de se relacionar com tudo que as cerca, dificultando o desenvolvimento
das tarefas iniciais, promovendo agonia engendrada em virtude de falha na relação
primitiva de identificação primária.
112
Especialmente no que se refere às psicoses, defendeu a tese do fracasso da relação
mãe/filho como causa de tal distúrbio, todavia não desresponsabiliza o pai nesse
processo, por acreditar que ele pode oferecer a essa mãe o apoio necessário a fim
de que ela consiga restaurar a ordem subjetiva na vida de seu filho (ARAÚJO,
2004).
Para além dessas considerações, uma outra questão a se problematizar refere-se
ao fato de algumas correntes psicanalíticas situarem o autismo dentro de um quadro
geral das psicoses infantis, todavia Jerusalinsky (apud KUPFER 2001) afirma que,
atualmente, o autismo é compreendido com uma quarta estrutura associada às
psicoses, neuroses e perversões.
É interessante destacar que esse debate se inicia em Kanner, ao perceber que
grande parte das crianças que investigou vinha de famílias extremamente
inteligentes, cujas mães, coincidentemente, lhe pareciam frias e distantes. Todavia,
em virtude do furor e protesto que essa idéia provocou, não houve o
aprofundamento necessário à discussão.
Para Kupfer (2001), o que se coloca em debate não são os sentimentos dessas
mães, pois muitas apresentam profunda dedicação aos seus filhos, porém o que se
procura problematizar diz respeito a uma função que muitas delas desconhecem
exercer, ou mesmo não dão conta de exercer, pois são do campo do inconsciente.
Não falamos de culpa, mas, sim, de responsabilidade, no sentido de oferecer à
criança uma nova chance de se inserir no mundo da linguagem. Fato este que, com
base nos dados produzidos na/pela paisagem, nos foi possível verificar nas ações
das professoras envolvidas neste estudo.
Entretanto,
para
melhor
compreendermos
tais
considerações,
retomarei
Freud/Lacan, no que tange à constituição de subjetividade humana e suas
implicações na instauração dos comportamentos autistas e psicóticos, para, em
seguida, problematizarmos algumas situações por nós experenciadas acerca da
inclusão socioeducacional das duas crianças ditas autistas no Centro de Educação
Infantil.
113
De acordo com a teoria psicanalítica desenvolvida por Freud (1969), o homem não é
o senhor de sua própria casa, uma vez que, nos processos de representação
humana, ele se constitui de sujeitos divididos entre as estruturas que se encontram
sob seu controle: a estrutura do consciente e as estruturas onde habitam os seus
impulsos mais primitivos e que influenciam o comportamento humano de forma
incontrolável − o inconsciente. Para a Psicanálise, portanto, somos sujeitos
ignorantes de nossas próprias verdades, pensamentos e escolhas e nos
constituímos cotidianamente em nossas inter-relações sociais, ou melhor, com/pelo
Outro.
O sujeito, em Psicanálise, é um sujeito vazio, descentrado, que sofre efeito do
discurso do outro, de forma que as primeiras inscrições psíquicas que atuam nos
bebês, no sentido da humanização, são inscritas por seus pais, que, por
conseqüência, sofrem efeitos desses encontros e/ou desencontros, produzindo
frutos futuros que, por sua vez, resultarão numa série de novas inscrições que se
desdobrarão em novas conexões, a partir das primeiras inscrições, e cujas marcas
poderão repercutir de forma singular nos processos de aprendizagem (KUPFER,
2001)
Rozenthal (2003), ao analisar a Psicanálise pela via de uma definição do sujeito
moderno, tal como ele foi concebido pelo pensamento das representações,
vislumbrou contribuir para a busca de novas possibilidades de escuta dos indivíduos
sobre si e sobre os outros. O autor reafirma que, somente após a admissão da
autonomia da pulsão de morte com relação à sexualidade, é que os enunciados
freudianos poderão viabilizar uma leitura capaz de valorizar a diferença singular dos
sujeitos, possibilitando, assim, o entendimento dos processos de subjetivação. Para
tanto, a relação com o outro poderá gerar um “campo paradoxal” facilitador dos
processos de subjetivação, no qual a escuta clínica seria uma forma de minimizar o
padecimento psíquico de nossos tempos.
Como diria Lacan (apud GARCIA-ROZA, 1987, p. 147), “[...] o desejo do homem é o
desejo do outro”, uma vez que este se realiza no plano imaginário, por referência ao
outro ou à imagem e semelhança do outro, por exemplo, uma criança se forma a
partir de seu espelhamento materno.
114
Ampliando o foco para o conceito de educar pela Psicanálise, Kupfer (2001) afirma
ser esse o caminho para se inserir a criança na linguagem, potencializando-a para
transmitir a demanda social aos sujeitos para além do desejo, constituindo, então,
esse sujeito. Todavia, para que isso ocorra, é preciso que se instaure entre os
envolvidos uma relação transferencial que abra portas para o mundo simbólico.
Essa possibilidade de existência em um campo simbólico dá-se por uma inscrição
num universo que escapa ao nosso controle, mas que nos marca profundamente
em nosso inconsciente. Esse é o grande objeto de estudo da Psicanálise, uma vez
que aí está a compreensão acerca do homem e de sua relação com o mundo.
Qualquer evento/trauma que perpassa a vida dos indivíduos precisa considerar os
seus significados retrospectivos no inconsciente, a fim de se compreenderem os
possíveis deslocamentos desse inconsciente operando simbolicamente em uma
outra instância, constituindo, assim, uma estrutura de significados denominada
psique humana (LECHTE, 2003).
De acordo com Kupfer (2001), as representações que se encontram deslocadas em
nível inconsciente emergem a qualquer momento sob forma de uma força interna ao
organismo, denominada de pulsão, cuja função seria a de restabelecer um estado
anterior por motivos de forças externas. Ela se manifesta nas mais diferentes
representações, pela via de sonhos, dos atos falhos, dos chistes, sob a forma de
representações inconscientes, de sintomas, de repetições, entre outras.
A pulsão se constitui de tensões psíquicas cuja energia vital, advinda do nosso
psiquismo, engendra lutas que buscam utopicamente descarregar as tensões
inconscientes de forma gradual e contínua, mas que nunca se esgotam. Por isso
nos tornamos seres eternamente desejantes, que nunca nos satisfazemos por
completo. Para Lacan (apud LAZNINIK, 2004), a busca por essa satisfação instaura
um circuito pulsional, responsável pela nossa constituição como sujeito cujo
percurso sempre retoma ao ponto de partida.
Dando continuidade, Cassol (2008, no prelo) afirma que o circuito pulsional se
instaura numa etapa bem inicial de nossas vidas, por volta de zero a seis meses de
115
nascido, período em que ainda não temos o domínio da linguagem, mas que nos
marca para o resto de nossas vidas, em virtude de ser nessa etapa que o bebê se
estrutura como sujeito desejante e falante. Todavia essa estrutura só se
desenvolverá se o circuito pulsional e o estádio do espelho, desenvolvido dos seis
meses
a
18
meses,
aproximadamente,
se
encontrarem
respectivamente
delimitados.
Tomando a constituição do circuito pulsional como ponto de partida, entendo que a
presença e a percepção desse circuito sempre será parcial, obedecendo a três
formas: a ativa, em que o bebê age diretamente ao olhar do outro; a passiva, uma
ação que se constitui passiva pela forma de atingir seu objetivo, mas também ativa;
e a reflexiva, aqui compreendida como um “fazer-se” objeto de gozo do outro
(CASSOL, 2008, no prelo).
Assim, ao associarmos as demandas que emergem nesse circuito ao olhar e à voz
do outro materno em relação a seus bebês, surgirá, ou não, uma demanda
denominada estádio do espelho. Para Lacan (1983), essa metáfora, retirada do
campo da ótica, representará o tempo de reconhecimento da imagem especular pelo
outro, caracterizando-se pelo momento em que as mães instauram uma relação
simbólica fundamental, cujo poder será decisivo para a estruturação psíquica dos
filhos, visto que esse encontro irá oferecer aos bebês um sentimento de unidade,
real e imaginário, que sustentará a base de sua relação com o mundo que o cerca.
Nesse contexto, o estádio do espelho se inscreverá no momento em que a pessoa
que exercer a função materna, ao receber seu bebê, pela primeira vez, projeta-lhe
um olhar antecipadamente instaurado pelo desejo libidinal de aposta, tendo como
movimento primordial a oferta do seio ao bebê e, conseqüentemente, quando esse
bebê, numa tentativa de reafirmação da imagem que lhe é emanada, se vira em
direção a esse olhar em busca do seio que lhe é ofertado, sempre acompanhado
pelo olhar e pela voz da pessoa que exerce a função materna. Como afirma
Cabassu (1997, p.29):
Se nós retomamos o que Freud nos ensina sobre a experiência primordial
de satisfação, sabemos que no momento da alimentação, o bebê absorve
ao mesmo tempo em que o leite indispensável para a sobrevivência, um
116
conjunto complexo de sinais da presença materna, presença no sentido em
que ela implica o desejo da mãe: seu olhar, sua voz, sua capacidade de
reagir à postura do bebê atribuindo-lhe um sentido de entrar em
comunicação com ele.
De acordo com Lacan (1983), nesse interjogo de espelhamento mãe/bebê, é preciso
que a mãe desvie seu olhar focado no bebê de para que ele consiga perceber o
mundo que o cerca e, a partir de então, busque estabelecer uma interação com todo
esse contexto. Caso isso não ocorra, poderá se instaurar uma condição de
alienação tal que impeça o bebê de interagir com o mundo e, por conseqüência,
favorecerá a constituição de estruturas autísticas, esquizofrênicas ou psicóticas,
dificultando, assim, a sua inclusão social.
Entretanto, é necessário que esta suposta mãe, primeiramente, deseje investir
libidinalmente nesse bebê, todavia não se limite a ele, visto que o bebê só
conseguirá estabelecer uma imagem de si e, conseqüentemente, sair da condição
de alienação de si, a partir do que lhe é espelhado no/pelo outro.
Para melhor compreender como a Psicanálise concebe esses fatores, apoiei-me em
Lacan (1983) e em seus seguidores (CABASSU, 1997; KUPFER, 2001; LAZNINIK,
2004), ao discutirem as questões reais e imaginárias que habitam as estruturações
humanas a partir da metáfora do estádio do espelho.
Nesse sentido, existe a presença real de um vaso apoiado sob um suporte e
exatamente embaixo desse vaso se encontra um ramo de flores fixado ao suporte.
Em frente a esse suporte, há um espelho côncavo. Ao projetarmos as imagens do
vaso e das flores para o espelho, o que veremos, de forma simbólica, é a idéia de
um vaso contendo flores (FIGURA 1).
Ao direcionarmos tal metáfora para a constituição dos sujeitos/bebês pela via do
desejo do outro, podemos vislumbrar que a unidade real e imaginária de um bebê
depende dessa condição de espelhamento. Condição esta fundamental para sua
estruturação psíquica, como exemplifica Lazninik (2004, p. 43):
[...] a imagem real, no caso essas flores que não estão lá e que parecem,
todavia se encontrar dentro do próprio gargalo desse vaso. Alguém, um
sujeito cujo olho estivesse convenientemente situado num cone formado
117
pela intersecção de duas retas que partem dos limites superiores e
inferiores do espelho côncavo e que vêm se cruzar no lugar onde vemos
formar a imagem real, na condição de estar situado a uma certa distancia
deste conjunto formado pelo objeto real e essa imagem, veria os dois,
como formando um todo, uma unidade. Eis a melhor representação que
conheço para dar conta da complexidade que a constituição do corpo do
bebê pode representar, a articulação entre sua simples realidade orgânica
e o que eu chamo ‘olhar dos pais’ .
Figura1. Metáfora do espelho pais’
FONTE: (LAZNINIK, 2004, p. 51-52).
A partir do que foi posto acerca da constituição dos sujeitos promovendo
comportamentos autistas e/ou psicóticos, fica claro que esse fenômeno, pelo viés
psicanalítico, se constitui pela não instauração de um certo número de estruturas
psíquicas que tem sua origem nos primeiros meses de vida dos bebês no momento
em que se estabelece a função materna com essa criança.
Poderíamos, então dar essa questão como algo da ordem da estrutura, logo
irreversível. Portanto, deveríamos concordar com as posições segregadores que
acreditam na impossibilidade de inclusão socioeducacional das crianças no ensino
regular. Ledo engano. Acredito ser possível ajudar essas crianças a ressignificar tal
estrutura, tendo a escola e seus representantes, em especial a figura do professor/a,
uma importante função nesse processo.
Em meu entender, os trechos que serão discutidos ao longo deste capítulo apontam
essa direção, todavia Kupfer (2001) e Cunha (1990) nos chamam a atenção para a
possibilidade de os professores poderem se apropriar do saber produzido pela
Psicanálise nas suas relações com seus alunos, no sentido de potencializá-los. Para
tanto, precisarão abrir mão de seus pressupostos hegemonicamente instituídos,
118
renunciando ao seu lugar narcísico e enganador de ideal-do-ego,20 que impede que
esses alunos se tornem sujeitos de seus próprios conhecimentos. Afinal, esse lugar
passa a ser concebido com características mágicas e fantasiosas aos olhos dos que
desejam saber, supervalorizado de tal forma que os alunos chegam a amar seus
professores mais do que a si mesmos, o que ameaça, assim, a sua existência.
Para tanto, precisamos, primeiramente, defender como premissa, a necessidade de
uma intervenção pedagógica que instaure, tanto nas crianças ditas com
comportamentos autistas como também em seus respectivos familiares, estruturas
que atuam em seus respectivos inconsciente. Todavia, não estou falando de
qualquer intervenção, mas, sim, de um olhar que não se limita ao campo da visão;
vai além, um lugar possível para essa criança, cuja escuta e olhar caminhem no
sentido da presença, oferecendo-lhe palavras em torno desse berço, permeadas de
uma aposta libidinal que ecoe nas representações maternas inconscientes e lhes
permitam sair da condição de objeto para sujeito. Todavia, para que isso ocorra,
Laznik (2004, p. 43) alerta no sentido de “[...] o que encontramos no espelho só se
sustenta no que podemos reencontrar no olhar daqueles que nos amam”.
Só assim, possibilitaremos a este bebê tornar-se um sujeito provido de um corpo
instituído de uma unidade que lhe permita estabelecer relações com os seus pares,
atuando, por conseqüência, em suas manifestações psicossomáticas, reconhecendo
“[...] a importância da posição subjetiva do profissional que escuta e enuncia, pois
em seu discurso haverá um impacto sobre a representação da criança no
inconsciente materno, peça-mestra na construção do psiquismo dos sujeitos
(CABASSU, 1997, p. 31)”.
Nesse movimento, lançarei mão do poema de Ferreira Goulart denominado O
espelho do guarda-roupa, quando nos convida a refletir sobre as múltiplas imagens
por nós refletidas nos espelhos de nossas interações sociais.
Espelho, espelho velho
alumiando debaixo da vida
Quantas manhãs e tardes diante da janela viste se acenderem
e se apagarem quando eu já não estava lá?
20 Em Cunha (1990, p. 21), ideal-do-ego refere-se a uma instância intrapsíquica, resultado de identificações com os pais, substitutos e com ideais coletivos,
que se transformam, em última análise, em um modelo interno a que o indivíduo procura conformar-se.
119
De noite na escuridão do quarto insinuavas que teu corpo era de água
e te bebi sem o saber te bebi e te trago entalado de um ombro a outro
dentro de mim e ameaças estalar?
Estilhaçar-se com as tardes e as manhãs que naquele tempo atravessavam a
rua e se precipitavam em teu abismo claro e raso.
Espelho espelho velho e por trás do meu rosto
o dia bracejava seus ramos verdes sua iluminada primavera
Um homem com um espelho (feito um segundo esqueleto)
embutido no corpo não pode bruscamente voltar-se para trás
não pode juntar nada do chão e quando dorme
é como um acrobata estendido sobre um relâmpago
Um homem com um espelho enterrado no corpo
na verdade não dorme: reflete um vôo
Enfim, esse homem não pode falar alto demais
porque os espelhos só guardam (em seu abismo)
imagens sem barulho.
Carregar um espelho é mais desconforto que desvantagem:
a gente se fere nele e ele
não nos devolve mais do que a paisagem
Não nos devolve o que ele não reteve:
os ventos nas copas
o ladrar dos cães
a conversa na sala
Barulhos sem os quais
não haveria tarde nem manhãs.
3.2.1.1 A palavra/linguagem ressignificando subjetividades
Busco agora, contextualizar como alguns conceitos da perspectiva psicanalítica
podem nos ajudar a olhar as experiências de escolarização de Miguel e Mateus
tomando como ponto de partida o efeito fundador das palavras/linguagem, operando
de
forma
significativa
e
promovedora
para
os
processos
de
inclusão
socioeducacional dessas duas crianças caracterizadas como autistas no Centro
Municipal de Educação Infantil, na cidade de Vitória/ES, onde se deu este estudo.
Para tanto destacarei situações vivenciadas com/pelas duas crianças, tentando
analisar em que medida nossas ações, instituídas no decorrer deste estudo,
favoreceram-nas no sentido de se tornarem um sujeito provido de uma unidade,
saindo da condição alienante de objeto.
Minha relação com Miguel foi se constituindo aos poucos. Inicialmente ele não
permitia que eu me aproximasse. Ficava, inclusive, se escondendo de mim, quando
eu tentava registrar o seu cotidiano. Todavia, com o passar do tempo e, na medida
em que adquiriu confiança em mim, ou, como diria Laznik (2004. p. 55), “[...]
120
reconheceu em meu olhar o sentido da presença[...]”. Conforme evidenciam os
trechos abaixo extraídos do diário de campo, Miguel passou não só a me procurar
nas atividades em sala como também no recreio, como se buscasse em mim um
apoio:
Episódio 1. A espera pela voz da sereia
21
[...] Ao se dirigir livre pela sala, ele se depara com uma revista passatempo da Mônica,
personagem com que ele muito se identifica nos gibis. Miguel pára e começa a olhar a
revista. Imediatamente sugiro a Sandra que lhe ofereça lápis e borracha para ver se ele se
interessa pelas atividades, o que acontece de fato. Miguel começa a pintar e, em seguida,
busca apagá-las. Aproximo-me de Sandra e comento com ela que acredito que essa possa
ser uma pista em relação ao seu processo inclusivo.
[...] Quando Miguel perde o interesse pela atividade, ele passa a caminhar um pouco
agoniado pela sala. Observo-o tentando pegar um jogo. Eu o ajudo e ele começa a brincar
de desmontar todas as peças e guardá-las numa vasilha. Fico brincando de esconder
algumas peças dele, deixando-o descobrir em qual das mãos ela está. Entretanto, Miguel
não queria que ninguém pegasse as peças, inclusive eu. Num determinado momento,
distraio-me, paro de brincar com Miguel e começo a olhar para a sala de forma evasiva. De
repente, alguém pega na minha mão e percebo que é ele chamando minha atenção para
brincar com ele. Volto a interagir com Miguel, porém, Joana chama todos para guardar seus
brinquedos, lavar suas mãos e ir lanchar (20-4-2007).
Analisando o episódio acima, observo que, a partir do momento em que se
estabeleceu um olhar presencial entre mim e Miguel, as coisas se modificaram
significativamente, visto que este movimento favoreceu-lhe sair da condição
alienante de objeto para tornar-se sujeito do desejo do outro. Isso somente ocorreu
porque Miguel pôde perceber nesse olhar o que Laznik (2004, p43) chama de “[...]
olhar daqueles que nos amam [...]”, tanto que esses momentos foram se repetindo
ao longo em outros, conforme o relato que se segue abaixo, a partir do diário de
campo:
Episódio 2. O reconhecimento da palavra/linguagem
[...] hoje, no recreio, as crianças estavam “aprontando” alguma coisa com Miguel, pois de
repente, ele saí correndo meio aflito lá do final do pátio, vindo em minha direção. Eu o
acolho, tento saber o que aconteceu, mas ele nada me diz. Pego pela mão e vou até o
grupo perguntar o que ocorreu, todos se dissipam e o que percebo é que as crianças
deveriam tê-lo colocado no balanço mas ele, de alguma forma, caiu. O interessante é que
Miguel, a partir de então, ficou o resto do tempo ao meu lado, como se desejasse que eu o
21
Título inspirado num artigo de Marie-Christine Laznik (2004).
121
protegesse, ficando a buscar contato com o meu corpo como um gatinho buscando carinho
em seu pêlo (16-5-2007).
Procurando compreender os motivos de tal encontro, acredito que Miguel identificou
em mim um reconhecimento pessoal, ou melhor, o olhar que lançava para/sobre ele
se encontrava embricado por afetos e emoções, cujas representações instauradas
em nível inconsciente, provavelmente estavam implicadas àquela condição, como
nos lembra Jean-Luis Le Grand (apud BARBIER, 2002), ao dissertar acerca da
implicação “implexa” e o envolvimento do pesquisador na/pela pesquisa num
contexto científico, filosófico e, também, mitopoético.
É importante destacar que, para além das questões afetivas que se estabeleciam
entre nós, ao me permitir conhecê-lo melhor, tive, então, condições concretas para
pensar, juntamente com Joana, possibilidades pedagógicas inclusivas para Miguel,
conforme os exemplos que se seguem, extraídos do diário de campo.
Hoje foi um daqueles dias em que acreditamos que as coisas não vão mudar, porém, meio
que de uma hora para outra, uma pequena gotícula de água cai e provoca uma tempestade,
principalmente em minhas idéias.Tudo começa quando chego à sala de Joana e inicio mais
um dia de observação coletiva.
Como na semana passada, Miguel havia faltado na quinta-feira, meu dia para acompanhá-lo
em sala. Havia 15 dias que não nos víamos e senti, logo de cara, que isso faria a diferença.
Para não piorar a distância, fui me aproximando dele aos poucos, entretanto sentia que
tinha uma finalidade ali que não era só ficar auxiliando Joana em coisas do cotidiano. Não
que não valorize essas ações, porém, como diz Kastrup (2007), era preciso uma atenção
aberta aos fluxos que ali se presentificavam, entretanto, buscava manter-me concentrada
em meu foco, se é que isto é possível!
Em um determinado momento, Joana me diz que precisava colocar em dia algumas
atividades com as crianças, em virtude de tê-las deixando de lado por conta da
apresentação da mostra cultural. Ela, então, distribui uma atividade de Matemática às
crianças, explicando inicialmente como fazer.
Percebo que Miguel, apesar de fingir estar lendo um livro, presta atenção à sua explicação.
Quando todos começam a fazer, eu o chamo para sentar-se à mesa de Sandra que o ajuda
com a atividade. Pela primeira vez, ele deixa que ela pegue em sua mão para realizar a
tarefa. Chama minha atenção a forma indiferente com que Miguel pega no lápis, como se
não tivesse nenhuma intimidade com o material.
Em seguida, Joana pede às crianças que pintem a atividade. Miguel, apesar de todas as
insistências minhas e de Sandra, se nega a fazê-lo. Assim, todos descem para comer a
famosa fruta.
[...] quando subimos, Joana dá a todas as crianças uma folha para que desenhem
livremente. Tento atrair Miguel para o desenho, mas ele hoje está bem resistente. Deixo-o à
122
vontade e fico a observá-lo para tentar uma intervenção. Passeio pelas mesas até que todos
terminam e começam a brincar na sala esperando a hora de descer para o lanche.
Enquanto todos brincam, aproximo-me novamente dele e começo a brincar de localizar as
letras, Miguel corresponde-me e ficamos a jogar por um tempo, entretanto, quando uma
criança se aproxima para jogar também, ele se afasta e começa a andar pela sala.
Numa última tentativa, pego a folha de Miguel, levo próximo onde ele está e pergunto se ele
deseja escrever comigo. Como não responde, pego em sua mão e escrevo de forma cursiva
seu nome. Surpreendentemente, Miguel permite e fica a observar a escrita. O que me
chama a atenção é que, desta vez, ele apresenta uma pegada mais adequada de forma a
segurar o lápis firmemente entre os dedos. Aproveito e pergunto qual palavra ele gostaria
que eu escrevesse para ele com a sua mão. Miguel sugere A de armário, R de relógio, E de
espelho e X de xícara. Escrevemos todas as palavras e ele fica a observar a folha, todavia
mais uma vez, a criança que se aproximou de nós antes volta e, antes que eu tome alguma
atitude, Miguel se afasta da mesa (31-5-2007).
A impressão que me vinha nesses momentos era como se Miguel, de alguma forma,
tivesse adormecido para o mundo, todavia se encontrava à beira de despertar desse
sono, precisando apenas de uma voz doce e serena que o acordasse e o
apresentasse à vida, como o canto de uma sereia que encanta a todos que a
encontram.
Na continuidade, narro como ele reagiu no dia em que Joana fez uma intervenção
mais incisiva com ele, a me pedir, insistentemente, para fotografá-lo:
Como percebeu que nada iria mudar, Miguel pára de chorar e começa a circular pelas
mesas em busca de novas capas de jogos. Levo para ele uma capa de um jogo de animais
e o chamo para ver o jogo na mesa com as crianças. Ele consegue montar o jogo com
minha ajuda, coisa que as outras crianças não conseguem. A partir, daí ele fica a me pedir
ajuda a todo o momento, até que Joana chama todos para guardar os jogos, pois é hora do
lanche.
Quando todas as crianças saem para o pátio, começo a observar Miguel de longe, a fim de
registrar suas ações. Aproximo-me, mostro umas imagens que tenho dele em minha
máquina e peço autorização para continuar a fotografá-lo. Ele reage positivamente e
começa a fazer poses seguidamente (FOTO 8). Afasto-me um pouco para mostrar a Joana
os registros feitos, quando Miguel vai atrás de mim e pede para eu continuar a fotografá-lo
fazendo mil poses. Joana entra na brincadeira, sugerindo algumas fotos.
Miguel agora pede para tirar fotos. Eu seguro a máquina de forma que ele tire uma foto de
Joana, que, aliás, ficou muito boa. Em seguida, somos interrompidas pela pedagoga,
avisando que uma criança não agüentou e urinou na calça. Dispersamo-nos para ajudá-la e,
quando volto, vejo Miguel correndo atrás de algumas crianças no pátio a brincar, chegando
a bater sua cabeça de encontro a uma delas. Tento ajudá-lo, mas ele, apesar de vir para o
meu colo, não me permite tocá-lo. Chamo Joana que, depois de insistir muito com ele,
consegue levá-lo ao banheiro para passar um pouco de água. O recreio termina e todos
sobem à sala (12-4-2007).
123
Foto 8: Imagens de Miguel no pátio fazendo poses
Nesse sentido, tento resgatar os motivos que me levaram aos estudos no campo da
educação inclusiva, como forma de compreender o que me aproximava de Miguel no
campo inconsciente. Retomo minha infância quando, por desconhecimento familiar e
social, haja vista já termos passados algumas décadas deste período e, em
detrimento de apresentar um quadro de movimentação intensa, buscavam,
incessantemente, um diagnóstico para justificar/entender/compreender este meu
comportamento. No entanto, nada se diagnosticava.
