UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
MARCOS FERREIRA GONÇALVES
ROUPA DE VER DEUS:
COTIDIANO E VESTIMENTA EM SALVADOR
(1958-1968)
Santo Antônio de Jesus – Bahia
2012
MARCOS FERREIRA GONÇALVES
ROUPA DE VER DEUS:
COTIDIANO E VESTIMENTA EM SALVADOR
(1958-1968)
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre
em História no Programa de PósGraduação em História Regional e Local
do Departamento de Ciências Humanas
– Campus V, Santo Antônio de Jesus, da
Universidade do Estado da Bahia sob
orientação da Profª Drª Suzana Severs.
Santo Antônio de Jesus – Bahia
2012
G635
Gonçalves, Marcos Ferreira.
Roupa de ver Deus: cotidiano e vestimenta em Salvador (19581968). / Marcos Ferreira Gonçalves - Santo Antônio de Jesus:
Universidade do Estado da Bahia - UNEB / Programa de Pós-Graduação
em História Regional e Local, 2012.
225 f.: il; 31 cm.
Orientadora: Profa. Dra. Suzana Serves.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia - UNEB,
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2012.
1. Vestuário – Bahia - História. 2. Trajes - Bahia – História séc. XX .
História – Dissertação. I. Servers, Suzana. II. Universidade do Estado da
Bahia - UNEB, Programa de Pós-Graduação em História Regional e
Local. III. Título.
CDD: 391.0098142
CDU: 391
Elaboração: Bibliotecária Juliana Braga – CRB-5/1396.
MARCOS FERREIRA GONÇALVES
ROUPA DE VER DEUS:
COTIDIANO E VESTIMENTA EM SALVADOR
(1958-1968)
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre
em História no Programa de PósGraduação em História Regional e Local
do Departamento de Ciências Humanas
– Campus V, Santo Antônio de Jesus, da
Universidade do Estado da Bahia sob
orientação da Profª Drª Suzana Severs.
Banca de Defesa:
Santo Antonio de Jesus 17/05/2012
Banca Examinadora:
Professora Dra. Renata Pitombo Cidreira
(Membro - UFRB)
Professora Dra. Nancy Rita Sento Sé de
Assis
(Membro – UNEB)
Professora Dra. Suzana Maria de Sousa
Santos Severs
(Orientadora – UNEB)
AGRADECIMENTOS
O processo de elaboração de um trabalho dissertativo é marcado por muitos
caminhos, veredas e “desertos”, permeados por distintos momentos, encontros com
amigos, contribuições generosas, solidariedades, diferentes lugares geográficos e
“lugares emocionais” e merece muitos agradecimentos a todos e todas que
compartilharam desta construção.
Mantendo a tradição e por sua importância na minha história, inicialmente
preciso agradecer a minha mãe e ao meu pai (in memoriam), eles são os primeiros
empreendedores desta longa jornada de aquisição do conhecimento, a eles devo
minha “régua e compasso”.
Agradeço a CAPES pela bolsa concedida durante parte do tempo desta
pesquisa, possibilitando desta forma a dedicação exclusiva e necessária para o
desenvolvimento desta pesquisa. Agradeço também o apoio da FAPESB que me
concedeu o auxilio dissertação para finalização deste trabalho.
A Caio, meu filho amado, é necessário agradecer pela compreensão nas
minhas ausências durante este tempo de escrita e sua grande colaboração no
tratamento das imagens. A Marco Martins um agradecimento muito especial, pois
desde o início, quando tudo era apenas uma idéia em alinhavo, conseguiu enxergar
nos retalhos e roupas a possibilidade de uma pesquisa. Também a ele devo
exaustivas leituras do texto e a fundamental colaboração na fase de finalização, sem
contar a grande amizade.
Minha gratidão a Nancy Sento Sé, que foi a primeira a ler o projeto e apontar
suas falhas e méritos. Leo Bulhões, meu querido amigo, me indicou caminhos para a
feitura do projeto e merece igual agradecimento. Também sou muitíssimo grato a
minha orientadora Suzana Severs que topou esta difícil missão, me apontou
caminhos e sugeriu importantes leituras para a que este trabalho fosse concretizado.
Junto a ela, na fase final, contei com a coorientação “mui gentil” de Renata Pitombo
Cidreira, que sugeriu diálogos e leituras fundamentais para o formato final da
pesquisa, pelo que agradeço.
Agradeço de forma especial a meu amigo James Amorim. Neste percurso fez
leituras atentas e generosas e ouviu as angústias desencadeadas pela pesquisa,
mas, sobretudo, aturou meu tédio em vários momentos desta trajetória. Ana Lucia
Gomes, Amélia Maraux, Eide Paiva em nossas discussões na Vice-Reitoria da
UNEB me despertaram a possibilidade real de realizar uma pesquisa acadêmica, a
elas agradeço o entusiasmo acadêmico que acabou por me contagiar.
Agradecimentos especiais aos funcionários (as) do Setor de periódicos raros
da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, pelo bom desempenho de suas funções
nos meses em que freqüentei aquele Setor. Estendem-se estes agradecimentos aos
funcionários do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local em
particular a funcionária Ane sempre atenciosa e gentil para com os mestrandos.
A escrita deste trabalho perpassou por diferentes lugares e pessoas muito
especiais. Em Jacobina, fui acolhido por minha mãe e, mais uma vez, agradeço sua
generosidade e amor; meu querido brother Edvaldo Piu, nossas conversas e
andanças foram de grande valia para seguir na difícil arte de escrever. Também com
sentimento especial agradeço a Ana Lucia Teixeira, Marisa Rodrigues, Tânia Flores,
Paulo e Nuna, os momentos partilhados foram um “descanso na loucura”. Muito
obrigado a Libanesa, ou melhor, a Nenem, que sempre garantiu uma comida
quentinha nos meses em casa de mamãe, sua dedicação foi um acalanto em dias às
vezes muito difíceis.
Na Fazenda Serra Azul, preciso agradecer a meu grande amigo e irmão Jorge
Itaitú por seu acolhimento e pelas inúmeras trocas de idéias na sua aconchegante
casa entre as serras. Também agradeço a Marcelo Andrade pelo frutífero papo que
tivemos nesta mesma casa no carnaval de 2011; agradeço ainda a Washington
Drummond que entre uma ida e outra na Serra Azul sempre colaborou de alguma
forma para o desenvolvimento desta pesquisa.
Meu irmão Edson “Boca”, Priscila, sua “fiel escudeira”, e a dinâmica Eduarda
merecem meu especial obrigado, no sobrado do Morro do Chapéu tive a
tranquilidade necessária para construir parte desta narrativa histórica, entremeada
pelo frio da cidade e pelo calor da receptividade. Com eles recuperei o sentimento
de família já meio adormecido pelo tempo e pelas “distâncias”. Em Morro também
tive a solidariedade de Neide Vital, que tão bem me recebeu em sua casa nos fins
de tardes de leve desespero provocados pela escrita.
Em Santo Antonio de Jesus preciso agradecer aos colegas da turma 2010.1,
certamente que as idas a feira, as aulas e as discussões de projetos foram de valia
singular no momento da escrita. Agradeço também as(os) docentes do Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local, em particular e especial aquelas e
aqueles com quem compartilhei a sala de aula e aproveitei suas colaborações no
momento da escrita: Sara Farias, Ana Maria, Gilmário, Carmelia Aparecida e Ely
Estrela.
Nesta cidade do Recôncavo efetuei muitas trocas de idéias e leituras com
Jean Michel, e partilhei momentos de discussões históricas e etílicas com Zai
Menezes, Cesar Ramos, Giba, Tarcila, Ricardo, Kauã e tantos outros que
frequentam a animada “república” estudantil, onde tive momentos que contribuíram
para novos olhares das fontes imagéticas e, por conseqüência, afetaram a escrita do
texto. A todos meu sincero carinho e agradecimento.
É de fundamental importância agradecer a correção atenta de Solange
Fonseca e a Celeste Freitas pela tradução do resumo e pela longeva amizade. Por
último, meus agradecimentos “cósmicos”, que prescindem de maiores explicitações:
“... escolhi melhor os pensamentos, pensei.(...) E nada pedi. Só agradeci...”.
RESUMO
Esta pesquisa, nomeada de Roupa de ver Deus: cotidiano e vestimenta em Salvador
(1958-1968), tem como objetivo analisar as vestimentas usadas no cotidiano da
Capital baiana, tendo como ponto de partida uma expressão popular que denota
uma prática social dos soteropolitanos, e contribuir para o uso de fotografias como
fonte nas pesquisas em História. Nesta pesquisa, as escolhas analíticas não estão
diretamente relacionadas com a moda, ao menos no sentido estrito do termo. Dessa
forma, imaginário, cinema, festas, procissões, bailes de carnaval, biquínis e vestidos
de chita foram ajuntados, compondo uma tessitura que permitiu analisar as
vestimentas inseridas no cotidiano da Cidade do Salvador. A construção textual teve
como modelo inspirador o universo das roupas e das modas, assim, panos, linhas e
rendas são ajuntados, formando uma “colcha de retalhos”, em diálogo com a
afetividade e imaginário pertinente às roupas tidas como ‘roupas de ver Deus’.
Palavras-chave: moda, cotidiano, cidade, imaginário.
ABSTRACT
This research named Roupa de ver Deus: daily routine and clothing in Salvador
(1958-1968), aims to analyze the clothing used in the daily life of the Capital of
Bahia, taking as its starting point a popular expression that denotes a social practice
of people from Salvador, as well as to contribute to the use of photographs as a
source in research of history. In such a research, the analytic choices are not directly
related to fashion, at least in the strict sense of the word. In this way, imaginary,
cinema, festivals, processions, carnival balls, bikinis and dresses of cotton print, were
joined, by composing a organization of texts that allowed to analyze the clothing wore
into the daily life of the city of Salvador. The textual construction had as inspiring
model, the clothing fashions universe, so, cloth, sewing thread, and lace are joined,
in order to make a "patchwork", in dialogue with the affection and imaginary pertinent
to the clothes considered as ‘roupas de ver Deus’.
Key words: fashion, daily life, town, imaginary.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Representação dos nativos da terra por Jean-Baptiste Debret
Figura 2 – Representação dos nativos da terra por Albert Eckhout
Figura 3 – Manto Tupinambá
Figura 4 – Adoração dos Magos
Figura 5 – Ritual dos gentios
Figura 6 – Glamour Girl
Figura 7 – Casamento de Glauber Rocha e Helena Inês
Figura 8 – Casamento de Roberto Carlos e Nice
Figura 9 – Maria Angelina dos Santos
Figura 10 – Traje Presidencial de JK
Figura 11 – JK e sua comitiva em Brasilia
Figura 12 – Traje elegante de Dona Sarah Kubitschek
Figura13 – Edifício Manoel Vitorino
Figura 14 – Edificio Monte Carmelo
Figura 15 – Edifício Sulacap
Figura 16 – A Baixa dos Sapateiros
Figura 17 – A Ladeira da Misericórdia
Figura 18 – Comercial Moderno
Figura 19 – O vestido da atriz Sofia Loren
Figura 20 – Tony Curtis em Salvador
Figura 21 – A graciosa Rainha do Rádio
Figura 22 – A grande cantora popular
Figura 23 – Maria Yêda a rainha da beleza
Figura 24 – Aniversário da Miss
Figura 25 – Trajos na Festa de Iemanjá
Figura 26 – Hotel da Bahia
Figura 27 – Roupas ordinárias no cotidiano da cidade
Figura 28 – Modas de fim de tarde
Figura 29 – Os sapatos da moda
Figura 30 – Moda em dia de chuva
Figura 31 – Garotas modernas e as calças cigarretes
Figura 32 – Trajos cotidianos
Figura 33 – Dia de sol, roupa de mar
Figura 34 – Maiô
Figura 35 – Cabelo de Miss
Figura 36 – A Miss e o vestido tubinho
Figura 37 – Miss e costumes
Figura 38 – Bonequinha de Luxo
Figura 39 – O biquíni da atriz
Figura 40 – Duas Peças
Figura 41 – O longo da atriz
Figura 42 – As joias da Rainha
Figura 43 – O vestido da Rainha
Figura 44 – Trajes de noite
Figura 45 – Família em ‘roupas de ver Deus’
Figura 46 – Saias godês em noite de Natal
Figura 47 – Vestimentas e penteados em Chá de Cozinha
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Figura 48 – Trajes solenes na Formatura em Arquitetura
Figura 49 – Roupas da rapaziada
Figura 50 – Roupa de menino
Figura 51 – As misses e suas vestimentas especiais
Figura 52 – Vestimenta social do jovem Caetano Veloso
Figura 53 – Gente humilde em ‘roupas de ver Deus’
Figura 54 – Saia em jérsei
Figura 55 – O véu de Maria
Figura 56 – Vestido floral
Figura 57 – As minissaias colegiais
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211
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...................................................................................13
INTRODUÇÃO: ESPALHANDO OS RETALHOS A SEREM
COSTURADOS ......................................................................................15
1 A HISTÓRIA DAS ROUPAS: UMA HISTÓRIA FEITA DE IMAGENS .27
1.1 “COSTURANDO” HISTÓRIA E IMAGENS: AS ROUPAS E AS FOTOGRAFIAS
COMO FONTES .................................................................................................... 38
1.2 AS ROUPAS DE VER DEUS E A CULTURA: UMA INTERPRETAÇÃO ........... 44
1.3 RETRATOS DE CASAMENTOS: REGISTROS DE MODAS E MODISMOS .... 51
1.4 ROUPAS E AFETIVIDADES: NOSSAS CALÇAS E VESTIDOS COMO
MEMÓRIAS ........................................................................................................... 58
1.5 AS ROUPAS COMO MEMÓRIA: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DE UM
TEMPO .................................................................................................................. 63
2 A CIDADE DA BAHIA: PALCO DE MODAS E MODISMOS
URBANOS ...............................................................................................69
2.1 OS ANOS JK: SONHOS, CIDADES MODERNAS E PESSOAS ELEGANTES 71
2.2 A GARBOSA CIDADE: O SONHO DE SER UMA CIDADE MODERNA ........... 77
2.3 IR AO CINEMA: UMA MODA NA CIDADE DA BAHIA ...................................... 91
2.4 CANTORES E CANTORAS: SUAS MÚSICAS, SUAS MODAS E AS
FESTIVIDADES BAIANAS ................................................................................... 101
2.5 O PAPO É MISS BAHIA: CONCURSOS, DESFILES E OUTRAS
FESTIVIDADES ................................................................................................... 107
3 COTIDIANO E VESTIMENTAS: AS DOMINGUEIRAS E AS ROUPAS
ORDINÁRIAS EM SALVADOR .............................................................120
3.1 AS ROUPAS E O COTIDIANO: IMAGINÁRIO E AS VESTIMENTAS COMUNS
NAS CENAS URBANAS CITADINAS .................................................................. 126
3.2 MAIÔ DE MISS, BIQUÍNI DA ATRIZ E O VESTIDO DE RAINHA: INFLUÊNCIAS
DE MODA NAS PÁGINAS DO JORNAL .............................................................. 149
3.3 “ALINHAVANDO” ROUPAS E FESTAS: AS ROUPAS DOMINGUEIRAS EM
OCASIÕES ESPECIAIS ...................................................................................... 178
3.4 “COSTURANDO” HISTÓRIA E ROUPAS: MEMÓRIAS E AS ‘ROUPAS DE VER
DEUS’ .................................................................................................................. 200
CONCLUSÃO: REMATE DE PONTOS ................................................214
REFERÊNCIAS .....................................................................................219
13
APRESENTAÇÃO
Muito do conhecimento sobre roupas e modas do século XX foram revelados
através das fotografias. Todavia, tanto a moda enquanto temática ou a fotografia
como fonte em pesquisas historiográficas requerem habilidades, metodologias e
superação de desafios. Esta pesquisa, nomeada de Roupa de ver Deus: cotidiano e
vestimenta em Salvador (1958-1968), cuja meta é analisar as vestimentas
ostentadas no cotidiano da Capital baiana, tendo como ponto de partida uma
expressão popular que denota uma prática social dos soteropolitanos, insere-se
nesse contexto desafiador.
Em seu percurso, este trabalho pretende contribuir de alguma maneira para
que o tema cultural da moda no cotidiano esteja em pauta 1 e as fotografias sejam
observadas como uma possibilidade enquanto fonte para o desenvolvimento de
pesquisas em História, não menos importante que os documentos escritos. Como é
sabido, alguns historiadores mais conservadores ainda mostram certa desconfiança
em lidar com esse tipo de fonte e com essa temática.
Construir esta narrativa tem por base o lugar de aprendiz de História, todavia,
é importante salientar a inserção deste pesquisador enquanto “realizador de moda” 2,
lugar que marcou a escolha do tema e aparecerá de diversas formas no texto.
Certamente que estar entre modas, tecidos e roupas, ouvir relatos e observar
homens e mulheres baianas dispensarem atenção à aparência por mais de duas
décadas rendeu contribuições significantes para este trabalho.
Neste sentido, é pertinente lembrar Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que
chama a atenção para o fazer histórico mudando com o tempo e mediante os
lugares sociais de onde se escreve. Destaca Albuquerque Junior: “[...] nem sempre
se fez História do mesmo jeito, e ela serviu a diferentes funções no decorrer do
tempo. O historiador não pode escamotear o lugar histórico e social de onde se fala,
e o lugar institucional onde o saber histórico se produz”3. Em seu artigo,
1
Os estudos sobre moda no campo da História têm sido residuais ao longo das últimas décadas.
Estilista ou designer de moda são terminologias usadas para aqueles(as) que realizam moda, eu
prefiro chamar de realizador de moda, acreditando ser o termo mais adequado à função por mim
desempenhada.
3
A sentença do autor faz parte do artigo “História: a arte de inventar o passado”, da obra História: a
arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007. p. 61. Nesse trabalho,
o professor orienta a escrita da História, mantendo diálogos com várias áreas do conhecimento, seja
a filosofia ou a literatura, entre outras. Este tem sido o percurso trilhado pelo historiador da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2
14
Albuquerque Júnior acaba por apontar uma crise na produção da história na
atualidade, que perpassa a forma de escrever e a imparcialidade defendida no
século XIX, observada por ele como impossível.
Como qualquer pesquisa, a escolha dos pressupostos teóricos constitui
sempre uma escolha que anula outras. Nesta pesquisa, as escolhas foram várias e,
por vezes, não estavam diretamente relacionadas com a moda, ao menos no sentido
estrito do termo. Dessa forma, imaginário, cinema, festas, procissões, bailes de
carnaval, biquínis e vestidos de chita foram ajuntados, compondo uma tessitura que
permitiu analisar as vestimentas inseridas no cotidiano da Cidade do Salvador no
período de 1958-1968.
Neste sentido, é importante salientar que a moda aglomera, em seu entorno e
na sua própria constituição, uma infinidade de diálogos com diversos temas e
setores sociais, muitas vezes constituindo influência. Por esse motivo, o texto foi
construído observando para esse entrelaçamento, o que constitui uma forma menos
convencional de escrever História.
Essa construção textual teve como modelo inspirador o próprio universo das
roupas e das modas no qual uma(um) costureira(o) vai ajuntando os retalhos de
diferentes cores, padrões e tipos de tecidos com a intenção final de fazer uma
colcha ou confeccionar um vestido. Assim, panos, linhas e rendas são ajuntados,
tornando-se uma peça a ser ostentada em um corpo nu ou para cobrir uma cama.
Todavia, o que se espera como resultado final é uma colcha ou um vestido
harmonioso.
Neste modelo “colcha de retalhos”, os diálogos estabelecidos foram múltiplos
como já salientado, introduzidos no primeiro capítulo e “costurados” no último
capítulo. Dessa forma, seguindo o modelo idealizado, a afetividade pertinente às
roupas, teoricamente apontada no primeiro capítulo, vai encontrar eco nas memórias
de algumas mulheres no terceiro capitulo ou mesmo as ‘roupas de ver Deus’. Eleitas
pelos usuários ou outrem como especiais, apreendidas inicialmente como uma
interpretação cultural, essas roupas são mostradas através das fotografias de jornais
no terceiro capítulo, muitas, porém, ainda presentes na memória das entrevistadas
ou mesmo guardadas em caixas amareladas por serem consideradas vestimentas
especiais.
15
INTRODUÇÃO:
COSTURADOS
ESPALHANDO
OS
RETALHOS
A
SEREM
A roupa é sempre um retrato de uma época, um traço indissociável da
sociedade que a produz e a veste, sendo imposta ao indivíduo desde os primeiros
suspiros e acompanhando-o mesmo após o fim do seu ciclo vital. Dessa forma, a
roupa, a aparência e a moda não podem ou não deveriam constituir uma temática
distante dos gabinetes da História, pois sabemos que a construção da História se dá
mediante as evidências deixadas pelo ser humano ao longo de sua trajetória, como
lembra Marc Bloch4.
No caso brasileiro, o tema da moda ou mesmo da aparência, sob a influência
da historiografia francesa, fora explorado pelo academicismo historiográfico
brasileiro já na década de 50 do século XX, rendendo posteriormente a publicação
do O Espírito das Roupas, trabalho pioneiro de Gilda de Mello e Souza, que se
dedicou a investigar a aparência no século XIX. Todavia, não é demasiado salientar,
antes desse trabalho, Gilberto Freyre5, que já havia atentado para a ostentação
luxuosa no vestir entre os homens e mulheres dos sobrados.
Também a fotografia, enquanto documento para a construção de uma trama
narrativa historiográfica, vem-se consolidando como fonte possível para o historiador
realizar seu ofício. No caso baiano em particular, a interface entre história e imagem,
da qual as fotografias e o cinema fazem parte, tem-se tornado, nas últimas duas
décadas, um campo fecundo de pesquisa, rendendo publicações e debates
constantes na área, contribuindo de forma decisiva para a consolidação deste
campo6.
Tendo, este trabalho, as fotografias como importante fonte, debruçar-se sobre
a interface entre História e Fotografia nos pareceu um caminho pertinente para sua
validação. Todavia, é importante destacar estudos sobre fotografia em outras áreas
do conhecimento. Neste sentido, os apontamentos de Roland Barthes foram
decisivos para iniciarmos este diálogo entre História e imagem; pois esse autor
comparou a fotografia ao gesto de uma criança que aponta as coisas com o dedo:
4
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Nas obras Casa grande e Senzala e Sobrados e Mucambos, o autor atenta para as aparências.
6
Na Universidade Federal da Bahia o Professor Dr.Jorge Nóvoa tem sido um expoente nessa
construção de campo do saber. Em 2009, em parceria com Soleni Biscouto Fressato e Kristian
Feigelson, discípulo de Marc Ferro, lançou a obra: Cinematógrafo: um olhar sobre a História.
Salvador: Edufba; São Paulo: Unesp, 2009.
5
16
“Uma fotografia está sempre na origem deste gesto; ela diz: isto, é isto, é assim!
Mas, não diz nada; uma fotografia não pode ser transformada” 7, pois a “fotografia
nunca é mais do que um canto alternado de ‘Olhe’, ‘Veja’, ‘Aqui está’”8.
Dessa forma, Barthes nos possibilita enxergar, na Antropologia e na sua
metodologia da descrição densa de Clifford Geertz, uma possibilidade de método a
ser aplicado, pois, em nosso entendimento, a aplicação dessa metodologia nesta
pesquisa sugeria ver, olhar as fotografias e descrevê-las densamente, optando-se
por chamá-la de “interpretação imagética”. Ainda é importante destacar que a
preferência para iniciar o diálogo entre História e fotografia deu-se a partir dos
estudos de Marc Ferro, que incita o historiador a observar com olhos atentos o
cinema e suas possibilidades para o entendimento da História. E o que é o cinema
senão a fotografia em movimento? Por esse motivo, em alguns momentos deste
trabalho, também é usado o filme como testemunha, pois o consideramos muito
próximo da fotografia.
É importante atentar para a temporalidade da pesquisa, que tem seu marco
inicial no ano de 1958. Nesse ano, realizou-se, no Brasil, a primeira Feira Nacional
da Indústria Têxtil – FENIT9, evidenciando a preocupação do empresariado do setor
no Brasil em manter uma sintonia com as tendências mundiais, buscando,
notadamente, ampliar o setor de moda brasileiro. A moda, naquele momento, era
notabilizada através desse evento, que perdura até a atualidade.
O ano que encerra a temporalidade da pesquisa é 1968, um ano notável para
o mundo ocidental, principalmente por conta dos movimentos reivindicatórios e
contestadores desencadeados por estudantes na Europa, reflexo em certa medida
das lutas por direitos civis que marcaram a década como um todo. Essas ações
políticas vão influenciar comportamentos e, por consequência, as aparências de
jovens no mundo todo. Nesse contexto, o movimento hippie, que teve o festival de
Woodstock como um dos expoentes máximos, desencadeou outras maneiras de
vestir e outras práticas sociais. O estilo ou moda hippie vai-se ligar à aparência dos
jovens dos anos posteriores ou o look dos anos 70.
Na construção dessa “colcha de retalhos”, o primeiro tema sobre o qual
tivemos de nos debruçar foi o imaginário, pois a própria denominação do trabalho –
7
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Lisboa: Edições 70, 2006. p.13.
Id., loc. cit.
9
A FENIT foi criada pelo publicitário Caio de Alcântara Machado, e a primeira edição da feira, que
perdura até a atualidade, foi inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek em São Paulo.
8
17
Roupa de ver Deus: cotidiano e vestimenta em Salvador 1958-1968, –, que parte de
uma expressão popular usada por baianos(as) da Capital e do interior em meados
do século XX, já apontava para essa questão. As discussões em torno do imaginário
e outros temas atrelados às roupas ou, em sentido mais amplo, à moda foram, por
escolha, introduzidos e analisados no corpo do texto. Dessa forma, este estudo não
se distanciou daquilo que a História é por essência, uma narrativa. Neste caso, é
importante destacar uma narrativa histórica de um tempo e de um lugar, como
evidenciado anteriormente.
Antes de irmos adiante, não é demasiado tecer algumas considerações
prévias sobre estas vestimentas especiais chamadas de ‘roupa de ver Deus’ ou,
ainda, ‘roupa de ver a Deus’; usadas marcadamente em ocasiões também julgadas
como especiais, poderiam ser estas uma missa, um casamento ou simplesmente
uma perambulação urbana, seja para assistir a uma fita de cinema numa das várias
salas existentes nas ruas da cidade ou flanar no comércio local10.
A expressão ‘roupa de ver Deus’, quando usada para designar uma
vestimenta nova ou evidenciar uma indumentária dominical traz incutido, em sua
acepção, o caráter do exclusivo. No primeiro caso, o sentido do termo é claro, posto
identificar uma roupa no seu momento inaugural. De fato, as roupas vão, mediante a
repetição do uso, adquirindo as formas corporais e odores dos usuários, elementos
despercebidos numa roupa nova, já que nela inexiste esta espécie de “memória da
roupa”. No segundo caso, a roupa tratada como “domingueira” assume um sentido
especial conferido pelo usuário ou outrem, que de alguma forma atribui à
determinada vestimenta qualidades peculiares, seja pela cor, pelo tecido, por
determinado corte, ou, ainda, por diferir das demais ostentadas cotidianamente por
uma determinada pessoa.
Essa expressão, bem como outras expressões populares, possui nas
entrelinhas aspectos pertencentes ao imaginário. No caso da expressão ‘roupa de
ver Deus’, revela ou ao menos aponta a importância dispensada à aparência por
brasileiros e, singularmente, por baianos. O termo encontra-se no rol das
expressões populares nas quais a aparência e outros elementos pertinentes ao
vestir despontam em plano principal, a exemplo, entre outras, de “o hábito fala pelo
10
É importante destacar que as salas de cinema estavam localizadas principalmente no centro da
Cidade do Salvador, constituindo um dos espaços de sociabilidade mais expressivo no período
estudado, atraindo pessoas das mais diferentes condições sociais.
18
monge”, “pelo andar da carruagem se sabe quem vem dentro”, “roupa suja se lava
em casa”, “saia justa”, “caiu como uma luva”, “não dá ponto sem nó”.
Hildegardes Vianna viveu esse tempo no qual havia roupas categorizadas
como ‘roupas de ver Deus’ e, ao que parece, usou essas vestimentas especiais,
posteriormente
rememorando-as
em
suas
crônicas
sobre
os
costumes
soteropolitanos. Segundo a autora, dia especial era dia de roupa nova, era dia de
‘roupa de ver Deus’. Como salientou, “[...] missa em ação de graças, almoço de
aniversário, função familiar, reza de mês de Maria, chegada de político importante,
qualquer tipo de festa, exigia de moças e senhoras um vestido de ver Deus e aos
homens suas roupas solenes”11.
Inseridos no contexto das modas, das aparências ou das roupas, seja as
especiais ou as rotineiras, outros aspectos relacionados às roupas foram
selecionados para a composição da “colcha de retalhos” deste trabalho. Dessa
forma, a afetividade com as roupas, elemento importante na construção desta trama
historiográfica ou as roupas presentes nas memórias ou mesmo a roupa como um
tipo de memória12 constituem as primeiras indagações desta pesquisa.
O imaginário mariano presente na cultura baiana e, por consequência, seu
diálogo com as indumentárias também foi analisado neste trabalho. Neste sentido, é
importante atentar para o vestido de noiva inserido nas práticas culturais da cidade,
seja das elites e das camadas populares, muitas vezes observados como uma
‘roupa de ver Deus’. Esta vestimenta, símbolo da pureza e da conduta da moça
desposada, se insere na cultura católica que personifica, na figura da noiva de
branco imaculado, a representação da Virgem Maria, mãe de Cristo, amplamente
cultuada na cidade. Essas discussões fazem parte da construção do primeiro
capítulo deste trabalho.
No segundo capítulo, a proposta é analisar o cotidiano da Cidade do Salvador
no período 1958-1968. As fontes fotográficas e escritas do Jornal Diário de Notícias,
bem como a bibliografia consultada que versa sobre o período, mostram uma urbe
que passava por profundas transformações em sua paisagem, seja pela construção
de prédios residenciais, verticalizando-a, seja pela abertura de ruas e avenidas.
Mas, principalmente, destaca-se a construção de prédios públicos e residenciais
11
VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador Fundação Cultural
do Estado da Bahia, 1994. p.260.
12
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memórias e dor. Belo Horizonte: Autêntica,
2008. p.14.
19
dentro dos padrões da arquitetura moderna, como os edifícios do Teatro Castro
Alves e sua Concha Acústica ou as edificações das faculdades da então
Universidade da Bahia, entre outros mais.
Pode-se perceber, assim, que Salvador vivia um período de adequação aos
moldes de uma cidade global, logo, os costumes dos soteropolitanos também foram
alterados. Era o boom modernista preconizado pela fase desenvolvimentista de
Juscelino Kubitschek, que tinha como meta constituir uma urbe moderna e
desenvolvida, sendo Brasília o símbolo maior deste empreendimento brasileiro.
O cotidiano citadino do período vivia dias de intensa dinâmica. A presença de
artistas e intelectuais de diversas áreas vivendo na cidade, como é o caso de Lina
Bo Bardi, Pierre Verger, Carybé, Agostinho dos Santos, e muitos outros e outras,
demandava e impulsionava uma série de realizações culturais e intelectuais, com
destaque para a criação do Museu de Arte Moderna da Bahia e a construção do
Teatro Castro Alves. Também uma gama de sociabilidades acontecia naquele
momento, denotando aspectos de uma cidade que sonhava em ser “moderna”. Na
busca de compreender esse cotidiano, foram identificadas variadas práticas
culturais, contudo, por questão de recorte metodológico, foram priorizadas algumas
delas. Assim, alguns eventos e festividades, principalmente aqueles que indicavam
lugares preferenciais de demonstração de modas e modismos, foram selecionados
com o propósito de notabilizar as dinâmicas de sociabilidades que a velha cidade
vivia naqueles dias.
Foi, então, dado destaque às festas relacionadas às Misses, eventos
concebidos em torno de um ideal de beleza feminina, que constituiu uma dinâmica
da época. Analisou-se também a cultura cinematográfica no cotidiano da cidade,
seja através dos filmes que atraíam uma parcela considerável da população para as
salas de exibição, ou o destaque que recebiam do principal periódico local,
principalmente no tocante às vestimentas portadas por astros, estrelas, atrizes no
período em foco. A presença de cantores e cantoras do Sul do País foi observada,
evidenciando a cidade realizando festas e audições com expoentes musicais do
período, constituindo inclusive influência para muitos(as).
No período, a casa mais notável era a Boate do Hotel da Bahia, um espaço
voltado para a elite local, que trazia grandes atrações nacionais e promovia
inúmeras festividades ao longo do ano, a exemplo dos bailes de carnaval, antes
restritos aos clubes e agremiações recreativas. Outras sociabilidades também foram
20
analisadas no cotidiano da cidade, com ênfase na frequência aos restaurantes
nacionais e internacionais, que despontavam então como uma moda, além de outras
festividades privadas.
Na pesquisa, ficou evidenciado que o cotidiano da cidade trazia aspectos
seculares, seja no paisagístico, que remota aos séculos iniciais da sua fundação, ou
mesmo nas indumentárias, como chapéus portados por homens de diferentes
camadas sociais, dentre outros exemplos. Esse aspecto, de certa forma, se
contrapunha ao novo ou às “bossas” como eram chamadas as “coisas modernas”
cada vez mais presentes na urbe soteropolitana, seja nos prédios de arquitetura
moderna, seja nos indumentos: mulheres vestindo calças compridas, moças
ostentando saias mais curtas, rapazes portando cabelos longos e sandálias.
Por esse motivo, a palavra tradição ou tradicional 13 aparece ao longo do texto
e merece algumas considerações. Para as Ciências Sociais, o termo tradição, em
sentido restrito, é neutro, sendo utilizado para designar a transmissão, geralmente
oral, por meio da qual os modos de atividade, o gosto ou a crença são passados de
uma geração para a seguinte, perpetuando-se no tempo. Ou seja, é uma espécie de
sentimento socialmente construído através do qual se aprendem dos antepassados
aspectos referentes aos costumes, aos conhecimentos, mas também valores
socialmente compartilhados, entre eles, os preconceitos14.
É importante destacar que o termo tradição pode ser usado também para
elementos culturais escolhidos e transmitidos, que adquirem esse status ao serem
considerados de valor e dignos de aceitação social 15. O termo enfatiza ainda as
noções de continuidade, estabilidade e venerabilidade, acentuando o conjunto de
sabedoria coletiva incluída na tradição do grupo. Ainda se percebe o termo sendo
usado com frequência para expor a fonte da legitimidade ou por autores que rejeitam
remediar mudanças institucionais radicais16.
Feitas essas considerações, é bom salientar que, neste trabalho, o termo
tradição aparece, em termos gerais, denotando estabilidade ou referente ao não
reconhecimento das mudanças pelas quais passava a própria paisagem da cidade
naquele período ou parte de suas instituições, que regiam inclusive as aparências.
13
O termo tem como acepção o sentido de algo ou alguma coisa baseado na tradição.
MIRANDA, Antonio Garcia de (Coord.). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação
Getulio Vargas, 1987. p.1.254.
15
Id., loc. cit.
16
Id., loc. cit.
14
21
Assim, podemos destacar a utilização do chapéu por alguns homens de Salvador,
um costume que, embora remontasse aos séculos anteriores, era reiterado nos
discursos de alguns usuários que consideravam seu não uso como algo
desabonador da conduta masculina. Aspecto do diálogo entre a tradição e a ideia de
moderno que se aspirava para a urbe baiana poderá ser observado na imagem do
anúncio do Hotel da Bahia, que estampa um edifício de arquitetura moderna
contraposto a uma mulher com tabuleiro de quitutes na cabeça, alusão direta ao
passado colonial que marca a cidade.
É pertinente aqui fazer uma consideração sobre as tradições inventadas, que
pode inclusive usufruir da imagem para sua consolidação, tema estudado pelo
historiador Eric Hobsbawm17. A obra atenta para o sentido amplo e nunca indefinido
com que o termo é usado. Tradição inventada é “[...] um conjunto de práticas
normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas” 18, práticas de
natureza simbólica ou ritual que têm por finalidade incutir valores e normas de
comportamento pela repetição, implicando automaticamente uma continuidade em
relação ao passado, conforme ressalta o autor.
Considerando a invenção das tradições um processo de formalização e
ritualização, Hobsbawm analisa a produção em massa de tradições em diversos
países europeus no período de 1870 a 1914, em muitos deles utilizado como uma
estratégia fundamental para a manutenção da República. Assim, o autor vai realçar,
na França, três “novidades” como importantes para incutir valores: a educação
primária imbuída de valores e princípios revolucionários, a invenção de cerimônias
públicas, sendo a mais importante o Dia da Bastilha, criado em 1880, e a produção
em massa de monumentos públicos.
Em suma, a obra de Hobsbawm vai iluminar o tema das tradições inventadas
como práticas recentes, repetidas por grupos da sociedade interessados na
continuidade. O autor nos fornece argumentos para destacar que, na Salvador do
período estudado, as transformações materializadas através da arquitetura e de
determinados hábitos cotidianos causavam estranhamento. Dessa forma, fortalecer
o discurso da tradição parecia um caminho a ser trilhado por setores da sociedade
preocupados com a inserção do novo na paisagem e nos hábitos.
17
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997.
18
Id., ibid., p. 9.
22
O moderno interpretado como algo que se contrapõe à tradição é um termo
que aparece recorrentemente nos textos jornalísticos locais, no período de 1958 a
1968. Moderno era usado com um valor semântico equivalente, em geral, ao novo, à
novidade ou como sinônimo de “bossa”, em todos os casos sempre denotando algo
não costumeiro, com caráter inovador. Moderno era uma palavra usada por muitos
da cidade, marcadamente pelos jovens, assim como a palavra cafona 19 era usada
para realçar o caráter provinciano ou o arcaico de alguém ou alguma coisa.
Não é demasiado destacar que a palavra moderno bem como suas
variações20 eram de uso frequente nos textos relativos ao governo de Juscelino
Kubitschek. O texto jornalístico a usava para retratar as ambições e realizações
desse governo, reverberando o próprio discurso do executivo, construído sob base
das ideias de modernização e desenvolvimento acelerado. Logo, moderna era uma
obra pública como o Teatro Castro Alves, mas moderna também era a vestimenta do
rapaz e da moça ou a enceradeira da senhora da classe média baiana. Em suma,
moderno era um termo que permeava o cotidiano brasileiro e baiano nessa
temporalidade.
O termo moderno pode ser usado para referendar aquilo dos nossos dias, e
modernidade, em sentido restrito, pode ter um significado equivalente. Sem sombra
de dúvida, não constitui uma meta deste trabalho a discussão sobre modernidade.
Todavia, é importante situar a moda num diálogo constante com essas
terminologias, sendo inclusive uma forma de tradução daquilo que vivenciamos nos
nossos dias, materializado em vestimentas, sapatos e outros itens que compõem o
universo amplo da moda, sempre em interface com o tradicional, pensado aqui como
o arcaico ou antigo.
Em termos teóricos, é importante situar dois trabalhos recentes no campo da
História que analisam as aparências ou a moda, empreendendo diálogo com a
modernidade. Em Teoria de Moda, Mara Rúbia Sant’Anna21 analisa a noção de
modernidade na perspectiva de Gilles Giddens e Charles Baudelaire, observando os
meados do século XX como um momento no qual se consolida a modernidade
reflexiva e se vivem as consequências da modernidade. A partir desses teóricos da
19
As palavras cafona e moderno apareceram durante as entrevistas com pessoas que viveram sua
juventude no período 1958-1968. Caetano Veloso, que viveu em Salvador durante parte desse
período, ainda hoje se utiliza da palavra cafona com bastante frequência.
20
No caso específico, referimo-nos aos termos modernoso, modernidade e modernização.
21
SANT’ANNA, Mara Rúbia. Teoria de moda: sociedade, imagem e consumo. São Paulo: Estação
das Letras e Cores, 2009.
23
modernidade, a autora vai refletir sobre o vestir como uma dimensão de
comunicação da sociedade moderna, posto que o corpo vestido ganha sentidos
múltiplos, podendo inclusive ser a aparência uma forma de poder nesta dinâmica.
Outro trabalho historiográfico com interface entre moda e modernidade foi
elaborado pela historiadora paulista Maria Claudia Bonadio22. Essa autora percebe a
moda como “verniz de modernidade” na São Paulo dos anos 20; para ela, a dona de
casa das camadas médias paulistanas se adaptava aos moldes modernos, aderindo
aos novos hábitos e modas. Percebendo essas mudanças do tempo, a loja de
departamentos
Mappin
Stores
vendia
esta
imagem de
mulher
moderna,
principalmente através de suas propagandas, revestindo-a de uma “nova
embalagem” ou um verniz, como grifa a autora.
No terceiro capítulo, a pesquisa se concentrou especificamente na análise
das roupas, tendo como ponto de partida as vestimentas utilizadas nos espaços
cotidianos e rotineiros da Cidade do Salvador. Sendo a rotina do trabalho ou mesmo
o flanar pela Rua Chile aspectos notáveis na dinâmica citadina, atentamos para as
fotografias que evidenciavam essas situações para, a partir delas, serem analisadas
as roupas envergadas nessas práticas. As roupas ordinárias da comadre do acarajé,
das estudantes, os trajos de banho usados na praia da “quente” cidade receberam
especial atenção. Todavia, fossem as roupas ordinárias ou especiais, todas se
encontravam impregnadas de imaginários e são “costuradas” aqui questões
apontadas no primeiro capítulo.
No transcurso da pesquisa, foi considerado importante atentar para algumas
influências, notabilizadas recorrentemente nas fontes orais e observadas também
nas fontes imagéticas oriundas das páginas do periódico consultado. Dessa forma,
mais uma vez e por questões metodológicas, tivemos de fazer um recorte. Assim,
misses, rainhas, astros e atrizes, suas aparências e costumes julgados como
influenciadores, foram selecionados para auxiliar na composição desta trama
historiográfica e citadina.
É bom salientar que o ato de ir ao cinema era um hábito popular na cidade 23,
e os ícones cinematográficos povoavam o imaginário soteropolitano. Os certames de
22
BONADIO, Maria Claudia. Moda e sociabilidade: mulheres e consumo na São Paulo dos anos
1920. São Paulo: Senac São Paulo, 2007.
23
A análise dos cinemas e da frequência a essas salas na dinâmica social da Cidade do Salvador,
evidenciando aspectos da sociabilidade popular e da influência na mudança de hábito, foi objeto de
dois importantes trabalhos: FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos,
24
beleza, tendo como expoentes máximos os concursos de Miss Bahia, Miss Brasil e
Miss Universo, marcavam de forma notável o cotidiano da cidade no período 19581968, além da presença constante das realezas nos jornais e revistas da época,
criando uma sensação de familiaridade e proximidade com os munícipes, aspectos
que, como se verá adiante, ficaram marcados na memória das mulheres que
vivenciaram essa época.
É importante, porém, pontuar que, no processo de pesquisa, em vários
momentos houve a possibilidade de estabelecer diálogos com outros ramos e
formas de saber, a exemplo, entre outros, da moda pensada como arte. Contudo,
sem querer
minimizar
o caráter
contributivo
desses outros diálogos,
tal
desdobramento da temática certamente levaria a outra pesquisa. De fato, a leitura
da obra de Gilda de Mello e Souza já havia indicado que uma das dificuldades em
tratar o complexo tema da moda era a escolha do “ponto de vista” 24, pois, como já
salientado, as possibilidades são múltiplas e nem todas possíveis de aprofundar em
um mesmo trabalho. Mello e Souza, ao analisar a moda no século XIX, opta por
esse recorte analítico, refletindo sobre a moda como arte, observando-a antes e
depois do advento da industrialização.
