UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
LUISA DE MARILAC DE CASTRO SILVA
CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA
EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA
CRIANÇAS DE ZERO A CINCO ANOS
NATAL/RN
2011
LUISA DE MARILAC DE CASTRO SILVA
CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA
EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA
CRIANÇAS DE ZERO A CINCO ANOS
Dissertação
apresentada
a
Banca
Examinadora do Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Serviço
Social.
Orientadora: Profª Drª Rita de Lourdes de Lima
NATAL/RN
2011
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Silva, Luisa de Marilac de Castro.
Concepções e práticas dos profissionais que atuam na educação infantil
diante da violência doméstica contra crianças de zero a cinco anos / Luisa de
Marilac de Castro Silva. - Natal, RN, 2011.
164 f.
Orientadora: Drª. Rita de Lourdes de Lima.
Dissertação (Mestrado em Serviço social) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pósgraduação em Serviço social.
1. Serviço social - Dissertação. 2. Violência doméstica - Crianças –
Dissertação. 3. Educação infantil – Professor - Dissertação. 4. Prática Docente
– Educação infantil – Dissertação. I. Lima, Rita de Lourdes de. II. Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA
CDU 364.62-47.053.2
LUISA DE MARILAC DE CASTRO SILVA
CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA
EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA
CRIANÇAS DE ZERO A CINCO ANOS
Dissertação
apresentada
a
Banca
Examinadora do Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Serviço
Social.
Aprovado em 29/07/2011
BANCA EXAMINADORA
RITA DE LOURDES DE LIMA
(Presidente)
ELIANA COSTA GUERRA
(Membro Interno)
GLAUCIA HELENA ARAUJO RUSSO – UERN
(Membro Externo)
ROSÂNGELA ALVES DE OLIVEIRA
(Suplente)
Aos meus pais, Juarez e Maria José.
AGRADECIMENTOS
À Profª Drª Rita de Lourdes de Lima, minha adorável orientadora, pela maneira
firme e doce com que conduziu este árduo processo de construção.
À Profª Drª Silvana Mara, sem sua intervenção eu não teria conseguido.
Ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, pelo acolhimento.
Ao meu marido Mardes e aos meus filhos Asafe e Ana Luisa por
compreenderem minha ausência.
À Nita, que cuidou da casa, das compras e das “crianças” enquanto eu
pesquisava.
Aos colegas das turmas 2008 e 2009 pela convivência, antes e depois do
Timor-Leste. Aprendi demais com vocês.
À Igreja Betesda de Natal por apoiar meus sonhos.
RESUMO
O estudo apresenta a problemática da violência doméstica contra crianças de
zero a cinco anos no contexto dos Centros Municipais de Educação Infantil
(CMEI) no município de Natal-RN. Constitui-se em uma análise sob o enfoque
teórico-metodológico de base qualitativa, na perspectiva de totalidade, tendo
como pressuposto a violência doméstica contra crianças nas suas dimensões
sociais, legais, histórico-culturais que norteiam o tema. Objetiva investigar se
os profissionais que atuam na Educação Infantil são capazes de identificar
possíveis situações de violência doméstica contra crianças que se encontram
sob sua responsabilidade e ainda se, em casos de suspeita ou identificação de
casos concretos sabem quais encaminhamentos devem ser adotados. O
percurso estabelecido entre conhecimento e método envolve: análise
conceitual sobre a infância, a educação infantil e a violência doméstica contra
crianças, além da realização de grupos focais com os participantes da pesquisa
com os respectivos registros em diário de campo. Apreendem-se nesse estudo
as contradições existentes no enfrentamento da violência doméstica contra
crianças. Mesmo tendo conhecimento teórico sobre a temática, os profissionais
não conseguem dar os encaminhamentos adequados no sentido de proteger a
criança e fazer cessar a violência. Identifica-se que as condições objetivas de
trabalho dos profissionais que atuam nos CMEI, associadas ao pouco
conhecimento sobre a temática, contribuem para os não encaminhamentos.
Conclui-se que se faz necessário o envolvimento da Secretaria Municipal de
Educação, sem esquecer de que todas as ações têm limites, visto que a
violência doméstica contra a criança está também relacionada a questões
estruturais da sociabilidade capitalista.
Palavras-chave: Violência doméstica. Criança. Infância. Educação Infantil.
RESUMEN
El estudio presenta el problema de la violencia doméstica contra los niños de
hasta cinco años en el contexto de los centros municipales de Educación
Infantil (CMEI) en la ciudad de Natal-RN. Constituye un análisis bajo el enfoque
teórico y metodológico de carácter cualitativo, en vista de la totalidad, con la
asunción de la violencia doméstica contra los niños en su guía sociales,
legales, históricos y culturales con el tema. Tiene como objetivo investigar si los
profesionales que trabajan en Educación Infantil son capaces de identificar las
posibles situaciones de violencia doméstica contra los niños que están bajo su
responsabilidad, e incluso si, en los casos de los casos sospechosos o reales
de la identidad de saber que las referencias deben ser adoptadas. La ruta entre
el conocimiento y el método establecido implica el análisis conceptual de la
infancia, la educación infantil y violencia doméstica contra los niños, además de
la realización de grupos focales con los participantes de la encuesta con sus
registros en un diario de campo. Perciben a sí mismos para el estudio de las
contradicciones en la lucha contra la violencia doméstica contra los
niños. Incluso con los conocimientos teóricos sobre el tema, los profesionales
no pueden dar referencias adecuadas para proteger a los niños y detener la
violencia. Nos encontramos con que las condiciones objetivas del trabajo de los
profesionales que trabajan en CMEI, asociados con poco conocimiento sobre el
tema, no contribuyen a las referencias. Llegamos a la conclusión de que es
necesario la participación de la Secretaría Municipal de Educación, sin olvidar
que todas las acciones tienen limitaciones como la violencia doméstica contra
los niños también se relaciona con problemas estructurales de la sociabilidad
capitalista.
Palabras clave: violencia doméstica. Niño. La infancia. Educación Infantil.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 9
2 CONTEXTUALIZANDO A INFÂNCIA E A EDUCAÇÃO INFANTIL .............. 19
2.1 A Concepção de Criança e a Educação Infantil no Brasil ....................................... 26
2.1.1 Especificidades e funções da Educação Infantil ......................................................... 37
2.1.2 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil ...................... 47
2.2 A Educação Infantil em Natal ....................................................................................... 51
2.2.1 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil no âmbito da
Secretaria Municipal de Educação no município do Natal......................................... 56
3 COMPREENDENDO O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRA CRIANÇAS .......................................................................................... 60
3.1 Modelos explicativos da violência doméstica contra a criança .............................. 68
3.2 Que terminologia empregar? Que conceituação escolher? .................................... 71
3.3 Modalidades de violência doméstica contra crianças .............................................. 74
3.3.1 Violência física ........................................................................................................ 74
3.3.2 Violência psicológica .............................................................................................. 76
3.3.3 Violência sexual ...................................................................................................... 79
3.3.4. Negligência e Abandono ...................................................................................... 81
3.4 A Política Nacional de Assistência Social e o Sistema de Garantia de Direitos:
dois instrumentos na luta contra a violência doméstica infantil .................................... 83
4 OS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS ............................................. 95
4.1 O referencial teórico-metodológico da pesquisa....................................................... 98
4.2 (Re)conhecimento do campo e definições iniciais ................................................. 104
4.3 Concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil diante
da violência doméstica contra a criança ......................................................................... 115
CONCLUSÕES APROXIMATIVAS .................................................................. 137
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 142
ANEXO ................................................................................................................. 155
9
1 INTRODUÇÃO
A violência doméstica contra crianças permeia todas as classes sociais
como violência de natureza interpessoal. É uma realidade dolorosa que sempre
contou com a condescendência da sociedade. Sua prática remonta a idade
antiga e as justificativas que buscam legitimá-la estão fundamentadas em mitos
e preconceitos historicamente constituídos.
Os mitos são crenças resistentes a evidências empíricas cuja
manutenção se explica por desconhecimento, ignorância ou interesses
ideologicamente camuflados1. Nossa sociedade alimenta a falsa ideia de que a
família é sem mácula, perfeita, harmoniosa e que a criança precisa de
disciplina para se tornar um adulto idôneo. Assim, somos levados a crer,
partindo do senso comum2, que todos os pais amam a seus filhos e que são
incapazes de fazer-lhes mal.
Porém, tal mito pode ser facilmente desconstruído à medida que
observamos as diferentes concepções sobre a infância em diferentes tempos e
lugares. A infância não existe como categoria estática, mas muda
historicamente com os diferentes contextos sociais, econômicos e geográficos.
As crianças de hoje não são exatamente iguais às do século passado, nem
serão idênticas às que virão nos próximos séculos. A concepção que nossos
pais tinham de nós quando éramos crianças é muito diferente da concepção
que possamos ter agora de nossos filhos (ARROYO, 1994).
Existem registros apontando que as práticas realizadas pelos adultos,
hoje denominadas de violência doméstica contra a criança, estiveram
presentes em diferentes períodos da humanidade. Os relatos históricos
apontam que o assassinato de crianças pelos pais era uma prática utilizada
1
Mitos também eram narrativas utilizadas pelos povos antigos para explicar fatos da realidade
e fenômenos da natureza que não eram compreendidos por eles. Os mitos antigos foram a
base do pensamento racional.
2
O senso comum descreve as crenças e proposições que aparecem como normal, sem
depender de uma investigação detalhada para alcançar verdades mais profundas como as
científicas.
10
nas sociedades antigas. Nos séculos XI e XII a.C. as crianças eram
propriedade do pai, que podia dispor sobre suas vidas e morte. Naquele tempo
era comum, caso não fossem desejadas, por nascerem com alguma
deficiência, por exemplo, serem abandonadas nas estradas. Qualquer adulto
que as encontrassem poderia transformá-las em escravas. O abandono e a
morte de crianças também aconteciam com vistas ao equilíbrio de sexo, por
motivos religiosos ou por corte de despesas financeiras (CUNHA, 2004).
Com o passar do tempo e com o desenvolvimento das ciências, os
membros da sociedade começam a recusar este tipo de atitude contra as
crianças. O infanticídio foi declarado um crime alvo de punição a partir de 374
d.C. No século XII a Inglaterra promulgou a primeira lei igualando a morte de
crianças ao homicídio de adultos (ASSIS, 1994). Mas a aplicação de castigos
físicos pelos pais e responsáveis às crianças que os desobedecessem ainda
continuava sendo uma prática aceitável. No século XVII, a aplicação de
práticas disciplinares rígidas é ressaltada por Guerra (1989). De acordo com a
autora, nessa época, havia uma atenção aos dizeres bíblicos, especialmente
por parte dos fundamentalistas: “Aquele que poupa a vara, quer mal ao seu
filho, mas o que o ama, corrige-o continuamente” (PROVÉRBIOS 13:24),
“Castigando- o com a vara, salvará sua vida da morada dos mortos”
(PROVÉRBIOS 23:14). Defendia-se, dessa forma, a punição física como
método disciplinar, mas não aquela que pudesse levar a criança à morte
(GUERRA, 1989). De acordo com Ariès (1981), nesse século, a família e a
Igreja utilizaram, com as crianças, o chicote e as correções aplicadas aos
condenados das classes mais populares. No entanto, a aplicação destas
punições traduzia, segundo este autor, um amor obsessivo à criança.
Até o século XII o conceito de infância ainda não tinha sido
“descoberto” e a criança era considerada como um adulto em miniatura. O
começo da descoberta do conceito de infância ocorreu a partir do século XIII,
quando a criança passou a ser retratada nas artes de forma diferente do adulto.
Contudo, o conceito de infância apareceu de forma mais clara somente a partir
do século XIX em diante, quando a criança passou a ser objeto de estudos da
psicologia, psicanálise e pediatria. Estas ciências, recém-descobertas, deram à
criança um sentido de valor e importância, de modo que o século XX foi
11
denominado o “século das crianças”. Assim, inúmeros esforços foram
empreendidos a fim de que este indivíduo fosse protegido, fazendo surgir
vários documentos cujo objetivo seria legitimar esta proteção (ARIÈS, 1981).
De fato, desde a segunda metade do século XX, sob o ponto de vista
normativo, a proteção integral da criança tem avançado e vem permeando
documentos internacionais e ordenamentos jurídicos em todo o mundo. Em
1959 a Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU)3 aprovou a
Declaração dos Direitos da Criança, cujo preâmbulo afirma que em decorrência
da sua imaturidade física e mental, a criança precisa de proteção e cuidados
especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois de seu
nascimento.
O contexto da análise das políticas sociais, da assistência e das
legislações à infância no Brasil no período histórico compreendido entre os
anos 60 e 80 do século XX reflete as continuidade e descontinuidades quanto à
garantia dos direitos.
Nos anos 1960, o país se insere na conjuntura de crescente
organização dos movimentos populares, que exigiam reformas de base em
todas as áreas, ocasionando importantes conquistas. Mas o Golpe Militar de
1964 interrompeu o avanço da democracia no país por mais de 20 anos,
afetando diretamente o avanço na esfera da conquista dos direitos civis.
A área infanto-juvenil, durante a Ditadura Militar (1964-1985), foi
pautada por dois documentos significativos e indicadores da visão vigente: a
Lei que criou a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Lei 4.513 de
1/12/64) e o Código de Menores de 79 (Lei 6697 de 10/10/79).
A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) tinha como
objetivo formular e implantar a Política Nacional do Bem Estar do Menor, e se
propunha a ser a grande instituição de assistência à infância, cuja linha de
3
Trata-se de uma organização internacional cujo objetivo declarado é facilitar a cooperação em
matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico,
progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial. A ONU foi fundada em 1945
após a Segunda Guerra Mundial para substituir a Liga das Nações, com o objetivo de deter
guerras entre países e para fornecer uma plataforma para o diálogo. Ela contém várias
organizações subsidiárias para realizar suas missões (Disponível em http://www.onubrasil.org.br. Acesso: 22/07/2011).
12
ação tinha na internação, tanto dos abandonados e carentes como dos
infratores, seu principal foco.
O Código de Menores de 1979 constituiu-se em uma revisão do Código
de Menores de 1927, não rompendo, no entanto, com sua linha principal de
arbitrariedade, assistencialismo e repressão junto à população infanto-juvenil.
Esta lei introduziu o conceito de "menor em situação irregular", que reunia o
conjunto de meninos e meninas que estavam dentro do que alguns autores
denominam infância em "perigo" e infância "perigosa". Esta população era
colocada como objeto potencial da administração da Justiça de Menores.
No final da década de 1970 e parte dos anos de 1980, na esteira do
processo de redemocratização do país, os movimentos sociais populares
articulados por grupos de oposição ao então regime militar surgiram por
diversas regiões, contribuindo para a conquista de direitos sociais novos,
inscritos na Constituição de 1988.
Nesta perspectiva, a Constituição Federal do Brasil (CF), promulgada
em 1988, determina que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988,
Art.227)
Portanto,
compete
ao
Estado
formular
políticas,
implementar
programas e viabilizar recursos que garantam à criança desenvolvimento
integral e vida plena.
Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069
de 13 de julho de 1990 (BRASIL,1990), regulamentou os artigos da
Constituição Federal referente à garantia de proteção à infância e adolescência
13
e passou a ter força de lei, reconhecendo as crianças e adolescentes como
sujeitos de direito.
Em razão de sua dependência física e emocional em relação ao adulto,
para não mencionar sua dependência econômica, a criança detém vários
direitos humanos. Tais direitos não devem apenas ser respeitados pelos
adultos, antes, faz-se necessário que a sociedade se conscientize sobre seu
papel social de proteção à infância.
Assim, com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente,
a concepção de atendimento a criança e ao adolescente mudou, pois essa lei
garante que suas necessidades sejam atendidas de forma prioritária, por parte
da família,
da sociedade e do Estado. Portanto a esse grupo é
assegurado direitos especiais, ou seja, ao mesmo tempo em que deve ser
protegido, precisa ser respeitado, por causa de sua condição de pessoa
humana em desenvolvimento físico, moral e psicológico. (BRASIL, 1990).
As legislações mencionadas acima inserem a criança brasileira no
mundo dos direitos humanos e determinam políticas de atendimento e de
proteção à criança e ao adolescente, sendo especificadas ainda medidas de
punição aos agressores. Mas apesar dos avanços, sabe-se que diariamente
milhares de crianças são submetidas as mais variadas formas de violência.
Entre elas, a violência doméstica se destaca como um câncer silenciosamente
espalhado pelas casas de qualquer cidade.
Em uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Estudos da Criança
(LACRI) da Universidade de São Paulo (USP) entre 1996 e 2007 foi feito um
levantamento do número de casos notificados de violência doméstica contra
a criança, em três meses do primeiro semestre de cada ano, nas instituições
de proteção dos 182 municípios aos quais pertenciam os alunos inscritos
num curso oferecido por eles. Os resultados obtidos apontam para 159.754
casos notificados (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007).
Em outra pesquisa, realizada em Ribeirão Preto/São Paulo, buscou-se
mensurar a prevalência de violência doméstica, por amostragem, em crianças
matriculadas
de
1ª
a
4ª
série
do
Ensino
Fundamental
nos
estabelecimentos de ensino da rede pública e particular. Os resultados
14
apontaram – numa amostra de 3.885 crianças, a existência de 152 casos de
violência doméstica (FALEIROS, 2006).
Dessa forma, é notório que a violência contra a criança no ambiente
familiar persiste nos dias atuais, demonstrando a fragilidade da infância
brasileira bem como a dificuldade de planejar e executar ações visando o
enfrentamento deste fenômeno. Diante do exposto até aqui se evidencia a
necessidade urgente de promovermos reflexões e ações que visem ao
rompimento do ciclo de violência contra a criança.
A questão da violência contra crianças é, pois, o grande desafio
colocado para todos os segmentos da sociedade, conforme está posto na
Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988) e no Estatuto da Criança e
do Adolescente (BRASIL, 1990). Dessa forma, a atuação frente à violência
deixa de ser privilégio da segurança pública e da justiça, para ser também
responsabilidade dos demais setores governamentais bem como da sociedade
civil.
Assim, a responsabilidade pela luta contra a violência doméstica
dirigida
à criança
deve
ser compartilhada
pelas
diversas
instituições
sociais, inclusive pelas instituições educacionais, locais onde as crianças
passam boa parte dos seus dias.
Nesse contexto, as instituições educativas infantis especialmente as
creches e pré-escolas têm enorme destaque, tendo em vista que os estudos
sobre a violência doméstica apontam as crianças da faixa etária atendida
pela Educação Infantil como sendo as mais vulneráveis à violência familiar. No
entanto, pesquisas indicam que profissionais de creches e pré-escolas têm
dificuldades para a identificação do fenômeno e que, no Brasil, a participação
dessas instituições na notificação de casos aos órgãos de proteção da infância
é muito pequena (AZEVEDO; GUERRA, 2006).
Estando na função de assessora pedagógica da SME, atuando e
discutindo a temática com profissionais do órgão central e das unidades de
ensino, bem como com profissionais de outras secretarias e instituições não
governamentais, algumas perguntas foram surgindo. Qual o papel do setor
educacional e dos profissionais da educação diante da violência doméstica
contra as crianças? Como esses profissionais têm se posicionado diante dela?
15
Que discursos sustentam sua prática? Por que o tema suscita tantas angustias
e medos quando os profissionais são chamados a fazer alguma coisa em favor
das crianças? Por que muitos profissionais não conseguem ver a violência da
qual as crianças são vítimas? Que estratégias poderiam ajudar a dirigir tais
questões junto a esses profissionais de modo a tornar efetiva alguma ação
nesta área?
Diante dessa realidade, nossa pesquisa teve como objetivo investigar
se os profissionais lotados nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI)
no município de Natal-RN são capazes de identificar possíveis situações de
violência doméstica contra as crianças de zero a cinco anos que se encontram
nas suas salas de aula e se sabem quais encaminhamentos devem ser
adotados quando se deparam com casos suspeitos ou ocorridos.
Os CMEI são instituições educativas infantis, que atendem crianças de
zero a três anos (creche) e de quatro a cinco anos (pré-escola), conforme a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394 de 20 de
dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), que estabelece a Educação Infantil como
primeira etapa da educação básica. Os CMEI foram criados no município de
Natal a partir dos anos 1990 na esteira das discussões abertas pela CF sobre o
significado e a dimensão das funções da creche e pré-escola, no sentido de
superação aos modelos assistencialistas que prevaleceram historicamente.
Atualmente
a
Rede
municipal
conta
com
61
CMEI,
atendendo
aproximadamente 15 mil crianças.
Geralmente, as crianças passam muitas horas do seu dia no ambiente
escolar (no caso específico deste trabalho, nos CMEI) e acreditamos que um
profissional atento e com formação adequada será capaz de perceber se uma
criança que está sob sua responsabilidade é vítima de violência doméstica,
embora as evidências de situações concretas sejam compostas por múltiplos
indicadores que dificultam o diagnóstico.
É nesse contexto que se insere a presente pesquisa, que se justifica
pela
insuficiência
de
trabalhos
acadêmicos
que
discutam
sobre
a
responsabilidade e o papel dos profissionais que atuam das creches e préescolas na defesa dos direitos das crianças e que se dediquem a estudar a
16
Educação Infantil como espaço de proteção à criança no que se refere à
violência doméstica.
A nossa opção metodológica foi por uma pesquisa qualitativa,
utilizando o grupo focal como norteador das questões, proporcionando aos
participantes a expressão livre de suas ideias, opiniões e experiências, que
foram devidamente registradas em um diário de campo. A decisão pela
abordagem dos diferentes profissionais que atuam nos CMEI deu-se no sentido
de apreendermos suas concepções e práticas, enquanto grupo, diante da
violência doméstica contra as crianças atendidas naqueles espaços educativos.
Para compreendermos quais concepções e práticas existem na
Educação Infantil a respeito da violência doméstica contra crianças, mais
especificamente no contexto dos CMEI, fez-se necessário uma discussão
sobre infância, Educação Infantil e violência doméstica.
Discutir sobre as concepções de infância construídas historicamente
nos permitiu compreender que as formas de tratamento, algumas vezes cruéis,
que eram dadas à criança no decorrer dos tempos históricos, nem sempre
foram vistas como práticas violentas.
A discussão sobre Educação Infantil possibilitou-nos visualizar as
modificações ocorridas tanto em termos de legislação quanto em termos de
concepções sobre a educação oferecida para a faixa etária compreendida entre
zero e cinco anos.
Ao discutir o conceito e as modalidades de violência doméstica contra
crianças nos deparamos com concepções que se complementam e
aprendemos que há necessidade de refletirmos sobre as especificidades de
cada uma delas face ao recorte temático ao qual nos propomos.
Assim, para apresentarmos o percurso desta pesquisa, este trabalho
se divide em três capítulos além da Introdução e Conclusões Aproximativas.
No segundo capítulo procuramos contextualizar a infância e a
Educação Infantil no Brasil e em Natal, pois sabemos que a Educação infantil
sofreu grandes transformações nos últimos tempos e o processo de aquisição
17
de uma nova identidade para as instituições que trabalham com crianças foi
longo e difícil. Durante esse processo, nasce uma concepção de criança,
totalmente diferente da visão tradicional. A criança, que por séculos foi vista
como um ser sem importância, quase invisível, passou a ser considerada em
todas as suas especificidades, dando origem a novas exigências sociais e
econômicas, conferindo à criança um papel de investimento futuro. Desta
forma, a criança passou a ser valorizada e, portanto o seu atendimento teve
que acompanhar os rumos da história. Sendo assim, de uma perspectiva
assistencialista, a Educação Infantil transformou-se em uma proposta
pedagógica aliada ao cuidar, procurando atender a criança de forma integral,
respeitando as suas especificidades. Nessa perspectiva nossa pesquisa
propõe uma discussão sobre a evolução histórica da concepção de infância e
sua repercussão no atendimento destinado ás crianças em instituições de
Educação Infantil.
No capítulo três, buscamos compreender o fenômeno da violência
doméstica contra crianças, apresentando-a nas modalidades física, psicológica,
sexual, negligência e abandono, a partir da conceituação de violência
doméstica como sendo todo ato ou omissão praticado pelos responsáveis da
criança contra ela, capaz de causar-lhe dano, seja este intencional ou não.
Por último, apresentamos o porquê da pesquisa, as estratégias
adotadas e as incursões feitas em campo, justificando a relevância desse
trabalho diante da necessidade de estudos que busquem compreender o papel
da Educação Infantil no enfrentamento da violência doméstica contra as
crianças de zero a cinco anos.
A abordagem teórico-metodológica contemplou autores tais como:
Colin Heywood (2005) e Philip Ariés (1981) com concepções distintas, mas que
se complementam na discussão a respeito da infância. A discussão sobre
Educação Infantil pautou-se nos estudos de Nascimento (1999), Costa (2003),
Oliveira (2001) etc. Na reflexão sobre violência doméstica foram contempladas:
Eva Faleiros (2002), Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra (1994, 1998,
2005, 2006, 2007), Dalka Ferrari e Tereza Vecina (2002), entre outras.
18
Na pesquisa de campo buscamos apreender as concepções e práticas
dos profissionais que atuam na Educação Infantil através dos grupos focais
realizados
em
cinco
encontros
com
educadores
infantis,
gestores,
coordenadores, merendeiras e auxiliares de serviços gerais, em um total de 31
profissionais que atuam nos CMEI. Os grupos focais foram realizados entre os
meses de setembro/2010 e fevereiro/2011.
Esta pesquisa se propõe a ensaiar algumas respostas, a partir do lugar
dos próprios profissionais inseridos na Educação Infantil no município do NatalRN. Pretende compreender como esta demanda chega aos CMEI e as
estratégias que vêm sendo utilizadas para enfrentá-la, na esperança de
avançar em busca de pistas que nos ajudem a pensar saídas para a violência
doméstica da qual nossas crianças são vítimas. Portanto se deu paralelamente
ao trabalho que desenvolvemos no Setor de Ações e Projetos (SAPEI) do
Departamento de Educação Infantil (DEI), na expectativa de lançar luz sobre a
importância dos profissionais que atuam na Educação Infantil enquanto
agentes estratégicos na perspectiva de proteção das crianças atendidas nos
CMEI no município do Natal-RN.
A pesquisa mostrou que os profissionais que receberam algum tipo de
capacitação sobre a temática da violência doméstica contra a criança são mais
sensíveis na identificação dos casos do que aqueles que não tiveram a
oportunidade de participar de formações específicas. No entanto, ambos os
profissionais mostram-se receosos de fazer os encaminhamentos necessários
quando se deparam com situações concretas de violência doméstica contra as
crianças que são atendidas nos CMEI e acabam por não fazê-los.
19
2 CONTEXTUALIZANDO A INFÂNCIA E A EDUCAÇÃO INFANTIL
O que vem a ser infância? O senso comum costuma colocar a infância
como sendo a fase da vida alegre, despreocupada, o melhor momento da vida.
Mas basta olhar ao redor, para ver crianças na rua, sofrendo violências de
todos os tipos. Será possível pensar que esses meninos e meninas não sejam
crianças por não possuírem todos os atributos da infância? Para Frota (1995) a
ideia da infância como um tempo de felicidade não pode ser garantida para
todos.
Segundo
ele
existe
uma
multiplicidade
de
infâncias
na
contemporaneidade, assim como existem diferentes concepções sobre a
infância a partir de diferentes pontos de vista teóricos e olhares em nada
neutros.
Etimologicamente a palavra infância vem do latim “infantia” e refere-se
ao indivíduo que ainda não é capaz de falar. Essa incapacidade estende-se até
os sete anos, idade da razão. Segundo a Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989), aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, criança
são todas as pessoas menores de dezoito anos de idade. Já de acordo com o
Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), é considerada criança a
pessoa até os doze anos incompletos. No entanto, a idade cronológica não é
suficiente para caracterizar a infância.
Infância tem um significado genérico e, como qualquer outra
fase da vida, esse significado é função das transformações
sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade
e a cada uma delas é associado um sistema de status e de
papel (FROTA, 2007, p.147).
Para Ariès (1981) a infância é uma invenção da modernidade, criação
de um tempo histórico e de condições socioculturais determinadas. Trata-se de
uma categoria social construída e não uma herança natural. Segundo o autor,
a referência histórica à infância aparece muito tardiamente, somente no século
XVIII. Até então, as crianças eram tratadas como pequenos adultos e os
cuidados especiais eram reservados apenas aos primeiros anos de vida. A
20
partir dos três ou quatro anos já participavam das mesmas atividades dos
adultos. Em seus estudos Ariès aponta que, pelo fato da sociedade tradicional
da Idade Média não ver a criança como um ser diferente do adulto, só havia
registro de crianças em referências biográficas, onde apareciam segundo o
olhar de quem contava a história. Por vezes eram citadas também em registros
dispersos nos testamentos, diários e documentos funerários.
Heywood (2005), contrapondo-se às ideias de Ariès, mostra que havia
uma infância presente na Idade Média e que a Igreja já se preocupava com a
educação de crianças desde então. Ele afirma que é possível encontrar
indícios de um investimento social e psicológico nas crianças já no século XII.
Segundo ele, Ariès foi ingênuo no trato com suas fontes históricas e exagerado
ao afirmar a inexistência de infância na civilização medieval, pois nos séculos
XIV e XV já existia uma consciência de que as percepções de uma criança
eram diferentes das dos adultos. Este autor diz ainda que a moderna ideia da
infância só se cristaliza definitivamente no período histórico compreendido
entre os Séculos XVII e XVIII, assumindo um caráter distintivo e constituindo-se
como um grupo humano que não se caracteriza nem pela incompletude, nem
pela imperfeição, tampouco pela miniaturização do adulto, mas por uma fase
própria do desenvolvimento humano.
Esta “evolução” nas concepções sobre a infância veio no bojo da
emergência do capitalismo e das consequentes transformações pelas quais
passaram a família. Novas necessidades sociais são criadas a partir de então
nas quais a criança passará a ocupar um lugar de destaque na dinâmica
familiar, saindo dos cuidados das amas para o controle dos pais e,
posteriormente, da escola, passando pelo acompanhamento dos diversos
especialistas e das diferentes ciências (PETRY; RESMINI; FRANCO; MEIMES,
2010).
A infância e a criança tornam-se objetos de estudos e saberes
de diferentes áreas, constituindo-se num campo temático de
natureza interdisciplinar. Independente da forma como era
olhada, do posicionamento teórico que se tivesse sobre ela, a
infância tornou-se visível como um estatuto teórico (FROTA,
2007, p.149).
21
Como se vê, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a noção
de “pessoa humana”, por muito tempo o conceito de infância não foi
problematizado na construção científica. Sendo a criança um ser em processo
de transição para se tornar uma pessoa de fato e de direito, a complexidade da
realidade social das crianças foi anulada por demasiado tempo (SARMENTO;
PINTO, 1997).
No Brasil, a história da infância se confunde com a história da
exploração e do abandono, visto que desde seus primórdios há diferenciação
entre as crianças, segundo sua classe social. E a entrada na Modernidade4 não
trouxe muita diferença para os pequenos brasileiros. O sonho de infância feliz
não parece ter sido vivido pelos “menores”.
O termo “menor” foi inicialmente utilizado para designar uma faixa
etária associada, pelo Código de Menores de 1927, às crianças pobres,
passando a ter, posteriormente, uma conotação valorativa negativa. Menores
eram aquelas crianças em situação de pobreza, a qual se associava uma
provável marginalidade, pertencentes às famílias com uma estrutura diferente
da convencional5. Os "menores" foram entregue aos cuidados do Estado, que
tratou
de
institucionalizá-los,
submetendo-os
a
tratamentos
cruéis
e
preconceituosos.
Por entender o “menor" como uma ameaça à sociedade, o primeiro
Código de Menores, acabou por considerar tais crianças menos humanas,
menos crianças do que as outras. Felizmente, com a aprovação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, em 1990, o termo "menor" foi abolido e todas as
crianças foram reconhecidas como sujeitos de direitos, com necessidades
específicas, decorrentes de seu desenvolvimento peculiar, e que, por conta
disso, deveriam receber uma política de atenção integral a seus direitos
construídos social e historicamente (RIZZINI, 2000).
4
Por Modernidade entende-se o “período histórico que começou na Europa Ocidental no séc.
XVII com uma série de transformações sócio estruturais e intelectuais profundas e atingiu a
maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do iluminismo e depois como
forma de vida socialmente consumada com o desenvolvimento da sociedade industrial
capitalista (e depois comunista)" (BAUMAN, 1999, p. 299-300).
5
A família convencional segue o modelo nuclear composto pelo pai, mãe e filhos(as).