Assim sendo, se instituíram mecanismos para regular tal condição a partir de
práticas disciplinares e punitivas, como nos diria Foucualt (2004), ao discutir acerca
do poder disciplinador e da regulação dos corpos pela via de uma série de regimes
de práticas.
Logo, ao pensar nos processos de inclusão socioeducacionais de crianças autistas,
busco alertar para a necessidade de reconhecermos que esse processo somente
ocorrerá se os envolvidos com essas crianças se sentirem, realmente, implicados
com elas, independentemente dos motivos disparadores de tais implicações, visto
que nosso inconsciente guarda segredos inconfessáveis. Entendo que só assim o
olhar que emana presença emergirá em detrimento de olhares que emanam
ausência e, por conseqüência, poderão ecoar nos lares das crianças.
Autoras como Mrech (1999) e Machado (2004) afirmam que a grande contribuição
da Psicanálise nesse debate não se daria, então, no âmbito da compreensão acerca
124
dos processos educacionais, mas, sim, no sentido de possibilitar a criação de
rupturas à lógica escolar que revelam um novo posicionamento diante dos saberes
simbolicamente instituídos, processos nos quais todos os envolvidos – alunos,
professores, pais/mães, responsáveis, entre outros – não sejam vistos como meros
objetos, mas, sim, como sujeitos singulares/plurais inscritos em uma cultura.
Direcionando este debate para a nossa responsabilidade como pesquisadores,
devemos ter, como premissa, que, ao nos sentirmos embricados com essa causa,
precisamos buscar caminhos que promovam deslocamentos nas representações
inconscientes dessa criança e, também, de todos os envolvidos com ela,
professores, pedagogos, servidores de apoio, vigias e, também, de seus respectivos
familiares. Nesse sentido, penso que Joana escutou esse eco, conforme os registros
que se seguem extraídos do diário de campo:
Episódio 3. Joana instituindo um olhar libidinal de aposta
[...] Em relação a Miguel, percebo que, de certa forma, eu já provoquei algum movimento no
contexto, pois, quando ele chegou à sala, ficou encantado com um determinado brinquedo
que estava com o grupo, especialmente com a caixa que se encontra em mãos de uma
criança. Miguel toma-a das mãos deste aluno que, imediatamente, pega de volta. Como as
crianças entram literalmente em conflito Joana vira-se para mim e diz: “Acho que vou ter que
guardar a caixa, Graça, senão ela vai rasgar não acha?”.
Concordo imediatamente e, quando Joana vai guardar a caixa no armário, Miguel começa a
gritar e a bater na porta insistentemente. Imediatamente Joana vira-se para mim e diz: “O
problema de Miguel é que ele não gosta de ser contrariado!”.
Fico contento por acreditar que, de alguma forma, ela está tentado intervir com Miguel (12-42007).
Episódio 4 O olhar de Joana repercutindo nos movimento de Miguel
[...] Lá chegando, fiquei muito feliz em ver Miguel envolvido com as crianças “rolando pelo
chão”. Em conversas com Sandra, ela me disse que ele está sentando, fazendo as
atividades de sala, tendo, inclusive, um dia que ele ficou muito bravo porque viu uma matriz
sendo elaborada e queria por queria fazê-la. Foi preciso xerocá-la para que ele a fizesse.
Nesse sentido, vejo que Miguel vem evoluindo significativamente, haja vista o fato dele, no
início, só ficar nos cantinhos e se negar a sentar com/no grupo e agora estar brigando por
atividades (19-10-2007)
Episódio 5. O olhar de aposta da pesquisadora potencializando movimentos
inclusivos
125
Ao sentar-me com Joana para avaliação, surpreendi-me com ela elogiando o grupo de
estudos no sentido de seu crescimento acerca da temática, pois, anteriormente, com
Priscila, ficava insegura acerca de como agir, mas agora não se sentia mais assim.
Com relação à minha participação em sala, Joana, alegando que a turma muda seu
comportamento quando lá estou, sugeriu que eu fosse à sala dela somente quinzenalmente,
apesar de eu achar que assim eu realmente me tornaria uma estranha em sua sala. Para
finalizar, ela reconheceu o quanto Miguel tornou-se mais próximo dela e do grupo, neste
semestre, todavia reafirmou a necessidade de priorizarmos um planejamento mais inclusivo
para o 2º semestre, ou seja, sistematizarmos ações mais concretas em relação ao processo
pedagógico de Miguel (5-7-2007).
Analisando as cenas acima, primeiramente gostaria de problematizar o excesso de
matrizes que ali eram utilizadas, desconsiderando, em grande parte dos momentos,
os temposprocessos individuais de cada criança, apesar de reconhecer que isso não
é muito fácil ao pensarmos que temos 25 processos singulares pulsando ao nosso
redor.
Retomando a narrativa, reconheço que essas mudanças não se deram somente
pela minha presença, entretanto o que percebo é que existem múltiplas/diferentes
formas de ser/estar pesquisador e, com relação à Joana e Miguel, tenho certeza de
que, para além da organização do/no grupo de estudos, o nosso olhar de aposta
naqueles sujeitos, refiro-me a Miguel e a Joana, também os ajudou, e muito, nesse
processo. Sua fala, na avaliação tanto de julho quanto de dezembro, evidencia isso
ao destacar que, antes, mais precisamente com Priscila, ficava insegura acerca do
que fazer, mas agora não sentia tanto insegurança em suas ações. A meu ver, essa
é a verdadeira função do pesquisador colaborativo: potencializar/demandar os
protagonistas sobre os seus saberes, conforme os trechos extraídos do diário de
campo, apresentados abaixo:
Hoje me sentei com Joana para a avaliação final sobre a minha presença ao seu lado, no
que tange ao processo de inclusão de Miguel. Mais uma vez, ela afirmou que a minha
participação foi fundamental para que ela tivesse a oportunidade de conhecer um pouco
mais sobre a inclusão de crianças autistas. [...] para finalizar, tentei amarrar com ela alguns
encaminhamentos em relação a Miguel, que tentaria viabilizar até o final do ano letivo. Do
ponto de vista pedagógico, Joana disse não ter questões. O que gostaria que eu a ajudasse
era no sentido de compreender o motivo de sua fala apresentar-se em alguns momentos um
pouco robotizada. Combinamos, então, de nos reunirmos com os profissionais que atendem
Miguel na Apae para melhor esclarecer esse item (22-11-2007).
Finalizando minhas considerações acerca de Miguel, ao final do ano letivo, ele já se
encontrava bastante diferente do início do ano, tendo, em sua socialização no/com o
126
grupo, o ponto forte de nossas conquistas. Sabemos que a socialização não é a
única finalidade dos processos socioeducacionais inclusivos, no entanto foi essa a
pista inicial que seguimos para que, conforme os relatos narrados, ao final do ano
letivo, já encontrássemos Miguel rolando pelo chão com as crianças, brigando por
matrizes, ou seja, produzindo no/com o grupo, considerando sua condição humana
singular de sujeito culturalmente inscrito.
3.2.1.1.1
Re-direcionando
o
zoom
para
os
movimentos
disparados
com/por/para Mateus
Apesar de todas as situações adversas que perpassaram a vida de Mateus, naquele
momento, o mesmo não sucumbia a condição alienante, buscando, a sua maneira,
(re)existir naquela paisagem, conforme os trechos narrados a seguir:
[...] encontro-me com Carla trazendo Mateus pelos braços extremamente agitado, se
batendo e gritando bastante. Ao nos aproximarmos dela, ela nos mostra uma mordida que
acabou de levar dele. Ana tenta contê-lo, mas ele a agride também e, em seguida, se autoagride, como se estivesse se punindo pelo ocorrido. Ofereço-me para ajudá-la, tentando
manter a calma com a situação porque Mateus se mostrava muito agressivo.
Dizemos a ele que não pode morder, mostramos o braço de Carla, ele se solta e sai agitado,
se agredindo com tapas na cabeça. Tentamos segurá-lo, mas sugiro a Ana e a Carla para
deixá-lo um pouco livre, de forma que nos voltamos para tentar entender o que aconteceu.
Carla nos diz que, como todos os dias, por volta de 14h30min, Mateus sente fome, ela foi a
cozinha para ele se alimentar (esse era o combinado no CMEI). No entanto, nesse dia, o
biscoito que ele come estava na sala das professoras. Automaticamente, Mateus se dirigiu
para lá e, quando Carla chega para acompanhá-lo, ouve uma professora falando da
seguinte forma com ele: “Sai daqui, garoto, vai embora, saí!”
Ela ficou chocada com essa fala e diz ao grupo que ele veio comer o biscoito da escola
conforme o combinado. No entanto, as professoras dizem que, a partir do último
planejamento coletivo, ficou proibido dar comida a ele, ou a qualquer outra criança ali, pois,
se dessem a ele “todos poderiam comer também!”. Carla, então, tira Mateus de lá e sobe
arrastando-o, porém, quando ele percebe que está chegando à sala sem se alimentar, no
momento em que ela abre a porta, Mateus a morde, talvez como última possibilidade para
comer.
Ana fica enfurecida e quer tirar satisfação com a professora que destratou Mateus e Carla.
Eu tento contê-la, dizendo-lhe para encaminhar isso à direção e à pedagoga, pessoas
responsáveis para resolver essa situação, na medida em que iniciaram essa conversa com
as professoras. Reforço dizendo a Ana para ela não se expor sozinha em frente ao grupo,
127
pois essa é uma questão do CMEI e não somente dela, afinal a criança é aluno da escola e
não só dela.
Ana desce desarvorada atrás da pedagoga e eu fico na sala tentando acalmar Carla,
dizendo-lhe que essas coisas, apesar do constrangimento da situação, são interessantes de
emergirem, pois abrem a guarda para o debate (24-4-2007).
Apesar de reconhecer que o grupo deveria ter uma ação mais coletiva em relação à
necessidade de Mateus compreender acerca de algumas regras sociais de
convivência, isto é, ele não poderia entrar em qualquer lugar e comer tudo que visse
pela frente, existem muitas formas de introduzir novas informações para ele e, a
meu ver, essa não era a mais indicada.
A esse respeito, trazemos à cena o lugar ocupado pelo professor na estruturação
dos signos de seus alunos, já que encontros e/ou desencontros dão continuidade
aos processos de espelhamento vividos por eles na infância, no sentido de se
perceberem e/ou se valorizarem a partir da imagem que o professor reflete neles,
apesar de reconhecer que alunos também são atravessados por uma subjetividade
que muitas vezes lhes traz dificuldades.
A idéia de que a pedagogia é uma questão de teoria, de doutrina, de que
pode haver uma ciência da educação, se baseia na ilusão da possibilidade
de domínio sobre os efeitos da relação do adulto com a criança. Quando o
pedagogo imagina estar se dirigindo ao Eu da criança, o que está atingindo,
sem sabê-lo, é seu inconsciente; e isto não ocorre pelo que passa do seu
próprio inconsciente através de suas palavras (FREUD, apud CUNHA, 1990,
p. 12).
Segundo Cunha (1990), o que está em jogo nos processos educacionais, mais do
que
as
tecnologias
de
ensino,
são as
possibilidades
de
envolvimentos
intersubjetivos que ali se engendram e que se encontram atreladas aos desejos
inconscientes dos seus atores e atrizes.
Ao retomar o debate sobre os processos de ensino/aprendizagem que permeiam as
paisagens escolares, no que tange às relações de saber/poder que ali se
estruturam, em especial aos alunos que apresentam nee, vislumbrei, no lugar
ocupado pelos professores, um importante laço nas teias que ligam o inconsciente à
realidade vivida de seus alunos. Afinal, para além de utilizarem conteúdos e
metodologias de ensino, entre outras estratégias, operam também no campo dos
128
afetos, dos desafetos e dos sentimentos ambíguos, num entrelaçamento de nós que
tanto podem nunca desatar, quanto serem passíveis de formar laços de criação de
vida. Para Freud (apud RONDAS, 2004), os professores são para as crianças os
sucessores de seus pais.
Está exatamente aí o grande nó dessa teia! Afinal, se, para Freud, é na relação com
o outro que aprendemos a nos ver como sujeitos desejantes, então, após as
inscrições iniciais produzidas na/pela família dos indivíduos, nós, professores,
podemos não só reafirmar, mas também contribuir para ressignificar desejos tanto
de apostas como de não-apostas, como nos relatos apresentados.
Infelizmente essa não foi a única situação presenciada em que Mateus foi tratado
dessa forma. Gostaria de destacar, também, as aulas de Educação Física, no 1º
semestre do ano. A professora de Educação Física, Vanda, apresentava
dificuldades para incluí-lo ao longo de suas aulas, pois, segundo ela: “Para mim,
Mateus não está na minha aula! Ele já melhorou muito, mas ainda não fica como as outras
crianças”.
Ao
ser
questionada
sobre
o
entendimento
construído
sobre
inclusão
socioeducacional, Vanda disse:
Para mim, a inclusão não acontece aqui! A meu ver, nós é que
temos de ser incluídos a estas crianças. Da forma como está, sou
contra a presença de Priscila aqui no CMEI, pois ela faz o que quer
e, como é agressiva, as crianças pequenas sofrem com isso! Outro
dia ela deu um esbarrão na porta do berçário que, se tivesse alguma
criança ali, não sei o que aconteceria! Outra coisa, a presença da
estagiária não funciona, pois eles não têm preparo adequado para
acompanhar tais crianças. Para mim, se cada um, no serviço
público, conhecesse e cumprisse o seu papel, tudo seria diferente!.
Reconheço que a realidade do Sistema Público de Ensino Municipal, como em todo
o Brasil, é complexa, cujas tramas, que ali se instauram, apresentam vários nós
cegos. Nesse contexto, é possível que alguns professores possam sentir-se sem
condições para a construção de um projeto educacional inclusivo que reconheça a
diversidade humana como uma condição de vida. Afinal, pensar os processos
pedagógicos numa lógica plural exige uma gama de suporte didático-pedagógicos
129
que não se limita a um “método inclusivo”, mas, sim, é preciso que esses
profissionais tenham, para além de um apoio pedagógico, a oportunidade de ser
ouvidos em suas angústias e/ou dificuldades, como Vanda mesma nos clama no
relato que se segue:
Tenho dúvidas acerca do que fazer com as outras crianças
enquanto estou com os alunos com nee. Talvez, se tivéssemos mais
infra-estrutura específica (bolas coloridas, túneis etc.) a coisa
poderia melhora. [...]. O fato de sermos obrigados a trabalhar 40
horas semanais nos CMEI, pois à tarde estou acabada. Tenho
consciência que os alunos do turno vespertino perdem com isto,
principalmente pelo fato de, no vespertino, ter muito mais crianças
do que no matutino. Neste sentido penso que o fator tempo também
é algo a ser discutido, afinal, o tempo do Berçário deveria ser
diferente do tempo do Jardim II.
Entretanto, pego carona na fala da própria professora quando diz: “Vejo também que
a questão da subjetividade do professor interfere neste processo, ou seja, alguns
tomam esta questão para si e aí a coisa anda!”.
É preciso salientar que nada disso justificava o fato de essa professora, pelo menos,
não tentar se aproximar de Mateus, bem como o fato de não compreender que a
estagiária ali está para aprender junto com ela e não para assumir uma
responsabilidade que é dela!
Os motivos que me levam a evidenciar tal afirmativa apóiam-se no fato de que, no 2º
semestre, pela lógica muito particular do Sistema Público Municipal de Ensino de
Vitória/ES, chega ao CMEI um outro professor de Educação Física para ocupar a
vaga da professora de Artes22 e, apesar da pouca, ou nenhuma formação
pedagógica que ele tinha com esse segmento de ensino, em poucas semanas
víamos que Mateus ia livremente para suas aulas, bem como buscando esse
professor pelo pátio sempre que o via.
Kupfer (2001), ao discorrer sobre a necessidade que têm as crianças autistas e
psicóticas de freqüentar uma escolar regular, nos diz o quanto algumas escolas
regulares apresentam como “[...] fabricantes dessa nova categoria de crianças, as
22 No ano em que este estudo foi realizado, existia no Sistema Público Municipal de Ensino de Vitória/ES, a figura do dinamizador, cuja função tanto pode
ser ocupada pelo professor de Educação Física quanto pelo professor de Artes.
130
excluídas do sistema regular de ensino” (p. 86). Para a autora, apesar de reconhecer
que essa não é uma tarefa fácil, bem como há necessidade de se analisar caso a
caso, é preciso reavaliar tal condição, pois a escola pode favorecer a retomada de
uma estruturação perdida:
[...] a figura da escola vem a calhar porque a escola não é socialmente um
depósito como o hospital psiquiátrico, a escola é um lugar de trânsito. Além
do mais, do ponto de vista da representação social, a escola é um
instituição normal da sociedade, por onde circula, em certa proporção, a
normalidade social. Portanto alguém que freqüenta a escola se sente
geralmente mais reconhecido socialmente do que aquele que não
freqüenta. É assim que muitos de nossos psicóticos púberes ou
adolescentes reclamam que querem ir à escola como seus irmãos,
precisamente porque isso funcionaria para eles como um signo de
reconhecimento de serem capazes de circular, numa certa proporção, pela
norma social. E efetivamente isso acaba tendo um efeito terapêutico
(JERUSALINNSKY, apud KUPFER, 2001, p. 89).
Assim sendo, é preciso redobrarmos o cuidado em relação aos discursos postos em
circulação em virtude do poder de subjetivação que eles operam, com vistas a
resguardarmos lugares sociais saudáveis para essas crianças, como Kupfer (2001,
p. 92) mesma diz: “Afinal de contas, as crianças poderão ter sido preparadas para ir
à escola, mas a escola pode não estar preparada para recebê-las”.
Entretanto, apesar de todo esse contexto desfavorável, logo que cheguei à sala de
Mateus, percebi algo diferente naquela paisagem, a começar pela postura desejante
tanto de Ana (professora), quanto de Carla (estagiária) em relação a Mateus. Afinal,
ambas haviam escolhido a turma por causa de Mateus e não apesar dele, ou seja,
estava instaurado ali o desejo de uma aposta naquela criança e, a meu ver, isso fez
a diferença.
Direcionando o foco da análise para mim, a pesquisadora, não podia negar que
aquela criança me fazia lembrar de alguém muito significativo em minha vida: um
sobrinho e, também, afilhado, cujas semelhanças físicas e de nome me remetiam
ao período em que mais nos aproximamos ao longo de nossas vidas.
Acredito que esse olhar diferenciado fisgou, de alguma forma, Mateus. Certa vez,
quando fui à sua casa entrevistar Marlene, sua mãe, sobre a percepção dela acerca
do processo de inclusão de seu filho naquele CMEI, ocorreu uma coisa interessante
131
que nos surpreendeu, no momento em que Marlene estava a falar do quanto Mateus
percebia e se ressentia dos olhares preconceituosos dirigidos a ele, Mateus chega a
casa e, imediatamente, senta-se no meu colo. Essa identificação, em meu entender,
favorecia na sua constituição da imagem de si pela via do empréstimo de meu
corpo, conforme os relatos que se seguem abaixo, extraídos do diário de campo:
[...] O grande achado deste dia refere-se a uma situação que sei que “marcou e marcará”
profundamente minha pesquisa neste CMEI. Tudo começou quando chego à sala e vejo
Ana distribuindo uma matriz para as crianças pedindo que, inicialmente, pintassem uma
figura.
Todos se encontram à mesa com o texto, exceto Mateus que, por conta disso, começa a
rodar e a bater palmas desordenadamente. Pego uma folha e chamo-o para se sentar à
mesa comigo. Ofereço-lhe a folha e digo a ele para pintá-la. Ele devolve o lápis a mim para
que eu pinte o desenho para ele, porém devolvo-lhe também o lápis e reafirmo que é para
ele pintar. Mateus, então, risca todo o desenho sem seguir as margens. Troco o lápis e ele
continua a fazer o mesmo movimento até virar a folha para continuar os seus riscos. De
repente, ele me devolve o lápis a fim de que eu escreva para ele. Escrevo o seu nome e, em
seguida, ele passa o dedo em todas as letras para, a seguir, riscar por sobre o escrito.
Como desejava avançar a essa condição que sempre se repetia, lembrei-me de sua mãe
dizendo para mim que ela pontilhava algumas palavras para ele seguir os pontos. Escrevo,
então, seu nome pontilhado e dou a ele o lápis. Ele traça corretamente o U e, em seguida,
risca todo o nome. Comento com Carla, ela me diz que ele sempre faz isso. Penso comigo,
então: “Talvez ele saiba escrever as letras de seu nome e não somente a letra A que
sempre escrevia!”.
Pego o lápis novamente, mas deixo minha mão bem leve para que ele a conduza, como se
emprestasse a ele o meu corpo para que se representasse graficamente. Minhas suspeitas
são confirmadas: ele conduz minha mão e escreve seu nome (FOTO 9). Fico surpresa e
resolvo ir além. Dou a ele o lápis e ele escreve corretamente as letras MAT, construindo, a
seguir, hipoteticamente, vários símbolos representando as letras de seu nome. Mostro a
Carla e a Márcia (sua babá que veio buscá-lo) a escrita e repito a ação junto com Mateus
que escreve novamente seu nome e não quer ir embora. Ele toca em minhas mãos como
forma de me dizer que deseja continuar. Todavia, Márcia o leva para casa (24-5-2007).
132
Foto 9: Imagens da escrita de Mateus
Tomo esse momento como bastante significativo neste estudo, pois pude perceber
o quanto Mateus havia avançado. Afinal, antes, ele vivia pelos corredores e agora
permanecia em sala e, mais do que isso, especialmente nesse momento, quando lá
se encontrava, buscou, numa tentativa de auto-reconhecimento, pela via do papel e
da escrita, em que a minha mão operou não só no sentido do empréstimo de meu
corpo a Mateus, mas, principalmente, numa tentativa de quebra da condição de não
alienação de si,23 se permitir a instauração de uma condição de demanda do Outro
(KUPFER, 2001; LAZNIK, 2004).
A partir de então, percebi que esse contexto transferencial instituiu efetivamente um
ambiente pedagógico mais inclusivo, trazendo ao nosso encontro a mãe de Mateus,
que tinha uma postura bem crítica em relação ao CMEI, afinal, segundo falas não só
dela, mas também da professora Ana e da pedagoga Kely, Mateus estava lá há dois
anos e, nesse período, havia sofrido bastante discriminação, pois uma das suas
professoras anteriores teve dificuldades para incluí-lo, no passado, deixando-o
sempre à margem das atividades em sala.
23
Na perspectiva psicanalítica, apesar de esse conceito etiológico ser polemizado por algumas correntes contrárias à
Psicanálise, a instauração das manifestações de autismo ocorre, dentre outros fatores, pela não condição de alienação de si,
que perpassa a criança nos primeiros anos de vida, em virtude de falha na função materna, ao apresentarem dificuldades para
olhar essa criança num sentido de investimento libidinal de presença, impossibilitando aí a instauração de um desejo do Outro
e, por conseqüência, inviabilizando a constituição de imagem de seu corpo (KUPFER, 2001; LAZNIK, 2004).
133
Gostaria de afirmar que, apesar e/ou por causa de tudo isso, ao final do ano, Mateus
permanecia em sala por todo o tempo, sentava-se para assistir aos filmes, passou a
compreender algumas regras sociais de convivência, por exemplo, esperar na fila
para descer, atendia às orientações da professora e da estagiária, interagia com a
maior parte das crianças, considerando suas afinidades, como todas as outras
crianças. Em relação à escrita, ele escrevia seu nome em todos os lugares que
podia, inclusive em sofás e paredes de casa.
Aproveito para chamar a atenção sobre o valor tomado pela cultura na estruturação
simbólica dessas crianças, destacando o fato de a linguagem oral e escrita vir a
reboque da sua expressividade como sujeito, de forma que as artes, a educação
física e todo o acervo cultural que se utiliza de ações simbólicas para se comunicar
são significativos, sendo, por isso, imprescindíveis.
Ao concluir tal apresentação, não poderia deixar de destacar o fato de que, seja
pelos nossos erros, seja pelos nossos acertos, essa criança foi, aos poucos,
instaurando uma estrutura sígnica de tal forma, pela via transferencial, que a
despertou para a busca pelo saber/aprender, manifestando o desejo pela escrita,
conforme os trechos narrados a seguir:
[...] fui para a sala de Ana e, quando lá cheguei, tive uma grata surpresa, isto é, apesar de
termos ficado sem nos ver por uns 15 dias, em virtude dos feriados, percebi que ela,
efetivamente, seguiu as pistas que vislumbramos juntas e produziu muita coisa com Mateus
desde a última vez em que estive em sua sala.
Ana produziu um caderno para que ele tentasse escrever outras palavras para além do seu
nome, sentou-se com ele em atividades de Matemática, fazendo-o relacionar e pintar
objetos e nº correspondentes, entre outras coisas. De acordo com os relatos, a mãe de
Mateus lhe escreveu contando da felicidade que ela está em vê-lo em casa colocando seu
pai para escrever seu nome, dentre outros avanços, a todo o momento (15-6-2007).
Diante desse contexto, a Psicanálise poderá, então, auxiliar a educação no sentido
de pensar os processos pedagógicos, não como um percurso que psicanálise os
que ali habitam, mas, sim, que lhes possibilite pensar para essas crianças, para
além de uma metodologia de ensino hegemonicamente generalizada, a abertura ao
inesperado, pela via da proposição de formas de ensino criativas e/ou alternativas
que ofereçam condições reais para que tais crianças estruturem a sua psique
134
humana e, conseqüentemente, sua inserção social. No entanto, isso pode ocorrer
por diferentes caminhos, logo, é preciso ampliar a nossa percepção para a
diversidade a fim de captarmos tal movimento (CUNHA, 1990; KUPFER, 2001;
RICKES, 2006).
Vislumbro, no lugar ocupado pelos professores, um importante laço nas teias que
ligam o inconsciente à realidade vivida de seus alunos. Afinal, para além de
utilizarem conteúdos e metodologias de ensino, entre outras estratégias, operam
também no campo dos afetos, dos desafetos e dos sentimentos ambíguos, num
entrelaçamento de nós que tanto podem nunca desatar como ser passíveis de
formar laços de criação de vida. Para Freud, os professores são para as crianças os
sucessores de seus pais (FREUD, apud RONDAS, 2004).
Está exatamente aí o grande nó dessa teia! Afinal, se, para Freud, é na relação com
o outro que aprendemos a nos ver como sujeitos desejantes, então, após as
inscrições iniciais produzidas na/pela família dos indivíduos, nós, professores,
podemos não só reafirmar, mas também contribuir para ressignificar desejos tanto
de apostas como de não-apostas.
135
4 AS POLÍTICAS DA/NA EDUCAÇÃO INFANTIL E SUAS ARMADILHAS
ÀS PRÁTICAS INCLUSIVAS
(DALI, 1940)
[...] Crianças, embora existissem sempre, continuam em
pauta para as definições de prioridade, de políticas públicas,
de educação para cidadania, de cidade para a infância.