Saliente-se que outras expressões artísticas foram igualmente impactadas
pela produção em série da indústria, a exemplo do cinema e da pintura. Por sinal, os
artistas da Arte pop compreenderam isso muito bem, reproduzindo retratos de
ícones populares, como Marilyn Monroe e Elvis Presley25, em diálogo direto com a
dimensão serial da indústria. A própria moda deixou de se restringir às peças
exclusivas, passando a produzi-las em série, sem que isto significasse a negação do
aspecto artístico em sua concepção26.
Nesse aspecto, é pertinente destacar que, nos anos 50, o costureiro francês
Christian Dior foi à Universidade para afirmar, entre outras coisas, que o costureiro
cotidiano e imaginário em Salvador, 1997-1930. Salvador: Edufba, 2002; CARVALHO, Maria do
Socorro Silva. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: Edufba, 2003.
24
SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. p. 29.
25
Faz-se referência à obra do artista pop norte-americano Andy Warhol que, através da técnica da
serigrafia e outras, reproduziu os retratos de ícones mundialmente conhecidos e também da lata de
sopa Campbell e a da garrafa da Coca-Cola.
26
Renata Pitombo Cidreira no capítulo “Moda, mercado e arte”, da obra Os sentidos da moda,
destaca que o prêt-à-porter democratiza a roupa, dada a sua produção em série, e reafirma o laço
entre moda e arte. Neste processo, a roupa passa a ser feita por muitas mãos, e o estilista que
desenha a roupa, abandona seu lugar de artesão, passando a ser um criador de moda, logo, um
artista.
25
era um criador do mesmo quilate de um romancista ou um dramaturgo. Foi, de fato,
uma provocação acadêmica. Mello e Souza, ciente ou não da provocação 27, atenta
para as intenções artísticas nas vestimentas feitas por Dior logo após a Segunda
Guerra Mundial, período marcado por privações de várias ordens. Entretanto, em
meio às dificuldades do pós-guerra, o costureiro lançou anáguas bordadas e blusas
de gola alta que resgatavam a “volta ao passado e à doçura de viver”28, vistas pela
autora com uma expressão de arte. Ao longo do presente estudo, outras expressões
artísticas de estilistas são destacadas, reforçando a interface entre a moda e a arte.
Faz-se necessário ainda destacar a escolha do Diário de Notícias como fonte
na construção do percurso historiográfico desta pesquisa. Esse periódico, o principal
em circulação na cidade no período estudado, dispensava atenção especial à
aparência ao longo de suas páginas. As fotografias constituíam forte reforço aos
textos jornalísticos, principalmente nas notícias sobre os concursos de beleza
patrocinados pelo jornal, que, por essa razão, se dirigia frequentemente às leitoras,
buscando estabelecer um elo de familiaridade entre elas e esses tipos de eventos.
Nele também era veiculada a coluna Krista, que ofereceu a oportunidade de
conhecer as festas e outras sociabilidades que aconteciam na cidade. É importante
ainda destacar que, nas páginas do Diário de Noticias, escreviam, com maior e
menor frequência, os expoentes intelectuais e artísticos da cidade e do Brasil
daquele momento, a exemplo de: Walter da Silveira, Lina Bo Bardi, Glauber Rocha,
Mario Cravo Junior, Gilberto Freyre, Adonias Filho, Thales de Azevedo, Clarival do
Prado Valladares, Augusto Boal e Assis Chateaubriand, para não citar outros.
Com a finalidade de analisar as ‘roupas de ver Deus’, a pesquisa penetrou na
esfera da vida privada soteropolitana através das fotografias. Dessa forma, algumas
sociabilidades como festas de aniversário, formaturas, celebração do Natal, festas
de chá de cozinha, missas e exposições de arte no Museu de Arte Moderna da
Bahia foram “visitadas”, notabilizando o cotidiano festivo das elites e das camadas
populares da velha Cidade da Bahia29, com destaque para as roupas domingueiras
ostentadas nessas ocasiões.
27
Na obra de Mello e Souza, não existe referência aos escritos do estilista francês.
SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas..., op. cit., p. 32.
29
Ao menos desde o século XVII o termo “Cidade da Bahia” é utilizado como codinome para a cidade
de Salvador, aparecendo com frequência nos sonetos de Gregório de Matos. Esta alcunha ainda era
muito utilizada nas décadas de 50 e 60 do século XX.
28
26
Por último e de primeira importância, foi a inserção das memórias neste
trabalho. As reminiscências de algumas senhoras baianas, entrevistadas ao longo
do desenvolvimento da pesquisa, ajudaram a “costurar” memórias e roupas ou
mesmo perceber a vestimenta como uma memória e entender melhor os imaginários
em torno de uma indumentária.
Esse cenário foi fundamental para se alcançar o que o historiador
pernambucano Antônio Paulo Rezende intitula de “ruídos do efêmero”, percebendo
as histórias de dentro e de fora. Esse autor mostra que os cenários da vida vão
sendo construídos entre ruídos, silêncios, conflitos, diálogos e sussurros, pois, como
ressalta, “[...] presente, passado e futuro se misturam nas tentativas de construir
nossas narrativas. Não há tempo linear, progressivo, absoluto, mas um profundo
diálogo entre os três tempos”30.
Em suma, Rezende, para além de apontar os tempos interagindo diante do
historiador na construção de sua narrativa ou, como denominou, “cenários da vida”,
alerta que as muitas vozes que permeiam esses cenários devem ser ouvidas pelo
historiador. Ao longo da obra, aconselha o aprendiz de história a aguçar a
sensibilidade diante do ofício de historiar e dialogar com pensadores de outras áreas
e campos do saber para que consiga obter um resultado que se aproxime da vida.
Por fim, é bom salientar, este trabalho não se configura como uma História
Econômica das Roupas, se assim o fosse trilharia outros caminhos. De fato, inserese no contexto do que se convencionou chamar de História Cultural, perpassando
afetividades, sensibilidade e memórias de pessoas que, nos seus cenários de vida,
um dia categorizaram certas vestimentas como ‘roupas de ver Deus’.
30
REZENDE, Antônio Paulo. Ruídos do efêmero: histórias de dentro e de fora. Recife: UFPE, 2010.
p. 25.
27
1 A HISTÓRIA DAS ROUPAS: UMA HISTÓRIA FEITA DE IMAGENS
É inquestionável o valor de imagens como evidência para a história do
vestuário31. Assim, torna-se claro que a História das Roupas, a História da Moda ou
mesmo a História do Estilo é, antes de tudo, uma História das Imagens. Em nossa
pesquisa, cujo elemento principal é a vestimenta, essas evidências possibilitaram
analisar e cumprir o ofício de historiar, haja vista termos escolhido as fotografias
como nossa principal fonte documental. Através delas, dadas suas características
técnicas e materiais, tomamos conhecimento de modas e modismos.
Entretanto, é bom salientar, desde o início, o imagético está muito além das
fotografias, é um campo vasto, sendo a fotografia compreendida como o resultado
que mais se aproxima da realidade ou de uma representação da realidade. O campo
imagético agrega desenhos, pinturas, para não citar outros, passíveis de
interpretações e análises históricas, como a fotografia.
Todavia, anterior ao caráter material e técnico da fotografia ou mesmo da
xilogravura, o campo imagético congrega imagens textuais e/ou mentais, fruto da
imaginação. O próprio termo, que deriva do latim imaginatione, traz este teor incutido
em sua acepção, posto se referir ao espírito de representar ou formar imagens,
ampliando assim, e de maneira considerável, o significado, considerando as
possibilidades do homem enquanto animal pensante, logo com a faculdade de criar
imagens, mesmo que elas não se apresentem em sua forma mais concreta, como é
o caso da fotografia.
Dessa forma, a faculdade de criar imagens se insere no campo do imaginário.
É importante salientar também que o campo de estudos sobre imaginário é vasto e,
por vezes, existem posições diferenciadas relativas à questão. Jean-Jacques
Wunenburger, na sua obra destinada à análise das teorias contemporâneas do
imaginário, contemplando Gilbert Durand, Paul Ricoeur, entre outros, bem como os
critérios de análise, preocupa-se inicialmente em distinguir o imaginário da
imagética.
O autor francês ressalta que a imagética “[...] designa um conjunto de
imagens ilustrativas de uma realidade, sendo o conteúdo da imagem, em sua
31
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e Imagem. Bauru: EDUSC, 2004. p. 99.
28
inteireza, já pré-informado pela realidade concreta ou pela idéia” 32. Quanto ao
imaginário, ele atenta para sua implicação de emancipação com alusão “[...] a uma
determinação literal, à invenção de um conteúdo novo, defasagem que introduz a
dimensão simbólica. Será possível igualmente distinguir o imaginário de uma
categoria muito específica, o imaginal”33.
O autor atentou para a diferenciação existente de imaginal34, oriundo do latim
imaginalis e não imaginarius, este relacionado diretamente com imaginário. Dessa
forma, percebe-se que conceituar imaginário não se constitui em uma tarefa fácil,
haja vista que mesmo os estudiosos do tema fogem de conceituações. Michel
Maffesoli, herdeiro intelectual de Gilbert Durand, em entrevista, faz algumas
considerações que indicam pistas sobre a temática: “[...] o imaginário é uma força
social de ordem espiritual, uma construção mental”35.
Para Wunenburger, é possível falar do imaginário de um indivíduo e de um
povo manifestado em suas crenças e obras. Maffesoli observa o imaginário como
algo que ultrapassa o individual, constituindo-se como construção coletiva,
relacionando o constructo e a coletividade, logo reforçando uma estreita relação
entre a cultura e a sociedade em que estamos inseridos.
Dimensionadas essas considerações inicias em torno do imaginário,
sobretudo no que se refere ao coletivo, é possível perceber que a pintura não
realista, o romance, as crenças religiosas, os preconceitos sociais fazem parte do
imaginário. No que se refere às aparências, é possível desde já identificar que o uso
da cor branca nos vestidos de noiva, o uso dos bigodes masculinos no período
colonial brasileiro como símbolo de virilidade e masculinidade, dentre outras modas
e modismos, inserem-se no plano do imaginário nacional.
Ainda realçando o imaginário, terminologia de difícil delimitação, conforme
grifado por Wunenburger na sua análise, é salutar atentarmos para a lista de alguns
termos que ele destaca e, segundo esse autor, entram em concorrência, tendo sutis
32
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p.10.
Id., ibid., p. 11.
34
Segundo Jean-Jacques Wunenburger, o termo foi introduzido pelo islamólogo H. Corbin (1958).
Trata-se de designar com isso, no domínio das espiritualidades místicas, imagens visionárias,
dissociadas do sujeito, que têm uma autonomia a meio caminho entre o material e o espiritual, e que
servem para tornar presentes, na consciência, realidades ontológicas transcendentes.
35
A entrevista do estudioso francês foi publicada na Revista Eletrônica FAMECOS, Porto Alegre,
n.15, ago. 2001.
33
29
interferências. São eles: mentalidade, mitologia, ideologia, ficção e temática. No que
se refere á mentalidade, conceito muito usado pela historiografia, proveniente dos
Annales, quando se debruça sobre análises de atitudes psicossociais e seus efeitos
sobre os comportamentos: “[...] o estudo das mentalidades permanece contudo mais
abstrato do que a descrição dos imaginários”36, ressalta o autor.
Dessa forma, sem querer escamotear uma proximidade entre mentalidade e
imaginário, parece-nos pertinente o uso do conceito imaginário, para respaldar
temas relacionados à moda e à aparência, que serão desenvolvidos ao longo deste
estudo. Pensando imaginário como uma força social resultante de uma construção
mental, como propõe Maffesoli, é possível, através desta ação coletiva, categorizar
uma indumentária ou mesmo seu (sua) usuário (a) como “chique” ou “cafona”. Por
questões relacionadas também ao imaginário, uma roupa poderá ser vista como
indecente, seja pelo seu corte, revelando alguma parte do corpo, ou meramente por
sua cor37.
Nesse sentido, é pertinente atentarmos para os apontamentos de François
Laplantine, quando considera as ideias enquanto representações mentais de coisas
concretas e abstratas38. Na busca de um diálogo entre a ideia do autor e a temática
aqui desenvolvida, é concernente destacar a roupa enquanto elemento concreto,
dada a sua materialidade, permeada, todavia, por valores abstratos oriundos do
imaginário. Nesta pesquisa, diversas roupas ostentadas por rainhas ou misses em
fotografias de jornal e contempladas por entrevistadas foram categorizadas como
chiques, elegantes ou outros superlativos, valores provenientes de seus imaginários.
Gilbert Durand39 se debruçou sobre o tema do imaginário e da filosofia das
imagens, apontando para a confiança nas imagens por parte das civilizações não
ocidentais, que não separam “as verdades” fornecidas pela imagem daquelas
fornecidas pelos sistemas escritos, a exemplo dos ideogramas. Todavia, nossa
civilização, herdeira do raciocínio socrático e do batismo cristão, teve, ao longo do
seu processo histórico, desconfiança iconoclasta.
36
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. .. p. 8.
As roupas femininas com fendas ou mesmo de cor vermelha já foram e ainda são, no Brasil,
percebidas por algumas pessoas como vestimentas indecorosas. Essas observações são resultantes
das entrevistas realizadas nesta pesquisa
38
LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 2003. p.
12.
39
DURAND, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das Ciências e da Filosofia da Imagem. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1998.
37
30
No Ensaio acerca das Ciências e Filosofia da Imagem, Durand parte da nossa
herança mais antiga, o monoteísmo bíblico, quando se refere à proibição de criar
imagens para fundamentar o paradoxo do imaginário no Ocidente. Dessa forma,
Durand traz à luz um paradoxo ocidental, apontando para uma civilização que,
paralelo ao desenvolvimento das técnicas de reprodução das imagens, também
suspeita delas constantemente.
O antropólogo francês, que tem o imaginário e o mito como objetos de
décadas de estudo, ressalta que a imaginação, suspeita de falsidade no mundo
ocidental, “pode se desenvolver dentro de uma descrição infinita e uma
contemplação inesgotável”40. Nas civilizações ocidentais contemporâneas, as
imagens estão presentes “do berço ao túmulo”41, destaca o autor, notabilizando o
imaginário como parte indelével nas culturas contemporâneas.
O imaginário, enquanto conjunto de símbolos e atributos de um povo,
certamente engloba também as disciplinas do saber. Durand é determinante quando
sentencia que constatou, em todas as disciplinas do saber, a exemplo da psicologia,
da história das ideias, das ciências religiosas, da epistemologia e outras, “[...] a
formação progressiva e não premeditada de uma ‘ciência do imaginário’ e que
desmistifica as proibições e exílios impostos à imagem pela civilização que criou
estas mesmas disciplinas deste saber”42. O autor, dessa forma, nos fornece
argumentos para respaldar nossa inserção metodológica de pesquisa no campo do
imaginário e da imagem.
A própria gênese da História do Brasil, para além do enfrentamento de dois
mundos antagônicos que tão bem a caracteriza, tem na sua base imagens textuais.
Pero Vaz de Caminha, escriba da esquadra que trouxe os portugueses à porção sul
da América, quando descreve ao Rei de Portugal a nudez dos gentios do novo
mundo, percebidos como pecadores na ótica cristã europeia, cria uma imagem dos
nativos tropicais, logo, uma representação.
O olhar do Outro, materializado nas impressões descritas no papel pelo
escrivão luso, gestou as primeiras imagens textuais sobre os nativos e as terras
encontradas43. Outros olhares europeus, em diferentes momentos da colônia, vão
40
DURAND, Gilbert. O Imaginário..., op. cit., p. 9.
Id., ibid., p. 10.
42
Id., ibid., p. 11..
43
A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel ficou, por um longo período, soterrada nos
arquivos portugueses, sendo redescoberta em 1773, conforme informa CUNHA, Manuela Carneiro
da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: FAPESP,1992.
41
31
também produzir discursos, desenhos e cristalizar representações da terra e de sua
gente para aqueles distantes do cotidiano nos trópicos, a exemplo dos cronistas que
testemunharam os primeiros momentos da dominação portuguesa, como Hans
Staden e Jean de Lery.
Mais tarde, a vinda de pintores europeus a serviço do poder colonial nos
trópicos, como Albert Eckhout e Jean-Baptiste Debret44 através de seus pincéis e
suas tintas, darão nova roupagem técnica as imagens já bastantes consolidadas no
pensamento europeu. Suas pinturas mostraram, de alguma maneira, a exuberância
da indumentária nativa, seus corpos, suas tangas, seus adereços nos braços e nas
cabeças, suas tatuagens percebidas pelo olhar do outro, um olhar europeu,
observado do lugar de suas hierarquias e seguindo interesses distintos, mostrados
nas Figuras 1 e 2.
Figura 1 – Representação dos nativos da terra por Jean-Baptiste Debret.
Fonte: Cunha (1992, p. 315)
44
Os pintores citados fizeram parte de diferentes missões artísticas; o primeiro da Missão Holandesa
(século XVII) e o segundo da Missão Artística Francesa, que vieram ao Brasil para pintar as “coisas”
da terra (século XIX).
32
Figura 2 – Representação dos nativos da terra por Albert Eckhout.
Fonte: Cunha (1992, p. 111)
Neste caminho do imagético, o manto Tupinambá mostrado na Figura 3, que
não foi representado por esses europeus, mas hoje, com a vulgarização da imagem,
é conhecido de muitos, seria um bom exemplo, um expoente máximo dessas
vestimentas. Esse traje de gala evidencia uma distinção entre a indumentária
cotidiana e a indumentária de festa, dos momentos especiais, dos rituais nobres,
além do que propicia seguramente uma ideia da sofisticação estética desses
nativos, mais conhecidos pelos rituais antropofágicos que praticavam na época
colonial.
33
Figura 3 – Manto Tupinambá.
Fonte: Cunha (1992, p. 398)
Estes gentis da terra brasilis também tiveram suas imagens sempre
associadas a interesses de cada momento. Ora, por exemplo, foram representados
junto ao menino Jesus, numa alusão ao nascimento do Cristo (Figura 4). Na cena, a
manjedoura e os reis magos, sendo um destes reis, um índio dos trópicos, com
penacho na cabeça, evidenciando sua identidade. Essa representação é atribuída a
Vasco Fernandes, pintada no século XVI e denominada “Adoração dos Magos”.
Figura 4 – Adoração dos Magos.
Fonte: Cunha (1992, p. 112)
34
Em outro momento, atendendo a outros interesses, os gentios estão
presentes numa cena de canibalismo (Figura 5), suas indumentárias não deixam
pairar dúvidas de que são os “negros da terra”, sendo agora vistos em uma cena
infernal, na qual homens e mulheres participam do ritual antropofágico, trazendo
adereços indígenas que os identificam. Essas duas representações europeias nos
possibilitam ilustrar que nada há de inócuo nas imagens, seja a pintura ou a
fotografia, estas estão incutidas de valores, imaginários e intenções claras, seja de
quem as encomenda ou de quem as realiza.
Figura 5 – Ritual dos gentios.
Fonte: Cunha (1992, p. 389)
Na década de cinquenta, marco inicial de nossa pesquisa, que compreende
especificamente de 1958 a 1968 e tem a vestimenta como objeto de investigação,
Gilda de Mello e Souza, trilhando as novas perspectivas e novas abordagens
inauguradas pela historiografia francesa, escreveu O Espírito das Roupas,
debruçando-se de forma elegante e atenta sobre o vestir no século XIX. Sua análise
estética, sociológica e psicológica sobre a moda deste período percebeu os
aspectos artísticos, culturais e também a oposição mútua entre a vestimenta
feminina e masculina no século dos xales, mantinhas, suspensórios e da invenção
da máquina de costura. Essa obra é recheada de imagens meramente ilustrativas.
Entretanto Mello e Souza vale-se das imagens textuais45, utilizando como suporte os
45
Usamos o termo imagens textuais para abordar aspectos relativos à imaginação.
35
romancistas do século XIX, como José de Alencar e Machado de Assis, entre outros,
que lhe oferecem imagens de modas e modismos para o desenvolvimento da obra.
No capítulo em que trata do antagonismo entre o vestir masculino e o
feminino, marcante no período em que centrou seu estudo, vale-se do romance Dom
Casmurro, de Machado de Assis, para evidenciar a oposição entre estes dois
sistemas. O literato possibilita à historiadora perceber cores, formas, tecidos da
indumentária do período, que, para podermos observar melhor esta construção
imagética, reproduzimos:
Vi-o passar com suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque
e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de
Janeiro e talvez no mundo. Trazia as calças curtas para que
ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com o aro de aço
por dentro, imobilizava-lhe o pescoço, era então moda.46
Vê-se, no fragmento do texto, toda uma descrição imagética com a maestria
de um cronista de moda, possibilitando à autora enveredar no caminho da análise
histórica, percebendo as nuances que envolviam a indumentária masculina e os
sacrifícios para seu uso, bem como as cores e outros artifícios que configuravam a
apresentação masculina no espaço público. Nesta pesquisa, em que, como já
evidenciado, a imagem fotográfica é fonte principal, queremos ressaltar a
importância do imagético na construção de uma historiografia que tem a roupa como
elemento principal, mesmo quando essas imagens são oriundas do textual, que foi o
eixo escolhido pela historiadora paulista.
Anteriores ao trabalho de Mello e Souza, dois importantes trabalhos de
História Cultural escritos por Gilberto Freyre47, os quais tratam sobre o Brasil e sua
formação cultural, deram atenção às modas e aparências ostentadas do século XVI
ao século XIX. Para tratar das modas usadas nesse extenso período, o sociólogo
valeu-se, sobretudo, das imagens textuais oriundas dos olhares estrangeiros dos
cronistas coloniais para elaborar sua narrativa.
Alguns temas sinalizados nesses trabalhos tiveram aprofundamento na obra
do escritor pernambucano Modos de Homem e Modas de Mulher48. A diversidade de
teses abordadas por Freyre é vasta e, em muitos casos, podem ser ampliadas ou
46
SOUZA. Gilda de Melo e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. p.72.
47
As obras do autor aqui apontadas são Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos.
48
FREYRE, Gilberto. Modos de homem e modas de mulher. São Paulo: Global, 2009.
36
mesmo repensadas. É notável nesse trabalho a atenção que o autor dispensou aos
aspectos de orientalismos em modas brasileiras, notabilizando, dessa forma, o vestir
brasileiro como resultado de uma gama diversa de influências49.
Nesse sentido, observa Freyre que, no Brasil Colônia, “[...] vinha absorvendo
– repita-se – não poucos orientalismos, inclusive quanto ao uso de cores vivas nos
trajos tanto de homens como de mulheres elegantes, essa absorção, por parte das
mulheres, parecendo ter-se estendido a penteados e a adornos”50. Esses “toques de
sugestões orientais” em vestimentas e adornos, resultado dos contatos entre o Brasil
colonial e o Oriente, segundo o autor pernambucano, “[...] desapareceriam com a
reeuropeização em conseqüência da transferência da Corte portuguesa – e
brasileira – de Lisboa para o Rio de Janeiro”51.
Este novo momento da moda, que Freyre chama de “reeuropeização”, é
personificado nos trajos de D. Pedro II e da Imperatriz, “trajos sempre escuros – ele
de sobrecasaca preta e de cartola também preta, ela também, sempre de vestidos
tristonhamente escuros”52. Solenidade, segundo Freyre, passaria a ser a
característica do Brasil patriarcal e escravocrata do reinado longo de D. Pedro II. O
autor não se esquivou de categorizar essas vestimentas de absurdas para cidades
como Rio de Janeiro, Salvador e Recife.
Retomando o diálogo entre as roupas e as imagens, que possibilitam estudar
a moda de forma mais sistemática, excluindo inclusive o pensamento de objeto fútil,
temos outro texto de natureza poética, mas não menos importante e com inegável
natureza imagética. Trata-se da poesia musicada, e já gravada em diversos países
da América Latina, Fina Estampa, de Chabuca Granda53, composição datada da
década de 50 do século XX, que revela aspectos ainda presentes na mentalidade
latino-americana no que tange à demonstração pública da aparência.
A expressão que intitula a poesia já traz uma imagem intrincada na sua
essência, ao apontar para alguém de aparência elegante ou mesmo “alinhada”.
Embora composta em língua espanhola, as similitudes com a língua portuguesa nos
49
Freyre destaca que sua escrita a respeito do orientalismo na moda brasileira é resultante de
pesquisa via tradição oral e fotografias de famílias da década de 60 do século XIX.
50
Id., ibid., p. 213.
51
Id., ibid., p. 213.
52
Id., ibid., p. 215.
53
FINA ESTAMPA. Chabuca Granda. Fina Estampa: Caetano Veloso. Faixa 6, n. 314.522.7452.Polygram, 1994, 1 CD.
37
permitem a compreensão do seu teor54. Neste caminho de desvendar o texto
poético, iremos deparar com um trajeto, uma rua, “una veredita alegre” na qual um
cavalheiro elegante e perfumado passa e, dada a sua elegância e opulência, toda a
rua se alegra. Esta vereda na qual o elegante homem desfila é percebida como uma
fita que tem seus lados em cores mais fortes, matizadas, cujo relevo não uniforme é
comparado a “tafetanes bordados”, ou melhor, na língua portuguesa, tafetá, tecido
que tem ondulações na sua forma, reproduzindo, na mão que sobre ele deslize, a
sensação de subidas e descidas.
A composição, de autoria de uma mulher latina da década de 50, se aproxima
de uma crônica escrita por uma costureira, familiarizada com indumentárias, tecidos
e artefatos pertinentes ao ofício, revela ainda uma aproximação estreita entre o
universo feminino da época e o ambiente das roupas, tornando possível pensar que
a aparência, seja ela masculina ou feminina, é algo de destaque neste cotidiano. O
texto, à semelhança de um roteiro cinematográfico, conclui enfatizando, repetidas
vezes, a expressão “fina estampa, cavalheiro”, dessa forma, a exaltação repetida
reforça a imagem garbosa de alguém que, por sua aparência, torna-o acessível a
sonhar amores, revelando outra característica latina, a do amor romântico
idealizado.
Este é mais um exemplo de imagem textual que traz em seu teor as
possibilidades de se pensar imageticamente as roupas ou outros elementos
pertinentes à moda. Neste caso, desvela ainda um aspecto singular da latinidade,
que é o cuidado com a aparência, o apresentar-se na melhor forma possível,
extrapolando inclusive as questões sociais de ordem econômica. A expressão “fina
estampa” não necessariamente aponta para uma roupa de custo elevado ou mesmo
uma vestimenta assinada por um(a) grande costureiro(a) da moda, algo presente na
dinâmica dos tempos atuais, a expressão dialoga com o garboso, que independe da
situação econômica.
Como escreveu Daniel Roche55, a aparência ocupa um lugar primordial na
história humana, pois, sem os homens saberem, serve para exibir poder e ainda se
torna marca de suprema distinção, sendo ainda vista como uma expressão natural
de arte de um viver. Sendo a exibição de poder através das roupas ou mesmo a sua
54
55
Tradução livre feita pelo autor, que levou em conta figuras de linguagem da língua portuguesa.
ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII e XVIII). São
Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007. p. 19.
38
percepção como marca de distinção algo que infere subjetividades, as fotografias
despontam como um elemento palpável, possibilitando aferir com maior rigor
aspectos pertinentes à moda, aos modismos, aos indumentos e a outros elementos
desse universo, por vezes observado como frívolo.
Assim, as imagens, nobres na sua origem, conhecidas ainda como sublimes,
dadas as possibilidades de congelar um instante, são peças-chave nesta pesquisa,
e, diferentes das roupas, têm perpassado pelo tempo, mesmo que em condições
não apropriadas, e chegaram aos gabinetes historiográficos, garantindo a
possibilidade de analisar as roupas e a moda através delas.
1.1 “COSTURANDO” HISTÓRIA E IMAGENS: AS ROUPAS E AS FOTOGRAFIAS
COMO FONTES
Muito do conhecimento sobre as roupas ostentadas no Brasil depois da
segunda metade do século XIX se dá, geralmente, através das fotografias. Dessa
forma, as fotografias e as indumentárias têm uma relação de muita proximidade.
Íntima também é a relação entre o fazer histórico e o conjunto das fontes, e estas
efetivamente direcionam o trajeto do historiador na realização da trama narrativa
histórica. Durante muito tempo, esse caminho esteve limitado principalmente às
fontes escritas, tidas como uma “verdade no papel”, cuja importância está
estreitamente ligada ao entendimento da função do historiador enquanto aquele que
dá visibilidade ao passado, então guardado na forma de documentos em prateleiras
de arquivos.
São concepções do século XIX, momento em que a própria ciência galgava
espaço, duelando com as concepções teológicas vigentes, época em que a
materialidade da fotografia era vista como algo demoníaco, uma percepção tão
distante e amplamente explorada que não merece aqui novas considerações. Na
atualidade, as fotografias, as pinturas e as xilogravuras, bem como outras fontes
imagéticas, tornaram viável estudar aspectos pertinentes às práticas culturais, cujas
análises e interpretações eram difíceis, por vezes mesmo impossíveis.
Maria Eliza Linhares Borges56, ao refletir sobre relação entre a História e a
Fotografia, argumenta que, quando a História passa a ser entendida como elemento
cultural, sujeito a interpretação, temos um novo paradigma. Surgem assim outras
56
BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
39
possibilidades de fontes que auxiliem o historiador a interpretar esses conteúdos
culturais. Nestes termos, parece-nos pertinente lembrar os apontamentos de Marc
Bloch sobre os vestígios e marcas produzidas pelo homem ao longo dos tempos,
que irão constituir a trilha a ser seguida no ofício de fazer história. Este fazer
histórico foi revolucionado a partir do próprio Bloch e de Febvre, e o primeiro, já na
década de 30 do século passado, chamava a atenção para a necessidade de se
atentar para as imagens e compreender sua dimensão ideológica.
Na década de 70, a publicação Fazer História vem reforçar o discurso de
mudança, apontando, em sua introdução, que os historiadores franceses haviam
desempenhado um papel capital na renovação da história. Na obra, organizada por
Jacques Le Goff e Pierre Nora, novos problemas, novas contribuições e novos
objetos são discutidos, questionados e refletidos por importantes historiadores da
historiografia “revolucionária francesa”, como apontam os próprios organizadores.
No que tange aos novos objetos, os autores sugerem vários temáticas a
serem estudadas: o corpo, o mito, a festa, o livro, a cozinha, as mentalidades e o
filme são alguns dos temas trazidos à luz. Marc Ferro se propõe a analisar a película
cinematográfica como uma contra-análise da sociedade, e, dadas as proximidades
com a fotografia, aqui usamos seus argumentos. Seu trabalho tem um teor de
contestação. Ferro inicia questionando: “Dar-se-á o caso de ser o filme um
documento indesejável para o historiador?”57.
Ferro aponta ainda para os hábitos arcaicos da História: “[...] o cinema ainda
não nascera quando a história adquiriu seus hábitos” 58. Mas adiante, no mesmo
texto, enfatiza a necessidade da renovação do oficio e aperfeiçoamento do método,
que deixava de narrar para explicar, porém escreve: “[...] o filme continua à porta do
laboratório histórico. É verdade que, em 1970, o bispo e o homem de leis, o médico
e o militar, o general e o senador vão ao cinema; o historiador também, mas vai lá
como toda a gente, apenas na qualidade de espectador”59.
Ao tempo em que Ferro coloca o historiador em uma posição social de
destaque, ao lado de médicos e de senadores, também chama a atenção de seus
pares para perceberem o cinema com um “outro olhar” crítico, questionador e
investigativo. No mesmo artigo, imbuído de um sentimento que parece ser bem da
57
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre
(Org.). Fazer História 3 Novos Objectos. Lisboa: Berthand Editora, 1987. p. 255.
58
Id., loc. cit.
59
Id., ibid., p. 258.
40
época, o autor aborda a “[...] desconfiança da Esquerda e o medo da Direita em
relação a esta arte” e conclui: “de qualquer realidade, é efetivamente o cinema a
imagem?”60.
Nessa interrogação reside a proposta maior do autor, ele mesmo esclarece
que a câmera desvenda, revela segredos, arranca as máscaras. As imagens
mostram aquilo que não quer ser mostrado, entram no universo do inconsciente, do
imaginário do homem, tudo isso é tão história quanto a História.
E o que é o cinema? Antes de qualquer coisa, o cinema é a fotografia em
movimento, é a animação da imagem. Logo os argumentos de Ferro, quando este
trata de pensar a imagem como fonte da história, sobretudo a imagem
cinematografica, por consequência insere a fotografia, mãe do cinema.
A imagem como fonte historiográfica ainda hoje causa desconfiança em
alguns setores mais conservadores da História. Embora a imagem fotográfica seja
considerada por alguns como uma forma de expressão artística, para outros, é
tomada apenas como um elemento técnico. Neste duplo olhar, aparentemente
contraditório, parece residir o desconforto de alguns historiadores em tomá-la como
fonte. É que, para muitos, a fotografia é percebida como arte, o que inviabilizaria sua
adesão ao campo historiográfico.
Neste sentido, Ivan Gaskell vaticina que os historiadores em geral ficam mais
a vontade com documentos escritos e chama a atenção para o fato de os materiais
visuais estarem além dos limites da arte, salientando o impacto cultural causado
pelo surgimento da fotografia, que, em sentido extremo, é vista como meio
transparente de transmissão de informação. Quando insere esses argumentos na
sua discussão, Gaskell aponta para a questão da “verdade” na fotografia ou, melhor
dizendo, sobre a realidade presente na foto, posto que esta não constitui
efetivamente uma verdade, trata-se de uma representação da verdade61.
Um bom exemplo para ilustrar essa discussão é encontrado nos filmes
documentários. Teoricamente, estão tratando de uma verdade, seja ela no âmbito
religioso, como é o caso do filme Fé, de Ricardo Dias, película de 1999, que se
incube de mostrar aspectos do imaginário do povo brasileiro em relação à fé, ou da
música, como analisado no filme Uma Noite em 1967, de 2010, dos diretores
60
Id., ibid., p. 259.
GASKELL, Ivan. História das Imagens. In. BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. São Paulo:
Editora UNESP, 1992, p. 238-271.
61
41
Ricardo Calil e Renato Terra; em ambos, vemos na tela uma representação da
verdade, filtrada, selecionada, editada, todavia, ambos não deixam de mostrar
aspectos da sociedade brasileira no período que se propuseram a documentar. É
uma representação da verdade.
A fotografia, apesar de se processar em fragmentos de segundos, um
instante, também passa por critérios similares, pois foi analisada, pensada, editada,
recortada e o click foi disparado, seja por um fotógrafo profissional, um fotógrafo
jornalista ou ainda um “batedor de chapa”, ou seja, independente de quem a realizar,
seu processo implica atos de reflexão e seleção. Dessa forma, quando se aborda a
fotografia como fonte, não se pode desconsiderar a ação do fotógrafo, sujeito ativo
no ato de recorte e registro de um dado momento.
A fotografia passa pelo filtro humano, assim os cortes e os enquadramentos
são ações do consciente e inconsciente de quem a realiza, logo o congelamento
deste instante é uma escolha, uma seleção. A foto indica uma realidade pensada e
vista pelo fotógrafo, e quem olha sempre o faz de algum lugar ou de vários lugares.
Um olhar traz em si leituras de mundo, valores, julgamentos, crenças, em suma,
visões de mundo.
Boris Kossoy, que se tem dedicado ao estudo da fotografia desde a década
62
de 70 , argumenta que o processo de criação do fotógrafo engloba a aventura
estética, cultural e técnica. Assim dará origem à representação fotográfica, tornando
material a imagem, logo um registro, um documento. Ainda o autor aponta para os
elementos constitutivos da fotografia: o primeiro, de ordem material, envolve os
recursos técnicos, ópticos, químicos; o segundo, de ordem imaterial, engloba
processos mentais e culturais e se realiza no processo de criação.
O autor ainda aponta para a seleção de assunto, as finalidades e as
intencionalidades do registro fotográfico. Em suma, o instante em que se realiza a
fotografia, envolve aspectos que vão além daquilo que se vê materializado na foto.
Sendo o homem um animal que pensa, o registro feito materializará seleções e
escolhas adstritas a sua cultura e do seu tempo, envolvendo as dimensões
estéticas, religiosas, ideológicas e outras.
No estabelecimento de um diálogo com a fotografia, não como texto escrito,
mas como texto visual, principalmente no tocante às modas e aos modismos que
despontam aqui no plano principal, poderíamos visualizar, sim, visualizar, como
62
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989.
42
exemplo a fotografia da candidata a “Glamour Girl”63 de 1958, senhorita Juracy Vilas
Boas Pinto (Figura 6). Na foto, ela aparece sorridente, em expressão terna, a tez
clara parece ter sido retocada por base ou pó de arroz, artifícios usados por muitas
mulheres para retocar pequenas imperfeições, ostenta no pescoço um colar de
pérolas em duas voltas, que contribui para a doçura da imagem, usa brincos maiores
em forma de estrela ou flor.
Seu vestido para a ocasião é escuro, com alças em cinco tiras estreitas, e
parece ter sido confeccionado em tecido mais grosso, um linho ou algo com textura
similar; o penteado foi possivelmente obra de um profissional, com mechas frontais
presas por trás, ressaltando o rosto e o pescoço da candidata, o brilho captado pelas
lentes do fotógrafo parece indicar o uso de algum tipo de produto da indústria de
cosméticos.
Figura 6 – Glamour Girl.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
63
O Glamour Girls era um dos concursos locais de beleza existentes em Salvador nas décadas de 50
e 60, diríamos que se tratava de um concurso extraoficial, diferente do Miss Bahia ou Miss Brasil, o
qual fazia parte do calendário anual de concursos de beleza em vários Estados brasileiros.
43
No retrato da moça, publicado no Diário de Notícias, é possível verificar as
sobrancelhas perfeitamente delineadas, o que aproxima a estética da jovem à das
estrelas do cinema norte-americano, bem familiar para os segmentos sociais que
frequentavam as sessões de cinema na Cidade do Salvador naquele período.
Destaca-se ainda sua boca, que sobressai na foto, bem desenhada por um batom
escuro, possivelmente rubro, sem imprimir uma aparência vulgar, o que seria um
“pecado” para uma concorrente do prestigiado concurso elitista.
Nesse conjunto imagético, é possível observar as intencionalidades da foto e
a situação que envolve sua realização, todavia não se deve desconsiderar a vaidade
da personagem, posto que os gostos pessoais são aspectos particulares do
indivíduo que a materialidade da fotografia é capaz também de captar. Embora não
tenhamos maiores detalhes sobre a posição social da personagem, podemos
deduzir que pertencia à classe média local, condição necessária para a candidatura
ao posto em disputa.
A fotografia foi realizada com intenções claras de ser publicada no periódico
que patrocinava os concursos de beleza da Soterópolis da época. Assim, todos os
elementos na composição foram pensados para atender a uma demanda do
momento: ângulo, posição da fotografada, joias, roupa, penteado, maquiagem
contribuem para que o resultado final se enquadre nos modelos estéticos reinantes
entre a elite local.
Dessa forma, a utilização da fotografia como documento para análise histórica
implica certos cuidados metodológicos e atenção. Procedimentos que quaisquer
trabalhos de História devem ter quando enveredam pela arte de inventar o passado,
independentemente dos tipos de fontes escolhidas para a construção da trama
historiográfica. Nesta pesquisa, as fotografias utilizadas na sua maioria são oriundas
do Jornal Diário de Notícias, logo a foto de cunho jornalístico, para além de ilustrar a
notícia, insere na sua estética aspectos ou mesmo influências pertinentes ao público
a que se destina.
Por conta dessas prováveis influências, a jovem Juracy foi retratada com
ângulo, penteado, roupa e joias apropriados, reforçando seu status de moça da elite
e atendendo, dessa forma, aos interesses ideológicos e econômicos do jornal e dos
leitores, forjando a imagem de mulher ideal, marca dos concursos desta natureza.
Nas páginas do Diário de Notícias, no período 1958-1968, a beleza feminina foi
sempre um tema explorado, sobretudo os Concursos de Misses Bahia, Brasil e
44
Universo, expoentes máximos dos concursos de beleza nas esferas local, nacional e
mundial. Marta Rocha, a baiana de maior visibilidade nesse contexto, ao longo do
período coberto por nossa pesquisa, ocupou recorrentemente a primeira página do
periódico64, evidenciando a atenção dispensada ao assunto.
É importante salientar que a foto jornalística sempre esteve envolvida no
cumprimento de um papel social, seja o de denunciar ou de divulgar, entre outros.
Todavia, não se pode esquecer a importância das fotografias privadas, doméstica ou
familiar, que por si só, de forma consciente ou não, constituem um documento,
registrando os momentos no curso da vida de um dado indivíduo, tendo, portanto,
igual valor para a pesquisa histórica.
Não por coincidência, no Brasil, desde metade do século passado, à medida
que a fotografia ia-se inserindo nas diferentes camadas sociais, acontecimentos de
maior importância na vida passam a ser registrados, construindo narrativas
imagéticas. Assim, é muito comum encontrarmos, nos arquivos fotográficos
domésticos, algumas tipologias comuns: batizado, aniversário, primeira comunhão,
festividades diversas (formatura, casamento, carnaval, etc.) e, em muitos casos,
fotos do ritual fúnebre, encerrando a trajetória do indivíduo.
Assegurando o registro imagético de épocas distintas, essas fotografias
findam por compor um acervo que ajudam a contar episódios diversos da nossa
História, a partir da trajetória de vida de homens e mulheres. Em que pese a
crescente inserção do documento imagético em pesquisas nas Ciências Humanas,
sobretudo na História e na Sociologia, ainda são escassas as pesquisas que se
debruçam sobre as caixas de fotografias familiares, que podem constituir fontes
deflagradoras de uma variedade de temas da nossa História Cultural.
1.2 AS ROUPAS DE VER DEUS E A CULTURA: UMA INTERPRETAÇÃO
A etimologia da palavra roupa, na língua portuguesa, aponta para o vocábulo
germânico rauba ou raupa e ainda o verbo raubôn, datando de 1204. Roupa é o
nome genérico dado a qualquer material tecido de lã ou pelo, algodão e fibra
64
Durante o período pesquisado, que compreende os anos de 1958 a 1968, a Miss apareceu
dezenas de vezes nas páginas do jornal por diferentes motivos: a participação em concursos, os
casamentos, as chegadas e partidas de Salvador, no Dia das Mães, no momento de luto, entre
outros.
45
vegetal, animal ou artificial, empregado em peças do vestuário 65. Este vocábulo
contempla ainda a acepção de adorno ou de cobertura de camas e mesas. O uso
das roupas ou vestimentas está relacionado à necessidade de proteger o corpo das
adversidades atmosféricas ou ainda o pudor, o desejo de estabelecer distinções
sociais, expressando a vaidade pessoal de cada usuário.
‘Roupa de ver Deus’ é definida, pelo dicionário, como roupa nova ou
domingueira66. Para além da definição do linguista, trata-se de uma expressão
popular bastante usada, ainda nas décadas de 50 e 60, na Cidade do Salvador e no
interior do Estado da Bahia, para designar uma vestimenta especial, uma roupa de
se usar no domingo, tido como um dia de sociabilidades sagradas e profanas,
diferente do dia semanal de trabalho.
Uma hipótese para a origem da expressão ‘Roupa de ver Deus’ ou ainda
‘Roupa de ver a Deus’ reside no período colonial no Brasil. Naquela época, o
cotidiano das pessoas de diferentes segmentos sociais era resumido aos dias de
trabalhos, e o domingo era reservado para ir à igreja participar dos rituais católicos,
sendo este momento considerado especial, logo, era uma ocasião de ostentar uma
vestimenta nova ou especial67.
Sendo a tradição uma característica marcante do povo brasileiro e baiano, o
uso do termo, por tradição, foi atravessando séculos, tendo pouca variação, pois no
período 1958-1968 ainda é usada para referenciar uma roupa para ir ao ritual
católico ou outras festividades. Tais festividades poderiam ser um casamento, uma
formatura, um passeio vesperal na Rua Chile ou ainda uma sessão de cinema,
eventos considerados importantes e nos quais o cuidado com a aparência era uma
preocupação constante.