22
Ocorre que a distinção entre infância e idade adulta, produzida pela
modernidade ocidental, não corresponde a uma só ideia da infância. Não há
uma natureza universal da infância, tampouco a evolução das concepções da
infância ocidental equivalem ao que ocorre noutras partes do mundo. As
concepções de infância variam de acordo com a cultura, o espaço geográfico, a
classe social, o grupo étnico, a religião predominante ou até mesmo de acordo
com o nível de instrução.
Por isso, o estudo das concepções da infância deve levar em conta os
fatores de heterogeneidade que as geram, sem esquecer que sempre haverá
em um dado contexto espaço-temporal, uma concepção que se torna
dominante. E para não se deixar ofuscar pela luz que procede das concepções
sobre a infância que não são expressas por palavras, mas que se apresentam
de outras formas torna-se indispensável o estudo dessas concepções sob a
forma de imagens sociais.
Sarmento (2007) comenta algumas dessas imagens, lembrando que
elas não correspondem a etapas históricas, mas coexistem e sobrepõem-se.
São elas: a imagem da criança má, baseada na ideia do ‘pecado original’ e
associada à conceituação do corpo como uma realidade a ser controlada; a
imagem da criança inocente, fundada no mito romântico da infância como a
idade da pureza e da bondade; a imagem da criança imanente, na qual a
criança é uma tabula rasa a ser moldada pela sociedade; a imagem da criança
naturalmente desenvolvida, que sofre um processo de maturação e se
desenvolve em estágios e, ainda, a imagem da criança inconsciente, que tem
em Freud e na Psicanálise a sua referência. O autor prossegue na sua reflexão
afirmando que essas imagens da infância não são compartimentos estanques,
mas dispositivos interpretativos que se revelam no plano da justificação da
ação dos adultos com as crianças.
Se na Idade Média a criança era considerada um pequeno adulto que
executava as mesmas atividades dos mais velhos, a partir do século XVI surge
a concepção da criança ingênua, alvo da paparicação dos adultos e também a
ideia da criança incompleta, alvo da moralização a partir da perspectiva do
adulto. Esta concepção se gesta em conjunto com a ideia de família moderna
23
(modelo convencional) e com a ideia do amor materno incondicional. Neste
sentindo, a ideia de família, maternidade e paternidade que conhecemos hoje é
uma construção histórico-social.
Se na sociedade feudal, a criança começava a trabalhar como adulto
aos sete anos aproximadamente, na sociedade burguesa ela passa a ser
alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação
futura6. Surgem assim as primeiras propostas de educação e moralização
infantil.
Na Idade Moderna a visão que se tinha da criança foi modificada
devido às mudanças sociais e intelectuais trazidas pela Revolução Industrial, o
Iluminismo7 e a constituição de estados laicos. É provável que as rápidas e
profundas mudanças nas circunstâncias sociais, culturais e econômicas
tenham evidenciado os problemas relacionados às infâncias e às condições de
vida das crianças, fazendo com que estas temáticas merecessem uma análise
qualificada no campo científico e consequentemente, contribuído para a
mudança nas concepções sobre a infância (COSTA, 2008).
A ciência moderna ainda não havia triunfado e a educação nascia com
uma função prática, ora de disciplinar, ora de proporcionar conhecimentos
técnicos que, posteriormente, configuram uma escola para a elite e outra para
o povo.
No Século XVII John Locke defendia a educação na sua acepção
disciplinar, onde o aprendizado se concretizava por meio do melhor método
aplicado, resultando no desenvolvimento da capacidade mental de uma pessoa
e na formação de seu caráter (CAMBI, 1999).
No século XVIII Rousseau publica a obra “O Emílio” (1762) onde a
função da educação se caracterizava por uma concepção de mundo baseada
na igualdade, no respeito ao indivíduo, não impondo a este nenhum padrão
institucional de aprendizado que o moldasse ao ambiente social vigente. A
6
Lógico que esta postura se dava para com as crianças da classe burguesa. As crianças filhas
dos(as) trabalhadores(as) começavam a trabalhar desde cedo para ajudar no sustento da
família.
7
Começa com a ilustração (o século das luzes - séc. XVI ao XVIII ) e atravessa os diversos períodos
históricos, baseia-se na exaltação da razão e na capacidade do homem melhorar o mundo e a sociedade
(NETTO, 2002).
24
educação deveria ser desenvolvida no cotidiano dos afazeres laborais, sem
restrições ou métodos preestabelecidos. Segundo ele a educação não deveria
instruir e sim permitir que as tendências naturais chegassem aos seus
resultados. A teoria naturalista da educação de Rousseau culminou na
chamada “educação nova”8, o que desencadeou posteriormente na concepção
psicológica, sociológica e científica da educação (CAMBI, 1999).
Depois de Rousseau a educação produziu uma teorização pedagógica
cada vez mais atenta para o valor da infância. São sucessores de Rousseau e
propagadores de suas teorias sobre a educação: Pestalozzi, Froebel e Herbart
(CAMBI, 1999).
O
pedagogo
suíço
Johann
Heinrich
Pestalozzi
(1746-1827),
influenciado pela concepção naturalista de Rousseau, solidificou a ideia da
educação como instrumento de regeneração social. Destacou, também, a
importância da educação em massa, colocando em evidência o indivíduo a ser
educado, enquanto membro da sociedade. A sua pedagogia considerava o
papel do professor como fundamental e produziu a convivência com uma
pluralidade de métodos.
O filósofo alemão Johann Friedrich Herbart (1776-1841) focalizou suas
ideias no método de ensinar, e não na pessoa do aprendiz. Ao contrário de
Rousseau,
valorizava
os
elementos
externos
da
aprendizagem,
que
transcendiam o educando no processo educativo. Na sua teoria, o professor e
o processo de instrução são realçados.
O educador alemão Friedrich Froebel (1782-1852), com a publicação
de sua obra “Educação do homem” em 1826, contrapõe-se ao pensamento de
Herbart. Froebel preocupou-se especificamente com desenvolvimento e
possibilidades educativas adotadas na infância, apontando a escola como a
instituição onde a criança descobrirá a sua própria individualidade, realizando
sua personalidade e desenvolvendo o seu poder de iniciativa e execução.
Pestalozzi, Froebel e Herbart foram os três mais importantes
pedagogos do século XIX, visto que ofereceram os fundamentos para que a
8
Corrente educacional que trata de mudar o rumo da educação tradicional, intelectualista e
livresca, dando-lhe um sentido mais vivo e ativo (SAVIANI, 2011).
25
criança se tornasse o sujeito educativo por excelência, “reclamando o ‘jardim
de infância’ ao lado da escola, porque é justamente na idade pré-escolar que
se desenvolve o germe da personalidade humana” (CAMBI, 1999, p. 387).
No curso do século XIX tanto as ciências humanas quanto as
instituições educativas burguesas colocaram a criança cada vez mais no centro
da pedagogia. A criança foi então assumida na sua especificidade psicológica e
na sua função social. A infância foi vista como uma idade radicalmente
diferente em relação à adulta e este conhecimento tornou-se tão dominante
que o século XX foi considerado “o século da criança”.
Dessa forma, a educação das crianças em estabelecimentos
específicos de Educação Infantil vem crescendo no mundo inteiro e de forma
bastante acelerada, seja em decorrência da necessidade da família contar com
uma instituição que se encarregue do cuidado e da educação de seus filhos
pequenos, principalmente quando os pais trabalham fora de casa 9, seja pelos
argumentos advindos das ciências que investigaram o processo de
desenvolvimento e aprendizagem da criança.
Em termos históricos, as concepções educacionais podem ser
classificadas em tradicionais e renovadoras. A primeira tendência foi dominante
até o final do século XIX. A característica própria do século XX é exatamente o
deslocamento para a segunda tendência que veio a se tornar predominante.
As correntes tradicionais desembocavam sempre em uma teoria do
ensino. Pautando-se pela centralidade da instrução (formação intelectual)
pensavam a escola como uma agência centrada no professor, cuja tarefa é
transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade segundo uma
gradação lógica, cabendo aos alunos assimilar os conteúdos que lhes eram
transmitidos.
Por sua vez, as correntes renovadoras, desde seus precursores como
Rousseau e, de alguma forma, também Pestalozzi e Froebel, desembocam
sempre na questão de como aprender, isto é, em teorias da aprendizagem, em
9
Sem dúvida, em finais do século XIX e início do século XX com as lutas feministas por
igualdade entre homens e mulheres e a inserção feminina no mercado de trabalho, o
investimento e estudos sobre Educação Infantil torna-se uma necessidade social premente.
26
sentido geral. Pautando-se na centralidade do educando, concebem a escola
como um espaço aberto à iniciativa dos alunos que, interagindo entre si e com
o
professor,
realizam
a
própria
aprendizagem,
construindo
seus
conhecimentos.
Essa tendência ganha força no início do século XX torna-se
hegemônica sob a forma do movimento da Escola Nova até o início da
segunda metade daquele século e, diante das contestações críticas que
enfrenta, assegura seu predomínio assumindo novas versões, entre as quais a
pedagogia produtivista10, a concepção libertária11, as pedagogias críticas12
(SAVIANI, 2011).
A concepção de educação aqui defendida vê a criança como um ser
social que nasce com capacidades afetivas, emocionais e cognitivas, capaz de
interagir e aprender através de trocas sociais com outras crianças e adultos
(BRASIL, 1998).
Assim, considera-se que a Educação Infantil terá um papel cada vez
maior na formação integral da criança, no desenvolvimento de sua capacidade
de aprendizagem e na elevação do nível de inteligência, mesmo porque
inteligência não é herdada geneticamente nem transmitida pelo ensino, mas
construída pela criança, a partir do nascimento, na interação social mediante a
ação sobre os objetos, as circunstâncias e os fatos (VIGOTSKY, 1998).
2.1 A Concepção de Criança e a Educação Infantil no Brasil
Estudos e pesquisas apontam que a infância é uma importante fase
para o desenvolvimento integral da criança (VIGOTSKY, 1998; PIAGET, 1978;
LURIA; YODOVICH, 1985). Com base nessa constatação, a Educação Infantil
adquiriu importância crescente no cenário das políticas sociais brasileiras.
10
Orientação pedagógica inspirada na teoria do capital humano, cujo pressuposto central é que
a educação é um investimento que permitirá ao indivíduo aumentar seus rendimentos
(ALMEIDA; PEREIRA, 2011).
11
Desempenhou um papel importante na pedagogia do movimento operário. Segue a
tendência filosófico-política da educação como transformação da sociedade (SILVA, 2011).
12
Operaram como contraponto às ideias sistematizadas na teoria do capital humano, buscando
aportes em concepções marxistas (LIBÂNIO, 2011).
27
Muitos estudos vêm mostrando a importância desse período
para o lançamento dos alicerces de um desenvolvimento
integral, sadio e harmonioso da criança, do jovem e do adulto.
A produção acadêmica sobre o tema tem aumentado, bem
como também a consciência da necessidade de uma política
de Educação Infantil, integrada e articulada nas três esperas de
governo: União, estados e municípios (FONSECA, 1999,
p.198).
As primeiras iniciativas voltadas à criança em instituições brasileiras
tiveram um caráter higienista e o trabalho – realizado por médicos e damas
beneficentes – se dirigia contra o alto índice de mortalidade infantil.
Até meados do século XIX praticamente não existia no Brasil um
atendimento às crianças pequenas em instituições como creches e pré-escolas
e as poucas instituições existentes tinham como objetivo precípuo suprir as
necessidades de alimentação, higiene e segurança física das crianças
pertencentes às famílias de baixa renda.
Mas apesar do que muitas pesquisas tentam demonstrar, a concepção
médico-higienista não era hegemônica. A influência religiosa, assim como a
jurídico-policial13 também marcariam as concepções presentes nas instituições
pré-escolares nesse período histórico (SOUZA, 2007).
Os primeiros jardins de infância brasileiros, voltados para a elite, foram
criados no Rio de Janeiro e em São Paulo, inspirados nas ideias do educador
alemão Froebel. No setor privado, encontram-se as primeiras experiências com
jardim de infância no Colégio Menezes Vieira no Rio de Janeiro, desde 1875, e
na Escola Americana em São Paulo, desde 1877.
Em 1877, os presbiterianos fundaram um jardim de infância na
cidade de São Paulo. De acordo com o seu diretor, o reverendo
Chamberlain, o jardim das crianças, será baseado no sistema
Froebel e tem por fim o desenvolvimento intelectual desde a
13
Esta concepção estava ligada à ideia de infância moralmente abandonada e tinha como
objetivo evitar a criminalidade que estaria relacionada à pobreza, percebida como uma ameaça
à tranquilidade das elites.
28
mais tenra idade, por métodos intuitivos e naturais, tendo
sempre em vista as necessidades físicas das crianças,
atraindo-as ao conhecimento e desenvolvimento das
faculdades observadoras, sem fadigas, sem desgostos, sem
estudos forçados, sem constrangimentos dos corpos,
aprendendo dos próprios brinquedos e alcançando assim os
benéficos efeitos da disciplina e do uso dos sentidos
(RAMALHO, 1976, p. 84-85).
Embora houvesse referências à implantação de jardins-de-infância
para atender à pobreza, estas não encontravam o menor eco em iniciativas
concretas. Em São Paulo, o jardim-de-infância da Escola Normal Caetano de
Campos, ligado ao setor público, foi inaugurado apenas em 1896, mais de vinte
anos depois das fundações das primeiras experiências da iniciativa privada
neste sentido. No Rio de Janeiro, as primeiras propostas de instituições préescolares para as crianças de menor poder aquisitivo aparecem somente em
1899, com a inauguração da creche da Companhia de Fiação e Tecidos
Corcovado. “Esta foi a primeira creche brasileira para filhos de operários de
que se tem registro. Neste ano, também ocorreu a fundação do Instituto de
Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro” (SOUZA, 2007, p.15).
Porém,
o
desconhecimento
dos
objetivos
da
pré-escola
e,
consequentemente, de sua função educativa, levou diversos segmentos da
sociedade brasileira a associar todas as instituições infantis à casas
assistenciais de cunho religioso. Para o senso comum o jardim de infância não
passava de uma instituição de caridade para crianças desvalidas (KISHIMOTO,
1988).
Mas a partir de 1902, quando o modelo francês de escolas infantis,
mais exigentes que o jardim de infância, se fez sentir no Brasil, o atendimento
educacional direcionado ao público infantil foi se firmando de modo que, em
1919, foi criado o Departamento da Criança no Brasil e em 1922 surgem as
primeiras regulamentações do atendimento às crianças pequenas em escolas
maternais e jardins de infância, em decorrência do I Congresso Nacional
Brasileiro de Proteção à Infância, realizado naquele ano. Estas primeiras
regulamentações previam a instalação de salas de amamentação e creches
29
próximas ao trabalho das operárias, de forma a facilitar o atendimento ao
lactante (VASCONCELOS, 2005).
Ressalte-se que tais medidas visavam permitir o trabalho das mulheres
em uma conjuntura na qual o governo brasileiro passa a investir na
industrialização do país (modelo urbano-industrial) e consequentemente passa
a se preocupar com a legislação trabalhista e social. Assim, é entre os anos 20
e 30 do século XX que surgem as primeiras medidas de proteção social (CAP’s
– Caixas de Aposentadoria e Pensão, regulamentação do trabalho feminino,
etc).
Ressalte-se ainda que tais mudanças também derivam de um processo
crescente de organização dos trabalhadores influenciados pelas ideias anarcocomunistas trazidas pelos imigrantes europeus que chegaram ao Brasil a partir
de incentivo do governo brasileiro por ocasião da libertação dos escravos, na
tentativa de ter mão-de-obra mais qualificada e de “branquear” o povo
brasileiro. Assim, o processo de organização dos trabalhadores também forçou
o governo a adotar medidas de cunho social e trabalhista (DA MATTA, 1989).
Nesta época a Educação Infantil era vista como uma solução para os
problemas sociais relacionados à criança, por isso destinava-se às crianças
das classes populares e se constituía em um meio de promover a organização
familiar e de dar condições para que as mães pudessem trabalhar. Assim, a
Educação Infantil era vista como um direito da mãe trabalhadora e não da
criança.
As discussões sobre assistência social e creche como uma
necessidade e direito da mãe trabalhadora, avançaram no início do século XX,
denunciando, nas práticas de atendimento à criança pré-escolar, que a
sociedade brasileira não estava preparada para ver a infância como um lugar
de necessidades e direitos. Neste período, calcada na concepção naturalistamoralista14, a criança é representada pela ideia de que precisa ser recuperada
ou reconstruída para a sociedade, por meio de processos pedagógicos.
14
A criança é vista como um ser bom, puro, perfeito, do qual o ‘bom selvagem’ de Rousseau é
um clássico em sua definição (CAMBI, 1999).
30
Neste mesmo período histórico outra concepção se revela em muitas
práticas e propostas educativas. Esta concepção preconiza a salvação da
criança dos efeitos da urbanização e da indústria e se caracteriza por recolher
a criança em um infantilismo apenas lúdico e passivo.
No período de 1930 a 1970, o país começa a se munir de instituições
dedicadas à educação e ao cuidado de crianças pequenas. Em 1947, verificase em São Paulo uma tentativa de expansão da rede pública de ensino
primário, que culminou em 1950 com a criação do Serviço de Educação
Primária, voltado à assistência psicológica e pedagógica, e a atividades de
expressão corporal e recreação, além de prestar assistência à vida familiar
para a escolarização de crianças, pois os índices de repetência já eram
altíssimos. Ocorreu a expressiva formação de classes infantis junto a estes
estabelecimentos escolares primários com o objetivo de preparar as crianças
para a entrada na educação formal. No entanto, essas classes infantis ainda
não dispunham de equipamentos, instalações e corpo docente apropriado. A
educação pré-primária, como era chamada, despontava como um idealismo de
poucos e encontrava pequeno apoio social e político (COSTA, 2003).
Contudo, os jardins de infância só foram incluídos no Sistema de
Ensino a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº
4.024/1961). Essa mudança se insere na conjuntura de crescente organização
dos movimentos populares nos anos 1960, que exigiam reformas de base em
todas as áreas e que traz modificações importantes no campo educacional 15.
Tais mudanças fazem com que a procura por jardins de infância aumentasse
no país.
Em 1964, a partir de um golpe, se instaura no Brasil, a Ditadura Militar
(1964-1985). Durante o Regime Militar, o assistencialismo e o tradicionalismo
são criticados e à educação são impostas algumas recomendações, propostas
para os países do Terceiro Mundo16 por órgãos internacionais como: UNICEF
15
Entre as experiências inovadoras na área educacional nos anos 60 do século XX no RN,
teremos a campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, na cidade de Natal/RN e “As
40 horas de Angicos/RN”, baseada no método Paulo Freire (Ver a este respeito GERMANO,
1989).
16
Tais propostas se esgotam, sobretudo porque a ordem capitalista temia o surgimento de
propostas revolucionárias socialistas a exemplo do que ocorreu em Cuba em 1959.
31
(Fundo das Nações Unidas para a Infância), FAO (Organização das Nações
Unidas para a Agricultura e Alimentação) e OMS (Organização Mundial de
Saúde).
Estes
órgãos
tinham
como
objetivo
anunciado
resolver
o
subdesenvolvimento dos países pobres, no qual o Brasil estava incluído,
atribuindo tal subdesenvolvimento à falta de assistência, saúde, educação e
nutrição. (FONSECA, 1999).
Com o Regime Militar, o Brasil ingressa em um sistema de
internacionalização do mercado interno e os governos se voltam cada vez mais
para a educação escolar das classes populares, visto que era preciso qualificar
a força de trabalho para aumentar a produção. Na visão dos militares era
preciso “purificar” as classes populares e suas novas gerações da educação
“subversiva”, dando-lhes uma educação cívica, patriótica e purificada das
ideologias estranhas ao “amável e cordial” povo brasileiro (GERMANO, 1989).
A visão de criança pobre, carente e incapaz foi legitimada pela
sociedade capitalista através das políticas governamentais, tecendo práticas
pedagógicas calcadas na exclusão e na marginalização dos filhos da classe
trabalhadora enquanto aos filhos da elite e da classe média reservou-se uma
educação de cunho humanista e pragmático visando torna-los os dirigentes
desta sociedade exploradora. Sabe-se que este modelo educacional burguês
tem como principal objetivo a formação de trabalhadores para a reprodução do
sistema do capital. Desta forma, as políticas educativas que deveriam orientar
uma educação que possibilitasse o desenvolvimento máximo das capacidades
da criança pobre, acabam por considerá-las apenas como futura mão-de-obra
e não como sujeito em formação.
Este grande investimento na educação escolar dos filhos da classe
trabalhadora teve que ser repensado diante dos altos índices de repetência e
evasão das crianças da classe pobre. Diante disso, visando suprir as supostas
carências culturais17 existentes na educação familiar da classe trabalhadora, as
políticas educacionais passaram então a investir na educação pré-escolar,
17
Acreditava-se que o meio social no qual viviam as crianças, filhas da classe trabalhadora,
não era capaz de lhes transmitir os requisitos básicos necessários para garantir seu sucesso
escolar, ou seja, estas crianças tinham carências culturais e a pré-escola iria suprir essas
carências.
32
destinada a crianças de quatro a seis anos, ocasionando o aumento da
demanda para o atendimento às crianças pequenas.
Contudo, essas pré-escolas não possuíam um caráter formal e o
trabalho pedagógico era desenvolvido por voluntários, sem qualificação
profissional. Nesse contexto, as creches públicas ficaram vinculadas, por um
longo período, a um caráter assistencialista, provocando um descrédito em
relação a esta política educacional. Enquanto isso, as creches particulares
desenvolviam atividades educativas, voltadas para aspectos cognitivos,
emocionais e sociais (FARIA, 1997).
No final da década de 1970 e parte dos anos de 1980, na esteira do
processo de redemocratização do país, os movimentos sociais populares
articulados por grupos de oposição ao então regime militar surgiram por
diversas regiões, contribuindo para a conquista de direitos sociais novos,
inscritos na Constituição de 1988, entre os quais o direito da mãe trabalhadora
de deixar seus filhos sob a guarda de uma instituição que lhes garantisse
cuidados e educação adequados.
Assim, na Constituição Brasileira de 1988 houve o reconhecimento da
educação em creches e pré-escolas como um direito da criança e um dever do
Estado, a ser cumprido pelos sistemas de ensino (BRASIL, 1988).
Desta forma, o atendimento à criança de zero a cinco anos e onze
meses tem experimentado, no decorrer dos últimos vinte anos, profundas
mudanças no Estado brasileiro, havendo um avanço significativo no
entendimento sobre a criança e seu processo de desenvolvimento, cabendo à
Educação Infantil atendê-la com ações complementares à família.
Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente incorporou as
conquistas determinadas pela Constituição de 1988 e em 1996, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) veio impulsionar os
diferentes setores educacionais a repensarem um novo modelo de Educação
Infantil (BRASIL, 1990; 1996).
A LDBEN estabelece a Educação Infantil como primeira etapa da
educação básica tendo “como finalidade o desenvolvimento integral da criança
33
até cinco anos de idade em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e
social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996,
art. 29).
Como dever de Estado, a Educação Infantil deverá ser ofertada em
creches (de zero a três anos) e pré-escolas (de quatro a cinco anos) em
jornada de horário integral ou parcial (conforme o art.54 do ECA e o art.30 da
LDBEN). Para atender a esta determinação, novas concepções acerca do
desenvolvimento infantil são adotadas e, consequentemente, as propostas
pedagógicas existentes são modificadas.
Assim, em 1998 o Ministério da Educação (MEC), no contexto da
definição
dos
Parâmetros
Curriculares
Nacionais
(PCN)18,
elabora
o
Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI), que se constitui
em um conjunto de orientações e referências pedagógicas para a ação
docente. De acordo com este Referencial a prática da Educação Infantil deve
se organizar de modo que as crianças desenvolvam uma imagem positiva de
si, descobrindo e conhecendo progressivamente seu próprio corpo, além de
estabelecerem vínculos afetivos e de troca com adultos e crianças. (BRASIL,
1998).
No ano seguinte, o Conselho Nacional de Educação definiu as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), que,
articuladas com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica,
reúnem princípios, fundamentos e procedimentos para orientar as políticas
públicas na área e a elaboração, planejamento, execução e avaliação de
propostas pedagógicas e curriculares (BRASIL, 1999). Tanto os RCNEI quanto
as DCNEI têm subsidiado a elaboração de novas propostas pedagógicas nas
instituições de Educação Infantil.
Com a perspectiva de estabelecer diretrizes educacionais para a
educação brasileira, foi instituído o Plano Nacional de Educação (PNE) através
da Lei nº 10.172 de 09 de janeiro de 2001.
18
Diretrizes elaboradas pelo Governo Federal a fim de orientar a educação no Brasil.
34
Segundo consta neste Plano
[...] o atendimento de qualquer criança num estabelecimento de
Educação Infantil é uma das mais sábias estratégias de
desenvolvimento humano, de formação da inteligência e da
personalidade, com reflexos positivos sobre todo o processo de
aprendizagem posterior (BRASIL, 2001, p. 42)
O PNE ressalta a educação como fator de direito, de desenvolvimento
pessoal, social e de inclusão social, no que compete à Educação Infantil, como
primeira etapa da educação básica.
Este instrumento delegou competência aos estados, ao Distrito Federal
e aos municípios para elaborarem seus respectivos Planos Decenais de
Educação.
Diante disto, o MEC em parceria com a União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (UNDIME) e as secretarias estaduais de educação
realizou, em 2004, uma série de seminários regionais para discutir a
formulação das novas políticas públicas para a Educação Infantil. Nesse
contexto, foi aprovado o Plano Municipal de Educação de Natal-RN, para o
período de 2005 a 2014 (Lei nº 5.650/05).
Em 2006, o Ministério da Educação apresenta a Política Nacional de
Educação Infantil: pelo direito de crianças de até seis anos à educação,
traçando diretrizes, objetivos, metas e estratégias para a área, deixando claro o
seu papel educacional.
Recentemente, mais precisamente em meados de 2009 aconteceu a
revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil, tendo em
vista as mudanças ocorridas nos últimos dez anos. Ainda em 2009 foi instituída
a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação
Básica, através do Decreto nº 6.755 de 29 de Janeiro de 2009.
Em todas essas medidas evidencia-se o esforço pela melhoria da
qualidade da Educação Básica e, consequentemente, da Educação Infantil.
35
Ressalte-se que tais medidas também são resultado de lutas da sociedade civil
através de movimentos sociais ligados a educadores e profissionais que
trabalham com crianças e adolescentes.
Ainda nesta perspectiva, durante todo o ano de 2009, aconteceram
debates nas escolas, nos municípios e nos estados em preparação à
Conferência Nacional de Educação (CONAE), que aconteceu de 23 a 27 de
abril de 2010 em Brasília, cujo tema central foi a construção de um Sistema
Nacional de Educação.
A CONAE teve o desafio de definir diretrizes para o novo Plano
Nacional de Educação que vai vigorar de 2011 a 2020, de modo que o novo
PNE seja objetivo nas metas e nas formas de implementação para que possa
ser operativo.
Quanto à política de ampliação das vagas, reivindicação constante dos
movimentos sociais, o resultado do censo escolar de 2010, comparado ao
resultado de 2009, nos mostra que o maior crescimento no número de
matrículas da educação básica encontra-se na creche (zero a três anos). Em
2009 ocorreram 1.896.363 matrículas, enquanto em 2010 foram 2.064.653, ou
seja, 168.290 novas matrículas, o que corresponde a um crescimento de 9%,
nesta faixa etária. Comparando com o início dos anos 2000, o crescimento das
matrículas na creche ultrapassa 79%. Na pré-escola, que atende crianças de
quatro e cinco anos, o censo registrou 4.692.045 matrículas em 2010,
apontando uma queda de 3,6% com relação a 2009, quando foram realizadas
4.866.268 matrículas. Esta aparente queda é atribuída ao ingresso da criança
de seis anos – antes da Educação Infantil – no Ensino Fundamental (BRASIL,
2010). Estes dados podem ser mais bem visualizados na tabela a seguir.
36
Tabela 1: Número de matrículas da Educação Infantil Brasil 2002-2010
Ano
Total
Creche
Pré-escola
2002
6.130.358
1.152.511
4.977.847
2003
6.393.234
1.237.558
5.155.676
2004
6.903.762
1.348.237
5.555.525
2005
7.205.013
1.414.343
5.790.670
2006
7.016.095
1.427.942
5.588.153
2007
6.509.868
1.579.581
4.930.287
2008
6.719.261
1.751.736
4.967.525
2009
6.762.631
1.896.363
4.866.268
2010
6.756.609
2.064.653
4.692.045
Δ% 2002-2010
10,2
79,1
-5,7
Fonte: MEC/Inep/DEED
Em 2010, o MEC enviou o Plano Nacional de Educação ao Congresso
Nacional. Nele estão as 20 metas e estratégias para melhorar a educação
brasileira nos próximos dez anos. Em 2011 será lançado o novo Plano
Nacional de Educação, obrigando estados e municípios a reverem seus
respectivos Planos Decenais de Educação.
Todos esses esforços apontam na direção de uma política de
atendimento na qual os direitos das crianças à Educação Infantil têm sido
colocados em pauta. Uma vez definido o novo Plano Nacional de Educação,
caberá à sociedade acompanhar as metas estabelecidas e cobrar do poder
público, a responsabilidade por sua implantação.
37
2.1.1 Especificidades e funções da Educação Infantil
A Constituição Federal (CF) em seu artigo 205 reconhece o acesso à
Educação como um dos direitos sociais. O texto constitucional afirma que esta
é direito de todos e dever do Estado e da família (BRASIL, 1988). Esse
mesmo direito é reafirmado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
A criança e o adolescente têm direito à educação,
visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa,
preparo para o exercício da cidadania e qualificação
para o trabalho (BRASIL, 1990, art.53).
No que concerne à Educação Infantil, a CF, em seu artigo 208-IV
determina que "o dever do Estado com a educação às crianças de zero a seis
anos será efetivado mediante garantia de atendimento em creche e préescola." Por sua vez, o ECA no artigo 54-IV, também ratifica que "é dever do
Estado assegurar [...] atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero
a seis anos de idade” (BRASIL 1988; 1990).
A LDBEN, em seu artigo 4º-IV, confirmou, mais uma vez, que o
atendimento gratuito em creche e pré-escola a crianças de zero a seis
anos de idade, é dever do Estado. Deixou claro, também, no artigo 11-V,
que o atendimento a essa faixa etária está sob a incumbência dos municípios,
determinando que todas as instituições de Educação Infantil estejam inseridas
no sistema de ensino. Esta Lei ainda esclarece em seu artigo 30-I e II que a
Educação Infantil, como parte integrante da primeira etapa da educação
básica, foi dividida em creche (zero a três anos) e pré-escola (quatro a
seis anos) (BRASIL, 1996).
Entretanto, o atendimento gratuito em creches e pré-escolas fica
comprometido pela inexistência de recursos financeiros vinculados a este nível
de educação. Sem destinação orçamentária, estados e municípios se
esquivam de ofertar vagas na Educação Infantil. E, embora a LDBEN tenha
sinalizado que o ensino obrigatório deveria se dá a partir dos seis anos de
38
idade, isto só aconteceu de fato pela Lei nº 10.172/2001, que instituiu o ensino
fundamental de nove anos de duração com a inclusão das crianças de seis
anos de idade. Apesar da importância dessa decisão política, o que aconteceu
foi simplesmente a transferência da criança de seis anos para o ensino
fundamental. Na prática, a Educação Infantil passou a ser um direito das
crianças de zero a cinco anos, mas sem a obrigatoriedade de oferta. Somente
em 2008, a Lei nº 11.700/2008 torna a educação básica obrigatória a partir
dos quatro anos de idade (BRASIL, 2007).
A partir deste ordenamento legal 19 e também das contribuições
trazidas
pelas
“descobertas”
a
respeito
da
criança,
estudiosos
e
pesquisadores debruçaram-se sobre esse tema, buscando tanto compreender
esse contexto de mudança em todos os seus aspectos como também
contribuir para a construção de uma política nacional de Educação Infantil
realizada por profissionais com capacitação específica e acessível a todas as
crianças.
Contudo, esta apresentação sucinta do ordenamento legal nos permite
levantar algumas questões sobre as especificidades desta etapa de ensino,
visto que, ao mesmo tempo em que a Educação Infantil é colocada como parte
da educação básica, é dividida em creche e pré-escola. Afinal, a Educação
Infantil é uma instituição escolar ou não?
De forma geral, o contexto das instituições de Educação Infantil, é
diferenciado do contexto dos demais níveis do sistema regular de ensino.