Nossas crianças não precisam de praças e escolas só para
elas; elas precisam da cidade que lhes garanta espaços e
tempos carregados de dignidade respeito, ternura e
aconchego, ‘porque é de infância que o mundo tem precisão’
(THIAGO DE MELLO, 1964, p.34)
136
Neste capítulo, problematizarei algumas micromacroações políticas captadas, em
especial, no que se refere ao entendimento acerca da Educação/Educação Infantil
em uma perspectiva inclusiva, tendo em vista o fato de que alguns modos de
produção de ações24 instituídos no/pelo cotidiano escolar não favoreciam à
perspectiva inclusiva defendida neste estudo.
Assim sendo, evidenciarei, ao longo deste texto, alguns movimentos cotidianos, que
gostaria de problematizar, no sentido de conhecer/questionar/entender de que lugar
esses nós são tecidos para, em seguida, contextualizar suas implicações políticofilosóficas às subjetividades envolvidas e, também, por acreditar que estes
movimentos não favoreciam aos processos de inclusão socioeducacional defendidos
neste estudo, tomando como base a sugestão de Alves (2008, p.21) ao se referir
sobre os movimentos necessários para se compreender os cotidianos escolares:
Para aprender a ‘realidade’ da vida cotidiana, em qualquer dos
espaçostempos em que ela se dá, é preciso estar atenta a tudo o que nela
se passa, se acredita, se repete, se cria e se inova, ou não. Mas é preciso
também reconhecer que isso não é fácil, pois o aprendidoensinado me
leva, quase sempre, a esquemas bastante estruturados de observação e
classificação e é com grande dificuldade que consigo sair da comodidade
do que isto significa, inclusive a aceitação pelos chamados ‘meus pares’,
para me colocar à disposição para o grande ‘mergulho’ na realidade.
O interesse por problematizar tais aspectos parte da premissa de que essas
microações forjam subjetividades nem sempre favorecedoras à vida, em especial
quando pensamos a presença de crianças com nee consideradas autistas, cujo
estigma que essa denominação carrega leva as pessoas a não apostar em quem o
manifesta. Todavia, como são instituídos no/pelo/com o cotidiano, são passíveis de
serem ressignificados com vistas ao favorecimento de políticas de base mais
inclusivas.
Para tanto, acredito ser necessário, inicialmente, reavaliarmos alguns princípios por
nós concebidos como democráticos, sob a égide da busca pela inclusão
socioeducacional, visto que o que nos iguala é, exatamente, a nossa condição de
sermos sujeitos singulares/diferentes.
24
Termo utilizado por Oliveira (2008), ao se referir às produções de ações humanas em frente aos
contextos vividos.
137
Para que a diversidade humana possa se fazer presente como um valor
universal, a escola precisa assumir uma postura de desconstrutora das
igualdades, incluindo a todos nas suas diferenças, indo ao encontro de
cada um e de todos os alunos, buscando quebrar em si aquilo que suscita
resistência (JESUS, 2002, p. 94, grifo meu).
Nesse sentido, tomarei como fio condutor desta teia as bases teóricoepistemológicas tecidas por Michael Foucault, em especial, o seu debate acerca dos
micromacro processos de subjetivação humana considerando suas discussões
arqueológicas, genealógicas e éticas, quando articuladas a diferentes campos de
saberes, para compreender a origem e os fatores que atravessaram os movimentos
captados na/pela paisagem investigada, bem como em que medida tais saberes
engendram subjetividades, pela via dos campos discursivos, cujos dispositivos
tornam os envolvidos nesta teia sujeitos imersos em determinadas práticas
discursivas.
4.1 FOUCAULT E AS PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO HUMANA
Analisando essas três fases, tomando por base as considerações de Deleuze (apud
VEIGA NETO, 2004). Cada uma dessas fases corresponde a uma pergunta
fundamental elaborada por Foucault, seguida de uma respectiva metodologia. Estas
são questões que nortearam seu pensamento: “O que posso saber?”, “O que posso
fazer?” e “Quem sou eu?”.
No entanto, Veiga-Neto (2004) chama a atenção para o fato de que a tentativa de
periodizar e sistematizar teórico-metodologicamente as três fases da obra de
Foucault apresenta inconsistências por diversos motivos. O principal deles é o fato
de sua terceira fase, a ética, não apresentar um método novo.
Para o autor, o entendimento de método adotado por Foucault não se coaduna com
a perspectiva rígida da Modernidade, logo, é preciso ressaltar que essas fases não
foram pensadas no sentido linear da superação de um pensamento em relação ao
outro, mas, sim, pela via da ampliação de um entendimento em suas diversas
formas de se manifestar, como eixos referenciais e aglutinadores de sua obra, como
138
o próprio Foucault (2004, p. 289) nos diz ao ser entrevistado acerca da
“intencionalidade” de sua obra:
Não creio que haja grande diferença entre esses livros e os precedentes.
Quando escrevemos livros, desejamos que estes modifiquem inteiramente
tudo aquilo que pensávamos e que, no final, nos percebemos inteiramente
diferentes do que éramos no ponto de partida. Depois nos damos conta de
que no fundo pouco nos modificamos. Talvez tenhamos mudado de
perspectiva, girando em torno do problema, que é sempre o mesmo, isto é,
as relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência.
Para Costa (2005), seguir os fluxos da perpsectiva foucaultiana não é tarefa fácil e
nem linear, visto que os ensinamentos de Foucault buscavam potencializar aos que
almejavam se libertar das submissões presentes às diversas práticas disciplinares e
reguladoras que atravessam nossas vidas, no intuido de, predominantemente,
questionar tais regimes.
Foucault, apesar de não ter desenvolvido estudos especificamente voltados à área
educacional, apresenta produções teóricas que nos permitem redimensionar os
estatutos da disciplina e da autonomia, ao analisar a forma como esses dispositivos
operavam nas instituições escolares em busca de produzir uma subjetividade que se
constituía disciplinadora, operando nesses processos mediante “pedagogias de
ensino”, vistas como um significativo instrumento para estruturar as condutas
humanas, na medida em que fornece um modelo para a organização social do
século XVIII, tendo como foco de atuação a Economia, a Medicina e a Teoria Militar.
Como forma de melhor compreender sua lógica do pensamento, no que se refere
aos processos de subjetivação humana, apresentarei, a seguir, uma síntese de sua
obra, subdividindo-a em três fases com base em critérios metodológicos e
cronológicos, apesar de reconhecer que essa organização não ocorre linearmente;
essas fases se interpenetram. Em sua obra, então, podemos encontrar três
momentos de acordo com Foucault (1975, 1992b,1996, 2003):
A Arqueologia, método de pesquisa filosófica utilizado até meados dos anos 70, por
meio do qual se operava com diferentes dimensões de análises a fim de se
compreender o discurso de determinada época. Sua ação pautava-se na descrição
sobre a constituição desse campo, concebendo-o como rede de inter-relação de
139
diversos saberes que ali operam sobre os quais será preciso abrir espaço para a
emergência do diversos discursos, como forma de instituir uma nova ordenação,
tendo em vista o interesse por “[...] cercar as formas da exclusão, da limitação, da
apropriação [...]; mostrar como se formaram, para responder a que necessidades,
como se modificaram e se deslocaram, que força exerceram efetivamente, em que
medida foram contornadas” (FOUCAULT, 1996,
p. 60). Destacam-se, nesse
momento, as obras: História da loucura (1975), A arqueologia do saber (1969), O
nascimento da clínica (2003) e As palavras e as coisas (1992a)
A Genealogia, conceito nietzschiano retomado por Foucault a partir de 1970,
concebia a pesquisa histórica acerca da origem dos saberes, tendo em vista as
condições externas a eles, à luz das preocupações atuais trabalhando em busca de
restituir os acontecimentos na sua singularidade visto que esse conceito,
[...] concerne à formação efetiva dos discursos, quer no interior dos limites
do controle, quer no exterior, quer, a maior parte das vezes, de um lado e
de outro da delimitação. A crítica analisa os processos de rarefação, mas
também de agrupamento e de unificação dos discursos; a genealogia
estuda sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular
(FOUCAULT, 1996, p. 65-66).
Faz-se necessário reafirmar que esses dois conceitos não são somente
complementares; eles se encontram interligados já que tanto as formas de seleção,
adequação, reagrupamento, alteração ou exclusão submetem o discurso ao
controle, como também esse discurso sofre interdição dos mecanismos e estratégias
instituídos na/por essas relações, que emergem a partir dos dispositivos que se
utilizam das práticas discursivas para agenciar os processos de subjetivação
humana.
Destacam-se, nesta fase, as seguintes obras: A ordem do discurso (1996a), História
da sexualidade I - a vontade de saber (2003a) e Vigiar e punir (1975).
A Ética se constitui em pressuposto que visa a compreender a maneira pela qual
cada um constitui a si, suas respectivas práticas, em frente a um código moral de
conduta, entendido como um jogo complexo de elementos que se auto-regulam e
onde as resistências são possíveis e concebidas como formas de criação, por isto,
(re)existências. Suas principais obras são; História da sexualidade II e III (2003b) e
O cuidado de si (1985).
140
Nessa perspectiva, a subjetivação, processo pelo qual se constitui a experiência de
si em Foucault (GALLO, 2006), estrutura-se cotidianamente por meio de redes
tecidas na/pela história e encontra-se diretamente vinculada às práticas discursivas
de ouvir, de contar, de inventar e reinventar histórias, entre outras.
Toda cultura deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de
si, e todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em
alguma das modalidades incluídas nesse repertório. [Portanto] em qualquer
caso, é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiência
objetiva do mundo exterior, construísse e transmitisse também a experiência
que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como sujeitos (LARROSA,
apud BUJES, 2001, p. 4).
Analisando essas fases a partir de Foucault (2004), o que opera é apenas um novo
olhar numa outra dimensão ou com outras ferramentas, mas nunca se esquecendo
de sua questão central acerca da constituição do sujeito, concebendo-o como
alguém que se constitui pela via das práticas de sujeição e/ou de libertação,
tomando como base as regras sociais instituídas na/pela cultura.
Assim, Foucault, ao traçar a sua genealogia da subjetivação, aponta diversas formas
de relação do sujeito consigo mesmo, denominadas de “tecnologias do self”, que
podem ser traduzidas em diferentes conjuntos de práticas, numa disciplina corporal
que vai desde a obrigação de se auto-regular, presente em projetos que envolvam
os cuidados com o próprio corpo, também em situações de punição, como nos atos
religiosos de penitência, nas prisões, entre outras.
Nesse sentido, tomando como base o debate que envolve a constituição do sujeito,
pela via das práticas de sujeição e/ou de libertação, gostaria de narrar uma situação
extremamente significativa que experenciei (PINEL, 2000), não só como
pesquisadora, mas, e por que não dizer, principalmente como sujeito deste estudo,
na condição de mãe/pesquisadora daquela comunidade cujos fluxos foram decisivos
para disparar em mim o desejo por mergulhar literalmente nesta paisagem.
A opção por este mergulho se fortaleceu a partir das considerações de Garcia,
quando aborda o lugar ocupado pelos diversos tipos de sujeitos que emergem nas
141
pesquisas com/no/sobre o cotidiano, cujo movimento constante de reflexão sobre
suas ações nos impulsiona à vida:
A pesquisa para nós se dá pondo-nos em diálogos com o sujeito a ser
pesquisado. Sujeito, não objeto. Sujeito que pesquisa (nós), sujeito que é
pesquisado (as professoras), sujeitos ambos que, no processo de
pesquisa, põem-se a pesquisar a sua própria prática e neste processo vão
tecendo novos conhecimentos sobre o processo ensinoaprendizagem e
sobre o processo de pesquisa [...](GARCIA, 2003, p. 13) .
4.1.1 O movimento de organização das turmas
A narrativa em questão aborda a forma como as crianças eram organizadas nas
turmas ao final de cada ano letivo, tendo em vista a criação de uma nova turma para
o ano seguinte.
Segue, então, abaixo, um relato pessoal acerca de como esse processo foi
conduzido até o momento em que me afastei definitivamente desse CMEI:
Tudo começou quando minha filha, ao final de seu primeiro ano de estudo naquele CMEI e,
conseqüentemente, com o retorno das aulas no ano seguinte, queixou-se do fato de suas
coleguinhas mais próximas não se encontrarem junto dela na mesma turma. A fim de obter
maiores esclarecimentos, fui ao encontro da pedagoga Kely que me informou ser essa uma
prática daquele CMEI referendada pelo colegiado de professores, com o intuito de, ao final
do ano, trocar de turma indiscriminadamente todas as crianças como forma de minimizar
alguns conflitos de comportamento que ali emergiam.
Apesar de reconhecer o fato de, constantemente, termos necessidades de (re)ordenar
nossas vidas, e, na escola, isso não seria diferente, penso que essas mudanças sempre
deveriam operar num sentido proativo, isto é, para ajudar/potencializar alguma situação
específica, e não ser um paliativo para questões que, a meu ver, são de outra ordem.
Logo, fui ao encontro de Kely a fim de questionar o fato de as crianças não seguirem juntas
numa mesma turma, já que percebia, nesse ato, uma certa “punição”, tanto para as crianças
ditas “indisciplinadas” quanto para outras que se viam afastadas de seus pares. Queria
entender bem o porquê de tal ruptura. Reafirmei que tais ações desconsideram a
importância do afeto e das relações sociais no desenvolvimento infantil, sem falar nas
crianças que apresentam nee, em especial, em nosso caso, as crianças autistas que,
naturalmente, já apresentam uma predisposição a dificuldades de relacionamentos sociais
bem como reagem, geralmente mal, a mudanças de rotinas.
142
Kely disse-me concordar com minhas ponderações, todavia afirmou ter sido voto vencido na
reunião do colegiado, quando grande parte do grupo alegou que, dessa forma, todos
receberiam o mesmo tratamento, sem privilégios. No entanto, ela garantiu que isso não mais
se repetiria a partir daquele ano, em virtude das diversas queixas advindas das famílias de
algumas crianças.
Ao final do ano, apesar dos inúmeros encontros com Kely, em virtude da formação
continuada que iniciamos naquele ano, bem como pelo fato de eu também estar atuando na
comunidade para garantirmos a permanência efetiva dela, pois até então, trabalhava ali num
regime de contrato, só fui saber que o grupo de professoras havia decidido misturar todas as
crianças no próximo ano, novamente por meio da professora da minha filha, numa reunião
de fechamento de ano letivo.
Confesso não ter entendido nada, afinal, estava ali quase todos os dias e ninguém me disse
nada! Não que tivesse alguma condição de permitir, ou não, alguma ação coletivamente
referendada, todavia gostaria de ter tido, pelo menos, a oportunidade para defender um
ponto de vista, antes da reunião que decidiu tal ação.
Assim, apesar de saber que tal posição não se reverteria, fui procurar Kely, no intuito de
expor minha indignação como membro de uma comunidade escolar que se pensa
democrática, bem como solicitar ao colegiado uma oportunidade para defender a
reavaliação desse posicionamento. Kely, então, disse-me que, novamente, foi voto vencido
no grupo de professoras, mas que levaria minha solicitação ao grupo de professoras.
No intuito de contextualizar essa narrativa, retomo Foucault (1975), ao nos instigar a
refletir como os “regimes de práticas” atuam como tecnologias de subjetivação,
formulando lógicas de pensamentos na determinação dos corpos dos indivíduos,
analisando também como as instâncias microfísicas de governo operam no campo
das ações dos indivíduos, num exercício sutil e constante atrelado a um suposto
poder que se faz disciplinador pela legitimação de um saber nascido das práticas
sociais de controle e de vigilância.
O poder disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em
compensação impõe aos que o submetem um princípio de visibilidade
obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. Sua
iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. É o fato de
ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeitado o
indivíduo disciplinar (FOUCAULT, 1975, p. 167).
Assim sendo, reconheço o quanto nos é complexo (MORIN, 1995) e desafiador
gestar políticas educacionais num contexto de 300 alunos, cujas realidades de vida
são amplamente diversificadas. No entanto, nem sempre as alternativas que nos
143
parecem mais simples nos ajudam a “resolver” tais questões. Isto é, não será
misturando as crianças ao final de cada ano, indiscriminadamente, ou mesmos
mantendo todas rigidamente em suas respectivas turmas que iremos minimizar as
tensões e os conflitos que acometem o cotidiano das salas de aula. Isso é apenas
um paliativo que não opera no âmago da questão.
Nesse sentido, concebo uma gestão político-pedagógica na/da Educação Infantil
que não só busque produzir ações voltadas às práticas educacionais a partir do
contexto, mas, também, e principalmente, para o contexto. Logo, ao misturar as
crianças com vistas a minimizar as dificuldades que nos impõem a árdua tarefa de
“conter” 2525 vidas que pulsam incessantemente, estamos, não só permitindo manter
as salas de aula com esse quantitativo de alunos, mas, também, deslocamos o foco
em questão, que deveria apontar as políticas de Educação e de Educação Infantil ao
desconsiderar o quanto esse quantitativo de alunos é nocivo aos processos
educacionais, na medida em que direcionamos a questão para o “comportamento
difícil” de algumas crianças desse CMEI, responsabilizando-as, equivocadamente
por essa condição.
Em meu entender, essas práticas não só não atingem seu objetivo, como também
instituem outras práticas subjetivantes que operam na contramão do que
defendemos por um processo de educação que reconheça e favoreça a
singularidade humana, para reafirmar, de forma sutil e velada, a condição de
anormalidade das crianças que não se submetem às condições impostas.
Logo, nada melhor do que nos utilizarmos da organização escolar como um
aparelho regulador e punitivo aos que se afastam das normas “socialmente
determinadas” por meio de “[...] corretivos e instrumentos de hierarquização dos
desvios” (SINGER, 1997, p. 42), no caso da paisagem investigada, separando as
crianças de seus pares ou recompensando aquelas que se submetem ao que é
25
Falo do quantitativo determinado àquele CMEI para o número de crianças em sala de aula nas
turmas do Jardim I e II
144
determinado, oferecendo-lhes prêmios e honrarias – instrumentos de regulação,
neste caso, a permanência com os pares.
Dando continuidade à narrativa, apesar de ter disparado esse movimento, sentia que
sozinha não daria conta de ressignificar tal situação, de forma que fui à busca da
representante do segmento de pais no Conselho de Escola e relatei o ocorrido.
Assim, foi-me sugerido que elaborasse um documento a ser apresentado na reunião
desse Conselho, para que se discutisse tal situação. Esse documento deveria ser
encaminhado ao Colegiado de Professores do CMEI. Assim sendo, redigi uma carta,
na qual ponderava tal reavaliação, conforme se apresenta a seguir:
Excelentíssima senhora diretora, professoras, funcionários/as
responsáveis pelos/as alunos/as do CMEI Brilho de Luz
e
Solicito a ampliação do debate, no que tange à possibilidade de
organização das turmas para o ano de 2007, já que me foi comunicado, em
reunião com a professora de minha filha, e sendo em seguida confirmado
pelas pedagogas do turno vespertino, que a formação atual das turmas não
será mantida para o ano seguinte, em virtude de uma decisão tomada pelo
grupo de professoras e funcionários dessa instituição, em assembléia
anterior.
Tenho ciência do quanto o ser educador/a no contexto público municipal
atual tem sido algo muito complicado, haja vista as políticas públicas
vigentes, em que dados quantitativos se sobrepõem a uma compreensão
maior acerca do que se constitui por uma escola pública qualitativamente
acessível a todos/as.
[...] Caríssimas, tenho plena consciência de que 25 crianças, para uma
professora em um CMEI, refletem uma visão liberal sobre educação no
mínimo irresponsável. Agora, misturar todas as crianças, a cada ano,
impedindo-as de fortalecerem sues laços afetivos, tão necessários a um
momento singular em suas vidas, que representa o seu primeiro encontro
com o contexto escolar, é muito prejudicial!
Compreendo que, na vida, tudo se supera, mas tenho certeza de que, em
uma concepção de educação pautada na formação de cidadãos críticos e
capazes de transformar a sociedade, não há espaço para o
enquadramento, principalmente quando concebemos que o ato de ler e
escrever vai muito mais além de um gesto motor e, sim, celebra o momento
de aceitação pela criança das ações educativas e, nesse sentido, temos,
nós, da comunidade escolar, a obrigação de criar condições que favoreçam
esse processo e não que o atropelem.
Assim sendo, solicito a reconsideração acerca dessa decisão e me coloco
em disponibilidade para, juntas, pensarmos condições que proporcionem
um processo educacional libertador.
Maria das Graças Carvalho Silva
145
Esse documento foi redigido num momento de extrema implicação pessoal, visto
que acabara de saber que todo o movimento articulado com os três segmentos
(pais, professores e funcionários) dessa comunidade escolar, ao longo do ano, havia
sido desconsiderado por uma decisão, cuja representação, apesar de ter maioria
quantitativa, havia representatividade de apenas dois dos três segmentos, ou seja,
foi discutido entre os professores e funcionários, sem ao menos convidar um
representantes do segmento de pais para participar de tal decisão.
Assim sendo, em virtude de uma intervenção cirúrgica a que me submeti nos dias
seguintes a esse fato, não pude avaliar as reais implicações desse movimento.
Entretanto, para minha decepção, inicialmente, tal documento não surtiu o efeito
desejado, ou seja, no ano seguinte, as crianças foram novamente separadas nas
turmas, desconsiderando suas identificações pessoais e suas relações de afetos.
Com vistas a analisar tal acontecimento, tomando como fio norteador a constituição
do sujeito, compreendo que as subjetividades se esboçaram a partir de um discurso
instituído por meio do regime de práticas, que toma nossos corpos como um objeto
de reafirmação do poder suscetível a sucumbir às possíveis manipulações físicas
e/ou psíquicas, com vistas a uma resposta desejada, mediante uma relação de
docilidade-utilidade denominada disciplina (FOUCAULT 1995). Logo, aquela criança
que não se enquadrar nas normas predeterminadas de ”bom’’ comportamento,
precisa ser “regulada” a fim de ser passível ao convívio social, ou seja, separam-se
os grupos “marginais” para que não tomem força no coletivo.
Será preciso, então, instituir um modelo de sujeito que se autovigia, se auto-avalie e
se narre ou se confesse capaz de se auto-escrutinar, se autoproblematizar para
encontrar-se a si mesmo, isto é, fazendo um locus de pensamento e de ação, ou
seja, a transformação da consciência de si.
Nesse contexto, urge instituir regras como forma de operar uma história exterior de
verdade, por onde o saber emerge de um suposto conhecimento que visa a
homogeneizar-nos em “prol de nossa singularidade”.
146
[...] o conhecimento é ao mesmo tempo o que há de mais generalizante e
de mais particular. O conhecimento esquematiza, ignora as diferenças,
assimila as coisas entre si, e isto sem nenhum fundamento em verdade.
[...] o conhecimento é sempre um desconhecimento. [...] sempre algo que
visa maldosa, insidiosa e agressivamente, indivíduos, coisas, situações. Só
há conhecimento na medida em que, entre o homem e o que ele conhece,
se estabelece, se trama algo como uma luta singular (NIETZSCHE, apud
FOUCAULT, 1996b, p. 26).
Dialogando tais considerações com o trecho narrado anteriormente, ao separarem
as crianças indiscriminadamente no final do ano sob a égide da igualdade nas
ações, o que se buscava legitimar, em meu entender, era a reafirmação de um
poder punitivo e disciplinado, cuja concepção de infância e de educação ainda se
encontrava fixada a pressupostos hegemônicos liberais, que concebem a
infância/educação infantil como um excelente instrumento de regulação humana.
Isso se confirmou quando obtive a seguinte resposta da pedagoga Kely: “O grupo
resolveu manter a separação indiscriminada das crianças, por acreditar que assim
elas dariam o mesmo tratamento a todas”.
Mas quem disse que temos necessidades iguais?
No entanto, este ano, ao direcionar as crianças para as turmas do ano seguinte,
minha filha permaneceu junto ao seu grupo de colegas afins. Mais uma decepção,
afinal, apesar de reconhecer que, na condição narcísica de mãe, sentia-me aliviada,
o que estava em jogo naquele momento não era apenas uma questão pessoal, mas
uma concepção de Educação/Educação Infantil e, principalmente, na perspectiva
Inclusiva.
A partir de então, fiquei a pensar: como ficaria Priscila, a criança autista que me
chamou tanto a atenção inicial e todas as outras crianças com nee daquele CMEI?
Como seria essa nova organização? E quanto às outras crianças, cujas famílias, por
desconhecerem o poder subjetivante das práticas hegemônicas de assujeitamento,
aceitaram isso “naturalmente”? Que implicações essa ação acarretaria aos
processos de desenvolvimento infantil daquelas crianças?
147
Entretanto, apesar de ter perdido uma batalha, nunca desisti da guerra, de forma
que, no ano seguinte, buscava, em todas as oportunidades obtidas, retomar tal
debate trabalhando, inclusive, em nosso grupo de estudos, o texto de Michelli e
Fischer (2007), intitulado: Infância na creche: um olhar inclusivo. Meu objetivo era
analisar a prática da inclusão de crianças em instituições de Educação Infantil,
buscando compreender o uso do termo "inclusão", a sua relação com o cuidado e a
educação presentes no cotidiano de creches, instigando possíveis caminhos para
uma pedagogia inclusiva e comprometida com o desenvolvimento infantil, conforme
os trechos que se seguem extraídos do diário de campo.
Nesse dia, sento-me com Ana e Kely e discuto com elas um texto que baixei na internet,
denominado, Infância na creche. um olhar inclusivo, de Cláudia Regina Pinto Michelli e
Julianne Fischer. Destaco os seguintes itens a serem debatidos:
1. Num determinado momento da permanência da criança na creche
será inevitável o seu remanejamento, ou seja, a mudança de sua
sala para outra devido a sua idade e também a demanda por vagas.
Este remanejamento segundo os RCN's, precisa ser gradativo pois
"as crianças pequenas [...] constroem vÍnculo afetivo com o adulto
de referência, a base sobre A qual vão se sentir seguras para
explorar o ambiente e se relacionar com novas pessoas".
(REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL, apud FISCHER, 2003,
p.3).
2. A mudança de sala quando não bem elaborada, pode soar para a
criança como um desagrado, uma rejeição, algo que ela tenha feito
e não foi bem sucedida ou aceita e por isso não a querem mais no
grupo. Esta situação requer atenção específica dos educadores por
se tratar de um momento onde ocorrerá a inclusão ou a exclusão. "É
possível excluir pela forma como se olha, como se pensa, como se
fala, como se age ou como se deixa de agir." (FISCHER, 2003, p.5).
Uma nova sala, com novos educadores e crianças torna-se uma
experiência que gera sentimentos diferentes na criança. Que
sentimentos são esses? Como perceber e compreender esses
sentimentos e de que maneira conduzir essa nova experiência?