A expressão e seu significado mostram como a sociedade soteropolitana do
período dispensava atenção às vestimentas e seus usos. A roupa domingueira
comunicava para a cidade a vaidade de homens e mulheres, suas posições sociais
ou as escamoteava68. Em suma, as roupas ostentadas no cotidiano e os códigos a
65
Esta argumentação é oriunda da Enciclopédia Mirador Internacional, referindo-se ao vocábulo
roupa
66
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
67
Gilberto Freyre, tratando sobre costumes no período colonial, nos oferece outras pistas neste
sentido, de que trataremos no terceiro capitulo.
68
Em muitos casos, o(a) usuário(a) de uma determinada vestimenta poderá passar através da roupa
a “mensagem” de uma melhor condição econômica que a sua verdadeira.
46
elas intrínsecos comunicavam-se, e comunicam-se, de diversas maneiras com a
sociedade e a cultura.
Comunicar é produzir cultura, tendo reconhecidamente caráter duplo através
da Cultura Oral e Cultura Escrita, argumenta José D’ Assunção Barros69. É
importante ainda somar a esse argumento que os homens e mulheres, em seus
cotidianos, comunicam, através do gestual, do corpo e das suas maneiras de se
portarem no mundo social, seus modos de vida sejam eles rurais ou urbanos.
Dessa forma, as roupas e seus modos de uso produzem comunicação com as
sociedades em que elas são usadas. Neste sentido, a obra de Malcolm Bernard,
Moda e Comunicação, traz considerações esclarecedoras. O professor de História e
design argumenta que “[...] uma roupa, um item de moda ou indumentária, seria o
meio ou canal pelo qual uma pessoa manda uma mensagem a outra. A mensagem,
assim, é uma intenção da pessoa e é isso que é transmitido pela roupa”70, no
contexto em que se processa a comunicação. Bernard se preocupou ainda em
destacar uma cultura, uma sociedade enquanto pessoas em comunicação da qual a
roupa faz parte.
Com base em suas considerações, é importante salientar que o autor
enxergou no estilista “[...] sua reivindicação, uma vez que foram as suas intenções
que, primeiramente, dotaram de informação a produção da roupa”71. Desse modo,
o(a) usuário(a) da vestimenta se torna um corremetente da mensagem, como
expressa Bernard. Todavia, em âmbito geral e seguindo seus apontamentos, a
sociedade está constantemente em comunicação, no que tange às indumentárias e
às modas, uma mulher poderá se valer dos sapatos de salto alto para dizer sobre
poder e sedução, ou, ainda, um vestido florido poderá expressar alegria para uma
determinada sociedade.
Esses exemplos acabam por inserir as vestimentas no amplo universo das
manifestações culturais, sejam elas de populares ou de letrados. Essas categorias
criadas pela historiografia são, por vezes, anuladas nas práticas cotidianas,
principalmente no que se refere às roupas.
Nesse caminho, o uso das roupas segue a mesma dinâmica, seja por aqueles
(as) considerados (as) populares ou das camadas elitistas letradas, com os mesmos
69
BARROS, José D’Assunção. A história cultural francesa: caminhos de investigação. Fênix-Revista
de História e Estudos Culturais, Rio de Janeiro, v. 2, n.4, p.2-17, 2005.
70
BERNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de janeiro: Rocco, 2003. p. 52
71
Id., ibid., p. 53.
47
mecanismos de produção cultural. No uso cotidiano de uma vestimenta, seja para ir
a uma festividade ou para ir ao trabalho, está implicitamente incutida à recriação;
quem a observa nas práticas cotidianas também está fazendo outra leitura, outra
prática criadora que nem sempre condiz com aquela de quem a usa.
Um exemplo pertinente neste sentido é o vestido usado pela Rainha da
Inglaterra no seu casamento (1947), amplamente divulgado pela mídia jornalística
da época. Posteriormente, inúmeras baianas de diferentes camadas sociais
reproduziram essa criação em seus enlaces. O modelo é semelhante, todavia, o
tecido, a cor, o corte são uma recriação, outra produção cultural, mas, no imaginário
de quem usa, trata-se de um vestido de rainha. Quanto aos julgamentos daqueles
que assistem, serão múltiplos. O “vestido real” poderá ser visto tanto como um
vestido de luxo como uma cópia mal realizada, fruto da criação de uma costureira ou
estilista local, pois são os olhares que sempre trazem julgamentos neles incutidos.
O elemento roupa está presente em todas as sociedades, por este motivo, a
vestimenta é antes de tudo um aspecto relevante de uma cultura, seja os vestidos
de chita72 usados por mulheres das zonas rurais brasileiras, que revelam sua
condição econômica, sem anular o gosto pelo estampado e festivo, ou mesmo os
panos da Costa envergados por mulheres desta região da África e, hoje, mantidos
em cerimônias das religiões afro-brasileiras, denotando tradição e soberania73.
Nos dois casos, pode-se notar que a roupa, para além de cobrir a nudez, se
insere no campo das práticas culturais, campo este incutido de significados
provenientes do imaginário daquela cultura que porta a roupa, seja na África ou no
Brasil. Neste sentido, é pertinente lembrar as sentenças de Laplantine em relação ao
construir o processo do imaginário, sendo “[...] preciso mobilizar as imagens
primeiras, como dos homens, cidades, animais e flores conhecidas, libertar-se delas
e modificá-las”74. O mesmo autor ainda defende o ponto de vista de que o processo
criador, o imaginário, transforma e reconstrói o real. O processo do imaginário se dá
de uma relação entre o sujeito e o objeto.
72
Tecido ordinário de algodão, geralmente estampado em flores grandes da família das orquidáceas;
destaca-se ainda por suas cores cítricas como a cor laranja ou verde limão. Sobre o uso da chita no
Brasil, ver: KUBRUSLY, Maria Emilia et alii. Que chita bacana. São Paulo: A Casa, 2005.
73
Em 2009, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia publicou um caderno especial
tratando exclusivamente do uso do pano da costa na cultura baiana. Ver: BAHIA. Governo do Estado.
Secretaria de Cultura. IPAC. Pano da Costa. Salvador : IPAC; Fundação Pedro Calmon, 2009..
74
LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 2003. p.
26.
48
Nesta relação entre sujeito e objeto, permeada pelo processo criador, as
roupas despontam com significados. São os significados sociais, fruto do imaginário,
que denotam as vestimentas como garbosas, opulentas, soleiras, como sofisticadas
ou, ainda, as considera como ‘roupas de ver Deus’. Sem esses significados, elas
existem apenas como artefatos de algodão que cobrem a nudez de homens e
mulheres em um centro urbano ou rural.
Em todas essas denotações, não deixa de existir um caráter dúbio assim
como o próprio termo sofisticado, que pode ser entendido tanto como requintado ao
extremo ou mesmo falsificado. O universo das roupas e das modas aponta sempre
para essa dualidade, pois traz intrínseca a ilusão, sendo revelado em muitos casos
pelos significados que a sociedade lhe confere em cada período histórico. Assim, um
mesmo indumento pode ser reclassificado de forma totalmente diferente, tendo o
tempo como elemento diferenciador.
Mais uma vez, recorremos ao uso da chita no Brasil para uma exemplificação.
Este tecido amplamente usado no Brasil nas décadas de 50 e 60 era visto, então,
como um tecido ordinário, de baixo custo, usado por mulheres de baixa renda na
confecção de vestidos e saias e, por ser em tons cítricos, geralmente as mulheres
que o usavam eram percebidas como cafonas. Nesta primeira década do século
XXI, os discursos das identidades, no Brasil, acabaram por inserir a chita na pauta
dos realizadores de moda no Brasil, agora percebido como um tecido que remete às
origens sertanejas ou caipiras, podendo render vestidos longos usados por mulheres
das elites econômicas e pensantes, logo percebidos como chique. Dessa forma, o
mesmo tecido foi ressignificado, tendo o tempo e os olhares como elementos
modificadores.
Este projeto de pesquisa se insere no contexto das práticas culturais e
significações, haja vista o uso das ‘Roupas de ver Deus’, seja quanto ao termo ou o
uso dessas roupas configura construções de uma cultura em uma determinada
cidade, em um determinado período da historia. É bom salientar, mais uma vez, que
a expressão popular ‘Roupa de ver Deus’ ou ainda ‘Roupa de ver a Deus’,
amplamente usado em meados do século XX na Cidade do Salvador, se referia à
roupa domingueira ou à roupa de flanar pela cidade ou, ainda, a melhor roupa de um
indivíduo.
A inclusão de uma roupa na categoria de melhor ou, ainda, sua eleição como
uma roupa de se ir a uma festividade religiosa ou profana, diferente das vestimentas
49
do trabalho do cotidiano, são intenções resultantes dos valores incutidos pelos
indivíduos que as vestem e da sociedade da qual estes fazem parte. São práticas de
uma cultura, nem melhor, nem pior, mas sempre diferente.
Querer compreender o uso das vestimentas ou as ‘Roupas de ver Deus’ na
Cidade da Bahia, em meados do século XX, significa buscar uma interface com a
cultura, conceito amplo e de significados e interpretações múltiplas, por vezes de
difícil circunscrição. A definição dada por Clifford Geertz sobre cultura se torna
perfeitamente adequada à nossa pesquisa, vejamo-la:
Sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria
símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um
poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os
processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser
descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade.75
O ‘descrito com densidade’, citado pelo autor, aponta para uma interpretação,
e estabelece proximidade com a análise sugerida por Marc Bloch para que se
cumpra o ofício do historiador. Preferimos chamar, nesta pesquisa, de interpretação
imagética, que seria a análise dos elementos presentes em uma imagem, e ainda
atentar para as entrelinhas, informações culturais pertinentes: ao tempo, ao gosto,
às modas, aos estilos e a outros elementos simbólicos característicos, inseridos no
contexto cênico e, por consequência, nas práticas culturais daqueles(as) que
aparecem nas imagens pesquisadas, neste caso, principalmente nas fotografias que
serão analisadas.
Importante atentar para os princípios da História enquanto uma ciência dos
homens e mulheres, no tempo e no espaço. Deve-se perceber ainda a História
enquanto uma ciência em marcha e na mais tenra infância como todas as outras
ciências que têm como objeto o espírito humano, como tão bem nos ensinou o
mestre Marc Bloch76.
Sendo a História uma ciência que lida com o humano, por si só já incute uma
complexidade. As fontes, que são supremas no empreendimento do fazer histórico,
seja uma fonte escrita ou uma fonte imagética, também têm seu grau de
complexidade. Todavia os suportes já conquistados para uma melhor interpretação
75
GERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1889, p 24.
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
76
50
das imagens nos ajudam a temer menos diante da árdua tarefa. Obviamente,
aspectos como a crítica e a ética, na busca de uma compreensão mais plena das
práticas de uma cultura, devem estar contemplados neste empreendimento
historiográfico.
A interface entre a História e a cultura é muito próxima, e, neste trabalho, esta
relação é mais estreita, mediante seu objeto ser as vestimentas, logo, este trabalho
investiga práticas culturais. Esta linha de pensamento se insere, então, no terreno da
História Cultural que, nas palavras de Burke, já foi uma Cinderela desprezada por
suas irmãs mais bem-sucedidas, redescoberta desde a década de 7077.
Burke se empenha, no trabalho mencionado, em elucidar as fronteiras
existentes entre a dita História e a História Cultural, mas, segundo ele, a questão
ainda busca resposta. Todavia, o autor aponta para o campo das práticas e
representações, algo abrangente, dado o próprio entendimento de representação ser
vasto. Na busca de um significado que contemple a questão, nesta pesquisa
pensamos as roupas como expressão daquilo que uma sociedade pensa e pratica.
Neste sentido, a prática cultural de usar as saias mais curtas ou a minissaia
ou mesmo as calças78 ostentadas por “moças de família”79 era observada em
meados dos anos 60, por setores mais conservadores e patriarcais, como uma
atitude de transgressão social, logo um significado desta sociedade atribuído a um
novo costume. O biquíni só era visto com o olhar da beleza nas areias de
Copacabana, então percebido como o locus da vanguarda em relação a modas e
modismos desde os tempos do Império.
Na narrativa de Ventura, 1968 O ano que não terminou, que mistura ficção e
memórias, quando o autor aborda a minissaia vermelha usada por Florinda Bolkan80,
na festa de réveillon de 1968, ele acaba por dar voz aos seus contemporâneos,
marcados por valores machistas e patriarcais em fins dos anos 60. A atriz chama
atenção por ser lésbica e por fazer uso de uma peça que cobria uma pequena parte
77
BURKE, Peter. O que é História Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
Maita Nogueira, uma de nossas depoentes, revelou que seu avô não admitia mulher de calça nas
dependências de sua residência em Salvador, por este motivo a expulsava. Esta entrevista e outras
serão desenvolvidas no terceiro capítulo, que trata das memórias e vestimentas.
79
O termo era usado para referenciar uma mulher solteira, de diferentes classes sociais, atuando
como um denotativo de conduta moral positiva.
80
Atriz brasileira que atuou em várias películas do cinema italiano na década de 60. A festa e a
vestimenta da atriz constam na obra: VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
78
51
da região do baixo ventre, logo uma atitude transgressora para a mentalidade
carioca da época.
O episódio que faz parte da obra citada se dá em um meio burguês e
intelectual do Rio de Janeiro dos anos 60, já adentrando a década de 70. Todavia,
evidencia uma gama significativa da população masculina brasileira, como a citada,
marcada pelo machismo patriarcal. O Brasil vivia tempos sombrios da Ditadura
Militar que, ao longo de sua existência, de 1964 a 1985, influenciou de diversas
maneiras hábitos, atitudes, modas e modismos, seja no Rio de Janeiro ou Salvador.
Entretanto, a sociedade brasileira ainda estava marcada pelo conservadorismo, um
aspecto percebível na época e até na atualidade.
O incidente citado, que envolve uma vestimenta curta em uma festa de
passagem de ano, uma mulher lésbica e um grupo de homens marcados pelo
conservadorismo, faz parte da cultura brasileira dos anos sessenta. Nessa época, o
valor social atribuído ao casamento heterossexual era considerável. Por esse
motivo, esses rituais foram observados nesta pesquisa, pois eram espaços de
demonstração de modas e modismos, não negando outros rituais também
importantes na época, como o carnaval, as procissões, os batizados católicos, para
não citar outros.
1.3 RETRATOS DE CASAMENTOS: REGISTROS DE MODAS E MODISMOS
A década de 50 foi o apogeu do romantismo iniciado no século XIX, e, desta
forma, o casamento estava na pauta do dia, independente do locus, seja na Capital
ou no interior, fosse entre as classes populares ou da elite, pois este era um objetivo
a ser alcançado nos primeiros anos da vida adulta. Bom salientar que, nos anos de
1950 a 1960, a chamada vida adulta seguia outra cronologia diferente da atualidade.
Em suma, a moça dos anos 50 já estava apta ao casamento entre os 15 e 20 anos,
pois depois dos 25 já era considerada solteirona. Nesse contexto, a manutenção da
virgindade era condição sine qua non.
O casamento como meta familiar e individual perpassava diferentes classes
sociais; nos setores populares e médios, sua importância incutia aspectos inclusive
econômicos. Para muitas famílias, casar uma filha, sobretudo com um rapaz de
52
melhor condição econômica, era ter uma despesa a menos no orçamento,
principalmente quando se tratava de uma família numerosa, logo onerosa. Todavia,
mesmo nos setores médios urbanos, o enlace era algo almejado e, quando
realizado, era motivo de festividade e de demonstração para todo o grupo social de
relação dos noivos e, principalmente, de suas famílias.
Foi assim para as famílias Rocha e Melo e Silva. Em julho de 1959, na Cidade
do Salvador, amigos das duas famílias e dos nubentes compareceram em massa
para presenciar a realização do enlace de seus filhos Glauber Rocha e Helena Inês.
A jovem Helena Inês, a mais famosa “Glamour Girl”81, era, naqueles dias de 1959,
colunista do periódico Diário de Notícias e assinava a badalada coluna Krista; o
jovem Glauber Rocha, seu consorte, escrevia artigos sobre cinema no mesmo
periódico e iniciava sua trajetória como cineasta. Os registros imagéticos deste
acontecimento nos possibilitam observar modas e modismos em fins dos anos 50.
Segundo o Diário de Notícias82, toda a “fina flor” da intelectualidade e da
classe artística soteropolitana compareceu ao enlace; entre eles, o jornal destacou
Walter da Silveira e senhora, Odorico Tavares e senhora, Calazans Neto, Jorge
Amado, Carlos Bastos, Nilda Spencer e toda a Escola de Teatro. Além daqueles
ligados ao universo das artes e das letras, outras pessoas das elites locais se
fizeram presentes ao matrimônio do ano: Marta Overback, Celeste Miranda, Lia
Moura, Emilia Valente, Reinaldo Marques (Renot) e uma lista imensa destacada nas
colunas sociais que prezam por evidenciar personalidades.
O periódico, nos dias posteriores ao enlace, publicou várias notas sobre o
assunto, ilustrando-as com inúmeros flashes do acontecimento, possibilitando, desta
forma, tomar conhecimento sobre as vestimentas dos noivos e dos convidados no
dia memorável. Assim, é possível visualizar os diferentes chapéus usados pelas
mulheres, sobrancelhas feitas ao molde Hollywood, o uso de luvas, comum em
acontecimentos desta natureza; todos os homens trajando costume de duas peças
ou ternos, alguns com gravatas de estampas mais “modernas”, entre outras
indumentárias.
81
82
Concurso de beleza existente em Salvador na época.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 2 jul. 1959. Cad. 2, p. 3.
53
O centro da nossa atenção, obviamente, é a colunista e o jovem cineasta
(Figura 7). A noiva, sintonizada com a moda do momento, inclusive utilizando-a
como tema em sua coluna, envergou um modelo até certo ponto modesto, se
comparado a outros do mesmo período. A veste lembra uma roupa de colegial,
sobretudo pela gola, que sugere um colarinho, e a saia do tipo godê, semelhante às
saias pregueadas, em leque, comuns aos uniformes escolares da época. Nas mãos,
um buquê simples, lembrando flores de crepom; o véu era curto, constituindo-se
como o grande destaque da indumentária, que tinha ainda na composição uma
grinalda com o mesmo tipo de flores do arranjo de mão.
A noiva optou por um vestido de mangas curtas, uma novidade, pois,
analisando os periódicos e revistas da época, as noivas sempre se mostram com os
braços cobertos, em muitos modelos usando renda. Helena não usou joia no
pescoço, pois o modelo não permitia; o véu e o corte de cabelo não nos permitem
verificar se trazia brincos nas orelhas. Glauber, que parecia não ter grandes
preocupações com a aparência, inclusive no final de sua vida andava muito nu
dentro de casa, revelando seu lado indígena, casou dentro do padrão tradicional de
homem da época, portando um terno escuro, talvez preto ou azul marinho, e camisa
clara, possivelmente branca83.
O diferencial da indumentária nupcial do noivo está na gravata que usou; ela
lembra uma trama de esteira nordestina e tem tons escuros e claros, possivelmente
em tons mais vibrantes e festivos, um modismo da época. Como “mandava o
figurino” daqueles dias, cabelos e barba estão aparados com esmero e a farta
sobrancelha bem delineada, lembrando uma dinâmica do tempo atual na Cidade do
Salvador, em que homens de diferentes condições sociais e ideológicas desenham
suas sobrancelhas com pinças e lâminas em salões de beleza e barbearias de
bairros populares ou da classe média e alta.
83
Posto que os registros fotográficos da época eram em preto e branco, não é possível identificar os
detalhes cromáticos das vestimentas.
54
Figura 7 – Casamento de Glauber Rocha e Helena Inês.
Fonte: Diário de Notícias (1959).
Em que pese Helena Inês ter trajado um modelo mais inovador para o
período, no qual a manutenção da tradição ainda era marcante, seguiu a mesma
direção de tantas outras noivas no caminho do imaginário mariano. A colunista do
Diário de Notícias não nos deixa dúvidas sobre isto:
Leninha foi uma das noivas mais lindas que já vi. A mais famosa
“Glamour Girl” que a Bahia já deu, parecia uma “Nossa Senhora”
(com permissão de Nossa mãe), tal a candura e pureza que
transparecia na sua fisionomia. Basta, apenas, uma palavra para
classificar o casamento de Leninha: Belo.84
Vejam que, no texto da colunista, a Virgem Maria é tratada com tamanha
proximidade que ela a aborda em um plano coletivo: nossa mãe, falando por si e
seus contemporâneos, próprio de imaginário. No mesmo texto, outro imaginário
aparece, trata-se do ato de pensar a Bahia como sinônimo da Cidade do Salvador,
revelando um pensamento que toma a Capital como referência maior, fazendo que
aquilo que é parte seja tomado como representação do todo.
84
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 2 jul. 1959. Cad. 2, p. 3.
55
O imaginário mariano está inserido na cultura brasileira e baiana desde a
época colonial ou, pelo menos, sua construção data deste período. Para além do
caso brasileiro, em sintonia neste caso com a cultura europeia que introduziu nos
trópicos a cultura cristã católica, Jean Delumeau 85 argumenta que o culto a Maria
contribuiu para enriquecer a iconografia paradisíaca. No seu estudo, o imaginário de
paraíso celeste desponta na centralidade, todavia o autor analisa inúmeras
representações históricas da Virgem Santa.
Entre outras, Delumeau evidencia a obra “A Virgem em uma Roseira”, de
Stephan Lochner, datada de 1451. Nesta, Maria, coroada junto ao seu filho, é
rodeada de flores e anjos músicos, transportados para um jardim celestial. Ainda
aprofundando a temática das múltiplas representações, o autor francês destaca a
Assunção de Maria como tema de predileção da arte barroca dos séculos XVII e
XVIII. Não é demasiado salientar que esse modelo arquitetônico e artístico foi
introduzido com tamanha propriedade na Cidade do Salvador que chega inclusive a
caracterizá-la como cidade barroca e tem Maria como sua padroeira.
Ainda tendo as imagens de casamento como reveladoras para o estudo da
moda e comportamentos, é importante destacar detalhes menores que elas
possibilitam perceber. Neste caso, trata-se das olheiras presentes no visual de
Glauber, traço que viria a se acentuar com o tempo; elas nos fazem pensar que
muitas foram as noites insones do nubente em divagações com imagens de deuses
e diabos e terras ensolaradas.
A partir do caminho visual oferecido pelas fontes, é possível afirmar que o
comportamento em relação às vestimentas era mais austero para os homens, fruto
de muitos elementos da nossa cultura, sobretudo nosso machismo patriarcal. O
jovem Glauber, homem da estética, conhecido pelo espírito transgressor revelado
em suas obras cinematográficas, se casa dentro de um estilo visual marcado pelo
conservadorismo. Sua vestimenta, vista as fontes imagéticas disponíveis, era
semelhante à de muitos dessa mesma década, algo que foi radicalmente modificado
na década seguinte.
Outro personagem presente com grande frequência nas páginas dos
periódicos eram as misses. O casamento delas também era sempre destaque no
periódico Diário de Notícias, assim o universo de fontes imagéticas para contar a
História das Roupas nesse período é farto e significativo, possibilitando novas
pesquisas. Assim como as misses, os astros e estrelas da música brasileira, bem
85
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso. São Paulo: Companhia da Letras, 2000.
56
como atrizes e atores do cinema, eram foco constante da atenção de muitos
espectadores, e seus enlaces matrimoniais sempre ocupavam as páginas dos
jornais e revistas, consolidando suas figuras no imaginário nacional 86.
O Cruzeiro87, nas décadas de 50 e 60, era a revista nacional de maior
circulação e constantemente dava conta dessas notícias, que, dependendo da
importância de quem estava se casando, poderia ser a matéria de capa. Foi assim
em 25 de maio de 1968; a revista que chegou às bancas do Brasil trazia a seguinte
manchete: “O Casamento de Roberto Carlos”. Na foto que ilustra a capa do
periódico (Figura 8), Roberto Carlos usa um terno azul claro; o blazer é estilo
“jaquetão” e tem duas fileiras de botões grandes, camisa branca e gravata em dois
tons de azul (ton sur ton). A composição do astro pop contava ainda com uma
pulseira grossa, em tom prata, e o cabelo a La Beatles, o que hoje poderíamos
denominar de “estilo Chanel”, marcadamente preto e liso, retratando um jovem no
auge dos seus 27 anos.
Figura 8 – Casamento de Roberto Carlos e Nice.
Fonte: Revista O Cruzeiro (1968).
86
Com a chegada da televisão, este mecanismo ganha forma e vemos desde o final do século XX o
ápice deste movimento iniciado em meados do mesmo século.
87
O Jornal Diário de Notícias e a Revista O Cruzeiro pertenciam à mesma empresa Diários
Associados. Muitas notícias mostradas no jornal por vezes eram desdobradas em reportagens na
Revista O Cruzeiro. O casamento de Roberto Carlos foi noticiado com superficialidade no Jornal
Diário de Notícias e não usou fotografias, por este motivo, usamos a fotografia da revista que ilustrou
a notícia com várias fotografias e usou uma delas na capa.
57
Ao lado dele, a noiva Nice é segurada pelo braço; usa um vestido branco
alvíssimo, assinado pelo costureiro Clodovil Hernandez88, o modelo é reto e sem
gola, parece não ter mangas; por cima dele, Nice usa um casaco também branco,
tendo nas pontas das mangas, na gola e na abertura frontal uma penugem, que
lembra uma pele de coelho; na cabeça um chapéu pequeno com igual penugem,
deixando aparecer fios do cabelo loiro, semelhante à atriz Catarine Deneuve no filme
de 1967 Belle de Jour89. Finalizando a composição, a noiva porta uma grossa
pulseira de pérolas. A maquiagem tem tons discretos, mas não no padrão romântico,
a sombra é verde e azul e os lábios grossos da moça foram delineados em rosa,
deixando-os mais finos.
Pensando os mecanismos que envolvem as intenções da foto jornalística, é
possível verificar que esta se assemelha bastante à estética de fotos que recebiam
retoques de pintor, abundantemente consumidas pelas camadas populares. Sendo
Roberto Carlos um astro pop em plena ascensão à época, a foto de capa parece
buscar uma aproximação com as camadas populares familiarizadas com este tipo de
estética.
A composição de Nice em seu dia nupcial segue uma direção que a distancia
da representação de Maria, a mãe de Jesus, comum na década anterior. A noiva
desprezou o véu, substituindo por um chapéu, usa maquiagem suave, mas não no
modelo angelical da Virgem Maria, e o vestido é reto, estilo tubinho, articulado com
as tendências de moda da década de 60. Embora seja leviano afirmar que a
representação mariana construída ao longo de séculos vinculada ao casamento
tenha desaparecido, parece claro que, ao longo da década de 60, na qual as
questões políticas ocuparam a cena principal, a cultura religiosa para algumas
camadas sociais ficou em planos secundários, com a própria Igreja Católica
envolvendo-se com outras temáticas. Todo esse conjunto de mudanças de
mentalidades ressignificou aspectos da sociedade, inclusive no seu modo de vestir.
Seja o casamento do cineasta, em fins da década de 50, ou do astro pop
Roberto Carlos, na aurora dos anos 70, o registro fotográfico dos enlaces revela,
88
Nome significativo do estilismo brasileiro, vestiu personalidades de diversos setores sociais, ainda
fez programa de televisão nas décadas de 80 e 90 e tornou-se deputado federal.
89
Filme de 1967, dirigido pelo diretor francês Luis Buñuel, a trama fílmica desconstruía valores da
sociedade burguesa, sobretudo através do personagem vivido por Catherine Deneuve, que buscava
mecanismos de distração para se livrar do tédio do casamento convencional. O figurino da película foi
desenvolvido pelo estilista francês Yves Saint-Laurent.
58
desvenda e desnuda inúmeros aspectos de singular importância para a pesquisa
histórica que tem as roupas como destaque. Fica evidente que a imagem aqui é o
documento principal.
1.4 ROUPAS E AFETIVIDADES: NOSSAS CALÇAS E VESTIDOS COMO
MEMÓRIAS
Outro aspecto singular e intimamente relacionado às vestimentas é a
afetividade. A afetividade envolve satisfação e paixão, sentimentos também
pertinentes às roupas, pois estas, sejam novas ou velhas, compradas em uma feira
popular ou numa boutique90, antes de qualquer coisa, conduzem à satisfação do
indivíduo, mesmo fugazmente; é o impulso do ânimo.
Foi esta afetividade com as roupas, para além do fetiche da mercadoria, que
Peter Stallybrass91 se propôs a analisar na obra O Casaco de Marx: roupas,
memórias, dor, levando-nos a perceber que as calças, os casacos, um vestido velho
ou ainda um jeans desbotado e outras peças que usamos, estão impregnadas de
memórias afetivas, sendo o cheiro um desses elementos.
Neste caminho entre afetividades, memórias dos indivíduos e as roupas
usadas ao longo de suas existências e os significados conferidos a algumas peças,
o autor chega aos enxovais das noivas. O enxoval, neste caso, está associado ao
próprio casamento, sendo o vestido de noiva, o elemento principal. Todavia as
roupas de cama, mesa e banho faziam, e ainda fazem, parte deste ritual de
transição da vida de solteira para a vida de casada.
Segundo Stallybrass, nos Estados Unidos do século XIX, esperava-se que a
maioria das moças produzisse, até se casar, doze colchas para sua vida de casada,
sendo a décima terceira considerada a “colcha nupcial”. Este hábito, em que pesem
as modificações do tempo, é possível de ser observado no Brasil dos meados do
século XX, posto que muitas moças de diferentes escalas sociais, enquanto
ansiavam pelo matrimônio, iam tecendo seus enxovais.
Este fazer podia durar meses ou anos, uma espécie de momento de reflexão,
caracterizado pelo noivado e “costurado” por tardes fazendo peças de crochê para
serem usadas nas mesas ou bordando colchas e lençóis para vestirem a nova vida
90
Tipo de loja muito popular nos anos 60, vendia roupas e acessórios diversos, sendo as primeiras
no Rio de Janeiro, entre outras, Lelé da Cuca, Veste Sagrada, Fruto Proibido, Bibba.
91
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memórias, dor. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
59
de mulher casada, e a afetividade estava intricada diretamente a essas vestimentas
para o lar.
Esse momento de feitura de artefatos, que poderia ainda agregar vestimentas
como chambres para serem usados nas demandas caseiras, era muitas vezes
compartilhado com a mãe, primas e agregadas. Constituía ainda um momento de
rememorar a vida de solteira e de idealizar a vida de casada. Não é demasiado
salientar a produção do enxoval como um dote levado pela noiva.
Stallybrass, de forma poética, ressalta que a confecção dessas colchas para a
vida nova, representada pelo casamento, constituía também a produção de uma
contramemória. Buscando dar forma ao que afirma, Stallybrass transcreve um relato
de uma operária, exemplificando a memória afetiva impregnada na colcha que
confeccionou:
Quantas passagens de vida parecem estar sintetizadas nesta colcha
de retalhos. Aqui estão restos daquela almofada de cor cobre
brilhante que enfeitava a cadeira de minha mãe... Aqui está um
pedaço do primeiro vestido que vi, cortado de acordo com aquilo que
era chamado de “mangas de perna de carneiro”. Ele era de minha
irmã... E aqui está um fragmento do primeiro vestido que tive em
forma de corpete.92
O fragmento de texto mostra como, na tessitura da colcha, vão sendo
entremeados retalhos e memórias que se relacionam com outros membros da
família e episódios vividos, retalhos que relembram sua mãe, a cadeira usada por
ela, bem como a almofada de tecido brilhante, e um vestido com determinado corte,
unido à lembrança de uma irmã; em suma, memórias de uma existência humana.
O texto poético-imagético, além de reforçar a história da moda e modismos
enquanto algo que se insere no campo da imagem, nos revela que o ofício da
costura e a produção de bens de consumo é também uma memória. Escreve o
autor: “[...] a colcha é feita de pedaços de tecidos que carregam os traços de sua
história, em seu uso, a colcha passa a carregar os traços de outras pessoas, de sua
irmã, da morte”93.
Este sentimento de afetividade com relação às roupas é notório na narrativa
de Maria Angelina dos Santos ao ver uma foto de sua juventude, datada do início
dos anos 50 (Figura 9). Analisando a fotografia em preto e branco, tendo a
92
93
STALLYBRASS, Peter. O casaco... , op.cit., p. 23.
Id., ibid., p.24.
60
personagem ocupando o centro da foto, observamos tratar-se de uma fotografia
realizada em estúdio, denotado pelo fundo revestido por uma cortina em tom escuro,
típico dos ambientes internos e algo comum em fotografias produzidas nesses
espaços. É válido recordar que, no período de realização da foto, as pessoas das
camadas populares não tinham sua própria máquina de fotografar, assim a
realização de um registro imagético se dava nos estúdios de fotógrafos espalhados
na Cidade do Salvador ou no interior da Bahia.
Figura 9 – Maria Angelina dos Santos.
Fonte: Acervo pessoal.
A fotografia nos revela uma jovem de certa maneira acanhada diante do
fotógrafo, uma das mãos está fechada, dando a impressão da tensão que parece
fazer parte da cena. A personagem esboça um tímido sorriso e porta um vestido de
tecido com certo caimento, à semelhança do crepe ou do cetim, com pequenos
ramos de flores; a reprodução em preto e branco não revela a cor original do tecido,
mas, dado o tom claro da imagem, aparenta ser de matiz suave; na fotografia, ainda
61
é possível identificar, mediante um esforço de visão, um colar de pérolas em duas
voltas no pescoço, acessório muito usado por mulheres desse período.
No lado esquerdo da fotografia, uma ondulação do vestido nos faz pensar que
Maria Angelina traz algum objeto na mão fechada, uma bolsa talvez, contudo uma
observação mais atenta permite perceber se tratar do próprio vestido, cuja revelação
do negativo deu uma coloração mais escura, criando esta falsa impressão de um
objeto a mais na composição. Nos pés, a moça dos anos cinquenta calça uma
sandália de couro, tipo alpercata, que se prende ao pé com uma tira de couro e
abotoaduras, própria para a composição da indumentária vesperal.
Na entrevista realizada com a personagem da fotografia, fica mais uma vez
evidenciada a ideia do sublime que existe na fotografia, pois, como dito
anteriormente, a fotografia congela um instante. Neste caso, o instante já se
distancia da atualidade em quase sessenta anos, todavia sua materialização é
rememorada com tal riqueza de detalhes que parece ser a própria realidade vivida
em outro momento, algo que sabemos ser impossível, pois um momento, um
instante, não é jamais igual a outro, como dito popularmente: as águas que passam
por debaixo de uma ponte jamais serão as mesmas, pois estas não voltam a sua
nascente.
Conta a depoente em sua entrevista94:
Esta foto foi realizada no estúdio de um fotógrafo, havia muitos na
cidade, era época de junho e o padre tinha vindo para rezar missa e
realizar casamentos e batizados; este vestido que estou usando era
de crepe de seda rosa, bem clarinho e tinha estas flores azuis; ele
era de cinto, minha cintura era bem fina.
Com o avançar da entrevista, foi possível perceber elementos da moda do
período: o cinto estreito, que some na fotografia pela leveza e caimento do tecido,
era um marcador da roupa nesse período, fazendo inclusive parecer tratar-se de um
conjunto de saia e blusa, e cumprindo o papel de marcar bem a cintura, fazendo-a
aparentar ser mais fina do que ela realmente era. Mas não deixa dúvidas da
afetividade com a roupa, que foi possível ser rememorada graças à fotografia.
A utilização da fotografia como condutora da entrevista permite à informante
rememorar outros aspectos que estão incutidos na composição. Sendo inquirida
94
Entrevista realizada em 21 de fevereiro de 2011.
62
sobre a mão fechada, revela que se tratava de um lenço que trazia à mão para sua
higiene pessoal, principalmente para se livrar do desconforto do suor, fruto das altas
temperaturas no dia em que a fotografia foi realizada. No “momento especial da
foto”, a estratégia para fazê-lo desaparecer da cena foi apertá-lo na mão esquerda,
deixando a outra mão mais livre. Em seu depoimento, Maria Angelina informa que
tinha feito “permanente” em seu cabelo, um modismo da época, que o deixava mais
encaracolado e melhorava a aparência, julgamento que ela faz em relação aos
cabelos lisos.
Tendo em vista essas duas fontes importantes, a oral e a imagética, ficam
evidentes alguns dos apontamentos trazidos por Moreira Leite95, quando refletiu
sobre as possibilidades e limitações da imagem enquanto documento. A autora nos
informa das ambigüidades da imagem e ainda sobre as articulações profundas entre
o imagético e os diferentes tipos de memória. Neste caso, entre o depoimento da
entrevistada e a fotografia analisada, avaliamos não haver uma disparidade que
possa comprometer a pesquisa em pauta. A fotografia por si já nos fornece a
possibilidade de refletir sob a roupa do momento, tecidos, acessórios, todavia seu
depoimento vem somar quando aponta as cores específicas da indumentária, o
penteado que usava no momento e outros elementos do evento e, sobretudo, a
afetividade existente entre ela e a roupa usada na ocasião.
Retomando Stallybrass e a afetividade intrínseca nas indumentárias, o autor
destaca, na sua narrativa afetiva e cientifica, que “[...] a roupa tende, pois, a estar
poderosamente associada com a memória ou, para dizer de forma mais forte, a
roupa é um tipo de memória. Quando a pessoa está ausente ou morre, a roupa
absorve sua presença ausente”96. O mesmo autor ainda nos esclarece que pensar
as roupas como modas passageiras constitui uma “meia verdade”, pois “[...] os
corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem. Elas
circulam através de lojas de roupas usadas, brechós”97, elas também são passadas
de pai para filho, de irmão ou irmã para outro(a) irmão(ã), de amante para amante,
95
LEITE, Mirian L. Moreira. Texto visual e texto verbal. In: FELDMAN-BIANCO, Bela; LEITE, Mirian L.
Moreira (Org.). Desafios da imagem: fotografia, icnografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas:
Papirus, 1998. p. 27-50.
96
STALLYBRASS, Peter. O casaco..., op. cit., p. 14.
97
Id. ibid., p. 11.
63
de amigo(a) para amigo(a). Essas indumentárias estão impregnadas de cheiros e
memórias98 e podem durar mais que a existência de quem as vestiu.
1.5 AS ROUPAS COMO MEMÓRIA: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DE UM
TEMPO
Stallybrass acredita que pensar sobre as roupas “[...] significa pensar sobre
memória, mas também sobre poder e posse”99. Analisar as roupas, os estilos, as
modas é refletir sobre memórias e as reminiscências por si só já apontam para
imagens. De fato, o que é absorvido pelo nosso cérebro é aquilo que foi delineado
visualmente, o concreto, são as memórias, o restante é descartado; são os
esquecimentos também pertinentes às memórias dos indivíduos. E a memória por si
só é seletiva, lembra alguns episódios, descarta outros, por diversas razões.
Neste trajeto e nesta pesquisa, que envolve a temporalidade de 1958-1968,
temos um trabalho, escrito na década de 80 por Zuenir Ventura, que mistura ficção e
memórias suas e de seus pares para abordar as aventuras de uma geração. Sua
trama literária rememora acontecimentos e episódios do ano que inaugura um
período que ficou conhecido como os anos de chumbo, dado o endurecimento da
Ditadura Militar com o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), que viria mudar muitas trajetórias
humanas, sobretudo dos jovens daquele momento.
Em 1968: o ano que não terminou, Ventura reconstitui memórias e nos
oferece imagens dos “porralocas”, dos “cabeludos”, de uma geração que ficou com
um nó na garganta, como ele mesmo escreveu. Por vezes, sua reconstrução vai ao
universo das vestimentas, apontando para um elemento de grande valor simbólico
do período: as roupas. Muito do que foi dito por essa geração foi através da
indumentária trazida nos corpos como uma bandeira, apontando para a roupa como
texto, capaz de evidenciar mensagens para aqueles que a observam no cotidiano
citadino.
Sua aventura, que se passa em grande parte em uma festa de réveillon, narra
em muitos trechos a presença pública de alguns personagens, possibilitando uma
98
No terceiro capítulo, analisaremos as memórias de alguns personagens e suas relações, por vezes
afetivas, com as roupas. Desta forma, o tema aqui introduzido ganhará realce e maior
aprofundamento.
99
STALLYBRASS, Peter. O casaco..., op.cit., p. 12.
64
“viagem” pelas roupas e a moda em fins dos anos 60. Sobre a personagem, que
denomina de “princesa”, escreve:
A “princesa” como a tratavam seus incontáveis vassalos, chegou
antes da meia-noite, como se fosse uma aparição. Os cabelos
louros, naturalmente escorridos, tinham-se transformado em “mil
cachos”, conforme exigência que fizera ao cabeleireiro. A calça, de
seda preta, fora comprada em Paris, um modelo patte d’eléphant,
preso por uma fivela de strass. O collant cor de carne sob a blusa de
crochê prateada, transparente, dava uma perturbadora ilusão de
nudez aos seios. Naquele tempo, o corpo feminino não exibia ainda
seus mistérios em público, apenas sugeria.100
Mais adiante, ainda sobre a apresentação das pessoas na festa da elite,
assim escreveu sobre a atriz que se tornaria uma presença constante nas produções
cinematográficas italianas.
Mas o grande choque – antropológico, visual e sociológico – ocorreu
com a entrada da atriz Florinda Bolkan, com uma minissaia vermelha
que lhe cobria apenas alguns centímetros da região que se estende
ao sul da cintura. A seu lado, aquela que passaria a ser nos anos
seguintes, uma companhia inseparável: a condessa Cicogna. Este,
sim, era um casal moderno.101
O texto imagético de Ventura, que se aproxima de uma etnografia das modas
e modismos do período, vem reforçar o pensamento de uma história das roupas
como uma história visual. Vejam, atentem que nas entrelinhas do autor também é
possível de se enxergar o discurso do macho que, por sinal, entra em declínio neste
período e, consequentemente, a mulher invadirá outros espaços sociais, fato que
trataremos adiante.
Outro texto imagético que não pode ficar de fora desta análise e que se insere
em um contexto mais amplo, é a representação. Percebida aqui como reprodução
daquilo que se pensa, todavia as representações podem ser, e geralmente são,
bastante alimentadas pelos textos escritos, seja o romance, o cordel, o texto
jornalístico e outras formas de escritas e, ainda, códigos imagéticos e simbólicos
diversos. Estes já foram evidenciados anteriormente, todavia, dada a sua
importância nesta pesquisa, requer reforço.
100
101
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou..., op. cit., p. 24.
Id., ibid., p. 27.
65
Neste caso, a representação da qual queremos evidenciar é a imagem de
Maria, Nossa Senhora, A Virgem Maria, Nossa Senhora da Livração, Nossa Senhora
da Conceição da Praia, A Imaculada Conceição, O Sagrado Coração de Maria,
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e tantos outros imaginários que possui no
Brasil. A mãe de Jesus, desde o período colonial, mesmo tendo o texto bíblico mítico
apontado para a não idolatria, se tornará amplamente representada e cultuada,
superando inclusive a representação do Cristo, ícone maior do cristianismo. Maria se
consolidou na mentalidade latina e, mais especificamente, na mentalidade brasileira
como o símbolo da sagrada doçura, um exemplo a ser seguido pelas mulheres.
A consolidação de Maria no imaginário feminino vai além da imagem sacra
que repousa nas igrejas católicas, saindo nos momentos de festividade dedicada a
ela em forma de procissão. O culto a Maria foi amplamente fortalecido pelo texto
escrito, que conta com a Ladainha102 como forte aliada; neste, Maria é adjetivada de
inúmeras maneiras: Santa Virgem das Virgens, Mãe de Divina Graça, Virgem
Poderosa, Virgem Prudentíssima... Fica evidente que o objetivo maior é fortalecer o
imaginário do cândido, da doçura, da maternidade, da renúncia das coisas
mundanas e da manutenção da virgindade, um modelo a ser seguido por todas as
mulheres.