Ao mesmo tempo em que se constituem como instituições de caráter
primordialmente educativo, no qual o projeto pedagógico é instrumento
fundamental para a sua consolidação, distanciam-se da concepção de
instituições escolares, no sentido tradicional do termo.
Segundo Costa (2003) o que diferencia o contexto escolar do contexto
da Educação Infantil é a função social que lhes é atribuída no contexto
social mais amplo. De acordo com ela cada um desses níveis de ensino
guarda características próprias, relacionadas à sua história, organização,
19
A LDBEN reconheceu a importância da Educação Infantil ao defini-la como a primeira etapa
da educação básica e como direito de toda criança de zero a seis anos.
39
finalidade, que merecem abordagens específicas, portanto, não se trata de
uma diferenciação hierárquica ou qualitativa.
Na Educação Infantil a criança deve ser tomada como ponto de
partida, como sujeito integral, compreendendo que
"para ela, conhecer o mundo envolve o afeto, o prazer e o
desprazer, a fantasia, o brincar e o movimento [...] que para
ela, a brincadeira é uma forma de linguagem, assim como a
linguagem é uma forma de brincadeira" (KUHLMANN, 1999, p.
65).
Essa perspectiva pedagógica acentua que a educação realizada
com crianças nessa faixa etária tem suas especificidades. Não se está
tratando aqui de uma contraposição aos demais níveis de ensino, nem
negando o significado da inclusão das creches e pré-escolas ao Sistema
Regular de Ensino, mas de está tentando definir de forma clara a
especificidade da Educação Infantil.
Evidencia-se uma contradição entre a legislação que coloca a
Educação Infantil como parte integrante do sistema escolar, e a política
educacional, que a define como instituição educativa, sem caráter escolar.
[...] enquanto a LDB afirma o caráter escolar da creche,
os documentos produzidos em órgãos de planejamento e
execução da política educacional enfatizam que é no binômio
educar e cuidar que devem estar centradas as funções
complementares
e
indissociáveis
dessa
instituição
(NASCIMENTO, 1999, p. 102).
Em instituições de Educação Infantil, que atendem a perspectiva
socioeducativa,
o
caráter
pedagógico
prevalece
e
todas
as
ações
são interdependentes e interligadas, tendo em vista o desenvolvimento sadio
da criança em todos os aspectos. Como complementares à ação da
família, atendem, em muitas situações, crianças em período integral e de
certa maneira também as próprias famílias.
40
Nascimento (1999) chama a atenção para o fato de que uma
estruturação escolar por si só não dá conta da operacionalização de
modelos de atendimento à criança com o caráter multifacetado que
pressuporia a integração de ações de Saúde, Educação, Assistência Social e
Cultura.
A este respeito, vale lembrar que o 'Estatuto da Criança e do
Adolescente' e a 'Lei Orgânica da Assistência Social' são
aportes legais a serem considerados; eles pressupõem,
por exemplo, o atrelamento das creches aos Conselhos
Tutelares e ao Conselho Nacional de Assistência Social
(NASCIMENTO, 1999, p. 102).
Neste sentido, observa-se que ao se estudar, falar ou propor medidas
para Educação Infantil há que se conhecer o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e a Política Nacional da Criança e do Adolescente (PNCA)
assim como a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a Política Nacional
de Assistência Social (PNAS), nas suas diversas ações 20.
A partir dessas considerações, observamos que a Educação Infantil,
como espaço de vivência tão importante para
crescimento
infantil,
possui
uma
o
desenvolvimento
intencionalidade educativa,
e
mas
também uma prática educativa21. A creche e a pré-escola não têm mais
como ser pensada fora de um ambiente em que sejam respeitados os
direitos da criança. Mas além da questão pedagógica a Educação Infantil
necessita ser compreendida na forma como tem se configurado, nesse
momento, no contexto brasileiro.
Sendo uma prática tradicionalmente reconhecida como de guarda e
proteção à criança pequena, não tem se mostrado uma tarefa fácil romper
com essa visão e metodologia de trabalho e iniciar um processo de
20
Adiante teceremos considerações sobre estas políticas que perpassam a discussão da
Educação Infantil.
21
Sobre práticas concretas adotadas no trabalho direto com crianças, consultar o documento
Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das
Crianças, preparado por Maria Malta Campos e Fúlvia Rosemberg e publicado pelo MEC, em
1997.
41
construção
de
um
novo
contexto
de
Educação Infantil,
marcado
fundamentalmente pelo caráter pedagógico. A falta de recursos financeiros e
humanos destinados a esta etapa do ensino agravam a situação.
[...] apesar dos avanços obtidos, seja através do
estabelecimento de um rol de regulamentações, documentos
oficiais e leis, seja pela produção de conhecimentos
assentados em um novo paradigma sobre desenvolvimento
infantil, o que se verifica, de modo geral, na realidade
brasileira, é um distanciamento abissal entre essas
conquistas e as práticas efetivadas no cotidiano das
instituições. Para alguns autores, esses avanços ainda
representam discursos com pouco efeito na prática [...].
(COSTA, 2003, p. 35).
Tanto documentos
oficiais como produções acadêmicas (BRASIL,
1998,2001; COSTA, 2003; SOUZA, 2007) trazem uma descrição nacional da
realidade da Educação Infantil, apontando o baixo número
de crianças
dessa faixa etária inseridas em creches e pré-escolas em relação à
demanda apresentada e a necessidade de ampliação
da rede de
Educação Infantil tendo como meta o acesso universal. Por sua vez, a
qualidade do atendimento nas creches e pré-escolas em funcionamento
também é objeto de muitas discussões, descrevendo uma atuação cuja
ênfase é assistencialista, prevalecendo as funções de guarda e cuidados
de alimentação, higiene e segurança física, principalmente nas creches.
Neste sentido, a creche não é associada à Educação Infantil, esquecendo-se a
sua função pedagógica.
Além de ter-se clareza sobre esses dois problemas que rondam a
Educação Infantil – democratização do acesso e melhoria da qualidade –
necessita-se ter
clareza
das diferentes
formas
sob
as
quais suas
ações se configuraram em diferentes regiões brasileiras, marcadas não
apenas pelas diversidades
econômico-sociais
regionais,
mas
também pelos
indicadores
e educacionais, determinantes também das condições de
acesso das crianças ao ciclo básico de ensino.
42
[...] é preciso sublinhar que é uma diretriz nacional o
respeito às diversidades regionais, aos valores e às
expressões culturais das diferentes localidades, que formam
a base sócio-histórica sobre a qual as crianças iniciam a
construção de suas personalidades (BRASIL, 2001, p.12).
O reconhecimento legal de que a criança é um ser integral, em
condição
peculiar
de
desenvolvimento,
com
direito
ao
acesso
a
instituições educativas de qualidade desde os primeiros anos de vida, foi um
importante marco histórico em direção à construção de uma política de
atendimento para a Educação Infantil. Mas esse reconhecimento legal não
se constitui como garantia de seu cumprimento se não houver uma
efetiva política de financiamento público para a Educação e, no caso, para
a Educação Infantil (OLIVEIRA, 2001).
A Política Nacional de Educação Infantil (BRASIL, 1994), apontou
duas grandes diretrizes para esse segmento. A primeira, voltada para a
questão pedagógica; e a segunda, para uma política de recursos humanos. Ao
tratar das diretrizes pedagógicas, ressaltou que todas as relações construídas
no interior da creche e da pré-escola sejam educativas. Nesse sentido, o
atendimento às necessidades imediatas de higiene, alimentação, saúde,
proteção
e
aconchego, também são ações educativas. A criança é
entendida em sua integridade humana, como sujeito do seu processo de
desenvolvimento, embora necessite do adulto para o seu cumprimento
(COSTA, 2003).
A criança é concebida como um ser humano completo
que, embora em processo de desenvolvimento e, portanto,
dependente do adulto para a sua sobrevivência e crescimento,
não é apenas um 'vir-a-ser' [...] como todo ser humano é um
sujeito social e histórico; pertence a uma família, que está
inserida em uma sociedade, com uma determinada
cultura,
em
um determinado momento histórico. É
profundamente marcada pelo meio social em que se
desenvolve, mas também o marca, o que lhe confere a
43
condição de ser humano único, de indivíduo (BRASIL, 1994,
item 2.1).
Nesta mesma perspectiva o Plano
(BRASIL, 2001),
ressalta
Nacional
de
Educação
a importância da Educação Infantil e destaca
que ela ”estabelece as bases da personalidade humana, da inteligência,
da vida emocional, da socialização" (BRASIL, 2001, p.10). O PNE reconhece
que as instituições de Educação Infantil vêm se tornando cada vez mais
necessárias, complementando as ações da família e declara que o
investimento em programas de atenção a crianças pequenas baseia-se no
direito ao cuidado e à educação desde o nascimento.
Na trilha das mudanças esboçadas a partir do ordenamento legal e
das diretrizes assinaladas nos documentos citados, e tendo em vista a
construção de uma política nacional de Educação Infantil, surgiram
importantes desafios a serem enfrentados para a materialização prática de
propostas educativas voltadas para a faixa etária de zero a cinco anos.
Um desses desafios a serem vencidos é a superação da dicotomia
entre assistência e educação, onde se acredita que o atendimento à criança
de até três anos é de caráter assistencial, e de que a partir dos quatro
anos é educativo. Apesar da determinação de que tanto a creche quanto a
pré-escola devem estar vinculadas à Educação, unificando as funções de
assistir e educar, isso tem permanecido longe da prática cotidiana na
Educação Infantil.
Mesmo diante desta dificuldade, a vinculação das creches e préescolas ao sistema educacional significou uma conquista sem precedentes
no sentido da superação de uma situação administrativa que mantinha fora
do ensino regular as
instituições
Significou ainda que a divisão
creche
e
educacionais
para
a infância pobre.
da Educação Infantil nas modalidades
pré-escola nos textos da CF (BRASIL,1988) e da LDBEN
(BRASIL,1996) sinaliza o
início
de
um
processo
de
reestruturação,
embora esse processo de determinação prática do que é creche e do que é
pré-escola não seja tarefa simples e automática.
44
Talvez esta dificuldade tenha relação com o fato das primeiras
creches terem surgido como um serviço destinado à mulher que estava
entrando no mercado de trabalho – dentro do contexto capitalista – mais
especificamente, às mulheres das classes sociais trabalhadoras. Foi para
atender aos filhos dessas operárias que as creches se propagaram, adquirindo
um caráter assistencialista, onde a criança deveria ser cuidada e alimentada
em substituição aos cuidados maternais, durante o período de trabalho da
mãe.
É fato que o processo de industrialização brasileiro produziu uma
rápida urbanização e a crescente introdução da mulher no mundo produtivo,
resultando
em
um
grande
número
de
crianças
necessitadas
de
cuidados22.
Como medida prática para o enfrentamento
dessa
situação, foi proposta a criação de creches e de
uma legislação específica, já naquela época (década de
20) de proteção ao trabalho, especialmente feminino.
Foram implantadas as primeiras creches para os filhos de
operárias, por iniciativa não do poder público, mas de
empresários paulistas, com o objetivo de garantir a
estabilidade da mão-de-obra e exercer o controle sobre o
movimento operário (COSTA, 2003, p. 43).
Mas à medida que os anos foram passando, essas creches que
atendiam às crianças das mulheres trabalhadoras foram aos poucos sendo
assumidas por instituições governamentais e não governamentais ligadas
ao governo federal – como a Legião Brasileira de Assistência (LBA)23 – e
aos governos estaduais. Como já assinalamos tais ações tanto se devem à
organização e reivindicações dos/das trabalhadores/as, como a preocupação
do governo com o processo de industrialização nascente. Foi deste modo que
22
É claro que para a mentalidade da época, não se cogitava que homens/pais mesmo
desempregados, podiam cuidar das crianças. Além disto, no contexto da industrialização
acelerada, pais e mães, em sua maioria, estavam inseridos no mercado de trabalho.
23
Órgão ligado ao Ministério da Previdência e Assistência Social que fornecia apoio técnico e
financeiro às instituições comunitárias, filantrópicas e confessionais que atendiam às crianças
das camadas mais pobres da população.
45
foi tratada a Educação Infantil no Brasil entre os anos 40 e 50 do século XX.
Na década de 1970, já no período da ditadura militar, sob a liderança
e iniciativa de organizações populares, foram criadas creches dentro das
comunidades
pobres.
Essas novas modalidades de
atendimento
se
configuraram em importantes experiências.
Por outro lado, a crescente conscientização sobre a importância da
criança começar o seu processo de socialização, fora do contexto familiar,
cada vez mais cedo, e com a inserção também da mulher da classe média
no mercado de trabalho, a partir dos anos 60-70 no Brasil, houve um
aparecimento significativo de instituições para atenderem os filhos destas
famílias, sob a denominação de “pré-escolas”, “berçários” e/ou “jardins de
infância”. Nesse
caso,
o
atendimento
foi
assumido
por
instituições
particulares, com fins lucrativos, cuja ênfase inicial estava na faixa etária
de quatro a seis anos. Desta forma, o que se conformou socialmente foi a
ideia de “creche para os pobres” e “pré-escola para os demais”. O filho
da patroa estudava no “jardim” e o da empregada, na “creche” (COSTA,
2003).
Como já assinalamos tal visão de educação destinava aos filhos da
elite e da classe média uma educação de cunho humanista e pragmático
visando torná-los os dirigentes, enquanto destinava-se aos filhos de
trabalhadores(as) uma educação que visava formá-los somente enquanto
futura mão-de-obra.
Neste
processo
histórico
de
surgimento
das
instituições
de
atendimento à criança pequena evidencia-se que as funções de guarda,
assistência e cuidado foram assumidas principalmente pelas creches, que
atendiam não apenas até aos três anos de idade, mas até aos seis.
A educação da criança de quatro a seis anos inseriu-se nas ações do
MEC desde 1975, quando foi criada a Coordenação de Educação Pré-Escolar.
Nesse período, a maioria das pré-escolas estava vinculada às Secretarias
Estaduais de Educação. A educação em creches, sobretudo das crianças de
zero a três anos, continuava sendo realizada por meio de convênios com a
46
LBA (BRASIL, 2006).
Porém, a partir dos anos 1990, com o processo crescente de
discussão sobre os direitos sociais em todas as áreas, o significado e as
funções da Educação Infantil careceram de atualização, superando-se a
ideia dicotômica de que a creche tem a função primordial de "cuidar e
assistir" e a pré-escola de "educar". Atualmente, "cuidar e educar" têm
sido pontuados, por diversos autores
como funções complementares e
indissociáveis na Educação Infantil, tanto no ambiente da creche quanto da
pré-escola. ( FONSECA, 1997; CAMPOS; HADDAD,1992; SOUSA, 2000;
KULHMANN, 1999). Essa
assistência que
posição contrapõe-se àquela de guarda e
prevaleceu
historicamente nas creches voltadas para o
atendimento aos segmentos mais pobres da população, atendendo, em
muitos casos, até aos seis anos de idade.
Kuhlmann (1999) explica que o papel atribuído às instituições de
Educação Infantil, de "cuidar e educar", tem a sua origem na expressão
educare, que no latim, tinha o sentido de criar (uma criança), nutrir,
amamentar, cuidar, educar, instruir, ensinar, fazer crescer. Portanto, o autor
alerta que não se pode cair no risco de que a função de "cuidar" seja
considerada segmentada da de "educar". Segundo ele a tradução do termo
educare deve manter o significado original, constituindo uma unidade
indissociável: educar-e-cuidar, pois "se o cuidado deve ser observado nos
mais
diferentes
fundamental
na
níveis
educacionais,
educação
da
trata-se
de
um
elemento
criança pequena" (KUHLMANN, 1999, p.
59).
Corroborando com o mesmo pensamento, Sousa (2000) diz que o
que assinala
a
função
atual
da
Educação Infantil
é
a
adequada
integração entre educação e assistência, abalizadas por Fonseca (1997),
como as funções atribuídas à Educação Infantil atualmente. Portanto, o
ato de educar está inegavelmente conectado ao ato de cuidar.
Apesar da discussão, sobre o significado e a dimensão das funções da
creche e da pré-escola, já virem se configurando desde a promulgação da
Constituição Federal em 1988, o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2001)
47
ainda trouxe como diretriz a superação da dicotomia das funções entre a
creche e pré-escola, e entre assistência e educação, deixando claro que, na
prática, essa questão ainda não está superada. Estão faltando ações
que
efetivamente transpareçam a integração das funções de "cuidado e
educação", no contexto das creches e pré-escolas, no sentido de garantir
um atendimento educativo, integral e de qualidade.
2.1.2 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil
A LDBEN, já apontava que, “ para atuar na educação básica, a
formação do professor deve ser de nível superior, admitindo-se como
formação mínima para atuar na Educação Infantil aquela oferecida em
nível médio, na modalidade Normal” 24 (BRASIL, 1996, art. 62).
Essa ressalva quanto à formação dos profissionais para atuar na
Educação Infantil sinaliza que o profissional que atua diretamente com a
criança, em creches e/ou pré-escolas, ainda não teve
a
profissão
reconhecida e regulamentada. Em sua quase totalidade, eram e ainda são
mulheres que, em diferentes locais, foram denominadas de várias formas:
educadoras, monitoras, pajens, recreadoras, atendentes, "tias" etc.
Costa (2003) comentando Mazzilli et al. (2001) coloca que os
autores, em uma síntese das mudanças conceituais ocorridas na história
recente da Educação Infantil no Brasil, demonstram que o papel do
profissional, nessa área, evoluiu da função de pajem/recreador para a de
educador, com a chegada da CF (1988), do ECA (1990) e, finalmente, para
a de professor, com a LDBEN (1996) e as DCNEI (1999).
O PNE estipulou, quanto ao projeto pedagógico, como uma de suas
metas "assegurar que, em três anos, todas as instituições de Educação
24
Trata-se de um curso do Ensino Médio cujo objetivo é a formação de professores com
habilitação para ensinar do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.
48
Infantil
tenham
formulado,
com
a
participação
dos
profissionais
de
Educação neles envolvidos, seus projetos pedagógicos" (BRASIL, 2001, p.13).
Todavia, a formulação e execução do projeto pedagógico estão
atreladas à necessidade prioritária do atendimento a essas crianças ocorrer
em
instituições
conhecedores
onde
dos
existam
processos
profissionais
preparados
e
de desenvolvimento e aprendizagem na
primeira etapa da vida humana. Essa questão é apontada por Rocha (1999)
e pelo Plano Nacional de Educação (2001). Porém, o documento preliminar
da Política Nacional de Educação Infantil já dizia, em 1994, que
Particularmente grave é a desvalorização e a falta de
formação específica dos profissionais que atuam na área,
especialmente na creche. Um número significativo dos que
trabalham na Educação Infantil sequer completou a
escolaridade fundamental (BRASIL, 1994, p.10).
Assim, a Política Nacional de Educação Infantil (2006) assinalou as
diretrizes para uma política de recursos humanos, essenciais até mesmo para
o cumprimento das diretrizes pedagógicas. Lembrou a importância do
papel
do
educador
com
um
intento
primordialmente
educativo,
desempenhando a função de mediador entre as crianças e o processo de
aprendizagem.
[...] a atuação do adulto - incentivando, questionando,
propondo e facilitando o processo de interação com os
outros - é de vital importância no desenvolvimento e
construção do conhecimento pela criança [...] (BRASIL,
2006, p.7)
Outro desafio diz respeito ao reconhecimento
trabalhador da Educação Infantil.
profissional
do
49
Esta concepção de Educação Infantil, que integra as
funções de educar e cuidar, em instituições educativas
complementares à família, exige que o adulto que atua na
área seja reconhecido como um profissional. Isto implica que
lhe devem ser assegurados condições de trabalho, plano
de carreira, salário e formação continuada condizentes com
o seu papel profissional. (BRASIL, 1994, Item 2.2.)
Está posta uma preocupação com
o
profissional
da Educação
Infantil, em dois principais aspectos: o preparo profissional e a valorização
desse profissional. O primeiro volta-se para a sua constante atualização,
traduzida pela necessidade de formação continuada. O segundo centraliza-se
na valorização desse profissional, na tentativa de assegurar-lhe condições de
trabalho, plano de carreira e remuneração de acordo com a sua função.
A diretriz de formação profissional específica para a Educação
Infantil, explicitada na Política Nacional de Educação Infantil (BRASIL,
1994) – posteriormente contemplada pela atual LDBEN, em seu artigo 62
– aponta quais condições deverão ser criadas para que os profissionais de
Educação Infantil que não possuem a qualificação mínima, de nível
médio, obtenham-na até dezembro de 2007, com base no artigo 87
(parágrafo 3º-III e parágrafo 4º), que instituiu a Década da Educação
(20/12/1997 a 19/12/2007).
Por sua vez, o Plano Nacional de Educação (2001), ao incluir em suas
diretrizes, a formação dos profissionais da Educação Infantil, a declarou
como merecedora de especial atenção. Destacou a relevância da atuação
desses profissionais como mediadores no processo de desenvolvimento e
aprendizagem.
A qualificação específica para atuar na faixa de zero a seis
anos inclui o conhecimento
das
bases
científicas do
desenvolvimento da criança, da produção de aprendizagens e a
habilidade de reflexão sobre a prática, de sorte que esta se
torne, cada vez mais, fonte de novos conhecimentos e
habilidades na educação das crianças. Além da formação
acadêmica prévia, requer-se a formação permanente, inserida
no
trabalho
pedagógico, nutrindo-se dele e renovando-o
50
constantemente (BRASIL, 2001, p. 12).
Para atender a essa diretriz, o mesmo documento estabeleceu
quatro
objetivos
profissionais
e
metas
especificamente
voltados
para
os
da Educação Infantil, com desafios que vão desde o
estabelecimento de um Programa Nacional de Formação aos Professores de
Educação Infantil, que em cinco anos, atingirá a formação de nível médio
(modalidade Normal), de todos os dirigentes e professores de Educação
Infantil, até a ampliação de oferta de cursos de formação de professores de
Educação Infantil de nível superior. Prevê, também, a partir de 2001, a
titulação mínima em nível médio, modalidade Normal, para os novos
contratados, e a execução, em três anos, de programas de formação em
serviço, para
a
atualização
permanente
e
o
aprofundamento dos
conhecimentos dos profissionais que atuam na Educação Infantil. (BRASIL,
2001).
O Plano Nacional de Educação para a próxima década foi entregue
pelo ministro da Educação, Fernando Haddad, ao presidente Luiz Inácio Lula
da Silva no dia 15 de dezembro de 2010. O documento foi enviado ao
Congresso, para apreciação dos parlamentares e, após aprovação, servirá
como diretriz para todas as políticas educacionais do País. O PNE 2011-2020 é
composto por 12 artigos e um anexo com 20 metas para a Educação e terá
como foco a valorização do magistério.
O PNE é a principal diretriz para as políticas educacionais no país e
atualmente,25 encontra-se em análise na Câmara dos Deputados. Especialistas
afirmam que, para que tenha suas metas atingidas, o Plano necessita contar
com o suporte de normas que regulamentem as responsabilidades dos
municípios, das unidades da federação e da União, estabelecendo o chamado
"regime de colaboração". O próprio texto do PNE, enviado pelo Poder
Executivo ao Congresso, assinala que o alcance das metas e a implementação
das estratégias devem ser realizados "em regime de colaboração entre a
União, os estados, o Distrito Federal e os municípios".
25
Este comentário situa-se no mês de maio de 2011.
51
Nesse
contexto,
a
proposta
do
Plano
Nacional
de Educação
apresentada pelo governo para este decênio, aparentemente é uma boa
proposta. O PNE tem metas e estratégias ousadas e realizáveis, mas esperase que seja aperfeiçoado pelo Congresso.
Contudo, ao mesmo tempo em que temos esperança nos planos e
propostas discutidos e aprovados nos últimos anos no Brasil, sabemos que tal
aprovação se dá em uma conjuntura adversa, pois desde 1990 predomina o
ajuste neoliberal que tem restringido os recursos destinados às políticas sociais
nas mais diversas áreas, ancorados em um discurso e prática que repassa
para a sociedade, através das Organizações Não-Governamentais (ONG’s), a
responsabilidade pelas ações no campo social26. Na educação observa-se tal
política de ajuste neoliberal nos constantes cortes dos recursos. Apesar de no
PNE ter sido aprovado que a União deveria destinar 10% do Produto Interno
Bruto (PIB) para a educação, passados mais de dez anos, no ano de 2011 os
recursos correspondem a menos de 5% do PIB atual27. Portanto, é preciso
estar atentos, pois as legislações aprovadas, apesar de significarem avanços,
não são garantia de reais conquistas no campo educacional.
2.2 A Educação Infantil em Natal
A Educação Infantil em Natal se insere nas discussões nacionais e nos
planos e projetos nacionais.
A primeira iniciativa no sentido de programar ações direcionadas à
Educação Infantil no município do Natal se deu somente em 1986 com o
Projeto Reis Magos, fruto de um convênio firmado entre a Prefeitura do Natal e
a Fundação Bernard Van Leer, da Holanda. Foi este convênio entre a prefeitura
e a fundação holandesa que – embora em conformidade com a tendência
26
A refilantropização do social tem sido crescente nos últimos anos cujos exemplos mais
emblemáticos são as ações ligadas a “Criança Esperança” e “Amigos da Escola”, campanhas
realizadas pelas organizações Globo que, baseadas no discurso da Solidariedade Social,
convida a população a ajudar e se engajar em ações diversas ligadas a criança e a educação.
27
O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES) iniciou
campanha em julho/2011 para destinação de 10% do PIB para a Educação. Ver a este respeito
<www.andes.gov.br>.
52
assistencialista de atendimento às crianças oriundas de famílias de baixa
renda, ainda predominante naquela época – delineou alternativas para a
implementação de uma prática pedagógica nessa etapa de ensino (NATAL,
2008).
Em 1990 o Projeto Reis Magos foi expandido e já atendia 1.983
crianças distribuídas em 75 turmas em várias escolas, criando um novo
significado pedagógico para a Educação Infantil. Para apoiar tal Projeto foi
criado o Centro Municipal de Educação Infantil Emília Ramos, no bairro de
Cidade Nova, na zona Oeste, pois até então não havia na rede pública
municipal de ensino, escolas destinadas exclusivamente à Educação Infantil
(NATAL, 2008).
Finalizado o Projeto, a SME continuou apoiando a Educação
Infantil sem buscar outros convênios. Nesse período, construiu
mais dois centros de Educação Infantil – Professora Stella
Lopes e Professora Josefa Botelho28 (NATAL, 2005).
Nesse percurso a Secretaria Municipal de Educação publica a proposta
curricular para a educação pré-escolar do município de Natal em 1993, também
em parceria com a Fundação Bernard Van Leer. Esta proposta curricular foi
reeditada em 1998.
No ano de 1999 a Educação Infantil era oferecida em três Centros
Infantis e 35 Escolas Municipais, totalizando 127 turmas e 3.598 crianças.
Apesar desta expansão a SME não conseguiu suprir a procura por vagas e em
virtude da demanda reprimida firmou convênio com uma escola da rede privada
na Zona Norte da cidade, visando ao atendimento de 100 crianças naquela
região (NATAL, 2008).
Como o resultado desta experiência foi positivo, a SME criou em 2000
o Projeto Pré-Escola para Todos (PPEPT) com a finalidade de suprir a
demanda excedente das Escolas Municipais e Centros Municipais de
28
Localizados respectivamente nos bairros de Nova Natal e Ponta Negra, nas zonas Norte e
Sul, respectivamente.
53
Educação Infantil, custeando bolsas de estudos nas escolas particulares,
preferencialmente aquelas de caráter filantrópico.
Em 2002, com a continuidade do PPEPT, o Conselho Municipal de
Educação (CME)29, no uso de suas atribuições legais, estabeleceu critérios
para celebração de convênios, através da Resolução nº 001/2002, priorizando
escolas filantrópicas, comunitárias ou vinculadas a Organizações NãoGovernamentais (ONGs).
Desde então, a oferta da Educação Infantil foi sendo ampliada de modo
que em 2005 estavam sendo atendidas 14.253 crianças distribuídas em 05
Centros Infantis, 27 Escolas Municipais e 69 Escolas Conveniadas (NATAL,
2008).
Este crescimento se insere na Meta nº 01 do PNE (2001-2010) que
define a ampliação da oferta de forma a atender, em cinco anos, ou seja, até
2006, a 30% da população de até três anos de idade e a 60% da população de
quatro a seis anos (BRASIL, 2006).
Mesmo com a ampliação de oferta de vagas, o município de Natal, só
atendeu, entre 2001 e 2005, a 9,33% da população infantil de zero a três anos
e 49,58% na faixa dos quatro e cinco anos de idade (NATAL, 2005).
Apesar da matrícula na Educação Infantil ter atingido um crescimento –
muito mais pelo acréscimo de matrículas nas escolas conveniadas – a Meta
ainda estava longe de ser alcançada, evidenciando que a Rede Municipal de
Ensino não comportava toda a demanda.
Assim, visando ao cumprimento da Meta do PNE (2001-2010) – que
define a ampliação da oferta de modo a atender até 2010, 50% das crianças de
zero a três anos e 80% das de quatro e cinco anos – a Secretaria passou a
investir progressivamente na ampliação da Rede, através da construção de
novos CMEI30 para atender, inicialmente, as crianças com idade de quatro a
29
Assim como as demais políticas, na Educação o exercício do controle social também é
realizado pelos diversos conselhos: nacional, estaduais e municipais. Deste modo, cabe aos
Conselhos Municipais fiscalizar a política de educação a partir da construção do Plano
Municipal de Educação.
30
Até 2007 já existiam 08 CMEI.
54
seis anos. As crianças de zero a três anos de idade só começaram a ser
atendidas a partir de 2007/2008 quando teve início a primeira fase do processo
de transição das 16 creches31 – da ONG Ativa – ligadas a Secretaria Municipal
de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS) para a SME.
Este processo de transição estava previsto desde 1996 quando, na
LDBEN, a Educação Infantil foi reconhecida como direito da criança, das
famílias, como dever do Estado e primeira etapa da Educação Básica (BRASIL,
1996).
Embora a Educação Infantil esteja inserida nas ações do MEC desde
1975 com a criação da Coordenação de Educação Pré-Escolar, o Ministério da
Previdência e Assistência Social também se incumbia do atendimento ao “préescolar” através de convênios diretos – que previam auxílio financeiro e algum
apoio técnico – com instituições comunitárias, filantrópicas e confessionais.32
A atuação concomitante destes dois ministérios se justifica pela
necessidade urgente de expansão do atendimento gerada pelo processo de
urbanização do país, nas décadas de 1970 e 1980, somado a uma maior
participação da mulher no mercado de trabalho e a pressão dos movimentos
sociais que exigiam a ampliação da oferta de vagas para esta faixa etária. Ao
mesmo tempo, as ações ligadas aos dois ministérios trazem por vezes
duplicidades e dificuldades na operacionalização.
Esta urgência para atender à pressão da demanda e a insuficiência de
recursos financeiros, aliados à omissão da legislação educacional levaram as
instituições de Educação Infantil a se expandirem para além dos sistemas de
ensino, alastrando-se formas alternativas de atendimento, onde os critérios
básicos relativos à infraestrutura e à escolaridade das pessoas que lidavam
com as crianças eram desconsiderados.
Assim, a providência primeira nesse processo de transição das
creches, da assistência para a educação, foi a criação em julho de 2007, no
Quadro de Pessoal do Município do Natal, de 600 cargos de provimento
31
Destas, 04 foram incorporadas à outras, sendo transferidas à SME, um total de 12 creches.
O Programa foi desenvolvido pela LBA e, mesmo depois de sua extinção em 1995, a
dotação orçamentária para creche no âmbito da assistência social federal continuou existindo.
32
55
efetivo, de Educador Infantil para atuar nas creches e nos CMEI, atendendo, no
que lhe compete, a criança que, no início do ano letivo, possua idade variável
entre quatro meses a cinco anos e 11 meses. (NATAL, 2007).
A criação do cargo reflete a preocupação com a identidade e o papel
dos profissionais da Educação Infantil, cuja atuação complementa o papel da
família e que se insere no contexto das pesquisas sobre desenvolvimento
humano, formação da personalidade, construção da inteligência e da
aprendizagem nos primeiros anos de vida que apontam para a importância e a
necessidade de um trabalho educacional que respeite as especificidades desta
faixa etária.
Esta medida foi apenas uma entre outras, visando atender às
especificidades da Educação Infantil no município. A partir de 2009 esta política
veio a ser fortalecida com ações que abrangem tanto investimentos na
infraestrutura quanto na formação dos profissionais que atuam nessa etapa de
ensino.