A criança, na nova turma pode transparecer insatisfação, medo,
angústia, ansiedade. Muitas vezes chora, briga, faz birra. Prefere
brincar isoladamente, retrai-se quando precisa interagir. As emoções
[...] exprimem e fixam para o próprio sujeito, através do jogo de
atitudes determinadas, certas disposições específicas de sua
sensibilidade. Porém elas só serão o ponto de partida da
consciência pessoal do sujeito por intermédio do grupo, no qual elas
começam por fundi-lo e do qual receberá as fórmulas diferenciadas
de ação e os instrumentos intelectuais, sem os quais lhe seria
impossível efetuar as distinções e classificações necessárias ao
148
conhecimento das coisas e de si mesmo (WALLON, apud FISCHER,
2003, p.7).
O remanejamento da criança para outra turma pode parecer para
nós adultos algo normal, sem maiores complicações. Porém para a
criança representa uma perda de algo significativo naquele
momento, que são os colegas, o educador, os brinquedos, as
brincadeiras, o próprio ambiente onde de certa maneira já estava
adaptada lhe expressava conforto, segurança, acolhimento
(FISCHER, 2003, p.7).
Inicialmente, Ana e Kely ficaram em silêncio, ouvindo-me discutir cada trecho do texto. Ao
final, ambas afirmaram que foram contrárias à decisão de separação das crianças, mas
foram votos vencidos. Digo a elas, então, que perdemos uma batalha, mas não perdemos a
guerra. Nesse sentido, sugiro a Kely levar esse texto para o grupo de estudo dos
professores e me proponho a participar, caso o grupo ache pertinente.
Kely encerra o encontro afirmando ser uma boa idéia e promete sugerir ao grupo, todavia
essa proposta nunca se concretizou, uma pena! (4-5-2008)
Um outro fio que busquei tecer com o grupo foi no sentido de que a noção inicial de
que as coisas caminham de forma caótica (PRIGOGINE, 1996) poderia nos
impulsionar a interessantes movimentos de criação. Logo, a “agitação” que pulsava
naquelas crianças deveria ser ressignificada num sentido mais coletivo, isto é, o
excesso de brincadeiras de lutas que as crianças apresentavam poderia nos apontar
questões de sexualidade que muitas vezes desconsideramos nesse segmento.
Uma outra possibilidade, em relação à forma agressiva como eles se tratavam, nos
provoca a pensar questões acerca dos afetos e das emoções na Educação Infantil.
Entretanto, o que não podíamos perder de vista era o fato de que isso era apenas
indícios que deveriam ser investigados e problematizados pedagogicamente, a
partir deles e não sobre eles.
Assim, apesar de compreender que tais mudanças levam diferentes tempos/modos
para serem, de fato, instituídas no/pelo grupo, ao final do ano, fui informada por Kely
que os professores haviam decidido em reunião que, no ano seguinte, não seria
mais realizada tal prática com as crianças. Pegando carona na fala de Joana: “Yes,
instituímos mais uma prática inclusiva!”.
149
Dialogando tais considerações com as imagens captadas no/pelo CMEI, apesar de
reconhecer que noções, como liberdade, dignidade e respeito, são forjadas na/pela
cultura, e que, portanto, apresentam-se num movimento constante, pode-se
perceber/captar o quanto algumas micromacroações legais direcionadas à educação
infantil, por mais que se encontrassem textualmente comprometidas com a
transformação social, ainda operavam pela via de biopolíticas26 cujos agenciamentos
velados, ou não, atuavam sobre corpos que ali habitavam.
Em meu entendimento, alguns modos de práticas instituídas na/pela paisagem
forjavam estratégias organizativas que reafirmavam o panoptismo,27 que se
configuravam a partir de uma organização arquitetônico-funcional que impõe rotinas
de horários, de disposição dos espaços, de determinação de padrão alimentar de
organização dos grupos, entre outros.
Nesse sentido, não poderia deixar de problematizar tais movimentos, por acreditar
que, da forma como eles operavam, atendiam bem mais aos processos, sutis e
velados, de disciplinarização e assujeitamento daquelas crianças (FOUCAULT,
1975), do que a uma simples possibilidade de organização do tempo/espaço.
Uma outra questão a se destacar refere-se ao fato de que essas ações
desconsideravam a necessidade de liberdade de movimento28 que pressupõe os
processos de desenvolvimento humano infantil da descoberta da vida pela via do
movimento, de forma crítica e transformadora, como preconizam os documentos
oficias voltados para a Educação Infantil, em especial o Plano Nacional de Educação
Infantil, ao conceber a criança
[...] como criadora, capaz de estabelecer múltiplas relações, sujeitos de
direito, um ser sócio-histórico produtor de cultura e nela inserido. Na
construção desta concepção, as novas descobertas sobre a criança, trazidas
por estudos realizados nas universidades e nos centros de pesquisa do Brasil
26 A perspectiva biopolítica representa a forma pela qual o poder vai operando na subjetividade humana, no intuito de governar não somente os indivíduos,
mas tudo que o cerca, pela via das ações políticas em todas as áreas (REVEL, 2005).
27 O panóptico de Bentham era uma estrutura arquitetônica criada para as prisões no século XIX, na qual células individuais na periferia de um edifício
circundavam uma torre central de forma que cada cela fosse observada por ela ao mesmo tempo, produzindo a sensação de vigília constante, de forma a
assegurar o funcionamento do poder (FOUCAULT, 1975).
28
Aqui compreendido como uma linguagem culturalmente construída na/pela sociedade (SOARES et al., 1992)
150
e de outros países, tiveram um papel fundamental. Essa visão contribuiu para
que fosse definida, também, uma nova função para as ações desenvolvidas
com as crianças, envolvendo dois aspectos indissociáveis: educar e cuidar.
Tendo esta função, o trabalho pedagógico visa atender às necessidades
determinadas pela especificidade da faixa etária, superando a visão
adultocêntrica em que a criança é concebida apenas como um vir a ser e,
portanto, necessita ser ‘preparada para’ (BRASIL, 2006, p.8).
Assim, no intuito de melhor compreender tais considerações, destacarei, a seguir,
alguns desses modos, tomando como ponto de partida a forma como as refeições
eram organizadas e oferecidas às crianças diariamente nesse CMEI, bem como
apresentarei as táticas29 (CERTEAU, 1994) e/ou formas de (re)existencias
(FOUCAULT, 1996) instituídas pelas crianças, professores, mães e, também, por
mim, a pesquisadora, em frente a essa condição.
4.1.2 O momento das refeições: o que temos para comer hoje?
De acordo com a rotina desse CMEI, as refeições eram oferecidas da seguinte
forma para as crianças do turno vespertino: por volta das 13h30min, era servida, em
sala de aula, uma fruta. Em torno de 14h15min, as crianças iam ao refeitório para
lanchar outra fruta. A partir de então, para as crianças de até três anos era servido
jantar às 16h e, para os maiores de quatro anos, era servido um lanche com bolos,
pizzas, pães, dentre outros alimentos, também no refeitório, por volta das 15h20min.
Gostaria de chamar a atenção para o fato de que, apesar de reconhecer a
necessidade alimentar das crianças nesse período de desenvolvimento, em especial
as de escolas públicas, muito tempo se levava nessas refeições. Façam as contas a
partir de um relato extraído do diário de campo.
[...] Hoje, no planejamento coletivo, fiz algumas considerações sobre a formação continuada,
os planejamentos individuais/coletivos. Discutimos sobre minha ida ao planejamento de 5ª
para divulgar o ciclo de debates e resolvi entrar no assunto do lanche/fruta a fim de
contextualizar o quanto essa rotina alimentar interferia no tempo pedagógico das crianças
em sala de aula:
- 13h 15min: chegada das crianças ao CMEI;
29
Em Certeau (1994), táticas são compreendidas como um movimento que emerge “dentro do campo de ação do inimigo” ou,
como nos diria Foucault (1996a), operam com práticas de (re)existência, sendo, portando, um momento de criação.
151
- 14h fruta (quando era servida a melancia ou a abacaxi, as crianças desciam para o
refeitório visto que sujavam a sala de aula ao comerem tais frutas);
- 15h 20min: lanche propriamente dito;
- 16h 40min: voltam para sala do pátio/recreio.
Digo ao grupo que, a meu ver, considerando o tempo que elas levam para se preparar para
descer/subir às salas, sobra muito pouco tempo em sala de aula e, no meu entender, isto
comprometia os processos pedagógicas das crianças envolvidas. É lógico que tentei falar
com cuidado, mas fui sincera nesta conversa.
Kely concordou comigo, porém disse que a questão da melancia e do abacaxi tem a ver
com a necessidade de se ter um cardápio mais nutritivo e variado para as crianças. Eu,
como devoradora de frutas, sugiro, então, outras frutas, que tenham um preço também
acessível, mas que não dão tanto trabalho para comer.
Ela me diz que sabe que tenho razão e vai tentar falar com a Diretora, visto que, no antigo
CMEI em que trabalhou anteriormente, as crianças não desciam para a cantina e sim a fruta
é que ia para a sala, porém, como o serviço é terceirizado, fica complicado trabalhar com
profissionais da cozinha, pois eles dizem que ganham muito pouco pelo que trabalham e
conclui:
- Eu sei que a parte pedagógica é importante, mas a alimentação das crianças também é!
Concordo com a fala de Kely, mas afirmo:
- Você tem toda a razão, no entanto podemos pensar em caminhos que favoreçam esses
dois lados não acha?! (4-5-2008)
Segundo informações da pedagoga, a decisão de determinar lanche para as
crianças maiores e jantar para as menores se deu em 2006, ocasionada por meio de
uma pesquisa desenvolvida pelo Conselho de Escola destinada aos responsáveis
por esses alunos. A maioria dos respondentes preferiu o lanche em detrimento ao
jantar, apesar de alguns responsáveis não concordarem como o resultado final, pois
defendiam o jantar para todos.
Em relação ao cardápio, ele foi construído por uma equipe de nutricionistas da rede
municipal, cuja sistematização buscava alternar os alimentos oferecidos com
diversos nutrientes, de forma a favorecer uma refeição saudável e nutritiva a
todos/as. No entanto, a meu ver, esse cardápio pecava, inicialmente, por ter sempre
uma única opção de oferta, impossibilitando ao grupo de crianças o direito de
escolha, até porque era proibido trazer lanche de casa, pois, segundo falas da
direção do CMEI, essa era uma determinação da Secretaria Municipal de Educação,
no intuito de minimizar as diferenças sociais e econômicas ali presentes. Assim,
quem não gostava do que era oferecido ficava sem se alimentar.
152
Analisando tal condição, apoio-me nas ferramentas de Foucault (1987), entendendo
que esta prática ainda opera numa perspectiva de assujeitamento, engendrando
micromacropolíticas hegemônicas de reafirmação de força. Nessa lógica, “alguém”,
que supostamente possui um “saber” legitimado cientificamente, sempre terá o
poder de determinar as ações, neste caso, o cardápio, impondo, por conseqüência,
hábitos alimentares sem favorecer a liberdade de escolha, visto que não havia,
inicialmente, ao menos, mais de uma opção de alimentação.
Assim sendo, aqueles que não se identificavam com o cardápio oferecido ficavam
com fome e ainda eram vistos como um sujeito desviante pelo contexto, conforme
fala de uma professora ao responder a uma criança, quando ponderava o tipo de
fruta que lhe era oferecida: “Tem que comer o que tem, não tem essa de escolher,
não!”.
Buscando analisar tal fala numa perspectiva arqueológica e, também, ética,
compreendo que essa afirmação que, inicialmente operava no intuito de “incentivar”
a criança a se alimentar, ia ao encontro de práticas hegemônicas disciplinares de
assujeitamento, já que opera com vistas à produção subjetiva dos indivíduos, na
qual tudo deveria ser minimamente pensado, inclusive a interdição de um simples
paladar.
Para tanto, era preciso não só vigiar, mas também punir os desviantes, seja por
meio dos regulamentos minimamente dispostos, seja pelo olhar regulador que dirige
ao próximo, enfim, tudo em prol da administração singular das vidas humanas em
busca de uma docilidade que produza a eficiência (FOUCAULT, 1996b).
Assim sendo, em frente a essa realidade, algumas crianças sucumbem e comem o
que está posto, outras ficam com fome, e estas, efetivamente, me preocupam, afinal,
saem de casa por volta das 12h e só retornam às 18h; e outras, as que conseguem
subverter tal lógica, trazem de casa lanche para comer escondido da professora.
Fato este por mim presenciado diversas vezes. Certo dia, em sala, a observar um
grupo de crianças, deparo-me com uma criança escondida embaixo da mesa
comendo uma batata frita que havia trazido na mochila. Ela, imediatamente, faz sinal
153
para eu me silenciar, como se estivesse implorando para não ser delatada,
instaurando aí uma subjetividade de culpa por transgredir uma regra “socialmente
imposta” e, ao mesmo tempo, (re)existente, isto é, instituintemente criativa.
Direcionando esse contexto para Miguel, este, quase sempre, não comia nada no
CMEI por não apreciar o que lhe era oferecido, até que, numa reunião com sua mãe,
Anelise, ela me disse que, quando era jantar, Miguel ainda comia, porém, quando
essa refeição foi substituída pelo lanche, ele não mais se alimentou no CMEI. Eu,
então, subvertendo a lógica presente, digo a ela para conversar com a pedagoga a
fim de solicitar para Miguel o direito ao jantar, tendo em vista o fato de ser oferecido
jantar para os pequenos às 16h, o que passou a acontecer a partir de então, mas
somente para ele e não para o grupo.
Em relação a Mateus, inicialmente, ele comia tudo o que lhe era oferecido. No
entanto, ao final do segundo semestre, Mateus iniciou uma dieta que o impedia de
ingerir alimentos a base de glúten. Ele não podia comer muitas coisas oferecidas no
cardápio, de forma que ele também passou a trazer o lanche de casa. Todavia
Mateus, também operando de forma (re)existente e criativa à sua dieta, “surrupiava”
algumas guloseimas dos colegas que se encontravam “guardadas/escondidas” em
suas respectivas mochilas.
No que se refere às minhas movimentações em frente a esse modo da prática, vivi
uma situação na condição de sujeito que pesquisa e, também, é pesquisado
(GARCIA, 2003), cujo contexto disparou em mim implicações, conforme o relato
extraído do diário de campo:
Hoje, ao ir para o refeitório a fim de ajudar a professora Ana com o lanche das crianças, deparo-me
com minha filha me pedindo ajuda, pois estava um calor insuportável, por volta de 37°, e o lanche
oferecido era suco de maracujá com bolo. Ela dizia não gostar do bolo e, como em casa temos como
hábito discutir sobre a importância de uma alimentação saudável, possibilitávamos sempre a ela, pelo
menos, uma opção para escolha. Nesse sentido, penso que ela esperava de mim alguma solução,
porém percebi que isso não era possível e aí ela começa a chorar, dizendo-me não querer comer
aquele lanche. Não foi fácil!
.
Tenho consciência de que, nesse dia, havia dubiedade de sentimentos de minha filha em relação a
mim, ou seja, era o primeiro momento em que ela me via próxima a ela numa situação desfavorável,
154
mas em absoluto, não poderia me utilizar dessa condição para se beneficiar. Para resolver
pontualmente a questão do choro, procurei sua professora e perguntei-lhe se poderia conversar um
pouco com minha filha, afinal era tudo muito recente para ela.
A professora tranqüilizou-me dizendo que, nesta turma, havia quatro crianças filhas de funcionárias e
que ela já estava acostumada a essa situação, só não gostava muito da postura de uma professora
que sempre levava outro tipo de lanche para sua filha, apesar de isso ser proibido no CMEI.
Assim sendo, conversei com minha filha acerca de minha condição e limitação de ação naquele
momento, isto é, não tinha realmente outro tipo de lanche a oferecer, de forma que ela ficou com
fome até a hora de irmos embora, quando lhe comprei pipocas no horário da saída. Assim sendo,
adotei o seguinte encaminhamento: procurei a pedagoga e, na condição de mãe, relatei tal situação
solicitando, ao menos, o oferecimento de bolachas como alternativa, o que foi prontamente atendido,
apesar de reconhecer que isto não resolvia a situação posta.[....]
A partir de então, até porque já haviam sido feitos questionamentos acerca dessa
situação no CMEI, foram tomadas providências no sentido de sempre oferecer
bolachas às crianças como alternativa, o que também não resolvia o problema, no
sentido de instituir um hábito alimentar saudável e nutritivo, visto que as crianças
passavam a comer as bolachas, ou seja, matamos a fome de algumas crianças,
porém não instituímos práticas alimentares que acreditamos serem mais saudáveis.
Buscando compreender tal narrativa, de acordo com Foucault (1996), os envolvidos
nesses movimentos nem sempre têm noção sobre esse contexto, visto que o
sistema prescritivo está explícito ou implicitamente dado nas práticas vigentes,
constituindo por isso um sujeito moral, que age influenciado por um código de
comportamento preestabelecido. No entanto, Marshall (1994) nos alerta para o fato
de que esses processos se corporificam em nós na medida em que adotamos e
aceitamos esses regimes.
Assim sendo, compreendo que gerar políticas em um contexto tão diverso como
este não é nada fácil. No entanto, ao nos remetermos ao que diz o art. 227 da nossa
Constituição Federal (apud BRASIL, 1988), vislumbramos que ela, pelo menos de
forma prescritiva, preconiza o pleno desenvolvimento da criança privilegiando um
contexto pautado na liberdade, na dignidade e no respeito à sua condição de
criação:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 2006, p. 4).
155
Reconhecendo tal complexidade afinal, segundo informações colhidas, o valor gasto
com cada refeição era de R$0,36 centavos (grifo nosso). Todavia, problematizo a
seguinte questão: se estamos comprometidos com a formação de sujeitos
autônomos e criticamente capazes de promover a transformação social num sentido
mais humano a todos, não podemos perder de vista, ao longo de nossas ações
pedagógicas, o exercício democrático do direito à escolha.
Tomando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, no art.
59, como ponto de reflexão, ela nos preconiza uma organização dos sistemas de
ensino, pautada na criação, na liberdade e na compreensão do caráter social das
relações, considerando a capacidade humana de desenvolver valores de dignidade
e cidadania, de respeitar esses pressupostos com vista a modificá-los na construção
do processo social, de forma que
[...] os sistemas de ensino devem assegurar aos alunos currículo, métodos,
recursos e organização específicos para atender às suas necessidades;
assegurando a terminalidade específica àqueles que não atingiram o nível
exigido [...], em virtude de suas deficiências e a aceleração de estudos aos
superdotados para conclusão do programa escolar (BRASIL, 1996, p.8),
Assim sendo, seria interessante que aquele contexto investisse coletivamente na
instituição de práticas pedagógicas que abordassem tal temática junto com as
crianças. Como sugestão, o CMEI poderia estimular os professores ao
desenvolvimento de um projeto pedagógico multidisciplinar junto/com seus alunos,
de forma a permear o debate acerca da alimentação e da qualidade de vida dos
indivíduos, tomando como foco o conhecimento acerca dos alimentos e suas
funções no desenvolvimento de uma vida saudável. Como estratégias didáticometodológicas, poderiam brincar com a produção de alguns alimentos, levando as
crianças a participar da construção coletiva de um cardápio de base nutritiva, que
não perdesse de vista a singularidade daqueles indivíduos.
4.1.3 A espera dos pais ao final do dia: a dor e a delícia de ser diferente
Outra prática que gostaria de destacar refere-se ao encaminhamento dado pelas
professoras das turmas acompanhadas, no que tange ao momento compreendido
entre o final do recreio e a hora de saída das crianças em direção às suas
156
respectivas casas. Momento este que, freqüentemente, se configurava no fato de as
crianças, ao retornarem à sala, após o recreio, calçar seus sapatos, organizar suas
mochilas e ficarem sentadas em fila abaixo do quadro por volta de 20min, à espera
de seus responsáveis conforme imagem que se segue (FOTO 10).
FOTO 10. Crianças em sala à espera da hora de ir para casa
Reconheço o quanto é desafiador e corajoso para estas professoras ter de assumir
sozinha uma turma na Educação Infantil com 25 crianças, No entanto penso que
esse modo de prática era algo muito difícil para ser cumprido pelas crianças,
principalmente após o recreio, quando a maioria subia para a sala de aula num
crescente agitação.
É interessante destacar que, em relação a Mateus e Miguel, essa regra não
funcionava, já que o primeiro se safava, pois ia embora sempre por volta das 16h
30min, em virtude de um acordo feito anteriormente com sua família, pelo fato de
que, a partir desse horário, “Ele ficava muito agitado’’ (fala de Ana). Fato este
também passível de reflexão, haja vista defendermos, como princípio inclusivo, o fato
de a escola adaptar-se às necessidades dos alunos e não o movimento contrário.
Analisando tal ação, entendo que a escola deve ter autonomia para gestar suas
políticas inclusivas e, nesse sentido, práticas como procurar inserir/adaptar
157
gradativamente, algumas crianças com agravos mais severos nos contextos
educacionais regulares pode ser uma alternativa. Entretanto, isso não se aplicava à
Mateus, haja vista o fato de ele já freqüentar aquele CMEI há mais de três anos.
Em meu entender, essas ações operavam no campo da descriminação e em nada
favoreciam o projeto inclusivo que defendemos no sentido de “[...] uma dimensão de
direitos humanos e justiça social que pressupõe o acesso pleno e a participação de
todos nas diferentes esferas da estrutura social, a garantia de liberdades e direitos
iguais e o estabelecimento de princípios de eqüidade” (DUTRA; GRIBOSKI, 2006, p.
209).
Retomando Foucault (1997), a sociedade moderna se constituiu numa civilização
inquisitória que há séculos pratica, de forma cada vez mais complexa e sutil, a
extração, o acúmulo e os deslocamentos do saber, nos quais ações, como exilar,
compensar, expor, enclausurar, são opções de punição para os considerados
delinqüentes (loucos, marginais, leprosos, etc.) que subvertem essa ordem.
Por esse aspecto, limitar o tempo de permanência de uma criança na escola,
considerando o fato de que todas as apresentações artístico-culturais ocorriam a
partir das 16h30min, não me parecia favorecer a inclusão de Mateus, ao contrário,
reafirma o paradigma tradicional da organização do sistema de educação que
defende uma lógica segregada de educação, conforme afirmam Dutra e Griboski a
seguir,
A educação inclusiva orientada pelos princípios dos direitos humanos e pela
proposta pedagógica de que todos podem aprender passa a contrapor o
paradigma tradicional da organização do sistema educacional, que conduzia
políticas especiais para pessoas com deficiência definidas no modelo de
segregação e de integração, com ênfase na abordagem clínica. Seguindo a
lógica de escolas especiais organizadas a partir da identificação da deficiência ou do encaminhamento desses alunos para classes especiais, essas
políticas conduziram a espaços segregados, entendidos como seu lugar de
destino, que acabam por discriminar e excluir alunos em razão de
deficiências, desvantagens, dificuldades e atitudes.
A partir dessa compreensão, os professores, na sua relação com a
comunidade, podem identificar elementos que contribuam na elaboração de
estratégias pedagógicas, favorecendo a intervenção no enfrentamento da
exclusão educacional e social. Uma tarefa fundamental é organizar as
escolas para a eliminação das barreiras, o fortalecimento das relações entre
a escola e a família, o acesso aos serviços sociais da comunidade, o planejamento participativo, a troca de experiências no trabalho pedagógico e o
158
desenvolvimento de mecanismos de gestão que priorizem a inclusão
educacional (2006, p. 212).
Retomando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, art.
59 (apud MINITÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2008), o Decreto nº 6.094/2007
determina não só o “Compromisso de Todos pela Educação”, mas, também, visa a
assegurar o acesso e a permanência do aluno cidadão no ensino regular,
reconhecendo o direito ao atendimento às necessidades educacionais especiais dos
alunos, com vista à implantação de uma política de inclusão educacional nas
escolas públicas.
Entretanto, quando analisamos os índices de distribuição de matrículas por etapa e
nível de ensino do ano de 2006, identificamos que somente 16% dessa população
se encontram na educação infantil e, nesse âmbito da educação infantil, as crianças
com nee se concentram, prioritariamente, em escolas/classes especiais e poucas
freqüentam turmas comuns regulares, o que vai de encontro aos princípios que
defendem a convivência e a aprendizagem entre crianças, com ou sem deficiência,
desde a infância, em classes “preferencialmente comuns”. Segundo o texto:
O desenvolvimento de estudos no campo da educação e a defesa dos
direitos humanos vêm modificando os conceitos, as legislações e as práticas
pedagógicas e de gestão, promovendo a reestruturação do ensino regular e
especial. Em 1994, com a Declaração de Salamanca se estabelece como
princípio que as escolas do ensino regular devem educar todos os alunos,
enfrentando a situação de exclusão escolar das crianças com deficiência, das
que vivem nas ruas ou que trabalham, das superdotadas, em desvantagem
social e das que apresentam diferenças lingüísticas, étnicas ou culturais.
O conceito de necessidades educacionais especiais, que passa a ser
amplamente disseminado, a partir dessa Declaração, ressalta a interação das
características individuais dos alunos com o ambiente educacional e social,
chamando a atenção do ensino regular para o desafio de atender as
diferenças. No entanto, mesmo com essa perspectiva conceitual
transformadora, as políticas educacionais implementadas não
alcançaram o objetivo de levar a escola comum a assumir o desafio de
atender as necessidades educacionais de todos os alunos (MINISTÉRIO
DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 2008, p.16, grifo nosso)
Acredito que um dos motivos que acarreta tal dificuldade se pauta no fato de que,
como diria Foucault (1975), para além da disseminação e da vigilância, ocorre
também a classificação do comportamento humano com o objetivo de diagnosticar
possíveis desvios, tendo na disciplina um significativo instrumento para obter o
159
denominado biopoder,30 com vistas à produção de indivíduos eficientes. Todavia,
onde há poder também poderão surgir possíveis movimentos de (re)existências, isto
é, outras/novas formas de agir em frente ao que está posto, visto que “[...] as
relações de poder, não emanam de um ponto central ou de um núcleo único de
soberania, e sim vão constantemente ‘de um ponto ao outro’ [...] constituem as
estratégias anônimas” (DELEUZE, apud SINGER,1997, p. 45).
Outro aspecto acerca das bioplolíticas de assujeitamento que nos operam são os
estudos de Ratto (2004), que reafirmam tal consideração quando, ao discutir as
questões disciplinares a partir dos registros existentes nos livros de ocorrências de
uma escola pública de Curitiba, apontam que a lógica disciplinar que move esses
registros é produzida socialmente e na/pela escola, sendo indissociável da lógica
que a instituiu, que visa, por meio de uma lógica disciplinar, a controlar tudo o que
ocorre num processo permanente de vigilância, de avaliação e de julgamento, entre
outros.
Para o autor, esses processos levam os alunos a ocupar uma posição constante de
culpado, num movimento complexo de afirmação/negação/(re)afirmação desses
registros, sejam eles reais, sejam simbólicos, de forma que todos os atores
envolvidos ocupem o “banco dos réus”.