Neste país de pensamento colonizado, em meados do século XX, o
casamento, sobretudo o católico, com a noiva em vestido longo, branco ou branco
alvíssimo, com grinalda de flores na cabeça e um longo véu, a exemplo de um
manto, parece representar a busca e o encontro com a Senhora maior do
cristianismo, a personificação deste imaginário fortalecido desde o período colonial.
Segundo o mito cristão, Maria concebeu sem perder a virgindade.
Ainda nesse contexto, é importante ressaltar que o vestido nupcial, quando
não usava a cor branca, por motivo de gosto pessoal ou por uma gravidez
indesejada, empregava duas outras cores: o rosa bebê, suave, ou o azul celeste, um
tom pastel. Estas duas cores secundárias também fazem parte da grade de cores
presentes nas inúmeras representações de Maria. No geral, Maria veste branco, por
vezes seu vestido tem bordados em tons prateados ou dourados, nada tão barroco,
exuberante, e tem sobre si o manto azul celeste e rosa, reforçando a suavidade
angelical de seus traços finos, de nariz, boca, face com aparência de pó facial. Ainda
102
A Ladainha é um tipo de oração formada por uma série de invocações curtas e respostas
repetidas.
66
o olhar de Maria é marcado por uma docilidade ímpar, reforçando a imagem da
pureza.
Foi essa pureza angelical que Elizabeth I, a Rainha Virgem, buscou quando
no século XVI abriu mão do casamento e casou com seus súditos. No reino
anglicano, ao abraçar o protestantismo, Elizabeth se tornou a própria representação
de Maria, embora esta não fosse cultuada pelos protestantes. Este imaginário de
Rainha Virgem foi amplamente reproduzido pela icnografia e, nas ultimas décadas, o
cinema norte-americano resgatou, em algumas películas, esse mesmo imaginário
com as possibilidades técnicas que a cinematografia apresenta103.
O branco da indumentária nupcial no Brasil também está associado à pureza
da moça que o usava em seu dia especial, logo o simbólico está incutido enquanto
castidade, sendo a virgindade o valor aparente, o que nos remete à invenção da
roupa branca nos séculos XVII e XVIII na Europa. Naquele contexto das luzes da
razão e de ideais de liberdade e igualdade, as roupas cumpriam o papel de interface
entre corpo e alma, entre o mundo moral e o mundo físico. Assim, as roupas
exteriorizavam e deveriam deixar magníficos seus usuários, e deveriam estar limpas,
inclusive as peças íntimas. Dessa forma, a roupa branca mostra simbolicamente à
sociedade a higiene pessoal que se esperava e a pureza da alma.
A higiene aparente das roupas, denotando a higiene pessoal de quem as
usava, foi um valor nas cidades europeias nos séculos XVII e XVIII, e recebeu
atenção de Daniel Roche na obra A Cultura das Aparências. Ao adentrar o território
simbólico das roupas brancas, que extrapola o significado de limpeza das
vestimentas, Roche traz à luz o asseio corporal em uma Europa ainda atormentada
pelas pestes da Idade Média, fruto, sobretudo, da higiene precária.
A vestimenta branca nessa cultura, seja nas cidades ou nos campos, era o
divisor entre o limpo e o sujo, reforça o autor. Entretanto ele aponta para as
materializações e difusões de regras de comportamento, tendo a roupa branca como
elemento simbólico. O autor ainda aponta para a imersão da peça nas fontes
milagrosas ou “[...] tendo tocado os corpos santos, como a Virgem Negra de
Chartres, transfigura os pequenos objetos cotidianos em instrumentos de
sacralidade e de fecundidade”104.
103
Elizabeth I foi objeto de dois filmes na última década do século XX.
ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII e XVIII).
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007. p. 165.
104
67
Desse modo, o autor nos leva a pensar que o indumento branco estava
associado, por diferentes caminhos, a representação da pureza, seja relativa ao
asseio corporal ou ainda à pureza da alma percebida pela sacralidade cristã católica.
Nos dois casos, não se deve esquecer que a propagação da cultura europeia no
Brasil se dá principalmente pelos jesuítas em sua permanência de mais de dois
séculos. Estes, ao tempo em que ensinavam as primeiras letras, difundiam os
valores e ideologias da sociedade europeia, marcadamente a cultura portuguesa.
No Brasil da segunda metade do século XX, o branco era a cor preferencial
da vestimenta nupcial, pois, para uma moça dos anos 50 e 60, a roupa do
casamento agregava um valor simbólico que extrapolava o valor da simples
mercadoria. Sendo o enlace o ritual de maior importância na trajetória de muitas
mulheres de diferentes camadas sociais e ideológicas desse período, dado seu valor
social, a veste do acontecimento estava incutida de inúmeros valores que
perpassavam o afetivo, o sublime ou, ainda, era revestido de sacralidade mediante
as práticas culturais, marcadamente católicas, que reinavam e ainda reinam na
contemporaneidade.
Por esse motivo, a indumentária posteriormente era embalada, guardada,
conservada e perpassava o tempo, podendo inclusive, por tradição das camadas
sociais médias ou altas, ser usada décadas depois por uma filha, nora ou ainda uma
neta de quem a usou pela primeira vez. A ideia de continuidade e de tradição se
apresenta de forma bem evidente; neste caso, o grande diferencial é a roupa ocupar
o lugar de destaque, sendo notório, neste caso, a roupa como uma memória afetiva,
conforme sentenciou Stallybrass.
É pertinente esclarecer que, em geral, na cultura brasileira, nordestina e
baiana, as roupas dos indivíduos não são guardadas, constituindo inclusive uma
dificuldade na reconstrução da sua história. O que vamos ter de palpável são as
fotos e as memórias em relação a elas. Existem, obviamente, os casos de exceção
nos quais as indumentárias de um indivíduo, mesmo depois de morto, são
guardadas por familiares, atuando simbolicamente como uma estratégia para manter
viva a memória de alguém.
Posto que as vestimentas estão revestidas de histórias e imbricadas nos
acontecimentos protagonizados por quem as utilizou, preservá-las significa, de
alguma forma, manter viva a memória do indivíduo, externando também a
afetividade que une os vivos aos mortos. Foi este o ponto de partida do estudo de
68
Stallybrass, o afeto entre vivos e mortos, tendo como elo um casaco puído deixado
por um amigo morto. O autor, sem negar o lugar de mercadoria que a roupa ocupa
no funcionamento capitalista, defende uma vida social das coisas, da qual dor e
memória fazem parte.
Dessa forma, a peça de roupa impregnada de amor fraterno possibilitou ao
autor enveredar pelo universo da afetividade e, por consequência, das memórias.
Conforme sua escrita, as roupas recebem a marca humana e também elas são
moldadas com o nosso toque, sendo elas duradouras, perpassando anos, por vezes
décadas: “[...] elas ridicularizam nossa mortalidade”105. Este parece ser o eixo para o
autor pensar a roupa como uma memória.
105
STALLYBRASS, Peter. O casaco..., op. cit., p. 11.
69
2 A CIDADE DA BAHIA: PALCO DE MODAS E MODISMOS
URBANOS
As cidades podem ser percebidas como comunidades, coletividades. As
terminologias por si já denunciam que a cidade é heterogênea, são seus habitantes
que
constroem
representações
diversas
sobre
elas.
Os
percursos,
os
relacionamentos, as experiências de cada um, as reminiscências, as histórias de
vida, as roupas usadas em determinadas épocas, os sentimentos individuais e
coletivos vão dando significados aos espaços citadinos, seja a feira livre, espaço da
troca comercial e relacional, a praça, o teatro, o cinema, as igrejas, lugares
preferenciais de demonstrações de modas e modismos ou outros tantos recantos
que compõem uma cidade.
O ofício do historiador cada vez mais nos conduz a pensar os espaços como
parte inerente da história. O diálogo entre a Geografia e a História ganhou
notoriedade com os estudos de Braudel sobre o Mediterrâneo nos anos 30. Esta
interface
entre
áreas
distintas
foi
sendo
ampliada
nas
décadas
seguintes ao tempo em que as ciências humanas convergem cada vez mais para
um ponto comum.
Em 1959, a Universidade da Bahia, atenta ao movimento cultural e intelectual
que acontecia na Cidade do Salvador, publicou o trabalho do geógrafo Milton Santos
sobre o Centro da Cidade do Salvador, fruto da sua tese de doutoramento recémdefendida na Universidade de Strasbourg, na França. Nesse trabalho, fica evidente,
logo nas primeiras páginas, o que hoje chamamos de interdisciplinaridade,
notadamente entre a Geografia e a História. No seu prefácio, Pinto de Aguiar atenta
para a civilização contemporânea como uma civilização da cidade e adverte: “[...]
raras são as cidades, grandes ou pequenas, que tenham elaborado um plano para
um habitat harmonioso e equilibrado dos seus descendentes, os quais já lhe batem
às portas”106.
Ainda no mesmo prefácio, Pinto de Aguiar evidencia a falta de planejamento:
“[...] o que nos domina, ainda, é uma política do momento presente de remendos
frustrados e de acomodações penosas, deixando aos que chegam a trágica herança
106
SANTOS, Milton. O Centro da Cidade do Salvador: estudo de Geografia Urbana. São Paulo:
Edusp; Salvador: Edufba, 2008. p. 11.
70
de aglomerados sem luz, sem ar, sem alimentos, sem transporte, sem alegria. sem
dignidade e sem beleza”107. A falta de dignidade apontada vai, de certa forma,
pontuar toda a escrita de Santos, que inicia a obra refletindo sobre a dinâmica
populacional soteropolitana, à época com cerca de 550 mil habitantes, e analisando
os três séculos durante os quais a cidade usufruiu do status de principal urbis
brasileira.
Milton Santos aponta uma quase estagnação nas primeiras décadas do
século XX, quando muito um crescimento lento, quadro que se modificaria a partir da
década de 40, por um novo dinamismo e, por outro lado, “[...] porque acolheu
enormes vagas de rurais, tangidos do campo” 108. Isso viria marcar profundamente a
fisionomia da cidade e a sua vida, principalmente na parte central, onde se
localizava o eixo financeiro-comercial identificada á época como “a cidade”.
É sobre a cidade, que não se resumia à parte central, as festividades, a
sociabilidade, que trataremos neste capítulo. Nesse período, inúmeras mudanças
arquitetônicas e culturais iam ocorrendo, e a “Bahia simbólica”, fruto de
representações históricas, ia-se esvaindo mediante os mecanismos e ideologias da
sociedade industrial e moderna que apontavam para outras dinâmicas citadinas.
Nestas, as aparências despontam como um importante elemento, evidenciando que
a relação entre as roupas portadas por homens e mulheres e a cidade é uma
relação de proximidade.
Essa relação foi observada na obra, A cidade e a moda, de Maria do Carmo
Teixeira Rainho. Nesta, as novas pretensões e as novas distinções da sociedade
carioca, influenciadas pela chegada da Corte Portuguesa no princípio do século XIX
e posteriormente sua modernização em meados do mesmo século, são analisadas
no segundo capítulo. A obra da historiadora carioca, atenta para a urbanização da
cidade e as roupas dos membros da “boa sociedade” no ato da chegada da Corte.
Estas refletiam o “atraso” mais próximo aos tempos de colonização, que as “[...]
mudanças que em dez anos, alterariam a sua face e os costumes de seus
habitantes”109.
107
SANTOS, Milton. O Centro..., op. cit., p. 11.
Id., ibid., p. 19.
109
RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções - Rio
de Janeiro - Século XIX. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. p. 48.
108
71
Após a chegada da Corte, um conjunto de mudanças que inclui a abertura
dos portos, a fundação de um jornal oficial, a instituição das academias de Medicina
e Belas-artes e de uma biblioteca, foi á tônica para as transformações de costumes
das quais as modas fazem parte. Neste sentido, o cotidiano da urbe passa a
conviver com as gravuras de moda, os perfumes, as roupas e as “fazendas” vindas
da França, um novo momento de vida urbana no Rio de Janeiro. Realçando essa
ideia, a autora introduziu, na análise histórica, estatísticas110 da quantidade de lojas
de modas e tecidos francesas existentes na cidade, mostrando a inserção dos
costumes europeus na cidade, centro do império português nos trópicos.
Em Salvador, no período de 1958-1968, as mudanças arquitetônicas
impulsionaram novas sociabilidades e festividades urbanas, lugares de ostentação
de modas e modismos. Por questão de recorte metodológico, abordaremos apenas
algumas, como as idas ao cinema e as festividades relacionadas aos concursos de
beleza, não querendo negar, contudo, que o hábito de ir ao teatro e ao futebol, para
não citar outros, estivesse ausente no cotidiano citadino da velha cidade. Antes,
trataremos de contextualizar Salvador dentro do panorama brasileiro da época, ou
seja, a conjuntura brasileira modernizadora e desenvolvimentista defendida pelo
presidente Juscelino Kubitschek.
2.1 OS ANOS JK: SONHOS, CIDADES MODERNAS E PESSOAS ELEGANTES
Salvador, como outras cidades brasileiras, vinha desde meados da década de
50 com a chegada de Juscelino Kubitschek (ou JK, como vulgarmente apelidado e
doravante mencionado), a presidência da República em 1956, vivenciando a euforia
da modernização do País. O lema do governo era “cinquenta anos em cinco”. Em
termos práticos, isso significava deixar a tradição rural e arcaica para trás e se inserir
em um mundo moderno, urbano, industrial, com bens de consumo estrangeiros,
principalmente os norte-americanos, ruas asfaltadas, serviços de transportes,
geração de energia para funcionamento dos bens de consumo, grandes obras da
engenharia e da arquitetura modernas.
110
Na obra citada, à página 53, a autora mostra o gráfico referente ao crescimento do número de
lojas de modas e tecidos francesas no Rio de Janeiro: ano 1850 - 22 lojas, ano 1860 - 49 lojas, 1870
– 51 lojas, 1880 – 110 lojas.
72
Nesse percurso moderno, a construção de Brasília como sede do poder
executivo era a simbologia maior, um ícone a céu aberto, a cidade monumento,
possível de ser vista por todos os brasileiros e admirada pelo mundo. À frente deste
plano edificador, um comunista convicto Oscar Niemayer e um urbanista moderno
Lúcio Costa, então dois jovens fascinados pela arquitetura moderna e visualizando
as reais possibilidades de poder colocar em prática seus sonhos empreendedores,
que ganhavam eco na política defendida por JK.
Esse momento moderno era personificado na própria figura do presidente, um
homem garboso, de ternos bem cortados, cabelos a Carlos Gardel, moldados pela
brilhantina, e pé de valsa, logo um homem moderno, um latino no estilo Gardel, um
homem de “fina estampa”, aludindo à expressão popular tratada no capitulo anterior.
As fotografias que estampam as inúmeras reportagens, durante o período do seu
mandato de Presidente da República, no periódico baiano Diário de Notícias,
sempre mostram a mesma elegância e seu constante sorriso, evidenciando o
otimismo do modernizador.
As fotos que ilustram as primeiras páginas do Diário de Notícias em 21 de
abril de 1960, data da concretização do sonho moderno, Brasília, e dos dias
seguintes, não deixam dúvidas dessa elegância, da preocupação do político com
sua imagem. É possível também perceber que sua preocupação com o garboso
ganhava eco no staff mais próximo ao estadista. Dada a sua elegância, os demais
seguiam a mesma linha, criando uma imagem única, limpa, como é pensada por
profissionais que lidam com o imagético, sobretudo aqueles do marketing e da
comunicação.
As duas fotografias a seguir servem para evidenciar esse aspecto singular na
vida do estadista brasileiro (Figuras 10 e 11). Nelas se pode constatar um homem
público que, de certa forma, fugia à regra geral de políticos brasileiros até então,
sobretudo em relação à cultura da aparência, algo que, na cultura brasileira, estava
mais associado ao universo feminino.
73
Figura 10 – Traje Presidencial de JK.
Fonte: Diário de Notícias (1960)
Na Figura 10, provavelmente realizada anteriormente à inauguração da
Capital Federal, posto ter sido vinculada no Diário de Notícias em 21 de abril de
1960, é possível verificar, em primeiro plano, a vestimenta clássica impecável e
própria para a ocasião solene. Nela, alguns detalhes de etiqueta de moda foram
extremamente bem cuidados: a gravata borboleta de cor clara, própria para uma
ocasião diurna, no caso a inauguração da Capital, o lenço na lapela combinando
com a gravata é branco alvíssimo, os cabelos perfeitamente penteados. Uma foto
com claras intenções de ficar para os anais da história, notadamente marcada pela
busca da perfeição no que diz respeito à aparência.
74
Figura 11 – JK e sua comitiva em Brasilia
Fonte: Diário de Notícias (1960)
Na Figura 11, foto foi realizada no momento da inauguração de Brasília, o
Presidente ocupa o centro da imagem, veste traje de gala, um smoking, sendo a
calça em risca de giz e fraque preto (meio-fraque), o lenço alvíssimo foi mantido e a
gravata borboleta substituída, sem comprometer sua elegância, todavia, imprimiu um
ar mais casual, próprio para uma agenda política diurna. Pode-se vislumbrar, através
da fotografia, que o staff mais próximo ao presidente segue o mesmo padrão
garboso, difere apenas o militar, que usa uniforme de gala das Forças Armadas e do
lado esquerdo um cavalheiro, possivelmente o segurança, usa óculos escuros,
perfeitamente apropriados para uma ocasião diurna. Nada na composição imagética
compromete a estética do poder.
Existem ainda, no mesmo periódico, outras imagens do mesmo evento,
seguindo a mesma dinâmica de elegância governamental. Mesmo nos momentos
em que o presidente estabelece diálogos com o povo, JK, pelo que observamos,
esforçava-se para ser reconhecido como um homem do povo sem abrir mão da
elegância. Não se podem descartar desse conjunto imagético as intencionalidades
da foto jornalística, sendo o Diário de Notícias uma empresa pertencente aos Diários
Associados, que tinha relação amistosa com o Presidente, por isso sua imagem era
sempre bem cuidada nas páginas desse jornal, e o mesmo vale para os membros de
sua família.
75
Com plena convicção do poder da imagem, sobretudo quando se trata de
pessoas ligadas ao alto poder executivo, o Diário de Notícias divulgou em suas
páginas nos dias seguintes à inauguração de Brasília, fotos da visita da família do
presidente às instalações dos Diários Associados na nova Capital Federal. A
reportagem, que não estava no colunismo social, comumente usado para divulgar
modas e modismos e o cotidiano das elites brasileiras, nos oferece possibilidades
para analisar a moda usada pelas elites políticas do País no período e contextualizar
a opulência da família presidencial.
Figura 12 – Traje elegante de Dona Sarah Jubitschek.
Fonte: Diário de Notícias (1960).
A Figura 12 mostra em primeiro plano o jornalista Assis Chateaubriand, na
ocasião embaixador e presidente do grupo dos Diários Associados, recebendo dona
Sarah Kubitschek e sua filha Márcia na redação do Jornal Correio Brasiliense. Ao
lado, aparece ainda o deputado José Maria Alckmin e, na extremidade esquerda
superior, um quadro de uma foto do embaixador, reforçando sua própria imagem,
dinâmica comum no meio político brasileiro.
76
A Primeira Dama usa vestido claro, estilo “tubinho”, provavelmente em linho
ou em outro tecido menos maleável, um pouco acima dos joelhos, o que denota que
estava em sintonia com as tendências de moda do momento. Na composição, colar
e brincos que se harmonizam com o modelo usado; sendo um episódio diurno, a
bolsa é um pouco maior que a trivial para eventos durante o dia, mas, ao longo da
década de 60, ela viria ganhar dimensões maiores. Ainda é possível verificar o
cabelo penteado ao estilo trivial para senhoras da época, provavelmente moldado
com laquê, o que garantia maior durabilidade ao penteado.
A indumentária da filha ao lado, dada a sua posição na fotografia, não permite
uma análise mais apurada, todavia parece seguir o estilo da mãe, possivelmente um
tubinho, que neste momento vestia senhoras e moças. O destaque se dá por conta
do lenço de seda estampado que usa, cobrindo a cabeça, modernice do período e
bastante difundido no Brasil por conta das atrizes norte-americanas e europeias, que
deles faziam uso tanto nos filmes como no cotidiano. Em suma, tanto o presidente,
que já foi chamado de bossa-nova, denotando o novo, quanto sua família tinham
tendência a aceitar inovações, logo, eram vistos como modernistas.
As inovações relativas às vestimentas femininas na foto analisada mostram a
família presidencial em sintonia com as tendências mundiais da moda. Nesse
período, a Europa emergia das dificuldades e privações do pós-guerra, e os censos
apontavam um mercado adolescente em plena expansão, isso resultaria numa moda
jovial sendo a minissaia o símbolo da década de 60. Desse contexto, também fazem
parte os voos transatlânticos que influenciavam a disseminação das tendências
entre Europa e Estados Unidos e outros recantos da América, uma moda
globalizada111.
A globalização não era uma novidade para estes mundos díspares, nem para
o Brasil. Estava na pauta desde o final do século XV com a chegada dos europeus
nas Américas. A partir desse momento, povos de diferentes culturas em distintos
continentes tiveram conhecimento um dos outros, e, entre navegações, troca de
mercadorias e enfrentamentos de poderes, houve também as trocas culturais,
gerando outros hábitos e atitudes. Este assunto já foi tratado por Serge Gruzinky112,
derrubando o mito da globalização como algo do final do século XX, e evidenciando
111
MENDES, Valerie D.; HAYE, Amy de la. A Moda no Século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GRUZINSKI, Serge. A Passagem do século: 1480-1520: as origens da globalização. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
112
77
um mundo global desde o início dos tempos conhecido historicamente como Idade
Moderna.
Um Brasil Moderno, com as urbes modernas, era o empreendimento maior do
governo JK, como já salientado neste trabalho, e, por esse motivo, um amplo
conjunto de edificações pelo Brasil foi iniciado. Por conta dessas realizações,
empréstimos altíssimos foram tomados, gerando altos índices de inflação ainda no
final do governo, todavia, tudo era superado diante do sonho maior: uma vida
moderna idealizada nos moldes da cultura norte-americana.
2.2 A GARBOSA CIDADE: O SONHO DE SER UMA CIDADE MODERNA
Moderno era a palavra de ordem no Brasil e na Cidade da Bahia. O Diário de
Notícias, nossa fonte principal durante o período pesquisado, usava-a com bastante
frequência, sobretudo quando o assunto era relativo aos atos e ações do governo
JK. Entretanto o mesmo termo, entre outros que denotam a superação do tempo
anterior, eram constantes tanto em reportagens sobre as modificações da paisagem
da cidade como em comercial de eletrodomésticos113.
De fato, é propício o uso do termo modernização para analisar as
transformações vivenciadas pela Salvador dessa época, aqui compreendido como o
processo de alterar o perfil da cidade, dando-lhe uma feição moderna e atual para os
padrões então aspirados. Nas páginas do Jornal Diário de Notícias grandes
anúncios publicitários mostravam os novos edifícios residenciais em bairros
elegantes da cidade, como o Edifício Manuel Vitorino: “Avenida Sete de Setembro
212, no ponto mais aristocrático da Cidade Alta, Vitória – antigo Club Alemão,
localização privilegiada, acabamento de luxo, amplo e luxuoso hall, grande garage,
preço fixo sem reajuste”114.
113
Terminologias como moderno, bossa nova, cosmopolita apareciam em reportagens, crônicas e
comercias, apontando sempre para o novo, inovações, etc.
114
DIARIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 20 abr. 1958. Cad.1, p.1.
78
Figura13 – Edifício Manoel Vitorino.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
O ‘reclame’, que ocupava grande parte da página do periódico (Figura 13),
mostrava a imagem da fachada do edifício em arquitetura moderna e sua planta
baixa, evidenciando as divisões; prometia entrega em doze meses e possibilidades
de pagamento em sessenta meses, sendo dez por cento de sinal do valor de CR$
1.250.000 (um milhão e duzentos e cinquenta mil cruzeiros) para sua moradia em
um elegante espaço da cidade moderna.
Neste caminho do boom progressista e desenvolvimentista que se articulava
com o Plano de Metas do governo JK, as construções, seja de edifícios residenciais
ou prédios públicos, ocupavam lugar de destaque, e a Cidade do Salvador vivia dias
de plena expansão, motivada pela política otimista oriunda do Planalto Central. Não
se pode esquecer que as construções acabavam por gerar milhares de empregos,
ajudando consideravelmente a consolidar a popularidade do governo JK.
Dessa forma, empresas brasileiras e baianas de diferentes ramos, inclusive
da construção civil, tiravam proveito do modo de “vida moderno” e do boom
desenvolvimentista.
Esse parece ser o caso da Civa Imobiliária, que oferecia à
classe média baiana o seguinte empreendimento: “Edifício Monte Carmelo, no
79
Boulevard América, grande living, amplos dormitórios, servido por elevadores de
luxo, todas as peças pintadas a óleo, preços fixos sem reajustes, condições de
pagamento sem igual, valor CRS 850.000,00 (oitocentos e cinquenta mil
cruzeiros)“115.
Figura 14 – Edificio Monte Carmelo.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
O anúncio do periódico (Figura 14) mostra um prédio de dez andares,
evidenciando a verticalização da cidade e um novo modelo de moradia, logo
moderno, amplas janelas em vidro, o que resultava em uma fachada na qual
sobressaía o vidro. Destacava o nome do desenhista Waldir V. Gordilho, enfatizando
o trabalho de novos profissionais ligados à construção civil e à valorização do
investimento financeiro. Numa época de inflação, a propaganda evidenciava que o
investimento seria duplicado com a compra de um dos imóveis.
Nos dois anúncios do jornal, é possível perceber não somente uma
arquitetura diferente dos padrões vigentes na cidade, mas também o uso de
terminologias da língua inglesa. O uso do inglês aponta para esse momento da
cidade, no qual a “invasão da cultura norte-americana” já era vivenciada no
cotidiano, seja em produtos de diversos tipos, na música e, sobretudo, através dos
filmes, indicando uma crescente mudança de hábitos e atitudes no Brasil. Era a
ideologia de uma vida feliz e rica nos moldes da cultura norte-americana, algo que
115
DIÁRIO DE NOTICIAS. Salvador, 2 fev. 1958. Cad. 1, p. 8.
80
foi amplamente difundido através de políticas de aproximação entre os Estados
Unidos e o Brasil e em toda a América Latina.
Recentemente, essa tática da indústria cultural como instrumento político
usado pelos norte-americanos na retomada do pós-guerra foi analisada pelo
jornalista Lorenzo Aldé116. Em artigo da Revista de História, o autor destaca ícones
como Marilyn Monroe, Mickey, Super-Homem e outros mais que foram sendo
introduzidos no cotidiano brasileiro ao longo do século XX. Na década da bossa,
afirma o autor, os Estados Unidos apoiaram veladamente o combate ao comunismo
e vendia, através de seus filmes, a independência de seus jovens e a liberação de
suas mulheres.
Ainda através das propagandas dos imóveis, percebe-se que o novo, o
sofisticado, o moderno é pensado, estabelecendo uma interface com as “coisas” de
fora do País. Palavras como living, hall, Boulevard soam como novidades na época.
É possível também verificar um apelo para a opulência da classe média baiana
quando valoriza: elevadores luxuosos, acabamentos de luxo, hall luxuoso e ainda
salienta a Vitória como o endereço mais aristocrático da cidade moderna,
evidenciando um elemento do ethos baiano perceptível naquele momento e na
atualidade.
A cidade nova ou uma cara nova para a cidade arcaica não se restringia aos
prédios residenciais. No período 1958-1968, a cidade primaz do Brasil, pensada em
Portugal para ser a sede da colônia, vivia em constante transmutação, era outra
cena paisagística que ia sendo desenhada nas proximidades de suas areias e suas
praias de azul ímpar. Já nesse período, a Cidade da Bahia era percebida por muitos
como resultados de representações históricas cantadas em verso e prosa e outras
artes; nestas, a alegria e eloquência de seu povo ajuntado à tranquilidade da cidade
sobressaíam de imaginários que disfarçavam sua face mais verdadeira, marcada
pela tristeza popular, fruto das diferenças sociais históricas daqueles que habitavam
e habitam a urbe.
Datam, ainda, desse período inúmeras edificações que hoje são cartões
postais da cidade, sendo o Teatro Castro Alves um expoente maior da arquitetura da
época. No ato de sua reinauguração, em abril de 1959, o periódico Diário de
116
Em março de 2011, o jornalista publicou o artigo “Pindorama não é Pandora.”, na Revista de
História da Biblioteca Nacional, em que trata dos estranhamentos e afinidades entre os Estados
Unidos e o Brasil e a crescente inserção da cultura norte-americana ao longo do século XX no País.
81
Notícias enfatizava suas características modernas: “O Teatro Castro Alves é a mais
moderna de todas as casas do gênero que existe na America Latina” 117. O jornal
noticiava ainda que devolver a casa ao povo baiano depois do incêndio que o
destruiu parcialmente era um compromisso do governador Antônio Balbino com uma
população que ansiava por espetáculos em consonância com o momento moderno
que a cidade vivenciava.
Para esse momento observado como especial pela sociedade soteropolitana,
um astro à altura da dita casa moderna. O recital anunciado para a Concha Acústica
do Teatro Castro Alves no dia 4 de abril de 1959 era com Dorival Caymmi, que vivia
o ápice de sua carreira e tinha vindo a Salvador especialmente para o evento. No dia
seguinte à reinauguração no mesmo espaço, o jornal noticiava a apresentação da
Orquestra Sinfônica da Universidade da Bahia. Sobre a Concha Acústica, o mesmo
periódico destacava que “[...] só as modernas cidades do mundo contam com esse
tipo de auditório-teatro”118. A oralidade dá conta que frequentar as festividades
nesses espaços modernos implicavam em momentos de esmero, onde a roupa, o
penteado, o sapato e a joia ocupavam um lugar de destaque.
No esforço em modernizar a cidade pelo viés da arquitetura, tendo por base a
matriz do pensamento empreendido pelo movimento moderno brasileiro já fixado no
Sul do País e embrionário na Bahia, várias obras irão caracterizar o momento de
transformação da urbe baiana, que se estendeu pelas décadas de 50 e 60. Fazem
parte desse período modernizador o Edifício Sulacap, de 1946 (Figura 15), o Hotel
da Bahia, de 1951, o Edifício Suerdieck, de 1955, o Edifício Comendador Urpia, de
1957, o Edifício Banco da Bahia, de 1958, e o Edifício Cidade do Salvador, de 1952,
bem como a construção da Escola Parque e os prédios das diversas Faculdades da
Universidade da Bahia. Todas essas obras reforçam a percepção da arquitetura
como um elemento fixador da nova imagem desejada para a cidade.
117
118
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 2, 4 abr. 1959.
Id., loc. cit.
82
Figura 15 – Edifício Sulacap.
Fonte: Acervo pessoal.
Não apenas os prédios públicos e privados estavam no bojo da idealização de
uma nova cidadela, mas a própria urbe passava, no período, por um plano
modificador, expresso em reformas urbanas sanitárias e de circulação viária,
mantidas mesmo depois do Golpe de 1964.
Em abril de 1958, o Jornal Diário de Notícias exibia uma foto das obras de
reformas iniciadas na Baixa dos Sapateiros119. Na imagem (Figura 16), vê-se um
bonde passando e ao lado entulhos, evidenciando os transtornos na via pública por
conta das obras. Em novembro do ano seguinte, o mesmo jornal trazia a seguinte
manchete: “Baixa dos Sapateiros estará pronta em março de 1960” 120. A reportagem
reproduz declarações do Secretário de Viação e Obras Públicas Virgildásio Sena
que destacavam, enfim, a finalização tardia da obra, mencionando a conclusão de
outras intervenções.
119
120
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 12, 20 abr. 1958.
Idem, p. 5. 29/30 nov. 1959.
83
Figura 16 – A Baixa dos Sapateiros.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
Sobre a Baixa dos Sapateiros, afirmava o Secretário que haveria “[...] retirada
dos trilhos e manutenção dos paralelepípedos para assentamento de uma capa de
asfalto”121. O texto aponta para outras obras em diferentes regiões da cidade,
evidenciando que distintas localidades da cidade passavam por transformações da
paisagem, inclusive a região da Estação da TV Itapoan no bairro da Federação, que
estava em fase de consolidação das instalações para funcionamento, fato que
mantinha relação estreita com as novidades da terra. A televisão era um
empreendimento esperado com ansiedade por alguns setores da sociedade baiana,
sendo amplamente divulgada em reportagens no Diário de Notícias.
Ainda evidenciando as modificações da paisagem urbana, a mesma
reportagem sobre a Baixa dos Sapateiros, destacava com subtítulo em negrito:
“TRÊS OBRAS DE VULTO” e seguia:
[...] três obras de vulto, do plano da SUCARP, deverão ser, por sua
vez, atacadas no ano vindouro. A primeira delas é a pavimentação
da Av. José Barros Reis (Baixa do Cabula) ligação do Largo 2 Leões
ao Largo do Retiro: prolongamento da Centenário ligando á Vasco da
Gama e prosseguimento intensivo para a conclusão do Túnel
Américo Simas. Vale ressaltar que a SUCARP, órgão da prefeitura
121
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 5, 29/30 nov. 1959.
84
responsável pelas obras públicas, possui uma previsão orçamentária
para o próximo exercício na ordem de 114 milhões de cruzeiros.122
Na mesma reportagem, o jornal, valendo-se de um expediente comum aos
periódicos, usou a mesma imagem vinculada em 1958 (Figura 16), que mostra a
Baixa dos Sapateiros, o Bonde com os trilhos que foram retirados na reforma e, ao
fundo, os arcos, semelhantes aos arcos do Bonde de Santa Teresa no Rio de
Janeiro, retirados pelo plano modernizador. A imagem nos permite visualizar que a
cidade de então ainda possuía características bucólicas, em virtude das árvores, das
casas, dos arcos que compõem a imagem, logo vistas como arcaicas na dinâmica
desenvolvimentista dos anos JK.
Essa imagem de alguma maneira se aproxima dos registros imagéticos
realizados pelo francês Pierre Verger. Nas fotos do etnólogo, já bastante divulgadas
nas últimas décadas, é possível ver uma cidade com aspectos rurais, como pessoas
sentadas à porta, fugindo do calor que caracteriza a cidade, lavadeiras de roupa no
Dique do Tororó rodeadas por árvores ou, ainda, uma cidade horizontal com casas
de aparência seculares. Pouco restou disto na dinâmica global homogênea, válido
também para as cidades de qualquer lugar do mundo.
Na Salvador desse momento, o fito era redefinir o lugar diante do processo de
globalização, conforme nos aponta Ana Fani Carlos123, cuja tendência cada vez mais
toma forma diante da ideologia de homogeneizar. Dessa forma, a ideia de lugar se
desfaz e se despersonaliza diante do novo.
O novo não estava restrito à paisagem da cidade. Hábitos, sociabilidades,
indumentárias e outros elementos pertinentes ao novo deveriam ser reconfigurados
diante da tendência globalizante. Todavia, nas reportagens da época, é possível
tomar conhecimento de várias mazelas citadinas que destoavam do modelo
homogêneo global: seja a falta de uma limpeza adequada para uma cidade
moderna, as carroças de burros que empatavam a circulação dos veículos ou os
camelôs que tomavam as calçadas do centro da cidade,
Donairoso era o texto de abril de 1958 que tratava de outra mazela urbana
não muito elegante, o hábito secular de urinar nas ruas:
122
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 5, 29/30 nov. 1959.
CARLO, Ana Fani A. Definir o lugar? .In: ______.O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007.
p. 17-20.
123
85
A Ladeira da Misericórdia, a despeito do nome e de ter uma igreja no
seu tôpo, pode ser considerada, com tôda propriedade, a artéria
urbana proscrita dos cuidados oficiais e da freqüência familiar. Nem
podia ser de outro modo. Na sua parte alta, foi transformada em
mictório público ao ar livre, adquirindo o odor característico, que se
espalha por tôda a circunvizinhança. De sua parte média até o pé, a
baixa prostituição impera soberana, obscena e pornográfica, numa
ostentação simultânea e constrangedora de degradação moral e
miséria física.124
Figura 17 – A Ladeira da Misericórdia.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
O mesmo texto-denúncia evidencia que, no período, a Ladeira da Misericórdia
era um importante elo entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta, espaço de circulação
da família baiana, que a usava cotidianamente. A fotografia que acompanha o texto
(Figura 17) mostra pessoas subindo e descendo a ladeira, com vestimentas
condizentes com um dia semanal, portando objetos nas mãos como bolsa e guardachuva; ao lado, nos passeios, pessoas sentadas, possivelmente as prostitutas
evidenciadas no texto, em suma, um lugar praticado, como conceitua Certeau125, ao
tratar da invenção do cotidiano na sua rotina diária diurna.
É revelador que o texto traz para a pauta da discussão o problema da higiene
social e da prostituição, que há muito tempo fazia parte da vida soteropolitana.
Nesse momento, tanto a falta de higiene quanto a prostituição são consideradas
como estorvo por agredirem a paisagem urbana em pleno momento de
124
125
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 3, 20 abr. 1958.
CERTEAU. Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
86
transformação e por molestarem a família baiana na sua prática cotidiana em uma
região central da cidade.
Nessa notícia de jornal, é possível ainda refletir sobre imaginários do período,
na cidade em questão, revelados pelo texto. Suas entrelinhas revelam aspectos da
religiosidade e da moral dos anos dourados, trata o lugar, no caso a Ladeira da
Misericórdia, como espaço sagrado, sendo a presença de prostitutas uma mácula
passível de intervenções do governo por agredir moralmente a família baiana.
Ainda no campo da higienização pública, entendida por muitos como o
caminho para a modernização da cidade, simbologia maior de uma cidade civilizada,
uma nota de jornal, em novembro de 1963, momento em que o ex-Secretário de
Obras Virgildásio Sena, então prefeito da Cidade do Salvador, evidencia mais uma
vez a preocupação com esse aspecto, uma meta singular a ser cumprida: “[...] uma
cidade limpa no esclarecimento da educação de um povo” 126. A nota em letras
grandes era uma estratégia do governo municipal para conscientizar a população
para a civilidade que o momento exigia e, sobretudo, ter uma cidade moderna e
elegante; de certa forma, era sonhar com a imagem de uma cidade norteamericana127, bastante popularizado por aqui através das sessões de cinema na
cidade.
A Cidade da Bahia já nasceu com uma inclinação para ser uma elegante
cidade, marcada por uma paisagem natural singular, com as águas azuis da Baía de
Todos-os-Santos, a topografia, que a fez ser pensada como Cidade Baixa e Cidade
Alta, e a luminosidade dos seus dias, que a faz brilhar em tons dourados entre o
meio e final das tardes, são aspectos que contribuíram de forma significativa para
sua graciosidade.
Além dos aspectos naturais, na Cidade do Salvador, planejada em Portugal e
edificada nos moldes da arquitetura europeia dos séculos XVI ao século XIX, estes
traços arquitetônicos, sobressaindo seu rico barroco, viriam marcar de forma
indelével a cidade e imprimir um requinte ainda percebido nos tempos atuais.
Essa garbosidade da arquitetura é possível de se ver, sobretudo, nos edifícios
religiosos e governamentais erguidos durantes os séculos mencionados. Um bom
exemplo desse tempo áureo em suas edificações é a Primeira Casa de Oração
126
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 5, 28 nov. 1963.
Do ponto de vista midiático, as cidades norte-americanas estavam bastante inseridas no cotidiano
brasileiro por conta dos filmes, todavia, as reformas realizadas em Paris, na segunda metade do
século XIX, foram influenciadoras para a mudança em cidades brasileiras.
127
87
edificada por Thomé de Souza, hoje Igreja de Nossa Senhora da Conceição da
Praia, ou ainda o Antigo Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus, que no século
XIX passa a sediar a Primeira Faculdade de Medicina, fruto das realizações da Casa
Real Portuguesa nos trópicos. São construções que marcam a opulência baiana
ainda em tempos contemporâneos.
A época que nos propomos a analisar (1958-1968) e mesmo na
contemporaneidade, solenidades como formaturas ou casamentos da elite local têm
como palco esses espaços. Dessa forma, tendo em vista os imaginários em relação
ao que é pensado como tradicional e sofisticado, de alguma maneira estabelece-se
uma relação com esse passado, ligado mesmo que por laços tênues com a nobreza
portuguesa que por aqui passou e deixou sua marca, sobretudo nesses espaços
ditos elegantes. Entretanto, no período 1958-1968, as fontes apontam para uma
modernização da paisagem da velha Cidade da Bahia de elegantes sobrados
seculares.
Todavia essa não era a primeira tentativa de transformação e modernização
da Cidade do Salvador. Desde o início do século XX, as pás e picaretas deram o
tom da edificação de um sonho moderno, uma cidade nova, uma cidade moderna e
civilizada, como analisa tão bem Raimundo Nonato da Silva Fonseca128. Era o sonho
de transformar a velha mulata em mademoiselle, referindo-se à velha Bahia que, no
início do século, sonhava em ser uma nova Paris, uma cidade luz, da luz elétrica,
não a dos candeeiros das procissões coloniais e das mulatas mercando seus
quitutes pelas ruas.
Mas uma cidade vive sempre de adequações ao pensamento dos homens e
mulheres de seu tempo. Dessa forma, os agentes de cada tempo edificam
pensamentos em diferentes espaços, sejam eles políticos, acadêmicos ou religiosos,
e vão modificando a paisagem, sobretudo quando entendem que aquela paisagem
não é mais condizente com o tempo vivenciado, por vezes tratada como
ultrapassada ou fora da moda.
128
Fonseca, na obra “Fazendo Fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930,
editado em 2002 pela Edufba, analisa os impactos culturais sofridos pela cidade posteriores à
chegada do cinema na Capital baiana.
88
Alguns setores sociais da Cidade do Salvador nos anos 50 e 60 parecem
compartilhar desse tipo de entendimento, e uma propaganda veiculada pelo Jornal
Diário de Notícias129 nos indica esse aspecto com muita nitidez.
Figura 18 – Comercial Moderno.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
O comercial da Cimento Aratu S.A. (Figura 18) traz em destaque a imagem de
um prédio de vários andares, mostrado em diferentes perspectivas: frontal, lateral,
em meio a um traçado de linhas modernas. Seja na arquitetura do prédio em
evidência ou do design gráfico da propaganda, tudo é moderno, com exceção
apenas do símbolo da indústria produtora do cimento, que lembra a Bandeira do
Brasil, querendo evidenciar uma indústria de tradição, logo, confiável para edificar
monumentos arquitetônicos.
O texto que ocupa a parte menor do anúncio descreve:
“O harmonioso Eldorado é maior prédio de apartamentos do norte do
Brasil. Sua localização e suas linhas ousadas representam bem o
progresso da nossa arquitetura. A sua execução em condições de
segurança e durabilidade foi conseguida com o emprego do cimento
Portland Aratu”130.
O texto, fruto ideológico do marketing baiano que engatinhava no período, já
apontava para as suas reais possibilidades enquanto importante ferramenta de
negócios. Observam-se aí palavras que eram recorrentes nos textos jornalísticos,
129
130
DIARIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 8, 29 jan. 1958.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 8, 29 jan. 1958.
89
assim como no discurso político da época. Dadas as intenções da propaganda, é
possível pensar que chegava ou pretendia chegar a diferentes setores da sociedade
baiana, pois, entre as palavras de efeito, é possível destacar: ‘harmonioso’,
‘progresso’, ‘localização’.