Na perspectiva de valorização dos profissionais, em abril de 2010 foi
aprovada a Lei Complementar 0114/10 que dispõe sobre o Plano de Carreira e
Remuneração do Cargo de Educador Infantil (NATAL, 2010a). Este Plano
prevê, entre outras coisas, a otimização da carga horária deste profissional que
passa de 40h para 30h semanais. Contudo, como discutiremos mais adiante,
esta “redução” na carga horária acabou por criar um problema quanto à
garantia das horas previstas para o planejamento das atividades.
Quanto aos investimentos na infraestrutura, do início de 2009 e até
meados de 2010 foram reinaugurados ou inaugurados 30 CMEI33. Na verdade,
a gestão municipal está preocupada com o cumprimento das diretrizes
nacionais que, desde a CF de 1988 (Art. 208, IV) preveem assistência técnica e
financeira aos municípios a fim de garantir o padrão mínimo de qualidade no
atendimento às crianças de zero a seis anos34. Vale lembrar que, aliada à
garantia de espaços físicos, a Política Nacional de Educação Infantil prevê
33
Referente à segunda fase de transição das creches ligadas a SEMTAS para a SME.
Vale lembrar que desde 2008 há garantia de recursos para o atendimento a crianças a partir
de quatro anos de idade.
34
56
também a provisão de equipamentos e materiais adequados nas instituições e,
neste aspecto, ainda há muito a ser feito no município de Natal.
Ainda sobre a ampliação dos espaços físicos, verifica-se que no mês
de abril de 2011, a Rede contava com 61 Centros Municipais de Educação
Infantil e já se encontrava em processo de licitação a construção de mais seis
Centros. Além disso, a SME estará recebendo, até o final de 2011, 26 creches
– da ONG MEIOS – ligadas a Secretaria Estadual de Trabalho, Habitação e
Assistência Social (informação verbal)35.
Contudo, pode-se afirmar que estes esforços estão atrasados em
relação aos objetivos propostos pela Política Nacional de Educação Infantil que
recomenda a integração efetiva de todas as instituições de Educação Infantil
(públicas e privadas) aos respectivos sistemas de ensino até o final de 2007.
Pode-se afirmar ainda que há um longo caminho a ser trilhado no
sentido de cumprir a meta prevista no PNE (2011-2020) de universalizar, até
2016, o atendimento escolar da população de quatro e cinco anos, e ampliar,
até 2020, a oferta de educação infantil de forma a atender a 50% da população
de até três anos. Segundo o IBGE, apenas 35,13% das crianças natalenses
foram matriculadas na Educação Infantil em 2010 (BRASIL, 2010).
2.2.1 A formação dos profissionais que atuam na Educação Infantil no
âmbito da Secretaria Municipal de Educação no município do Natal
O Departamento de Educação Infantil da Secretaria Municipal de
Educação responde diretamente ao Secretário Adjunto de Gestão Pedagógica
e é composto de três setores: Setor de Ações e Projetos, Setor de
Planejamento e Avaliação, Setor de Acompanhamento de Projetos e
Convênios.
35
Dados obtidos no Setor de Planejamento e Avaliação do Departamento de Educação Infantil
em 10 de maio de 2011.
57
A rede municipal de ensino de Natal conta hoje, no âmbito da
Educação Infantil, com, aproximadamente, 61 Centros Municipais de Educação
Infantil (CMEI) e 21 Escolas de Ensino Fundamental que possuem turmas de
Educação Infantil, além de 48 escolas conveniadas pelo PPEPT e 05 escolas
conveniadas pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)36,
atendendo, aproximadamente, 14.879 crianças na faixa etária entre quatro
meses a cinco anos e 11 meses (informação verbal)37.
Além da ampliação da oferta de vagas, os educadores e técnicos da
SME sempre estiveram preocupados com a qualidade desta Educação Infantil.
Além da criação do cargo de educador infantil e a aprovação do seu Plano de
Cargos e Remuneração, o acompanhamento pedagógico, que sempre se fez
presente, foi intensificado.
Pensando em garantir a qualidade da ação pedagógica, cada CMEI e
Escola Municipal com turmas de Educação Infantil contavam, desde o início
dos anos 2000, com uma assessora que acompanhava o trabalho dos
coordenadores pedagógicos, responsáveis pelo planejamento das ações em
cada nível. O planejamento ocorria uma vez por semana, no horário do
expediente dos educadores infantis agrupados segundo o nível de atuação.
Enquanto o educador infantil planejava com o coordenador pedagógico, um
educador de diversas linguagens ou professores de arte e educação física
assumia a turma.
O acompanhamento pedagógico dos CMEI e Escolas Municipais, com
turmas de Educação Infantil, ocorriam dessa forma até meados de 2009,
quando foi criado um Comitê Estratégico de Assessoramento Pedagógico,
composto por doze Grupos de Trabalho (GT), cujo principal objetivo é
ressignificar o monitoramento das escolas, numa perspectiva de estudos que
36
É um fundo de natureza contábil, instituído pela Emenda Constitucional nº 53, de 19 de
dezembro de 2006, cuja composição é oriunda de diversos impostos que abrange toda a
Educação Básica Pública. Os repasses são automáticos, via Banco do Brasil, com base no
número de alunos da educação básica (Matriculados nos respectivos âmbitos de atuação
prioritária) e constantes do último Censo Escolar. Trata-se de um fundo independente para
cada Estado e para o Distrito Federal (Disponível em www.mec.gov.br. Acessado em
21/07/2011).
37
Dados obtidos no Setor de Planejamento e Avaliação do Departamento de Educação Infantil
em 10 de maio de 2011.
58
privilegie a reflexão teórica e prática. Este Projeto de Assessoramento
Pedagógico para a Rede Municipal de Ensino propõe que os diferentes
departamentos e setores da SME trabalhem de maneira articulada, a fim de
minimizar os problemas decorrentes da fragmentação de ações desenvolvidas,
evitando desperdício de tempo, de recursos financeiros e de pessoal. Nesta
nova proposta os assessoramentos são agendados pelo coordenador do GT,
sempre na segunda quinzena de cada mês, e além da assessoria do DEI, os
CMEI e Escolas Municipais com turmas de Educação Infantil recebem uma
equipe multisetorial porque se percebeu que o assessoramento pedagógico
não pode acontecer desvinculado de outras questões de ordem administrativa,
financeira e de gestão (NATAL, 2009).
Contudo a partir do início do ano letivo de 2011, com a implantação da
Lei Complementar nº 121 de 31 de dezembro de 2010 (NATAL, 2010b), a
carga horária de efetivo trabalho em sala de aula passou de 40h para 30h
semanais, o que na prática significa que as horas de planejamento que antes
aconteciam durante o expediente não podem mais acontecer desta maneira.
Há, portanto necessidade de se reorganizar o planejamento dos educadores
infantis e a SME ainda está estudando quais orientações dará aos
coordenadores pedagógicos no sentido de não comprometer a qualidade da
Educação Infantil no município. O planejamento nas Escolas Municipais, onde
as crianças da Educação Infantil são atendidas por professores38, não houve
mudança no planejamento.
Vale chamar a atenção para o fato de que esta organização do DEI no
sentido de garantir a qualidade não contempla as escolas conveniadas. São
apenas duas assessoras pedagógicas, além do chefe do Setor de
Acompanhamento de Projetos e Convênios (SAPCEI), para acompanhar 53
escolas, que atendem 5.472 crianças (informação verbal)39.
Vê-se aqui uma incoerência nesta política que visa garantir a
qualidade, tendo em vista que o atendimento oferecido através de convênios,
38
Diferentemente dos Educadores Infantis, os professores são regidos pela Lei 058/2004 que
prevê 20h semanais, garantidas as horas de planejamento com a presença dos profissionais
de educação física e artes.
39
Informação dada pelo SAPCEI em 19 de maio de 2011.
59
que vem se dando sem o acompanhamento pedagógico necessário, ainda
corresponde a um grande percentual das crianças atendidas na Educação
Infantil no município. Percebe-se, portanto, que ainda há muito a avançar no
campo da Educação Infantil no município de Natal.
60
3 COMPREENDENDO
CONTRA CRIANÇAS
O
FENÔMENO
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A violência é uma forma de relação social e como tal está ligada ao
modo pelo qual as pessoas produzem e reproduzem suas condições sociais de
existência.
Nesta
perspectiva,
a
violência
manifesta os modelos de
comportamento em vigor numa dada sociedade em determinado momento
histórico. Contudo a compreensão da violência não pode desprezar a alusão
aos sujeitos e às estruturas sociais, pois, ao mesmo tempo em que a violência
expressa relações entre classes sociais, ela também expressa relações entre
pessoas. (ADORNO, 1988).
Segundo Britto e Lamarão (1994), frequentemente, dois tipos de
juízos estão presentes nas múltiplas tentativas de explicação sobre a violência.
De um lado, os que acreditam que a violência generalizada se explicaria por
condicionantes estruturais. Do lado oposto, os que defendem que a violência
em geral teria sua raiz na debilidade das ações do Estado.
A primeira vertente considera os agentes e pacientes como vítimas
comuns das condições materiais engendrados por um modelo de organização
social e econômico perverso em si mesmo. Por esse prisma, pobreza e crise
econômica explicariam a produção e disseminação da violência.
A segunda tendência, por sua vez, limita sua atenção à prática da
violência criminosa, praticada necessariamente pelos segmentos sociais que
se mantêm à margem das estruturas formais de produção. De acordo com esta
visão, o criminoso assumiria total responsabilidade por seus atos perante as
instituições do sistema de justiça criminal. O conceito de violência, neste caso,
estaria restrito ao seu reconhecimento formal pela legislação penal.
Partindo do primeiro tipo de interpretação, a melhoria dos padrões de
eficiência da ação policial e do aparelho judicial do Estado, bem como o maior
rigor da lei de repressão à criminalidade, não teriam nenhum efeito diante da
crescente onda de violência.
61
Já para a outra corrente, o aumento da violência se deve justamente
ao excesso de liberalidade do próprio Código Penal, ao despreparo das
polícias e à deficiência do sistema judiciário. Para eles, estes fatores acabam
por propiciar o desrespeito às leis e estimular a criminalidade e a violência em
geral.
Toda essa discussão, independente da vertente adotada, está presa
a uma linha de abordagem “evolucionista” que concebe a violência como
expressão de um estágio determinado da história da sociedade humana.
De acordo com o primeiro tipo de interpretação, a sociedade
brasileira é vista como uma espécie de sociedade de bárbaros, distanciada da
sociabilidade e da convivência civilizada, segundo os padrões culturais
vigentes nas sociedades consideradas desenvolvidas.
A segunda corrente parte do pressuposto que a solidariedade
generalizada que presidia as relações entre os homens foi corroída pelo
individualismo do mundo atual.
Deste modo, já que para a primeira corrente falta-nos a “civilidade”
das nações desenvolvidas, conclui-se que para tal corrente a violência não faz
parte (ou faz em menor escala) das sociedades mais desenvolvidas e
civilizadas. Para esta corrente, a violência é uma característica das sociedades
mais antigas. Em contraponto a esta posição, a segunda abordagem atribui a
violência à sociedade moderna e fala das sociedades antigas como lugar de
“solidariedade comunitária”.
Assim conclui-se que há uma dicotomia presente nesta lógica
evolucionista que demarca a oposição entre “barbárie” e “modernidade”,
ancorada na teoria da modernização que tem como perspectiva a
universalização das sociedades industriais. Nessas sociedades com forte
tendência à urbanização, o crescimento explosivo dos índices sócio
demográficos
promoveria
o
progressivo
desaparecimento
dos
traços
tradicionais e a generalização da lógica que caracteriza a sociedade moderna
(racionalidade e liberdade).
62
A partir desta análise estruturam-se dois modos de pensar e agir
diante da violência. De um lado são imaginadas soluções teóricas para a
problemática e por outra via são gestadas soluções práticas. As respostas
esboçadas são marcadas pela polarização. Por uma trilha, um determinismo
econômico produzindo um discurso unilinear e autoexplicativo que reduz o
trabalho científico a mero exercício de demonstração. Por outra via, uma
perspectiva funcionalista que enfoca a violência como desvio de uma suposta
normalidade social, inspirando ações repressoras com o objetivo de mantê-la
dentro dos limites toleráveis para permitir a reprodução da estrutura social
prevalecente (BRITTO e LAMARÃO, 1994).
A questão da violência vem ocupando o centro das discussões na
sociedade moderna, entretanto, ela se impõe como problemática obrigatória da
Sociologia e da Filosofia desde tempos remotos.
Os estudos acerca da violência têm suas raízes em Thomas Hobbes
no século XVII. Ele concebe a guerra como uma condição natural dos homens
e afirma que para os homens obterem a paz é necessário que cada um
renuncie ao direito que tem sobre as coisas, para transferi-lo a um poder
soberano que governará sobre todos. Esta formulação inspira uma visão
evolucionista em que de um lado visualiza-se o estado da natureza – no qual
predomina a violência e o caos – e do outro o estado da sociedade- no qual se
vive com base na racionalidade das leis com o governo regulando as relações.
Delineia-se, assim, uma trajetória linear entre a barbárie e o mundo civilizado
(HOBBES, 1992).
Foi com este olhar que os colonizadores reproduziram nos povos do
novo continente a imagem do selvagem e propiciaram a ideia de que o
selvagem é um ser para a guerra. Essa imagem se projeta para o discurso
atual sobre a violência, buscando na noção de violência natural a legitimação
para a ação repressora e autoritária da sociedade moderna. Nesta
interpretação, a relação entre violência e sociedades tidas como atrasadas,
assume o caráter de universalidade nas sociedades ditas desenvolvidas. A
figura do nativo violento invade não apenas o imaginário social, mas também o
campo da ciência (HOBBES, 1992). Defendemos a posição da desmistificação
63
do pressuposto de que o homem é, em estado natural, uma “fera” e de que
caberia ao Estado o papel de domador. Isto envolve um processo de
desconstrução ideológica que se dá, necessariamente, no campo da luta
política e, portanto, independe de redescobrir a causalidade desse fenômeno.
A problemática da violência contra crianças se insere no contexto mais
amplo da escalada que esse fenômeno vem assumindo nos últimos tempos,
podendo se dá em diversos contextos: na escola, na rua, nas relações de
trabalho, no trânsito, na vizinha da criança e até na própria casa (violência
doméstica ou intrafamiliar).
Na presente pesquisa, nosso enfoque será a violência praticada contra
as crianças em seus próprios lares, já que dentre os diversos tipos de violência
praticados contra elas a violência doméstica merece destaque tendo em vista
que é responsável por 88,8% dos casos de violência contra a criança
(AZEVEDO, 2005).
Infelizmente as crianças não são as únicas vítimas da violência
doméstica. Trata-se de um problema social de grande dimensão que afeta toda
a sociedade, em especial as mulheres, as crianças, os adolescentes, os idosos
e deficientes (BRASIL, 2001). De acordo com Ferrari e Vecino (2002) a
violência revela uma relação assimétrica e hierárquica de poder com o fim de
dominação, exploração e opressão e está relacionada aos fatores estruturais,
socioeconômicos e psicoculturais, que influenciam a conduta dos indivíduos e
grupos sociais.
Contudo,
a
violência
doméstica
contra
a
criança
tem
uma
particularidade. Sendo, dentre os grupos mais vulneráveis, aquele mais frágil, a
criança é, na maioria das vezes, a última a ter acesso aos direitos básicos de
cidadania.
Diante da fragilidade e da dependência emocional infantil, a violência
doméstica contra crianças é um fenômeno que se sustenta na relação
autoritária, no abuso de poder do adulto que deveria ser referência positiva
para a construção da identidade da criança. Esta dinâmica relacional
64
adultocêntrica dificulta o desenvolvimento infantil e compromete a construção
de vínculos afetivos fundamentais no processo de socialização.
Todavia, não se pode compreender a violência doméstica analisando
apenas a dinâmica dos relacionamentos. Faz-se necessário considerar a
sociedade e a cultura onde ela ocorre, pois quando alguém mergulha no íntimo
de seu ser não encontra uma personalidade autônoma, desvinculada de
determinações sociais.
Daí porque a compreensão da violência doméstica contra crianças
brasileiras deve, necessariamente, fazer-se à luz de uma percepção históricocrítica do Brasil em seus aspectos socioeconômicos, políticos e culturais.
Não se pode esquecer que somos um país com uma desigualdade
social absurda e evidente, onde, em 1990 os 20% mais ricos tinham um
rendimento 26 vezes maior do que os 20% mais pobres. Somos um país com
qualidade de vida deteriorada, ocupando a 72ª posição no Relatório sobre o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) divulgado pela ONU em 2002.
O IDH é um dado utilizado pela Organização das Nações Unidas
(ONU) para analisar a qualidade de vida de uma determinada população. Os
critérios utilizados para calcular o IDH são: Grau de escolaridade, Renda, Nível
de saúde. O IDH varia de zero a um e quanto mais se aproxima de um, maior o
IDH de um local. De acordo com dados divulgados em novembro de 2010 pela
ONU, o Brasil apresenta IDH de 0,699, ocupando atualmente o 73° lugar no
ranking mundial. Apesar do país vir conseguindo elevar o seu IDH e hoje ser
classificado entre os países com IDH alto, existem grandes disparidades
sociais e econômicas entre os estados brasileiros. No Nordeste, quase 75%
das crianças vivem em famílias com renda per capita de até meio salário
mínimo (UNICEF, 2004). Deste modo, classificar o Brasil entre os países com
alto IDH torna-se uma ironia.
Este retrato do Brasil nos permite entender a violência doméstica
contra nossas crianças, entre outras coisas, como uma manifestação da
desigualdade social e da cidadania precária em um país desigual, de marcada
pobreza social e política. Permite ainda conceber que este perfil se produziu
65
historicamente no bojo das transformações socioeconômicas e políticas cujas
raízes remotas estão no nosso processo colonizatório, no escravismo, na
família patriarcal.
Diante do exposto até aqui, vê-se que a violência doméstica contra
crianças
é
um
fenômeno
causado
por
múltiplos
determinantes
(socioeconômicos, culturais, psicológicos e situacionais). Por isso privilegiamos
neste trabalho, como modelo explicativo, o modelo multicausal e interativo
originário dos estudos de Azevedo e Guerra (2005).
É multicausal por tratar-se de um modelo assentado no pressuposto de
que o abuso-vitimização intrafamiliar praticado contra crianças decorre da
interação entre determinantes socioculturais e determinantes que envolvem a
relação familiar, na qual se fazem presentes elementos psicológicos e culturais
do pai, mãe e filho(a). E é interativo por tratar-se de um modelo que traz
implícita a hipótese histórico-crítica de (re)produção do padrão social e da
interação pai-mãe-filho(a).
O modelo interativo multicausal que privilegiamos aqui se baseia na
abordagem sócio-psico-interacionista, cujo postulado básico é o de que
[...] embora as condutas humanas decorram da interação
indivíduo-sociedade, a direção dessa interação é clara: o
psicológico (individual) é condicionado pelo social e esse
condicionamento se produz historicamente. (AZEVEDO;
GUERRA, 2006, p. 23)
A violência doméstica, embora seja um fenômeno associado à
pobreza, ocorre invariavelmente em todas as classes sociais. Contudo, nos
segmentos mais pobres, o ambiente físico (casas construídas muito próximas,
inexistência de muros, etc) facilita a exposição dos casos à vizinhança,
enquanto nas classes sociais mais elevadas, onde as “mansões” são
protegidas por altos muros, torna-se mais difícil que a vizinhança perceba tais
casos.
66
Embora a violência doméstica seja de difícil diagnóstico, devido à
cumplicidade da família em proteger o agressor, seus desdobramentos podem
ser observados em ambientes extrafamiliares, como a escola, tendo em vista
que as crianças dão várias pistas, na maioria das vezes não verbais, sobre as
situações de violência doméstica das quais são vítimas.
A fim de identificar o fenômeno, deve-se conhecer o perfil do agressor.
Este, geralmente, vê a criança como um objeto, raramente comparece nas
reuniões escolares, descreve a criança como preguiçosa, de má índole e
causadora de problemas, culpa a criança pelos problemas no lar, defende a
aplicação de disciplina severa, demonstra irritação e pouca paciência com o
comportamento próprio das crianças, cobra da criança desempenho físico e/ou
intelectual acima de sua capacidade, tem um histórico de violência em sua
própria infância, faz uso de álcool e outras drogas e mente sobre a causa das
lesões da criança quando é questionado a respeito (SANTOS, 2004).
O perfil da vítima também precisa ser observado. Geralmente ela teme
exageradamente os pais, tem baixa autoestima, está sempre em estado de
alerta e falta constantemente à escola. Evidentemente, os sinais de alerta vão
variar conforme o tipo de violência (CUNHA, 2004).
É bom lembrar ainda que, em 70% dos casos, o agressor é o pai
biológico. Porém, se for levada em consideração a frequência das agressões, a
mãe agride mais, porém o pai causa lesões mais graves. A maioria dos
agressores leva uma vida normal, em apenas 10% dos casos o agressor sofre
de transtornos psiquiátricos (FELIZARDO; ZURCHER; MELO, 2004).
O tema abordado nesta pesquisa – violência doméstica contra crianças
– apresenta uma relação com a violência entre as classes sociais,
característica do modo de produção das sociedades capitalistas. Contudo,
existem outros determinantes além dos estruturais, pois esta “é um tipo de
violência que permeia todas as classes sociais como violência de natureza
interpessoal” (GUERRA, 2008, p.31).
Isso significa reconhecer que se é verdade que o abuso-vitimização
doméstica de crianças depende, por hipótese, sobretudo de um padrão abusivo
67
de interação pai-mãe-filho(a) enquanto padrão de relacionamento interpessoal
familiar, contudo, esse padrão foi construído historicamente por indivíduos que
revelam as marcas de sua história pessoal no contexto da história
socioeconômica, política e cultural de uma dada sociedade. (AZEVEDO;
GUERRA, 2006).
A violência doméstica contra a criança é uma forma de violação dos
seus direitos, uma negação dos valores humanos fundamentais. Consiste no
abuso do poder disciplinador do adulto. Trata-se de um processo de
vitimização, onde a criança é coagida a satisfazer os desejos do adulto, sendo
vista por este como um objeto que lhe pertence, uma “coisa”.
O conceito de violência doméstica utilizado nesta pesquisa diz respeito
aquela praticada contra crianças e/ou adolescentes no âmbito familiar, pelos
pais, parentes ou responsáveis, sob a forma de ação ou omissão, pautada no
abuso de poder, que reduz a vitima à condição de objeto.
Horkheimer
(1985)
consideram
a
família
como
uma
agência
socializadora e formadora da personalidade dos indivíduos que exerce um
papel conservador e onde está sempre presente o elemento de dominação,
cujo elemento central esmagador da liberdade é a autoridade dos pais sobre os
filhos.
Na família, lugar de adestramento para a adequação social, a
criança aprende a relação burguesa com a autoridade; o filho
aprende a desenvolver o respeito pela autoridade, através da
idealização da figura paterna. A família é a matriz dos
mecanismos da internalização da submissão [...] (AZEVEDO;
GUERRA, 2005, p.59).
Além de ser um lugar onde se forma a estrutura psíquica, a família é
um espaço social onde as gerações se defrontam mútua e diretamente, é onde
são definidas as relações de poder. Porém, como a família pertence à esfera
privada, a violência doméstica, geralmente, é “protegida” por um pacto de
silêncio firmado entre seus membros.
68
3.1 Modelos explicativos da violência doméstica contra a criança
A escolha de um modelo explicativo na área da violência doméstica
contra crianças requer do pesquisador um compromisso científico no sentido
de compreender o fenômeno a fim de impedir sua (re)produção social, no
sentido de comprometer-se, sempre, com a proteção da criança. (LACRI,
2006).
Segundo Azevedo e Guerra (2005), os modelos explicativos da
violência doméstica contra crianças têm sido de dois tipos: os unidimensionais
e os multidimensionais. As pesquisas realizadas nos modelos unidimensionais
baseiam-se no pressuposto determinista da causalidade linear e defendem a
tese de que o componente responsável pela perpetração da violência
contra a infância seria o desvio (ou doença) de natureza individual (modelo
psicopatológico) ou o desvio social (modelo social), incidente nos ou sobre os
agressores. Já as pesquisas realizadas utilizando o modelo multidimensional
assentam-se no pressuposto de que a violência doméstica contra crianças
decorre
da
interação
entre
vários
grupos
de
fatores
(psicológicos,
socioeconômicos, culturais).
Os modelos unidimensionais foram alvo de algumas críticas. Gomes e
Fonseca (2005) ressaltam que para explicar e compreender a violência
familiar dirigida à criança é necessário admitir a interação entre fatores
socioculturais, psicossociais, psicológicos e, inclusive, biológicos.
De acordo com Azevedo e Guerra (2005), estudos baseados na
Teoria Sistêmica e nos trabalhos de Bronfenbrenner (1979), Belsky (1980) e
Ochotorena (1988) propõem um modelo interativo ou multicausal para
explicação da violência doméstica contra a criança, visando à superação
dos modelos unidimensionais.
Conforme as autoras os principais pressupostos do modelo interativo
são os seguintes:
69
As forças ambientais, as características do agressor e as
características da criança ou adolescente vítima atuam de
maneira dinâmica e recíproca neste processo [...] a realidade
familiar, a realidade social e econômica e a cultura estão
organizadas como um todo articulado e como um sistema,
composto por diferentes subsistemas que se articulam entre si
de maneira dinâmica [...] os maus-tratos infantis resultam da
determinação de maneira múltipla de forças que atuam na
família, no indivíduo, na comunidade e na cultura em que
este indivíduo e a família estão implicados (AZEVEDO;
GUERRA, 2005, p. 43).
No entanto, as autoras ressaltam que o modelo interativo não é
satisfatório para o entendimento do fenômeno, já que se apoia no mesmo
marco referencial empírico-analítico dos modelos unidimensionais e incorpora
uma postura positivista que resulta na fragmentação da realidade em fatores e
variáveis (LIMA, 2008).
Nesse contexto, Azevedo e Guerra (2005) propõem que a violência
doméstica contra a criança seja compreendida a partir de uma Teoria Crítica,
que embase os estudos acerca da infância, da sexualidade, da criminalidade,
da família e da violência, já que esses vários domínios do conhecimento
mantêm interface com o fenômeno. As autoras afirmam que essa Teoria
propõe que se compreenda a violência à luz de determinantes materiais e
políticos de uma sociedade.
Assim, entendemos que a díade infância e violência doméstica só
poderá ser compreendida a partir das determinações estruturantes do
desenvolvimento histórico objetivo. Uma dessas determinações decorre das
condições materiais de existência e outra das relações de poder decorrentes
da
conversão
de
diferenças
de gênero,
geração,
etnia
etc.
em
desigualdades e, portanto, em pretexto de dominação, opressão, exploração
dos fracos pelos fortes (GUERRA, 2008).
Observando os
modelos
multidimensionais,
nota-se que tanto
aspectos individuais como sociais e culturais são evocados para o
entendimento da violência doméstica dirigida à infância. No que tange aos
aspectos sociais, a violência doméstica pode estar ligada ao estresse
70
resultante da miséria, desemprego, falta de perspectiva. No entanto, a
relação entre condições sociais e a violência familiar dirigida à criança deve ser
alvo de ponderações, pois esta associação indiscriminada do aumento da
miséria como fator de possível crescimento da violência em diferentes níveis,
pode gerar uma criminalização da pobreza, deixando segmentos sociais
inteiros vulneráveis a julgamentos prévios e preconceitos.
Assis (1994) considera que as condições socioeconômicas não são
determinantes para a ocorrência da violência doméstica contra a infância.
A pesquisadora, a partir da realização de uma pesquisa epidemiológica
com adolescentes estudantes das escolas públicas estaduais e particulares do
município de Duque de Caxias/Rio de Janeiro, constatou que as diferentes
condições de vida nos dois grupos sociais estudados não refletiram na
frequência e forma pela qual a violência doméstica se expressou.
Assim, faz-se necessário enfatizar que a violência doméstica não
está
ligada exclusivamente
às
famílias
de camadas
populares, às
condições socioeconômicas. A violência doméstica contra a criança está
presente em todas as classes sociais indistintamente. Contudo, este tipo de
violência
se torna explícita nas
famílias
pobres em função da maior
notificação de casos aos órgãos públicos. Isso ocorre, como já assinalamos,
devido as suas condições materiais de existência: casas com grande
proximidade, sem muros, com muitas pessoas dividindo o mesmo espaço
etc. As famílias de classe média e alta, por contar com mecanismos que lhes
garantem o sigilo, são menos vulneráveis às notificações.
Diante do exposto está evidenciado que a compreensão da violência
doméstica contra a criança requer um modelo explicativo multidimensional,
dada a complexidade e abrangência do fenômeno, ao mesmo tempo em que
tal modelo deve estar ancorado numa perspectiva crítica.
71
3.2 Que terminologia empregar? Que conceituação escolher?
O discurso sobre a questão da violência doméstica contra crianças
revela uma utilização indiscriminada de termos, tais como: abuso, castigo,
disciplina, maus-tratos, violência, violência doméstica, vitimização. Qual deles
usar de forma adequada no tocante à temática em questão?
A díade disciplina-castigo é a mais antiga e de maior tradição em
termos de Educação Infantil. Porém, contam apenas parte da verdade dos
fatos, já que deixam de fora as violências sexuais e não explicitam a gravidade
das formas de disciplinamento e castigo.
O termo maus-tratos também se mostra inadequado na medida em que
coloca a problemática em termos meramente morais, como se fosse uma
questão de bondade ou maldade individual.
Agressão é um termo psicológico limitado, já que não é uma
característica especificamente humana.
Já os termos abuso-vitimização doméstica parecem mais adequados
que os anteriores na medida em que designam os dois polos de uma relação
interpessoal de poder: o polo adulto, mais forte (abuso) e o polo infantil, mais
fraco (vitimização). Os dois termos indicam as duas faces de uma mesma
moeda.
Diante destas variações de terminologias, consideramos que o termo
violência doméstica é o que melhor define a temática abordada nesta pesquisa,
pois baseia-se também nos mesmos pressupostos do abuso-vitimização.
Assim como ocorre com a terminologia, a conceituação da violência
doméstica está longe de ser tranquila: os termos não são uniformes, o
conteúdo não é homogêneo, a dimensão ativa/passiva, bem como a questão
da gravidade das consequências nem sempre estão presentes, o limite etário
varia.
As tentativas de conceituação não permitem identificá-la de forma
inequívoca porque estão ancoradas em termos que dependem de definições
72
legais, ou variam com a sensibilidade de cada cultura ou ainda podem ser
mistificados ideologicamente. Além disso, algumas definições dissolvem a
especificidade do fenômeno.
Dadas às dificuldades conceituais, vamos optar nesta pesquisa pela
seguinte definição de violência doméstica contra a criança:
[...]todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou
responsáveis contra crianças [...] que – sendo capaz de causar
dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um
lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto
e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação
do direito que crianças [...] têm de ser tratados como sujeitos e
pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (GUERRA,
2008, p. 32).
A literatura especializada apresenta reconhecidamente como violência
doméstica, a violência física, a violência sexual, a violência psicológica, a
negligência e o abandono, embora o conceito de cada modalidade sofra
pequenas alterações dependendo do olhar dos sujeitos sociais envolvidos,
como poderemos verificar a seguir, quando os conceitos serão apresentados
conforme o olhar da área de saúde e da educação.
De acordo com as orientações para Notificação de Maus-Tratos contra
Crianças e Adolescentes publicadas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2002),
negligência e abandono são definidos conjuntamente como sendo as omissões
dos pais ou de outros responsáveis (inclusive institucionais) pela criança e pelo
adolescente, quando deixam de prover as necessidades básicas para seu
desenvolvimento físico, emocional e social. Nestas orientações o abandono é
considerado uma forma extrema de violência e a negligência significa a
omissão de cuidados básicos. Já no Guia Escolar publicado pela Secretaria
Especial dos Direitos Humanos e Ministério da Educação (SANTOS, 2004) os
conceitos aparecem separadamente, onde negligência é uma forma de
violência caracterizada por ato de omissão do responsável pela criança ou
adolescente em prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento
73
sadio e abandono é uma forma de violência muito semelhante à negligência
que se caracteriza pela ausência do responsável na educação e cuidados da
criança.