Logo, as práticas pedagógicas, determinando o tempo de permanência de uma
criança na escola ou mesmo legitimando uma prática corporal para se aguardar a
chegada dos pais se fundamentam em técnicas particulares de governamentalidade,
cujas regras e práticas atuam sobre os corpos, produzem regimes corporais políticos
particulares, em que as relações de poder/saber, auto-impostas ou impostas pelo
e/ou sobre os que ali habitam, perpassam esses processos.
Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas
ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável
em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito do poder,
e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma
estratégia oposta. O discurso veicula e produz; reforça, mas também o mina,
expõe, debilita e permite barrá-lo [...]. Não existe um discurso do poder de um
lado e, em face dele, um outro, contraposto (FOUCAULT, apud GORE, 1994,
p. 15).
30 Biopoder: forma de poder dirigida à governamentalidade e a formas de dominação política (MARSHALL, 1994, p. 32).
160
Nesse
aspecto,
Bujes
(2002),
investigando
a
infância
fabricada
na/pela
Modernidade, como uma diferença compreendida à luz de sua singularidade, aponta
o quanto as ações públicas no Brasil instituem e reafirmam em suas políticas
educacionais, em especial pela via do Referencial Curricular Nacional Para a
Educação Infantil/RCNEI, ações de “[...] governamentalidade como elemento
indispensável para a Razão do Estado” (p.10).
Ampliando tal reflexão para Miguel, este, usando e abusando de sua condição de
“criança especial”, ignorava tal norma, ficando a perambular livremente pela sala
enquanto seus colegas permaneciam sentados na parede à espera de alguém que
os “libertassem”.
Tomando os estudos de Linhares para analisar tal contexto, este processo de
regulação torna a escola amplamente excludente aos seus pares e nos mostra o
quanto ela não se encontra preparada para lidar com as particularidades da
população que a compõe, até porque, em muitas dessas escolas, não encontramos
nem mesmo os projetos hegemônicos que tanto criticamos destinados à elite na
época em que surgiram, conforme nos afirma a autora:
Os pobres entraram na escola e com eles ampliou-se o número de mulheres,
de negros, de mestiços, de alunos especiais, de jovens, adultos e idosos. [...]
até pouco tempo atrás o solo das escolas era regado pelos interesses das
elites que cuidavam das escolas [...]. Dentro da escola pública não
encontramos o velho projeto das elites nem dispomos de um projeto que
articule de forma nova tantas experiências promissoras para facilitar nossa
construção de futuro (LINHARES, 2001b, p. 25).
Entretanto, para redefinir o que está posto, precisamos nos aproximar e entender a
escola que existe e, a partir daí, pensar coletivamente em propostas includentes,
que favoreçam à vida que pulsa no chão das escolas, pois “[...] não adianta
generalizar e dizer que a escola não presta. Até porque não é verdade” (LINHARES,
20011, p. 19).
No entanto, trago, a seguir, outrasnovas considerações que acredito serem
pertinentes de se problematizar no âmbito da infância e dos processos de
desenvolvimento infantil inclusivos, por conceber que, apesar das diversas práticas
161
inclusivas instituintes evidenciadas ao longo estudo, estas não favoreciam uma
concepção de infância/educação infantil que reconheça o respeito à liberdade e à
criação humana, como forma de (re)existir ao que se encontra instituído na/pela
sociedade vigente.
Para tanto, efetuaremos uma breve contextualização sobre a infância e os diferentes
modos de interdição, para, na continuidade, narrar alguns fatos que gostaríamos de
problematizar visto a forma como eles se encontravam instituídos no/pelo grupo.
4.2 INFÂNCIA, PRÁTICAS EDUCACIONAIS E PROCESSOS INCLUSIVOS
De acordo com Müller e Redin (2007), ao dissertar sobre “As crianças, a infância e
as práticas escolares”, a figura da criança sempre foi reconhecida em nossa
sociedade ao longo dos tempos. Entretanto, o que vem sofrendo alterações
consideráveis são as diversas representações que o conceito de infância vem
ocupando nos processos de evolução humana de forma a receber, por
conseqüência, diferentes tratamentos no que se refere à função social das crianças
em nossa sociedade.
Os estudos de Áries (1981) nos apontam que, historicamente falando, na Idade
Média, a concepção de infância não era legítima, visto que as crianças eram
concebidas como “adultos em miniaturas”. Logo, inexistiam políticas voltadas à
proteção e aos cuidados delas, bem como ao reconhecimento às particularidades
intrínsecas aos processos de desenvolvimento infantil. Assim sendo, sem os
cuidados maternos ou da ama e ingressando na sociedade dos adultos a partir dos
sete anos de idade, muitas delas não sobreviviam por muito tempo.
Ainda de acordo com o autor, a gênese e a evolução do conceito de infância tomam
força na Modernidade, tendo na família e na escola seus dois grandes pilares de
162
sustentação. Para Áries (1981), a forma como a infância foi se constituindo com o
passar dos tempos sempre esteve atrelada a um contexto político e cultural.
Nesse contexto, em detrimento dos anseios políticos e econômicos que
atravessavam a sociedade naquele momento, cujos “avanços” tecnológicos que
emergiram urgiam uma nova configuração social, a categoria de infância toma
corpo, porém de forma interditada e, portanto, marginalizada econômica, social e
politicamente, sob a égide dos adultos, seus responsáveis e tutores. Todavia não
podemos deixar de considerar que os índices de mortalidade infantil reduzem
significativamente.
A ciência, então, torna-se uma aliada para se conhecer os processos de
desenvolvimento infantil, cujo ideário acerca desse segmento, a partir de uma
concepção socialmente construída, intitula a ciência um ser dependente e
incompleto, justificando a sua condição de marginal, isto é, fora da margem, e
submetido à interdição abusiva dos adultos.
No intuito de se legitimar tal concepção de educação e de infância, ocorreram
mudanças paradigmáticas na forma de se pensar e gestar a educação para esse
segmento, de forma que a educação volta-se para a infância. Período este em que
emergem diversas teorias com seus respectivos pensadores (ROUSSEAU;
PESTALOZZI; KORCZAK apud, SINGER, 1997), cujos dispositivos presentes em
suas propostas educacionais tinham como foco a formação dos futuros adultos em
potências.
Nesse contexto, Singer nos provoca a refletir: “A infância não é de fato conhecida
porque se procura o adulto na criança e esquece-se de olhar pra ela como um ser
que tem lugar na ordenação do mundo” (1997, p. 69), ou seja, a busca instituir
práticas agenciadoras nos impediu/e de conceber a criança como um ser que possui
um imenso poder de criação cultural e, por isso, precisa ser potencializado e não
regulado.
163
Direcionando essas análises para os contextos escolares, Gallo (2006, p.187)
aponta a escola como uma das instituições sociais de seqüestro e de assujeitamento
humano:
Sabemos que a ‘virada’ é marcada pelo predomínio da moral cristã, uma
moral fundada na negação de si mesmo. É quando o individuo se nega,
para chegar a Deus, que baixa a guarda e permite que se construam, cada
vez mais intensamente, as ‘instituições sociais de seqüestro’, como a
escola, o quartel, o hospital, que confinam o individuo e o disciplinam, num
processo de subjetivação que é, sobretudo, assujeitamento.
Para Foucault (apud BUJES, 2001), o poder disciplinador, ao atingir seu ápice na
Modernidade, sob a égide da eficácia física e psíquica, em contrapartida à ideologia
da renúncia tão bem disseminada na Idade Média, tinha como premissa determinar
um conjunto de signos que permitisse certas asserções de verdades, no intuito de
que a racionalidade assumisse o lugar até então ocupado por Deus, com vistas à
produção de indivíduos subservientes ao poder.
Por esse aspecto, caberia às instituições escolares produzir uma série de condições
para a sua organização, a fim de satisfazer esse projeto, como a organização do
espaço e do tempo e do currículo, os blocos disciplinares, os exames, as
classificações e promoções dos alunos, a fim de se estabelecerem padrões de
“normalidade” entre os corpos.
Os exames escritos – diferentemente das grandes provas orais, nas quais os
alunos tinham de demonstrar (provar...) sua competência – foram
exatamente os instrumentos que colocaram em marcha tanto as técnicas de
vigilância (permanentemente hierarquizadas) quanto as técnicas de
julgamento normalizador. Os resultados disso são bem conhecidos: de
anônimos, tornamo-nos indivíduos objetivados e submissos (VEIGA-NETO,
1994, p. 236).
Logo, teriam poder aqueles que apresentassem um “suposto saber”, visto que, na
concepção foucaultiana, esse saber se faz necessário politicamente ao contexto, já
que o poder se encontra em todos os lugares, mas não é exclusividade de ninguém;
ele, simplesmente, atravessa e é atravessado por todos nós.
Nessa concepção, os poderes disciplinares tiveram sua gênese e fixação na
Educação, por onde emana um modelo de indivíduo a ser seguido mundialmente,
tendo, nas práticas pedagógicas, o elemento de conexão entre o poder e o saber.
164
De acordo com Gallo (2206, p.187): “Na escola moderna, os processos de formação
foram
constituídos
como
processos
de
subjetivação
externa,
heterônima,
constituindo sujeitos para uma máquina social de produção e de reprodução”.
Essas práticas apresentavam-se como um interessante alvo dos projetos de
governamentalidade,
pelas
possibilidades
existentes
de
se
estabelecerem
mecanismos para fixar um “modo de ser criança/indivíduo”, constituindo-se, assim,
preocupação não somente do governo formal, mas também de inúmeras agências e
instituições que têm como propósito tomá-la a seu cargo.
As crianças modernas se constituíram como produto de um continuado e
complexo processo de definição. São o resultado de uma ‘montagem’ no
interior de um conjunto de práticas discursivas. O sujeito infantil, tal como
conhecemos hoje, vai resultar de atividades que envolvam a linguagem,
tais como: contar, listar, agrupar, chamar, dar ordens, cantar, contar,
confessar, examinar, diagnosticar, fazer um relatório, planejar uma aula,
montar um currículo, realizar uma pesquisa [...] (BUJES, 2001, p. 3).
Ao direcionarmos essas considerações, com vistas a compreendermos os diferentes
modos de pensar as práticas pedagógicas de base inclusivas, entendo ser
necessário retomar a premissa de que esses movimentos urgem constantemente,
por reflexão, no sentido de que aquilo que, a priori, definimos por um prática
equivocada pode ser ressignificado no sentido de uma outranova forma de se
configurar tais práticas. Um suposto “erro”, inicial pode nos apontar caminhos a partir
da possibilidade de criação que se reestrutura por uma dimensão coletiva e
solidária.
Assim sendo, muitos estudos vêm sendo tecidos com vistas a subverter as tentativas
hegemônicas de sujeição. Dentre eles, destaco o estudo de Dau (2003), ao procurar
entender o funcionamento do poder/saber como uma técnica social de normalização
e de limitação humana, ao defender que é pela via de um debate acerca das
relações de poder/saber que o indivíduo fugirá ao assujeitamento normalizador,
quando entender com profundidade e extensão o fato de essas relações nem
sempre se encontrarem estáveis e harmônicas.
Nesse sentido, é preciso contextualizar o fato de que o poder, aqui, não é somente
concebido como algo negativo e/ou positivo, mas também é plural e onipresente e
165
se produz em todos os espaços microfísicos que habitam as lutas sociais a partir
das próprias relações, gerando, constantemente, novas formas de se constituir.
Quanto ao saber, este pode estar diretamente ligado ao poder, mas numa relação
marcada pela instabilidade.
Não podemos deixar de evidenciar que essas práticas se constituem em
verdadeiras arenas de lutas, uma vez que o poder se liga a estratégias tanto de
dominação quanto de (re)existência e, nesse aspecto, as crianças ditas especiais
estão aí para nos instigar a produção de outrasnovas formas de se pensar os
processos educacionais, num movimento complexo e não-linear, como matizes sem
ponto de partida muito menos de chegada.
Nenhum saber se forma sem um sistema de comunicação, de registro, de
acumulação, de deslocamento, que é em si mesmo uma forma de poder, e
que está ligado, em sua existência e em seu funcionamento, às outras
formas de poder. Nenhum poder, em compensação se exerce sem a
extração, a apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber
(FOUCAULT, 1997, p. 19).
Por este viés, essas resistências são vistas como uma potência que nos constitui e
que por isso não se produz como um desdobramento seguido a uma ação e, sim,
tecidas nas práticas escolares cotidianas pelas quais se forjam múltiplos e
imprevisíveis exercícios de luta, produtores de bifurcações capazes de desestabilizar
os processos naturalizados que atravessam esses territórios.
Os exercícios de resistência são cantos que atraem e inquietam, afastamnos das ordens e concepções naturalizadas. É uma abertura infinita que
sinaliza que as formas são contingências, e não permanências eternas.
Deste modo, ressaltamos que mesmo as formas já instituídas não são
muros de concreto inatingíveis. Ao contrário, nestas formas há porosidades
por onde os processos de resistência escorrem e muitas vezes as
estilhaçam (HECKERT, 2004, p. 15).
Na tentativa de enredar tais considerações com os fios tecidos nas/pelas/com as
crianças que apresentavam alguma deficiência na paisagem investigada, pude
perceber que estas, em frente ao que lhes era posto cotidianamente como condição
de inserção socioeducacional, criavam novasoutras táticas de existência.
Por esse aspecto, essas crianças nem sempre se submetiam a algumas normas de
regulação como: permanecer em fila, sentar com “perninha de índio” nas rodinhas,
166
sentar-se à mesa sem uma proposta pedagógica, sair do pátio em direção à sala,
permanecer lá, entre outras determinações, pois, como eram concebidas como
seres “anormais”, isto é, sem condições de se submeterem às normas, era a elas
imputado o direito à liberdade desse tipo de regulação, conforme os relatos que se
seguem, extraídos do diário de campo:
Chego à escola num calor infernal, vejo um grupo de crianças do berçário se refrescando
num banho de mangueira e quem está lá? Mateus, todo prosa, junto ao grupo e na agitação,
sem o menor problema, sendo, inclusive, fotografado junto às crianças da turma. Aproximome de Carla, que está a observar, e ela me diz que hoje ele não quis fazer nada em sala e,
quando desceu para ir ao banheiro e viu a criançada se esbaldando na água,
imediatamente, tira a roupa e se junta ao grupo. Brincamos, afirmando que, nessa hora, é
ótimo ser autista, pois todas nós estávamos com vontade de estar em seu lugar, mas, como
somos sujeitos socialmente adaptados, não fazíamos o mesmo. Que inveja! (21-3-2007)
Uma outra situação que exemplifica tais práticas refere-se à rotina de recreio desse
CMEI. Dessa forma, as crianças do Grupo 5 somente vão para o pátio no recreio,
depois de lancharem e, mesmo assim, após a saída das crianças do Grupo 4.
Entretanto, isso não era regra para Miguel. Em virtude de ele não aceitar o tipo de
alimentação oferecida pela CMEI, ele descia e ia direto para o pátio, enquanto as
outras crianças, mesmo as que também não se alimentavam como ele, ficavam à
espera da hora de ir para o pátio.
Em relação a Mateus, como forma de não se submeter à ordem, ele fugia
constantemente, conforme imagens (11 e 12) que se seguem:
FOTO 11. Buscando Mateus no pátio.
167
FOTO 12. Mateus pulando a cerca para ir para o pátio
Ao analisar tal contexto, faz-se necessário que os envolvidos investiguem,
promovam um exercício constante e coletivo de reavaliação acerca dos modos de
organização ali instituídos, a fim de não privilegiar algumas práticas a égide da
inclusão. Afinal, todas as crianças querem se levantar debaixo do quadro, muitas
gostariam de jantar e, provavelmente, muitas desejariam tomar o banho que Mateus
tomou naquele dia, por exemplo.
Oliveira (2003), ao estudar acerca do processo de reprodução-transformação na
escola, para além da teoria da reprodução, alerta para o fato de que o conceito de
sujeito vem sendo constituído nas/pelas práticas institucionais e, a partir dessa
classificação/categorização, normas sociais de comportamento nos são impostas
como horários que visam a todo o momento regular nossas ações.
Cortês (2004), analisando as relações de poder com base nos poderes disciplinares
e nos seus mecanismos de controle do tempo, do espaço e dos corpos e, também,
observando como as tecnologias políticas funcionam dentro de uma Escola
Municipal em Arraial do Cabo, Rio de Janeiro, concebe a escola como uma fábrica
de sujeitos que se utiliza de intensos e permanentes processos de sujeição, cujos
resultados apontaram esse movimento como um alargador das fissuras no poder
disciplinar e um potencializador de processos de subjetivação humana, produzindo,
assim, as chamadas “zonas autônomas-temporárias”, vendo, nessas zonas uma
168
possibilidade de se reafirmar a estética da existência em que a liberdade possa ser
vivida.
Outro estudo que (re)afirma tal debate foi o de Oliveira (2001), que, ao realizar uma
análise micropolítica acerca do fracasso escolar, tendo como elemento disparador
as práticas que constroem e desconstroem os sujeitos/objetos, percorrendo algumas
paisagens da aprendizagem em suas abordagens e explicações acerca do fracasso
escolar, aponta que a sociedade disciplinar e a sociedade de controle desenham
rostos que se encontram em permanente luta, que produzem movimentos de
resistência visando à libertação, sempre num campo que se faz político.
Nesse sentido, é preciso atenção ao fato de que o fracasso escolar, além de se
constituir nas/pelas práticas cotidianas, pode produzir movimentos múltiplos, que
caminham para além do fracasso/sucesso no sentido da construção de outras
práticas. Assim sendo, precisamos desestabilizar as formas delineadas no viés da
subjetivação/objetivação capitalística, inquietando os processos de aprendizagem,
os aprendizes, a educação escolar, o professor, a infância, a escola entre outros
entrelugares cujo devir constante busque outros encontros em outras possibilidades
de vida. É opinião de Kupfer ao se reportar aos estudos de Patto (1990) que,
A esmagadora maioria das crianças não é fracassada escolar porque tem
problemas de dislexia, dislalia ou mesmo porque sofre de carência cultural.
Elas se tornam fracassadas escolares a partir do modo como a escola
aborda, ataca, nega e desqualifica o degrau, a diferença social, o
desencontro de linguagens entre as crianças de extração pobre, de um lado,
e a escola comprometida com outras extrações sociais, de outro (2001, p.
86).
De acordo com Silva e Freitas (2006), quanto mais preconcebemos percepções e
expectativas acerca das crianças e dos jovens, mais facilmente eles acionam
“índices de fracasso”, “[...] como ‘componentes da prova’ da incompatibilidade
previsível entre os que ‘fracassam’ e os signos de sucesso disponível no mercado
de padrões palatáveis para a infância e a juventude” (p.18). Para os autores, esta
condição de vulnerabilidade torna-se mais evidente em relação aos alunos que
trazem consigo as “marcas” da diferença no que tange à etnia, à deficiência, à
sexualidade, à classe social, entre outras.
169
Essa condição imagética lhes impõe uma regularidade socialmente concebida,
recaindo um conjunto de prognósticos que interferem diretamente nas apostas
acerca das potencialidades desses sujeitos, cujo estigma generalizado muitas vezes
é reafirmado pela via dos diagnósticos clínicos, sob a seguinte égide: “[...] quando
vejo um enxergo todos” (SILVA; FREITAS, 2006, p. 28).
Sobre esse aspecto, gostaria de problematizar o quanto os diagnósticos e as
categorizações, tão necessários e solicitados nas ciências naturais e na vida, em
especial nas/pelas ciências médicas, operam de forma nociva quando pensamos
nos processos de inclusão social de uma criança com nee, em especial as que
apresentam um quadro de autismo, em virtude do peso que essa marca impõe a
quem a carrega consigo.
Constantemente me via atravessada por falas do tipo:
− Será mesmo aqui o lugar deste menino?
− Autista consegue aprender?
− Hoje está no seu dia de autismo!
Vejam os como isto era presente, conforme o relato que se segue, registrado no
diário de campo:
Hoje, ao chegar à sala, deparo-me com as crianças sentadas em círculo. Em seguida, chega Mateus
junto de sua mãe e de seu irmão de três meses. Vou à porta recebê-los, perguntando se está tudo
bem com ele, e que sua mãe me diz: “Hoje ele está no seu dia autista!”.
Em seguida, tenta consertar dizendo que ele não está muito bem, ficando pelos cantos da casa, sem
desejar muita conversa. Como hoje foi um dia complicado em virtude da greve de ônibus e como sua
empregada não veio trabalhar, pergunto se não foi o fato de ela ter ficando sozinha sem empregada
com as duas crianças, e a menor tem apenas três meses, que possa ter deixado Mateus um pouco
enciumado.
Nesse momento, percebo que todos estão ao redor do bebê, então resolvo ir ao encontro de Mateus
que fica a brincar comigo, porém não por muito tempo. Sua mãe se vai e ficamos conversando coisas
de rotina. Quando todos estão na roda, meio que de repente ele agride, sem mais nem menos, uma
criança. Ana toma um susto, porém intervém com firmeza dizendo que isso não se deve fazer. Em
seguida, Mateus tenta não só agredi-la como também passa a se auto-agredir, coisa que Ana não
permite, chamando a sua atenção.
As coisas aparentemente voltam à rotina e, enquanto estou a conversar com Carla dizendo que se,
por um lado, acho interessante o fato de Mateus começar a tentar interagir com as crianças, mesmo
que seja da sua forma, afirmo ser preciso que elas intervenham dizendo a ele que isso não está
170
correto, pois, a meu ver, essa é uma tentativa de ele se comunicar. Imediatamente, Mateus volta a
agredir Ana que, no meio da roda, o segura e chama, mais uma vez, sua atenção com veemência.
Mateus escuta tudo quieto e não sai do lugar. Ana toma-lhe a bola e diz que não vai deixá-lo com ela
em virtude de seu comportamento. Ele insiste com Carla, pois sabe que ela cede mais. Eu a
pressiono para não ceder, então ela diz que só Ana pode deixar apontando para ela, que não cede.
Por volta das 14h, todos vão para a Educação Física, inclusive Mateus junto a Carla. Sigo com Ana
para desmontar a exposição no hall de entrada. Ao nos dirigirmos para lá, encontramos Rafaela, a
professora que sempre interrompia as discussões coletivas com Kely e a mesma que não conseguiu
acolher Mateus no passado, pedindo ajuda a Ana para conter uma criança que, em virtude da
separação de seus pais, está impossível, batendo em todos na sala, de forma que ela o deixou com
Kely, pois foi à sala de informática com o resto da turma e não o levou como castigo pelo
comportamento. Assim, deixo Ana com Kely e a criança e vou sozinha desmontar a exposição.
Fico a desmontar tudo, quando chegam Kely, Ana e o aluno de Rafaela, a fim de me ajudar com o
material. Recolhemos tudo e vamos para a sala de aula organizar o material junto das crianças. Ao
final, todos descem mais uma vez para lanchar e ir para o recreio (28-8-2007).
Gostaria de destacar, nessa situação, o fato de que, como Mateus carregava o
estigma do autismo, qualquer manifestação sua atípica era, imediatamente, remetida
à seu diagnóstico e não à sua condição momentaneamente singular. Essa afirmação
se reforça quando, num certo dia, uma outra criança, dita normal, apresenta um
comportamento semelhante e ninguém associa suas atitudes a um quadro de
autismo.
Nesse sentido, com relação à etiologia do autismo e da psicose infantil, conforme já
abordado no capítulo anterior, autores (AMY, 2001; BOSA, 2002; KUPFER, 2001;
LEBOYER,1995; RUBLESSCKI, 2204; VASQUES, 2003) reconhecem o quanto esse
conhecimento ainda se encontra em processo de estudos e pesquisas com relação
a uma posicionamento mais efetivo acerca dessa questão.
A partir do exposto, retomo a fala de Silva e Freitas (2006, p. 28), ao nos provocar:
“[...] quando vejo um enxergo todos” para, na continuidade, retomar alguns
acontecimentos experenciados na paisagem investigada e com vista a um desabafo:
é preciso muito cuidado com esse diagnóstico!
O “simples” fato de essa criança chegar ao CMEI com o diagnóstico de autismo já
era suficiente para ela passar a ser vista como um autista, com todos os estigmas e
preconceitos que esse nome carrega, e não como Miguel ou Mateus, uma criança
com algumas “diferenças”, mas apenas uma criança.
171
Uma outra questão a se problematizar refere-se à forma como o município atuou em
relação à condição de Miguel, pois, apesar de ele mesmo apresentar um
comportamento mais sociável em relação a Mateus, até porque ele tinha a
possibilidade da comunicação verbal, o seu diagnóstico de autismo era uma dúvida
para nós, para o município e, também, para a Apae.
De acordo com os registros escolares no CMEI, em seu primeiro prontuário advindo
da Apae, havia o registro de uma hipótese de autismo. No entanto, Miguel não só
era apontado como autista como também freqüentava regularmente a Apae, lugar
destinado primordialmente a pessoas com deficiência mental, em virtude dos
serviços multidisciplinares a ele oferecidos, aos quais seria, praticamente, impossível
ele ter acesso pela via dos espaços públicos destinados à saúde, caso não
freqüentasse tal instituição.
Informação essa confirmada em reunião de avaliação acerca de Miguel, em que
estiveram presentes, além de mim, de Kely e de Joana, duas representantes da
Divisão
de
Educação
Especial/SEME.
Uma
delas
era
a
psicóloga
que
supervisionava várias crianças matriculadas em escolas municipais que se
encontravam na Apae e, em nosso caso: Miguel. Ela não só confirmou minha
hipótese de que Miguel não apresentava deficiência mental, como nos disse ser “[...]
melhor deixá-lo, para o seu bem!”, em virtude da gama de serviços a ele disponível
nessa instituição.
A meu ver, esse era um preço muito caro que Miguel pagava para ter acesso a um
serviço que deveria ser oferecido a ele, sem nenhum tipo de vinculação subjetiva,
até mesmo porque, em virtude de todo um contexto economicamente desfavorável
de vida, sua mãe se apegava com muita força à Apae, haja vista o fato de Miguel
freqüentar mais a Apae do que a própria escola regular. Veja nossa conversa:
Hoje preferi não seguir protocolos e sim deixar fluir a conversa livremente para ver como seria. Neste
sentido, começo a reunião de forma ousada, dizendo não acreditar que Miguel seja autista. Sua mãe,
Anelise, me pergunta por que penso assim e eu digo que muitas coisas que são atreladas aos
autistas, como a dificuldade de interação social, a dificuldade de expressar afetos, entre outros, o que
eu não via em seu filho.
Meio por insegurança, sei lá, retomo o laudo da neurologista que afirma sobre Miguel uma hipótese
de autismo. Imediatamente Anelise me interrompe, afirmando que esse laudo já foi revisto pela
neurologista, pois ele foi usando pelo pai de Miguel numa audiência para afirmar que ele não tem
nada.
172
Reitero a fala, então, afirmando que acredito que Miguel tenha alguma dificuldade de ordem
emocional, porém tento chamar a atenção dessa mãe para o peso que um laudo de autismo pode
representar na vida de seu filho em relação ao preconceito. Ela concorda comigo, mas diz, em
seguida, que, a partir do momento em que passou a freqüentar a Apae, seu filho passou a falar e,
conseqüentemente, a interagir melhor socialmente.