Essa trilogia vocabular é exemplo do eixo edificador da nova Capital Federal,
simbologia maior do período. Concluída em 1960, Brasília nasce de um
compromisso de campanha do Presidente Juscelino Kubitschek, erguida para sediar
a Capital, deslocada da Região Sudeste para o centro do País, sendo utilizada como
um símbolo do progresso e da harmonia arquitetônica vigente, ou seja, uma
arquitetura moderna que apontava para um país de futuro.
Outra palavra que não aparece no texto, mas que, entretanto, está implícita
nas entrelinhas da propaganda, é edificar. Este verbo, que demanda uma ação,
ocupava o centro na ordem de palavras que estavam na pauta do dia no período
1958-1968. Esta palavra, pensada enquanto uma proposta-ação, não estava
descontextualizada, fazia parte da conjuntura nacional vigente, chamada, como já
mencionado, de fase desenvolvimentista.
Na linha de pensamento do período em foco, cuja tônica era progresso e
desenvolvimento, um exemplo ilustrativo é a manchete do Jornal Diário de Notícias
no primeiro dia do ano em 1958, que estampava em grandes letras: “JK: somos uma
nação que caminha com passos resolutos e seguros”131. Ao longo da ampla
reportagem, que salientava partes do discurso do Presidente da República, no início
de um novo ano de mandato, o que se percebe é uma injeção de otimismo no povo
brasileiro; as palavras do presidente reforçam a confiança, a perspectiva de um
futuro melhor para todos, a segurança e um amplo diálogo comercial e de amizade
com todos os países do mundo.
Ainda no discurso presidencial, reforçam-se os laços com a juventude
brasileira e destaca-se o País como uma jovem nação, com reais possibilidades de
prosperidade futura, como expresso no trecho: “[...] somos uma nação jovem que
encara o futuro com serena confiança e se vê alentada apenas pelo rico impulso
vital que a juventude traz às nações como os homens” 132. Na conclusão do discurso,
o presidente bossa nova, assim chamado no texto jornalístico, enfatiza o novo,
reforçando que a nação pode e deve confiar nos dias que se aproximam, revelando
131
132
Id., ibid., p.1, 1º jan. 1958.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1,1º jan.1958.
90
que os dias por vir seriam de ampla expansão comercial e geração de empregos,
logo, dias de prosperidade para todos os brasileiros.
Esse discurso, transcrito nas páginas dos periódicos de grande circulação em
diferentes cidades do Brasil, não era uma novidade. Desde o início de seu governo,
Juscelino, em várias ocasiões, se dirigia à população brasileira com mensagens
otimistas e promessas de um desenvolvimento rápido. Era o sonho de construir uma
nação moderna e próspera em um curto espaço de tempo.
As promessas de JK acabavam por criar uma atmosfera otimista em muitos
brasileiros, e este sentimento geralmente partia daqueles que ocupavam o comando
das cidades e Estados do Brasil. Foi com esse entusiasmo que o prefeito de
Salvador, Helio Machado, se dirigiu aos munícipes em primeiro de janeiro de 1958:
“[...] quando todas as esperanças se renovam, e todos os corações se abrem em
sentimentos de cordialidade, é-me um grato dever saudar os munícipes de Salvador
[... ] desejar-lhes as maiores venturas no decorrer deste exercício”133.
É muito comum nos discursos de quem vivenciou esse período e mesmo nos
textos escritos da época, a evidência de pistas de que o grande diferencial de
Juscelino era sua capacidade de sedução e articulação. Na prática, era conseguir
que diferentes personagens aderissem a suas propostas e planos. Tendo em vista
que a trajetória política de JK tem início no interior de Minas Gerais, lócus em que a
proximidade se dá no corpo a corpo e nas conversas de esquinas, quando ele
ascende à Presidência, chega com uma experiência de proximidade ampla, fator
que influenciará seu contato pessoal com diferentes setores da sociedade brasileira.
Reforçando esse pensamento sobre JK e seu poder de sedução junto ao
povo brasileiro, é pertinente citar as análises do antropólogo Roberto DaMatta
quando se propôs refletir sobre o Brasil e os brasileiros. DaMatta percebe o Brasil
observando a casa, enquanto espaço que congrega pessoas com a mesma
substância e capacidade de reagir em conjunto, e a rua, “[...] essencialmente o
espaço do trabalho e do famoso ‘batente’. Esse ‘trabalho’ popular e biblicamente
concebido como castigo”134. Dessa forma, o estudioso aponta para dois importantes
espaços que são complementares do Brasil.
Essas duas espacialidades, íntimas amigas que se complementam nas
divergências, foram apropriadas pelo político JK com bastante eficácia. Ao se dirigir
133
134
Id., loc. cit.
DaMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p.16.
91
a seus contemporâneos, Juscelino vende-lhes a promessa de uma casa arrumada,
sonho maior do brasileiro das camadas populares; já a rua, dimensão do trabalho,
agora seria aprazível, jardinada, asfaltada e com o “batente” garantido. Era o
discurso certo na hora certa, e o povo sonhou, levado pelo sorriso otimista de JK.
Os sonhos de JK eram embalados por outros acontecimentos que enchiam de
entusiasmo a população baiana e brasileira. Nossa seleção se tornou campeã no
mundial de futebol (1958), no campo musical, a Bossa Nova despontava com uma
sonoridade nova, logo moderna, e os astros e estrelas do cinema enchiam de
utopias românticas as mentes de moças e rapazes.
2.3 IR AO CINEMA: UMA MODA NA CIDADE DA BAHIA
A Cidade da Bahia vivia um momento de pujança cultural e artística desde a
chegada de Edgard Santos à Reitoria da Universidade da Bahia, momento já
denominado de Avant-Garde por Antônio Risério, dada a dinâmica cultural e de
ideias que aqui se instalou. Havia a presença de personalidades de diferentes áreas
do saber, como é o caso de Lina Bo Bardi, Yanka Rudzka, Martim Gonçalves,
Carybé, Agostinho dos Santos, Milton Santos, Walter da Silveira, Pierre Verger,
Vivaldo da Costa Lima, Clarival Valladares, Anton Walter Smetak, Mario Cravo
Júnior, e uma lista imensa de outros com maior ou menor inserção nos campos das
Artes ou das Ideias de um modo geral.
Risério foi muito feliz quando se valeu das palavras de Glauber Rocha para
evidenciar o pensamento reinante desse período, a frase de ordem era “Derrotar a
província na própria província”135, ressaltando a mentalidade do período e a
disposição de muitos e muitas em fazer acontecer diferentes expressões artísticas,
sem precisar deixar a cidade rumo ao Sul ou Sudoeste do País, o que era mais
corriqueiro. Todavia, o estudo histórico de Maria do Socorro Silva Carvalho136, que
dedicou um capítulo a essa questão, denominado “Alegre Bahia”, faz uma análise
criteriosa da cidade no período a que estamos nos referindo, enfatizando as práticas
culturais.
135
Em um artigo, Glauber Rocha usa a expressão “está sendo derrotada na província a própria
província”, conclamando a população baiana a derrotar a linguagem convencional, insurgir-se contra
o tradicionalismo no vestir e aspirar a liberdade de amar (apud RISÈRIO, Antônio. Avan-garde na
Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi e P. M. Bardi, 1995).
136
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962).
Salvador: Edufba, 2003.
92
Carvalho destaca e analisa com apuro duas colunas sociais de relevância no
período, a “Krista”, assinada por Helena Ignez e publicada no Jornal Diário de
Notícias, e “Smart Society”, assinada por Renot, pseudônimo de Reinaldo Marques,
e publicada no Estado da Bahia. Essas crônicas do cotidiano evidenciavam os
principais acontecimentos sociais e culturais da cidade, em muitos casos destacava
as modas e modismos do momento. Dessa forma, os shows, as peças teatrais, os
espetáculos de dança, os concursos de Miss e uma infinidade de belezas femininas
e masculinas fizeram parte das notícias vinculadas, dando-nos uma impressão do
bom momento cultural e artístico que a cidade vivia naqueles dias. Como assevera
Carvalho, era uma alegre Bahia.
Nesse contexto artístico-cultural, nos dias finais de dezembro de 1963, época
própria de badalações na Barra, espaço que era a coqueluche 137 do dia, o Diário de
Notícias destacava mais uma montagem da Companhia Bahiana de Comédias,
tratava-se da peça “A Prostituta Respeitosa”, de Jean Paul Sartre, que trazia no
elenco nomes como Jurema Pena, Reinaldo Nabuco, Mário Gusmão, entre outros.
Sobre a montagem, o jornal publicou: “O espetáculo dirigido por Leonel Nunes,
aborda o problema do racismo nos Estados Unidos, sendo que a ação tem como
palco uma cidade de um Estado sulino norte-americano, onde a discriminação racial
é mais aguda”138.
Coube ainda ao jornal destacar que o espetáculo estaria em cartaz de quarta
a domingo, às 21 horas, na Galeria de Arte da Biblioteca Pública, e enfatizava que à
estreia compareceu um grande número de artistas e intelectuais, além de um
variado público amante do teatro.
Tendo esse texto como fonte, que destaca um variado público e outras
notícias relativas ao teatro baiano, parece-nos que, assim como o cinema, as
produções teatrais também ocupavam um lugar destacado no que diz respeito à
frequência de público. Chama-nos atenção que a montagem tem sua estreia em
pleno verão baiano, sendo encenada durante cinco dias da semana, o que
possibilita pensar que um público considerável prestigiava as performances teatrais
naquele momento. Neste sentido, é bom salientar que a Biblioteca Pública
despontava como um espaço pujante de sociabilidades, local inclusive de
137
Gíria do período usada repetidamente no discurso jornalístico, enfatizando aquilo que se propaga
rapidamente.
138
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 22/23 dez. 1963.
93
demonstração de modas e modismos, frequentado pelos jovens de um modo geral,
sobretudo aqueles ligados às Artes e às Letras.
Todavia, o grande modismo da época era ir ao cinema, pensando modismo
como aquilo que está na moda, e é bom evidenciar que a moda não está reduzida à
roupa, abrange uma diversidade de hábitos cotidianos, para além do uso de
indumentos. Neste sentido, a moda era ir ver as películas nas inúmeras sessões dos
cinemas espalhados pela cidade. Contudo, essa prática não estava restrita à elite
local, o hábito de ver filmes era uma diversão popular, como apontado por Maria do
Socorro Silva Carvalho139. A própria produção de filmes entrou na pauta da
juventude baiana da época, data de 1959 o nosso primeiro filme de longa-metragem:
Redenção, dirigido por Roberto Pires, seguido de outras películas numa fase de
dinamismo cinematográfico baiano, analisada por Carvalho em, A nova Onda
Baiana. Nesse contínuo, anos depois, nosso cinema inauguraria uma nova estética
cinematográfica denominada de Cinema Novo, que priorizava justamente o cotidiano
brasileiro, baiano, e viria influenciar inúmeros realizadores nos tempos posteriores.
Dessa forma, o cinema tem feito parte da cultura soteropolitana, seja no
hábito de frequentar as sessões ou ainda na realização de filmes que mostram
nosso cotidiano e aspectos da nossa história. No final da primeira década do século
XXI, as décadas de 50 a 70 foram revisitadas pela lente do cineasta Edgard
Navarro, rendendo a película Eu me lembro, que, já nos primeiros instantes do
enredo, aponta para a fotografia como uma memória individual e coletiva de valor
ímpar140.
A película poética de Navarro faz um registro da Cidade do Salvador,
revelando muito do seu cotidiano, por esse motivo torna-se um documento de
singular importância. Aspectos pertinentes à relação entre pais e filhos, o diálogo
entre Salvador e o mundo rural, as descobertas sexuais juvenis, as festividades da
vida privada, a ideologia da classe média baiana, a juventude psicodélica, aspectos
da religiosidade baiana, entre outros elementos da cultura do período, estão
presentes no filme.
Sendo a moda e os modismos parte indelével da sociedade, estes também
estão presentes na obra, possibilitando visualizar o uso dos bigodes, dos lenços, das
139
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A nova onda..., op. cit.
No filme, uma voz em off diz que uma das suas primeiras lembranças de infância era uma foto que
ficava na parede da casa dos pais.
140
94
saias pregueadas nas atividades escolares e festivas, dos suspensórios, das
brilhantinas nos cabelos masculinos, dos vestidos tubinhos, das vestimentas infantis
diferentes das roupas dos adultos, das golas femininas imitando as indumentárias
das realezas, das camisetas estilo t-shirt, das calças jeans, dos penteados femininos
para não evidenciar outros.
O filme apresenta um fragmento referente aos anos 60 que é extremamente
simbólico, passível das múltiplas interpretações que a imagem permite. Trata-se do
momento da inserção da televisão na sociedade baiana: o patriarca da família
central da trama, viúvo, assiste com muita proximidade do aparelho de televisão à
transmissão da chegada do homem à Lua; mais atrás, entre a cozinha e a sala,
exatamente no portal da cozinha, uma mulher negra, de vestido tipo chambre e
lenço amarrado na cabeça, ocupando a posição de empregada da casa, cochila
vendo a imagem.
No filme, a cena dura apenas alguns instantes, todavia sua carga simbólica é
ampla: ao tempo em que o homem norte-americano pisa na Lua, revelando um
grande avanço da ciência e da tecnologia moderna, na Cidade da Bahia do mesmo
período, a negra ainda estava na cozinha da família de classe média da região
central da cidade. A cena nos remete aos resquícios de escravidão que, como
escreveu Nabuco, marcaria e se propagaria como se fosse uma religião nos tempos
futuros141.
Ocupando o filme aqui o lugar de fonte, é necessário evidenciar que uma obra
cinematográfica não apenas retrata o lapso temporal em que se passa a trama,
podendo revelar muito sobre o período em que a obra foi realizada. Neste caso, a
retratação da posição subalternizada da empregada negra parece refletir as
discussões contemporâneas sobre as populações afro-brasileiras e o destaque que
ocupa na pauta da intelectualidade brasileira. Dessa forma, o diretor fala por si e
seus contemporâneos através das imagens.
Ainda tendo esse fragmento do filme como eixo de análise, é possível
visualizar que a cena em questão se insere no contexto da dicotomia entre a
modernidade e a tradição, e parece ser um retrato que caracteriza a Cidade do
Salvador no período.
141
NABUCO, Joaquim. Minha formação. São Paulo: Livraria José Olympio, 1976.
95
Entretanto o anseio pela modernidade, por uma inserção maior no mundo
globalizado, era visível. Um exemplo ilustrativo de tal questão se dá justamente
relacionado à projeção de um filme na cidade. A película em questão, hoje
considerada uma obra-prima da cinematografia mundial, é o filme La Strada, do
diretor italiano Frederico Fellini.
No inicio de 1959, um janeiro de altas temperaturas em Salvador, houve uma
calorosa campanha através dos jornais para que o filme entrasse em cartaz. No ato
da sua entrada em cartaz, em 18 de janeiro de 1959, um importante periódico
noticiou: “’A Estrada da Vida’, a obra-prima de Fellini: um clássico do cinema
moderno“142. Logo depois, duas longas e vitoriosas reportagens, em uma delas, o
jornal traçava um perfil minucioso da atriz bolonhesa Giulietta Masina, que vivia a
personagem principal da película italiana e viria a emocionar os soteropolitanos, na
outra comemoravam o sucesso da empreitada:
Depois de uma intensiva campanha por parte da crítica
cinematográfica local, a famosa película italiana “A Estrada da Vida”
vai ser exibida nesta capital. O seu lançamento esteve por mais de
dois anos ameaçados de não se processar pela incompreensão de
nossos exibidores que alegavam ser obra-prima de Frederico Fellini
um filme sem possibilidades de bilheteria, quando isso não é
verdade, posto que em outras capitais a fita em questão não
decepcionou. Finalmente, para satisfação dos fãs do bom cinema, o
Cine Glória estará a partir de amanhã exibindo “La Strada” o que
constituirá num dos grandes acontecimentos cinematográficos do
ano, pois este filme já é tido como o mais premiado em toda a
história do cinema.143
A reportagem acaba por revelar uma faceta da sociedade baiana do período;
depreende-se nas entrelinhas da reportagem sua disposição em estar na “crista da
onda”. O que se pode notar é que o fato de a fita não ter entrado em cartaz na
Capital baiana acabava por desprestigiar a cidade em relação a outras capitais do
País; na mesma notícia, é possível verificar, mais uma vez, o reforço do moderno
quando se refere ao filme, classificando-o como um clássico do moderno cinema.
As possibilidades de ir ao cinema nos anos de 1958 a 1968 eram imensas,
seja pela quantidade de filmes em cartaz ou pela quantidade de salas de cinema
existentes na Cidade da Bahia. Em fins de 1958, a programação geral dos cinemas
aparecia nas páginas do Diário de Notícias, com a manchete chamativa “Onde a
142
143
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador,. p. 3, 18 de janeiro. 1959.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 3, 18 jan. 1959.
96
cidade se diverte”144 e mostrava os seguintes cinemas no centro da cidade: Art,
Capri, Excelsior, Guarany, Glória, Liceu, Popular e Santo Antônio. Em geral, havia
sessões diárias às 14, 16, 18, 20 e 22 horas, com exceção dos cines Popular e
Santo Antônio, que tinham sessões às 14h e às 19h30min.
Quem optasse por outros lugares da Capital, poderia ainda ir ao Aliança, que
ficava na Baixa dos Sapateiros, ou ainda às seguintes salas de exibição espalhadas
pela cidade, tais como Itapagipe, Bonfim, São Caetano, Liberdade, Oceania, Rio
Vermelho e Amparo. As salas ofereciam duas ou três sessões diárias, mostrando
diferentes películas, havendo ainda as sessões duplas que possibilitavam ao cliente
ver duas fitas por um único ingresso.
O cinema como temática era assunto constante nas páginas do Diário de
Notícias, seja em reportagens sobre os ícones do cinema ou críticas especializadas,
seja nos textos de Hamilton Correa na coluna “Cinema”, que semanalmente escrevia
sobre os lançamentos da semana. Sua coluna era responsável ainda por
anualmente divulgar a eleição dos melhores filmes escolhidos por um júri
especializado e por enquetes realizadas.
Em janeiro de 1961, sua coluna divulgava os resultados referentes ao ano de
1960, excluindo filmes que foram projetados apenas em festivais. Dessa forma, a
lista contemplava aqueles exibidos no circuito comercial da Cidade do Salvador e
vistos por homens e mulheres de diferentes condições sociais. A lista do colunista
Hamilton Correia aponta a diversidade cinematográfica no que tange às
nacionalidades e certamente às características estéticas das fitas que eram
projetadas na cidade. Sendo o cinema influenciador de hábitos e costumes, que
contemplam do vestir ao fumar, perpassando pelo dançar e a maneira sedutora de
olhar alguém, percebe-se que a gama de influências externas que a cidade recebia
nesse período era vasta, oriundas da França, Itália, Estados Unidos, Rússia,
Espanha, como se pode observar na lista abaixo:
1 – A Doce Vida, Itália 2 – Quando Voam as Cegonhas, Rússia 3 –
Almas em Leilão, Inglaterra 4 – Um Corpo que Cai, EEUU 5 – Onde
Começa o Inferno, EEUU 6 – Ascensor para o Cadafalso, França 7–
Quero Viver, EEUU 8 – Deus Sabe Quanto Amei, EEUU 9 – A Marca
da Maldade, EEUU 10 – Onde o Mundo Acaba, Espanha.145
144
145
Id., ibid.,. p.5, 25 nov. 1958.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 6 jan. 1961. Cad.2, p. 5.
97
A presença dos astros e estrelas nas páginas do periódico local era
costumeira, logo, estes e estas faziam parte do cotidiano de muitos baianos. Podese pensar que a cultura oral prestava o serviço de divulgar os ilustres nas diferentes
camadas sociais. Assim o nascimento do bebê Nicolas, filho da atriz Brigite
Bardot146, o suposto romance entre Yves Montand e Marilyn Monroe147, o decote
rendado de Sofia Loren148 iam-se misturando entre as notícias de aumento dos
preços dos gêneros alimentícios, asfaltamento da velha província ou mesmo o
encalhar de uma baleia em Itapuã149, criando uma proximidade quase íntima entre
os soteropolitanos e estes, fazendo parecer que eram seus vizinhos de rua.
No caso do decote da atriz italiana Sofia Loren (Figura 19), o texto apontava:
“Uma fina renda negra é usada na confecção da blusa do vestido de crepe, também
negro, de profundo decote que Sofia Loren usa na hora dos coquetéis. Veremos a
linda estrela italiana, nessa linda toilette no filme da Paramount ‘Mulher Daquela
Espécie’”150. Neste caso, a escrita e a imagem complementavam-se para dar
destaque ao tipo de tecido usado na confecção do vestido, o tipo de corte a ser feito,
acompanhado do conselho de qual o momento apropriado para o uso. Este conjunto
de informações parece ter claras intenções de influenciar as leitoras na realização
de seus modelos nas costureiras locais. Dessa forma, elas poderiam se tornar uma
mulher “daquela espécie”, sofisticada e elegante. Não se pode desprezar, tendo a
imagem como contribuição, que o uso das joias seria uma forte aliada para se
cumprir tais anseios de requinte.
Dessa forma, entre outras tantas da mesma natureza, a cultura do cinema iase consolidando no imaginário dos habitantes da Cidade do Salvador, possível de
ser percebido em vários exemplos que trataremos no próximo capítulo.
146
Id., ibid., p.1, 12 jan. 1961.
Id., ibid., 14/15 ago. 1960. Cad.3, p. 8.
148
Id., ibid., p.3, 23 fev. 1960.
149
Id., ibid., p.1, 15 jul. 1960.
150
Id., ibid., 23 fev. 1960.Cad.2, p. 3.
147
98
Figura 19 – O vestido da atriz Sofia Loren.
Fonte: Diário de Notícias (1960).
Por vezes, estes seres da telona mágica, apareciam em carne e osso na
cidade, tornando mais “estreita a relação” pelo menos no imaginário de muitos,
sobretudo das moças da Capital baiana. Foi assim em dezembro de 1961, quando
um presente de Natal adiantado agraciou muitas dessas moçoilas: a presença do
ator americano Tony Curtis em Salvador (Figura 20). O evento produziu um breve
tumulto na cidade. “Foi o acontecimento social do fim de semana, provocando nas
fans suspiros de admiração e ameaças de desmaios”151.
A mesma reportagem comentava o almoço que o Governador do Estado
ofereceu ao galã e abordava que este provou batida de caju e de maracujá,
salientando que, pelo seu entusiasmo com as especiarias baianas, levou duas
garrafas para beber em Nova York. O texto acompanhava uma grande fotografia,
mostrando o trânsito do astro pela cidade. Na imagem que ilustrava a notícia, vê-se
o jovem ator em terno claro e gravata escura no momento em que entrava em um
automóvel, ao fundo uma pequena multidão, principalmente feminina, o observa e
algumas fãs parecem correr em direção ao astro de Hollywood.
151
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1, 5 dez. 1961.
99
Figura 20 – Tony Curtis em Salvador.
Fonte: Diário de Notícias (1961).
Multidão na parte central da cidade era uma constante. Segundo estimativas
de Milton Santos152, em fins dos anos 50, o sistema do Elevador Lacerda,
responsável pela ligação entre a Cidade Baixa, ponto importante do Comércio, e a
Cidade Alta, espaço comercial, de serviços e sociabilidades, movimentou durante o
ano de 1957, 37,7 milhões de passageiros. Santos também nos informa que “[...] o
comércio, os gabinetes médicos, os salões de beleza, outros ‘serviços’ e também o
simples trottoir elegante dos fins de tarde na Rua Chile atraem uma multidão de
pessoas que se sucedem em um vaivém incessante”153.
Buscando dar uma feição detalhada do centro da cidade, Santos chama a
atenção para a concentração numerosa de pessoas nas filas dos cinemas e aponta
números que vão de 30 a 35 mil pedestres transitando entre a Rua Chile e o Taboão
nos finais de tarde, entre as 17h30min e 18h30min, retornando aos seus lares para a
manutenção da tradição de jantar em família. Detalha também o movimento que se
instala depois das 20 horas, destacando as pessoas que simplesmente se deslocam
para olhar as vitrines.
152
SANTOS, Milton. O Centro da Cidade do Salvador: estudo de Geografia Urbana. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo; Salvador: Edufba, 2008.
153
SANTOS, Milton. O Centro da Cidade do Salvador …, op. cit., p.126.
100
Todas as informações que o geógrafo traz à luz são de suma importância
para se pensar como havia um dinamismo pulsante e crescente na cidade ao longo
da década de 60, gerando inclusive inúmeros problemas, sobretudo no que diz
respeito ao trânsito e ao transporte de passageiros. Inúmeras medidas vão ser
tomadas nos anos seguintes, na tentativa de solucionar esses problemas urbanos,
constituindo inclusive uma marca na gestão do prefeito nomeado pós-golpe militar
de 1964, Antônio Carlos Magalhães, que realizará obras que procurarão solucionar
essas mazelas: aumento de frota de veículos, asfaltamento e alargamento de
avenidas e criação das avenidas de vale.
Como as mudanças no cenário de uma cidade não acontecem com a rapidez
como se pensa e se anseia, os apontamentos de Milton Santos, no que tange ao
cotidiano da cidade, são reveladores para pensarmos os fins dos anos 50 e boa
parte da década de 60. Nesses escritos históricos e geográficos, Santos enfatiza
uma parte da vida noturna soteropolitana do período, revelando uma característica
típica da modernização das cidades, ou seja, as mazelas, oriundas geralmente das
desigualdades sociais.
No momento em que as luzes das vitrines se acendem para observação
noturna, nesse contexto citadino modernizador, as vitrines despontam como objetos
do desejo, de contemplação e de adequação às tendências de modas urbanas.
Surgem também outros personagens, ao passo que os trabalhadores e a dita família
baiana vão-se recolhendo a seus lares. Segundo Santos, depois das 22 horas:
prostitutas, vagabundos e marginais apareciam em ruas mal iluminadas, comércios
de frutas e comidas aquecidas em fogões improvisados tomavam os passeios e a
polícia afrouxava sua vigilância. Tudo isso acontecia na Cidade Alta.
Esse cenário soteropolitano, que tinha as luzes das vitrines no plano central e
os marginalizados na periferia, se distancia da cidade que se sonha, a cidade
moderna. Na urbe idealizada, as mazelas sociais desaparecem, ou pelo menos não
aparecem na sua parte central, espaço maior das sociabilidades, das modas e das
vitrines iluminadas.
101
2.4 CANTORES E CANTORAS: SUAS MÚSICAS, SUAS MODAS E AS
FESTIVIDADES BAIANAS
Os lugares de uma cidade implicam indicações de estabilidade, como
sinalizado por Michel de Certeau154, todavia, esses lugares, ao longo de um dia,
podem ter diferentes práticas culturais. Uma mesma praça de uma cidade moderna
poderá ser praticada de diferentes formas, podendo inclusive ir de um extremo social
a outro, tendo simplesmente as horas como objeto transformador. A praça principal
de uma urbe moderna qualquer poderá ser, no período diurno, abrigo para passeios
de casais de namorados e brincadeiras infantis, e, na escuridão notívaga, ser palco
para os marginalizados citadinos realizarem suas estratégias de sobrevivência,
inventando assim seus cotidianos.
Nesse trajeto do cotidiano da cidade e suas práticas culturais, não muito
distante da parte central da Cidade do Salvador e já apontando para uma dinâmica
de extensão da cidade em relação aos espaços de diversão, as luzes do Teatro
Castro Alves ou da sua Concha Acústica ou ainda as da Boate do Hotel da Bahia, no
Campo Grande, se acendiam, dando espaço para festas, shows, desfiles de
cantores e cantoras, nacionais e por vezes internacionais, configurando-se como
importantes espaços de sociabilidades baianas.
Nesses
acontecimentos
sociais
frequentados,
sobretudo
pelas
elites
econômicas e intelectuais da Soterópolis, a roupa ocupava a primazia. Percebemos
que as raízes dessa preocupação com a aparência estão fincadas nos tempos
coloniais, pois já neste período as roupas portadas pelas elites cumpriam o papel de
distinção, selecionando os habitantes dos sobrados do povo dos mucambos
155
. Só
em meados dos anos 60, mediante razões que serão tratadas adiante, as roupas
vão ganhar outros significados, podendo inclusive ser bandeira de protesto.
Muito dessa revolução, que se deu por ideologias e materializou-se através
das indumentárias e dos modismos, foi influenciada por cantores e cantoras,
inseridos no cotidiano local pelas rádios e, posteriormente, pela televisão. Dessa
forma, os cabeludos viraram presença constante nas ruas da cidade, meninas ditas
“de família”, para as quais o recato era valoroso, começavam a mostrar suas pernas.
154
CERTEAU, Michel. A Invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
A atenção dispensada nos tempos coloniais às indumentárias, apontadas por Gilberto Freyre, será
tratada no terceiro capítulo, no qual as fontes orais complementam algumas indicações sugeridas
pelo sociólogo pernambucano.
155
102
Era, como cantou Roberto Carlos, as ‘garotas papo-firme’, que adoravam uma praia
e só andavam de minissaia, mandavam tudo pro inferno, logo, rebeldes e
vanguardistas, e diziam “que isso era moderno”156.
De fato, tais posturas e atitudes apontavam para outro momento brasileiro e
baiano, mas, como já dito, isso só se tornaria marcante em meados dos anos 60.
Em fins dos anos 50 e início dos anos 60, a coqueluche na Cidade da Bahia era ir à
Boate do Hotel da Bahia e ser assunto na Coluna “Krista”, de Helena Inez que,
segundo Carvalho157, contava com a colaboração de Glauber Rocha, então
namorado da jovem.
Era na coluna social do Diário de Notícias que havia a cobertura das
festividades mais badaladas da cidade, seja na esfera pública ou na privada.
Naquela página desfilavam mulheres elegantes, homens charmosos e festas que
marcaram a cena moderna da cidade. Mas não deixava de fora as compras de uma
senhora da sociedade local, as viagens de moças e rapazes da elite ou mesmo a
aquisição de um carro novo por um playboy baiano, que desfilava com este no Farol
da Barra. Tudo era assunto para o colunismo social da “província”.
A notícia maior no mês que começava a primavera de 1958, era a presença
de duas renomadas cantoras do Rio de Janeiro em solo baiano. Nos primeiros dias
de setembro daquele ano, o Diário de Notícias anunciava: “Radio Sociedade da
Bahia: Grandiosa temporada artística com a maior intérprete de samba, diretamente
do Ginásio Teatro do Grupo SESC-SENAC Orlando Moscozo, hoje, amanhã e
sábado: Linda Batista, cantora exclusiva das Emissoras Associadas do Brasil”158.
Linda Batista, que nasceu Florinda, era naquele momento uma cantora de
grande projeção nacional. O rádio desde o final dos anos 30 já havia inserido a
artista na cultura musical brasileira e cumpria o papel de divulgar nomes como o
dela e de outros tantos e tantas. Importante lembrar aqui que a época era das
Rainhas do Rádio, que, além de divulgar musicalidades, semeava disputas e
acalorava legião de fãs pelo Brasil afora, e Salvador não estava fora deste contexto.
Na propaganda citada, Linda Batista é destacada como cantora de samba. O
samba em questão é o samba-canção de que a intérprete dava conta com maestria.
É bastante possível que a “maior interprete de samba” tenha executado, para os
156
É PAPO FIRME. Renato Correa; Davidson Gonçalves. Roberto Carlos. Lado B, CBS, 33442, 1966,
1 Compacto.
157
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A nova onda baiana…, op. cit.
158
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 7, 6 set. 1958.
103
presentes e ouvintes locais, seu sucesso daquele ano, que era “Calúnia”, de
Lupicínio Rodrigues e Rubens Santos159. Na época, fazia parte também de seu
repertório a canção “Risque”, de Ary Barroso, sucesso anos antes, que dizia:
“Risque meu nome do seu caderno, pois não suporto o inferno de nosso amor
fracassado. Deixe que eu siga novos caminhos, em busca de outros carinhos.
Matemos nosso passado”160. No samba-canção, espécie de canção de ‘dor de
cotovelo’, todos os fragmentos apontam para outro momento feminino, quando fala
da busca de outros carinhos, de matar um passado.
Ainda no presente setembro de 1958, outro nome singular visitava a Bahia:
“Dóris Monteiro, a graciosa ‘Rainha do Rádio’ exclusiva das emissoras associadas e
Televisão do Rio de Janeiro, estará cantando para nós ainda esta semana, dando
início a uma sensacional temporada, através dos microfones da Rádio Sociedade da
Bahia”.161
Figura 21 – A graciosa Rainha do Rádio.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
159
CALÚNIA. Lupicínio Rodrigues; Rubens Santos. Lupicínio Rodrigues Eu e o Meu Coração: Linda
Batista. Faixa 18. Revivendo Músicas, 2001, 4 CD.
160
RISQUE. Ary Barroso. Linda Batista. RCA Victor, 80.1080-B, 1953, 78 rpm.
161
Id., ibid., p. 1, 23 set. 1958.
104
No anúncio do jornal, possível de ser visualizado na Figura 21, a cantora, de
feições bem joviais, traja um possível vestido (ou blusa) “bem comportado”, típico do
momento e comumente usado por donas de casa em filmes norte-americanos. O
destaque se dá por apresentar certo brilho, perceptível mesmo na fotografia em
preto e branco. A maquiagem é sóbria e as sobrancelhas são bem delineadas, algo
bem comum e que seguia o padrão estético da época, sobretudo quando se tratava
de uma Rainha do Rádio.
Esse tipo de evento, geralmente patrocinado pelas rádios ou grandes
empresas, era comum em Salvador, e nele o artista se apresentava para um público
local e tinha seu espetáculo transmitido pelas ondas do rádio, podendo ter um
enorme alcance, importante para difundir seu trabalho. Durante o período de 1958 a
1968, inúmeros astros e estrelas da canção nacional desfilaram pelos palcos da
Cidade do Salvador e estiveram nas páginas do Diário de Notícias. Podemos
destacar, entre outros: Jamelão, Marciene Costa, tida como a voz de ouro ABC de
1958, Maru e Marilda, Risadinha, Valmira Carvalho, Miltinho, Ary Cordovil, Ivete
Garcia, Walter Levita, Banda Canecão, Jupira e suas Cabrochas, dita as melhores
coristas do Rio de Janeiro, e Zé Kéti.
Mas não apenas as audições de rádios estavam na pauta do cotidiano festivo
da cidade. A julgar pelas notas do Diário de Notícias, a Boate do Hotel da Bahia em
muitos momentos era a casa que cumpria o papel de trazer atrações musicais para
diversos tipos de eventos festivos. Como já mencionado anteriormente, era uma
coqueluche e assim buscava atrair frequentadores através do periódico local:
“Freqüente a Boite do Hotel da Bahia, os melhores cartazes, freqüência de 1ª ordem,
a melhor orquestra”162.
As orquestras ainda não haviam tocado os primeiros acordes, mas já era
fevereiro de 1959 e a garbosa casa assim noticiava suas festividades momescas: “4
Grandes Bailes de Carnaval, Carmem Costa, a grande cantora popular, inaugurará,
amanhã, a folia de momo na elegante boite” 163. Carmen Costa, nascida em 1920,
era então uma mulher de menos de 40 anos e esbanjava carisma e elegância
possível de se ver na foto que ilustrava a propaganda (Figura 22). Na fotografia, ela
veste uma camisa de mangas compridas, provavelmente branca ou de outra cor
162
163
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 3, 7/8 jan. 1962.
Id., ibid., p. 4, 6 fev. 1959.
105
clara, tem os punhos virados e o abotoamento embutido, não permitindo ver os
botões.
Na parte inferior da foto, sendo ela de meio busto e não corpo inteiro, é
possível ver uma calça ou saia em tom mais escuro. Usa brincos arredondados
médios e sua maquiagem é bastante suave na sua pele negra, quase não se
percebe, o destaque se dá pelo batom mais rubro e as sobrancelhas delineadas,
bem finas, e sua posição levemente inclinada para o lado, que lhe imprime uma
faceirice bastante singular.
Figura 22 – A grande cantora popular.
Fonte: Diário de Notícias (1962).
É bastante possível que, durante as apresentações da carioca na folia baiana,
ela tenha cantado seu grande sucesso do período e que, posteriormente, viraria um
clássico dos carnavais de salão: “Cachaça não é água”, de Mirabeau Pinheiro, nele
se canta: “Você pensa que cachaça é água, cachaça não é água não, cachaça vem
106
do alambique e água vem do ribeirão”164. Este tipo de baile na boate, que trouxera
inclusive uma cantora carioca para sua animação, de certa forma soava como uma
novidade ou mesmo uma coisa moderna.
No período em análise, as festividades carnavalescas na cidade eram nas
ruas e também em diversas agremiações recreativas, que se esmeravam em realizar
bons bailes, tanto no que diz respeito à decoração como nas atrações para
animação dos bailes. O periódico Diário de Notícias aponta para uma tradição em
relação aos bailes de carnaval nos grandes salões, havendo dias específicos e
locais para o folião se divertir na folia de Momo: “[…] os bailes obedeceram à
tradição: o sábado foi da Associação, domingo, do Iate, a segunda do Bahiano e a
terça do Fantoches. Clima de ordem e tranqüilidade”165.
A mesma reportagem aborda o impacto brutal da carestia, cada vez mais
asfixiante dizia, e a falta de animação de outros tempos, ressaltando o clima de
tranquilidade que reinou durante a festa. O texto não se esqueceu de enfatizar que o
“bom carnaval foi nos clubes” e nas “ruas deixou a desejar”, por fim concluía: “[…] o
bahiano brincou mais do que se previu. Saiu às ruas nos três dias, dando-lhe uma
movimentação que, se não foi das maiores, entretanto não descaracterizou o tríduo
momesco”.166
No texto-resumo sobre o carnaval em fins dos anos 50, alguns aspectos do
cotidiano baiano podem ser percebidos, sendo alguns relevantes: primeiro diz
respeito à inflação, que já na própria gestão de Juscelino Kubistchek começa a dar
sinais e que, na década seguinte, seria crescente; outro diz respeito à tranquilidade
na cidade, existente mesmo em dias de grande concentração de pessoas que
caracteriza o carnaval. Este aspecto que dialoga com a segurança vai ter
modificações ao passo em que a cidade vai-se modernizando e as mazelas sociais
vão aumentando.
Por último e não menos importante, o aspecto do carnaval de rua, “[…] que
deixou a desejar”, semeando desde esse momento a ideia da festa privada como
sinônimo de uma festa melhor, mais seletiva. Nesses espaços, poderia, seguindo a
164
CACHAÇA NÃO É ÁGUA. Mirabeau Pinheiro; Lúcio de Castro; Heber Lobato. Cachaça/Colé:
Carmem Costa. Copacabana, 1953, 78 rpm.
165
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 12 fev. 1959.
166
Id., loc. cit.
107
lógica do discurso jornalístico, ser mais agradável, logo mais feliz na euforia dos três
dias. Em suma, o discurso do jornal vai contribuir para a segregação social em uma
cidade que historicamente aparta pobre e rico desde sua fundação.
2.5 O PAPO É MISS BAHIA: CONCURSOS, DESFILES E OUTRAS FESTIVIDADES
Como apontamos anteriormente, o cotidiano de uma cidade, seus lugares e
suas práticas culturais, ao longo de um dia ou mesmo ao longo de um ano, vão
sofrendo transformações diversas, e os dias de carnaval constituem-se como um
bom exemplo. Importante salientar que os lugares da cidade serão praticados nestes
dias seguindo outras dinâmicas, pois a maneira como se fala, do que se fala, o que
se come, como se dança, o que se veste, o que se bebe, tudo é motivado por outras
lógicas e outras euforias. Uma espécie de caricatura ritual, seguindo as lições de
Roberto DaMatta167. Nesses dias, na dramatização pertinente ao momento, é
possível um malandro se tornar herói ou mesmo um estivador, mediante suas
indumentárias, virar um rei africano com toda a opulência que o papel social lhe
confere.
Seguindo os apontamentos de DaMatta, uma vez passada a euforia do
carnaval, “[...] os eventos que fazem parte da rotina do cotidiano chamado no Brasil
de dia-a-dia ou simplesmente ‘vida’”168, eram retomados, sendo intermediados até o
próximo carnaval por outras festividades, sejam elas uma festa religiosa, um desfile
cívico ou um concurso de Miss. São as festas, então, momentos extraordinários,
marcados pela alegria e por valores considerados positivos. A rotina da vida diária é
que é vista como negativa169.
Depois dos três dias de folia, confetes e serpentinas eram varridos, e os
soteropolitanos católicos entravam no período da Quaresma, momento marcado por
missas e orações, cujo ponto alto é a Sexta-Feira Santa. Segundo a folclorista
Hildegardes Viana170, era um dia em que o andar em casa era tímido, hábitos como
varrer a casa e lavar pratos eram abandonados em sinal de reverência ao Cristo
morto, era a tradição. Uma notícia da época não deixa dúvidas:
167
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio
de Janeiro: Rocco, 1997.
168
Id., ibid., p. 47.
169
Id., ibid., p. 52.
170
VIANA, Hildegardes. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador: Fundação Cultural
do Estado da Bahia, 1994.
108
O rádio religioso guardou com respeito à Sexta-Feira Santa – Já não
era um dever, porém obrigação o rádio da Bahia, fiel aos princípios
religiosos que norteiam os povos, guardar em silêncio o dia maior da
Quaresma, mostrando também que o rádio é humano e por isto,
religioso, católico e vitorioso por ser, antes de tudo, legislador das
belas ações, configurado no respeito e na subordinação.171
Nas entrelinhas da notícia, é possível pensar que as práticas culturais
católicas estavam intimamente relacionadas ao cotidiano da cidade, aos seus
aspectos tradicionais, passíveis, inclusive, de conter a velocidade de elementos
relacionados ao novo, ao dito moderno, neste caso as emissoras de rádios locais.
Essa cultura tradicional estava presente também no âmbito privado, como já
sinalizado, penetrando em um espaço íntimo, que é a cozinha dos lares baianos.
No dia chamado de Sexta-Feira Santa, nas casas das camadas populares e
das elites locais, se realizava uma espécie de banquete, no qual se aboliam carnes
vermelhas, e o peixe e outros frutos do mar ganhavam destaque, acrescidos do
dendê, da castanha, do amendoim e do feijão de leite. Ainda nesse dia, pensado
como sagrado para muitos, a junção da cultura portuguesa, branca, católica, e da
africana, negra, era e ainda é percebida na mesa baiana do almoço.
No tocante a esse aspecto, era o momento de exterioridades e indumentárias,
um dia de sociabilidades, pois na Capital da Bahia fazia parte dos rituais deste dia
maior, acompanhar a procissão do Senhor Morto pelas ruas centrais, com roupas
apropriadas para a ocasião solene, seja por parte do clero ou dos fieis pertencentes
ao ritual católico. Neste dia a ‘roupa de ver Deus’ era usada por muitos (as), era um
dia especial, logo exigia uma roupa especial, não uma roupa do dia a dia, uma roupa
dos dias de trabalho ou da vida, como assinala DaMatta.
Nos dias de procissão, que era uma espécie de desfile a céu aberto, o
esmero poderia ser maior, dialogando sempre com o respeito que o evento religioso
requeria. Dessa forma, as mulheres evitavam decotes ou mostrar os braços, e o uso
do véu sobre a cabeça era um hábito de muitas senhoras ou mesmo das jovens.
Quanto aos homens, o uso do terno em cores sóbrias era bastante comum ou calça
com camisas de mangas compridas, sobretudo os mais jovens. Os jornais da época
sempre destacavam esse evento, evidenciando a presença de milhares de pessoas
e a importância dada ao acontecimento religioso.
171
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 17/18 ab. 1960. Cad. 3, p. 7.
109
Todavia, a ‘roupa de ver Deus’, neste caso pensada como a melhor roupa do
indivíduo ou a domingueira, na maioria das vezes era destinada às atividades de
lazer: festas privadas, idas ao cinema, namoros, bailes e outras sociabilidades.