Violência psicológica, segundo o Guia Escolar (SANTOS, 2004) é um
conjunto de atitudes, palavras e ações para envergonhar, censurar e
pressionar a criança de modo permanente. As orientações para Notificação de
Maus-Tratos (BRASIL, 2002) utiliza a terminologia abuso psicológico e o define
como toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito,
cobranças exageradas, punições humilhantes e utilização da criança ou do
adolescente para atender às necessidades psíquicas dos adultos.
O conceito de violência física é praticamente o mesmo em ambos os
documentos. São atos violentos com uso da força física de forma intencional,
não acidental, praticada por pais, responsáveis, familiares ou pessoas
próximas da criança ou do adolescente, com o objetivo de ferir, lesar ou
destruir a vítima deixando ou não marcas evidentes em seu corpo. A única
distinção é que o Ministério da Saúde utiliza a terminologia abusos físicos/
sevícias físicas (BRASIL, 2002; SANTOS, 2004).
A respeito da violência sexual, o Guia Escolar (SANTOS, 2004) diz que
consiste não só numa violação à liberdade sexual do outro, mas também numa
violação dos direitos humanos da criança e do adolescente. As orientações
para Notificação do Ministério da Saúde conceituam a violência sexual como
sendo todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, cujo
agressor está em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que
a criança ou o adolescente, tendo por intenção estimulá-la sexualmente ou
utilizá-la para obter satisfação sexual (BRASIL, 2002).
Diante das conceituações apresentadas, podemos constatar que não
existe uma unanimidade na utilização dos termos, por isso, a partir de agora
faremos uma tentativa de elucidar algumas questões.
74
3.3 Modalidades de violência doméstica contra crianças
Como vimos, a violência doméstica é um fenômeno complexo, suas
causas são múltiplas e de difícil definição. No entanto suas consequências são
devastadoras para as crianças.
Para enfrentá-la de maneira eficaz há necessidade de uma
compreensão ampla e profunda da temática e de uma sistematização de
passos para identificar a ocorrência do fenômeno. “Essa identificação é sempre
problemática porque se trata de uma problemática cercada por um amplo
complô de silêncio de que participa agressor, vítima, parentes, comunidade e
profissionais” (AZEVEDO; GUERRA, 2006, p.5).
Buscando esclarecer algumas questões é que nos propomos a
apresentar neste tópico a violência doméstica contra crianças em suas
diferentes modalidades: física, psicológica, sexual e negligência e abandono.
3.3.1 Violência física
O primeiro relato científico sobre espancamento de crianças se deu na
França, em 1860, com a publicação de um artigo do professor Ambroise
Tardieu, onde comentava 32 casos de espancamento dos quais 18 vítimas
haviam morrido. Antes deste trabalho os relatos eram oriundos da literatura, de
fontes históricas e de narrativas orais. (BUENO, 2007).
Na mesma época do trabalho de Tardieu surgiram várias denúncias de
intelectuais – principalmente escritores – nas quais eram descritas as
violências cometidas contra crianças e adolescentes em escolas e fábricas.
Porém, a comunidade científica não deu a mesma importância que havia dado
ao trabalho de Tardieu e até meados do século XX existiram apenas trabalhos
esporádicos sobre a temática.
Em 1946, o pediatra e radiologista americano John Caffey relatou seis
casos de fraturas de ossos longos que ele relacionou com espancamentos
75
infligidos às crianças. Em 1953, o também radiologista F. N. Silverman,
fazendo um estudo retrospectivo de crianças com quadro clínico semelhante,
associou-os definitivamente a violência física (AZEVEDO; GUERRA, 2007).
Desde esta época foram inúmeras as comunicações de casos de
espancamento contra crianças de tal maneira que em 1961 a Academia
Americana de Pediatria promoveu um simpósio sobre o assunto, presidido por
Henry Kempe que, no ano seguinte, juntamente com Silverman introduziu a
expressão “síndrome da criança espancada” para denominar este quadro. Esta
síndrome apresenta certas particularidades clínicas como: relato dos pais ou
dos responsáveis, não compatível com a apresentação clínica da criança,
idade dos pais entre a segunda e terceira década de vida, fraturas múltiplas,
evidências de traumas múltiplos em estágios evolutivos distintos das variadas
lesões. Mesmo sendo discutível e não aplicável a todos os casos, esta
expressão ainda é amplamente utilizada no mundo inteiro, inclusive, como
sinônimo para violência física em crianças.
O problema do uso da expressão “síndrome da criança espancada” é
que implica na necessidade de um conjunto de sinais e sintomas para
identificar o quadro, limitando assim o ângulo de visão da problemática,
deixando de lado muitos casos aparentemente mais simples, que podem ser o
início de um problema cujas consequências possibilitariam, inclusive, a morte
da criança. (CUNHA, 2004).
Em 1964 Vicent Fontana propõe o termo “síndrome dos maus-tratos”
que, mesmo generalizando o tipo de ação ocorrida e incluindo a negligência no
âmbito global do problema, tem as mesmas limitações do termo citado
anteriormente, pelo fato de manter a palavra “síndrome”. No ano de 1975, D. G.
Gil estabeleceu o conceito de violência contra a criança como sendo o
emprego de qualquer tipo de coerção que comprometa a capacidade da
criança em termos de aquisição do seu pleno desenvolvimento físico e
intelectual (HEBERT, 1995).
A conceituação de violência física é difícil e complexa, principalmente
considerando-se que vivemos em uma sociedade, na qual os castigos são
relativamente comuns e considerados necessários ao processo educativo da
76
criança, sendo utilizado, frequentemente, como forma de ensinar-lhe a
obedecer às normas. Apesar dos castigos corporais serem considerados como
violência, a literatura só é unânime em considerar como violência física duas
modalidades de castigos corporais: os castigos cruéis e poucos usuais e os
castigos que resultem em ferimentos. No primeiro caso estão os castigos
extremos e inapropriados à idade e compreensão da criança, tais como
castigar a criança por não saber usar o banheiro, antes que a criança tenha
idade suficiente para compreender esta necessidade. No segundo caso, estão
o bater de forma descontrolada e com instrumentos que produzem contusão,
independente do motivo (AZEVEDO; GUERRA, 2007).
Uma série de definições acerca da violência física tem sido enumerada
pela literatura, porém, nenhuma é precisa. Talvez o problema fundamental em
termos de definição esteja no fato de que o significado de muitas ações é
determinado pelo ambiente onde elas ocorrem, o que inclui: a intenção do
agressor, o efeito do ato sobre a criança, o julgamento de valor de quem
observa o ato e a fonte do critério para o julgamento do ato.
Estes são
aspectos importantes quando se discute a conceituação da violência física
doméstica (AZEVEDO; GUERRA, 2010).
3.3.2 Violência psicológica
A violência psicológica é uma das formas mais graves de violência
doméstica contra crianças e adolescentes, pois deixa sequelas emocionais de
difícil cicatrização. O que a torna tão grave é principalmente o fato de que
geralmente é ignorada por não deixar marcas físicas. Ocorre quando o adulto
constantemente “deprecia a criança, bloqueia seus esforços de auto aceitação,
causando-lhe grande sofrimento mental”. Pode inclusive ser designado como
‘tortura psicológica’ (AZEVEDO; GUERRA, 2007, p. 41).
Embora a maioria dos pais ame seus filhos e queiram que eles se
desenvolvam de forma sadia e feliz, muitos não sabem como fazê-lo.
Infelizmente, muitos pais não sabem equilibrar suas emoções e expõem os
77
filhos a experiências que suscitam sentimentos de rejeição, isolamento, medo,
humilhação etc. Ameaças de abandono, por exemplo, podem tornar uma
criança medrosa e ansiosa, representando formas de sofrimento psicológico.
A violência psicológica pode assumir a forma de negligência afetiva,
quando se evidencia a falta de interesse pelas necessidades da criança ou
rejeição afetiva,
caracterizada
por manifestações de agressividade e
depreciação para com a criança. Ambas as formas são difíceis de detectar e
por isso acabam sendo categorizadas como violência psicológica apenas as
situações extremas e continuadas de rejeição ou negligência afetiva (LACRI,
2006).
Para se desenvolver de forma sadia a criança necessita experimentar a
sensação de ser acolhida e aprovada pelas pessoas que a cercam. Aliás,
existe uma necessidade universal inerente a todos os seres humanos que é o
desejo de ser amado e valorizado pelos que o cercam. Pela sua condição
peculiar de desenvolvimento a criança é muito frágil e acaba arcando com as
consequências do desequilíbrio emocional dos pais.
Ao nascer, é na família que a criança terá seus primeiros referenciais e
poderá ter seu anseio por aceitação suprido. Os pais ou responsáveis pela
criança funcionam como uma espécie de espelho, onde ela vê refletida a
primeira impressão sobre si mesma e sobre o tipo de pessoa que pensa que é.
A criança para se desenvolver plenamente precisa sentir o amor dos pais e
perceber que é valorizada e importante. Quando uma criança sente que não é
importante, amada e valorizada ou quando é depreciada e humilhada,
podemos dizer que está sendo vítima de violência psicológica o que
certamente trará consequências na autoestima da criança que poderá
inclusive, tornar-se um adulto com sérios problemas psicológicos de aceitação,
bem como desenvolver comportamentos violentos.
O ambiente emocional do lar é percebido pela criança de tal maneira
que logo identifica se existe à sua volta uma atmosfera de harmonia e amor ou
de ódio, violência e confusão. Assim, a convivência familiar saudável,
principalmente nos primeiros anos de vida, contribui para a formação de uma
boa imagem de si mesma, tornando-a apta para enfrentar o mundo lá fora.
78
Muitos pais, desejosos em ver seus filhos bem encaminhados na vida,
acabam
por
sobrecarregá-los
com
cobranças
intermináveis.
Críticas
permanentes são uma forma de violência psicológica. A criança que é muito
criticada pelos pais, sendo raramente valorizada pelos seus acertos,
desenvolve dentro de si a ideia de que não é aprovada por aqueles a quem
mais ama, se tornando insegura, com medo de encarar desafios e enfrentar a
vida (CUNHA, 2004).
O amor incondicional é um pré-requisito para que o ser humano ame a
si mesmo. Mas o que é o amor incondicional? É amar sem impor condições. É
gostar de alguém pelo que é e não pelo que faz. Amar incondicionalmente é
amar apesar das falhas do outro.
Apesar de amarem muito os filhos, alguns pais somente demonstram
este amor quando os mesmos conseguem se sobressair em alguma tarefa. A
demonstração do amor fica condicionada ao que a criança é capaz de realizar.
Essa forma de agir é muito comum em nossa sociedade apesar de ser
profundamente nociva para a criança que passa a acreditar que seus pais só a
amarão se conseguirem bons resultados em suas atividades.
Uma criança que só recebe amor de forma condicional terá muita
dificuldade de amar e apoiar a si mesma quando cometer algum erro. Além
disso, ela desenvolverá sentimentos de inferioridade que sufocarão seu amor
próprio e autoestima (AZEVEDO; GUERRA, 2007).
Outro “sintoma” de violência psicológica é evidenciado pela falta de
prioridade que os pais dão aos filhos. As crianças medem a importância que
têm para seus pais através do grau de atenção que recebem deles. A
sobrecarga de compromissos assumidos pelos pais os transforma em figuras
inatingíveis para seus filhos, que se sentem rejeitados e com um profundo
sentimento de desamparo. Tão importante quanto dedicar tempo para os filhos
é observar a qualidade desse tempo. De nada adianta o pai passar o final de
semana em casa distraído diante da televisão ou lendo um livro o dia inteiro. Às
vezes é mais produtivo disponibilizar meia hora de atenção concentrada para o
filho do que passar o dia inteiro dentro de casa absorvido com atividades
domésticas.
79
Outra modalidade de violência psicológica (e talvez a mais perniciosa)
é a cobrança exagerada de alguns pais, na tentativa de forjar “filhos modelos”.
Assim, acabam sendo extremamente exigentes e levando a criança e/ou o
adolescente a abandonar seus sonhos para vivenciar as expectativas dos pais.
Sem perceber, alguns pais acabam projetando para os filhos coisas que eles
próprios não conseguiram realizar em suas vidas.
A comparação de desempenho entre os filhos também se caracteriza
como uma forma de violência psicológica, que causa constrangimento e
insegurança nos filhos. Além disso, cria a cultura de competitividade dentro do
lar.
Conforme explicitado, a violência psicológica está, via de regra,
presente nas relações pai-mãe-filho-filha, seja através de chantagem
emocional, da coerção psicológica, da imposição da vontade adulta contra os
desejos da criança.
3.3.3 Violência sexual
Conceituar a violência sexual não é uma tarefa fácil. O conceito está
longe de ser preciso. Mas é possível considerar violência sexual como
[...] todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou
homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança menor
de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a
criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre
sua pessoa ou de outra pessoa. (AZEVEDO; GUERRA, 2007,
p. 42).
Esta conceituação genérica permite abranger dois tipos de violência: o
incesto e a exploração sexual. De acordo com Azevedo e Guerra (2006) e
Cohen (2005), a violência sexual incestuosa acontece quando um ou mais
adultos com grau de parentesco e consanguinidade, responsável legal ou
80
apenas mero responsável exerce um ato ou jogo sexual de natureza
heterossexual ou homossexual com uma criança ou adolescente, entre zero a
dezoito anos para obtenção ou estimulação de prazer. Ainda segundo estes
autores o incesto pode ser caracterizado como a união sexual entre parentes,
ascendentes, descendentes e colaterais, podendo ser consanguíneos ou
adotivos.
Já a exploração sexual implica na participação de criança menor de 18
anos em atividades de prostituição e pornografia com fins comerciais
(FALEIROS, 2002).
A violência sexual contra crianças pode ocorrer com contato físico
(coito ou apenas carícias) ou sem contato físico (exibicionismo, voyerismo),
com força física (agressões, assassinatos) ou sem uso da força física, com o
uso da força psicológica, através de ameaças (VITIELLO, 2007).
As
experiências
sexuais
ocorridas
entre
crianças
imaturas
e
adolescentes ou crianças muito mais velhas – quando a diferença entre as
idades é de no mínimo cinco anos – também são consideradas abusivas. A
violência também se caracteriza quando adolescentes jovens têm experiências
com adultos muito mais velhos, com pelo menos dez anos ou mais que os
adolescentes.
Todas as modalidades de violência sexual, além da própria natureza do
processo, têm em comum as seguintes características básicas: trata-se de um
fenômeno que abrange todas as classes sociais, todas as etnias e todos os
credos religiosos; trata-se de um fenômeno que tem sua origem no lar, embora
não se restrinja a ele; trata-se de um fenômeno cuja vítima mais frequente é a
mulher-criança, embora vitimize meninos. (SAFFIOTI, 2007).
De acordo com dados apresentados por Cunha (2004), no Brasil, 20%
das meninas e 10% dos meninos são vítimas de violência sexual antes dos 18
anos. Ainda segundo os mesmos dados, 9% de todas as mulheres foram
sexualmente vitimizadas por parentes e 5% estiveram envolvidas em incesto
pai-filha.
81
3.3.4. Negligência e Abandono
A negligência se evidencia através da omissão dos pais ou
responsáveis em atender as necessidades básicas de suas crianças, podendo
resultar em danos físicos, emocionais, psicológicos ou até mesmo na morte da
criança.
Existem dois tipos de negligência: a emocional e a física. A negligência
emocional ocorre quando a criança não recebe atenção, carinho, proteção ou
outros estímulos necessários ao seu desenvolvimento. A negligência de
natureza física ocorre quando falta cuidado com a criança no que diz respeito a
seu vestuário, alimentação, cuidados higiênicos mínimos, prevenção a
acidentes domésticos, etc. (AZEVEDO; GUERRA, 2007).
Apesar de ser a modalidade de violência doméstica na qual ocorre o
maior número de denúncias, a negligência é de difícil diagnóstico. Isso ocorre
porque é difícil separar o que decorre da falta de cuidado dos pais e o que é
consequência do perverso sistema econômico, no qual muitas famílias são
obrigadas a conviver com a ausência de recursos para moradia, alimentação
adequada e saneamento básico.
Contudo, faz-se necessário destacar que apesar da negligência
apresentar-se predominantemente na população de baixa renda, ela também
se encontra, a despeito das condições sociais satisfatórias, em algumas
famílias das classes média e alta.
São indicadores da presença de negligência no ambiente familiar:
família que não participa da vida em comunidade, dependência química dos
pais ou responsáveis, presença de graves problemas de saúde física e mental
dos pais ou responsáveis, pais ou responsáveis que não conseguem manter
uma relação afetiva estável com um(a) parceiro(a), desconhecimento dos pais
ou responsáveis quanto às necessidades básicas de suas crianças e de seus
estágios de desenvolvimento, miserabilidade da família (LACRI, 2006).
82
A negligência no ambiente familiar ocorre em dois níveis: severa e
menos severa. Nas famílias onde ocorre a negligência severa existe o caos em
todos os setores. Geralmente ocorre o uso indevido de álcool e outras drogas
ou podem existir quadros psiquiátricos complicados e/ou retardo mental dos
pais. Não há preparo das refeições, não há roupas limpas, o lixo se espalha
pelo chão, há fezes e urina pela casa. As crianças ficam abandonadas à
própria sorte, são deixadas sozinhas por muitos dias e podem apresentar
desnutrição grave. Nestas famílias, geralmente, muito numerosas não existe
uma rotina para as crianças e não há planejamento para o futuro. As crianças
vítimas de negligência podem ser vítimas de queimaduras, fraturas etc., fruto
da indiferença e omissão dos seus pais.
As famílias onde a negligência ocorre na modalidade menos severa
partilham das mesmas características das famílias severamente negligentes,
mas num grau menor. Em alguns aspectos, podem apresentar maior
organização: as crianças frequentam a escola regularmente, as refeições são
preparadas, há algumas roupas limpas. (CUNHA, 2004).
Nas famílias negligentes o relacionamento entre pais e filhos é muito
precário. O diálogo, quando tem, é truncado, sendo comum o uso de palavrões
e gritaria. O convívio familiar é destituído de afeto, inexistindo conversas
amigáveis e brincadeiras entre seus membros. Nessas famílias existe um
conformismo muito grande, sendo comum a tentativa de esquivar-se de
enfrentar os problemas. O fracasso, a baixa autoestima e o desânimo sempre
se encontram presentes.
Apesar do Ministério da Educação conceituar negligência e abandono
separadamente, optamos por considera-los conjuntamente, considerando o
abandono uma forma extrema de negligência (BRASIL, 2002). Sabe-se que a
negligência e o abandono também pode ser consequência de problemas
estruturais. Num país onde não há creches suficientes para atender à
demanda, onde as famílias não têm dinheiro para pagar babás e as mães
precisam trabalhar, é comum que as crianças mais velhas assumam os
cuidados dos irmãos ou, em situações extremas, as crianças sejam deixadas
trancadas em casa, sozinhas. Em ambos os casos, as famílias poderão ser
83
acusadas de negligência e abandono, mesmo que suas ações sejam
consequência da falta de políticas públicas adequadas.
3.4 A Política Nacional de Assistência Social e o Sistema de Garantia de
Direitos: dois instrumentos na luta contra a violência doméstica infantil
Como sustenta Faleiros (2006), as diferentes formas de se ver a
criança no decorrer da história contextualizam uma trajetória que, embora
tenha acumulado conquistas significativas, ainda tem limites que precisam ser
superados.
O contexto da análise das políticas sociais, da assistência e das
legislações à infância no Brasil, no período histórico entre 1870 e 1930, mostra
a criança enquanto cidadã de segunda categoria, vista apenas como
complemento de um quadro social, desprovida de direitos, rejeitada, ignorada e
abandonada (LIMA, 2003).
A partir da década de 1920, no âmbito internacional, articulava-se uma
nova forma de cuidados às crianças carentes, abandonadas, infratores e
inadaptadas de modo que, em 1924, a Assembleia da Liga das Nações40
adotou a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança. Essa Declaração
previa princípios básicos de proteção à infância, contudo, não teve o impulso
necessário ao completo reconhecimento internacional dos direitos da criança.
Não integrando os países membros da Liga das Nações e assim
excluído dos tratados internacionais, o Brasil decreta, em 1927, o Código de
Menores. O pressuposto básico é o de que se tratava de um projeto
essencialmente político. Era preciso proteger a infância como forma de defesa
da própria sociedade. Assim, o Código de Menores, também chamado de
Código Mello Mattos, define o segmento infanto-juvenil através da categoria
“menor”, o que denota a construção histórica do termo. As representações da
infância à época estavam totalmente atreladas a determinadas classes sociais,
40
Foi um órgão criado após a Primeira Guerra Mundial com o objetivo de evitar conflitos
mundiais. Foi dissolvida, pois não conseguiu evitar a Segunda Guerra Mundial (Disponível em
http//www.onu-brasil.org.br, acesso em 27/06/2011).
84
sendo a periculosidade constantemente atrelada à infância das classes
populares (RIZZINI, 2008).
Acreditava-se que combater a criminalidade precoce era preservar a
pureza da infância, e assim o Código de Menores previa a proteção à infância
de forma repressiva e coercitiva, protegendo, mas também contendo as
crianças para que estas não causassem danos à sociedade. Grosso modo, não
havia resquício algum de proteção ou assistência social, mas uma técnica de
atuação desenvolvida no sentido de controle popular.
O Código de Menores vigorou com base na suposição de que crianças
e adolescentes despossuídos de bens materiais eram uma ameaça à ordem
vigente, valendo-se de arcaicos modelos correcionais como forma de extinguir
a violência infanto-juvenil.
Assim, foram criados reformatórios e casas de
detenção com vistas a punir o menor para que este fosse resgatado de sua
vida pregressa.
Em 1941 foi criado o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM), que
podendo resguardar os direitos das crianças e adolescentes em conflito com a
lei, visava defender a sociedade capitalista de meninos “perigosos e suspeitos”.
Os internatos do SAM tiveram enorme repercussão em virtude das denúncias
dos maus-tratos sofridos pelos internos. A Igreja Católica foi uma das grandes
emissoras de crítica ao SAM, pois o que deveria ser um órgão de proteção,
voltado para uma ação educativa, era na verdade um órgão de repressão que
deixava as crianças à míngua, com instalações em péssimas condições.
(FALEIROS, 2006).
Um ano após a fundação do SAM, surge a Legião Brasileira de
Assistência (LBA), instituição criada em meio ao cenário da Segunda Guerra
Mundial e que tinha por objetivo “prover as necessidades das famílias cujos
chefes haviam sido mobilizados, e, ainda prestar decidido concurso ao governo
em tudo que se relaciona ao esforço de guerra” (IAMAMOTTO, 2008, p. 250251). Inicialmente voltada para nutrir serviços assistenciais aos soldados
mobilizados pela guerra, a LBA começa a desenvolver também um trabalho de
assistência às famílias dos convocados, sugerindo uma rápida progressão
85
enquanto assistência social e transformando-se em um programa de ação
permanente. Assim, nasce outra forma de assistência à criança.
A assistência infantil preconizada pela LBA vem através do projeto
Casulo, que traz um discurso de prevenção junto à infância pobre, cuidando
das mães e das crianças e posteriormente, evitando o ócio e a mendicância
enquanto consequência do abandono infantil.
Esses modelos de assistência sofreram grandes transformações no
decorrer da Ditadura Militar. Com a mudança das relações de poder no Brasil,
a política de assistência para o segmento infanto-juvenil é retocada sob uma
ótica autoritária. O discurso oficial no campo da questão do “menor” é a
extinção do SAM e a implantação de uma política que assegure o bem estar ao
menor, que vem a ser consolidada sob a Lei 4.513 de 1964, referente à Política
Nacional para o Bem Estar do Menor (PNBEM). Por sua vez, a PNBEM tinha
como objetivo coordenar entidades de proteção a crianças e adolescentes. Daí
a implantação da Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor (FUNABEM),
que contempla a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM).
A FEBEM foi criada no intuito de atender menores carentes e infratores
sob a perspectiva da FUNABEM, que previa um atendimento mais moderno,
mas ainda baseado nos moldes assistencialistas. Com o objetivo de conter a
marginalidade, a FUNABEM percebia a pobreza enquanto doença social e
trabalhava sob uma concepção individualista: o indivíduo era o próprio
responsável por seu sucesso ou fracasso social, sua aptidão para viver em
sociedade viria de uma auto regulação.
A política da FUNABEM não reduziu o processo de
marginalização. Durante a ditadura, acentuou-se a exclusão
social, ou seja, a marginalização do menor pela pobreza da
família, pela exclusão da escola, pela necessidade do trabalho
e pela situação de rua que, não raramente, desemboca no
extermínio (FALEIROS, 2006)
86
Em meados dos anos 1970, a Ditadura Militar, frente a uma inflação
crescente, profundo arrocho salarial e repressão dos direitos políticos entra em
crise. Esse cenário de crise do Estado militar traz ainda mais problemas para
consolidar os projetos da FUNABEM. Em meio a esse contexto é aprovado,
em 1979, o Novo Código de Menores sob a Doutrina da Situação Irregular 41,
através da Lei 6.697/79.
Em meados da década de 1980, surge uma oposição à Doutrina da
Situação Irregular, destacando a criança como um sujeito de direito. Esta
mobilização envolvendo juristas, movimentos sociais e alguns setores do
Estado, além da sociedade civil elaborou uma proposta enviada à Assembleia
Constituinte de 1986 que culminou com o reconhecimento dos diretos da
criança
na
Constituição
Federal
(CF)
de
1988.
Nessa
perspectiva,
posteriormente, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
no dia 13 de julho de 1990 regulamentado pela Lei nº 8.069/90.
O ECA baseia-se na Doutrina da Proteção Integral que defende os
direitos da infância através da família, da sociedade e do Estado, garantindo
medidas de proteção e medidas socioeducativas que assegurem tais direitos,
rompendo com os traços punitivos e repressores alinhados sob a Doutrina da
Situação Irregular.
A passagem da situação irregular preconizada pelo Código de Menores
para a proteção integral adotada pelo ECA, evidencia mudanças e
transformações no âmbito do segmento infanto-juvenil a partir da transição do
assistencialismo e da filantropia à política social. Nesse momento a criança
passa de objeto de caridade para objeto de políticas públicas. Assim, é definida
como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. A partir dessa
41
A situação irregular era definida pelo Código de Menores, que dispunha sobre a assistência,
proteção e vigilância dos menores. O art.2º definia a situação irregular como: I – privados
mesmo eventualmente das condições essenciais à sua subsistência, à saúde e ao ensino
obrigatório, em razão de: falta ou omissão dos pais ou responsáveis; impossibilidade notória
dos pais ou responsáveis de lhes sustentar. II – vítimas de maus tratos ou punições
desmedidas impostas pelos pais ou responsáveis. III – em perigo moral em razão de: se
encontrar habitualmente em um ambiente contrário aos costumes; ser explorados em
atividades contrárias aos costumes. IV – privados de representação ou assistência legal, pela
ausência eventual dos pais ou responsáveis. V – desvio de conduta devido a uma inadaptação
familiar ou comunitária grave. VI – autor de infração penal.
87
concepção a filosofia “menorista” dá lugar a Doutrina da Proteção Integral,
compreendendo uma nova forma de se considerar a infância e a juventude.
Enfatiza-se, nesse contexto, o dever da família, do Estado e da sociedade em
prol da promoção e da defesa dos direitos da criança e do adolescente.
É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar a
criança e o adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a consciência
familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão
(BRASIL,1998, art. 227)
Esta concepção implica mudanças no que concerne aos métodos de
intervenção, anulando o caráter coercitivo e punitivo do Código de Menores e
respeitando as fases de desenvolvimento pertinentes à infância e adolescência.
O fato do Código de Menores de 1979 vigorar em face da situação
irregular – imposta sob condições de pobreza e sob as quais as famílias não
tinham responsabilidade – e de considerar preconceituosamente crianças e
adolescentes como “menores”, bem como submeter o adolescente autor de ato
infracional a privação de liberdade (sem que a materialidade dessa prática
fosse comprovada) chamou atenção para o desenvolvimento de uma legislação
que promovesse um sistema de garantia e defesa de direitos voltados à
criança, introduzindo, a partir de então, o paradigma da proteção integral
preconizada pelo ECA.
O ECA surge em um período de efervescência social dentro do
processo de transição político-democrática. Sob essa conjuntura reivindicavase
os
direitos
sociais,
políticos,
civis
e
trabalhistas,
objetivando
a
regulamentação do Estado de direito, através do exercício da cidadania 42.
42
“[...] o conceito de cidadania compreende três elementos inter-relacionados, cujo
desenvolvimento, porém, não coincide no tempo: o elemento civil, composto dos direitos
necessários à liberdade individual (de ir e vir, de imprensa, de pensamento e o direito à
propriedade e de concluir contratos válidos), e o direito de justiça; o elemento político
compreende o direito de participar do poder político, seja como participante de um organismo
investido de autoridade política, seja como eleitor; e, finalmente, o elemento social, ‘que se
88
Como reflexo desse cenário, verifica-se no âmbito infanto-juvenil uma
mobilização em torno das práticas judiciais e sociais destinadas a crianças,
visando à defesa dos direitos das crianças e adolescentes e mudanças
pertinentes ao Código de Menores.
Dessa forma, o ECA configura-se como exigência da promoção da
cidadania de crianças e adolescentes, visto tratar-se de uma legislação que
busca assegurar o sistema de garantia de seus direitos e deveres, conforme
preconiza o art. 3º43 do Título I e o art. 1544 do Capítulo II do próprio Estatuto.
Atualmente, discute-se as condições reais de efetivação do ECA,
considerando a conjuntura nacional. Em meio ao antagonismo capital-trabalho
e sem um projeto revolucionário da sociedade, cria-se um impasse quanto a
“cidadania da criança”: conquista-se direitos formalmente, mas esses mesmos
direitos são ameaçados, precarizados e reduzidos em função da formatação de
um Estado Mínimo, consubstanciado pelo capital.
Embora com dificuldades estruturais de efetivação, o ECA configura-se
como importante conquista, pois trouxe à infância brasileira a universalização
dos direitos. Enquanto o Código de Menores destinava-se apenas aquelas
crianças que estavam em “situação irregular”, o Estatuto estabelece em seu
art. 5º do Título I que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão. Não há, portanto, distinção de etnia, raça, cor, gênero ou classe
social. Crianças e adolescentes são detentores de direitos inalienáveis à sua
condição de desenvolvimento, tal quais os adultos.
refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao
direito de participar, por completo, na herança social e levar uma vida de um ser civilizado de
acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente
ligadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais’”. (MARSHALL apud IAMAMOTO,
2008, p.89).
43
Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por
lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de
dignidade.
44
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como
pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeito de direitos civis, humanos
e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
89
O sistema de justiça juvenil ao sofrer as modificações provocadas pela
implantação do ECA, atribui às crianças e aos adolescentes seus direitos e
responsabilidades, deveres e garantias processuais, formas de punição 45 e
limites, respondendo, de tal forma, as necessidades e interesses desse
segmento.
Ao aderir a Doutrina da Proteção Integral, o Brasil rompe com os traços
conservadores da justiça “menorista”, eliminando a perversidade do paradigma
da “situação irregular” e propondo um sistema de garantias constitucionais,
destinadas a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais como
institui a Constituição Federal de 1988.
A promulgação da Constituição de 1988 foi, portanto um divisor de
águas, tanto no que se refere aos direitos das crianças e adolescentes quanto
ao surgimento de leis essenciais para efetivação dos direitos humanos e do
cidadão. Nela, pela primeira vez no Brasil, instituiu-se a política de Seguridade
Social formada pelo tripé da saúde, previdência e assistência social. A primeira
é instituída como direito de todos e dever do Estado, a segunda como política
contributiva, portanto destinada a quem pode pagar, e a terceira destinada a
quem dela necessitar. Assim afirma a Constituição Federal:
A seguridade social compreende um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social (BRASIL, 1988, Art. 194).
Para regulamentar a política de assistência social surge a Lei Orgânica
da Assistência Social (LOAS), regulamentada pela lei nº 8742/93, dispõe sobre
a organização da Assistência Social. Segundo Sposati (2008) ela é proteção
básica e especial, ato de direito e não de vontade, operando por direitos
coletivos e não só pelo alcance de individualidades.
Mesmo com a promulgação da LOAS, ainda houve inúmeras lutas no
que concerne a sua implementação, culminando em vários mecanismos para
consolidar-se, entre eles, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS),
45
Aos adolescentes com práticas de atos infracionais.
90
através da Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004, a qual representa a
materialidade das diretrizes da LOAS (LIMA, 2003).