[...] Anelise diz que, antes da Apae, ele só interagia com algumas pessoas, porém isto passou a se
modificar nos últimos tempos.
[...] Em seguida, mostro a ela as imagens que tenho de Miguel (FOTO 13, 14), sua evolução em
relação a mim, à escola, aos colegas e a sua produção em sala. Ela fica encantada com as imagens,
principalmente vendo-o na sala de aula interagindo com os colegas. Diz que, no ano passado, teve
muitos conflitos com a professora que só ficava cobrando dela as dificuldades de seu filho, até que
ela se cansou e foi reclamar com a pedagoga e, a partir daí, a professora melhorou um pouco.
Entretanto, percebe que este ano as coisas se modificaram, porém não deixa de dizer que a Apae o
ajudou, pois foi lá que ele aprendeu a falar e, por conseqüência, a interagir melhor no CMEI.
Digo a ela que sabemos que Miguel, do ponto de vista cognitivo, não traz questões estando,
inclusive, além de algumas crianças de sua turma, mas que nosso desafio no momento era poder dar
uma continuidade ao que planejamos com ele em virtude de seu temperamento ser instável, dele vir
poucas vezes à escola. Ouso dizer que a forma como ela decidiu para lidar com ele, fazendo trocas,
ajuda-a, mas também a atrapalha e, por conseqüência, a nós também, pois ele só faz o que quer em
sala de aula.
Ela sorri, diz que não faz sempre, porém imagino que isso ocorra constantemente. É fácil criticar, mas
como pensar outras formas? (19-9-2007)
FOTO 13. Miguel realizando atividades no grupo.
FOTO 14. Miguel pintando com Joana
173
A partir desse relato, penso que muitas questões precisam ser problematizadas em
relação aos convênios entre o Sistema Público Municipal de Ensino e as instituições
especiais, especificamente no caso das APAES, que são as seguintes: essa
parceria ajuda ou atrapalha na medida em que são sistemas filosoficamente muito
diferenciados? O que é apresentar resultados? Que resultados são esses? A escola
não deveria estar preparada, tanto do ponto de vista estrutural, quanto do humano
para atender a todos? Existe articulação entre o que se produz na escola e nas
APAES acerca de uma mesma criança? Essa é uma responsabilidade única da
Secretaria de Educação? E, para finalizar, que tipo de subjetividade instaura em um
indivíduo a convivência em uma instituição segregada como a Apae?
Reconheço que responder a tais pontuações exigiria, talvez, constituir uma
outra/nova tese de Doutorado, todavia, para não ficar apenas na provocação,
entendo que o caminho aqui delineado não favorece o reconhecimento à diversidade
humana como uma condição de existência, mas, sim, opera como mais um elemento
de controle e ajuste social.
Nesse sentido, defendo uma concepção de educação que acredito ser uma
interessante possibilidade para se relacionar com o saber de forma não capturada,
pautada em princípios éticos de liberdade, alteridade e de criação, vendo nesses
uma possibilidade de (re)existir a todas as tentativas de governamentalidade de
nossas vidas, de ir ao encontro de indivíduos que possam, ao longo de sua
existência social, analisar, questionar e atualizar as relações de poder que se
encontram circunscritas a ele, vendo a resistência como uma possível corrente a ser
percorrida no meio de muitos caminhos.
Nessa direção, observo um paradoxo assim discutido: se o poder é diagramático, o
saber emana como um arquivo que se atualiza constantemente e se redistribui nas
instituições em busca de produzir as singularidades permitidas, de forma horizontal e
vertical, mas sempre em torno de um eixo central.
Entretanto, nesse processo sólido de produção de sujeição humana, sempre pode
haver fissuras, conseqüências das combinações equivocadas das diversas relações
de força implantadas nessa edificação, de forma a se reivindicar a vida como uma
174
possibilidade autônoma com o corpo, com a saúde. “[...] Quando o poder se torna
biopoder, a resistência se torna o poder da vida, poder vital que não se deixa deter”
(DELEUZE, apud SINGER, 1997, p. 47).
Nesse movimento, devemos atentar para as múltiplas inter-relações que ali se
estabelecem, a fim de nos apropriarmos das diversas possibilidades de conexões
com a vida em que imperativos de solidariedade estejam presentes.
Em meu entender, esse é o grande objetivo das experiências instituintes, tão bem
delineadas nos escritos de Linhares (1997, 2000, 2001, 2002a), no sentido da
produção coletiva de ações políticas instituídas na/pela/com a cultura, que
caminham rumo a uma lógica mais inclusiva em prol da diversidade humana, numa
perspectiva ética de respeito à vida, ao humano, em suas múltiplas dimensões, num
constante devir.
As experiências instituintes não se encontram sob nenhum tipo de redoma
que as pudesse separar do que já está instituído. Pelo contrário, umas e
outras estão sempre juntas e em litígios, buscando expandir-se, ou seja,
penetrar no espaço e tempo histórico. Se as experiências instituintes
procuram desdobrar-se em movimentos criadores e estremecer o que foi
organizado pela história, o instituído também procura incorporar o que ainda
está se processando, buscando institucionalizar, normatizar o instituinte
(LINHARES; HECKERT, 2005, p. 3-4).
Assim, as análises acerca das políticas de formação de professores devem estar
entrelaçadas a tais eixos, com vistas a articular os movimentos instituintes que
emergem no/com/pelo cotidiano escolar às tendências encontradas nos cursos de
formação pedagógica, a fim de despertá-los para outros modos formas de
aprender/ensinar como exercícios de cidadania que se renovam.
Para tanto, os saberes necessitam se organizar coletivamente a fim de produzir
soluções que não sejam universais, na medida em que devem atuar em diferentes
espaços sociais, mas que precisam se entranhar em nossas diferenças e
pluralidades a fim de operar contra as desigualdades postas, de forma que o debate
acerca da diversidade humana, em especial no que tange ao reconhecimento de
fato e de direito da condição cidadã, tangencie esta discussão.
175
Será preciso um exercício constante e sistemático de reavaliação acerca desse
processo, movimento este que nos exige tanto condições macropolíticas
favorecedoras à formação dos professores em contexto, quanto estes necessitam,
num movimento micropolítico, compreender o quanto esse caminho lhe dará
autonomia e independência em suas ações.
Precisamos, então, instituir saídas, fabricadas na aliança com/nos múltiplos
caminhos invisíveis que nos pedem passagem em vias que nos levam para além
das modelizações, cujos saberes/fazeres inaugurem uma nova ética na qual a
premissa para se compreender a incompletude com que se constitui o ser/estar na
humanidade seja pautada na curiosidade pelo saber, em que a abertura à diferença
seja o dispositivo inicial.
Sabemos o quanto esse processo nos exige uma prática reflexiva constante acerca
de nossas ações cotidianas, a fim de transformá-las em práticas de bases mais
inclusivas. Assim sendo, é preciso que se legitime, nos processos de formação
continuada em contexto, a reflexão da/sobre a ação (NOVOA, 2000), no sentido da
micromacroanálise dos movimentos que ali habitam.
Ao finalizar esta discussão, gostaria de me remeter a uma fala de Gallo (apud,
FOUCAULT, 2006, p.188), quando nos provoca a ousar produzirmos outrasnovas
formas de se pensar os processos de ensino/aprendizagem em que a possibilidade
de criação seja o fio condutor desta teia:
Se as instituições escolares modernas foram construídas como espaços
de subjetivação pela sujeição, é nas práticas desviantes daqueles que
escolhem correr os riscos de produzir experiências de liberdade no
cotidiano da escola, inventando uma prática educativa que toma como
princípio ético a estetização da existência, que reside a possibilidade de
resistência e criação.
Todavia isso nos desafia a abrirmos a guarda de nossas certezas, até então
comodamente cristalizadas, para ousarmos viver intensa e colaborativamente a
emoção que nos impõe pensarmos nossos modos de práticas a partir do
imprevisível, do complexo e, por que não dizer, do caos (JESUS, 2006; ALVES;
GARCIA, 2008; FERRAÇO, 2008; PRIGOGINE, 1996).
176
6. O LEGADO QUE FICOU: O DEVIR ÉTICO DE UMA EXPERIÊNCIA QUE
SE INSTITUI COTIDIANAMENTE
Todo o legado de Paulo Freire para educação em geral e, para a infância
em particular, só poderá ser exercitado e expandido se for compartilhado
como um investimento na liberdade. Uma liberdade que se conjuga com
uma concepção de política que nos faz inapelavelmente entrelaçados uns
com os outros e, portanto, interdependentes em nossas ações e
reciprocamente responsáveis pelas nossas histórias e pelos rumos da
própria civilização (LINHARES, 2002, p. 2).
Na tentativa de amarrar alguns nós desta tessitura que se constituiu o estudo acerca
dos processos educacionais que permeiam uma paisagem escolar infantil em
relação aos movimentos instituintes/instituídos como inclusivos que ali se forjaram,
confirmei a percepção inicial de que muitos movimentos foram disparados ao
encontro dessa perspectiva, principalmente a partir do momento em que se
instaurou no/pelo grupo um desejo potencializador em relação à inclusão das
crianças ditas autistas, apesar de identificar que algumas micromacropolíticas
educacionais instituídas não favoreciam esse movimento.
Neste contexto, gostaria de reafirmar que, ao buscar analisar esta paisagem
complexa e, muitas vezes, contraditória, não tive a pretensão de efetuar qualquer
tipo de generalização. O que privilegiei foi compreender esse contexto,
especialmente no que se refere aos processos de inclusão socioeducacional de
duas crianças ditas autistas, com vistas a dar visibilidade aos movimentos intituintes
inclusivos ali produzidos, no intuito de que outrosnovos movimentos possam ser
disparados a partir destes, sem desconsiderar o fato de que essas paisagens se
constituem de forma peculiar.
Destarte, faz-se necessário que cada contexto institua, coletivamente, os nós de sua
tessitura, considerando os possíveis fios a serem tecidos naquele momento, ao
encontro de uma sociedade que tome a alteridade como premissa, em busca de um
entendimento acerca da Educação e da Educação Infantil voltado à formação
humana em suas diversas configurações. Para tanto, o compromisso docente deve
se balizar na tomada de conhecimento acerca das diversas dimensões e processos
177
que perpassam a constituição humana, constituídas em diferentes concepções e
olhares emanados do/pelo outro (MOLL, 2004).
Entretanto, só poderemos ressignificar tais realidades, se ousarmos correr o risco de
tecer tais fios a partir dos primeiros nós instaurados, num movimento dialético de
reflexão/ação/reflexão, reconhecendo que, provavelmente, ao longo dessa teia
teremos de assumir uma condição de incompletude, peculiar à humanidade, para,
na continuidade, buscarmos, pela via da colaboração, desfazer alguns nós
previamente realizados, com vista a uma tessitura favorecedora a vida em sua
plenitude (MOLL, 2004; LINHARES, 2002).
É difícil ser docente-educador em contacto diário com essas inquietações
vindas dos próprios educandos e não perceber que a função social da
escola passa por onde foi colocada a pedagogia desde suas origens: pela
ousadia tensa e instigante de formar o ser na totalidade de sua condição
humana.
[...] Partir dessas sensibilidades é fundamental e é precondição para
debater, pesquisar, avaliar e teorizar sobre esses ousados intentos de
encontrar o lugar social e a cultura da escola e da docência na garantia do
direito à formação plena dos educandos (MOLL, 2004, p.14).
Assim sendo, assumo a dor e a delícia da opção realizada, por compreender que,
com toda a certeza, ao eleger a cartografia como um dispositivo que me
possibilitasse conhecer os processos de subjetivação que ali se instituíam
(KASTRUP, 2007), devo ter caído em algumasmuitas armadilhas, na tentativa de
pensar os processos de inclusão socioeducacional das crianças envolvidas, visto
que esse dispositivo se constitui e, é constituído ao mesmo tempo que os
movimentos de transformação das paisagens, num devir constante (ROLNIK, 1987).
Nesses movimentos, defendo a premissa de não nos acomodar no instituído e, sim,
instigar o instituinte a buscar, em suas múltiplas e polifônicas possibilidades de vir a
ser, uma nova configuração, sem perder de vista a liberdade como forma de criação,
priorizando o fazer coletivo, que se institui num campo ético e político.
Por esse aspecto, na tentativa de compreender os diversos movimentos produzidos
nas paisagens escolares, como forma de subverter a tal lógica, será preciso escutar
as vozes dos que ali habitam, no intuito de obter pistas que apontem a
ressignificação dessas práticas, pois “[...] mais do que perguntar a sujeitos ideais o
178
que puderam ceder deles mesmos ou de seus poderes para se deixar sujeitar, é
preciso procurar saber como as relações de sujeição podem fabricar sujeitos”
(FOUCAULT, 1997, p. 71).
Considero, então, como necessário, reafirmar a busca pela compreensão e possível
potencialização de algumas resistências que emergiram nesses/desses processos,
bem como a análise de seus possíveis efeitos nos indivíduos. No entanto, não me
aprisionei nesses movimentos numa perspectiva cristalizante, instituindo modelos
transgressores a serem seguidos. O que vislumbrei nestes movimentos de
(re)existência foi uma tentativa de legitimar projetos inclusivos em prol de uma
perspectiva educacional atrelada a pressupostos nos quais a ciência não acoberte o
sujeito de forma pragmática e utilitária, mas que tenha como premissa um projeto
que busque a vida como tendência criadora, tendo, por conseqüência, políticas
educacionais mais inclusivas.
Tomando emprestadas as contribuições de Foucault (2004) para analisar tal recorte,
o que opera nesses movimentos, foi apenas um novo olhar numa outra dimensão ou
com outras ferramentas, mas nunca esquecendo sua questão central acerca da
constituição do sujeito, concebendo-o como alguém que se constitui pela via das
práticas de sujeição e/ou de libertação, tomando como base as regras sociais
instituídas na/pela cultura.
Logo, cabe a nós, pesquisadores, instigar a reflexão e o debate acerca desses
movimentos, como forma de desencadear a tessitura de diferentes fios a serem
tecidos nas diversas redes de fazeressaberes tecidas por/com/entre os envolvidos.
Foucault nos suscita ainda a explicitarmos, de forma velada ou não, a ideologia
dominante, sem, necessariamente, utilizar a força como elemento de legitimação,
com vistas a superarmos essa condição que nos é agenciada.
Aprofundando esse debate, para Silveira e Furlan (2003), a corporeidade ocupa um
lugar central na obra foucaultiana, numa perspectiva genealógica, biopolítica e
histórica, cuja teia de ações se encontra atravessada por relações de forças e sobre
as quais incidem regimes de verdades que podem tanto nos oprimir quanto nos
179
libertar, num movimento complexo no qual ocorre uma predominância da
ambigüidade de um em relação ao outro.
[...] o foco na corporeidade de cada indivíduo – com seus hábitos, instintos,
pulsões, sentimentos, emoções, impulsos e vicissitudes – como ponto
fundamental sobre o qual atua um emaranhado complexo de uma série de
lutas e de confrontos inerentes a tais saberes, no processo de produção de
poder (SILVEIRA; FURLAN, 2003, p. 2).
Para os autores, o debate genealógico acerca do relevo histórico, por meio dos
estudos da concepção de corporeidade atravessada, possibilitaria maior relevância
ao corpo historicamente constituído, potencializando-o a tendências psicologizantes
que desconsideram o indivíduo na/pela história, concebendo esse estudo como um
saber cujo acesso privilegiado aos corpos através da “alma” se encontra em
constante produção de significações, sentidos e subjetivações.
Cabe, então, à Filosofia desconstruir a história do pensamento humano do seu modo
habitual de interpretá-la, questionando a visão linear da verdade, bem como o sujeito
construído pela ciência e, em contrapartida, buscar um movimento múltiplo e cheio
de brechas, no qual a dimensão subjetiva torna-se revalorizada, isto é, tomando com
premissa “o cuidado de si’, visto que o presente se encontra em um processo
dialético constante e o passado precisa ser, cotidianamente, reavaliado.
Por esse aspecto, concebo, no movimento disparado no/pelo grupo, ao elaborar um
relato de experiência contextualizando como discorreu as tentativas de incluir os
alunos em foco naquela paisagem, considerando os limites e possibilidades à
perspectiva inclusiva vigente, um interessante passo no sentido de se evidenciar a
necessidade de que somos capazes de instituir práticas inclusivas possíveis ao
momento, todavia sem perder o foco acerca do que almejamos por Educação, por
Educação Infantil e, por conseqüência, por Educação Inclusiva.
Ao encontro dessa premissa, para além das considerações já tecidas no texto,
gostaria de ampliar tais contribuições, propondo outrasnovas formas de se constituir
algumas práticas educacionais captadas, no intuito de favorecer os movimentos
inclusivos defendidos neste estudo, cuja idéia não se fundamenta em apontar
soluções, mas, sim, colocar em suspensão algumas questões por conceber que, da
180
forma com se encontravam instituídas, eram merecedoras de reflexão com vistas a
uma possível ressignificação.
Nesses movimentos, uma questão a ser problematizada refere-se à formação
continuada em contexto, em especial o planejamento semanal existente, por
entender que esse momento deveria se organizar de forma que todos os envolvidos
com a criança em foco, seja a professora de sala, seja a do laboratório pedagógico,
seja a de Educação Física, Artes, seja a estagiária e as pedagogas, bem como toda
a equipe multidisciplinar (psicólogas, fonoaudiólogas, terapeutas, entre outros)
envolvida, tivesse garantido, sistematicamente, condições para, juntos, trocarem
experiências sobre os possíveis caminhos pedagógicas a serem percorridos,
tomando por base o que Jesus (2002, p.114), nos aponta acerca da instituição de
uma “organização aprendente”: “[....] seus membros devem ser incentivados e
mobilizados para a participação, a construção, o diálogo, a reflexão, a iniciativa e a
experimentação”.
Não podemos também deixar de evidencia as armadilhas que perpassam a parceria
estabelecida entre a SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (SEME) e as
instituições especializadas, no caso, a APAE-Vitória/ES, quando articulada aos
processos de inclusão socioeducacional das crianças com nee por autismo. Em meu
entender, essa parceria precisa ser bem articulada, principalmente no que se refere
ao entendimento construído em cada um desses espaços, acerca dos processos de
desenvolvimento/aprendizagem como nos alertam Vasques e Baptista (2006, p.156),
Os serviços em educação especial, no Brasil, têm sido prestados
majoritariamente por organizações não-governamentais, por meio de
escolas exclusivamente especiais. O encaminhamento para esses serviços
baseia-se na concepção de que é necessário um lugar diferenciado, capaz
de
reunir
condições
“apropriadas”
ao
atendimento
das
deficiências/limitações do alunado. [...] o modelo clínico/médico orienta a
estruturação e funcionamento desses serviços que, por estarem centrados
nos défictis, têm como trabalho escolar a correção ou compensação das
defasagens. [....] essa concepção decorre de uma visão inatista e
determinista do desenvolvimento, na qual o aluno, por ser o portador de
uma ‘falta’, é o único responsável por sua dificuldade.
181
Para além dessa questão, é preciso deixar claro quem é o aluno em potencial
desses espaços, visto que, além das dificuldades de diálogo entre as equipes
multidisciplinares envolvidas, a delimitação tipológica adotada para a população
freqüentadora das APAES se pauta na deficiência intelectual o que, conforme já
discutido, não deve ser diretamente vinculado aos transtornos invasivos de
desenvolvimento - autismo.
Um outro item a nos sensibilizar caminha no sentido de se propor uma análise
cuidadosa acerca de como e por quem essas crianças serão acolhidas na/pelas
diferentes paisagens existentes, em função das implicações que esse encontro pode
operar nas subjetividades vigentes, em especial da criança, e, por conseqüência,
atravessam os processos de ensinoaprendizagem31, haja vista o fato de tanto Miguel
quanto Mateus, nos anos anteriores a este estudo, terem ficado literalmente “pelos
cantinhos” do CMEI.
Reconheço que a responsabilidade desse fato não se resume apenas a uma ação
docente e, sim, reflete todo um contexto micromacroestrutural que, naquele
momento, não favoreciam a inclusão socioeducacional daquelas crianças, todavia as
narrativas apontadas ao longo deste texto nos apontam o quanto os olhares
potencializadores disparados pelas envolvidas com este estudo operaram de
outranova forma à vida das crianças apesar/com/no contexto. Nesse sentido, retomo
Moll (2004, p.15),
Esse intento de reeducar o olhar dos professores, dos alunos, das famílias,
das políticas e das teorias educativas para a formação dos educando talvez
seja a tarefa mais importante das pesquisas e das avaliações. Trata-se de
reeducar o olhar das pesquisas e das teorizações. Tarefa nada fácil para
cada de nós que olhamos a partir do nosso lugar profissional, cultural,
teórico e político até os nossos valores.
Para a autora, os processos de transformação das realidades escolares não se
limitam a uma questão legal, visto que as mudanças não operam apenas no âmbito
dos decretos, mas resultam de modificações estruturais na forma com que os
Tome esse conceito como uma teia cujos fios são tecidos a partir do/sobre/apesar do meio, do
acolhimento, de se sentir-se parte de, de ser olhado, da presença física ou simbólica, do
reconhecimento ao nome entre outros fios simbolicamente estruturantes (MOLL, 2004).
31
182
protagonistas passam a perceber tais contextos. Para tanto, não podemos perder de
vista a necessidade de despertar em nossos alunos, sejam eles com nee ou não, o
desejo de aprender.
Nesse sentido, não poderia deixar de dar visibilidade ao debate tecido na/pela
perspectiva psicanalítica freud-lacanaina, em especial o seu entendimento acerca da
constituição dos sujeitos. Dentre as várias contribuições que esta perspectiva nos
oferece, destaco a noção de pulsão e a metáfora do estádio do espelho, por
acreditar que são conceitos delimitadores para se pensar o poder subjetivante que
nos impõe um olhar de presença/aposta em nossas vidas.
Direcionando tais contribuições para pensarmos os processos de inclusão
socioeducacional das crianças com nee por deficiência, em especial crianças
autistas, vislumbramos, nas considerações de freud-lacanianas, um interessante fio
a ser tecido nos contextos de formação de professores, no intuito de despertar para
a necessidade de se compreender o quanto somos constituídos na/pela/apesar da
cultura, aqui concebida como uma linguagem que nos inscreve socialmente uma
marca singular, cuja instituição tanto pode nos libertar quanto aprisionar a vida.
A meu ver, é exatamente essa é a pista que a Psicanálise nos põe a seguir, ao se
buscar incluir não só crianças com nee, mas todos, cuja condição humana da
diversidade nos atravessa, visto que este campo de conhecimento pode ser uma
interessante aliado, como nos afirma Kupfer (2001, p. 116):
A educação terapêutica foi concebida para fazer face aos desafios da
clínica da psicose infantil. Uma leitura atenta de seus princípios fará,
porém, pensar o seguinte: não deveriam ser esses os princípios para
qualquer ação educativa? Não é à criação das bordas no real que os pais
se dedicam quando se põem a transformar seu pequeno infans em um
sujeito? Não é visando à construção de um sujeito da escrita que um
professor deveria alfabetizar? Não é comemorando aniversários, festas
juninas e ensinando as crianças as artes como ‘estilo de obturação da falta
no outro’ que qualquer escola deveria organizar-se? Fazer educação não é,
em resumo, o mesmo que fazer educação terapêutica? Então se é possível
pensar em uma educação especial psicanaliticamente orientada, pode-se
imaginar que haverá também espaço para uma educação
psicanaliticamente orientada.
Entretanto, sabemos que aceitar/acolher, enfim, desejar o outro não é um
movimento que ocorre apenas por um ato legal e, sim, por ordem simbólica e
183
subjetiva. Os trechos narrados neste estudo evidenciam o quanto isso nos é
desafiador, principalmente quando não estamos abertos à diversidade que pulsa
incessantemente no chão das escolas.
Assim sendo, a Psicanálise poderá nos auxiliar a compreender algumas questões
pertinentes
às
subjetividades
humanas
em
frente
aos
processos
de
ensinoaprendizagem que se engendram nas paisagens escolares, considerando,
inclusive, o fato de os envolvidos nesses processos (professores, pedagogos,
diretores, estagiários, entre outros) serem sujeitos incompletos, cujas pulsões
inconscientes também os aprisionam, e imobilizam ao se depararem com situações
“ameaçadoras”, por exemplo, a de um aluno que apresenta dificuldades em se
inserir num modelo educacional preconcebido como uma criança com diagnóstico
de autistas.
Por esse aspecto, este campo de conhecimento pode operar como uma interessante
ferramenta a ser socializada academicamente, na medida em que os envolvidos
com esses alunos compreendam o quanto as subjetividades são constituídas em
contextos diversos e, por diferentes caminhos, tempos e espaços. Entretanto, isso
só ocorrerá se nós, os educadores, nos encontrarmos abertos à diversidade, visto
que, como afirma Kupfer (2001, p.118): “[...] o saber da psicanálise poderá ser
operativo para um educador se ele puder se apropriar desse saber”.
Ao pensarmos coletivamente os processos educacionais numa perspectiva plural e
ao mesmo tempo única, considerando não só o instituído, mas também e,
principalmente, aquilo que escapa ao nosso desejo de completude, talvez tenhamos
condições para compreender que, muito mais do que nos oferecer repostas, cabe à
educação nos impulsionar aos enigmas que nos conduzem à vida, na medida em
que “[...] nunca se ensina e nem se educa da mesma forma. O projeto educacional
sempre se transforma, e nunca é o que foi anteriormente [...]. A educação é um
constante processo de vir a ser. Algo da ordem do tosco, do incompleto”(MRECH,
2005, p. 29).
Uma última questão que não poderíamos deixar de evidenciar vai ao encontro da
necessidade de clamar por maiores investimentos no campo estrutural da educação,
184
visto que condições como 25 crianças para uma professora em sala de aula com
“direito” a presença de uma estagiaria apenas às turmas que apresentam crianças
com nee, a dupla função exercida pela pedagoga no sentido da gestão pedagógica e
da coordenação das ações adiministrativo-cotidianas, a não integração entre os
professores nos Centros Municipais de Educação Infantil, tanto internamente, quanto
externamente, com as equipes multidisciplinares que atendem a essas crianças,
bem como os salários vigentes destinados aos professores do magistério, levandoos a jornadas de trabalho exaustivas, representam um descaso irreparável à
educação, cujos reflexos repercutem numa infância tutelada pela vulnerabilidade e
pela invisibilidade,
Vulnerável deixou de ser uma condição provisória na qual se está para se
transformar na regularidade de um tipo social que se é, estando sob
determinada circunstâncias [....]. Consolida-se uma situação que inviabiliza
a muitos alunos e alunas a possibilidade de lograr realização como criança
ou jovem (FREITAS, 2006, p.28).
Para subverter a tal lógica, proponho um movimento que nos impulsionem a poetizar
os saberes e a vida, ver além, vislumbrando, na cultura popular e juvenil das
escolas, a poética, como forma de vida entre as contradições. Logo, devemos alçar
vôo na busca por alicerces de ensinoaprendizagem, não no mando e nas
obediências, mas na transformação do mundo, no acolhimento das diversidades e
nas invenções, aproximando, assim, a escola da vida.