Dentre essas, uma festividade destacável eram os concursos da beleza feminina,
sobretudo o concurso de Miss Bahia, que, na lógica do período, era o ápice deste
tipo de festividade. Cabe salientar que havia outros concursos, mas sem a mesma
pujança, a exemplo do Rainha Secundarista, Rainha do Carnaval, Rainha dos
Clubes Recreativos e Glamour Girls.
Entretanto, a julgar pelas notícias veiculadas no periódico pesquisado durante
os meses de abril a junho, a cidade era tomada pelo assunto do concurso de Miss,
como se dizia na época, e o jornal reproduzia: o papo era Miss Bahia. Para as
mulheres, dada a aparição constante das candidatas nos jornais, era um momento
de atualização das roupas, dos penteados, das maquiagens, que estas acabavam
por trazer para a pauta do dia; para os homens, era o momento propício para
contemplar a beleza feminina e esperar para ver as misses na passarela, inclusive
em trajes de banho, que constituía uma novidade no período. Viana, em obra já
citada, ao rememorar o uso das vestimentas íntimas masculinas e femininas e as
conotações morais que as cercavam, as denomina de trajes menores e aponta que
as cuecas derrotaram as ceroulas, ainda usadas por muitos nos anos 50.
É bom salientar que, no período 1958-1968, o corpo feminino era pouco
mostrado para apreciação masculina, e muitos homens só tomavam conhecimento
do corpo da mulher com quem casaria no momento da noite nupcial, também
chamada de “Lua de mel”. Dessa forma, imaginar e poder visualizar ao vivo o corpo
de uma mulher em trajes menores era ambicionado por muitos homens de diferentes
camadas sociais. Nessa conjuntura, o corpo feminino a que se tinha acesso era o
das prostitutas, que cumpriam importante papel social.
Entretanto, até o dia do concurso maior local, o Miss Bahia, uma longa
divulgação era empreendida, justificando assim a quantidade de pessoas no ato da
festa da escolha. Pelo que se pôde apurar na pesquisa, era uma festa que agregava
a família baiana, marcadamente as famílias oriundas das classes médias e altas,
pois a própria forma de acesso já era seletiva, dado o custo da compra de uma
mesa para quatro pessoas.
Esse tipo de festividade, no qual a beleza e o corpo da mulher eram o tema
principal, não se encerrava no desfile de Miss Bahia, pois havia uma continuidade
110
com o Miss Brasil e o Miss Universo, também amplamente divulgados no Diário de
Notícias, mantendo, desse modo, o assunto sempre na pauta do dia. No âmbito
local, diversas festas com essa mesma motivação eram realizadas ao longo do ano,
podendo ter a participação de uma miss ou mais, seja em desfiles de modas ou
ainda festas que, de certa forma, reproduziam o desfile de Miss Brasil ou Miss
Universo. A Figura 23 faz parte de uma dessas festividades.
Figura 23 – Maria Yêda a rainha da beleza.
Fonte: Diário de Notícias (1963).
Em dezembro de 1963, o Hotel da Bahia trazia para uma noite de Rainha da
Beleza a Miss Universo, a gaúcha Maria Yêda Vargas. O Diário de Notícias assim
destacou o festejo: “Os baianos terão a oportunidade de assistir, amanhã, na festa
que será realizada no Hotel da Bahia, o desfile da Miss Universo 1963, Srta. Maria
Yêda Vargas que aparece na foto com os trajes que se apresentará”172·. A mesma
notícia destacava ainda que os lucros seriam revertidos em prol do Natal das
172
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 2, 12 dez. 1963.
111
Crianças Pobres, e a imagem já induzia os leitores a pensarem as possibilidades de
um espetáculo de beleza em traje de noite, traje típico e traje de banho. Em suma,
um espetáculo ímpar personificado na figura de uma mulher e sua beleza.
Nesse período e mesmo na atualidade, são comuns as festas que têm a
beleza como tônica ou mesmo desfiles de modas serem associados a ações
filantrópicas, agregando dessa forma outro valor ao evento que, para muitos, poderia
ser visto como fútil. Essa estratégia não deixa de agregar um capital social ao
evento, podendo inclusive justificar a cobrança de valor mais elevado pelo acesso,
sendo, supostamente, o lucro maior do evento destinado aos pobres e famintos.
Para além dos pobres e famintos, as misses de diversas maneiras se
envolviam em diferentes tipos de festividades; ora eram convidadas para abrilhantar
os momentos de uma partida de futebol, dando o pontapé inicial, ora participavam
de um evento em abrigos ou orfanatos. Muitas vezes, as festividades da vida privada
das “rainhas da beleza” também ganhavam notoriedade através das páginas dos
jornais e revistas, mediante a atenção dispensada ao tema no período.
Foi assim em junho de 1968. Naqueles dias Marta Vasconcelos, no auge dos
seus 20 anos, vivia os momentos iniciais da sua trajetória de deusa da beleza. Havia
sido eleita a Miss Bahia e o Jornal Diário de Notícias destacava a comemoração do
seu vigésimo aniversário: “Bela como nunca Marta Vasconcelos, Miss Bahia 68,
cortou o bolo comemorativo dos seus 20 anos de encantadora jovialidade, na
carinhosa recepção que lhe foi oferecida, ontem na sede do Clube de Bridge” 173.
Junto à notícia, como era de praxe ao se tratar de notícias referentes ao
universo das misses, uma imagem ilustrava a reportagem (Figura 24). Na foto, a
jovem encantadora, como o próprio texto ressaltava, trajava um vestido tipo túnica
de mangas longas transpassado, algo que lembrava um quimono japonês, tendo
uma abertura na parte superior com babados e um laço que prendia as duas partes;
o tecido certamente era seda ou cetim, tecidos usados na época com grande
frequência em vestidos de festa. A fotografia revela também um cabelo
relativamente longo e brilhoso, atributo que certamente ajudou a morena a se tornar
a mais bela baiana de 1968.
173
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1, 19 jun. 1968.
112
Ao lado, na composição e destacado na notícia, aparece sua mãe, que usa
um vestido tubinho em tom escuro e no pescoço um colar de pérolas, ostentando um
cabelo curto, adequado para mulheres com mais idade.
Figura 24 – Aniversário da Miss.
Fonte: Diário de Notícias (1968).
Toda a composição da mãe, no que diz respeito à vestimenta, aos acessórios
e aos cabelos, estava em plena sintonia com as tendências da moda daquela
década, sendo inclusive o vestido tubinho considerado uma peça-chave174 de moças
e senhoras do período. Podia ainda ter variações quanto ao comprimento e às
tonalidades, que poderiam ser em tons mais sóbrios e clássicos ou cores mais
vibrantes, como o amarelo ou rosa shocking. No final da década de 60, a mesma
peça já era vista, nas revistas de modas, em tecidos estampados, sobretudo com
motivos psicodélicos, geralmente usados pelas mais jovens.
O vestido da Miss Bahia que, antes do final do ano de 1968, seria eleita a
mais bela do universo, estava em plena sintonia com as tendências do período.
174
O termo usado aqui se refere àquelas peças do vestuário consideradas atemporais e passíveis de
múltiplas combinações, podendo ser um blazer, um vestido clássico, um sapato preto, uma peça de
veludo e outras
113
Gilda Chataignier175, analisando a História da moda no Brasil, destaca os tipos de
vestidos usados na década de 60, entre eles enfatizando os trapézios, os tubinhos,
os românticos com babados ou plissados e, ainda, os vestidos tipo túnica, entre
outros modismos da época. A julgar por essa imagem e outras veiculadas pelo
mesmo periódico, é possível constatar que muitas destas moças tinham plena
consciência do lugar social que ocupavam e as possibilidades de formação de
opinião, principalmente no que dizia respeito às vestimentas e a outros elementos
pertinentes ao campo da moda.
A mesma notícia da data natalícia da senhorita Vasconcelos já apontava para
uma continuidade dos festejos, posto que o texto anunciava um almoço no dia
seguinte no Hotel da Bahia, oferecido pelo Rotary Clube Centro e a data da partida
da jovem para a Guanabara para participar do Concurso de Miss Brasil. Nota-se,
ainda, que a agenda de uma Miss era repleta de “acontecimentos sociais”; por
vezes, estes mesclavam a dimensão da vida privada e a da vida pública, deixando
claro que as pleiteantes estavam inseridas nas elites locais, posto representarem
associações ou outras agremiações a ela relacionadas.
A elite local, com a adesão de muitos jovens oriundos do interior cheios de
talento e sedentos em agitar a vida cultural “morna e repetida” da Capital, como nos
sinaliza Freitas176, realizavam inúmeras outras festividades ao longo do ano, na
tentativa de transformar o morno em algo mais quente. Dessa forma, os dias de
inverno e os meses de verão da cidade iam incorporando práticas culturais urbanas
comuns às principais cidades brasileiras, ao passo que ia recuperando, em parte,
certo destaque nacional.
A Cidade do Salvador vivia, entre o final dos anos 50 e toda a década de 60,
de certa forma, o seu apogeu renovador, sobretudo, nas atividades culturais. Nos
espetáculos, nas festas, nas reuniões de cineclubes, nas idas ao cinema para
vislumbrar estéticas de diferentes lugares do mundo, as vestimentas, o uso de joias
e outros acessórios como as bolsas e carteiras, os óculos, os sapatos, eram
175
CHATAIGNIER, Gilda. História da Moda no Brasil. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.
FREITAS, Antônio Fernando Guerreiro de. Salvador e a Bahia contemporânea. In. ANAIS do IV
Congresso de História da Bahia: Salvador 450 anos. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia; Fundação Gregório de Matos, 2001.
176
114
ingredientes que faziam parte do todo, criando uma espécie de trílogo177
envolvendo, de forma única, cidade, eventos e aparência.
Em meio a esse período dinamizador, aliado ao otimismo nacional reinante,
os baianos da Capital vivenciavam no cotidiano, ao longo dos anos pesquisados,
inúmeras festividades. Estas podiam ser: almoços no Hotel da Bahia, jantares
dançantes no Yacht Club da Bahia, noites dançantes na Boate Anjo Azul, réveillon
no Clube de Bridge e, ainda, as festividades populares maiores, como a Festa de
Iemanjá, também conhecida como a Festa do Dois de Fevereiro, e a Festa do
Bonfim. Todas elas atraíam milhares de pessoas, revelando a disposição dos
habitantes da cidade para os festejos populares.
A Figura 25 nos permite ver a euforia baiana em dias festivos, neste caso, na
festa de Iemanjá realizada no bairro do Rio Vermelho. A imagem ilustra aquilo que
DaMatta178 categoriza como momentos extraordinários marcados pela alegria,
considerados o
lado positivo da vida, contrapondo-se ao negativo dos dias de
trabalho, já evidenciado nesta pesquisa. A Figura referida nos permite também
vislumbrar as indumentárias de homens populares em dia de festa no mar. Na
fotografia, vê-se um coletivo masculino, possivelmente de pescadores, usando
calções de tecido, similares às cuecas samba-canção, muito usadas por homens de
diferentes condições sociais nesse período.
Os homens da fotografia, na sua maioria, usam camisetas estilo regata que,
no período, eram frequentemente usadas por baixo de uma camisa de tecido; um
deles porta camisa de mangas compridas, que era traje corriqueiro, tanto para
homens das camadas populares como das elites econômicas e intelectuais, o
diferencial se dá por estar com as mangas dobradas, própria para um dia no mar.
Também os chapéus são apropriados para um dia de festa no mar, e o acessório
neste caso cumpre o papel de proteger os usuários dos raios solares intensos de
fevereiro na cidade, marcado por altas temperaturas. Todavia, o chapéu já teve
outros momentos de uso e outros significados e serão tratados no capítulo seguinte.
177
A palavra é usada neste caso querendo referenciar o diálogo entre três coisas e não pessoas
como é o uso correto.
178
DaMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
115
Figura 25 – Trajos na Festa de Iemanjá.
Fonte: Diário de Notícias (1968).
Nessa fotografia, as indumentárias são reveladoras para uma análise da
condição social, oferecendo-nos pistas para dizer que são homens das camadas
populares, pois, dentro dos padrões de comportamento da época, as roupas que
portam eram geralmente usadas dentro do espaço íntimo da casa, uma norma
observada, sobretudo, pelos homens das camadas médias ou altas da sociedade
local. Considerando que a fotografia retrata homens das camadas populares, esses
padrões de uso eram relaxados, mediante a própria rotina de trabalho, que exigia
roupas apropriadas para a labuta.
Ainda realçando as festividades da cidade no período, algumas se
destacavam pelo aspecto da inovação, logo, facilmente categorizadas como
modernas pela juventude elitista que as prestigiava. Elas aconteciam com relativa
frequência e eram noticiadas nas colunas sociais, reforçando suas características
inovadoras. A festa new generation foi um desses eventos, sendo assim destacada
na coluna social: “Hoje festinha new-generation oferecida pela signorina Martinha
Tinoso. Original: haverá um concurso de copos (o que for mais bem ornamentado,
levará um prêmio)”.179 A mesma nota aproveitava para evidenciar as características
cooperativas da festa em tempos de inflação galopante: “um detalhe: os rapazes
179
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 26 jan. 1968. Cad. 2, p. 3.
116
levarão o Whisky com o copo, as moças, salgadinhos. E assim que se diverte
sadiamente a nova-geração”180.
As festinhas, ou “assustados”, terminologia frequentemente usada para
designar festas pequenas realizadas relativamente no improviso, “de susto”, como o
termo denota, reuniam pessoas de diferentes correntes ideológicas pertencentes à
mesma camada social. Nestas também as vestimentas ocupavam a cena principal,
pois os namoros ou mesmo paqueras eram constantes, logo, a aparência era
percebida como importante. Na sua maioria, as festinhas eram realizadas em
espaços residenciais e, por vezes, em agremiações ou mesmo boates da época.
Ir aos restaurantes também estava em plena ascensão em Salvador e se
consolidava como um programa da elite local. Os periódicos não deixavam dúvidas
sobre a importância do evento: sair para jantar: “[...] é preciso fazer-se reserva para
ir ao ‘Restaurant do Unhão’ no sábado”181, sentenciava o periódico e enfatizava a
excelência da sua gastronomia, sendo seu maître um discípulo de Brillant-Saravi. No
verão de 1964, um jornal local anunciava uma novidade gastronômica na Rua
Greenfield, no bairro da Barra: “Inauguração da ‘Taverna Romana’ restaurante
especializado em cozinha italiana, dirigido pela simpática e dinâmica Lori” 182.
A nota dada pelo colunista Sílvio ressaltava ainda a decoração do ambiente
em estilo rústico, realizada pela senhora Ajurimar Bartilotti, enfatizando que “a hora
era gastronômica”. Para além da cozinha francesa e italiana, que de certa forma
soavam como novidades na cidade, a hora era também de especiarias brasileiras:
“[...] sábado passado, foi a inauguração da casa ‘Churrasqueto’, especializada em
churrascos, galetos e salsichões, de propriedade de Francisco Borges”183, noticiava
o Diário de Notícias no dezembro posterior ao golpe militar de 1964, aproveitando
para indicar o endereço da casa, na Avenida Sete, 211, e sugerindo aos aprendizes
de gastrônomo o churrasco no espeto da casa.
Como se percebe, a cultura de frequentar restaurantes, que não se esvazia
no ato de comer, era um modismo na Capital baiana no período 1958-1968, por
esse motivo, as preocupações passavam inclusive pela decoração do ambiente e a
roupa apropriada para estar nesses recintos. Verifica-se, através dessas e outras
notícias pertinentes à questão, uma intenção em educar os leitores neófitos em
180
DIÁRIO DE NOTÍCIAS., Salvador, 26 jan. 1968. Cad. 2, p. 3.
Id., ibid., 16 jan.1968. Cad. 2, p. 3.
182
Id., ibid., 19/20 jan.1964. Cad. 2, p. 3.
183
Id., ibid., 1º dez. 1964. Cad. 2, p. 3.
181
117
relação ao ato gastronômico, algo moderno, aos quais o colunista, mostrando certo
desprezo, se refere como aprendizes perante a novidade.
Outra novidade era apontada no dia primeiro de dezembro de 1964 pelo
mesmo colunista: a inauguração do Clube Português na orla oceânica. Espaço
também destinado à cultura do comer e outras sociabilidades. Neste caso, as
especialidades da colônia lusitana incluíam os pastéis de Santa Clara e diversas
modalidades de preparar o do bacalhau. Dessa forma, outra gastronomia era
incorporada às práticas culturais dos habitantes da cidade.
É importante salientar que a comida lusitana estava presente no cotidiano
citadino desde a época da sua fundação, o diferencial nesse período modernizador
se dava por se tratar da abertura de um espaço onde os soteropolitanos poderiam
estabelecer uma maior proximidade com a numerosa colônia lusitana. A notícia de
inauguração da agremiação já apontava para essa aproximação, ressaltando o
coquetel que foi oferecido à imprensa local, evidenciando: “[…] quem passa pela orla
oceânica, deslumbrado não pode deixar de ficar com o arrojo e a beleza das linhas
do clube que congregará a colônia lusitana e a sociedade baiana”.184
Ousadia e deslumbramento eram terminologias que estavam inseridas nas
práticas culturais cotidianas de muitos soteropolitanos naqueles dias de 1958-1968.
Muito deste arrojo e deslumbre era percebido nas festas da nova geração, na atitude
das misses nas passarelas e fora delas, nas idas aos cinemas, no cinema que se
realizava naqueles dias em Salvador, nos bailes de debutantes, nas festas de
formatura, nas roupas que as mulheres começavam a usar, sejam saias mais curtas
ou calças, no colorido das roupas usadas pelos rapazes junto aos cabelos grandes
ou mesmo ao estilo Beatles, e tantos outros modismos do período.
Audaciosas eram consideradas as formas da moderna arquitetura que se
descortinava na velha cidade de fachadas centenárias e barrocas, perceptíveis no
prédio do Clube Português, localizado na beira das areias do mar da Pituba, um
cenário surreal, onde o mar e o cimento se amalgamavam; perceptíveis também nos
azulejos cimentados do Teatro Castro Alves, junto ao verde das frondosas árvores
do Campo Grande.
Era o novo, invadindo a cidade de quatrocentos anos, de diversas formas,
todavia a dicotomia entre a tradição e as novidades, que já foi evidenciada aqui,
184
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 1º de dez. 1964. Cad. 2, p. 3.
118
parece ser o retrato mais fiel da cidade no período. Uma logomarca dessa época é
sintomática para ajudar a analisar essa dicotomia.
A imagem da propaganda mostra a fachada do Hotel da Bahia (Figura 26),
suas linhas retas da arquitetura moderna, evidenciando o cimento que tanto
caracteriza este modelo arquitetônico; ao lado e em primeiro plano, aparece uma
baiana com um tabuleiro de quitutes na cabeça, usando roupa típica do
personagem, com colares e pulseiras, um tipo já naquela época amplamente
difundido por Carmen Miranda. Ainda na composição, um texto informativo indica
Cidade, Estado e País e a frase “visitem a Bahia”185.
Figura 26 – Hotel da Bahia.
Fonte: Diário de Notícias (1959).
Tendo a imagem do anúncio propagandista como fonte para se pensar o
momento citadino, não se pode deixar de considerar o século XX como uma era de
extremos e de revoluções sociais e culturais186. Nesse século, as imagens,
marcadamente as cinematográficas, contribuíram de forma significativa no pensar e
sentir de homens e mulheres.
Nos anos de 1958-1968, as imagens estavam amplamente difundidas no
cotidiano das cidades, sobretudo nos centros urbanos maiores, como Salvador. A
produção delas, para comerciais de revistas e jornais e, posteriormente, para a
185
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 7, 1º nov. 1959.
A Revolução Social 1945-1990 e a Revolução Cultural marcada pela cultura jovem são analisadas
em: HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
186
119
televisão, ou mesmo nos quadros, mosaicos, xilogravuras realizados por artistas
locais, revelava representações dos seus imaginários.
Desse modo, a imagem acima, ao tempo em que revela a cidade moderna,
também evidencia uma imagem amplamente difundida e ligada a um passado de
servidão, representado pela negra com quitutes na cabeça. Não deixa de ser um
imaginário da cidade traduzido pela propaganda. Nesse período, a cidade que
anseia o moderno, refletia ainda profundas marcas da tradição, uma realidade
percebida nesse momento e ainda na atualidade.
Entretanto a cidade, marcada pela tradição através de diversos tipos de
festividades, ia realizando cotidianamente sua utopia moderna e, nessa conjuntura,
as vestimentas e as aparências despontavam com relevância, sendo influenciadas
de diversas maneiras e por vários mecanismos. É sobre esses aspectos, o uso das
‘roupas de ver Deus’ e as memórias de alguns usuários dessas indumentárias que
nos debruçaremos no capítulo seguinte.
120
3 COTIDIANO E VESTIMENTAS: AS DOMINGUEIRAS E AS ROUPAS
ORDINÁRIAS EM SALVADOR
As roupas estão naturalmente disseminadas no cotidiano de uma cidade. No
privado e, principalmente, nas ruas é possível ostentá-las, observá-las e, através do
olhar, julgá-las, aspecto intrínseco ao olhar. Assim, é pertinente atentar para os
escritos de Marilena Chauí quando se propôs a refletir sobre as maneiras de ver
alguma coisa. Ela escreveu: “quem olha, olha de algum lugar” e, neste ato, que tem
uma durabilidade de frações de segundos, reflexões e julgamentos estão
impregnados187. Ao que se pode apurar, esses julgamentos instantâneos estão
relacionados às culturas e seus imaginários. Por razão do imaginário, uma
vestimenta poderá ser considerada especial e outra, medíocre.
Neste capítulo, tratamos de analisar a inserção das vestimentas no cotidiano
da Cidade do Salvador, seja nas demandas rotineiras, ou ainda nos momentos
extraordinários e/ou festivos. Na trama narrativa historiográfica, as imagens
fotográficas, imaginário e reminiscências estarão juntos, pois o próprio termo, ‘roupa
de ver Deus’, estabelece diálogo com o imaginário e a atenção dispensada às
vestimentas, bem como ao ato de aparecer na esfera pública, lugar de notoriedade e
apreciação, locus preferencial de portar as ‘roupas de ver Deus’.
A atenção do povo brasileiro e, especialmente, do baiano voltada para a
aparência pode ser percebida de diversas maneiras no cotidiano citadino, e não há a
pretensão neste trabalho de elencar todas, dadas as dimensões amplas que o
coletivo possui e, por consequência, o imaginário, aspecto singular na aparência.
Mas em um aspecto ela sobressai recorrentemente: na musicalidade, que
singulariza o Brasil em relação a outros tantos países, revelando muito do seu ethos.
Nossa musicalidade, seja pelo ritmo festivo ou mesmo por sua malemolência
peculiar ou através das letras, traduz muitos elementos da alma brasileira.
Historicamente, composições musicais produzidas por autores de diferentes
setores sociais têm na vestimenta, na moda e na aparência sua temática central.
Buscando exemplificar essa ideia, pode-se destacar uma canção presente no
imaginário de diferentes gerações. Nesta se canta: “Com que roupa eu vou ao
samba que você me convidou”, fragmento que faz parte da composição “Com que
187
CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAES, Adauto (Org.). Olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 31-63.
121
Roupa?”, de Noel Rosa188. Na mesma composição, outro fragmento destaca a
inquietação com a roupa, com a forma de se apresentar em público, quando afirma
“Meu terno já virou estopa”.
Esse fragmento revela o imaginário brasileiro em relação à roupa,
notabilizado na preocupação da vestimenta apropriada para ir a uma festividade.
Todavia, para além dessa questão, o fragmento denuncia a dificuldade de muitos
(as) no Brasil em relação a ter uma roupa nova, e, por consequência, insere a roupa
enquanto um bem de consumo, gerando inclusive frustração de quem não consegue
adquiri-la. Na Cidade da Bahia, marcada desde a Colônia por diferenças sociais,
“[...] muita gente foi humilhada porque não teve a roupa para ir a uma vesperal de
teatro ou um chapéu decente para comparecer a uma procissão” 189, destaca Vianna
em uma de suas crônicas cotidianas, denunciando este aspecto da roupa e do
consumo na temporalidade desta pesquisa.
Buscando ainda realçar a roupa e sua inserção no cotidiano e,
consequentemente, no imaginário brasileiro, uma composição de Zé Kéti desponta
como singular. Nela, a vestimenta ocupa a centralidade da obra, destacada no
próprio título: Vestido tubinho.
A nega mandou fazer
Um tal de vestido tubinho
E mandou pintar a óleo
Uma flor na altura da barriga
Eu não gostei
Quis brigar
Dessa moda eu não gosto
Eu já disse que não quero
E pra ser sincero
Vou dizer uma verdade
E que os homens de hoje em dia
Vão olhar pra flor da nega
E a flor vai virar saudade190
Na letra, além do destaque dado à indumentária, o vestido tubinho, que no
período 1958-1968 despontava como um modismo, sendo tratado como “tal” pelo
autor, denotando desconhecimento ou mesmo certo desapreço, observa-se ainda
188
COM QUE ROUPA?. Noel Rosa. Canções de Noel Rosa com Aracy de Almeida: Aracy de
Almeida, Continental, LPP10, 1955, 1 LP.
189
VIANNA, Hildegardes. Antigamente..., op. cit., p. 261.
190
VESTIDO TUBINHO. Zé Kéti. Sucessos de Zé Kéti. Faixa 10, n. 40348. Mocambo, 1967, 1 LP.
122
uma representação do pensamento masculino em relação à roupa feminina do
período. É que, dadas as possibilidades de sedução que oferece, ela é temida, pois
poderá atrair a atenção masculina. O autor destaca “Dessa moda eu não gosto”,
levando a crer que, de outras “modas”, ele gosta, contribuindo inclusive para
desmistificar a ideia de moda como assunto meramente da esfera feminina no Brasil.
Pensando a literatura musical como resultado não apenas do seu autor, mas
do meio e do tempo em que foi produzida, reverberando ideias e sentimentos de
seus contemporâneos, Zé Kéti acabou por desvelar a moda como parte da vida
privada brasileira. Dessa forma, revela como a vestimenta feminina perpassava o lar
e a figura do marido, podendo ter sua liberação ou reprovação, uma dinâmica
pertencente à temporalidade estudada e perceptível ainda na atualidade. Não à toa
o compositor introduziu na letra da poesia um desabafo masculino e machista: “Eu já
disse que não quero”.
Essa composição permite atentarmos para a vestimenta enquanto expressão
de motivação sexual, constituindo uma das formas de olharmos as vestimentas e a
moda. Como sentenciado por Cidreira, “[...] o adorno conserva, de algum modo, toda
sua força enquanto expressão de motivação sexual: ele é visto como instrumento de
provocação ao desejo”191. Na composição de Zé Kéti, reveladora do imaginário
masculino da época, o vestido é margeado de cuidados por ser visto como objeto de
provocação do desejo sexual de seus pares, logo, algo que deve ser proibido de
aparição pública.
Nas entrelinhas desse discurso é possível ainda perceber outro aspecto
pertinente á moda, o pudor prescrito pela religião. No caso brasileiro, respaldada
pela fé cristã e católica, a roupa foi introduzida entre os gentios, cobrindo a nudez,
vista como pecaminosa192. Cidreira, atentando para este sentido da moda, observa:
Desse modo, a vestimenta vai servir como pretexto aos moralistas
para relembrar periodicamente os princípios religiosos, judaicos,
cristãos, mulçumanos, sobre os quais eles fundamentam suas
interdições, tendo sempre o pudor, a higiene, entre outros aspectos,
como razões fundamentais para a implementação de tal ou tal
proibição.193
191
CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda: vestuário, comunicação e cultura. São Paulo:
Annablume, 2005. p. 40.
192
Neste caso, referimo-nos à roupa como artefato de algodão inserido na cultura brasileira pelos
portugueses, na dinâmica da conquista das terras e dominação dos povos que aqui habitavam.
193
CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda..., op. cit., p. 26.
123
Os aspectos do pudor e do sexual, enquanto sentidos atribuídos às
vestimentas e oriundos de discursos diversos ou ainda de pedagogias religiosas e
medicais, estão presentes na análise feita por Renata Pitombo Cidreira em Os
sentidos da moda.
Este trabalho vai além do “olhar” inaugural e semiológico lançado por Roland
Barthes em Sistema da moda194. Cidreira observa a moda “sob diversos olhares” e
escreve: “[...] podemos destacar pelo menos seis perspectivas através das quais a
vestimenta e seus desdobramentos são explorados: econômica, semiológica,
psicanalítica, moral e filosófica e sociológica” 195. Reunindo as contribuições dessas
disciplinas, a autora articula uma reflexão para compreensão da vestimenta e do
“jogo da constituição das aparências”, observando a moda e as vestimentas
entrelaçadas ao artístico, à personalidade dos indivíduos ou a seu poder de
comunicação dentre outros aspectos por ela analisados.
O cuidado dispensado pela população brasileira à aparência foi evidenciado
também em estudos mais gerais sobre o Brasil e os brasileiros, pois, como se sabe,
estudos específicos de moda oriundos da historiografia têm sido residuais ao longo
das últimas décadas no Brasil. Todavia, quando se analisou o Brasil no âmbito
cultural e social, percebido através da casa-grande, da senzala, dos sobrados e
mocambos, as roupas enquanto expressão cultural ou a aparência, em sentido mais
amplo, não foram desprezadas.
Precursor desse tipo de estudo, Freyre196 atenta para a arte do traje das
negras quituteiras do Brasil colonial e para a mulher do sobrado, no privado, usando
chambre e chinelo sem meia; ela, entretanto, “[...] esmerava-se nos vestidos de
aparecer aos homens na igreja e nas festas, destacando-se, então, tanto do outro
sexo como das mulheres de outra classe e de outra raça, pelo excesso ou exagero
de enfeite, de ornamentação, de babado, de renda, de pluma, de fita, de ouro fino,
de jóias”197.
Essas vestimentas peculiares, tidas como ‘roupas de ver Deus’, guardadas
como joias em baús e retiradas para momentos de sociabilidades, evidenciavam a
opulência da família brasileira abastada, notabilizados marcadamente na mulher do
194
BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo: Edições 70, 1967.
Id., ibid., p. 24.
196
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1998.
197
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do
urbano. São Paulo: Global, 2004. p. 213.
195
124
sobrado para apreciação da sociedade, seja em Salvador, no Recife ou no Rio de
Janeiro.
Porém, a dinâmica da ostentação da riqueza econômica através da aparência
não se restringia ao universo feminino, o “sexo forte”, como sinalizado por Freyre,
aderiu à “superornamentação”198, sobretudo “[...] no abuso de tetéias, presas à
corrente de ouro do relógio, de anéis por quase todos os dedos, de ouro no castão
da bengala... de penteados e cortes elegantes de barba, de perfume no cabelo, na
barba, no lenço”199.
As considerações de Freyre apontam a atenção dispensada pelo brasileiro,
desde a Colônia, à forma de se apresentar no espaço público, marcadamente
aqueles(as) oriundos(as) das classes dominantes e mais abastadas. Esse cuidado
com a aparência havia sido observado no século XVI por Gabriel Soares, que
descreveu as sedas e fazendas finas ostentadas pelas mulheres dos ricos, ou ainda
pelo padre Cardim, que se surpreendeu com o exagero das sedas, de veludos e
joias das mulheres pernambucanas200 e perpetuou-se no tempo e no imaginário dos
brasileiros, disseminada em diferentes camadas sociais ao longo dos tempos. As
vestimentas e os acessórios despontam, nestes casos, como marcadores da
condição social, um elemento de distinção entre ricos e pobres.
Em Sobrados e Mucambos, o mestre de Apipucos nos leva a perceber uma
relação de proximidade com a Europa renascentista e as formas de vestimentas
ostentadas pela nobreza europeia de diferentes Estados Modernos, caracterizadas,
sobretudo pela distinção de classes. James Lever 201, analisando essas vestimentas,
chama a atenção para a opulência que denotavam:
[...] sabemos, através da descrição do guarda-roupa de Henrique
VIII, que ele tinha, entre outros, gibões de veludo azul e vermelho
forrados com pano-de-ouro. Em 1535, Thomas Cromwell deu de
presente ao rei um gibão de púrpura bordado em ouro, e algumas
roupas reais possuíam tantas incrustações de diamantes, rubis e
perolas que o tecido ficava invisível. 202
198
Id., ibid., p. 216.
Id., loc. cit.
200
Id., ibid., p. 214.
201
De forma geral e sucinta, o autor analisa a história das roupas e da moda da antiguidade aos anos
de 1980, sobretudo, na Europa na obra A roupa e a moda: uma história concisa: São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
202
LAVER, James. A roupa e a moda..., op. cit., p. 86.
199
125
Para além da riqueza ostentada no traje da nobreza europeia do século XVI,
James Laver nos informa da predileção pela cor vermelha, o uso do gibão como
peça principal do vestuário masculino da época, o uso do preto pela corte espanhola
depois de Felipe II e uma infinidade de particularidades pertinentes às vestimentas
europeias. Algumas dessas modas aparecem inseridas no cotidiano brasileiro, em
particular o gibão, que, na terra brasilis, foi incorporado e adaptado às condições
rústicas do ambiente de labuta do sertanejo que lida com o gado bovino.
Essa vestimenta acaba por categorizar um personagem típico do imaginário
nacional, mas marcadamente do Nordeste brasileiro, que é o vaqueiro. O gibão de
couro brasileiro substituiu as pedrarias usadas na Europa renascentista por objetos
reluzentes e o tecido, pelo couro. De fato, adaptações de costumes europeus à
cultura brasileira não constitui uma novidade. Podemos ainda aqui realçar a
quadrilha, dança que saiu dos salões nobres europeus e se introduziu nos salões
populares no Brasil, incorporando outros elementos, modificando vestimentas, sendo
transformado em um patrimônio nordestino.
A ‘roupa de ver Deus’, expressão que denota uma prática cultural da
sociedade baiana em meados do século XX, segue neste caminho da tradição e das
transformações culturais. Os apontamentos de Freyre quando sinalizam a mulher da
família patriarcal desleixada no âmbito do lar e esmerada na escolha da roupa de ir
à igreja ou à festa, configurando sua melhor roupa, parecem desvelar a gênese da
expressão.
Todavia, ao longo do tempo, a expressão se torna popular. Sendo a roupa um
objeto de suma importância também nas camadas populares, a ‘roupa de ver Deus’,
em muitos casos, denota a única roupa do indivíduo destinada às sociabilidades,
sejam elas religiosas ou de caráter profano, logo, sua roupa domingueira, uma roupa
pensada como especial.
Como já salientado, a História das roupas é uma História de imagens. As
Imagens,
conforme
sentenciou
Laplantine,
são
construídas baseadas nas
informações obtidas pelas experiências visuais anteriores, ou ainda, as “[...] imagens
não são coisas concretas, mas são criadas como parte do ato de pensar. Assim a
imagem que temos de um objeto não é o próprio objeto, mas uma faceta” 203.
203
LAPLATINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 10.
126
Neste sentido, a imagem que fazemos de uma pessoa ostentando
determinada roupa não corresponde ao que ela é para si ou outrem, ou mesmo uma
vestimenta pode ser vista meramente como artefato de algodão, como um objeto de
riqueza, ou mesmo bizarro, podendo ser categorizada por uma sociedade como
‘roupa de ver Deus’, mediante a distinção atribuída em relação a outras.
Não é demasiado salientar que, na cultura baiana, as vestimentas já foram
classificadas ou mesmo categorizadas em roupas de sair e as roupas de uso
ordinário, ou seja, vestimentas de uso excepcional e de uso cotidiano, havendo
inclusive uma expressão popular específica, a chamada “roupa da baia”. Essa
expressão designa a roupa de a criança brincar, a da dona de casa realizar afazeres
domésticos ou mesmo aquela portada pelos homens para lavar o automóvel ou
jogar uma “pelada”. Logo não era uma roupa nova, nem domingueira204.
3.1 AS ROUPAS E O COTIDIANO: IMAGINÁRIO E AS VESTIMENTAS COMUNS
NAS CENAS URBANAS CITADINAS
As imagens mantêm uma relação de proximidade com a História das
aparências. Consequentemente, “[...] as imagens e a sua dinâmica, o imaginário,
são identificados aos símbolos”205. Ainda segundo Laplantine e Trindade,
fundamentados em Durand e Jung, “[...] imaginário e símbolo são sinônimos que
emergem do inconsciente universal, doador de significados e, ao mesmo tempo,
irredutível aos significados históricos e culturais que os homens atribuem a esses
símbolos”206. Neste sentido, o cotidiano praticado é permeado por uma rede
simbólica. Imbricado nesse conjunto de símbolos, próprios de uma época e de um
povo, os habitantes se inventam como elegantes, desairosos, bonitos e tantas outras
formas de inventar a si mesmo.
No cotidiano citadino, as vestimentas enquanto símbolos polissêmicos
ocupam lugar singular. Na reportagem de Helio Oliveira, intitulada “Moda feminina
nos velhos tempos”, na qual a “negra Maria Francisca” ocupa a centralidade,
aparecem diversos aspectos pertinentes a esta questão:
204
O termo “baia” presente na expressão popular parece dialogar com a forma popular e ancestral de
falar trabalho ou “trabaio” como ainda é possível de escutar no falar de pessoas das camadas
populares de Salvador, provavelmente uma relação estabelecida por conta daqueles que trabalhavam
nas baias, trapiques que nas cavalariças separam os espaços destinados aos animais de montaria.
205
LAPLATINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário..., op. cit., p. 17
206
Id., ibid., p. 20.
127
A negra Maria Francisca que há 60 anos assiste a festa, recorda com
saudade sua infância. Fala com entusiasmo das belas carruagens,
puxadas por cavalos brancos, que conduziam as sinhás ao Largo. _
“Os bondes também eram puxados a cavalo e não tinha automóveis.
O peixe era vendido em gamela, por africanos. Não tinha essas
barracas vistosas e esses homens não vendiam nada. A gente
ganhava moeda e fazia dinheiro”.
Nos seus 70 anos, a negra Maria Francisca sente dificuldade de
recordar-se da festa, faz longa digressão para falar em seus 20 filhos
e 16 netos, de seus patrões Drs. Pacheco de Oliveira e Alberico
Fraga, mas não esquece a moda da época.
Com a mesma vivacidade de uma “coca-cola girl” ao falar de linha
saco e quejandos, a velha vendedora de acarajé explica ao repórter
como trajavam as donzelas de seu tempo, tão ciosas dos olhares dos
rapazes como as de hoje, que tinham na festa uma oportunidade de
iniciar romance.
E a velha descreve a linha balão, de duas cinturas, contemporânea
de Santos Dumont. “era com esses vestidos que as sinhazinhas
acompanhavam a procissão”. Maria Francisca considera que naquele
tempo havia mais fé, o povo acorria à igreja ungido de maior
devoção.
A negra fugiu à aproximação do fotografo. Fez o sinal da cruz,
pronunciou negras palavras em língua desconhecida e disse
adeus.207
A reportagem fazia parte da cobertura jornalística realizada pelo periódico
local no Cais da Conceição na solenidade “[...] em louvor de São Nicodemus do
Cachimbo, tradição que anualmente vem se observando naquele local 208. Além da
missa que será realizada, haverá durante todo o dia, sambas de roda e outros
divertimentos”209. Todavia, aqui a festa em devoção ao santo é secundária, ela
desponta como locus de exibição de modas citadinas.
O passado e o presente, elementos essenciais da concepção de tempo,
fundamental da consciência e das ciências históricas210, aqui despontam como
elemento fundamental. É a interface entre o presente e o passado que faz a
entrevistada da noticia rememorar as vestimentas de outra época e, por este motivo,
incentiva o jornalista a salientar uma vestimenta da moda em 1958, “a linha saco”,
assim como destacar a expressão americanizada “coca-cola girl” para se referir às
moças vivazes do período. O presente aparece, neste caso, como símbolo do novo
207
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 30 nov. 1958. Cad.2, p. 6.
O local a que o texto jornalístico se refere é o Cais do Porto onde se realizava e ainda se realiza a
festa de São Nicodemos. Atualmente, a festa é bastante restrita aos trabalhadores do Cais do Porto,
os estivadores.
209
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 30 nov. 1958. Cad.2, p. 6.
210
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1996. p. 203.
208
128
em contraposição ao arcaico. O texto jornalístico ainda aponta para um costume da
época ou mesmo uma moda, sobretudo entre os jovens das camadas médias,
expresso pelo estrangeirismo no vocabulário falado na cidade, a exemplo do “cocacola girl”, “high-society”, “happy-hour”, que são utilizados nas conversas ou textos
jornalísticos, sempre em alusão ao novo.
Nas entrelinhas das palavras de Maria Francisca, reside o imaginário de
elegância atribuído ao passado e correlacionado aos brancos; como sua infância
remete aos anos finais do século XIX, pois o que reconhece como moda ou
vestimenta elegante era aquilo ostentado pelos brancos dos sobrados, aludindo ás
palavras de Freyre. É característico do imaginário o aspecto coletivo, e, neste
sentido, a fala da vendedora de acarajé pode ser tomada como uma impressão
compartilhada com seus(suas) contemporâneos(as) que, à margem da sociedade
elitista, assistiram as elegantes sinhazinhas desfilarem nas festividades religiosas e
profanas da Cidade do Salvador.
São pertinentes também ao imaginário das sociedades tradicionais ou parte
delas os contos populares211, permeados de rainhas com vestidos luxuosos,
príncipes encantados, cavalos brancos, fadas, coelhos brancos e gatos pretos. O
historiador Robert Darnton investigou com profundidade esses contos, desvelando
as histórias que os camponeses contavam na Europa do século XVIII 212. Esses
contos, inseridos também na cultura brasileira, parecem fazer parte do imaginário da
entrevistada quando lhe é atribuída a fala “das belas carruagens, puxadas por
211
LAPLATINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário..., op. cit., p.30.
Na obra O grande massacre de gatos, o historiador Robert Darnton analisa, entre outros aspectos,
a inserção dos contos populares no imaginário dos camponeses europeus do século XVIII. Dessa
forma, vai enveredar pelos significados atribuídos aos gatos tidos no imaginário da cultura francesa
daquele período como seres demoníacos, pertencentes aos rituais das bruxas ou tendo conotações
sexuais, logo sua matança por operários insatisfeitos não constituía um fato extraordinário. O trabalho
pode ser considerado um diálogo entre a História e a Antropologia no qual o historiador vai analisar o
pensar e o sentir do homem francês do século XVIII. Neste sentido, o autor aponta, entre outros
exemplos, o da proximidade entre os contos populares e a realidade. Nesse contexto, muitas das
histórias vão refletir a vida dos camponeses franceses permeadas por madrastas e órfãos, labutas e
emoções brutais aparentes e reprimidas. Tais aspectos, segundo ele, estão presentes nas histórias,
Gato de Botas, Pequeno Polegar, Cinderela e Os desejos ridículos e nos contos tradicionais orais. O
autor atenta para a transmissão oral afetando as histórias de maneiras diferentes, em culturas
diferentes. Dessa forma, o conto germânico pode prezar pelo terror e fantasia e o conto francês
enfatizar o humor. Darnton sentencia ainda que o senso comum é uma elaboração social da
realidade, que varia de cultura para cultura. Em suma, os contos populares analisados no trabalho de
Darnton apontam para uma liberação de emoções e sentimentos reprimidos (catarse) experienciados
pelos camponeses europeus desse período, e a redenção se dá pela extravagância, seja no
banquete de casamento com costelas de carneiro ou o herói que arruma uma vaca e algumas
galinhas, um armário cheio de panos de linho e um cachimbo cheio de fumo. Anseios que geralmente
não eram conseguidos durante a vida dos camponeses, logo é a idealização.