A PNAS traz como princípios os itens dispostos na LOAS em seu
capítulo II, seção I, art. 4º, os quais são:
I – Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre
as exigências de rentabilidade econômica;
II – Universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o
destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais
políticas publicas;
III – Respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao
seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à
convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer
comprovação vexatória de necessidade;
IV – Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem
discriminação
de
qualquer
natureza,
garantindo-se
equivalência às populações urbanas e rurais;
V – Divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas, e
projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo
Poder Público e dos critérios para sua concessão. (BRASIL,
2005, p.32)
Deste modo, conforme cita Simões (2008) a PNAS - aprovada pelo
Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) - promove a defesa e atenção
dos interesses e necessidades sociais, particularmente das famílias, com seus
membros e indivíduos mais empobrecidos, com ações de prevenção, proteção,
promoção e inserção que reduzam ou previnam a vulnerabilidade e risco social
decorrentes de problemas pessoais ou sociais de seus usuários e beneficiários.
O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) representa outro
avanço para a política de Assistência, bem como a Norma Operacional Básica
NOB/SUAS, aprovada através da Resolução nº 130, de 15 de junho de 2005
do CNAS, o qual consolida a PNAS e tem por função a proteção social, a
vigilância social e a defesa dos direitos.
91
O SUAS complementa esse panorama a partir de um quadro de ações
voltadas para assistência social (nas modalidades básica e especial) e sob a
oferta de benefícios assistenciais, prestados a públicos específicos, de acordo
com a situação de vulnerabilidade social.
Observam-se, nesse sentido, as novas diretrizes e parâmetros de
atuação no qual a criança é reconhecida em sua cidadania, conforme preceitua
a Constituição Federal de 1988. As articulações e programas que remetem ao
segmento infanto-juvenil não são excludentes nem competitivas, mas
colaboram mutuamente com alicerces mais sólidos e resistentes na efetivação
dos princípios e diretrizes preconizados pelo ECA.
No caso específico desta pesquisa, as crianças de zero a cinco anos
vítimas de violência em seus próprios lares, devem ser alvo da PNAS. Sendo
a violência doméstica contra crianças um fenômeno social de expressiva
dimensão, exige que o governo mobilize e fortaleça ações e serviços para
combater, prevenir e oferecer atendimento especializado às vítimas.
Dessa forma, pretende-se discutir sucintamente os serviços públicos
de enfrentamento da violência contra crianças no Brasil, previsto na Política
Nacional de Assistência Social.
É inegável a necessidade da construção de uma rede de apoio e
proteção a fim de romper com a continuidade da violência doméstica e para
tanto é imprescindível a criação de um trabalho interdisciplinar que crie e
fortaleça um espaço de acolhimento às vítimas.
Para atender a esta necessidade, a PNAS buscou organizar medidas
de proteção e prevenção em diferentes níveis de complexidade no que se
refere à vulnerabilidade pessoal e social para que crianças vítimas de violência
doméstica pudessem ser acolhidas. Nesse aspecto precisou reorganizar
estratégias de intervenção a partir da constatação da fragilidade do sistema.
Assim, a redefinição estabeleceu um conjunto de ações integradas de
intervenção
e
assistência
social
com
a
finalidade
de
aumentar
a
intersetorialidade das ações governamentais voltadas para a inclusão social,
como também elaborar um trabalho de erradicação da fragilidade e
92
fragmentação das políticas públicas. Esse reordenamento da política de
Assistência Social culminou na implantação do SUAS em 2005 (PAIVA, 2006).
Dessa forma, entende-se que o SUAS é um articulador de preceitos,
ações e procedimentos previstos na LOAS e na PNAS. Um dos objetivos do
SUAS é a garantia da operacionalização em caráter sistêmico tanto da
implementação quanto da gestão política. Afinal, é por meio desse sistema
que será definido como os programas, projetos, serviços e benefícios serão
estabelecidos, onde podem ser encontrados, quais pessoas ou grupos sociais
terão acesso e, principalmente, quais critérios de atendimento serão aplicados.
Quanto às situações de violência, o SUAS tem como desafio primeiro
desvencilhar-se da concepção histórica do assistencialismo. Para tanto, a
PNAS definiu a proteção social básica como tendo um caráter mais preventivo
do que do modelo de assistência especial.
O modelo de atenção básica resultou na criação do Centro de
Referência em Assistência Social (CRAS) instalado em áreas territoriais com
vulnerabilidades
sociais
homogêneas
ou
similares,
tendo
sob
sua
responsabilidade até mil famílias por ano em cada território de cinco mil
famílias. Além dos serviços dos atendimentos em grupo, individual, psicológico
e da assistência social, visitas domiciliares, o CRAS também é responsável por
mapear, organizar e coordenar a rede de serviços sócios assistenciais,
devendo contar para tanto com um coordenador e pelo menos um assistente
social, um psicólogo, um auxiliar administrativo, quatro estagiários da
psicologia e do serviço social, num regime de trabalho sugerido de 40 horas
semanais (PEREIRA, 2007). Deste modo, o trabalho dos CRAS deve ter um
caráter preventivo.
Quanto ao atendimento, orientação e apoio especializado a indivíduos
e famílias que enfrentam situações de vulnerabilidade46 os serviços de
46
De acordo com a PNAS constituem situações de vulnerabilidade: crianças, adolescentes,
idosos, jovens, adultos, pessoas com deficiência, migrantes atingidos por processo de
abandono, violência física, psicológica, sexual, negligência, pessoas que estão cumprindo
medidas socioeducativas, moradores de rua, situação de trabalho infantil.
93
proteção especial podem ser de média e alta complexidade. Os serviços de
média complexidade atendem àqueles que tiveram seus direitos violados, mas
cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos. Já os serviços de
alta complexidade têm como alvo as pessoas que perderam o vínculo familiar e
comunitário, necessitando de apoio institucional integral para suprir as suas
necessidades de moradia, alimentação, etc. (BRASIL, 2005). A instituição de
referência para o enfrentamento da violência no que tange à média e alta
complexidade é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS).
Diante do exposto parece pertinente considerar a repercussão do
SUAS no que se refere à violência doméstica contra a criança, visto que esta
temática adquiriu visibilidade nas últimas décadas com programas e ações que
foram construídos com o objetivo de encontrar formas de enfrentamento deste
tipo de violência.
Deve ser ressaltado que a proposta de trabalho articulado pelo sistema
CRAS/CREAS
não
é
um
novo
serviço,
mas uma
nova
forma de
operacionalização que visa enfatizar a atuação integrada e intersetorial,
incluindo todas as instituições que possam contribuir para a prevenção e
assistência aos grupos sociais mais vulneráveis, bem como para a restauração
dos vínculos familiares rompidos em decorrência de uma situação de violência
doméstica (DESLANDES, 2010).
Outros programas que compõem também a rede de proteção especial,
são os Centros de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSI), as escolas da rede
municipal e estadual, abrigos e centros profissionalizantes que podem receber
o encaminhamento gerido pelos CREAS. Destaca-se que a rede mediada pelo
CREAS não deve funcionar como algo desconectado da política de assistência
social, mas como um de seus instrumentos, como um modelo de gestão
integrada da política.
Azevedo e Guerra (2005) definem o trabalho em rede como a
interligação de núcleos multidisciplinares voltados para os direitos da criança,
viabilizando um trabalho articulado quanto ao atendimento, capacitação e
prevenção dos casos de violência doméstica.
94
Conforme o Guia de Orientação do CREAS (BRASIL, 2005) o trabalho
em rede deve funcionar com a finalidade de articular os serviços da proteção
social básica e especial, mas também com as demais políticas públicas e
instituições que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos (SGD).
O SGD é estruturado em três grandes eixos: promoção de direitos,
defesa de direitos e controle social. O funcionamento desses três eixos deve se
dá de forma interligada e sistêmica, sendo essa dinâmica explicitada nos
artigos 86, 87 e 88 do ECA que, em linhas gerais, esboçam a forma como a
política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente é efetivada
através de uma articulação do poder público e da sociedade civil.
Diante de tudo que apresentamos até aqui é evidente a relevância
tanto da Política Nacional da Assistência Social quanto da Política da Criança e
do Adolescente na luta contra a violência doméstica infantil, cujas ações devem
se dá de forma articulada e em rede. Contudo, há inúmeros empecilhos para
que tais políticas funcionem desta forma, desde as condições de trabalho não
adequadas, salários indignos, desarticulação do trabalho entre as instituições
que compõem a rede de proteção, demanda superior aos serviços disponíveis,
cortes nos recursos destinados as políticas sociais, além da cultura brasileira
clientelista que utiliza a assistência social como um favor e não um direito.
Frente a isto, ainda há um longo caminho a percorrer na luta por
políticas efetivas de proteção aos direitos das crianças e no enfrentamento à
violência doméstica que atinge este segmento.
95
4 OS PROFISSIONAIS QUE ATUAM NA EDUCAÇÃO INFANTIL DIANTE DA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS
Compreender o fenômeno da violência que tem como alvo a criança
no ambiente familiar, assim como planejar e executar ações visando ao seu
enfrentamento é, sem dúvida alguma, uma tarefa bem difícil. Entretanto, em
função de sua complexidade e das implicações que o fenômeno impõe
às vítimas,
evidencia-se a necessidade de promovermos
reflexões
e
atuarmos de modo que favoreça a quebra do ciclo da violência que vem
invadindo a sociedade.
Desta forma, a partir da CF (BRASIL, 1988) e do ECA (BRASIL, 1990)
o enfrentamento da violência contra crianças coloca-se como um grande
desafio à todos os segmentos da sociedade, visto que ambos os documentos
apontam como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança seus direitos, bem como colocá-la a salvo de toda a forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Assim, enfrentar a violência deixa de ser uma prerrogativa da segurança
pública e da justiça para se disseminar entre os diferentes segmentos da
sociedade e demais setores governamentais. Portanto a responsabilidade pelo
combate à violência doméstica contra a criança deve ser partilhada por
todas as instituições da sociedade entre elas, as educacionais.
Nesse contexto, as instituições educativas infantis (creches e préescolas) têm uma grande importância, visto que se constituem como um dos
principais
espaços
que
trabalham diretamente com a criança tendo,
portanto, no sistema educacional, uma enorme responsabilidade na promoção
do desenvolvimento infantil, considerando-se as muitas horas de permanência
diárias da criança neste ambiente.
As
47
funções
assistencialistas47
e
compensatórias48,
constituídas
Assistencialismo é o oposto da política pública de Assistência Social. A política de
Assistência Social é um DIREITO, isto é, todos que um dia dela necessitarem, poderão dela
usufruir. Já as ações assistencialistas se configuram como “doações”, que, não raro, exigem
algo em troca (SPOSATI, 1985).
96
historicamente em relação a essas instituições foram sendo paulatinamente
modificadas, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação em 1996, afinada aos princípios do Estatuto da Criança e do
Adolescente, no sentido de entender as instituições de Educação Infantil como
espaços de promoção do desenvolvimento integral da criança em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação
da família e da comunidade (BRASIL, 1996, art. 29).
Desse modo, era de se esperar que creches e pré-escolas passassem
a ter como objetivo a educação, o cuidado e a proteção à infância,
desenvolvendo no dia-a-dia uma prática coerente com a defesa dos direitos
da criança. Entretanto, a realidade evidencia que nem todas as instituições
conseguiram superar o modelo assistencialista. Afinal, modificar esta
concepção envolve, entre outras coisas, assumir as especificidades da
educação infantil e rever concepções sobre a infância, ou seja, significa atentar
para várias questões que vão muito além dos aspectos legais.
Como já assinalamos, o Ministério da Educação (MEC) elabora, em
1998, o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI),
concebido para servir como um guia para a reflexão docente sobre objetivos,
conteúdos e orientações didáticas, visando contribuir para o desenvolvimento
integral e o reconhecimento dos direitos das crianças (BRASIL, 1998).
Segundo este documento, as instituições de Educação Infantil deverão
dar toda a ajuda possível “as famílias que porventura tiverem dificuldades em
cumprir qualquer uma de suas funções para com as crianças” (BRASIL,
1998, p. 84). Sabendo-se que a violência doméstica contra este segmento é
um dos graves problemas enfrentados por algumas famílias, o seu
enfrentamento deve, portanto, ser um objetivo institucional a ser observado
pelas creches e pré-escolas. Diante desta recomendação do RCNEI,
considera-se necessário que pesquisas sejam realizadas a fim de estudar a
Educação Infantil como espaço de proteção à criança no que se refere à
violência doméstica.
48
Por muito tempo, a Educação Infantil se propunha a “cuidar” das crianças, filhas da classe
trabalhadora, oferecendo-lhes alimentação, cuidados com a higiene e alguns conhecimentos,
objetivando compensar as carências sócio culturais resultantes do meio em que viviam.
97
Contudo pouquíssimas são as pesquisas que procuram discutir sobre a
responsabilidade e o papel das creches e pré-escolas na defesa dos direitos
das crianças, sua articulação e relação com a família, com a comunidade e
com
os
órgãos
encaminhamento
governamentais
dos
casos de
responsáveis
pelo
recebimento
e
violência contra criança, bem como a
inserção desta etapa da educação no sistema de proteção à infância.
De acordo com Lima (2008) a importância da Educação Infantil em
ações de enfrentamento à violência doméstica contra a criança, é enfatizada
por três importantes conjuntos de pesquisas. O primeiro conjunto explica a
necessidade de uma atuação mais consistente em função da vulnerabilidade
na faixa etária atendida nas creches e pré-escolas para a ocorrência das
violências. O segundo afirma que as crianças de zero a cinco anos têm
pouca capacidade de expressão verbal para reclamar dos atos violentos,
favorecendo o adiamento da identificação dos casos.
Já o terceiro conjunto de pesquisas aponta os professores
como tendo uma posição privilegiada na sociedade no que
diz respeito à identificação das violências dirigidas à
infância em razão do contato cotidiano com as crianças na sala
de aula, no pátio e nas cantinas e, com seus familiares (LIMA,
2008, p. 45).
Apesar dessa importância da Educação Infantil na defesa concreta
das crianças contra a violência doméstica, estudos apontam que estas
instituições enfrentam muitos obstáculos, entre os quais a existência de alguns
limites na capacidade de identificação das violências pelos professores e,
consequentemente, na falta de encaminhamentos dos casos identificados aos
órgãos de proteção (ANSER; JOLY; VENDRAMINI, 2003).
Acredita-se que para a efetivação de ações que visem o enfrentamento
da violência doméstica contra a criança faz-se necessário pensar estratégias
para enfrentar os limites e contradições encontrados no campo pela
Educação Infantil. É nesse cenário que se insere o objeto de estudo da
presente pesquisa.
98
4.1 O referencial teórico-metodológico da pesquisa
Em virtude do propósito dessa pesquisa convém traçar algumas
considerações acerca das concepções teóricas que a embasam no que se
refere ao fazer pesquisa e ao lugar do pesquisador.
O desenho metodológico adotado é de natureza qualitativa. A opção
por essa abordagem baseia-se no interesse em compreender a complexidade
de um fenômeno que decididamente não se limita a dados estatísticos.
Entende-se também que, para apreender as concepções e práticas dos
profissionais que atuam na Educação Infantil diante da violência doméstica
contra a criança, faz-se necessário tal abordagem, compreendendo a pesquisa
qualitativa como sendo aquela capaz de "incorporar a questão do significado e
da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas
sociais, estas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua
transformação como construção humana significativa” (MINAYO, 1999, p.42).
A presente pesquisa foi desenvolvida numa perspectiva de totalidade,
com vistas a apreender as contradições inerentes à realidade social. Em
virtude disso, nos apoiamos no método materialista histórico-dialético que, a
nosso ver, possibilita clarificar, iluminar e fundamentar a realidade a ser
investigada numa dimensão de concreticidade. Nesse sentido compreende-se
a totalidade como:
[...] realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou
do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos)
pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os
fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos
(reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade.
Os fatos são conhecimentos da realidade se são
compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se não
são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja
reunião a realidade saia constituída – se são entendidos como
partes estruturais do todo. [...] Sem a compreensão de que a
realidade é totalidade concreta – que se transforma em
estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos – o
conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou
a coisa incognoscível em si (KOSIK, 1976, p. 44).
99
Nesta perspectiva, o processo de pesquisa necessita essencialmente
que o pesquisador, a partir da sua investigação científica construa a
capacidade de decifrar a realidade, a partir da leitura de situações “comuns”
numa dimensão histórica e coletiva e de totalidade.
A
busca
da
apreensão
da
totalidade
tenta
compreender as
contradições existentes na sociedade, vendo-as articuladas e movendo o
mundo. O mundo é um processo permanente de mudança, contradições, lutas,
vir-a-ser permanente. Neste sentido, tais contradições trazem rebatimentos
também no processo de construção do conhecimento, especificamente, no
objeto investigado.
Desse modo
Pesquisar é procurar, indagar, questionar o mundo,
principalmente aquele que está ao nosso redor. Assim, o
primeiro passo da atividade do cientista social, enquanto tal
consiste em dirigir à realidade um olhar crítico, inquisidor, de
modo a “desnaturalizar” os fatos sociais. (GONDIM, 1999, p.
27).
É certo que a escolha de um referencial teórico e metodológico parte
do pressuposto de que as nossas escolhas teóricas não se justificam nelas
mesmas. Antes, por trás dos embates teóricos que se travam na academia,
existe uma disputa mais fundamental que diz respeito ao papel da teoria no
modo como os seres humanos produzem sua existência (FRIGOTTO, 1989).
Assim sendo, qualquer que seja a metodologia escolhida para fins
investigativos, esta partirá necessariamente de uma postura epistemológica,
que possui uma concepção de ciência e de mundo.
A dialética materialista é, portanto, além de uma concepção ontológica
de mundo, também um método, cuja característica central é a apreensão
radical da realidade. Contudo, para além dessas duas instâncias, é também
práxis, ou seja, síntese teórico-prática na busca da transformação, também
radical, da estrutura social historicamente construída. Assim, a escolha por tal
método exige do pesquisador compromisso com a transformação do mundo,
100
inquietação diante do instituído e do status quo. Deste modo, nossa escolha
por este método se deu porque, do nosso ponto de vista, o mundo está em
constante transformação e os homens são os sujeitos desta história, pois “os
homens fazem história, mesmo se sob determinadas circunstâncias” (MARX,
2006, p.12)
Neste sentido, reconhecendo a importância da Educação Infantil no
enfrentamento à violência doméstica contra a criança, optamos por
desenvolver uma pesquisa-ação, onde pesquisador e participantes interagem
buscando a transformação da realidade. A transformação da realidade não é
tarefa fácil. As condições objetivas acabam envolvendo os profissionais de tal
maneira que lhes sobra pouco tempo para refletir sobre seu papel de agente
transformador. Não se trata de pesquisa-a-ser-seguida-por-ação, ou pesquisaem-ação, mas pesquisa-como-ação. Trata-se de uma pesquisa-ação, que
difere da pesquisa sobre a ação ou para a ação (BARBIER, 2004).
A pesquisa-ação é definida como uma pesquisa com base empírica,
“realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um
problema coletivo e no qual os participantes representativos da situação ou do
problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo” (THIOLLENT,
1985, p.14).
Essa escolha aproxima-se da metodologia da investigação-ação na
qual o pesquisador intervém de forma intencional e “os participantes não se
situam como pessoas a serem pesquisadas, mas colaboradores em ação que
desempenham um papel ativo no processo e na ação investigativa” (TRIPP,
2005, p.443). Pretende-se, dessa forma, operar com a lógica da intervenção
numa dada realidade, em seu cotidiano, visto que esta pesquisa é ao mesmo
tempo um processo de investigação e de atuação profissional.
Diante disto, cabe esclarecer que se entende a pesquisa-ação como
[...] uma forma de investigação-ação que utiliza técnicas de
pesquisa consagradas para informar a ação que se decide
tomar para melhorar a prática [...] embora a pesquisa-ação
tenda a ser pragmática, ela se distingue claramente da prática
e, embora seja pesquisa, também se distingue claramente da
pesquisa científica tradicional, principalmente porque a
101
pesquisa-ação ao mesmo tempo altera o que está sendo
pesquisado e é limitada pelo contexto e pela ética da prática. A
questão é que a pesquisa-ação requer ação tanto nas áreas da
prática quanto da pesquisa, de modo que, em maior ou menor
medida, terá características tanto da prática rotineira quanto da
pesquisa científica (TRIPP, 2005, p.447).
Merece ser feita aqui uma consideração em relação ao processo dessa
pesquisa, especificamente em relação aos instrumentos e técnicas escolhidas
para a coleta dos dados, a saber, o grupo focal e o diário de campo.
O grupo focal é uma técnica de pesquisa que coleta os dados
utilizando-se das interações grupais. Objetiva discutir um tópico especial
proposto pelo pesquisador. Como técnica, ocupa uma posição intermediária
entre a observação participante e a entrevista (MORGAN, 1997). O grupo focal
pode ser considerado uma espécie de entrevista de grupo, embora não no
sentido de ser um processo onde se alternem perguntas do pesquisador e
respostas dos participantes (LERVOLINO; PERSIONI, 2001). A essência do
grupo focal consiste na interação entre os participantes e o pesquisador.
Como subsídio ao debate o pesquisador deverá munir-se de questõeschave que o ajudem no direcionamento dos debates, permitindo aprofundar as
discussões no caso dos participantes desviarem o foco (GOMES; BARBOSA,
2000).
De acordo com Neto, Moreira e Sucena (2002) grupo focal é uma
técnica de pesquisa na qual o pesquisador reúne, em um mesmo local e
durante certo período, uma determinada quantidade de pessoas que fazem
parte do público-alvo de suas investigações, tendo como objetivo coletar, a
partir do diálogo e do debate com e entre eles, informações acerca de um tema
específico.
No contexto desta pesquisa, configura-se num recurso para apreender
as concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil
diante da violência doméstica sofrida pelas crianças que se encontram sob
seus cuidados nos CMEI.
A escolha da técnica do grupo focal deu-se por entendermos que, para
atingir os objetivos desta pesquisa, o levantamento dos dados através de
debates nos traria mais elementos. Por tratar-se de tema complexo e pouco
102
discutido no âmbito escolar, a participação em pequenos grupos permitiria
confrontar e complementar opiniões, enriquecendo a discussão.
Estando-se diante de uma investigação-ação, os participantes tornamse parceiros no estabelecimento do diálogo, na troca, na construção de
sentidos e significados. No decorrer da pesquisa, vão além de apenas dar
informações ou conceder o seu espaço de trabalho. Neste caso, a
pesquisadora atuou como moderadora do grupo focal, assumindo a posição de
facilitadora, mas também de instigadora do processo.
Necessário se faz esclarecer que o pesquisador ao exercer a função de
moderador do grupo focal não deverá comportar-se como um mero condutor e
animador dos debates. Mesmo que precise desempenhar bem esses papéis,
precisará conjugar tais características ao conhecimento dos temas a serem
debatidos, dos conceitos e dos objetivos trabalhados na investigação, sob o
risco de não conseguir informações mais aprofundadas e pormenorizadas.
Suas tarefas básicas serão as de garantir a participação de todos, assegurarlhes o direito ao sigilo do nome, motivar os debates de forma a fazer com que
todos os temas propostos sejam debatidos, evitar que determinado participante
constranja os outros e que os ânimos exaltem-se ou esfriem (GOMES;
BARBOSA, 2000). Frente a estas considerações, o grupo focal nos pareceu a
técnica mais adequada para interagirmos com os profissionais/participantes.
O instrumento escolhido para registrarmos o processo da pesquisaação foi o diário de campo. Ele é um instrumento de coleta de dados utilizado
para relacionar os eventos observados ou compartilhados e acumular assim os
materiais para analisar as práticas, os discursos e as posições dos
participantes da pesquisa. O diário permite não somente descrever e analisar
os fenômenos estudados, mas também compreender os lugares que serão
relacionados pelos observados ao observador e esclarecer a atitude deste nas
interações com aqueles (WEBER, 2009).
A partir destas colocações, é preciso tecer alguns esclarecimentos
acerca daquilo que um diário normalmente realiza. O diário traz em si a ideia
de registro, de apreensão do momento, como se fosse possível capturar o
presente. Escreve-se como uma tentativa de preservar as diversas situações,
mesmo sabendo que a escrita que preserva os fatos é uma ilusão, pois escrita
103
alguma é capaz de captar a totalidade, preservar o momento como uma
suposta verdade (BLANCHOT, 2005).
Apesar de concordarmos com Blanchot, consideramos também que o
diário possibilita colocar em dia as relações que foram nutridas entre o
pesquisador e os pesquisados e para objetivar a posição de pesquisador,
assim como dúvidas, inquietações, reflexões. Assim, optamos por usar o diário
como uma estratégia e um dos instrumentos dessa pesquisa, ciente de seus
limites e riscos. Ele deve servir como um instrumento e não como um fim.
Esse diário não deve ter a pretensão ilusória de apreender o real em toda sua
complexidade e sim registrar memórias, sensações, afetações. O objetivo não
é a escrita do diário em si e sim o que se pode produzir a partir dele refletindo
acerca do que foi escrito a luz do referencial teórico adotado. Assim, o objetivo
é refletir sobre nosso objeto e construir reflexões acerca dele, partindo do
conhecimento produzido, que será sempre inacabado, parcial, incompleto, com
vistas à objetividade, mesmo sabendo que tal objetividade será crivada de
subjetividade.
Nesta pesquisa as diversas fontes de informação, principalmente as
falas dos profissionais que atuam na Educação Infantil (expressas durante a
realização do grupo focal) e os registros no diário de campo, permitiram uma
análise acerca tanto das concepções desses profissionais sobre a violência
doméstica contra a criança quanto das suas práticas diante do fenômeno.
Diante do exposto até aqui, no que se refere aos objetivos dessa
pesquisa e à discussão metodológica acerca do fazer pesquisa e do lugar do
pesquisador, fica claro que se pretende, como estratégia, apreender quais as
concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil diante
da violência doméstica contra a criança de zero a cinco anos.
O processo desta pesquisa ocorreu em paralelo ao processo de
trabalho da pesquisadora e aconteceu por meio de algumas estratégias que
serão descritas a seguir.
104
4.2 (Re)conhecimento do campo e definições iniciais
Por (re)conhecimento do campo assinala-se a fase inicial da
investigação que ocorreu entre julho/2009 e agosto/2010, quando identificou-se
a problemática e definiu-se os objetivos da pesquisa.
Ao assumir a função de assessora pedagógica do DEI em julho de
2009, constatei que a temática da violência doméstica contra crianças não se
fazia presente nas discussões, nem tampouco no cronograma de formações
daquele Departamento.
Este silêncio me intrigava. Sendo a Educação Infantil um espaço
privilegiado para a identificação de eventuais casos de violência doméstica
contra crianças, porque esta temática não fazia parte do cotidiano do DEI?
Numa primeira aproximação do objeto de estudo, decidimos abordar
a questão nas reuniões semanais do DEI, espaço onde as demandas
provenientes dos assessoramentos são compartilhadas. Esta abordagem se
deu em duas oportunidades, entre os meses de setembro a dezembro de 2009,
onde foram apresentados dados, exemplos de situações, etc. A partir do
momento que “lançamos tais provocações” começaram a surgir nas falas das
assessoras pedagógicas, relatos de casos envolvendo suspeitas de violência
doméstica contra crianças. Como supúnhamos e os dados estatísticos
apontam, a violência doméstica contra a criança é uma realidade presente nos
CMEI. Provavelmente a natureza do trabalho das assessoras, essencialmente
pedagógico, não permitia que a temática viesse à tona, visto que há uma
compreensão, a nosso ver equivocada, de que a violência é um tema da
assistência social e não da educação. À educação cabe preocupar-se com o
aprendizado das crianças.
Utilizamos ainda como estratégia de aproximação do objeto, sugerir
à Secretária Adjunta de Gestão Pedagógica a realização de uma palestra aos
gestores dos CMEI na qual o tema seria abordado de modo que eles
pudessem refletir sobre a possibilidade de haver crianças vítimas de violência
doméstica entre aquelas atendidas nas creches e pré-escolas dirigidas por
eles. Tal proposta não foi aceita de imediato e precisamos de dois encontros
105
com a Secretária Adjunta, entre os meses de março a junho de 2010 para
acertar o detalhamento da palestra, que aconteceu somente em agosto. Nos
relatos dos gestores, durante e logo após a palestra, evidenciou-se que a
temática estava latente, não aparecia nas falas cotidianas, mas era uma
realidade presente no dia-a-dia. Muitos nos procuraram relatando suspeitas de
abuso sexual contra as crianças atendidas nos CMEI ou mesmo com situações
concretas.
Estas aproximações com o objeto permitiram delinear melhor a
problemática em questão. Perguntávamo-nos: os profissionais que atuam na
Educação Infantil são capazes de reconhecer os sinais de violência doméstica
contra as crianças que estão sob a sua responsabilidade nos CMEI? Em caso
de
suspeita
ou
confirmação
desse
tipo
de
violência,
sabem
quais
encaminhamentos tomar?
Essas duas abordagens iniciais sobre o tema, (com as assessoras
pedagógicas e os gestores) no âmbito da Secretaria Municipal de Educação,
mais especificamente no Departamento de Educação Infantil, ajudou-nos na
definição dos critérios para a escolha dos participantes da pesquisa. Decidimos
que a pesquisa seria realizada nos CMEI onde houvesse relato de casos. Que
sentido haveria pesquisar em um local onde não houvesse menção a nenhum
caso? Como a pesquisa objetiva analisar concepções e práticas, faz-se
necessários que existam situações concretas para que os profissionais possam
colocar suas posições diante delas.
Tratando-se de uma pesquisa-ação não faria sentido realizar a
abordagem em um espaço onde não houvesse interesse pela temática, desejo
de conhecer, vontade de modificar a realidade. Na pesquisa-ação os
participantes necessitam estar envolvidos no processo, pensando e refletindo
sobre o que estão fazendo (NOVAES, 2009). Assim, estabelecemos como
critério importante de envolvimento com o tema e participação na pesquisa que
a própria equipe do CMEI nos fizesse um convite para discussão do tema.
Consideramos que seria mais fácil pesquisar um grupo que solicitasse nossa
presença no CMEI para ajudá-los a lidar com suas dúvidas e angústias
envolvendo a temática.
106
Entre agosto e dezembro de 2010 recebemos três convites: dois CMEI
localizados na zona Oeste e um na zona Norte. A partir destes, optamos por
realizar a pesquisa de campo em apenas dois CMEI. Um deles, localizado na
zona Oeste, já havia realizado uma ação na perspectiva do enfrentamento ao
abuso49 e exploração sexual. O outro, localizado na zona Norte, jamais havia
realizado uma ação abordando a temática da violência contra a criança.
A escolha deste critério para seleção das instituições não se deu a
50
priori , mas a partir dos convites efetuados por três CMEI, achamos
necessário adotar outro critério para a escolha de somente dois. Deste modo, a
escolha por um CMEI que já havia realizado uma ação na perspectiva do
enfrentamento à violência doméstica justificou-se como uma tentativa de
compreender como profissionais de instituições que possuem experiências
diferentes frente ao fenômeno, lidam com esta problemática. Além disso, a
escolha de
um CMEI
que
já
havia tido contato com a temática51,
provavelmente, evitaria a negação do fenômeno pelos participantes da
pesquisa, viabilizando tanto a coleta de dados quanto a realização de reflexões
alicerçadas na experiência sobre as possibilidades
das instituições de
Educação Infantil se constituírem enquanto espaços de defesa e proteção
da criança.
Objetivando contemplar duas zonas distintas da cidade, o outro CMEI
foi selecionado pelo fato de localizar-se na zona Norte.
Vale lembrar que, para a escolha destas duas instituições-alvo
da pesquisa de campo levamos em conta o convite que nos foi feito,
demonstrando o desejo dos participantes de que a temática fosse abordada
nos respectivos CMEI. Em ambos, a concordância foi unânime.
No campo de investigação trabalhamos com um grupo de 31
participantes, no período compreendido entre setembro/2010 e fevereiro/2011,
referendados pelos seguintes critérios: 1º) fazer parte da equipe dos Centros
49
O abuso sexual ou violência sexual é uma modalidade de violência doméstica contra a
criança.
50
O primeiro critério para a seleção das instituições, como já assinalamos, foi o convite feito
pela gestão à pesquisadora.
51
Neste caso, violência doméstica na modalidade abuso sexual.
107
Municipais de Educação Infantil que nos fizeram convite para discutir sobre as
situações de violência doméstica envolvendo crianças atendidas nos CMEI. 2º)
manifestar o desejo de participar do processo desta pesquisa.