Com forma de poetizar tal movimento, gostaria de me remeter a uma história de
Rute Rocha; Quando a escola é de vidro (1994), por acreditar que sua narrativa nos
convida a pensar o quanto é favorecedor aos processos educacionais vigentes a
instauração de uma outranova forma de se instituir os movimentos pedagógicos, a
partir das pistas que emanam no/do/pelo cotidiano. Esta é a sua história:
Naquele tempo eu até que achava natural que as coisas fossem
daquele jeito. Eu nem desconfiava que existissem lugares muito
diferentes... Eu ia pra escola todos os dias de manhã e quando
chagava, logo, logo, eu tinha que me meter no vidro. É, no vidro!
Cada menino ou menina tinha um vidro e o vidro não dependia do
tamanho de cada um, não! O vidro dependia da classe em que a
gente estudava.
185
Se você estava no primeiro ano ganhava um vidro de um tamanho.
Se você fosse do segundo ano seu vidro era um pouquinho maior. E
assim, os vidros iam crescendo à medida em que você ia passando
de ano.
Se não passasse de ano era um horror. Você tinha que usar o
mesmo vidro do ano passado. Coubesse ou não coubesse. Aliás
nunca ninguém se preocupou em saber se a gente cabia nos vidros.
E pra falar a verdade, ninguém cabia direito. Uns eram muito
gordos, outros eram muito grandes, uns eram pequenos e ficavam
afundados no vidro, nem assim era confortável.
Os muitos altos de repente se esticavam e as tampas dos vidros
saltavam longe, às vezes até batiam no professor. Ele ficava louco
da vida e atarrachava a tampa com força, que era pra não sair mais.
A gente não escutava direito o que os professores diziam, os
professores não entendiam o que a gente falava...
As meninas ganhavam uns vidros menores que os meninos.
Ninguém queria saber se elas estavam crescendo depressa, se não
cabia nos vidros, se respiravam direito...
A gente só podia respirar direito na hora do recreio ou na aula de
Educação Física. Mas aí a gente já estava desesperado, de tanto
ficar preso e começava a correr, a gritar, a bater uns nos outros.
As meninas, coitadas, nem tiravam os vidros no recreio. e na aula
de Educação Física elas ficavam atrapalhadas, não estavam
acostumadas a ficarem livres, não tinha jeito nenhum para
Educação Física.
Dizem, nem sei se é verdade, que muitas meninas usavam vidros
até em casa. E alguns meninos também. Estes eram os mais tristes
de todos. Nunca sabiam inventar brincadeiras, não davam risada á
toa, uma tristeza!
Se a gente reclamava? Alguns reclamavam. E então os grandes
diziam que sempre tinha sido assim; ia ser assim o resto da vida.
Uma professora, que eu tinha, dizia que ela sempre tinha usado
vidro, até pra dormir, por isso que ela tinha boa postura.
Uma vez um colega meu disse pra professora que existem lugares
onde as escolas não usam vidro nenhum, e as crianças podem
crescer a vontade. Então a professora respondeu que era mentira,
que isso era conversa de comunistas. Ou até coisa pior...
Tinha menino que tinha até de sair da escola porque não havia jeito
de se acomodar nos vidros. E tinha uns que mesmo quando saíam
dos vidros ficavam do mesmo jeitinho, meio encolhidos, como se
estivessem tão acostumados que até estranhavam sair dos vidros.
Mas uma vez, veio para minha escola um menino, que parece que
era favelado, carente, essas coisas que as pessoas dizem pra não
dizer que é pobre. Aí não tinha vidro pra botar esse menino. Então
186
os professores acharam que não fazia mal não, já que ele não
pagava a escola mesmo...
Então o Firuli, ele se chamava Firuli, começou a assistir às aulas
sem estar dentro do vidro. O engraçado é que o Firuli desenhava
melhor que qualquer um, o Firuli respondia perguntas mais depressa
que os outros, o Firuli era muito mais engraçado...
E os professores não gostavam nada disso... Afinal, o Firuli podia
ser um mal exemplo pra nós... E nós morríamos de inveja dele, que
ficava no bem-bom, de perna esticada, quando queria ele
espreguiçava, e até mesmo que gozava a cara da gente que vivia
preso. Então um dia um menino da minha classe falou que também
não ia entrar no vidro.
Dona Demência ficou furiosa, deu um coque nele e ele acabou
tendo que se meter no vidro, como qualquer um. Mas no dia
seguinte duas meninas resolveram que não iam entrar no vidro
também: - Se o Firuli pode por que é que nós não podemos?
Mas Dona Demência não era sopa. Deu um coque em cada uma, e
lá se foram elas, cada uma pro seu vidro... Já no outro dia a coisa
tinha engrossado. Já tinha oito meninos que não queriam saber de
entrar nos vidros.
Dona Demência perdeu a paciência e mandou chamar seu
Hermenegildo que era o diretor lá da escola. Seu Hermenegildo
chegou muito desconfiado: - Aposto que essa rebelião foi fomentada
pelo Firuli. É um perigo esse tipo de gente aqui na escola. Um
perigo!
A gente não sabia o que é que queria dizer fomentada, mas
entendeu muito bem que ele estava falando mal do Firuli. E seu
Hermenegildo não conversou mais. Começou a pegar as meninas
um por um e enfiar à força dentro dos vidros.
Mas nós estávamos loucos para sair também, e pra cada um que
ele conseguia enfiar dentro do vidro - já tinha dois fora. E todo
mundo começou a correr do seu Hermenegildo, que era pra ele não
pegar a gente, e na correria começamos a derrubar os vidros.
E quebramos um vidro, depois quebramos outro e outro mais dona
Demência já estava na janela gritando - SOCORRO! VÂNDALOS!
BÁRBAROS!(pra ela bárbaro era xingação).
Chamem o Bombeiro, o exército da Salvação, a Polícia Feminina...
Os professores das outras classes mandaram cada um, um aluno
para ver o que estava acontecendo. E quando os alunos voltaram e
contaram a farra que estava na 6° série todo mundo ficou
assanhado e começou a sair dos vidros.
Na pressa de sair começaram a esbarrar uns nos outros e os vidros
começaram a cair e a quebrar. Foi um custo botar ordem na escola
e o diretor achou melhor mandar todo mundo pra casa, que era pra
pensar num castigo bem grande, pro dia seguinte.
187
Então eles descobriram que a maior parte dos vidros estava
quebrada e que ia ficar muito caro comprar aquela vidraria tudo de
novo.
Então diante disso seu Hermenegildo pensou um pocadinho, e
começou a contar pra todo mundo que em outros lugares tinha
umas escolas que não usavam vidro nem nada, e que dava bem
certo, as crianças gostavam muito mais.
E que de agora em diante ia ser assim: nada de vidro, cada um
podia se esticar um bocadinho, não precisava ficar duro nem nada,
e que a escola agora ia se chamar Escola Experimental.
Dona Demência, que apesar do nome não era louca nem nada,
ainda disse timidamente: - Mas seu Hermenegildo, Escola
Experimental não é bem isso...
Seu Hermenegildo não se perturbou: - Não tem importância. Agente
começa experimentando isso. Depois a gente experimenta outras
coisas...
E foi assim que na minha terra começaram a aparecer as Escolas
Experimentais.
Depois aconteceram muitas coisas, que um dia eu ainda vou
contar...
A opção por destacar tal narrativa vai ao encontro de um desejo por deixar, como
legado deste estudo, o entendimento de que, apesar das micromacroações
politicamente instituídas que nos assujeitam cotidianamente, pela via de diferentes
dispositivos subjetivantes que nos aprisionam, inconscientemente, como sujeitos,
podemos (re)existir a tais práticas. Para tanto, devemos tomar como base a
premissa de que cada sujeito é singularmente constituído na/pela/com a cultura,
logo, passível de ressignificação.
Especificamente no que se refere aos processos de escolarização de crianças
autistas, considerando os riscos que nos impõem qualquer tentativa de
generalização deste debate, haja vista este campo se encontrar ainda em processo
de construção (VASQUES; BAPTISTA, 2006), compreendo que a escola, quando
pensada de forma multi/pluridisciplinar, pode favorecer a potencialização dos que ali
habitam, deste de que tais movimentos sejam disparados por diferentes fios a serem
tecidos, a partir das pistas que emanam dos/no/com envolvidos.
188
Nessa perspectiva, reconheço que devo ter cometido alguns/muitos equívocos, haja
vista a condição humanamente faltosa que me atravessou/atravessa, ao tentar tecer
fios instituintemnte inclusivos, a partir de campos de teorizações tão singulares para
analisar os discursos ali produzidos, visto que estes são instituídos na/pela cultura
(COSTA, 2005). No entanto, como apontam Rublescki e Baptista (2006, p.170),
“Trata-se de diferentes campos que ‘entram em jogo’ para transformar e serem
transformados, em uma discussão inter/transdisciplinar no contexto das práticas
educacionais”.
Assim, nesse movimento de instituir e, ao mesmo tempo ser instituída, busquei,
neste rastreio (KASTRUP, 2007), captar os micromacromovimentos possíveis àquele
momento singular experenciado por mim, no/com o grupo. Movimentos estes que se
encontram em um devir constante, cujos limites e imprevisibilidades pertinentes,
pulsam, incessantemente, em cada cotidiano escolar.
Assim, apesar de e/ou em detrimento dessa condição, gostaria de rememorar os
movimentos vividos na/com a paisagem, cujas lembranças de Miguel brigando por
obter uma matriz, de Mateus riscando todas as mesas e paredes da sala a partir do
momento em que aprendeu a escrever seu nome, de Ana, Kely e da diretora
Mariana buscando ampliar suas respectivas formações pela via da pós-graduação,
de Joana sorrindo para mim ao me encontrar, inesperadamente, depois que saí
desse CMEI, das crianças permanecendo em suas respectivas turmas de um ano
para o outro, do jantar oferecido a todas as crianças do turno vespertino, em
detrimento do lanche, são movimentos que me permitem acreditar no poder
subjetivante que um olhar de aposta e de criação pode operar, na medida em que o
contexto envolvido toma o trabalho colaborativo como fio condutor.
Pensando no que vivi e, principalmente, no que aprendi com essa experiência
instituinte, resgato a letra da música “Aquarela”, de Toquinho (1978, acesso em 30
set. 2008), que Mateus tanto tocava em sala, para sugerir o risco à imprevisibilidade,
ao desejo e à imaginação, em detrimento das práticas hegemônicas que tanto nos
engessam e nos aprisionam.
Nesse sentido, destaco a letra da música ao nos dizer:
189
Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva
Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu
Vai voando contornando a imensa curva norte sul
Vou com ela viajando Havaí, Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela branco navegando é tanto céu e mar num
beijo azul
Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo com suas luzes a piscar
Basta imaginar e ele está partindo sereno indo
E se a gente quiser ele vai pousar
[...] Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia
enfim descolorirá.
190
6 REFERÊNCIAS
1
ALBUQUERQUE, A. B. Sobre o estilo de Freud. 2001. 215 f. Tese (Doutorado
em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.
2
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa:
Presença, 1974.
3
ALVES, N. Pesquisas nos/dos/com os cotidianos das escolas: sobre redes
de saberes. Petrópolis: DP&A, 2008.
4
ALVES, N. ; GARCIA, R. L. (Org.). O sentido da escola. 5. ed. Petrópolis:
DP&A, 2008.
5
AMY, M. D. Enfrentando o autismo: a criança autista, seus pais e a relação
terapêutica Tradução de Sergio Tolipan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001
6
AQUINO, L. M. M. L. L. de. O lugar do erro na educação infantil: a
construção do caminho das professoras. 2002. 195 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2002.
7
ARAUJO, C. A. S. de. A perspectiva winnicottiana sobre o autismo no caso de
Vitor. Psyche, São Paulo, v.8, n. 13, p. 43-60. jun. 2004, ISSN 1415-1138.
8
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora
LTC, 1981
9
ASSUMPÇÃO, L. A. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças
físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, J. G. (Coord.). Diferenças
e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo:
Summus, 1998. p. 11-30.
10
BAPTISTA, C. R. Políticas de inclusão escolar: análise de um campo temático e
perspectiva de investigação. In: JESUS, D. M.; BAPTISTA, C. R.; VICTOR, S.
L. Pesquisa e educação especial: mapeando produções. Vitória, ES: Edufes,
2005. p.32-56.
11
BARBIER, R. A pesquisa-ação na instituição educativa. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.
12
______ . Pesquisa-ação. Tradução de Lucie Didio. Brasília: Plano, 2002.
13
BAREMBLITT, G. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte: Instituto Félix
Guattari, 1998.
14
BAUER, S. Autismo: síndrome de asperger: ao longo da vida APSA. ORG.
PT,1996. Disponível em: < www.udel.edu/bkirby/asperger/bauerport.html >
Acesso em: 09 de març 2007.
191
15
BIRMAN, J. Subjetividade, contemporaneidade e educação. In: CANDAU, V. M.
Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001. p. 11-28.
16
BOSA, C. Atenção compartilhada e identificação precoce do autismo.
Psicologia Reflexão Crítica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, 2002 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010279722002000100010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 3 jul. 2008.
17
BRANDÃO, Z. Pesquisa em educação: conversas com pós-graduandos. São
Paulo: Loyola, 2002.
18
BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do
Brasil. Brasília,: Senado Federal,1988. artigo n. 227
19
______. Lei nº 9.394, de 19 de julho de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Ministério da Educação Secretaria de
Educação Básica. Brasília, 1996.
20
______. Plano Nacional de Educação Infantil. Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica. Brasília, 2006.
21
______. Política Nacional DE Educação Infantil: pelo direito das crianças de
zero a seis anos a educação. Ministério da Educação Secretaria de
Educação Básica. Brasília, 2006.
22
BUENO, J.G. Comunicação oral I. Palestra ministrada no I Semminário de
Pesquisa em Educação Especial, Vitória, março de 2005.
23
BUJES, M. I. E. D. Governando a subjetividade: a constituição do sujeito infantil
no RCN/EI. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓSGRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 24., 2001, Caxambu. Anais...
Caxambu: ANPED, 2001.
24
CABASSU, G. Palavras em torno do berço In. WANDERLEY, D. de B. Palavras
em torno do berço: intervenções precoces bebê e família. Salvador, BA:
Agalma, 1997. p. 21-35.
25
CAETANO, V. Sampa. busca letras, Disponível em: <Tolo http://www.raulseixas.ouro-de-tolo.buscaletras.com.br>. Acesso em 3 fev. 2008.
26
CASSOL, A. M. C. S. O não brincar na primeira infância. 2008. No prelo
27
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes,
1994.
28
CORTÊS, A. S. B. O panóptico de Yone: astúcias e táticas contra o poder
disciplinar da escola. 2004. 198 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2004.
192
29
COSTA, M. V. Pesquisa-ação, pesquisa participativa e política cultural da
identidade. In: COSTA, M. V.(Org.).Caminhos investigativos II. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002. p. 93-118.
30
COSTA, M.S. Aprendendo a ensinar com alunos e alunas marcados pelo
fracasso escolar: alinhavando retalhos da caminhada. 2004.199f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
31
COSTA, J.R.M.C. Redesenhando uma pesquisa a partir dos estudos culturais
In: COSTA, M. V.; BUJES, M.I. E. (Org.).Caminhos investigativos III. Rio de
Janeiro: DP&A, 2005. p. 85-116.
32
COSTA, T. Psicanálise com crianças. Rio de Janeiro: Jorge Zaher Ed., 2007.
33
CAPARROZ, E. F. e BRACHT, W. O tempo e o lugar de uma didática da
Educação Física. In. Revista Brasileira de Ciência dos Esportes, Campinas,
v. 28, n. 2, p. 21-38. jan. 2007.
34
CUNHA, L. G. Psicanálise e educação: uma leitura das relações pedagógicas.
1990. 77 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de PósGraduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória,
1990.
35
DALI, S. Mercado de escravos. Galeria de Artes Dali . 1 gravura. Disponível
em :< www.ciencias.com.br/pagina_bedaque/dali/quadros.htm>. Acesso em: 23
jan. 2008.
36
DA VINCE, L. Mona Lisa. 1. gravura. Disponível em:
<www.Wikipédia.mht(acessado>. Acesso em: 23 jan. 2008.
37
DAU, S. O poder e o saber em Michael Foucault. 2003. 182 f. Tese
(Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2003.
38
DELEUZE, G. Lógica dos sentidos. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes.
São Paulo: Perspectiva, 1974.
39
______. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta,
1997.
40
DIAS, A. E. A atuação do professor na contemporaneidade: uma escrita do
seu mal-estar. 2003. 147 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa
de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2003.
41
EIZIRICK, M. Rupturas e intensidades: movimentos da formação de
subjetividade. Educação, subjetividade e poder, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 815, jan./jun. 1994.
193
42
EIZIRICK, M. Educação e construção de mundos: por onde passa a inclusão na
escola regular? Projeto: Revista da Educação: inclusão. Porto Alegre v. 5, n.
7, p. 2-8, out. 2003.
43
FERRAÇO, C. E. Pesquisa com o cotidiano Educ. Soc., Campinas, v. 28, n. 98,
p. 73-95, jan./abr. 2007 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> Acesso
em: 20 agos. De 2008.
44
______. Currículos e conhecimentos em redes: as artes de dizer e escrever
sobre a arte de fazer. In. ALVES, N. ; GARCIA, R. L. (Org). O sentido da
escola. 5. ed. Petrópolis: DP&A, 2008. p. 101- 124.
45
FERREIRA, M. C. R.; AMORIM, K de S.; SILVA, A. P. S. Redes de
significações: alguns conceitos básicos. In: FERREIRA, M. C. R. et al. Redes
de significações e o estudo do desenvolvimento humano. Porto Alegre:
Artmed, 2004. p. 25-49.
46
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1975.
47
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
48
______. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996a.
49
______. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de
Melo Machado e Eduardo Jardins Morais. Rio de Janeiro: NAU, 1996b.
50
______. Resumos do curso do Collège de France. Tradução de Andrea
Daher. Rio de Janeiro: Jorge Daher, 1997.
51
______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
52
______. História da sexualidade I: a vontade de saber. 15. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2003a.
53
______. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 15. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2003b.
54
______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro. NAU Editora. 2004
55
______. Arqueologia das ciências e histórias dos sistemas de pensamentos. In.
MOTTA,M.B. Ditos & escritos. Tradução de Elisa Monteiro. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005. v. 4.
56
FREUD, S. O método psicanalítico de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
v.7. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud).
57
______. O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v. 13).
58
______. A interpretação dos sonhos. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
(Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 5).
194
59
FREUD, S.. Além do princípio do prazer. Tradução de Luiz Alberto Hanns.
Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. 2 (Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud).
60
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. El nino autista manual
para padres. Edição em espanhol .Oficina regional para as Américas do Fundo
das Nações Unidas para a Infa\ãncia. Santiago, Chile., 1982.
61
GALLO. S. Cuidar de si e cuidar do outro: implicações éticas para a educação
dos últimos escritos de Foucault. In: KOHAN, W. O. Foucault 80 anos. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006. p.177-190.
62
GARCIA, R. L. Tentando compreender a complexidade do cotidiano. In.
GARCIA, R. L. Método: pesquisa com o cotidiano. DP&A, 2003. p.9-17.
63
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1987.
64
GODIM, M. C. B. Autonomia do pensamento: um estudo psicanalítico. 1992.
250 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1992.
65
GONZAGUINHA, L. É a vida busca letras, Disponível em: <Tolo
http://www.raul-seixas.ouro-de-tolo.buscaletras.com.br> Acesso em: 3 fev.
2008.
66
GORE, J. M. Foucault e a educação: fascinantes desafios. In: SILVA, T. T. O
sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 918.
67
HECKERT, A. L. C. Narrativas de resistências: educação e políticas. 2004.
297 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
68
JESUS, D. M. Educação inclusiva: uma proposta construída na/pela prática.
Cadernos de Pesquisa em Educação, Vitória, v. 8, n. 15 p. 93-141, jan./jun.
2002.
69
______. Inclusão escolar na escola básica: articulando pela via da pesquisaação-crítica a formação de educadores sujeitos de conhecimento. In: Seminário
Capixaba Dd Educação Inclusiva, 10, 2006, Vitória, ES. Resumos... Vitória,
ES: Edufes, 2006. p. 50-59.
70
KASSAR, M. Comunicação Oral II. Palestra ministrada no I Seminário de
Pesquisa em Educação Especial, Vitória, março de 2005.
71
KASTRUP, V. O funcionamento da atenção No trabalho do cartógrafo
Psicologia & Sociedade, v.19, n.1, p. 15-22, jan./abr. 2007.
72
KRAMER, S.; GUIMARÃES, D. Nos espaços e objetos das creches,
concepções de educação e práticas com as crianças de zero a três anos.
195
Caderno de Pesquisa em Educação, PPGE – UFES, Vitória, v. 13, n. 26,
jul./dez. 2007.
73
KUPFER, M. C. Educação para o futuro: psicanálise e educação. 2. ed. São
Paulo: Escuta, 2001.
74
LACAN, J. O seminário. Livro 1 os escritos técnicos de Freud. Textos
estabelecidos por Jacques-Alain Miller. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar,
1983.
75
______ A direção do tratamento e os princípios de seu poder escritos.
Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998.
76
LAPASSADE, G. As microssociologias. Tradução de Lucie Didio. Brasília:
Líber Livros, 2005.
77
LARROSA, J. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, T. T. da (Org.). O
sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 35-86.
78
______. Nietzsche & a educação. Tradução de Semíramis Gorini da Veiga. 2.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
79
LAZNIK, Marie-Christine. A voz da sereia: o autismo e os impasses na
constituição do sujeito. Texto compilado por Daniele Wanderley . Tradução de
Claudia Fernandes Rohenkol et al. Salvador, BA: Agalma, 2004
80
LECHTE, J. Cinqüenta pensadores contemporâneos essenciais: do
estruturalismo à pós-modernidade. Tradução de Fabio Fernandes. 3. ed. Rio de
Janeiro: Difel, 2003.
81
LEBOYER, M. Autismo Infantil: fatos e modelos. 2. ed. Campinas. SP:
Papirus, 1995.
82
LINHARES, C. F. A escola e seus profissionais: tradições e contradições. Rio
de Janeiro: Agir, 1997.
83
______. Memórias e projetos nos percursos interdisciplinares e
transdisciplinares. In: FAZENDA, I. (Org.). A virtude da força nas práticas
interdisciplinares. Campinas: Papirus, 1999. v. 207, p. 15-34.
84
LINHARES, C. F. Educação e professores em tempo de armar e amar In:
LINHARES, C. (Org.). Os professores e a reinvenção da escola. São Paulo:
Cortez, 2001a. p. 9-16
85
______. Professores entre reformas e reinvenções educacionais. In:
LINHARES, C. (Org.). Os professores e a reinvenção da escola. São Paulo:
Cortez, 2001b. p. 137-173.
86
LINHARES, C. F. De uma cultura de guerra para uma de paz e justiça social:
movimentos instituintes em escolas públicas como processo de formação
docente. In: LINHARES, C. F.; LEAL, M. C. Formação de professores: uma
196
crítica à razão e à política hegemônicas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002a. p. 103130.
87
LINHARES, C. F. Uma proposta para a busca do saber com sabor de prazer:
Folha Dirigida, São Paulo, ano 2, n. 15, p. 1-2, ago. 2002b. Espaço
Acadêmico. Disponível em: <http://www.folhadirigida.com.br>. Acesso em: 27
jul. 2006.
88
______. Políticas hegemônicas: implicações à formação docente. In:
SEMINÁRIO CAPIXABA DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA, 10., 2006, Vitória, ES.
Resumos... Vitória, ES: Edufes, 2006. p. 24-34.
89
LINHARES, C. F. et al. Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Rio
de Janeiro: DP&A, 2001
90
LINHARES, Célia Frazão Soares ; GARCIA, R. M. L. Educação e identidade na
América Latina. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 7, n. 42, p. 5-13,
2001. Entrevista concedida pela Dra. Adriana Puiggrós.
91
LINHARES, C. F.; NUNES, C. Trajetórias de magistério: memórias e lutas
pela reinvenção da escola pública. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.
92
LINHARES, C. F.; LEAL, M. C. Formação de professores: uma crítica à razão
e à política hegemônicas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
93
LINHARES, C.; HECKERT, A. L. C. Girar o mundo, girando a escola e a
formação de professores: movimentos instituintes nas escolas públicas. In:
REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM EDUCAÇÃO, 7., 2005, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: ANPED
SUDESTE, 2005.1CD -ROM
94
MACHADO, A. M. Educação inclusiva: de quem e de quais práticas estamos
falando? In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIOLNAL DE PÓSGRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 27., 2004, Caxambu. Anais...
Caxambu, MG: ANPED, 2004. 1 CD-ROM
95
MARQUES, C. F. F. da C. & ARRUDA, S. L. S. Autismo infantil e vínculo
terapêutico. Estudos de Psicologia I Campinas, v. 24, n.1, p. 115-124,
jan./mar. 2007
96
MARSHALL, J. Governamentalidade e educação liberal. In: SILVA, T. T. O
sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.
21-34.
97
MELLO, T. de Faz escuro mas eu canto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964.
98
MENEZES. J. E. X. A psicologia e a psicanálise sob o exame crítico do
primeiro Foucault. 2003. 280 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2003.
197
99
MEIRIEU, P. A pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de começar.
Tradução de Fátima Murad. Porto Alegre: ARTMED, 2002.
100 MOLL, J. Apresentação- Notas sobre um diálogo construído a partir do desejo
de reinventar a escola. In. MOLL, J.; Col. Ciclos na escola, tempos na vida.
Porto Alegre: Artimed, 2004. p.19-22.
101 MORIN, E. (Org.). MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa:
Instituto Piaget, 1995.
102 ______ . A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Tradução de
Flávia Nascimento. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
103 MRECH, L. M. Psicanálise e educação: novos operadores de leitura. São
Paulo: Pioneira, 1999.
104 ___________ O impacto da psicanálise na educação. São Paulo: Editora
Avercamp, 2005.
105 NAJMANOVICH, D. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do
cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
106 NICÁCIO, E. M. O paradoxo do homem moderno: psicanálise e processos
civilizatórios. 1999. 120 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de PósGraduação em Filosofia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1999.
107 NOVOA, A. (Org.). Vida de professores. Porto: Porto Editora, 2000.
108 OLIVEIRA, I. de B. Aprendendo nos/dos/com os cotidianos a ver/
Ler/ouvir/sentir o mundo Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 98, p.
47-72, jan./abr. 2007. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso
em: jan 2008.
109 OLIVEIRA, L. J. de Panóptico, supernóptica e sociedade de vigilância:
Michael Foucault, Mark Pôster, David Lyon. 2002. 253 f. Dissertação (Mestrado
em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.