212
129
cavalos brancos”. Sua descrição dá margem a pensar uma elite branca baiana,
notadamente de mulheres bem vestidas, observadas por ela como rainhas
desfilando em carruagens, constituindo “[...] uma ponte entre o fantástico dos contos
populares e o mundo social”213 de Maria Francisca, permeado pela venda de acarajé
em festas populares ou por reminiscências de seus ancestrais vendendo o peixe na
gamela e “fazendo dinheiro”. Os vestidos desfilados em carruagens apontam para o
anseio popular inserido nos contos tradicionais através da cultura oral e analisado no
trabalho de Darnton.
Buscando compreender a interface entre o mundo social da entrevistada e os
contos populares, tão presentes na cultura brasileira e difundidos amplamente
através da oralidade, é pertinente atentar para os esclarecimentos de Montenegro
que, ancorado numa obra rara de Câmara Cascudo, sentencia:
[...] o conto popular revela informação histórica, etnográfica,
sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando
costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos. Para todos
nos é o primeiro leite intelectual. Os primeiros heróis, as primeiras
cismas, os primeiros sonhos, os movimentos de solidariedade, amor,
ódio, compaixão, vêm com as histórias fabulosas, ouvidas na
infância.214
Julgamentos relativos ao belo, ao tempo passado, pensado como um tempo
melhor do que o presente, ou mesmo o elegante, fazem parte das ideias de Maria
Francisca, permitindo-nos analisar como a moda fazia parte do imaginário dos
soteropolitanos desde tempos remotos. Essa fonte reforça as considerações feitas
por Freyre no que tange às aparências, às decisões e atitudes das mulheres dos
sobrados ao se apresentarem em público.
Transformações na paisagem citadina são também contempladas nesse
texto. É importante observar a sentença da senhora quituteira: “não tinha essas
barracas vistosas e esses homens não vendiam nada”. Ao tempo em que salienta a
mulher das camadas populares mercando desde tempos remotos na Cidade do
Salvador, ela aponta para uma modernização do espaço público, inclusive na esfera
das festas, com barracas vistosas. Por último, a reportagem enfatiza a vestimenta
213
MONTENEGRO, Antônio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010. O
autor, ao perceber sinais de imaginário na entrevista de Gilda, quando personifica príncipes em
determinados homens encontrados na sua trajetória, grifado por ele como Gilda e seus príncipes, usa
esta expressão, “uma ponte entre o fantástico dos contos populares e o mundo social”. Julgando
muito pertinente, neste trabalho fizemos uso da mesma terminologia.
214
MONTENEGRO, Antônio Torres. História, metodologia, memória, op. cit., p.65,
130
como objeto de sedução seja no final do século XIX ou em meados do século XX em
Salvador. É destacado pelo jornalista que os trajes ostentados pelas “donzelas” do
tempo de Maria215 ou mesmo daquele ano de 1958 seguiam ao encontro “dos
olhares dos rapazes” que nas festas tinham a oportunidade de “iniciar romances”.
Essa matéria jornalística encontra eco nas sentenças de Gilberto Freyre quando
aborda o esmero dos vestidos das mulheres dos sobrados “de aparecer aos homens
na igreja e nas festas”, como já destacado anteriormente.
Todavia, a moda percebida como objeto de sedução remete à secularização
do amor, marcadamente o amor cortês, já apontado nos estudos filosóficos sobre a
moda e seu destino nas sociedades modernas de Lipovetsky 216, na análise social da
moda empreendida por Calanca217, nos múltiplos olhares lançados sobre a moda da
jornalista Cidreira218 ou, mais recentemente, na análise sobre o jornalismo de moda
na Bahia, também de Cidreira219. Neste percurso, Calanca observa que “[...] a
sedução exige atenção e delicadeza, palavras e atitudes poéticas”220. Neste sentido,
a revolução cultural dos séculos XI e XIII vai promover a afirmação dos valores
cortesãos indissociáveis da moda. Esta, através de suas nuances e engenhosidade,
“[...] pode ser considerada uma espécie de continuação dessa poética da
sedução”221, ressalta a autora.
É importante atentar nesse percurso para as modificações que se impõem a
partir da segunda metade do século XIV, diferenciando radicalmente a aparência
masculina e feminina. Calanca destaca as diferenças sexuais, o apelo erótico,
revelando e escondendo o corpo, pois “[...] a roupa não é mais somente um símbolo
hierárquico de status, mas se torna também um instrumento de sedução, um
luxuoso e original instrumento de prazer feito para se fazer notar”222.
Retomando a personagem Maria Francisca, é importante destacar que ela
não se deixou fotografar, talvez por achar a vestimenta inapropriada para um
215
Neste caso, quando se refere “aos tempos de Maria”, quer evidenciar a sua juventude. Sendo ela
setuagenária em 1958, sua juventude ocorreu entre os últimos anos do século XIX e as primeiras
décadas do século XX.
216
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
217
CALANCA, Daniela. História Social da moda. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
218
CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda..., op. cit.
219
CIDREIRA, Renata Pitombo. A sagração da aparência: o jornalismo de moda na Bahia. Salvador:
EDUFBA, 2011.
220
CALANCA, Daniela. História Social..., op. cit., p. 76.
221
Id., ibid., p. 77.
222
CALANCA, Daniela. História Social..., op. cit.
131
registro fotográfico, visto que, mesmo estando em um ambiente festivo, sua inserção
se dava na labuta, ou mesmo, quem sabe, por temer o invento, a fotografia.
A partir dela (a fotografia), vamos enveredar pelas cenas urbanas para
analisar algumas vestimentas usadas no cotidiano da cidade, sabendo desde já que
as roupas inseridas no cotidiano podem ter sentidos diferenciados por parte de
quem as porta.
Tendo como eixo condutor as vestimentas ostentadas na Festa de São
Nicodemus de 1958 ou outras realizadas na cidade, pode-se observar que, nessas
ocasiões, uns se vestem para serem vistos, buscando inclusive começar romances,
outros se vestem de forma adequada a suas labutas. Estas, em determinados
casos, envolvem a força física para sua realização, logo, a necessidade de
adequação da roupa ao trabalho, como parece ser o caso de Maria Francisca.
A presença de Maria Francisca na Festa de São Nicodemos dá margem para
se perceber que “[...] a História é sempre e em todo lugar a vida das
comunidades”223. Na vida das comunidades, são peculiares as labutas, os
deslocamentos, as ações políticas, os momentos de lazer, as festas sagradas e
profanas. Neste lugar onde vivem indivíduos agremiados, as roupas estão
relacionadas a todas as ações por eles desenvolvidas. Neste elenco de dinâmicas
citadinas, buscamos fotografias para evidenciar quais as vestimentas ostentadas
pelos soteropolitanos ao longo do período de 1958-1968. Dessa forma, busca-se
elucidar a problemática desta pesquisa que contempla o vestir ordinário e o
extraordinário e os imaginários relacionados a eles na Cidade do Salvador no
período já citado, e notabilizar outras épocas, outros costumes.
Entre os costumes incorporados à velha Cidade da Bahia, estava a venda de
acarajés em diversos pontos da cidade. Naqueles dias de 1965, o problema
ocasionado pela falta de troco em pequenas negociações cotidianas era destaque
no periódico Diário de Notícias, que ilustrou a reportagem com fotografias de
comerciantes informais da cidade. Por esse motivo, temos a oportunidade de
analisar, entre outras indumentárias, a da “comadre do acarajé” que mercava seus
quitutes no centro da cidade, assim como Maria Francisca.
Na Figura 27 é possível observar sua vestimenta em tom claro, reto e em
tecido muito certamente de algodão, na cabeça uma espécie de tiara 224, trajes
223
224
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 63.
Neste caso a tiara cumpre o papel da higienização, para proteger os quitutes de fios de cabelo
132
comuns entre as mulheres das camadas populares da época, bem distinto da
indumentária que caracteriza, nas últimas décadas, as vendedoras de acarajé em
Salvador. Ao lado, em pé, duas senhoras portando outras vestimentas: a negra,
mais corpulenta, ostenta um vestido em algodão com pequenas estampas mais
escuras, semelhante a um chambre, peça usada geralmente no espaço íntimo do
lar, na composição um lenço na cabeça, próprio das camadas populares baianas,
que, na urgência de não estar com o cabelo “arrumado”, valia-se desse recurso para
escondê-lo.
Na mesma fotografia, aparece ainda uma mulher mais jovem e morena, que
ostenta uma peça bem corriqueira da época: saia plissada em tom escuro, na altura
dos joelhos, uma blusa sem mangas, gola em estilo canoa e uma barra sanfonada
na altura da cintura. À época, vale lembrar, era um modismo o uso de conjuntos,
compostos de saia e blusa ou calça e blusa para mulheres, podendo ser do mesmo
tecido e tom, ou complementares, em tons claros e escuros alternados entre a parte
inferior e superior da peça.
Figura 27 – Roupas ordinárias no cotidiano da cidade.
Fonte: Diário de Notícias (1965).
O jornal, valendo-se dos recursos tecnológicos, fez a diagramação de duas
fotografias, compondo-as em uma única imagem. Nesta, é destacado um vendedor
de cigarros, envolto também na problemática da falta de troco para as negociações
cotidianas. No que tange à aparência do jovem homem, é possível destacar uma
133
camisa em algodão com um bolso frontal, o colarinho da camisa segue uma linha
mais esportiva, parece não ter a dureza oriunda do uso de entretela225, comum em
camisas masculinas mais formais do período, muito usada nos colarinhos dos
burocratas. Na parte frontal, local onde se posicionam os botões 226, listas finas em
tons mais escuros, conferindo esportividade à peça, um diferencial em relação a
outras camisas observadas através das fotografias nesta pesquisa. Os cabelos
provavelmente foram esculpidos por brilhantina227 ou produto similar, um recurso
frequentemente utilizado nos anos 60 por homens que buscavam manter, ao longo
do dia, um ar matinal no penteado.
Ainda tendo a fotografia como eixo de análise, é possível observar que a
camisa da fotografia tem botões um pouco maiores que o trivial e parece seguir o
padrão de abotoamento masculino do período. Hildergardes Viana 228, atentando
para costumes e hábitos pertinentes às vestimentas, observou o costume de roupa
de mulher ter abotoamento da direita para esquerda e de homem da esquerda para
direita. Costume que perdurou em Salvador certamente até os anos 60, mas ainda
possível de ser verificado na atualidade entre alfaiates mais antigos. A este
procedimento social, soma-se a moda dos cortes de cabelos e penteados, sobretudo
para as crianças, já que os cabelos dos meninos eram repartidos da esquerda para
direita e o das meninas da direita para esquerda.
Em Salvador, no período 1958-1968, constituía-se um hábito o passeio no
final de tarde pela Rua Chile, com vista a apreciar vitrines e efetuar compras. Tal
hábito era alcunhado de “footing” pelo jornalismo ou “trottoir elegante” pelo geógrafo
Milton Santos, já destacado no segundo capítulo. Nos dias finais de novembro de
1965, esse modismo parecia ameaçado por conta do horário de verão. Grafava o
jornal: “[...] o sexo frágil não gosta da hora de verão. Vão comprar e olhar vitrines,
mas quando iniciam o comércio fecha”229. A reportagem abre a possibilidade de
verificar indumentárias do “sexo frágil” nesta sociabilidade tão peculiar da cidade
desse período.
A Figura 28 mostra três jovens mulheres nos percursos citadinos. Duas
ostentam trajes similares, blusas sem mangas e saias retas, em tons claros. As
225
Material usado nos colarinhos de camisas.
Os alfaiates costumam chamar esta parte das camisas de pat e a parte das costas de pala.
227
Cosmético para tornar lustrosos e assentar os cabelos e a barba.
228
VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim, op. cit.
229
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 30 nov. 1965.
226
134
saias retas evidenciam as curvas do corpo, diferentes das saias godês, que as
escondiam. Os objetos que elas trazem nas mãos denotam suas condições de
estudantes e as vestimentas são possivelmente
uniformes escolares. Na
composição das duas, a diferença se dá na parte superior das blusas, pois uma tem
a gola mais cavada e a outra, mais fechada, o que lhes confere sentidos diferentes.
A que usa o modelo mais cavado denota maior liberdade, evidenciado pelo
movimento das mãos e no próprio corpo como um todo; a que aparece em segundo
plano na foto, usa uma gola mais fechada, conferindo maior rigidez, observada
também na própria postura corporal, sobretudo na maneira como carrega os
materiais escolares, sendo, porém, suavizada pelo sorriso diante da câmera
fotográfica.
Nos pés, a primeira usa sandálias tipo alpercatas, com abotoaduras, dando
maior liberdade aos pés, próprio para um dia de verão na cidade e para o recinto
escolar. A segunda porta sapatos fechados, provavelmente sem saltos ou de salto
baixo, possível de identificar pela posição dos pés na fotografia. Os sapatos
fechados conferem maior seriedade a uma aparência.
Figura 28 – Modas de fim de tarde.
Fonte: Diário de Notícias (1965).
135
Na fotografia aparece ainda uma terceira mulher que exibe um vestido reto na
altura dos joelhos e de mangas três quartos em tom escuro, muito provavelmente
preto, e, na mão, carrega uma bolsa média escura com alças de correntes
metalizadas. Seu cabelo, de tipo mais crespo e por aparentar um penteado com uso
do laquê, difere das outras duas que os portam soltos ao vento, com ondulação
artificial nas pontas. Nos pés, sapatos fechados, baixos, tipo sapatinhas de bico
redondo, com um detalhe, um laço talvez no mesmo material.
Chataignier, atentando para os acessórios ostentados na década de 60,
evidencia as botas em vinil branco ou transparentes, “[...] as sapatinhas rasas e com
bico redondo, às vezes com pulseirinhas, escarpins clássicos, sandálias tipo
Lampião, em couro cru, com similares hippies enfeitadas com flores”
230
. Obviamente
que o uso desse farto elenco de calçados seguia estilos pessoais e horários
apropriados para os seus usos.
Nas fotografias catalogadas por esta pesquisa, os calçados que mais
aparecem são os sapatos fechados de salto médio, seguidos dos escarpins,
sapatinhas e sandálias para mulheres e, em menor quantidade, botas. Nos pés
masculinos, na quase totalidade, encontramos sapatos de couro com bico redondo
e, em alguns casos, sandálias de couro. As sandálias tipo havaianas aparecem nos
pés de jogadores de futebol, na esfera privada, em reportagens sobre esporte.
A Cidade da Bahia desde a Colônia já era globalizada e, em meados do
século XX, a arquitetura moderna ou mesmo as películas cinematográficas exibidas
na cidade exemplificam essa dinâmica. No que tange à moda, não era diferente. Em
fins da década de 60, as mulheres baianas eram convidadas a se inserir na “[...]
moda para os pés, ditada em Paris e adotada por todo mundo”
231
. Dessa forma, os
pés das soteropolitanas, acostumados ao footing na Rua Chile, ao subir e descer de
ladeiras, poderiam fazer isso agora ostentando “[...] mocassim de saltos quadrados e
baixos”232 desenhados por Cardin, “[...] saltos de madeira (ou couro imitando) dos
230
CHATAIGNIER, Gilda. História da moda no Brasil. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.
p. 145
231
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 5 maio 1968, Cad. Artes e Letras, p. 5.
232
Id., loc. cit.
136
mocassins esportivos”233 ou, ainda, o “[...] salto mais alto bico bem quadrado,
lingüeta virada e arrematada com botão”234, desenvolvidos por Dior.
Em suma, a reportagem destacava: “[...] este ano, os saltos cresceram, os
bicos ficaram mais quadrados, mas tanto na linha esporte como na ‘habillée’,
passando por todos os estilos, a fivela às vezes substituída pelo clipe foi uma
constante”235. A Figura 29 mostra os desenhos dos sapatos e destaca os nomes dos
criadores: Cardin, Dior, Andrea, Mancini, Vivier, Courrèges e evidencia as fivelas
“[...] de tartaruga, de ‘strass’, de metal. E um outro clipe: tipo botão de plástico ou do
próprio couro”236.
Figura 29 – Os sapatos da moda.
Fonte: Diário de Notícias (1968).
Na imagem vinculada à notícia ou mesmo na própria reportagem, é
importante perceber o destaque que é dado aos criadores dos modelos. Nesta
também se percebe que os bicos quadrados, os clipes e as fivelas despontam como
a moda daquele período. Ainda é possível observar a ampliação do trabalho de
criação dos realizadores de moda, deixando de ser meramente das roupas,
atrelando os sapatos às composições da aparência, tudo assinado por um único
criador.
A moda dos sapatos assinados fazia parte de um mecanismo comercial,
assim como o prêt-à-porter, todavia dialogava com uma visão ampliada dos
233
Id., loc. cit.
Id., loc. cit.
235
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 5 maio 1968. Cad. Artes e Letras, p. 5.
236
Id., loc. cit.
234
137
criadores em relação à moda, não se limitando apenas às vestimentas, a ideia era
de composição total, como empreendida por Courrèges. Seus modelos, inspirados
em mulheres jovens e atléticas, “[...] eram vestidos e saias retos e curtos, rodados,
com jaquetas encaracoladas”237 ou, ainda, “[...] calças de cintura baixa sedutoras
eram conjugadas a túnicas flexíveis ou paletós trespassados, disponíveis em lã para
o dia e em seda bordada ou com lantejoulas para a noite”238.
Entretanto, suas criações pediam sapatos apropriados, seus modelos “[...]
ficavam melhor em mulheres que adotavam o visual total. Usá-los era difícil e a
atitude correta era tão essencial quanto os acessórios corretos” 239. Percebendo suas
criações como uma composição total, uma obra de arte, os sapatos “[...] tinham de
ser chatos240: ele introduziu as botas brancas, com biqueiras truncadas, pouco
práticas”241. Valerie Mendes e Amy de la Haye ainda destacam outras criações do
mesmo estilista, como os óculos brancos com fendas para os olhos, pouco vistos
fora das passarelas e as luvas brancas, muito aceitas pelo mercado mundial.
Em suma, o estilista se inspirava em astronautas e espaçonaves para realizar
peças esportivas. Incluindo as cores pastéis em tons de amêndoa com inserção de
tonalidades fortes como o tom laranja ou o brilho da cor prata e, sobretudo, o
branco, que para ele significava “juventude e otimismo – agradava-lhe o fato de que
tinha de que tinha de ser mantido escrupulosamente limpo” 242. Através das suas
criações, antecipava aquilo que ainda estava por vir, aspecto bastante pertinente à
moda.
De fato, os criadores de moda, como destaca Roland Barthes, referindo-se a
Coco Chanel, “[...] não escreve com papel e tinta (a não ser nas horas vagas), mas
com pano, formas e cores”.243 Dessa maneira, através de tecidos, agulhas e cortes,
vão “escrevendo páginas” sobre o presente e o futuro. No cotidiano de Salvador, em
meados dos anos 60, o uso das calças compridas pelo público feminino ia-se
tornando cada vez mais constante. Tendo por base as sentenças de Barthes no que
se refere ao processo de criação, através dos panos e formas, uma página nova do
237
MENDES, Valerie D.; LA HAYE, Amy de. A moda no século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
p. 166.
238
Id., loc. cit.
239
Id., loc. cit.
240
Na Figura 29, aparece uma sapatilha de bico fino criada por André Courrèges. As sapatilhas com
diferentes tipos de bicos foram muito usadas no Brasil com calças compridas joviais e esportivas,
conhecidas como cigarettes. Segundo Erika Palomino (2002), as calças cigarettes foram
popularizadas inicialmente nos Estados Unidos, ainda na década de 50. As calças cigarettes criadas
por André Courrèges em alfaiataria, consideradas ultramodernas por Valerie Mendes e Amy de la
Haye (2003), foram feitas em meados dos anos 60.
241
MENDES, Valerie D.; LA HAYE, Amy de. A moda no século XX, op. cit., p. 166.
242
Id., loc. cit.
243
BARTHES, Roland. Inéditos, v. 3: Imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 365. .
138
vestir feminino na cidade estava sendo escrita naqueles dias. Eram as constantes
mudanças pertinentes ao universo da moda ou do efêmero deste império, como
salienta Lipovetsky244.
Constante também foi a chuva que caiu sobre a Cidade da Bahia nos
primeiros dias de abril de 1965, “[...] confirmando o refrão popular ‘abril chuvas mil’,
trazendo outra coisa senão desolação”245. Todavia, neste cenário de precariedade
onde “[...] enormes lagos se formam, mesmo no centro da cidade” 246, os habitantes
da urbe seguiam as suas demandas cotidianas, portando indumentárias condizentes
com o clima. “O que não impede, vez por outra, a ninguém de manter sua elegância
até debaixo d’água, como as moças da foto, placidamente enfrentando o temporal,
vestidas dentro da moda tipicamente de verão, como se desfilassem numa
passarela”.247
A elegância das moças descrita pelo texto jornalístico aparece na Figura 30.
Figura 30 – Moda em dia de chuva.
Fonte: Diário de Notícias (1965).
244
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero, op. cit.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 5, 4/5 abr. 1965.
246
Id., loc. cit.
247
Id., loc. cit.
245
139
Na fotografia, aparecem duas mulheres andando por uma rua central da
cidade, conforme a notícia salienta248. Ambas vestem calças cigarettes, em cores
escuras, e blusas que parecem ser de malhas: uma lisa, a outra em listas
horizontais. As duas carregam guarda-chuvas nas mãos e, nos pés, usam sapatos
baixos, provavelmente sapatilhas. O destaque maior se dá pelos lenços que usam
nas cabeças. Certamente, a intenção maior era defender-se da chuva que caía
sobre a cidade, assim o lenço cumpria o papel de conservar os penteados,
geralmente pensados para ter uma maior durabilidade, podendo ser estragados pela
chuva.
Todavia, a forma de colocação do lenço, cobrindo toda a cabeça e amarrado
abaixo do queixo, era naqueles dias de 1960 uma maneira muito peculiar de uso do
lenço por atrizes em películas cinematográficas e mesmo fora das telas. Dessa
maneira, as atrizes iam influenciando o uso de acessórios de moda na paisagem da
cidade, mesmo em dias chuvosos.
O uso das calças por mulheres, segundo o jornal, era apropriado para os dias
de verão, entretanto, na dinâmica baiana de adequação às necessidades cotidianas,
que superam tendências de moda, as calças aparecem em um dia “típico” brasileiro,
no final do verão marcado pelas chuvas. Neste trabalho, importa, sobretudo,
observar que as calças estão incorporadas ao cotidiano da cidade, em um dia
chuvoso, no qual a saída de casa se dá geralmente para o trabalho, para as rotinas
estudantis ou outras atividades inadiáveis; na Capital baiana, um dia de tempestade
não é um dia de demonstração de aparências.
Segundo as fontes pesquisadas, a introdução do uso da calça por mulheres
no cotidiano da cidade, em meados dos anos 60, era relativamente comum.
Entretanto, em fins da década de 50, algumas garotas apontadas como “modernas”
já começavam a usá-las, principalmente em sociabilidades diurnas, sendo pouco
comum uma mulher usá-la em eventos noturnos.
Em meados da década de 60, muitas mulheres usaram-nas como adequação
as demandas do período, marcadamente as que aderiram a movimentos
revolucionários, como as guerrilhas clandestinas 249, espaço marcado pela presença
masculina. Todavia, no início dos anos 60 em Salvador, algumas moças já aderiam
248
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 5, 4/5 abr. 1965.
A vulgarização das imagens dessa época, que mostram o cotidiano das guerrilhas, evidencia o
uso de calças ostentadas por mulheres.
249
140
à vestimenta como um modismo, sinalizando mudanças de costumes. Imperavam no
período como traje feminino, as saias e os vestidos, ou seja, as peças não
bifurcadas, usadas por mulheres jovens ou mesmo senhoras em suas práticas
cotidianas.
A Figura 31, que data do ano de 1960, não deixa dúvida de que se tratava de
uma novidade, logo moderna, diante do cenário geral da urbe onde as saias
predominavam. A vestimenta aparece, neste caso, em plena sintonia com as
mudanças da cidade, em um espaço que era o símbolo desses tempos, o Museu de
Arte Moderna da Bahia.
Figura 31 – Garotas modernas e as calças cigarretes.
Fonte: Diário de Notícias (1960).
Na imagem, veem-se três jovens baianas usando calças cigarretes e camisas
de mangas compridas ou três quartos. Pouco tempo antes, a calça e a camisa
manga comprida eram vistas como indumentária masculina, mas, neste novo
momento, as peças eram voltadas para o feminino, logo a modelagem das calças
valoriza as formas femininas, e as camisas tinham seu cumprimento mais curto. O
141
ensaio fotográfico tinha como título: “Garotas Modernas no MAMB” e o texto
jornalístico enfatizava justamente este aspecto: “[...] as moças são modernas na bela
idade em flor e no gosto da arte moderna” 250. O texto ainda amalgamava as moças,
as artes de Mario Cravo e Aldeir Nirce e a literatura de Kafka, criando um discurso
onde tudo era moderno.
Para além das intenções do ensaio fotográfico, que promovia o ajuntamento
de roupas e arte naquele abril de 1960 em Salvador, a fotografia nos possibilita
visualizar outras tendências de costumes que despontavam na cidade: um estilo
unissex. Neste, homens e mulheres começavam a portar vestimentas iguais ou
muito parecidas. Ao longo da década de 60, o unissex vai sendo introduzido de
forma crescente na sociedade, mediante inúmeras influências. As roupas sinalizam,
neste caso, outros tempos em sintonia com outros hábitos de vestir.
A calça como uma nova indumentária foi inserindo-se no cotidiano da cidade
arcaica, ao tempo em que as mulheres iam ganhando espaço em diferentes setores
sociais. Foi notável a inserção delas no mercado de trabalho, seja como professora,
bancária, comerciária, para não citar outros. Dessa forma, a roupa ia-se adequando
às necessidades deste momento feminino, a calça aparece nesse contexto como
uma peça com melhor adequação às demandas do trabalho cotidiano em centros
urbanos.
Todavia, o processo de inserção de costumes “modernos” foi lento e gradual.
Em Salvador, a convivência entre o novo e o arcaico era percebida de diversas
formas, inclusive nas vestimentas ostentadas no dia a dia da cidade. A Figura 32
nos dá uma clara visão dos aspectos tradicionais que permeavam o cotidiano da
cidade. A fotografia veiculada pelo Diário de Notícias enfatizava os transtornos de
trânsito por que a velha cidade passava enquanto ansiava por se tornar uma cidade
moderna. A fotografia notabiliza vestimentas em um dia rotineiro da Cidade da
Bahia, nela se destacando o aspecto tradicional.
250
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 8/9 maio 1960. Cad. 5, p. 8.
142
Figura 32 – Trajos cotidianos.
Fonte: Diário de Notícias (1964).
Na fotografia são vistos em primeiro plano um jipe e um “lotação de Nazaré
na Praça da Inglaterra”; além dos meios de transportes, cinco usuários do lotação
são bem visíveis e uma sexta pessoa, um transeunte, é vista de meio corpo 251. Na
fila, veem-se duas mulheres em um dia semanal, as bolsas em tamanho grande
apontam para a inserção em demandas cotidianas ou de trabalho. A terceira da fila,
uma senhora, usa vestido estampado abaixo dos joelhos e sapatos baixos. A quinta
da fila, uma jovem, usa um vestido reto em tom claro, sapatos baixos, e demonstra
certa elegância na postura corporal, tem os cabelos presos em um “rabo de cavalo”,
ostenta ainda óculos tipo “gatinha”252. Seja pelo penteado ou mesmo pelo tipo de
óculos ostentado pela moça, a imagem sinaliza para uma pessoa em sintonia com
as tendências de moda do período, logo, “moderna”.
Os homens que fazem parte da fotografia apontam para o tradicional. É
perceptível que possuem idades diferentes, todavia todos ostentam ternos, uma
roupa da rotina do trabalho burocrático da época e inserida no cotidiano secular da
cidade. A diferença se dá nas cores e em alguns detalhes da aparência. O primeiro
da fila tem um cabelo esculpido por algum cosmético e o quarto, um senhor mais
251
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 5, 28 abr. 1964.
Os óculos estilo gatinha e o penteado rabo de cavalo foram incorporados ao cotidiano baiano,
oriundos das influências cinematográficas. Lipovetsky atribui a Brigite Bardot a inserção do penteado
rabo de cavalo. Maria Angelina, em entrevista, deixou claro que usou óculos tipo gatinha em sintonia
com as modas ditadas pelos filmes vistos em sua juventude.
252
143
maduro, ostenta um chapéu de baeta253, acessório que remete aos séculos
passados, símbolo de distinção, conforme sinalizado por Gilberto Freyre quando
tratou da decadência do patriarcado e do desenvolvimento do urbano brasileiro.
A fila do lotação retratada ilustra uma reportagem sob as queixas da
população diante das mudanças no trânsito da Cidade Baixa, ocorridas em 1964,
expondo um fragmento do cotidiano da urbe, todavia também expõe a dicotomia que
marcava as indumentárias usadas na cidade. Em um extremo: de um lado, moças
em plena sintonia com as “modas do estrangeiro”; no outro, senhores com chapéus
que remetiam aos séculos passados, porém visíveis ainda na cena urbana local.
Não é demasiado observar que o chapéu remetia a uma época de
masculinidades e cabeças cobertas, pois “[...] o chapéu fazia parte integrante do
vestuário, tendo um papel preponderante na análise da personalidade de um
cidadão. Se pelo aspecto se podia avaliar suas posses, pela maneira pelo qual era
utilizado se avaliava sua educação doméstica”254. Seguindo os apontamentos de
Vianna, pode-se constatar que romper com o uso do chapéu nesta época significava
também, para parte da população, eliminar um símbolo de distinção, logo muitos
ainda resistiam.
No percurso entre o arcaico e os novos costumes, o uso do chapéu,
observado como símbolo de conservadorismo, ganhou as páginas do jornal no ano
seguinte. A reportagem trazia a seguinte manchete: “A questão é... usar ou não usar
de nôvo o chapéu?”255. O texto mostrava com clareza a tradição do uso do chapéu
ainda presente na cidade.
Entre os costumes tradicionais em relação à aparência, o periódico destacava
o funcionário municipal Sr. Paulo Santos Silva. Silva, quando entrevistado,
argumentou que o chapéu era um complemento essencial ao traje masculino e
disse: “[...] o chapéu dá mais elegância ao homem, importância e respeito aos seus
semelhantes”256. O Major Cosme de Farias afirmava que “[...] deixar de usar o
chapéu é mesmo que estar nu”257. A reportagem evidencia seu chapéu de palhinha
como tradicional e ressalta que, assim como o major que usava cotidianamente o
253
Tecido felpudo de lã usado na confecção de chapéus.
VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim, op. cit., p.199.
255
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 18/19 abr. 1965.
256
Id., loc. cit..
257
Id., loc. cit..
254
144
chapéu, anos antes era um “[...] complemento do vestuário masculino, era usado por
todos sem distinção de classe ou côr”258.
A elegante peça, anos antes usada por todos, ganhou destaque na imprensa
local motivada “[...] com grande destaque pela imprensa do sul do país, tendo
repercussão na Bahia, principalmente entre aqueles conservadores” 259, ressaltava o
Diário de Notícias. O texto jornalístico possibilita analisar costumes tradicionais
pertinentes à moda, ainda muito presentes no cotidiano da cidade. Para além desse
aspecto, é notório observar como um componente da aparência, neste caso o
chapéu, era visto como símbolo de importância e respeito, conforme destacado pelo
funcionário municipal. Não é demasiado acrescentar o caráter simbólico associado a
esse acessório que, alem de funcionalmente proteger das inclemências do tempo,
adquire estatuto de garbosidade, de completude da composição da aparência. Para
muitos dessa época, era a finalização meticulosa da “fina estampa” já mencionada
anteriormente. Nesse mesmo percurso, insere-se a ‘roupa de ver Deus’, pensada
pelo seu usuário ou outrem como uma vestimenta melhor que as demais, de fato
uma simbologia, fruto do imaginário dessa sociedade.
A reportagem aponta ainda o jornalismo do Sul do País influenciando as
pautas locais referentes á moda e aos modismos. Todavia, um aspecto relevante da
reportagem se dá quando destaca outras modas sendo incorporadas ao cenário
urbano local. Nos depoimentos dos “tradicionais”, conforme o jornal observava,
reside a fala das “modernidades”. O funcionário público municipal Silva, enquanto
defende o costume do chapéu, diz “sentir” 260 que o homem de 1965 “[...] se
despersonaliza a cada instante, não apenas por não usar chapéu, mas e o homem
sem meia, com calças apertadas e curtas, o homem de havaianas, cabeludo,
perdendo a respeitabilidade pessoal”261.
Menos nostálgico com o movimento dos costumes, o senhor Joaquim Couto,
proprietário da Chapelaria Império262, destaca, na sua fala, o hábito dos jovens
258
Id., loc. cit.
Id., loc. cit.
260
É importante destacar, tendo a fala desse entrevistado como eixo, que as roupas estão
impregnadas de sentidos e sensações, sentimentos pertinentes às pessoas e às coisas. Neste caso,
o “sentir” revela certa nostalgia em relação às mudanças de costumes.
261
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 18/19 abr. 1965.
262
Nessa reportagem, é citado um número significativo de lojas que vendiam chapéus em 1965 na
Cidade do Salvador, sendo a Chapelaria Império, a Chapelândia, de propriedade do senhor Cândido
259
145
europeus substituindo os chapéus por boinas. Diz não acreditar que “[...] os rapazes
de hoje imitem seus antepassados, principalmente agora que estamos na época das
bossas”263. Os argumentos dos senhores baianos evidenciam com clareza que a
cidade, marcada pela tradição, ia também incorporando outras modas, que
sinalizavam rupturas futuras, como foi o caso do chapéu, que entrou em desuso nos
anos seguintes. Enquanto isso, os cabeludos de calças apertadas proliferavam.
Como se dizia na época, era a bossa, a novidade.
A palavra bossa-nova, ou mesmo bossa, usada como atributo ou qualidade
peculiar a pessoa ou coisa, denotando o novo, era constante no texto jornalístico do
período estudado. Em outubro de 1960, noticiava o jornal: “Bossa-Nova na Escola
de Teatro: entrada agora custa Cr$ 20”264. Na reportagem, a novidade era a inserção
da cobrança de ingressos, buscando derrotar a tradição dos “convites-especiais”. O
texto destacava ainda a cobrança tanto nas pré-estreias e estreias, pois em “[...]
todos os espetáculos indistintamente serão cobrados ingressos”265.
A bossa, sinônimo de novo, logo moderno, não se restringia em derrotar o
hábito dos soteropolitanos em não querer pagar ingressos no teatro, valendo-se de
sua posição social. O termo com frequência era usado nas reportagens pertinentes à
moda. Noticiava o Jornal, no verão de 1967, “a bossa dos decotes” 266 e seguia
dando visibilidade às novidades da moda daqueles dias: “Em 67, a mulher jovem é
quem manda. Moda é ser jovem, cada vez mais. E isso atinge todos os setores da
vaidade feminina”267. O texto aborda as novidades na maquiagem, “quase ausente”,
o penteado “agora quase natural” e, nas roupas, o uso dos decotes, “em linho rosou,
decote com tira em viés cruzado no pescoço, saia ligeiramente ‘evasée’” 268. O texto
do periódico convida ainda as leitoras a aderirem a outro “decote audacioso, este em
V terminando em alças fechadas por duas fivelonas do mesmo tecido, que poderá
ser linho grosso, em tom ocre”269. A bossa era ser jovem e ousada.
Braga, e a Chapelaria Bahiana, do senhor Silvio Quadros Mercês, especializadas na venda de
chapéus.
263
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 18/19 abr. 1965.
264
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 5, 25 out. 1960.
265
Id., loc cit.
266
Idem, 4 jan. 1967. Cad. 2, p. 2.
267
Id., loc. cit.
268
Id., loc. cit.
269
Id., loc. cit.
146
A bossa daqueles dias na Cidade da Bahia era ir “curtir” os dias ensolarados
na Praia da Barra e as mulheres desfilarem seus trajos de banho de duas peças. A
reportagem ilustrada com fotografias nos revela as vestimentas de banho daquele
verão, e seu texto nos informa sobre a adesão de muitos habitantes da cidade a esta
sociabilidade muito praticada nos dias de verão, marcados por altas temperaturas.
Não é demasiado lembrar que esta pesquisa está estreitamente relacionada ao
cotidiano da cidade, sua rotina ordinária e extraordinária, locus onde aparecem as
roupas ordinárias e as roupas domingueiras, e, por esse motivo, aqui destacamos
mais uma dessas sociabilidades da urbe soteropolitana.
A faixa litorânea, um lugar praticado com certa democracia ao longo do dia,
reunia pessoas de diferentes camadas sociais. Na praia, “[...] barracas são usadas
em grande número, principalmente pelos casais acompanhados de seus filhinhos,
dão um colorido especial à bela praia”270, junto às famílias; jovens e turistas, no lazer
de verão, se aproximavam dos “[...] vendedores de refrescos, cocos verdes, roletes,
picolés e também os tradicionais baleiros da Boa Terra” 271, que mercavam
cotidianamente seus produtos, sendo coadjuvantes na mesma cena urbana.
Na parte alta das escadas que dão acesso à praia, “[...] as baianas que são
parte integrante do folclore da nossa Bahia, comparecem com suas iguarias.
Atendem aos banhistas que gostam de acarajé, abarás, cocadas, queijadas, etc.” 272.
No que tange às aparências, o texto jornalístico, assinado por Luiz Luzi, destaca “[...]
centenas de brotos, com maiôs clássicos ou sumários biquínis, quase todos com
óculos esportes bonitos e até extravagantes”273. Na Figura 33 pode-se verificar um
pouco daquilo observado por um olhar atento do jornalista.
270
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 8, 8/9 jan. 1967
Id., loc. cit.
272
Id., loc. cit.
273
Id., loc. cit.
271
147
Figura 33 – Dia de sol, roupa de mar.
Fonte: Diário de Notícias (1967).
Na fotografia, são mostradas duas mulheres trajando biquínis: a da direita usa
um modelo liso, tendo nas extremidades das duas peças um detalhe, provavelmente
na cor branca, que finaliza as peças; em ambas, pequenos laços de igual tonalidade
dão destaque à peça. Em relação a outros biquínis mostrados na reportagem, este
tem tamanho menor, provavelmente são os “sumários biquínis” ao qual o texto se
refere; a moça da fotografia porta também um chapéu de artefato natural e um lenço
ou touca que protege o cabelo.
A mulher da esquerda, em tom mais senhorial, usa um biquíni de dimensões
maiores, com estampas florais, na cabeça uma proteção para os cabelos,
provavelmente uma touca de natação. A presença do fotógrafo masculino 274 parece
ter inibido a mulher, e esta tem um gestual típico de timidez, roendo rapidamente a
unha. É destacável nas duas mulheres a presença de uma proteção nos cabelos,
levando-nos a inferir que a ida à praia naqueles dias era algo que não poderia
desfazer penteados e, por este motivo, a presença de lenço e similares era comum
nessas aparições públicas.
274
A reportagem traz destacado o nome do autor dos registros fotográficos: Arestides Batista.
148
Em suma, na análise das fotografias que mostram a população baiana
ostentando as mais variadas indumentárias em suas práticas cotidianas, foi possível
observar que as roupas estavam muito associadas às condições climáticas da
cidade tropical. O uso do algodão e similares se destaca nesse contexto, pois traz
maior conforto numa cidade marcada por altas temperaturas ao longo do ano.
O uso de sapatos baixos ostentados pelas mulheres se adaptava melhor às
demandas fora do privado, pois nessa época os percursos citadinos eram
geralmente realizados a pé, principalmente as compras e idas ao médico,
executadas na região central da cidade, como revelado anteriormente, a partir dos
estudos de Milton Santos.
Outro aspecto notável no que tange à aparência era a dicotomia entre o
arcaico e as novas modas. No caso feminino, as calças compridas ou mesmo as
saias mais curtas estavam amalgamadas com práticas habituais que remetiam ao
passado, sendo as saias godês com comprimento abaixo dos joelhos uma expoente
notável desse período.
No âmbito masculino, o uso do chapéu e dos ternos de linho era um traço
notável da tradição da vestimenta ostentada por muitos e visível na paisagem
citadina. Também o homem soteropolitano aparece sempre nas cenas urbanas
usando sapatos de couro, como sinalizado em depoimento anterior, um homem
ostentando sandálias em via pública era observado por alguns como desrespeitoso.
Mudanças nas indumentárias masculinas foram observadas no uso de calças mais
justas, de chinelos de couros, de camisas com estampas e colarinhos sem
entretelas que deixavam o pescoço com maior liberdade de movimento, como
mostrado na Figura 27. Geralmente, essas peças aparecem ostentadas por um
público mais jovem, como estudantes, jogadores de futebol e outros.
Uma roupa que melhor se adaptasse ao clima tropical estava na pauta do dia.
Sobre esse tema, Flavio de Carvalho proferiu no Recife, em 1967, uma Conferência
intitulada “Trópico e Vestuário”, no Seminário de Tropicologia organizado por
Gilberto Freyre. Sua apresentação, iniciada com um histórico das vestimentas nas
mais diferentes sociedades, da Antiguidade à Contemporaneidade, é encerrada
detalhando seu trajo de verão desfilado por ele mesmo nas ruas de São Paulo em
outubro de 1956. A vestimenta era composta de um saiote, blusão dividido em tiras
verticais, meias reticuladas de bailarina, um grande chapéu e sandálias. O arquiteto,
também artista plástico, detalhou na sua fala as características intrínsecas na
149
vestimenta, como as psicológicas, presente na gola, que substituía o colarinho, que,
segundo ele, servia de ponto de apoio para compensar a inferioridade.
Todavia, a preocupação principal no trajo era o conforto, e diz Carvalho: “[...]
a indumentária que inventei era provida de válvulas no blusão, de maneira que o
movimento dos braços permitia a renovação do ar situado entre o tecido e o corpo,
enquanto que o movimento das pernas permitia a renovação do ar entre o saiote e o
corpo”275. O que se percebe na roupa-provocação de Flávio de Carvalho é uma
vontade de suscitar a reflexão do brasileiro em relação ao vestir, seja pelo
conservadorismo ou o desconforto da roupa formal, de origem europeia, aqui
inserida na época colonial e ainda bastante usada.
Na própria fala do idealizador do traje tropical de 1956, mais de dez anos
depois de sua criação, estavam incutidas respostas a suas provocações. A própria
indústria têxtil, possivelmente provocada pelo artista, dava a resposta através de
seus avanços de produção. Disse ele no Recife: “[...] na época não havia tecidos
apropriados. Com os tecidos atuais, a ventilação seria quase perfeita. Esse modelo
é um pré-modelo”276. O “look tropical” de Carvalho, espécie de obra de arte andante,
fazia uma crítica ao vestuário criado principalmente pelos franceses e, mediante os
mecanismos da globalização, consumido em diversos lugares do mundo, inclusive
no Brasil. A proposta de Carvalho pautava-se numa roupa que se adaptasse às
condições climáticas do País e a suas próprias identidades.277
3.2 MAIÔ DE MISS, BIQUÍNI DA ATRIZ E O VESTIDO DE RAINHA: INFLUÊNCIAS
DE MODA NAS PÁGINAS DO JORNAL
A chegada do europeu ao Brasil representa nossa adesão à vestimenta
europeia. Em nome de Deus e, sobretudo, em nome do pecado, os gentios foram
submetidos a outra cultura do trajo. Ao longo da nossa história, as influências quanto
às vestimentas foram múltiplas e diversas, fato que ocorre mediante a própria
dinâmica que permeia os sistemas que regem a moda, permitindo diálogos com os
mais variados setores da sociedade.
275
CARVALHO, Flavio de. A moda e o novo homem: dialética da moda. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2010. p. 296.