Definidos os critérios de participação, o grupo ficou assim
constituído:
Quadro 1: participantes, função, quantidade, local de trabalho
Função
Nº de
Local de Trabalho
Participantes
CMEI Oeste
CMEI Norte
Diretora
02
01
01
Coordenadora
02
01
01
Auxiliar de secretaria
01
-
01
Educador(a) infantil
15
10
05
Auxiliar de sala
04
02
02
Merendeira
03
01
02
Serviços gerais
04
02
02
TOTAL GERAL
31
17
14
Fonte: pesquisadora
Decidimos por preservar a identidade do grupo, fazendo uso de
nomes fictícios ao designar seus relatos no corpo da pesquisa, bem como
optamos por não usar os nomes das unidades. Os nomes escolhidos foram
CMEI Oeste e CMEI Norte.
A escolha pela utilização do grupo focal na coleta dos dados se deu
porque neste procedimento as pessoas se sentem mais à vontade, colocando
seus pontos de vista com maior naturalidade, uma vez que uns podem
escutar os outros, estabelecendo assim um diálogo entre participantes, em
108
que o facilitador/pesquisador se envolve intensamente, colocando-se como
mais uma pessoa no grupo,
sem,
contudo,
sair
do
seu
lugar
de
pesquisador/observador atento e instigador.
Para contornar possíveis dificuldades no que diz respeito a pouca
participação ou mesmo “fuga” do tema proposto no levantamento das
informações necessárias e manter as discussões em patamares interessantes
para todos, munimo-nos de um sucinto roteiro de debate, a fim de nos auxiliar e
nortear-nos durante o desenvolvimento do grupo focal.
Ao todo foram realizados cinco encontros com duração média de duas
horas cada: três encontros no CMEI Oeste e dois no CMEI Norte, entre os
meses de setembro de 2010 a fevereiro de 2011. Os encontros aconteceram
nas reuniões de planejamento coletivo, que ocorrem mensalmente, quando as
crianças são liberadas das aulas.
Esperávamos encontrar dificuldade quanto ao número de participantes,
visto que alguns profissionais utilizam-se do dia do planejamento coletivo para
faltar ao trabalho, mas isto não ocorreu. Todos os sujeitos “previstos” estavam
presentes. A única dificuldade se deu com relação ao equipamento de projeção
no CMEI Norte que não foi providenciado pela direção, conforme havíamos
acertado previamente.
Todo o procedimento de pesquisa, além das apreensões feitas por nós
ao longo do processo, foi registrado no diário de campo e este registro foi
norteado por alguns eixos:
 Como os profissionais que atuam na Educação Infantil conceituam a
violência doméstica? (Como percebem/compreendem esse fenômeno?).
 Essa demanda chega ao CMEI? Que tipo de demanda é essa? Já
se deparam com ela? (Conseguem identificar sinais de violência doméstica nas
crianças?)
 Como lidam com o fato? (dificuldades, estratégias que utilizam etc.)
Qual é o papel do profissional que atua na Educação Infantil frente à violência?
(possibilidades e limites).
109
As
notas
de
campo
são
relevantes,
pois
permitem
que
o
pesquisador tenha uma melhor compreensão do contexto investigado e dos
dados coletados através de outras técnicas, além de ser útil para a promoção
de reflexões que podem auxiliar no delineamento da pesquisa (MAYAN, 2001).
Os relatos destes encontros serão detalhados no item 4.3, tendo em
vista que na pesquisa qualitativa há um nítido interesse pelo conhecimento do
processo e não somente dos resultados e produtos de uma ação (BOGDAN e
BIKLEN,1997).
a) Contextualização das instituições-alvo da pesquisa.
Tendo em vista conhecermos a realidade dos CMEI, não houve
necessidade de visitas para conhecimento do campo e, devido à existência de
um vínculo de confiança entre os gestores e coordenadores pedagógicos
conosco, foi possível ter acesso aos dados que contextualizam as instituições
pesquisadas. Nos CMEI consultamos o levantamento de dados realizado pelos
profissionais52 sobre as respectivas comunidades, o que nos permitiu
conhecermos mais de perto a realidade dos bairros onde os mesmos se
encontram.
A presente pesquisa se deu na cidade do Natal, capital do Rio Grande
do Norte, composta por 36 bairros que estão dispostos em quatro regiões
administrativas: leste, oeste, norte e sul. As instituições pesquisadas se
encontram nas zonas oeste e norte, nos bairros Nordeste e Lagoa Azul,
respectivamente.
A Zona Oeste abriga, desde a sua criação, uma população mais pobre
que as demais regiões de Natal e sua renda média é inferior à renda
do município. Seu contingente populacional, de aproximadamente 124 mil
habitantes, apresentou uma pequena redução populacional na última década.
São bairros da Zona Oeste: Felipe Camarão, Planalto, Cidade da Esperança,
Nova Cidade, Quintas, Cidade Nova, Bom Pastor e Bairro Nordeste.
52
Para a construção do Projeto Político-Pedagógico do CMEI, os profissionais visitaram a
comunidade para fazer um levantamento socioeconômico.
110
O CMEI Oeste formou-se pela união de duas creches municipais, que
até dezembro de 2008 eram administradas pela Secretaria Municipal de
Trabalho e Assistência Social (SEMTAS). Originou-se a partir do decreto nº
8.655, de 09 de fevereiro de 2009 quando passa a ser administrado pela
Secretaria Municipal de Educação, conforme preconiza a Política Nacional de
Educação (2006).
Está localizado no bairro Nordeste numa área da periferia urbana, com
mangue, cuja população se divide em dois grupos sociais distintos. Na parte
alta – onde existe água encanada,
eletricidade, esgoto, calçamento,
iluminação pública, praças, etc. – estão pessoas que moram no Conjunto da
Marinha53, descendentes de militares que adquiriram os imóveis pela Marinha
do Brasil na década de 1960 e, portanto, com uma melhor situação econômica.
Na parte baixa, a população oriunda de pescadores do mangue e
trabalhadores braçais que residem às margens do rio Potengi, sem água
encanada nem eletricidade com ligação adequada, vivendo em habitações,
por vezes precárias, geralmente inacabadas, de alvenaria, ou em barracos de
madeira e restos de construção e até embaixo de uma ponte inutilizada.
O Bairro Nordeste teve início no final da década de 1940 quando os
herdeiros de Alfredo Getúlio Cavalcante de Souza dividiram as terras em lotes,
vendendo-os a baixos preços. O primeiro desses lotes foi adquirido pela Rádio
Nordeste AM, que instalou ali seus transmissores em 1952, dando nome ao
local e originando o bairro (NATAL, 2010).
O bairro convive com a violência doméstica, o crime, a marginalidade,
o tráfico de drogas, geralmente saindo da parte baixa para a parte alta do
bairro ou dos bairros adjacentes. O atendimento médico à região é precário,
havendo um Pronto Socorro da Prefeitura, que geralmente, não atende à
contento às necessidades mais primárias de saúde da população. Não há
agências bancárias, apenas um pequeno comércio, feito de algumas
padarias, botequins, quitandas, lojinhas e pequenos mercados, dentro do
perfil do poder aquisitivo da população local.
O CMEI Oeste encontra-se na parte alta do bairro, embora seja
53
Nome mais conhecido para o Conjunto Bela Vista.
111
distante do Conjunto da Marinha. Sua clientela é formada basicamente pela
população economicamente mais pobre, nas quais muitas famílias necessitam
da unidade de ensino não apenas pelo objetivo pedagógico ou por ter um local
confiável para deixar as suas crianças, mas por necessidade de ter uma
alimentação diária para o seu filho.
Em 2010, o CMEI Oeste atendeu 75 crianças de dois a três anos em
tempo integral (creche) e 36 crianças de quatro a cinco anos em tempo parcial
(pré-escola). Porém, há uma lista de espera de pelo menos 50 crianças,
segundo a direção. Para atender às 111 crianças, o CMEI conta com uma
diretora, uma coordenadora pedagógica, dez educadores infantis, três
auxiliares de sala, uma cozinheira, dois serviços gerais, dois porteiros e dois
vigias54.
A Região Norte foi criada por meio da Lei Ordinária nº 03878/89,
seguindo tendências descentralizadoras e político/gerenciais, que levaram em
consideração as características geométricas de ordem física dos espaços
naturais, como também as demandas administrativas. Limita-se ao Norte e a
Oeste com o município de Extremoz, ao Sul com o Rio Potengi, e a Leste com
o Rio Potengi e o Oceano Atlântico. É a maior zona da cidade, concentrando
uma população de, aproximadamente, 300 mil habitantes, embora haja
estimativas
não
oficiais
de
que
o
número
chegue
a
440.000
habitantes. Atualmente, a zona Norte vivencia um momento de alto
crescimento econômico e imobiliário. A Região possui 07 bairros: Igapó,
Salinas, Potengi, Nossa Senhora da Apresentação, Pajuçara, Redinha e Lagoa
Azul (NATAL, 2010).
O CMEI Norte originou-se como uma entidade filantrópica, criada por
iniciativa do proprietário de uma granja em Gramorezinho, com a finalidade de
atender às crianças dessa comunidade. Fundada em 26 de agosto de 1992,
em parceria com a Prefeitura Municipal do Natal, funcionava a princípio em
uma pequena casa, situada no terreno da granja, com capacidade máxima de
atendimento para 35 crianças.
54
Informações contidas em documento consultado no CMEI (mimeo).
112
Em setembro de 1994, a creche se torna de responsabilidade exclusiva
da Prefeitura do Natal, através da SEMTAS e no ano de 2002 transfere-se para
instalações mais amplas onde permanece até 2005 quando retorna para a
Comunidade do Gramorezinho, local onde funciona até os dias atuais.
No dia 09/02/2009, através do decreto 8.655, é criado o CMEI Norte,
agora sob a gestão da Secretaria Municipal de Educação, propondo-se a
oferecer a modalidade Educação Infantil em seus três primeiros níveis, ou seja,
atendendo a crianças de dois a cinco anos.
O CMEI está localizado no bairro Lagoa Azul, que nasceu devido ao
movimento expansionista em direção à periferia natalense. O bairro possui
topografia acidentada, e é o maior em área no município. Com o incremento da
política habitacional, foram construídos no local os conjuntos residenciais: Nova
Natal e Gramoré em 1983 e Eldorado em 1991, financiados pela - Companhia
de Habitação Popular do Rio Grande do Norte - COHAB-RN.
O CMEI Norte situa-se na localidade denominada Gramorezinho, na
divisa com o município de Extremoz. No Gramorezinho, encontram-se as
lagoas de Gramoré e Azul Dendê que, juntamente com o Rio Doce, dão
suporte ao plantio de hortaliças, fonte do sustento financeiro para cerca de 200
famílias, para as quais a preservação dos mananciais, das áreas verdes e das
dunas da região tem sido objeto de reivindicações.
As crianças matriculadas no CMEI Norte são oriundas do bairro de
Lagoa Azul, cujas famílias, em sua grande maioria, obtêm seus rendimentos
através de atividades informais e autônomas, sendo a principal, a agricultura.
O CMEI Norte oferece atendimento parcial a 61 crianças, segundo
dados do Censo Escolar 2009, dispondo para tanto de uma equipe compostas
por uma diretora, uma coordenadora pedagógica, seis educadores infantis, dois
auxiliares de sala, dois auxiliares de secretaria, três merendeiras, três
auxiliares de serviços gerais, um porteiro e dois vigias.
b) Esclarecimentos sobre a análise dos dados
113
Os dados obtidos nos encontros com os profissionais que atuam nos
CMEI foram analisados qualitativamente na perspectiva de desvendamento da
realidade através de aproximações sucessivas. Para tal análise as notas
registradas no diário de campo foram lidas exaustivamente, destacando-se os
aspectos expressos pelos participantes, no que se refere à temática estudada,
durante os grupos focais.
Esclarecemos que no diário não houve uma transcrição literal das
falas, mas estas foram registradas, associando-as, à medida do possível, aos
motivos que as instigaram e ressaltando as ideias nelas contidas. Além disso,
procuramos registrar também a linguagem não verbal dos participantes, como,
por exemplo, tons de voz, expressões faciais e gesticulação. Enfim, no diário
de campo foram registradas as posturas, ideias e pontos de vistas dos
participantes, capazes de subsidiar análises posteriores.
Os registros do diário de campo foram analisados em dois momentos.
Em todos eles, analisamos as concepções e práticas do grupo sobre: o que é
violência doméstica contra a criança, os sinais indicadores desta violência, os
encaminhamentos dados (ou não) quando há suspeita de caso envolvendo
uma criança atendida pelo CMEI. Além destes aspectos, procuramos identificar
o grau de conhecimento do grupo com relação ao Estatuto da Criança e do
Adolescente e aos órgãos de proteção à criança, pois acreditamos que
conhecê-los é determinante para fundamentar as concepções e práticas dos
profissionais que atuam na Educação Infantil em relação ao enfrentamento da
violência doméstica contra as crianças que estão sob seus cuidados.
No primeiro momento da análise, partindo das diversas leituras do
material, realizamos os seguintes procedimentos: 1) análise das “falas”55
expressas através da escrita no papel madeira e das complementações
durante o compartilhar das “respostas” escritas; 2) análise das concepções e
práticas presentes nas discussões ocorridas após a apresentação das lâminas
com o suporte teórico sobre a temática.
No segundo, analisamos os relatos dos casos concretos de violência
55
Aqui “falas” compreendem tanto a linguagem verbal quanto a não verbal (manifestada na
postura, tons de voz, expressões faciais e gesticulação).
114
doméstica envolvendo as crianças atendidas nos CMEI. Esta estratégia
justifica-se por se reconhecer que nos relatos dos casos estão implícitas
concepções e práticas referentes à forma de enfrentamento da violência
doméstica contra a criança no âmbito da instituição, que não foram reveladas
quando a discussão se deu no campo conceitual/teórico (nas duas situações
analisadas no 1º momento). Os relatos dos casos evidenciam concepções,
conflitos, práticas e dificuldades dos profissionais diante da temática.
A análise do material registrado no diário de campo apontou as
principais concepções e práticas dos profissionais que atuam nos CMEI em
relação ao enfrentamento da violência doméstica contra as crianças atendidas.
Os questionamentos apresentados por nós durante a realização dos grupos
focais sobre as ações que os profissionais utilizariam diante de um caso
concreto, as formas de enfrentamento da violência familiar dirigida à criança, o
papel do CMEI, da família e dos órgãos de proteção diante da violência
doméstica contra a criança, possibilitaram o desvendamento do objeto de
estudo.
As diversas leituras do material indicaram ainda que as práticas dos
profissionais não se dão aleatoriamente, antes, são ancoradas em diversas
concepções. Diante disso, construímos quadros-resumo, com o objetivo de dar
visibilidade às práticas dos profissionais (em relação às crianças, as famílias e
aos órgãos de proteção) e às concepções que embasam tais práticas.
Nos
quadros
é
possível
identificar/conhecer
as
práticas
dos
profissionais nas situações de violência doméstica contra a criança, bem como
as concepções relacionadas com tais práticas, permitindo que se veja como
concepções específicas podem estar relacionadas com uma ou mais práticas
desses profissionais que atuam nos CMEI.
Dessa forma, na presente pesquisa, apresentamos a discussão sobre
concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação Infantil no
enfrentamento da violência doméstica contra crianças de zero a cinco anos.
115
4.3 Concepções e práticas dos profissionais que atuam na Educação
Infantil diante da violência doméstica contra a criança
Os critérios de escolha dos CMEI que fariam parte da pesquisa já
foram explicitados anteriormente. De agora em diante teceremos algumas
considerações sobre a investigação, lembrando tratar-se de uma pesquisa
no próprio campo de trabalho da pesquisadora – Secretaria Municipal de
Educação de Natal/RN, especificamente no Departamento de Educação
Infantil –
com
31 participantes que atuam nos Centros Municipais de
Educação Infantil, considerados colaboradores do processo, na perspectiva da
pesquisa-ação. Deste total de participantes, apenas um, pertencente ao CMEI
Norte, é do gênero masculino, o que reforça a predominância feminina na
Educação Infantil.
Durante o primeiro encontro em cada CMEI estabelecemos contato
com todos os profissionais, constituindo boa interação com os participantes,
explicando detalhadamente, os objetivos da pesquisa. Nesses momentos,
ressaltamos a importância da participação não apenas dos educadores, mas
também das merendeiras, auxiliares de sala, etc. e enfatizamos que os
encontros seriam realizados no próprio CMEI em dias e horários préestabelecidos com a direção, sem a presença das crianças.
No CMEI Oeste foram realizados três encontros mensais de setembro
a novembro de 2010. Em todos os encontros participaram 17 profissionais,
conforme o quadro a seguir:
116
Quadro 2: participantes da pesquisa – função e quantidade – CMEI Oeste
Função
Nº de Participantes
Diretora
01
Coordenadora
01
Auxiliar de secretaria
-
Educador(a) infantil
10
Auxiliar de sala
02
Merendeira
01
Serviços gerais
02
Fonte: Pesquisadora
No primeiro encontro os profissionais nos aguardavam com certa
ansiedade. Explicaram que haviam solicitado este encontro porque estavam
angustiados com algumas situações, que suspeitavam ser de violência
doméstica contra as crianças que estudavam ali. Esta angústia justifica-se pelo
fato deste CMEI ter participado de algumas ações envolvendo a temática no
ano anterior, quando a coordenadora56 havia participado de um Curso do
Programa “Escola que Protege” oferecido pelo MEC em parceria com a UFRN,
compartilhando com a comunidade escolar o que havia estudado neste Curso.
Não ficou claro para nós como foi feita esta abordagem, a única certeza que
temos é que houve uma mobilização no dia 18 de maio de 2009, envolvendo
todo o bairro Nordeste em uma caminhada contra a violência e a exploração
sexual de crianças e adolescentes.
Com base nos estudos de Azevedo e Guerra (1994) acreditamos que
ao estudarem o tema, os profissionais tornaram-se mais atentos aos sinais de
violência, daí a inquietação do grupo diante das situações concretas com as
quais se deparam diariamente em suas salas de aula.
56
O curso foi realizado em 2008 e as ações aconteceram em 2009. No momento da coleta de
dados para esta pesquisa a referida coordenadora havia pedido transferência para outro CMEI,
por este motivo não conseguimos maiores detalhes sobre a ação realizada.
117
Chegamos ao CMEI Oeste às 14 horas. As crianças haviam sido
liberadas naquela tarde, pois o calendário escolar previa uma parada para
planejamento.
Sentadas, com as cadeiras dispostas em círculo, explicamos os
objetivos do estudo e do grupo focal, destacando a importância da participação
de todas nos debates. Também esclarecemos o que seria feito dos dados após
o fechamento de todos os grupos e convidei as participantes a se
apresentarem rapidamente. Tal procedimento tinha como objetivo fazer com
que elas se sentissem confiantes e satisfeitas por estarem tomando parte do
processo de pesquisa, esperando que, com isso, se engajassem com afinco
nas discussões.
Concluída essa etapa introdutória, apresentamos ao grupo três
questões: 1) O que é violência doméstica contra a criança? 2) Como identificar
se uma criança está sendo vítima de violência doméstica? 3) Quando você
constata que uma criança está sendo vítima de violência doméstica, o que você
faz?
Optamos por escrever as perguntas em três folhas de papel madeira.
Visto que as discussões não seriam filmadas, consideramos que este tipo de
abordagem facilitaria a recolha dos dados, neste momento inicial. Apesar da
técnica do grupo focal prever gravação das discussões em vídeo, optamos por
não fazê-lo por dois motivos: 1) poderia inibir as participantes; 2) precisaria de
outra para nos ajudar com a câmera e não dispúnhamos dessa pessoa.
Dispomos as folhas no chão e pedimos que cada participante
escolhesse a pergunta que gostaria de responder. Observamos que quase
todas se agruparam em torno da 2ª questão e que a 3ª questão ficou sem
ninguém para respondê-la.
Chamamos a atenção para se distribuírem de
modo que as três perguntas fossem respondidas. A partir desta intervenção
elas se reorganizaram.
A atitude dos profissionais ao evitarem a 3ª questão nos mostrou que
tinham dificuldade em saber esboçar suas concepções sobre violência
doméstica contra crianças e em saber como agir nestes casos, demonstrando
118
pouca familiaridade com o tema, desconhecimento sobre a atuação/papel dos
órgãos de proteção à infância e, de certa forma, um sentimento de
“desresponsabilização”, no qual acreditam que este tipo de encaminhamento é
papel de outro profissional e de outra política.
O fato de nenhum dos participantes ter se dirigido para responder à
pergunta sobre quais encaminhamentos dar em casos concretos ou suspeitos
de violência doméstica contra a criança corrobora com os estudos que vêm
apontando
uma
baixa
notificação
e encaminhamento dos casos
identificados pelas instituições educativas aos órgãos de proteção. Uma
pesquisa realizada por Cavalcanti (1999) mostra que somente 5,5% das
notificações de violência doméstica registradas no Conselho Tutelar de Niterói
entre 1993 e 1995 foram efetivadas por escolas. Outra pesquisa, realizada por
Deslandes (1994), durante o período de 1988 a 1992, revela que as escolas
são responsáveis apenas por 4% das notificações aos Centros Regionais de
Atenção aos Maus-Tratos na Infância (CRAMIS) dos municípios paulistas.
Após a discussão em pequenos grupos, com as colocações
devidamente registradas no papel madeira, retornamos ao grande grupo para
que as respostas fossem compartilhadas e complementadas, caso os
participantes dos outros grupos considerassem necessário.
Os resultados estão registrados no quadro a seguir:
119
Quadro 3: síntese das discussões do 1º encontro – CMEI Oeste (set/2010)
PERGUNTAS
RESPOSTA DO GRUPO
CONTRIBUIÇÕES DOS
OUTROS GRUPOS
O que é violência doméstica
É toda forma de agressão
contra a criança?
física, psicológica e verbal
em seu ambiente familiar.
Negligência.
Falta de cuidados.
Olhar repressivo.
Como identificar se uma
Hematomas.
Não houve.
criança está sendo vítima de
violência doméstica?
Isolamento.
Agressividade.
Medo do toque.
Falta de apetite.
Quando você constata que
Conversa com a criança.
Não houve.
uma criança está sendo
vítima de violência
doméstica, o que você faz?
Comunica à direção.
Procura os pais.
Pede ajuda ao Conselho
Tutelar.
Fonte: Pesquisadora
Conforme já foi explicitado, a partir da leitura do material registrado no
diário de campo, foram analisadas inicialmente as “falas” dos profissionais
durante a realização do primeiro grupo focal, quando as concepções e práticas
a respeito da violência doméstica contra a criança foram expressas através da
escrita no papel madeira e das complementações durante o compartilhar das
“respostas” escritas.
De acordo com o grupo, violência doméstica é toda forma de ameaças
e agressões (física, psicológica e verbal) no ambiente familiar da criança.
Questionadas se a violência é caracterizada apenas pelo que é feito
contra a criança, uma das participantes diz que não:
120
“O que a família deixa de fazer também é violência.”
Outras contribuições foram dadas de modo que a negligência, a falta
de cuidado também foi considerada pelo grupo como violência doméstica.
Questionado sobre o que seria a violência psicológica mencionada, o
grupo mostrou não saber exatamente o que isto significava. Ou, pelo menos,
não demonstrou compreender os sinais deste tipo de violência, conforme
demonstra o questionamento realizado por uma das participantes.
“Olhar repressivo, é violência psicológica?”
Outra participante relatou que o seu cunhado era muito autoritário e
que todos em casa tinham medo dele. Disse que um simples olhar seuera
suficiente para deixar o filho dele “todo se tremendo”. Contudo ela ainda estava
em dúvida se esta atitude podia ser considerada violência:
“Não sei se o que ele faz é violência. Eu acho que é, pelo que a senhora tá
dizendo [...] mas fico na dúvida.”
O grupo mostrou ter mais familiaridade com a 2ª questão e apresentou
como marcas identificadoras da violência doméstica: hematomas, isolamento,
agressividade, medo do toque, falta de apetite. As respostas fluíram mais
facilmente, não houve demora em apresentar os sinais que, segundo o grupo,
evidenciam o fenômeno. Contudo, as marcas da violência psicológica,
mencionada nas falas referentes à 1ª questão, não apareceram explicitamente
aqui.
Aparentemente, o grupo percebe melhor as marcas físicas,
demonstrando pouca clareza dos sinais apresentados pela criança quando esta
121
sofre violência psicológica.
No que se refere aos encaminhamentos diante de casos evidentes de
violência doméstica, o grupo assinalou fortemente que primeiro conversa com a
criança, mas não deixou claro o tipo de conversa, a forma como o assunto
seria abordado, etc. O grupo também mencionou que os pais seriam
procurados, sem, contudo esclarecer como se daria esta conversa. Sobre isto
anotamos em nosso diário de campo:
Parece que na dúvida sobre o que fazer diante de uma
situação de violência doméstica, conversar com a criança ou
chamar os pais para uma conversa, aparece como uma
alternativa de conciliação. É como se a conversa tivesse o
poder de solucionar o problema, fazendo cessar a violência
(Diário de campo, 22/10/2010).
Os profissionais também mencionaram que, quando surge alguma
suspeita de violência, comunicam à direção. Pareceu-me que, para os
profissionais, tal ação os desobrigaria de tomar outras providências, conforme
falas a seguir:
“É ela (a diretora) quem decide o que fazer: se chama a mãe [...] se vai na
delegacia [...] a gente não dá [...] (para tomar as providências) tem de ser
ela”
“A gente tem medo, né? Aí é melhor deixar a direção fazer o que tem que
ser feito.”
O medo de represálias foi mencionado por uma das participantes e
todas as demais, unanimemente, confessaram que se sentem inseguras para
fazerem alguma coisa. O grupo alegou que a maioria dos pais das crianças
122
desse CMEI são usuários de drogas, envolvidos com crimes e que levar algum
deles às autoridades é um risco de morte.
Segundo Santos (2004) as notificações podem ser encaminhadas de
quatro maneiras aos órgãos competentes: por telefone, por escrito, visita ao
órgão ou solicitação de atendimento na própria escola. O autor lembra ainda
que a denúncia pode ser feita de forma pública ou sigilosa, mas os
profissionais também não mencionaram conhecer esta possibilidade. Na fala
do grupo não apareceu nenhuma dessas alternativas, antes, pareceu-nos que
havia um cuidado exagerado em justificar a omissão. Talvez o fato de sermos
assessora pedagógica da SME tenha implicação neste processo.
A alternativa de encaminhamento ao Conselho Tutelar foi apresentada
pelo grupo, mas muito timidamente. Os profissionais não acreditam na
eficiência e eficácia57 deste órgão de proteção:
“Os conselheiros só sabem mandar criança para se matricular. Não
querem nem saber se as salas estão cheias.”
“A estrutura do Conselho Tutelar é precária demais.”
“Eles não dão conta, não [...] ”
“... eu não conheço muita coisa (sobre o Conselho Tutelar) não.”
Levar o caso à delegacia também foi mencionado por uma das
participantes, entretanto não ficou claro se o grupo sabia da existência de uma
delegacia especializada. Contudo, os demais órgãos competentes que
57
Eficiência é o meio para se atingir um resultado; é a atividade, ou, aquilo que se faz. Eficácia
é o resultado; o objetivo: aquilo para que se faz, isto é, a sua Missão (Disponível em
http://www.administradores.com.br. Acesso em 24/07/2011).
123
recebem e apuram notificações de suspeita ou ocorrência de violência
doméstica contra a criança58 não foram contemplados nas falas dos
profissionais.
Apesar das orientações de que os colegas dos outros grupos poderiam
complementar
as
respostas,
houve
pouca
participação,
só
advindo
contribuições à 1ª questão. Pareceu-nos que haviam esgotado o que sabiam
sobre a temática. Sentimos como se considerassem não haver mais nada a
acrescentar. Não conseguimos identificar se este “silêncio” derivava de falta do
conhecimento sobre o assunto, ou se o grupo ainda não se sentia à vontade
para falar mais sobre o assunto uma vez que o pesquisador não pode esquecer
que estará lidando com um grupo que possui certa estrutura e dinâmica
próprias do qual ele, pesquisador, de início não faz parte (FRANCO, 2005).
Após percebermos que as falas estavam se esvaziando, encerramos o
debate agradecendo a participação de todas e enfatizando a importância de
cada opinião. O segundo encontro ficou agendado para a reunião mensal de
planejamento coletivo, marcada para a última sexta-feira de outubro de 2010.
Tendo em vista que “a apreensão da realidade [...] se faz por
aproximações a partir da convergência de vários pontos de vista” (MINAYO,
1999, p.37), no segundo encontro optou-se por apresentar algumas
transparências em um retroprojetor a fim de elucidar alguns aspectos sobre a
temática que não ficaram claros no encontro anterior.
No início da pesquisa não havíamos previsto este momento, contudo,
ao nos depararmos com tantas angústias, dúvidas, medos, decidimos que se
fazia necessário esclarecer alguns conceitos. Esta seria uma das nossas
contribuições ao grupo. Afinal, a pesquisa-ação justifica-se, neste caso, porque
pretendemos interagir com os participantes de modo que a realidade possa ser
também modificada, e para tanto, julgamos ser imprescindível contribuir para
ampliar os conhecimentos dos profissionais sobre o tema em questão.
58
Além do Conselho Tutelar e da delegacia especializada (DCA), as notificações podem ser
encaminhadas ao Ministério Público, a Defensoria Pública, a Justiça da Infância e da
Juventude, ao SOS criança (CUNHA, 2004).
124
Os assuntos apresentados neste segundo encontro foram: 1) O
conceito de violência doméstica; 2) As modalidades de violência doméstica
contra a criança; 3) Os sinais que evidenciam se uma criança é vítima de
violência doméstica; 4) Os artigos 13 e 245 do Estatuto da Criança e do
Adolescente que tratam da responsabilização dos profissionais; 5) As
instituições de proteção à infância (Sistema de Garantia de Direitos).
À medida que as transparências eram apresentadas, dúvidas
emergiram no grupo quanto ao que seria violência ou não. Evidenciou-se que o
grupo não tinha clareza do conceito de violência doméstica contra a criança e
estava confuso quanto às modalidades. As brigas dos pais na presença das
crianças foram mencionadas como uma forma de violência, sem, contudo ser
“classificada” numa das modalidades (física, sexual, psicológica, negligência e
abandono).
Além dos profissionais não conseguirem estabelecer a relação entre o
fato (briga dos pais na presença das crianças) e as modalidades de violência
doméstica, há ainda outro elemento que merece ser destacado/analisado que,
parece-nos, tem relação com a formação cristã-católica do povo brasileiro.
A formação cristã tradicional remete a valores de paz, conciliação e
harmonia, levando-nos a considerar qualquer tipo de conflito ou desavença
como negativo. Neste sentido, somos levados a crer que todos os
desentendimentos, discussões e conflitos entre os casais não podem, nem
devem se dar diante dos filhos e parece-nos que foi esta a postura dos
profissionais do CMEI. Evidentemente, quando questionamos tal postura,
estamos nos referindo a conflitos e brigas entre casais que se veem como
parceiros
e
iguais59.
Neste
sentido,
em
tal
situação,
não
há
opressão/dominação de um sobre o outro ou violência física, mas somente
pessoas em uma relação que discordam e discutem saudavelmente suas
posições.
59
Sabemos que estamos em uma sociedade patriarcal e como tal, as relações entre homens e
mulheres não são igualitárias. Contudo há também homens e mulheres que buscam, no dia-adia, construir relações igualitárias entre os gêneros.
125
Parece-nos que a postura de esconder dos filhos as brigas, criam nas
crianças situações ilusórias de uma harmonia baseada somente na completa
concordância entre as partes. Deste modo, as crianças crescem sem saber
conviver com conflitos e, por vezes, são surpreendidas por processos de
separação entre os pais, que julgavam viver muito bem juntos, uma vez que
nunca presenciaram brigas. Parece-nos, portanto, que precisamos rever
nossos valores e entender que os conflitos/discordâncias fazem parte da vida
humana e servem para nos fazer entender os pontos de vista dos outros e
enriquecer-nos mutuamente, desde que tais conflitos/divergências se deem em
um clima de respeito mútuo.
Os profissionais relataram, ainda, casos de falta de cuidado das mães
em relação às crianças, entre os quais: presença de piolhos, bichos de pés e
roupas sujas.