110 OLIVEIRA, L. R. O sujeito como interface na escola que reporduz e que
transforma. 2003. 205 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de PósGraduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
111 OLIVEIRA, S. P. Micropolítica do fracasso escolar: uma tentativa da aliança
com o invisível. 2001. 254 f Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de
Pós-Graduação em Educação do Centro Pedagógico da Universidade Federal
do Espírito Santo, Espírito Santo, 2001.
112 PATTO, M. H. A produção do fracasso escolar. São Paulo, T. A. Queiroz
1990.
198
113 PIACENTINI, M. T. de Q. Em se tratando de tecer, tecitura: Não Tropece na
língua nº 097 – 2. ED Disponível em: <http://www.linguabrasil.com.br/
syshome/index.php> Acesso em: 11 out. 2008.
114 PIMENTA, S. G. Pesquisa-ação crítico-colaborativa: construindo seu significado
a partir de experiências com a formação docente. Educação e Pesquisa, São
Paulo, v. 31, n. 3, p. 521-539, set./dez. 2005.
115 PINEL, H. Alguém atrás da porta: quando o processo de ensino e
aprendizagem é ameaça(dor)? . Caderno de Pesquisa em Educação, Vitória,
v. 2, n. 12, p. 132-150, ago./dez. 2000.
116 PRIGOGINE, I. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São
Paulo. Editora UNESP, 1996.
117 RAFAEL, S. Madonna. Disponível em: <www.saberhistoria.hpg.ig.
com.br/novapagina_92.htm> Acesso em: 1 fev 2008. 1 gravura 1504.
118 RATTO, A. L. Livros de ocorrência: disciplina, normalização e subjetivação,
2004. 322 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação
em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.
119 REDIN, E.; REDIN, M. M. ; MÜLLER, F. Infâncias: cidades e escolas amigas
das crinças. Porto Alegre: Mediação, 2007
120 REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. Tradução de Maria do Rosário
Gregolin, Nilton Milanez e Carlos Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005.
121 RICKES, S. M. Educação e inclusão:Invenção ou espanto? In. BAPTISTA,
C.R.; BEYER, H.O. Inclusão e escolarização: múltiplas perspectivas. Porto
Alegre: Mediação, 2006. p. 43-52.
122 RIOS, D. R. Multidicionário escolar da língua portuguesa. São Paulo: DCL,
2000.
123 ROCHA, R. Quando a escola é de vidro. In. ROCHA, R. Admirável mundo
novo. São Paulo. Editora Salamandra. 1994.
124 ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do
desejo. São Paulo: Liberdade, 1987.
125 ______. Despedir-se do absoluto. O Povo, Fortaleza18 nov. 1995, Caderno de
Sábado, n. 6 Entrevista concedida a Lira Neto e Silvio Gadelho, publicada sob o
título Ninguém é deleuziano.
126 RONDAS, A. Psicanálise e educação: caminhos cruzáveis. Brasília: Plano,
2004.
127 ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro Editora Zahar, 2000.
199
128 ROZENTHAL, E. O pulsar da diferença: considerações acerca do processo da
subjetivação em psicanálise. 2003. 243 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública)
– Programa de Pós-Graduação em Saúde Publica Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.
129 RUBLESCKI, A., F.; BAPTISTA, C., R., Reflexões sobre a educação integrada
de crianças com autismo e psicose infantil. In. GURSKI, R., DALPIAZ, S.;
VERDI, M; Cenas da infância atual: a família, a escola e a clínica. Spalding
Verdi – Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. p.166 – 174.
130 SAFATLE. V. Confrontar-se com o inumano. Revista Cult. São Paulo, v.11, n.
125, p. 38-41. jun. 2008.
131 SANTIAGO, A. L. B. A inibição intelectual na psicanálise. 2000. 301 f. Tese
(Doutorado em Psicologia Clínica) – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
132 SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987.
133 ______. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal,
1999.
134 SATER, A.; TEIXEIRA, R. Tocando em frente. In: ______. Almir Sater ao vivo.
São Paulo: Columbia, 2001. 1 CD, faixa 4.
135 SEIXAS, R. Ouro de Tolo Disponível em: < http://www.raul-seixas.ouro-detolo.buscaletras.com.br> Acesso em: 20 ago. 2008.
136 SILVA, M. G. C. A autopercepção de alunos/as que apresentam
necessidades educativas especiais e suas redes de significação. 2003.
294 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação
em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2003.
137 SILVA, T. T. (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis:
Vozes, 1994.
138 ______. (Org.). Liberdades reguladas. Petrópolis: Vozes, 1998.
139 ______. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
140 SILVA, A. P. F. da; FREITAS, M.C. Escolarização, trabalho e sociabilidade em
“situação de risco”: apontamentos para uma antropologia da infância e da
juventude sob severa pobreza. In. FREITAS, M. C. Desigualdade social e
diversidade cultural na infância e na juventude. São Paulo: Cortez, 2006
141 SILVEIRA, F. A.; FURLAN, F. de A. Corpo e alma em Foucault: postulados para
uma metodologia da psicologia. Revista Psicologia, São Paulo, v. 14, n. 3, p.
171-194, 2003.
142 SILVEIRA, R. M. H. A entrevista na pesquisa em educação: uma arena de
significados. In: COSTA, M. (Org.). Caminhos investigativos II: outros modos
200
de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 119142.
143 SINGER, H. República das crianças: sobre experiências escolares de
resistências. São Paulo: Hucitec, 1997.
144 SKLIAR, C. É o outro que retorna ou é um eu que hospeda?: notas sobre a
pergunta obstinada pelas diferenças em educação. In: REUNIÃO DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM
EDUCAÇÃO, 25., 2002, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPED, 2002. 1CDROM
145 SOARES, C. L. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo:
Cortez, 1982.
146 SOUZA, R. M.; GALLO, S. Por que matamos o barbeiro?: reflexões
preliminares sobre a paradoxal exclusão do outro. Educação e Sociedade,
Campinas, ano 23, n. 79, p. 39-64, ago. 2002.
147 SOUZA, R. C.; BORGES, M. F. S. T. A práxis na formação de educadores
infantis. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
148 TOQUINO. Aquarela. busca letras, Disponível em: <Tolo http://www.raulseixas.ouro-de-tolo.buscaletras.com.br> Acesso em: 3 fev. 2008.
149 VARELA, J. O estatuto do saber pedagógico. In: SILVA, T. T. da (Org.). O
sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 87-96.
150 VASQUES, C. K. Um coelho branco sobre a neve: estudo sobre a
escolarização de sujeitos com psicose infantil. 2003. 152 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
151 VASQUES, C. K.; BAPTISTA, C., R. Relevos do coelho...pela construção de
um outro olhar na escolarização de sujeitos com psicose infantil. In: GURSKI,
R., DALPIAZ, S.; VERDI, M. Cenas da infância atual: a família, a escola e a
clínica. Spalding Verdi – Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. p.155-164.
152 VEIGA NETO, A. Foucault e a educação: outros estudos foucaultianos. In:
SILVA, T. T. da (Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos.
Petrópolis: Vozes, 2004. p. 225-246.
153 ______. Incluir para excluir. In: LAROSSA, J.; SCLIAR, C. Habitantes de
Babel. Tradução de Semíramis Gorini da Veiga. Belo Horizonte: Autêntica,
2001. p. 105-118.
154 VELOSO, C. Sampa Disponível em: < http://www.raul-seixas.ouro-detolo.buscaletras.com.br> Acesso em: 3 fev. 2008.
155 VILLAR, E. T. F. e S. Re-significando o saber-fazer/dizer da prática
pedagógica de professoras ao ensinar geografia às crianças do 2.º ciclo.
201
2003. 187 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de PósGraduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2003.
156 WING, l. Como ajudar a si mesmo. In. FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
INFANCIA. A criança autista: manual para pais. Tradução de Maria das
Graças Carvalho Silva. Espanha, 1982.
202
203
ANEXO A - EXPERIÊNCIAS INSTITUINTES COLABORATIVAS FORJANDO
PRÁTICAS INCLUSIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM RELATO DE
EXPERIENCIA
AZEREDO, JÓRIA Mª DOS SANTOS
BINDA, LUCIANA FITTIPALDI
CORREIA, HELEN CRISTIN
SILVA, Mª DAS GRAÇAS CARVALHO
RESUMO
Este ensaio se constituiu numa produção coletiva na qual se buscou dissertar acerca
das experiências instituintes colaborativas como possibilidade de inclusão de
crianças com diagnósticos de autismo em turmas finais de um Centro Municipal de
Educação Infantil, localizado no Município de Vitória no Estado do Espírito Santo.
PALAVRAS CHAVES: inclusão, experiências instituintes e processos educacionais
colaborativos.
I. INTRODUÇÃO
Esta experiência se desenvolveu num Centro Municipal de Educação Infantil,
localizado no Município de Vitória no Estado do Espírito Santo cuja presença de 02
crianças com diagnóstico de autismo1 em salas diferenciadas, apresentava-se como
um desafio aos processos de inclusão socioeducacional que ali se instituíam
cotidianamente.
O que disparou tal movimento foi o encontro entre as professoras, as estagiárias e
as pedagogas das respectivas turmas e uma aluna em doutoramento do Programa
de Pós Graduação e Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, cuja
finalidade primordial da linha era de favorecer movimentos em prol de uma práxis
significativa colaborativa, isto é fortalecer pontes entre o conhecimento culturalmente
sistematizado e a experiência da vida dos/as alunos/as pela via da valorização das
1
Termo designado como transtorno invasivo do desenvolvimento com influencias nas habilidades
sociais, comunicativas e demais habilidades (RODRIGUES, 2006).
204
experiências instituintes2 que brilham no chão das escolas passiveis de se afirmar
outros processos de aprender/ensinar, como exercícios de autonomia que se
renovam cotidianamente.
Apoiaremo-nos teoricamente neste estudo, nas contribuições de Célia Linhares
(1999, 2000, 2001, 2004 e 2005) aos discorrer sobre as experiências instituintes
como uma interessante possibilidade de se pensar as paisagens escolares atreladas
a imperativos de liberdade, justiça e paz, posto que estas experiências se
constituem em pontes representadas por tendências de interligação entre a
Universidade, a escola básica e os movimentos político-socias, ético-estéticos e
teóricos que enfatizam a participação mais ampla possível aproximando assim, a
escola da vida, como também fortalecendo os protagonismos docentes.
Tínhamos como premissa a intenção de darmos visibilidades às múltiplas práticas
educacionais inclusivas presentes no contexto investigado, a fim de se produzir
coletivamente movimentos que fortalecessem ações emancipatórias (SANTOS,
2004) dos que ali coexistiam, pois compreendíamos a necessidade de se avançar as
algumas perspectivas negativistas acerca do cotidiano escolar na medida em que
estas apenas evidenciam o que já é sabido e, não contribuindo no sentido de se
avançar a esta realidade.
Concebemos ser este uma interessante via a se percorrer, no sentido de
minimizarmos alguns estratégias de resistência que ali se engendram frente ao
aprisionamento que acometem algumas instituições escolares, e que nos tornam
embricados uns com os outros de forma a nos responsabilizar por uma história que
é ao mesmo tempo individual e coletiva apesar dos riscos/abismos que este
perspectiva nos impõe posto que se encontra em constante devir, “[...] pisando em
um terreno movediço, sem certezas e comprovações da história, mas infiltrando-se
nas tramas instituídas, para aproveitar frestas e, assim, afirmar a outridade
(LINHARES & HECKERT, 2005, p.04).
2
Segundo Linhares (2004) as experiências instituinte são ações que buscam ressignificar, realinhar a
escola, dando lugar à diferença, ao mesmo tempo em que luta contra as desigualdades.
205
Para tanto, precisamos ter em mente o fato de que a escola é um espaço constituído
para se mediar para os alunos/as a sistematização das múltiplas formas culturais de
saber, na qual a cultura letrada está inserida, mas que apesar da sua indiscutível
relevância, não é a única existente.
Isto se torna ainda mais desafiador quando, de forma leviana e equivocada,
deslocam os o foco da discussão em busca de encontrarmos um culpado para o que
está posto à realidade escolar, sem promovermos uma análise radical3 acerca do
contexto político, cultural e econômico que perpassam estas discussões. E, em
geral, encontramos sempre na figura do professor/a o artista ideal para se exercer o
papel do vilão destas histórias, principalmente quando nos deparamos com
profissionais massacrados por um capitalismo fascista instalado que sabota nosso
direito a sonhar profissionalidade com mais dignidade, constituindo assim com uma
escola mais humana e acessível a todos/as.
Outro fator a se discutir refere-se à necessidade de nos atentarmos para a escola
que somos4, estabelecendo as possíveis conexões ali engendradas entre a vida e a
sociedade, considerando suas interfaces econômicas, culturais, éticas, políticas e
etc. Sempre pela via da negociação na qual a observação/reflexão/observação
singular e coletiva, constitua-se numa prática cotidiana significativa onde se
promovam religações entre as diferentes esferas de atuação humana a fim de
ampliarmos nossas lentes no sentido de darmos visibilidades às potencias criadores
que ali existem.
E nesse sentido concordamos, mais uma vez, com Linhares ao atentar para o fato
de que,
A busca de alternativas para a educação e, mais particularmente, para as
instituições de ensino e de formação de professores nos levou a
compreender o quanto dependemos de nossa capacidade de interlocução
com os mais variados campos de conhecimentos para projetar os
processos de aprendizagem e ensino escolar [...] (2004, p.118).
Precisamos ressiginificar as paisagens escolares numa perspectiva colaborativa,
substituindo a cultura de guerra por uma cultura da paz apesar das possíveis
armadilhas que esta perspectiva nos impõe no sentido de “[...] nos aproximar não só
3
4
No sentido de ir à raiz do problema.
Linhares, (2004).
206
uns dos outros, mas nos apropriarmos das múltiplas conexões com a vida,
decifrando-as sem perder o sentido da solidariedade (LINHARES, 1999, p.11)”.
Neste aspecto é preciso que neste processo de aproximação com o contexto escolar
real possamos atentar para as múltiplas inter-relações que ali se estabelecem, a fim
de nos apropriar das diversas possibilidades de conexões com a vida onde
imperativos de solidariedade estejam presentes, sendo este o grande objetivo das
Experiências Instituintes tão bem delineadas nos escritos de Linhares (1997; 2000;
20012002), concebidas como ações políticas produzidas na/pela/com a cultura que
caminham rumo a uma lógica mais inclusiva ao vislumbrar ressignificar a escola em
prol da diversidade humana, numa perspectiva ética de respeito a vida, ao humano
em suas múltiplas dimensões num constante devir.
Faz-se necessário, organizar os saberes como forma de emancipação, provocando
soluções que não são universais, posto que devem atuar em diferentes espaços
sociais, mas que precisam entranhar em nossas diferenças e pluralidades contra as
desigualdades postas. Precisamos também poetizar os saberes e a vida, ver além,
vislumbrar na cultura popular e juvenil das escolas a poética como forma de vida
entre as contradições. Logo, devemos alçar a busca por alicerce de ensinoaprendizagem não no mando e nas obediências, mas na transformação do mundo,
no acolhimento das diversidades e nas invenções, aproximando assim, a escola da
vida. Para tanto urge substituir a pressa de se separar erros de acertos por uma
busca incessante por novas lógicas, a partir do que pode-se chamar de “erro”,
desmistificando erros e acertos onde o erro poderá mostrar sabedoria, lógica,
criação.
Como forma de aprofundarmos o debate, iniciaremos a seguir uma reflexão acerca
de uma experiência vivenciada pelo grupo de colaboradores deste estudo, ao longo
do ano de 2007 desenvolvida num Centro Municipal de Educação Infantil
pertencente ao Sistema Público de Ensino, localiza-se numa comunidade classe
média do Município de Vitória/ES, cuja presença de duas crianças autistas, se
apresentava para o grupo como um desafio ao projeto de inclusão socieducacional
deste CMEI, tendo em vista o fato destes alunos apresentarem, ao longo dos anos
207
anteriores que ali estudaram, um comportamento de distanciamento em relação aos
processos educacionais que ali se produziam.
Frente a este contexto, nos organizamos num grupo em auto-formação colaborativa
permanente, cuja premissa maior era de produzirmos dispositivos que nos
auxiliassem com a inclusão destas crianças tendo como foco de formação
continuada em contexto os princípios fundamentais para uma escola inclusiva
bem como os conceitos, as características e as possibilidades de mediação
pedagógica para a inclusão de crianças autistas.
Assim sendo, apresentaremos a seguir como este processo se constituiu no/pelo
contexto, bem como
qual/s as possibilidades defendidas por nós, como
favorecedoras aos processos de inclusão de crianças com necessidades educativas
especiais, no que tange às crianças com diagnóstico de autismo.
II. Vivenciando o desafio da inclusão de crianças com diagnóstico de autismo
num Centro Municipal de Educação Infantil
2.1 Cena 01: A mediação da pedagoga forjando praticas inclusivas
Desde o começo de 2007 temos refletido sobre o nosso papel enquanto educadoras
no processo de inclusão de crianças com diagnóstico de autismo.
As crianças autistas apresentam dificuldades com relação a comunicação e
socialização e iniciamos o ano investindo em um trabalho coletivo de resgate dos
valores de cooperação, solidariedade e de respeito ao outro (diversidade).
Percebemos mudança no comportamento de todos os alunos. E os alunos que
apresentam autismo estão em processo de inclusão em suas salas de aula.
Entretanto ainda nos falta incluí-los no que é o principal objetivo da escola: o acesso
ao processo de aprendizagem.
Após o primeiro mês de aula as professoras observaram o grande interesse dos
alunos pelas imagens das histórias em quadrinhos. Assim decidimos em
planejamento por trabalhar com o projeto “A Turma da Mônica”. Várias atividades
208
foram planejadas para a classe como um todo, e tentamos não perder de vista a
especificidade de cada criança, em especial as crianças autistas. Observamos
grandes avanços, a aprendizagem está acontecendo em todos os aspectos.
Percebo que o “olhar” das professoras para trabalhar a diversidade tem mudado a
medida em que elas percebem a necessidade de uma observação criteriosa do
cotidiano de sala de aula, vendo, também necessário o registro destas observações
como ferramenta fundamental para a avaliação e o repensar a prática buscando a
qualidade do trabalho neste Centro Municipal de Educação Infantil.
Ressaltamos a importância da participação da família neste processo, pois pais e
escola devem refletir juntos, sobre a inclusão dos alunos. Neste sentido
organizamos encontros com professoras, mães, estagiárias e pesquisadora. Nestes
momentos foram estabelecidos diálogos e trocas de experiências que se
transformaram em momentos de aprendizado para todos nós.
A presença dos alunos autistas no CMEI “ZGMC” se apresenta como um grande
desafio para a equipe, pois compreendê-los exige observação constante,
aprendizagens contínuas e, a cada dia surgem dúvidas e incertezas que nos
instigam a buscar novos meios de ensinar e aprender.
A escola tem um compromisso primordial e insubstituível: “[...] introduzir o aluno no
mundo social, cultural e científico; e todo ser humano incondicionalmente tem direito
a essa introdução” (MANTOAN, 2005, p. 7)
Neste sentido é necessário repensar o nosso espaço, buscando proporcionar um
ambiente acolhedor e seguro que favoreça a aprendizagem respeitando os ritmos
individuais das crianças. Sendo necessário também, repensar as políticas públicas,
como por exemplo, o número de alunos nas salas de aula, a valorização dos
profissionais da educação, uma política séria de formação continuada para todos os
profissionais, etc.
Fica assim evidente que à medida que a escola avança o beneficio é de todos.
209
2.2 Cena 02: A sala de Pedro5
Pedro está evoluindo a cada dia em seu processo de construção de conhecimento.
Conhece as letras e sabe dizer o nome de todas as letras do alfabeto, assim como a
escrita correta de algumas palavras. Distingue algumas formas geométricas
existentes em jogos presentes na sala de aula e, também, a contagem dos números
na seqüência correta.
Em relação à sua socialização, ele vem apresentando grandes avanços e se mostra
receptivo aos colegas da sala, permitindo a aproximação em muitas brincadeiras e
na maioria das vezes, ao brincar no pátio da escola, podemos observar um
envolvimento com seus amigos.
Dentro da sala de aula, Pedro resiste um pouco para se sentar na rodinha de
histórias, prestando atenção somente em parte da história contada. Apresenta,
também, resistência em fazer exercícios que envolvam a escrita ou até mesmo
desenhos com giz de cera ou lápis de cor. As atividades realizadas foram à medida
que Pedro apresentou vontade, de forma espontânea, em executar, pois quando não
quer fazer não adianta insistir.
2.3 Cena 01: Os movimentos de Victor6
Ficamos na maior expectativa com a vinda do Victor, que começou a freqüentar a
escola após o carnaval. Logo no primeiro dia apresentou-se muito agitado não
querendo ficar na sala de aula, batia palmas insistentemente e, quando lá ficava,
fixava-se num aparelho de tocar CD, repetindo sempre á mesma música num
volume bem alto.
Neste sentido, buscamos em nosso grupo de estudos, primeiramente entender
quem era Victor, tanto do ponto de vista acadêmico acerca do autismo e suas
particularidades como também e, a meu ver principalmente, quem ele era, suas
preferências e desagrados a fim de que pudéssemos pensar num caminho para
iniciar um processo pedagógico com Victor.
5
6
nome fictício
nome fictício
210
Reconheço que este processo não nos tem sido fácil, entretanto, superada essa
fase, Victor passou a compreender melhor as rotinas de sala e tem demonstrado
alegria e prazer em estar no CMEI e, principalmente em sala de aula, haja vista o
fato dele, ao chegar em sala, tira seu sapato, abre o nosso armário, pega o som, o
porta CD e já percebemos que a hora de ouvir música é muito apreciada por ele,
pois, se deixarmos passa horas, momentos mágicos ouvindo músicas, bem como
demonstra facilidade em memorizar a faixa que se encontra suas músicas e a cor do
CD. Na rodinha, já consegue, por alguns instantes com os demais colegas.
No que tangem às atividades artísticas por ele desenvolvidas com atenção e
entusiasmo podemos destacar: colagem, modelagem, desenho e pintura, também
tem demonstrado interesse por montar quebra-cabeça. Quando pegamos o caderno
para colar bilhetes ou atividades, ele logo pega a cola e nos ajuda a colar atividades
e bilhetes no caderno dos colegas.
Com relação ao projeto desenvolvido em sala de aula cujo foco era “A Turma da
Mônica”, Victor demonstrou interesse em realizar algumas atividades desde que
adaptadas às necessidades pessoais dele, principalmente àquelas relacionadas à
colagem, na verdade, decidimos trabalhar com o Victor atividades que despertassem
o verdadeiro interesse dele, voltado para ele, incentivando-o a realizar o que ele
sabe fazer de melhor.
No momento Victor já reconhece a letra inicial do seu nome em vários portadores de
textos, e todo material oferecido a ele, primeiro ele se familiariza com os mesmos
através do toque dos dedos. Quanto a escrita propriamente dita ele já consegue
traçar algumas letras do seu nome, em alguns momentos com o auxílio de nossas
mãos e em outros, consegue fazer sozinho.
Quanto ao seu comportamento social apresenta ainda algumas dificuldades em
aceitar certos comandos, ficando contrariado, principalmente quando a resposta era:
“não pode”. No entanto apresenta-se como uma criança muito carinhosa com as
pessoas de sua convivência, sendo muito solidário com seus colegas de sala e
professoras.
211
Do início do semestre até o presente momento, já é perceptível que o Victor mudou
bastante, está mais calmo e a cada dia que passa, temos juntos conseguido
avanços significativos no que diz respeito ao desenvolvimento ensino-aprendizagem
dele.
III. ALGUMAS INCONCLUSÕES FINAIS ACERCA DESTA EXPERIENCIA
No que se refere ao crescimento do grupo de diretamente envolvido com o projeto o
que vislumbramos foi o quanto é produtivo e contributivo para nós, unirmos de forma
colaborativa pessoas com saberes diferenciados que, apesar de estarem em
mirantes diferentes, olham para o mesmo horizonte.
Com relação ao processo vivenciado pelo grupo percebemos a necessidade de se
ampliar no contexto, não só deste CMEI, mas também para toda a rede de Ensino
Municipal a discussão que permeia a inclusão de crianças
como necessidades
educacionais especiais, tendo como foco seus limites/possibilidades que nos
impõem à diversidade humana em sua complexidade. Para tanto, é preciso que se
legitime cada vez mais políticas públicas eminentemente voltadas para inclusão
onde se discuta, principalmente, o quantitativo de alunos/as em cada sala de aula.
Neste sentido, precisamos nos atentar para a importância da formação continuada
em contexto engendrando a compreensão acerca de uma ação pedagógico em que
o professor/a se torne um pesquisar constante de suas ações re-inventando práticas
novasoutras práticas em prol da emancipação.
Ao finalizar este reflexão, não poderíamos deixar de nos remeter a Linhares (2004),
quando nos convida a vivenciar de forma colaborativa, os movimentos que se
engendram nas paisagens escolares em busca de se ressiginificar práticas mais
justas e igualitárias,
[...] não se trata de reinventar a escola isoladamente, mas, ao fazê-lo,
contribuir para instituir um mundo de paz, pois já estamos exausto de
ser palco e elenco de tantas guerras que se sofisticam e se globalizam
(como a que se autoproclamam “contra o terror”, mas que o espelham,
212
sem cessar, por toda parte), com o sacrifício da vida, de muitas vidas
com suas infinitas esperanças (p.129)
III. REFERÊNCIAS
1. LINHARES, Célia; NUNES, Clarice. Trajetórias de magistério: memórias e lutas
pela reivenção da escola pública. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.
2. LINHARES, Célia Frazão et al.. Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
3. LINHARES, Célia Frazão, GARCIA, Regina Leite. Observando Jardins no chão de
escolas. IN Simpósio Internacional Crise da Razão e Crise da Política na Formação
Docente. Org. Célia Frazão Linhares e Regina Leite Garcia. Rio de Janeiro:Editora
Agora da Ilha, 2001.
4. LINHARES, Célia (Org.). Os professores e a reinvenção da escola: Brasil e
Espanha. São Paulo: Cortez, 2001.
5. ____________________ De uma cultura de Guerra para uma de paz e justiça social:
movimentos instituintes em escolas públicas como processo de formação docen te.
In: LINHARES, Célia Frazão; LEAL, Maria Cristina. Formação de professores: uma
crítica à razão e à política hegemônicas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. (p.103-130)
6. LINHARES, Célia; HECKERT, Ana Lúcia C. Girar o mundo, girando a escola e a
formação de professores: movimentos instituintes nas escolas públicas.
ANPED SUDESTE, 2005
7. RODRIGUES, R. de C.M.C. Interculturalidade com o universo autista(Síndrome
de Asperger) e o estranhamento docente. Tese de Doutorado apresentado ao
progama de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.
8. SANTOS, B. S. Conhecimento Prudente para uma Vida Decente: “um discurso sobre
as ciências’’ revisitado”. São Paulo, Cortez, 2004.
204
Download

cartografando processos inclusivos na educação infantil em busca