Apesar de nosso estudo não se deter nas discussões de gênero,
nestas falas aparece explicitamente uma concepção de família, na qual a
mãe/mulher é o elemento responsável pelo cuidado dos filhos. Em nenhum
momento, os profissionais referiram-se aos pais como negligentes ou
responsáveis pelo cuidado com piolhos, bichos de pé etc. Ou seja, o modelo
familiar adotado pelos profissionais é do pai provedor e da mãe cuidadora/dona
de casa, levando-os a culpabilizarem as mulheres pela falta de cuidado com a
família. Não há, por parte dos profissionais do CMEI, nenhum questionamento
ao modelo familiar dominante (pai/homem/provedor; mãe/mulher/cuidadora;
filhos/protegidos), o que nos leva a supor que é este o modelo
defendido/apresentado como ideal nas salas de aula, deixando de fora,
portanto, todas as outras possibilidades de famílias existentes (casais
homossexuais com ou sem filhos, casais heterossexuais com ou sem filhos,
mulheres com seus filhos, homens com seus filhos, padrastos e madrastas
com enteados etc).
O fato de algumas famílias demorarem a vir buscar a criança após a
aula, foi mencionado como sendo violência. Conforme as colocações do grupo,
estas atitudes lembradas foram classificadas por eles como negligência. Neste
aspecto, observamos nos participantes do grupo, um tom acusatório em
126
relação às famílias, sem que suas situações socioeconômicas sejam levadas
em
conta.
Ou
seja,
observou-se
que
o
grupo
tendia
a
responsabilizar/culpabilizar às famílias pelas situações de negligência ou
abandono, desconsiderando suas condições de vida.
Esta discussão nos remete ao conceito de negligência que é
apresentado nos materiais elaborados pelo MEC e pelo Ministério da Saúde,
dos quais tratamos no capítulo anterior, destinado aos profissionais de suas
respectivas áreas. Nestes documentos, a negligência é considerada como um
ato de omissão do responsável pela criança em prover as necessidades
básicas para seu desenvolvimento (BRASIL, 2002; SANTOS, 2004). Em
nenhum momento aparece nesta conceituação, uma proposta para que se
discuta as condições objetivas nas quais vivem grande parte da população
brasileira. É difícil arbitrar sobre esta modalidade de violência quando se sabe
que estas famílias não têm emprego e renda, moram em condições precárias e
não têm acesso a atendimento médico adequado.
Quando foi colocada em pauta a discussão sobre o Estatuto da Criança
e do Adolescente, bem como sobre o Sistema de Garantia de Direitos,
observamos que algumas das participantes tentavam disfarçar a falta de
conhecimento sobre o ECA, o papel dos conselheiros tutelares e os órgãos que
fazem parte da rede de proteção à criança. Com isso, verifica-se que na
formação destes profissionais estes “conteúdos” não foram trabalhados, mas
também que eles têm consciência sobre o dever de conhecer o assunto. Uma
das participantes mostrou-se perplexa diante das informações sobre a política
de proteção à infância, demonstrando tratar-se de uma “novidade” para o
grupo:
“Nem sabia dessas coisas [...] é muito legal saber. É muita coisa. A
gente precisa conhecer mesmo”.
Acreditamos que ainda ficaram questões em aberto, mas devido à
necessidade de cumprimento do horário previamente acordado, foi solicitado
127
aos participantes que fizessem breves comentários sobre o que acharam da
dinâmica. A avaliação foi positiva. Assim, encerramos o segundo encontro.
A questão-chave para iniciar o terceiro encontro, realizado em
novembro de 2010 foi: observa-se que vocês têm conhecimento sobre o que
fazer diante da violência doméstica da qual as crianças atendidas neste CMEI
são vítimas. O que falta para que os encaminhamentos adequados se
efetivem? A partir daí a discussão fluiu rapidamente, surgindo vários relatos
sobre suspeitas e ocorrências de casos, como também de possíveis razões
para a falta de notificações.
Pareceu-nos que falar das situações concretas, trazia à tona todas as
angústias vivenciadas pelos profissionais no dia-a-dia do CMEI. Estava clara a
necessidade de relatar/discutir as ocorrências. Em dado momento, percebemos
que “apostavam” na nossa intervenção para ajudá-los a resolver algumas
situações consideradas mais graves. Optamos por analisar as concepções e
práticas implícitas nestes relatos de casos.
Um dos relatos apresentou uma situação ocorrida no primeiro
semestre, na hora do banho, entre duas crianças do Nível III (3-4 anos). Uma
delas pediu à outra para colocar a boca em seu órgão genital. Ao deparar-se
com a situação a educadora conversou com as crianças, explicando que este
tipo de atitude não era aceitável. Mas a situação se repetiu alguns dias depois
e novamente a providência tomada foi ter uma conversa com a criança.
“Eu chamei [...] em um canto e perguntei por que ele só brinca disso.
Você já viu alguém fazendo?”
Vários outros relatos apontam para esta atitude – a nosso ver
equivocada – dos educadores de tentarem resolver os conflitos no espaço
escolar, sem encaminhar os casos aos Conselhos Tutelares, como orienta o
ECA.
128
“Já falei muito com a mãe de [...] porque ela vive chamando ele de (vários
palavrões). O coitadinho tem uma tremedeira no corpo [...] é horrível. Mas
ela só diz que é besteira. Mas eu tenho certeza que ele sofre alguma
violência em casa”.
“Quando eu fui pegar ele embaixo da mesa aí ele falou que sabia que eu
queria pegar no [...] conversei foi muito com a avó dele, mas coitada, já
pensou até em tocar fogo nela e neles. Lá todo mundo é traficante, o avô
tá preso [...]”.
Segundo Azevedo e Guerra (2005) esta forma de agir acaba por
colocar em risco a integridade física das crianças, tendo em vista que
encaminhamentos inadequados podem agravar o problema ao invés de
solucioná-lo.
As falas dos profissionais, ao mesmo tempo em que evidenciam o
desejo de contribuir para que a violência doméstica contra as crianças
atendidas no CMEI cesse, estão impregnadas de dúvidas, por falta de
conhecimento das instâncias de proteção, mas também por medo de
represálias, como mostram as falas a seguir:
“A lei me protege?”
“Vai ser fácil ele descobrir que a denúncia foi feita pela gente [...] e daqui
até o ponto do ônibus eu tenho medo dele me pegar.”
“Aí se a gente denunciar é capaz de morrer.”
129
No que tange aos órgãos de proteção à criança, os relatos dos
casos revelaram que os profissionais sabem da existência do Conselho
Tutelar, mas só recorreram ao órgão numa situação em que a educadora
percebeu hematomas no corpo da criança e ao chamar a mãe para conversar,
ela acusou os profissionais do CMEI de terem machucado a criança. Neste
caso, a diretora procurou o Conselho Tutelar, não para proteger a criança, mas
para protegerem-se, enquanto profissionais, das acusações da mãe. Os
demais órgãos, não são mencionados em nenhuma fala, a não ser a delegacia,
mas sem especificar tratar-se da Delegacia da Criança e do Adolescente
(DCA).
Acreditamos que o fato dos profissionais do CMEI Oeste terem
discutido sobre a violência sexual em 2009 – embora, ao que tudo indica, de
modo um tanto superficial – contribuiu para que passarem a perceber com mais
facilidade a violência da qual as crianças atendidas ali são submetidas em seus
lares. Contudo, mesmo “sensíveis” à questão, permanecem sem fazer os
encaminhamentos necessários à proteção das crianças, quer seja por falta de
conhecimento sobre o ECA e o Sistema de Garantia de Direitos, descrédito nas
ações do Conselho Tutelar, medo de represálias por parte dos agressores das
crianças ou por acreditar que uma conversa com os responsáveis será
suficiente para resolver a situação de violência doméstica – comprovada ou
não – na qual está envolvida a criança.
No CMEI Norte foram realizados dois encontros nos meses de
novembro/2010 e fevereiro/2011. Em todos os encontros participaram 14
profissionais, conforme o quadro a seguir:
130
Quadro 4: participantes da pesquisa – função e quantidade – CMEI Norte
Função
Nº de Participantes
Diretora
01
Coordenadora
01
Auxiliar de secretaria
01
Educador(a) infantil
05
Auxiliar de sala
02
Merendeira
02
Serviços gerais
02
Fonte: Pesquisadora
O convite foi feito pela diretora a partir de algumas dúvidas relatadas
pelos profissionais sobre a temática em questão.
Seguindo a mesma metodologia apresentada no CMEI Oeste, no
primeiro encontro, em novembro/2010 explicitamos sobre o objeto da nossa
pesquisa e explicamos que se tratava de uma pesquisa-ação onde
buscaríamos respostas para alguns questionamentos que levantamos na nossa
pesquisa bibliográfica, mas também contribuiríamos para que o grupo
encontrasse respostas às suas questões.
Para início de conversa, as três perguntas escritas em papel madeira
foram colocadas sobre as mesas, solicitando-se que se dividissem em
pequenos grupos para responder.
Os resultados estão registrados no quadro a seguir:
131
Quadro 5: síntese das discussões do 1º Encontro – CMEI Norte (nov/2010)
PERGUNTAS
RESPOSTA DO GRUPO
CONTRIBUIÇÕES DOS
OUTROS GRUPOS
O que é violência
São agressões (físicas e/ou
doméstica contra a
verbais), ameaças cometidas
criança?
contra as crianças dentro de
Não houve.
sua própria casa.
Como identificar se uma
Comportamento agressivo.
Choro insistente.
Carência afetiva.
Medo.
Hematomas no corpo.
Isolamento.
criança está sendo vítima
de violência doméstica?
Desatento.
Quando você constata que
Denunciar ao Conselho Tutelar.
Não houve.
uma criança está sendo
Conversar com a família.
vítima de violência
doméstica, o que você faz?
Avisaria a polícia.
Comunicar a escola.
Fonte: Pesquisadora
Dado
certo
tempo,
solicitamos
o
retorno
ao
círculo
para
compartilhamento das respostas. O primeiro grupo disse que procurou
sintetizar o que seria a violência doméstica e os demais participantes não
fizeram nenhuma complementação ao conceito apresentado. Percebeu-se uma
limitação quanto ao conhecimento conceitual sobre a violência doméstica
contra a criança. Os profissionais, ao afirmarem que fizeram uma síntese, na
verdade tentaram encontrar uma forma para despistar o pouco conhecimento
sobre o tema. Percebendo o grupo um pouco fechado, optamos por não intervir
no sentido de incentivar novas contribuições.
132
Quando o segundo grupo apresentou suas respostas houve maior
participação de todos e alguns colegas, acrescentaram outros sinais
característicos da violência doméstica tais como: choro insistente sem
motivação aparente, demonstração de medo quando da aproximação dos
adultos, isolamento em relação às demais crianças. Mesmo com as
complementações, a abordagem sobre as marcas características da violência
doméstica contra a criança foi superficial, demonstrando tão somente o
conhecimento do senso comum. Questionamos se apenas uma ação
caracterizaria a violência, imaginando que mencionariam algo sobre a
negligência, mas o grupo não se manifestou.
Nas respostas do terceiro grupo percebemos que não há clareza das
instâncias de denúncias, havendo confusão quanto a quem se deve recorrer
em casos concretos de violência doméstica. Questionados sobre a relação do
CMEI com o Conselho Tutelar, disseram que sequer conheciam os
conselheiros, que jamais fizeram uma visita ao órgão e alguns participantes
sequer sabiam o endereço do Conselho. Acreditamos que isto se deva,
principalmente, ao fato dos profissionais não morarem no bairro e o CMEI
localizar-se num lugar muito distante, quase em Extremoz. Chegando ao local
de ônibus e com pressa em voltar para casa ao final do expediente, acabam só
conhecendo o local de trabalho. Esta atitude também pode ter relação com
uma ideia muito presente no ambiente escolar de que cabe ao professor atuar
apenas nas questões pedagógicas, de ensino-aprendizagem, ficando o papel
de defesa da criança sob a responsabilidade de outro profissional.
No segundo encontro, não pudemos apresentar os slides, conforme
havíamos acertado com a diretora previamente, porque o data show não havia
sido providenciado. A diretora justificou que a funcionária que havia se
comprometido em conseguir o equipamento tinha falhado. De improviso,
mostramos os slides (que havíamos levado impressos em papel), mas esta
forma de apresentação nos deixou pouco à vontade, prejudicando a dinâmica
da discussão. O maior “prejuízo” foi quanto à apresentação do Sistema de
Garantia de Direitos que, devido à complexidade do assunto e o pouco
conhecimento dos profissionais a respeito, deixou a desejar. Mesmo assim, à
133
medida que os assuntos foram apresentados, as dúvidas começaram a
emergir.
Uma das participantes manifestou dúvidas sobre a legitimidade da
interferência de terceiros na dinâmica familiar, conforme aponta o relato a
seguir:
“É certo me intrometer na vida alheia? Sabendo que uma criança tá
sofrendo violência em casa [...] que que eu posso fazer? Acho que é feio
se meter nas vidas das pessoas.”
No entanto, os outros participantes manifestaram a concepção de que
a família não tem poderes absolutos sobre a criança e que qualquer pessoa
pode interferir, no âmbito familiar, nos casos de violência contra a criança.
“Se você vê alguma coisa que prejudique a criança, eu acho que pode sim
denunciar”.
Um dos indicadores apresentados e que chamou a nossa atenção foi o
ato da criança imitar, durante as brincadeiras, a forma como é tratada em casa.
Os participantes disseram que é um fato comum de ser observado:
“A gente vê durante as brincadeiras... tá com um coleguinha, aí a criança
fala: ‘eu vou te matar!’ É fácil de ver isso”
“Tem criança que bate nos bonecos e quando a gente vai dizer que não
pode ela diz que a mãe faz assim com ela”
134
Alguns teóricos do desenvolvimento infantil realizaram estudos sobre a
tendência que crianças pequenas têm para imitar os adultos (VIGOTSKY,
1987; PIAGET, 1978). A fase da imitação aparece a partir dos dois anos de
idade e até os cinco anos este processo é muito forte e constante, ocorrendo
tanto na maneira de agir (nível físico) como a nível psicológico e intelectual. A
criança costuma imitar as pessoas com as quais mais se identificam por isso,
os adultos com os quais convive devem ter uma conduta correta, a partir de
valores comuns na sociedade, visto que a criança não tem noção do que está
certo ou errado, limitando-se a seguir moldes comportamentais com os quais
se relaciona no dia-a-dia (FONTANA; CRUZ, 1997).
Compreendendo que na pesquisa-ação a metodologia não se faz por
meio das etapas de um método, mas se organiza pelas situações relevantes
que emergem do processo e ainda que o número de grupos focais a ser
realizado não é rigidamente determinado por fórmulas matemáticas, mas pelo
esgotamento
dos
temas,
decidimos
antecipar,
neste
encontro,
o
questionamento reservado para o 3º encontro (FRANCO, 2005).
Ao fazermos o questionamento sobre o que falta para que encaminhem
os casos concretos ou as ocorrências de violência doméstica contra a criança
para os órgãos de proteção, as respostas foram evasivas:
“Faz uns três anos a gente foi na casa da criança por que ela tava cheia de
bicho na mão. As crianças tavam brincando nuas no quintal, no meio dum
monte de porco [...] e tinha fezes ali e ela brincando”.
“Nem sei se fiz errado, mas eu disse prá mãe que ela só podia trazer o
menino se tirasse os piolhos dele. Fiquei com medo de ser denunciada,
mas eu fiz”.
Toda a discussão girou em volta de situações concretas sem, contudo
apontar nenhuma ação com o objetivo de proteger as crianças dos casos
135
explícitos de violência.
Chamou nossa atenção o caso das crianças brincando nuas,
misturadas às fezes de animais. Nenhuma providência foi tomada nestes três
anos. Os profissionais constataram e não tomaram nenhuma providência ou
fizeram qualquer encaminhamento.
Ao analisarmos os dados coletados no CMEI Norte – as falas
(expressas ou não) dos profissionais, as tentativas de “disfarçar” o
desconhecimento sobre os temas discutidos, a “tímida” participação de alguns,
a superficialidade em determinadas respostas – questionamos sobre o real
desejo desses profissionais em se envolverem na defesa das crianças. Afinal,
foram eles quem nos fizeram o convite que, segundo a diretora, refletia a
vontade do grupo em conhecer a temática. Mas apesar dos grupos focais
realizados no CMEI Norte não terem fluido como esperávamos, inferimos que a
falta de clareza sobre as instâncias de denúncia, bem como a limitação dos
profissionais em reconhecer os sinais indicativos de violência doméstica contra
a criança são os principais responsáveis pelos não encaminhamentos dos
casos.
As concepções e práticas manifestas implícitas ou explicitamente nos
cinco grupos focais realizados apresentam uma realidade cruel. Os
profissionais se deparam com os casos de violência, comentam, se angustiam,
mas um sentimento de impotência os impede de fazer os encaminhamentos
adequados, nos levando a acreditar que o problema do não envolvimento e da
consequente não notificação aos órgãos competentes não está somente na
falta de conhecimento sobre a temática. Claro que os profissionais precisam
receber uma formação mais adequada e contínua que os subsidie na
identificação dos casos, bem como os capacite para saberem como agir.
Porém o mais importante é que se impliquem na questão, se reconheçam
como agentes de proteção à infância, bem como cobrem do Estado o
funcionamento adequado das instituições de proteção à criança. Ao mesmo
tempo, também não nos cabe somente responsabilizar e cobrar dos
profissionais que atuam na Educação Infantil compromisso com a proteção à
criança. É necessário analisar as condições de vida e trabalho destes
136
profissionais (salários, muitas horas de permanência no CMEI, distância
percorrida/horas gastas no trajeto casa-trabalho etc). Os profissionais que
atuam nos CMEI não devem ser desresponsabilizados de agir como agentes
de proteção da infância, mas também não podem ser culpabilizados por uma
situação mais ampla.
A análise dos dados nos permitiu inferir que as práticas dos
profissionais quanto a conversar com a família quando percebem que a criança
está sendo vítima de violência, podem colocar a criança em risco, além de
acomodar a instituição educacional no sentido de não realizar a notificação dos
casos aos órgãos de proteção. Segundo estudo realizado por Lima (2008) a
ação junto às famílias não se constitui como uma ação eficaz para o
enfrentamento da violência doméstica contra a criança. Antes, estas práticas
podem se constituir como uma forma de manutenção da vitimização da criança
na família.
É preciso, pois refletir sobre nosso papel como profissionais e sujeitos
sociais que se preocupam com a situação de violência contra a criança no
âmbito familiar. Contudo, tal preocupação não pode nos levar a responsabilizar
a família ou os profissionais por tal situação ou omissão. Ao mesmo tempo em
que devemos encontrar saídas, pensar providências para proteger as crianças,
é necessário também cobrar do Estado um efetivo sistema de proteção à
criança, políticas sociais adequadas que assegurem direitos às famílias,
salários dignos que possibilitem uma vida honrada e neste sentido, um sistema
educacional, com profissionais comprometidos e conscientes de seu papel, em
processo contínuo de capacitação, mas também trabalhando em condições
adequadas e recebendo um salário digno pelo trabalho desempenhado.
137
CONCLUSÕES APROXIMATIVAS
A violência doméstica contra a criança de zero a cinco anos é uma
temática complexa que exigiu neste estudo um olhar multifacetado,
perpassando as dimensões histórico-culturais, socioeconômicas e legislativas.
Por tratar-se de uma pesquisa-ação, que se propôs a contribuir para a
modificação na realidade, fizemos um esforço para que a temática fosse
colocada em pauta no Departamento de Educação Infantil da Secretaria
Municipal de Educação de Natal-RN, pois acreditamos que os profissionais que
atuam na Educação Infantil podem e devem ser agentes de proteção às
crianças contra a violência doméstica.
Diante da natureza do trabalho pedagógico, cuja principal tarefa diz
respeito ao ensino-aprendizagem das crianças, a questão da violência
doméstica da qual são vítimas pode parecer secundária no ambiente escolar.
Talvez por isso poucas pesquisas discutam a responsabilidade das creches e
pré-escolas na defesa dos direitos das crianças.
Assim, na tentativa de elucidar porque as estatísticas apresentam um
baixo índice de notificações quanto à violência doméstica contra crianças
advindos do ambiente escolar, a presente pesquisa buscou esclarecer se os
profissionais que atuam nos CMEI são capazes de identificar, no seu dia-a-dia
de trabalho, os sinais característicos da violência doméstica contra a criança e
quais encaminhamentos dão quando identificam uma situação concreta.
Para tanto, optamos por uma abordagem metodológica de natureza
qualitativa, numa perspectiva de totalidade e elegemos a pesquisa-ação como
norteadora de nossa pesquisa. Os dados foram coletados através da técnica
do grupo focal e as observações apreendidas, anotadas em diário de campo.
Assim, entre os meses de setembro/2010 e fevereiro/2011 realizamos
a coleta de dados, através do grupo focal, em dois CMEI localizados nas zonas
Oeste e Norte, com um grupo de 31 participantes (educadores infantis,
merendeiras,
auxiliares
coordenadoras).
de
sala,
pessoal
da
limpeza,
diretoras
e
138
Desse modo, esta pesquisa nos possibilitou apreendermos as
dificuldades dos profissionais na identificação dos casos e, consequentemente,
a falta de encaminhamentos aos órgãos competentes.
Nos CMEI pesquisados, mesmo quando os profissionais suspeitam ou
identificam um caso de violência doméstica contra a criança, permanecem sem
saber o que fazer quanto ao encaminhamento aos órgãos de proteção.
Todavia, observamos que no CMEI Oeste, no qual foi feita uma
mobilização para o enfrentamento do abuso e exploração sexual em 2009, as
falas dos profissionais manifestaram o quanto são sensíveis e atentos aos
casos que poderiam sugerir abuso sexual. Durante os momentos de encontro
dos grupos focais eles se mostraram questionadores e curiosos, enquanto os
profissionais do CMEI Norte, que não haviam entrado em contato com a
temática previamente, praticamente não relataram esta modalidade de
violência doméstica contra as crianças atendidas naquele local. Contudo, em
ambos os CMEI estão presentes as dúvidas quanto aos encaminhamentos a
serem dados.
Nossa pesquisa aponta que, sem dúvida, a violência doméstica é uma
realidade presente na vida de crianças atendidas pelos CMEI. Entretanto, os
profissionais que ali atuam ainda não se deram conta do seu papel na rede de
proteção dessas crianças. Ao analisarmos as concepções e práticas desses
profissionais que atuam nos CMEI diante da temática em questão, verificamos
que, para além da falta de conhecimento teórico, está o entendimento de que
não cabe aos profissionais da educação proteger a criança quanto à violação
de seus direitos. É como se o espaço escolar recebesse uma demanda que vai
além de suas responsabilidades, ou seja, os profissionais acham que a função
deles diz respeito apenas às questões pedagógicas e o que extrapola tal
função, caberia a outros profissionais ou a outra área de atuação. Tal postura
mostra uma visão que fragmenta a realidade excessivamente e dificulta o
trabalho para enfrentar a violência doméstica contra as crianças, que deveria
ser multidisciplinar e transversal.
Talvez esta concepção tenha suas raízes nos primórdios da Educação
Infantil
quando
as
funções
de
educar
e
cuidar
eram
concebidos
139
separadamente, ficando o cuidado das crianças sob a responsabilidade da
assistência social. Outro aspecto a ser considerado é a ideia de que o educar é
mais importante e “nobre” que o cuidar. Por considerar que o enfrentamento à
violência doméstica encontra-se na esfera do cuidado e não da educação, os
profissionais que atuam nos CMEI acabam por não se perceberem como
agentes de proteção das crianças.
Compreendemos que dadas as condições objetivas de trabalho desses
profissionais, não é tarefa fácil comprometer-se com ações de enfrentamento à
violência doméstica. Faz-se necessário, portanto, uma rede de apoio a esses
profissionais no âmbito da própria Secretaria Municipal de Educação. Neste
sentido, como resultado de nossas reflexões e como assessora pedagógica da
SME, estamos propondo a criação de um Núcleo de Prevenção à Violência e
Promoção dos Direitos da Criança vinculado ao Departamento de Educação
Infantil (em anexo), por acreditarmos que se faz necessário criar condições
objetivas a fim de apoiar os profissionais que atuam na Educação Infantil,
dando-lhes condições de atuar no enfrentamento da violência doméstica contra
a criança. Tal Núcleo deverá trabalhar articuladamente com o SUAS, através
dos CRAS e CREAS. Neste sentido, não objetiva duplicar as ações, mas
estabelecer uma ponte com a Política da Assistência Social.
Outro aspecto apresentado na pesquisa que deve ser considerado é
que, por tratar-se de um problema de âmbito privado (que ocorre no interior dos
lares), alguns profissionais consideram que a violência doméstica sofrida pelas
crianças não lhes diz respeito. Têm medo de “intrometerem-se” em situações
que só pertencem ao âmbito familiar. Contudo, uma das atribuições da
Educação Infantil, de acordo com o Referencial Curricular Nacional da
Educação Infantil (BRASIL, 1998), é complementar a função da família. Não
seria então o caso de abordar esta temática de maneira mais efetiva? Afinal,
orientar a família sobre as especificidades e características da infância,
mostrando-lhe a maneira adequada de tratar a criança no âmbito familiar,
também é responsabilidade das instituições de educação infantil.
Uma questão importante que emerge da pesquisa é a situação de
isolamento dos profissionais em relação aos órgãos de proteção à infância e as
140
Secretaria de Saúde e Assistência Social, indiscutivelmente, parceiros
imprescindíveis para o enfrentamento da violência doméstica contra a criança.
Constatamos que os profissionais desconhecem os serviços oferecidos
nas Unidades de Saúde, mesmo sendo localizadas geograficamente próximas
dos respectivos CMEI. Quanto ao Conselho Tutelar, os profissionais não
sabem os nomes dos conselheiros, tampouco os endereços deste órgão. A
maioria dos profissionais não sabe o que é CRAS ou CREAS e muito menos as
suas atribuições.
Esta constatação nos remete as inúmeras dificuldades para a
efetivação das ações de proteção à infância, tais como: desarticulação do
trabalho entre as instituições que compõem a rede de proteção, condições de
trabalho inadequadas, baixos salários, demanda superior aos serviços
oferecidos etc.
Diante disso, verificamos que as condições objetivas de trabalho dos
profissionais que atuam nos Centros Municipais de Educação Infantil
colaboram para o desconhecimento sobre os órgãos de proteção à infância e a
consequente falta de notificação dos casos de violência doméstica contra a
criança. Além disso, a pouca informação teórica sobre o tema, a concepção de
que à educação cabe ensinar e não denunciar casos de violência e a
compreensão de que a violência doméstica é de âmbito privado da família, são
fatores que dificultam a identificação dos casos de violência doméstica
praticados contra as crianças atendidas nos CMEI.
Desta forma, para a efetivação de ações que visem o enfrentamento da
violência doméstica contra as crianças atendidas na Educação Infantil no
município de Natal-RN, não basta aos profissionais terem conhecimento da
temática, ou seja, apesar de necessários, os cursos de capacitação e
sensibilização, não são suficientes. É necessário que a Secretaria Municipal de
Educação se implique nesta causa, melhorando as condições de trabalho dos
profissionais, promovendo espaços de diálogo entre os profissionais que atuam
na Educação Infantil e os que trabalham nas Secretarias Municipais de Saúde
e Assistência Social etc.
141
Porém, não podemos nos esquecer de que todas estas ações têm
limites, visto que a problemática da violência doméstica contra a criança está
também relacionada a questões estruturais da própria sociabilidade capitalista.
142
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n.32, jul/dez, 2009.
155
ANEXO
156
"Servir com excelência, ética e eficiência, contando com servidores
competentes e valorizados, primando todos pelo respeito ao cidadão e ao meio
ambiente, contribuindo para fazer de Natal uma cidade cada vez mais humana,
socialmente mais justa, solidária e sustentável, com a melhor qualidade de
vida para toda a população".
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL
SETOR DE PLANEJAMENTO E AVALIAÇÃO
PROPOSTA DE CRIAÇÃO DO NÚCLEO DE PREVENÇÃO
À VIOLÊNCIA E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA
CRIANÇA NO ÂMBITO DA SECRETARIA MUNICIPAL
DE EDUCAÇÃO.
NATAL/RN
2011
157
MICARLA DE SOUZA
PREFEITA
WALTER FONSECA
SECRETÁRIO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
ELIANA TORRES
SECRETÁRIA ADJUNTA DE GESTÃO ESCOLAR
MARCOS CLEBER
SECRETÁRIO ADJUNTO DE GESTÃO PEDAGÓGICA
KÁTIA LANZILLO
DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL
158
PROPOSTA ELABORADA POR:
Luisa de Marilac de Castro Silva
[email protected]
159
Apresentação
Lidar com a prevenção da violência bem como com a
promoção dos direitos da criança é uma tarefa muito
complexa que exige uma conscientização da sociedade, a
cooperação e especialização de grupos multi-profissionais e
uma boa articulação entre as instituições que atendem essas
crianças.
As estatísticas apontam que a violência impetrada
contra crianças poderia diminuir e ter suas conseqüências
minimizadas se o muro de silêncio erguido pela maioria dos
profissionais fosse derrubado (Azevedo, 2000).
Para que isso ocorra fazem-se necessárias ações
urgentes no sentido de capacitar estes profissionais, pois a
falta de conhecimento sobre os direitos da criança é
apontada como a causa primeira desta imobilidade. Além
disso, é preciso também articular ações com as famílias e com
as próprias crianças.
Nesta
perspectiva,
a escola
é
considerada
locus
privilegiado já que tem acesso tanto às crianças diariamente
quanto às suas famílias.
Assim, tendo em vista o papel relevante das escolas e a
necessidade de se criar condições para a capacitação de seus
atores na luta pela promoção dos direitos da criança é que
elaboramos esta proposta.
160
NÚCLEO DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA E
PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA
161
Justificativa
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA estabelece os direitos desses
sujeitos, bem como a indicação dos mecanismos de garantia dos cuidados e
proteção a eles vinculados.
Em seu Artigo 4º considera os Direitos Fundamentais – à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária – como
necessidades para que essa parcela da população possa viver satisfatoriamente
segundo as peculiaridades dessa fase do desenvolvimento humano.
No entanto, sabemos que as determinações postas na Lei estão longe de
serem efetivadas, principalmente, devido ao olhar passivo da sociedade. Assim,
apesar das pessoas se sentirem impactadas diante das situações de vitimização das
crianças, continuamos convivendo com índices alarmantes de atos violentos
praticados contra esta população.
Segundo dados do UNICEF, de hora em hora morre uma criança espancada,
queimada ou torturada pelos próprios pais. No Brasil, de acordo com dados da
ABRAPIA, temos 500 mil casos de crianças que sofrem maus-tratos, sendo que, de
cada três dessas crianças, uma delas tem de zero a cinco anos.
Estes números, embora surpreendentes, representam apenas a ponta de um
grande iceberg, visto que a grande maioria dos casos de violência contra crianças,
não chegam a ser notificados.
O atendimento dispensado à criança vítima de violência em nosso país é muito
precário, faltando nos profissionais da saúde, da justiça, do serviço social, da
psicologia, da comunicação e da educação um preparo adequado para lidar com o
fenômeno.
Além da violência, outros direitos são negados às crianças diariamente tanto
pela família quanto pela sociedade de modo geral e por isso o desafio de fazer
valer o sistema de garantia de direitos requer a união de esforços das instituições
que militam na área.
A escola, lugar por excelência dedicado à educação e à socialização, reúne
condições para atuar na defesa dos direitos da criança. Por isso, no caso específico
dos Centros Municipais de Educação Infantil – CMEI’s acredita-se no papel do
162
educador infantil e também dos demais servidores como agentes de proteção da
criança.
Partindo deste pressuposto sugerimos a criação do Núcleo de Prevenção à
Violência e Promoção dos Direitos da Criança, subordinado ao Departamento de
Educação Infantil como um espaço de reflexão, ação e interação com outras
instituições no sentido de diminuir as violações dos direitos de nossas crianças.
163
Objetivo geral
Promover ações de prevenção à violência e promoção
dos direitos das crianças atendidas pelos Centros
Municipais de Educação Infantil – CMEI’s.
Objetivos específicos
 Articular ações com os profissionais que fazem parte do SGD,
Educação, Saúde e Assistência.
 Promover momentos de estudo com toda a equipe do
Departamento de Educação Infantil.
 Organizar seminários e mesas-redondas abertas a todos os
sujeitos envolvidos na rede de proteção à criança.
 Disponibilizar aos gestores dos CMEI’s a legislação e documentos
pertinentes à temática.
 Capacitar os educadores infantis e demais servidores dos
CMEI’s.
 Realizar encontros de sensibilização com as famílias das crianças
atendidas pelos CMEI’s.
 Ministrar oficinas com as crianças dos CMEI’s de modo que
possam ser fortalecidas como sujeitos de direito.
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universidade federal do rio grande do norte luisa de marilac