276
CARVALHO, Flavio de. A moda e o novo homem, op. cit., p. 296.
277
A questão da identidade em moda é perseguida em diversos artigos de Gilberto Freyre, que fazem
parte da sua obra Modos de homem e modas de mulher. op. cit..
150
Dessa forma, as influências quanto ao vestir podem ser oriundas dos setores
artísticos, econômicos, políticos ou das culturas presentes numa sociedade. Nesta
pesquisa, atentamos para a cultura do cinema e a cultura da leitura. Todavia, não se
pode esquecer (entre outras) que a cultura política e a cultura televisiva estavam
presentes na cultura brasileira de 1958-1968, sobretudo entre os jovens. Assim,
atenta-se que uma decisão política pode tornar-se o eixo principal para uma
revolução de costumes sociais, por adesão espontânea ou mesmo mediante o
enfrentamento. Nesse percurso, é importante lembrar que 1968 foi um ano marcante
na vida de muitos brasileiros, sobretudo pela instituição do Ato Institucional número
cinco (AI-5). Este instrumento legal recrudesce o regime de exceção imposto pelos
militares no Brasil, iniciado em abril de 1964, dando início ao período denominado de
“anos de chumbo”278.
Também em 1968 a televisão despontava como o mais importante veículo de
comunicação inserido no cotidiano brasileiro, impactando o comportamento da
população através de seus inúmeros programas. As influências oriundas da TV
seriam notáveis nas décadas seguintes, produtos apresentados em programas de
televisão, notadamente aqueles portados por elencos de novelas, ganham as ruas, a
exemplo, entre outros, das meias coloridas279 usadas por uma atriz de novela que se
tornaria um modismo.
A televisão brasileira surge em 1950, com a fundação da TV Tupi, em São
Paulo, implantada com assessoria técnica norte-americana; em 1956, a emissora já
tinha afiliadas em diversas capitais, como Curitiba, Rio de Janeiro, Recife, Belém,
Campina Grande, Fortaleza e também Salvador280. No ano de 1968, o País contava
com 10 emissoras: Tupi, Paulista, Rio, Itacolomy, Excelsior, Cultura, Gaúcha, Globo,
Bandeirante e Record. A grade desta última contava com o programa Quem tem
medo da verdade, no qual a vida de personalidades era passada em revista,
278
Expressão utilizada para denominar o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil,
estendendo-se basicamente do fim de 1968 a março de 1974, marcado por embates entre militantes
de esquerda e o aparelho repressivo policial-militar do Estado. Foi adotada em vários países (anni di
piombo, années de plomb, years of lead) e deriva do título do filme Die Bleierne Zeit (em português,
"Tempos de chumbo"), de 1981, da cineasta alemã Margarethe von Trotta, inspirado na história de
Gudrun Ensslin, liderança da extrema esquerda alemã, torturada e morta dentro da prisão de
segurança máxima de Stammheim, em 1977.
279
Refere-se à meia listrada brilhante usada pela atriz Sônia Braga na novela “Dancing Days”, em
1978.
280
A televisão no cotidiano brasileiro é analisada no texto de HAMBURGER, Esther. Diluindo
fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Org.). História da vida
privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,
v.4, p.439-487.
151
sobretudo os aspectos julgados polêmicos, por este motivo o “acusado” tinha um
defensor que ocupava o lugar de advogado de defesa.
No programa dedicado ao cantor Roberto Carlos, a principal acusação
centrava-se na influência do astro pop sobre a juventude brasileira, sobretudo, na
maneira de vestir; o apresentador Silvio Santos cumpriu o papel de defender o
“jovem e tímido” cantor, como ressaltou em seu discurso televisivo. Na sua fala,
também argumentou o apresentador: “Todos nós conhecemos a vida de Roberto
Carlos, pelos jornais e pelas revistas, diariamente os jornais e as revistas comentam
sobre o homem e o artista”.281
De forma eloquente e cumprindo o papel de defensor, Silvio Santos
argumenta que “[...] as acusações são muito frágeis: Roberto Carlos usa roupa
colorida, Roberto Carlos fez com que a juventude usasse colares, usasse
medalhões, usasse anéis, usasse o amarelo, o vermelho o azul”282. Depois de uma
breve pausa, o apresentador tocava no tema mais polêmico daqueles dias de
vigilância militarista, inserindo a temática sexual na discussão. Sobre a questão,
sentenciava: “[...] disseram até que essa juventude, talvez, por causa de Roberto
Carlos estivesse desmasculinizando, estivesse afeminada. Ora, desde quando a
roupa, desde quando os anéis, desde quando os colares desmasculinizam o
homem?”283. No momento em que o apresentador coloca as questões, a câmera
televisiva faz um movimento panorâmico284, de baixo para cima, com clara intenção
de evidenciar as vestimentas, e mostra o astro Roberto Carlos sentado em uma
cadeira.
Na cena, Roberto usa uma calça que parece ser um jeans escuro, mostra sua
mão portando dois anéis com pedras escuras e grandes, a câmera segue pela parte
frontal do corpo e mostra o uso de uma camisa estilo bata 285, com abertura frontal e
em tom claro, no pescoço diversos colares, semelhantes a tiras de couro, em um
deles um grande medalhão redondo, à época, um ícone fortemente associado ao
cantor e usado por muitos jovens. Não é demasiado observar que o cabelo de
Roberto Carlos nesse período era ondulado, sendo ele originalmente liso e fino,
281
Este programa exibido na televisão em 1968 faz parte dos Arquivos Record e é encontrado na
rede mundial no Site Youtube com o título Arquivo Record. 2007. Sílvio Santos, Parte 1.
http://www.youtube.com/watch?v=nk5v5cdEC3Q . Acesso em: 12 jan. 2012.
282
Id., loc. cit.
283
Id., loc. cit.
284
Movimento de câmera no qual um ambiente ou uma pessoa é mostrado de forma mais geral.
285
Vestimenta reta e longa, geralmente feita de tecido leve e fino, principalmente os tecidos indianos.
152
provavelmente foi fruto do processo artificial de ‘permanente’286 que naqueles dias
era moda.
A questão em pauta era a influência do astro em relação às vestimentas
usadas pelos jovens brasileiros, e o defensor, a seu modo, recorreu à História em
sua contestação: “[...] os guerreiros romanos quando entravam em Roma para
comemorar suas vitorias não entravam multicoloridos? Não usavam sandálias de
tiras? Deixavam de ser homem com ‘H’ maiúsculo? Deixavam de ser guerreiros?
Deixavam de obter suas vitórias?”287, interrogava o apresentador, sugerindo uma
reflexão. Em sua oratória, Sílvio Santos acusa outros artistas e traz para discussão
as influências de outros ídolos da juventude que, segundo ele, declaravam que os
jovens deveriam usar psicotrópicos, consumir entorpecentes e pousavam sem
roupas nas capas de seus discos, atitudes julgadas por ele como indecentes.
Ainda como argumentação, lança mão de um ritual de grande valor na época,
na sociedade brasileira, que era o casamento. Ele argumenta que o cantor, no auge
de sua carreira, desprezou outras moças, inclusive ricas, e se casou com uma jovem
que amava, mesmo esta sendo desquitada. Nas entrelinhas do discurso, existem
inúmeras contradições, embora o apresentador desconstrua a influência em relação
às roupas, ao mesmo tempo reforça que drogas e nudez eram elementos de
influência por parte de outros artistas.
O discurso de Sílvio Santos em um veículo de comunicação que alcançava
milhares de espectadores nas diferentes regiões do Brasil traz contribuições
importantes em relação à análise da vestimenta no Brasil, sobretudo no que tange
às influências. Fica evidente que determinadas cores nas vestimentas masculinas e
acessórios, como anéis e colares usados por um homem, mesmo oriundo do meio
artístico, eram percebidas por conservadores brasileiros como algo desabonador da
conduta masculina.
É bom esclarecer que determinadas cores eram percebidas como tons da
grade feminina, como rosa, apreendida desde a infância como cor de menina, e a
vermelha. Nesse contexto que estabelece diálogo com simbologias e imaginários,
essa última era também muitas vezes associada ao comunismo.
Para além desse aspecto, que revela muito das representações que o
brasileiro fazia em relação ao ser homem e ser mulher, a fala do apresentador de
286
287
Ondulação artificial do cabelo, relativamente duradouro.
Id., loc. cit.
153
televisão, mesmo quando procura negar desvela a influência artística de diversas
maneiras, aquilo que chamamos de cultura de massa. Neste caso, marcadamente, a
influência se dá sobre a juventude no seu modo de trajar e de se comportar.
O episódio é singular para evidenciar que as influências em relação ao vestir
são múltiplas. Por questões de recortes metodológicos, selecionamos as misses, as
rainhas e as atrizes para ilustrar essa ampla questão. É importante evidenciar que
essas personagens apareciam com grande frequência nas páginas do Diário de
Notícias e se amalgamavam com as outras notícias do cotidiano, criando uma
intimidade entre os indivíduos da cidade e estas ilustres “representantes da beleza”.
A moda, assim como outras instâncias da vida, é uma construção cultural,
histórica, localizável no tempo e no espaço288. No espaço citadino de Salvador no
período de 1958-1968, as vestimentas ostentadas no cotidiano mostram-se como
resultados de diversas influências culturais. Seria demasiado amplo fazer aqui esse
inventário, assim, evidenciaremos duas que muito se destacam nesse contexto: a
cultura cinematográfica, engendrada desde o início do século XX na vida da cidade,
e a cultura literária, marcadamente de jornais e revistas que atingiam, sobretudo, a
classe média local, embora amplamente divulgada pela oralidade.
Nesse percurso, não constitui um exagero afirmar que revistas e jornais
consumidos pelas mulheres das camadas médias baianas e, em menor proporção,
das camadas populares tinham como destino final as mesas das costureiras, muitas
oriundas das camadas baixas, com a finalidade de copiar os modelos. Dessa forma,
a moda parisiense ou o vestido da atriz norte-americana eram introduzidos também
nas camadas baixas, por vezes, reproduzidos pela costureira para si e suas
vizinhas.
Seja através dos filmes exibidos na cidade, das fotografias vinculadas nos
jornais locais ou, em menor quantidade, dos artigos, a moda era assunto sempre
presente. Influenciar as mulheres quanto ao modo de se vestir parece intenção clara
do jornal Diário de Notícias no período de 1958 a 1968. Nas imagens 289 que
estampam suas páginas, atrizes e atores, misses e personalidades da realeza
despontam como expoentes na divulgação de modas e modismos. Essas
personalidades, como já sinalizado, apareciam com grande frequência nas páginas
288
CIDREIRA, Renata Pitombo. A sagração da aparência, op. cit., p. 24.
Neste caso, referimo-nos às fotografias que estampam notícias e imagens oriundas das
publicidades, e, por vezes, estas usavam personalidades do meio artístico.
289
154
do periódico, principalmente nas reportagens de moda, nas colunas sociais, para
não citar outras.
Neste sentido, a obra O império do efêmero faz considerações substanciais
em relação à publicidade de moda, suas intenções e seu crescimento depois da
segunda metade do século XX. Segundo Lipovetsky, a “[...] publicidade mostra suas
garras”, apelando para o “efeito-chique” em que predominam produtos plasticamente
valorizados,
cenários
luxuosos,
interiores
suntuosos,
fotografias
com
valorizando rostos e corpos belos; é a sedução clássica pela beleza.
290
brio
Neste
cenário, moda, vestuário, cigarros e cafés estão amalgamados por uma mesma
intenção: poetizar o produto e a marca, idealizando o trivial da mercadoria, conforme
ressalta o autor francês.
Para Lipovetsky, a publicidade e a moda se dirigem, principalmente, ao olho,
sendo “[...] promessa de beleza, sedução das aparências, ambiência idealizada
antes de ser informação”291. Neste caminho da sedução através do olhar, o autor
acaba por inserir, nesse cenário, a cultura de massa, notadamente o cinema,
através de seus astros e estrelas. Segundo ele, são essas “[...] figuras de charme
com sucesso prodigioso que impulsionam adorações e paixonites estremas” 292.
Seguindo a lógica do autor, “[...] com as estrelas, a forma moda brilha com todo seu
esplendor, a sedução está no ápice de sua magia”293.
Buscando realçar essa ideia e enfatizar esses seres como “líderes de moda”,
capazes de destronar mulheres da sociedade em matéria de aparência, o filósofo
contemporâneo destaca alguns costumes difundidos através do cinema em
sociedades díspares. Como exemplo destaca o corte de cabelos semilongos de
Greta Garbo, os penteados rabo de cavalo ou ondulados de Brigitte Bardot, a
aparência “descontraída” de Marlon Brando e James Dean ou mesmo o furor
causado pela atriz Marlene Dietrich com as sobrancelhas depiladas são alguns dos
muitos costumes citados. Não esqueceu ainda o autor de sublinhar que as estrelas
despertaram “[...] comportamentos miméticos em massa”, suas maquiagens de olhos
290
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero..., op. cit., p. 218.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero..., op. cit., p. 219.
292
Id., ibid.,p. 248.
293
Id., loc. cit.
291
155
e lábios294 foram amplamente imitadas bem como suas posturas e mímicas
corporais295.
As análises do autor francês não deixam margem para que se duvide que a
moda pactua com outros setores da sociedade para sua promoção e sedução de
olhares e corpos. Neste sentido, o cinema e a mídia foram e continuam sendo dois
grandes aliados da moda, por vezes tão conjugados que dificultam sua separação.
Este casamento a três – moda, cinema e mídia – foi o foco do documentário Beleza
Francesa296, do diretor Pescale Lamche, que se propôs a investigar a interface entre
a indústria de cosméticos, de perfumes, de moda, amalgamada com a cultura e a
beleza feminina francesa propagada pelo cinema, gerando inclusive um padrão
estético de beleza que prevaleceu por décadas no imaginário de diversas culturas.
As imagens vinculadas à propaganda, objetos de sedução ao consumo,
também não passaram despercebidas no trabalho da historiadora Maria Claudia
Bonadio297, pois sua pesquisa sobre moda e sociabilidade em São Paulo, nos anos
20, atentou para os folhetos da loja de departamentos Mappin Stores. Nesses
folhetos, é notória a figura feminina das camadas médias, público-alvo da “loja de
modas”.
Essas mulheres sofisticadas eram frequentemente mostradas nas gravuras
em situações de elegância e glamour, como uma mulher ostentando um modelo
melindrosa, cabelos curtos, olhar blasé e batom rubro, ou duas mulheres passeando
com chapéus de abas longas e levando um cachorro pela coleira, ou, ainda, uma
mulher magra e alta envolta em casaco, tendo ao fundo um automóvel, aludindo aos
novos tempos paulistanos. Em suma, era o “efeito chique” como sentenciado por
Lipovetsky, intencionando a sedução das mulheres paulistanas ao consumo
principalmente de indumentárias e, por consequência, criando novas sociabilidades
nas quais a aparência despontava no primeiro plano.
294
Ao longo deste trabalho, em muitas das personagens analisadas através das fotografias, foi
observado que as maquiagens usadas eram similares àquelas usadas por estrelas do cinema.
295
LIPOVETSKY, Gilles. O império..., op. cit., p. 249.
296
O filme documentário conta com os depoimentos de ícones deste padrão de beleza francesa,
configurando-se como importante documento histórico. Entre outros depoimentos, podem-se destacar
os de Catherine Deneuve, Brigitte Bardot, Jeanne Moreau. Foi exibido no Brasil no Festival do Rio,
em 2005.
297
BONADIO, Maria Claudia. Moda e sociabilidade: mulheres e consumo na São Paulo dos anos
1920. São Paulo: Senac São Paulo, 2007.
156
A consagração da aparência, em particular na Bahia, foi o tema da pesquisa
da jornalista Renata Pitombo Cidreira. Em seu trabalho, ela analisa o jornalismo de
moda na Cidade do Salvador nas décadas de 70 a 90. Todavia, percebe suas raízes
fincadas e florescendo na década de 60 no Brasil, sendo o Diário de Notícias um
expoente neste empreendimento. Cidreira não deixou de atentar para o fato de que,
intrinsecamente, a esta tipologia de mídia preside “[...] o nascimento da publicidade
das coisas”298. Para seu fiel cumprimento, o jornalismo feminino “[...] utiliza a
potência material e intelectual das imagens, variável escritura e uma nova
sensibilidade”299, como destaca a autora. Dessa forma, atentos às sentenças da
autora, podemos compreender que o jornalismo de moda tem sido historicamente
mais um aliado para a sagração da aparência.
Na busca para realçar essas ideias sugeridas pelos autores de três campos
distintos das humanidades, não é demasiado salientar que a consagração da
exterioridade iniciada no Brasil nos começos do século XX, conforme Bonadio e
Cidreira300 apontam, vive seu ápice nos tempos contemporâneos. Nesse
empreendimento, o cinema, as mídias, valorizando sempre a imagem, criaram a
ilusão de proximidade entre pessoas comuns e personalidades artísticas e, dessa
forma, as vestimentas externam essa aproximação, através dos cortes, dos modelos
ou mesmo das cores, visível nas ruas de Salvador ou de qualquer urbe brasileira,
fato atual mais notório através das fotografias já no período pesquisado.
Feita essas considerações, não se devem negligenciar as intenções
comerciais intricadas ao universo da moda. No caso das misses, os maiôs
ostentados nos concursos Miss Bahia, Miss Brasil e Miss Universo eram sempre da
marca Catalina, que buscava divulgar a marca com constante inserção no jornalismo
local, consolidando-se no imaginário nacional como o ‘maiô das misses’. As
estratégias da marca acabavam por unir influência ao faturamento. A Figura 34 faz
parte dos mecanismos da marca para divulgar seus trajes de banho.
298
CIDREIRA, Renata Pitombo. A sagração da aparência..., op. cit., p. 69.
Id., loc. cit.
300
No trabalho de Cidreira citado, ela destaca um artigo de moda na imprensa baiana que data de 16
de julho de 1913.
299
157
Figura 34 – Maiô.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
No final de maio de 1958, ocorreu na Cidade do Salvador o concurso de Miss
Bahia. Nos dias que antecederam a disputa, o tema era constante nas páginas do
Diário de Notícias. As concorrentes apareciam em diversos tipos de reportagens,
sobretudo valorizando suas potencialidades de beleza e estilos no cotidiano, seja
nas roupas usadas, nos cortes de cabelo ostentados ou outros detalhes pertinentes
à moda.
Dentre essas reportagens, uma era explícita como divulgação de produto: “[...]
últimos modelos da linha Catalina”, sentenciava a chamada do texto, e seguia: “[...] o
Sr. Alfredo Blum, diretor presidente dos maillots Catalina no Brasil, reuniu ontem, no
apartamento 717 do Hotel da Bahia, um grupo de representantes da imprensa para
apresentação dos últimos modelos da linha Catalina”301·. A notícia ainda destacava
que a marca patrocinava o Concurso de Miss Universo, vestindo “[...] as moças mais
bonitas do mundo”, dessa forma valorizava suas peças como internacionais.
Edda de Oliveira era realçada no texto como manequim exclusiva da marca e
alguns dos modelos usados no desfile eram evidenciados, como o que aparece na
301
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1, 23 maio 1958.
158
Figura 34, claro e liso. O texto informava ser confeccionado em cassa 302 e
acompanhava um casaquinho, o traje fora apelidado de “catalina girl“, conforme
destacado na notícia. Na mesma foto, a manequim exclusiva usa um maiô
quadriculado acompanhado de uma saída de praia, em igual estamparia, que,
fechada, cria a ilusão de um vestido abaixo dos joelhos, próprio para atividades
vespertinas de verão.
A imagem do maiô preto, chamado de “seen back”, não foi veiculada na
notícia, todavia o jornal instigava as leitoras a conhecê-lo. Na reportagem, é possível
verificar que as peças possuem nomes, conferindo-lhes identidades, sempre em
inglês. Assim, os maiôs eram percebidos como internacionais e valorizados na
dinâmica do período, que se espelhava no modelo norte-americano, sobretudo em
relação aos hábitos de consumo, quer seja uma enceradeira ou um traje de banho.
Essas influências oriundas das “moças mais bonitas do Brasil e do mundo”,
conforme o jornal sentenciava, está presente nos discursos de diversas pessoas que
vivenciaram a época, seja oriundas das camadas populares ou das próprias
misses303, ou mesmo de pessoas das camadas médias. Alberto Villas304, em suas
memórias imagéticas e textuais305, não se esqueceu de destacar a inserção das
misses no cotidiano brasileiro e seus trajes, objetos de fantasia para os meninos da
época. Sobre estas escreveu: “No dia da finalíssima do concurso de Miss Brasil o
país parava. Era como se fosse uma Copa do Mundo de Futebol. Olhos grudados na
televisão torcíamos como num Fla-Flu”306. O jornalista que diz ser de uma época que
moda de criança era camisinha de pagão307 e fralda era de pano, evidenciando
aspectos relativos às indumentárias do período estudado, segue afirmando: “[...] a
302
Tipo de tecido geralmente adornado com florais bordados de igual cor e vazados, permitindo maior
ventilação.
303
Nas entrevistas realizadas com ex-misses, os maiôs Catalina sempre foram lembrados, as exmisses destacaram nas suas entrevistas as cores dos modelos usados nos concursos de que
participaram e adjetivaram a peça como um modelo clássico.
304
VILLAS, Alberto. O Mundo acabou!. São Paulo: Globo, 2006.
305
A obra de Alberto Villas constitui uma coletânea de crônicas aliadas a imagens da época, entre
outras: das xícaras Colorex, da aveia Quaker, do sabonete Lever, da calçadeira, do escovão, da
roupa engomada, das calças Far-West. Em suma, imagens de um cotidiano que, segundo ele,
acabou.
306
VILLAS, Alberto. O Mundo..., op. cit., p. 97.
307
Na época, era a roupa usada pelos bebês nos primeiros meses de vida e também no momento do
batismo católico. O termo pagão refere-se ao momento anterior ao batismo católico.
159
cada minuto a televisão dizia: as misses estão usando maiôs Catalina. Como eram
empinados aqueles peitinhos das misses dentro dos maiôs Catalina!”308.
As memórias afetivas do autor notabilizam os trajes de banho inseridos no
imaginário brasileiro daqueles que viveram a época e mostram como o universo dos
concursos mobilizava inúmeras pessoas, bem como destaca a televisão na cena
cotidiana de adultos e crianças no Brasil.
As reminiscências do autor remetem às décadas de 50 e 60. À época, “[...] as
mães de família não podiam ser sensuais. Tornavam-se precocemente matronas,
disfarçando os estertores de sua juventude em roupas de cores discretas ou
tristes”309. Era um momento de controle social e repressão aos modos de vestir e
aos costumes, que eram mais rígidos para as mulheres, sobretudo, as casadas,
porém estes controles atingiam também as jovens, inseridas em diferentes
estruturas familiares. Dessa forma, as vestimentas e outros elementos pertinentes à
moda eram de certa forma padronizados. Um exemplo notável é o uso das saias
godês, tipo de saia que geralmente tinha seu cumprimento até os joelhos ou abaixo
deles. Eram peças usadas por uma infinidade de mulheres, jovens ou com mais
idade, como um padrão, sendo inclusive usadas nos ambientes escolares, ou seja,
nas rotinas diárias em Salvador. A cidade vivia naqueles dias o sonho de se tornar
uma cidade moderna, porém os aspectos do passado eram marcantes, inclusive nas
vestimentas.
Nessa conjuntura, as misses despontavam em alguns casos como mulheres
que evidenciavam outras aparências. O cabelo ostentado pela candidata da
Faculdade de Direito da Bahia no Concurso Miss Bahia 1958, Helena Inês Melo e
Silva, é observado como um desses casos. Nas fotos das candidatas desse ano,
mas também dos anos posteriores, os cabelos seguem um mesmo padrão de corte
e penteados, sendo ela a única a ostentar um cabelo bastante curto para o padrão
feminino da época, possível de ser visualizado na Figura 35.
308
VILLAS, Alberto. O Mundo..., op. cit., p. 97.
NASCIMENTO, Angelina Bulcão. Trajetória da juventude brasileira: dos anos 50 ao final do século.
Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo: EDUFBA, 2002. p. 45.
309
160
Figura 35 – Cabelo de Miss.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
A candidata universitária, que já havia participado também do concurso
Glamour Girls, posteriormente se tornaria uma atriz de filmes nacionais e, nesse
período, parece já influenciada pela sétima arte no que tange à aparência. É
possível acreditar que seu corte foi influenciador também para outras moças que
tinham nas misses inspiração para seus costumes, sobretudo nos aspectos
relacionados à beleza.
Lucia Regina Castro310 foi outra concorrente no Concurso Miss Bahia em
1968. Naquele ano, o concurso havia expandido o número de participantes, tendo
mais de vinte inscritas, algumas oriundas de cidades do interior, como Itabuna e
Juazeiro. O concurso sinalizava claramente um crescimento do evento de beleza e
afirmava um diálogo entre a cultura da Capital e a cultura interiorana. Da seleção em
Salvador, saiu a Miss Universo 1968, a baiana Marta Vasconcelos. Lucia Regina,
quando inquirida sobre a influência das misses em relação a outras jovens, foi
incisiva, respondendo: “Sem sombra de dúvida”311. Em sua entrevista, evidenciou
que as participantes do concurso eram vistas “[...] com respeito e admiração, o
310
311
Nome fictício para a concorrente do Miss Bahia 1968.
Entrevista realizada em março de 2011.
161
concurso era bem família”312. As palavras da candidata reforçam o aspecto da
influência, quando salienta os sentimentos de respeito e admiração que a sociedade
mantinha em relação a essas “moças”. Tais sentimentos possibilitam alguém querer
copiar posturas e hábitos do outro, seja suas ideologias ou o que porta.
A entrevistada aponta também um aspecto singular dessa temporalidade: a
família. Seguindo a pista denunciada por ela, fica notabilizado que as participantes
eram oriundas de uma classe média local e, por conta disso, rotuladas como “moças
de família”. A manutenção dessa instituição também era fortalecida por elas. Era
comum, nas rotinas das misses, serem desposadas após a participação em
concursos, geralmente por homens da elite, e os enlaces eram sempre objeto de
destaque nas páginas do Diário de Noticias.
Ana Lucia Oliveira Freitas de Carvalho também foi uma candidata do
Concurso Miss Bahia, alguns anos depois de Lucia Regina Castro. Na entrevista
com Ana Lucia de Carvalho, foi possível perceber, nas entrelinhas, que rememorar
aqueles dias de rainha da beleza é algo ainda prazeroso. Quanto ás influências
oriundas dessas personalidades, afirmou: “As mais jovens passam a lhe olhar, lhe
imitar, ver como você anda, influencia sim, inclusive criticando” e arremata: “Você
passa a ser mais paquerada”, todavia “mais flertes que namoro” 313.
Para além dos assédios masculinos, conforme declarado pela segunda
candidata, nas duas entrevistas é notável que as “embaixatrizes da beleza feminina”
eram influenciadoras de outras jovens de múltiplas formas, seja na elegância ao
andar, seja imitando suas vestimentas, inclusive passíveis de críticas. A própria
crítica é indicador de certo grau de influência, pois criticar algo ou alguém significa
que aquilo ou aquele que é criticado impactou de alguma forma as sensações de
outros.
Aspectos pertinentes às vestimentas e à elegância ganham destaque nas
falas das misses. Rememorando o que influenciava no vestir daquele momento,
Lucia Regina lembra o nome de Yves Saint Laurent e os smokings para mulheres,
mas ela própria “[...] gostava de conjuntos safáris e tubinho”. Nos apontamentos da
ex-Miss, residem informações que denotam que as tendências mundiais de moda
estavam inseridas no cotidiano da cidade, pelo menos entre as jovens das camadas
médias da sociedade baiana.
312
313
Entrevista realizada em março de 2011.
Entrevista realizada em 18 de julho de 2011.
162
Vale recordar que, em meados de 1960, a moda internacional, até então
dominada por costureiros franceses, passa a ser ditada por um grupo de estilistas
londrinos, concentrados nos consumidores jovens. Uma reviravolta francesa
ocorreria com o desenvolvimento do prêt-à-porter e por inovações de Pierre Cardin,
André Courrèges e Yves Saint Laurent314. Este último havia iniciado carreira
trabalhando para Cristian Dior, todavia, no começo dos anos 60, inaugura sua
própria marca. Em 1966, lançou o smoking para mulher, uma criação observada
como revolucionária, uma provocação sexual para mulheres que ansiavam ter outro
papel, sugerindo-lhes se inserir no mercado de trabalho usando calças e tendo
conforto em condição igual aos homens, mas mantendo a sofisticação, aspectos que
marcaram sempre as criações do estilista francês.
Do outro lado do Atlântico, a jovem Lucia Regina, então com 18 anos,
mandava fazer sapatos personalizados em Waldemar 315, no bairro da Saúde, e
admirava a postura contestadora que chegava até ela através das vestimentas,
sendo posteriormente incorporada ao seu guarda-roupa. Naqueles dias de Miss,
eram os vestidos tubinhos que mais gostava de usar. Outras representantes da
beleza, assim como ela, também aderiam ao modismo e, dessa forma, iam deixando
para trás os vestidos de saias rodada, tipo godê, que remetiam ao estilo romântico
do final do século XIX.
Tânia Maria Aguiar era uma dessas. Concorrente no concurso Glamour Girl
de 1968, foi à TV Itapoan para participar do programa “O papo é Miss Bahia”,
apresentado pela atriz Meire Nogueira, conhecida do público televisivo pela
personagem de novela Conchita, vivida ao lado do ator Sérgio Cardoso, conforme
lembrava o jornal316. Na ocasião, a “morena girl” usava um vestido em estilo tubinho,
de cor clara, em seda ou cetim, sendo a parte frontal, quase na totalidade, tomado
por um bordado que lembrava uma orquídea. Sendo o vestido reto, as formas do
corpo da jovem candidata eram realçadas pela própria estrutura do vestido, algo que
também apontava, assim como a criação de Laurent, para uma provocação sexual,
pois o corpo feminino, até então disfarçado em diferentes maneiras de corte, era
agora valorizado. A gola do vestido não chega a ser um decote, é estilo canoa,
314
MENDES, Valerie D.; LA HAYE, Amy de. A moda no século XX, op. cit., p.159.
Waldemar Calçados é uma casa que fabrica sapatos personalizados sob encomendas, hoje fica
localizada na Rua Princesa Isabel no Bairro da Barra em Salvador, sendo Waldemar o designer
responsável pelas criações. Este artesão vem durante mais de quatro décadas, dedicando-se a
fabricar sapatos especiais por encomenda para as elites da Cidade do Salvador e do interior baiano.
316
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1, 10 maio 1968.
315
163
deixando o pescoço visível, livre e sem a opulência do colarinho ou golas. Não tinha
mangas, dessa forma os braços magros e sem musculatura aparente eram
totalmente deixados à mostra. Em suma, toda a vestimenta aponta para a liberdade
que se ansiava naquele período, possível de se ver na Figura 36.
Figura 36 – A Miss e o vestido tubinho.
Fonte: Diário de Notícias (1968).
Através da imagem, é possível perceber a elegância imposta a uma
participante de um concurso de beleza. Seja no sentar, na posição das mãos,
colocadas sobre a bolsa-carteira, ou até no breve sorriso que a moça esboça, todo o
conjunto era padronizado, tendo inclusive pessoas destinadas a essa função, com a
finalidade de moldar as moças dentro de um modelo de etiqueta elitista. O retrato
destaca ainda as joias ostentadas pela moça e, marcadamente, seu penteado bolo
de noiva, em plena sintonia com as tendências mundiais da década.
Segundo Chataignier, em matéria de moda, os anos 60 podem ser
considerados os mais importantes do século XX, sobretudo por suas inovações na
maioria dos centros urbanos de todo mundo, com eco no Brasil. No que tange aos
cabelos, estes foram inovados com “[...] coques imensos em forma de flor, cacho,
164
bananas ou bolo, sempre com franja. Também curtos com franja espessa” 317. Dessa
forma, o cabelo ostentado pela Glamour Girl Helena Inês em 1958 era uma inovação
naqueles dias, ela estava lançando moda e em plena sintonia com as modas dos
cabelos da década de 60.
Não apenas os cabelos, os vestidos com estampas psicodélicas e os trajes de
banho das representantes da beleza feminina eram apontados nas páginas dos
jornais locais. As atitudes delas também ganhavam destaque nas páginas
jornalísticas, podendo ser um levantar de saia nas águas da praia, revelando as
coxas da personalidade, ou uma beijoca numa criança da família. A Figura 37
pertence a esse contexto e faz parte da vida privada da Miss Brasil Marta Rocha,
todavia, dada a sua notoriedade, ocupou um lugar de destaque no periódico local.
Figura 37 – Miss e costumes.
Fonte: Diário de Notícias (1960).
A fotografia mostra um dos vários e sempre noticiados retornos da Miss à
Capital baiana, mas mostrava uma diferenciação em relação a outras, como aponta
o periódico: “[...] o luto não escondia a beleza maior e seu corpo mais magro lhe
conferia a dignidade justa de uma senhora. Estava feliz, beijou seu pai, seus irmãos
317
CHATAIGNIER, Gilda. História da Moda no Brasil, op. cit., p. 143.
165
e sobrinhos”318. O texto destacava a recém-viuvez da jovem senhora e, dentre todas
as fotos, esta chamava a atenção, pois ela dá o que hoje é chamado de “selinho” em
um membro da família, denotando um novo costume. Quanto às vestimentas,
apontava para um tipo clássico de viúva, incluindo ainda chapéu de grandes abas
para proteção do sol no dia de procissão do Senhor dos Navegantes, como
destacou o jornal319. Sua composição parece saída de um clássico do cinema
italiano.
O cinema, através das suas estrelas e astros, estava presente no imaginário e
no vestir de muitos na Cidade da Bahia, como destacado anteriormente. Neste
sentido, a entrevista com Maria Regina traz considerações importantes que nos
ajudam a contextualizar esse aspecto social. Quando questionada sobre as
personalidades da época que a marcaram, lista, sobretudo, uma variedade de astros
e estrelas do cinema nacional e internacional: Audrey Hepburn ocupa o primeiro
lugar, seguida de “Elizabeth Taylor, Brigite Bardot, Gloria Menezes, Anselmo Duarte
de ‘O Pagador de Promessas’, Tarcisio Meira”. Suas reminiscências reforçam a
percepção do impacto do cinema no cotidiano dos jovens que viviam em Salvador
nesse período.
Audrey Hepburn, a primeira atriz na lista da ex-Miss, em 1961 protagonizou o
filme Breakfast at Tiffanys, do diretor Blake Edward, que no Brasil recebeu o título de
Bonequinha de Luxo. A película no titulo original faz referência direta à aparência ao
se referir à elegante casa de joias norte-americana e parece ter claras intenções de
induzir ao consumo e notabilizar modas e modismos. Ao longo da trama,
vestimentas, maquiagens e adereços, como chapéus e joias, ganham lugar de
destaque ostentados no corpo magro e alto de Audrey Hepburn. Na cena inicial,
Nova York aparece amanhecendo, com suas ruas largas, vazias e clareadas pelas
luzes dos pôsteres; um táxi desliza pela avenida, parando na porta da Joalheria
Tiffanys. Nesse instante, desce a esguia atriz trajando um vestido longo preto, com
decote nas costas, no pescoço um colar de grandes pérolas, usa óculos escuros
grandes, arredondados e para diante da loja. A moça desfila pacientemente ao longo
do quarteirão da loja, come seu croissant e toma goles do café, ao tempo em que
faz paradas diante das vitrines.
318
319
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 3, 1º jan. 1960.
Id., loc. cit.
166
Na trama fílmica, as paradas são instantes de contemplação, de
encantamento com as joias mostradas nas vitrines. A cena, que dura pouco mais de
dois minutos ao som de orquestra que toca Moon River, cria propositalmente uma
atmosfera especial para o café da manhã da jovem moça do interior, deslumbrada
com as vitrines da Capital mundial. Elegância e glamorização são características
destacáveis nessa breve cena, como pode ser visualizado na Figura 38. Tudo
lembra um desfile de modas: vestimentas, adereços, penteado, luz, música e o
andar da atriz mediado por breves paradas320.
Figura 38 – Bonequinha de Luxo.
Fonte: Wasson (2010, p. 98)
Assim como o personagem do filme, Lucia Regina também era uma jovem do
interior que migrou para a Capital. Conforme nos informa o geógrafo Milton Santos,
as vitrines no centro da cidade atraíam a atenção da população que a elas acorria
em contemplação noturna. Lucia Regina parece ser uma destas personagens
seduzidas pelo universo da moda que, na Capital, tinha nas vitrines seu expoente
mais visível. Logo não é de estranhar a ligação com a atriz principal da película,
referência de elegância, e sua presença em suas memórias do tempo de juventude.
320
Em função desse filme, a imagem da atriz foi sempre associada ao universo da moda, seja em
produtos ou editoriais de revistas de moda. É importante destacar que a atriz usava um modelo do
estilista Hubert Givenchy, que no período vestia a atriz dentro e fora das telas.
167
Encantamento oriundo das modas, das vitrines e da cidade também aparece
na fala de outra depoente, esta oriunda das camadas populares do interior baiano.
Catarina Cristina migra para Salvador em fins dos anos 60, vinda do meio rural onde
“predominava o canto dos pássaros”321. Em Salvador, vai trabalhar na Rua
Coqueiros da Piedade, no centro da cidade, onde passa grande parte da jornada
como ajudante de costureira; ao sair, já noite, são as luzes da cidade, as vitrines, as
lojas da Avenida Sete de Setembro, como a Loja Feira dos Tecidos, os manequins e
as muitas roupas expostas que vão lhe chamar atenção no cenário urbano. Um reino
artificial que seduz a nova moradora, sobretudo pelas mercadorias e pelas luzes da
cidade.
O transitar de Catarina no início da noite soteropolitana, seu deslumbramento
diante das vitrines iluminadas, se aproxima da personagem ficcional de Bonequinha
de Luxo. Os artefatos pertinentes à moda aproximam a vida real e a ficção, criando
um elo entre a realidade e o cinema. É necessário pontuar que, na década de 60, o
cinema norte-americano já dominava as técnicas de encantar multidões de
espectadores em diferentes sociedades pelo mundo afora. Dessa forma, o cinema
cumpria o papel de vender ilusões, abordar diferentes temáticas e, junto com elas,
vender produtos, podendo ser indumentárias, refrigerantes, enceradeiras ou
máquinas de costurar.
Sendo o cinema, para além de arte, um elemento da dinâmica industrial, faz
parte deste mecanismo comercial e artístico vender produtos. Desse modo, atores e
atrizes figuravam como agentes de sedução ao consumo, conforme nos lembra
Lipovetsky,
aliados
de
diversas
formas
ao
jornalismo
e
ao
marketing.
Cotidianamente, as páginas do Diário de Notícias exibiam uma diversidade de
personalidades do cinema internacional, com menções atreladas a suas atuações
em películas cinematográficas ou situações mundanas. No período pesquisado, é
possível destacar aparições de inúmeros desses artistas do cinema, como Jane
Fonda, Catherine Deneuve, James Dean, Marilin Moroe, Clark Gable, Vivien Leigh,
Sofia Loren, para não citar outros.
Em junho de 1958, o jornal destacava uma grande produção cinematográfica
do cinema norte-americano, E o vento levou, em cartaz na cidade nos cinemas
Excelsior, Itapagipe, Aliança e Rio Vermelho 322, evidenciando mais uma vez a
321
SANTANA, Charles D‘Almeida. Linguagens urbanas, memórias da cidade: vivências e imagens da
Salvador de migrantes. São Paulo: Annablume, 2009. p. 47-48.
322
DIARIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 7, 29 jun. 1958.
168
cultura cinematografia engendrada na cidade. O destaque maior do filme se dava
pelo personagem feminino, uma mulher que lutava pelo amor do homem escolhido,
rompendo padrões da família em meio às dificuldades de uma guerra. Podemos
acreditar que, de certa forma, o filme parece dialogar com as aspirações de algumas
mulheres baianas que buscavam se afirmar, principalmente no mercado de trabalho.
Essas mulheres, rotuladas de “modernas” pelo principal periódico da cidade,
iam através das vestimentas, evidenciando suas formas de pensar, usando calças
compridas e rompendo barreiras do tradicionalismo familiar. Nesse contexto, os
trajes de banho de duas peças despontam também como um romper de barreiras e
as atrizes de cinema eram as protagonistas desta moda que se inseriu de forma
definitiva no cotidiano da cidade, seja nos clubes recreativos ou nas praias.
Em maio de 1961, o Cine Capri exibia o drama alemão, A Verdade sobre
Rosemarie, que tinha no elenco uma atriz considerada uma das mais belas do
cinema, Belinda Lee. Naqueles dias outonais, sua fotografia estava estampada nas
páginas do Diário de Notícias e apontava para uma atitude de moda, como a Figura
39 mostra. Nesta, a ousadia do traje, dadas as suas dimensões, e a beleza da atriz
são os aspectos em destaque.
Figura 39 – O biquíni da atriz.
Fonte: Diário de Notícias (1961).
169
O traje de banho usado pela atriz era um expoente da moda jovem difundida
ao longo da década de 60, o quadriculado era então uma tendência, seu penteado
em forma de tranças aponta para a mesma jovialidade perseguida pelos
realizadores de moda naquele momento, as dimensões da peça constituem o
grande diferencial em relação ao que se usava por aqui. Chataigner 323, observando
a moda praia usada no Brasil na década de 60, destaca a evolução do maiô com
drapeados no busto e as cavas que subiram, o “engana mamãe”, na frente inteiro e
nas costas duas peças, e as camisas masculinas usadas como saídas de praia.
Segundo Chataigner, o traje de banho de duas peças em tamanho menor só se
tornou presente nas areias brasileiras tempos depois. A atriz inglesa, estrela da
película alemã, figurava então como uma divulgadora de moda posteriormente
inserida no cotidiano local, assim como as saídas de praia, tipo pareôs orientais, de
algodão, lançados por Brigite Bardot em Saint-Tropez e logo vistos nas praias
brasileiras324. Neste caso, o termo coqueluche, denotando aquilo que se espalha
rapidamente, tinha um bom emprego referindo-se à peça lançada pela atriz
francesa.
No mesmo percurso das influências da moda, insere-se o traje de duas peças
usado pela atriz Connie Ducharme. Em sua aparição nas páginas do Diário de
Notícias em abril de 1965, a própria manchete já denuncia as intenções de realçar a
vestimenta e não o trabalho da atriz. Em letras maiores, própria das manchetes,
ressaltava o periódico: “Duas peças”325. Naqueles dias, a atriz estrelava o filme Um
amor do outro mundo, ao lado do ator Tony Curtis, todavia, eram as duas peças
ostentadas pela atriz que ganhavam a notoriedade midiática, conforme mostra a
Figura 40.
323
CHATAIGNER, Gilda. História da Moda no Brasil, op.cit., p. 145.
Id., loc. cit.
325
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 25/26 abr. 1965. Cad. Artes e Letras, p. 2.
324
170
Figura 40 – Duas Peças.
Fonte: Diário de Notícias (1965).
Estampas geométricas, listas finas, com motivos psicodélicos ou peles de
animais eram naquele período muito usadas por mulheres brasileiras. A vestimenta
para um dia de praia ostentada pela atriz indica a adesão ao estampado, no caso
em pele de onça, comumente chamado de “oncinha”, sugerindo às leitoras do
periódico maior atenção ao modelo e, em menor grau, ao filme.
As atrizes internacionais certamente tinham maior visibilidade nas páginas do
periódico local, todavia, em alguns casos, as vestimentas e outros aspectos
pertinentes à aparência de atrizes brasileiras também ganhavam destaque e, por
vezes, suas fotografias eram mostradas nas páginas do jornal, sempre em menor
proporção que as estrangeiras. Dessa forma, o padrão eurocêntrico ia-se
consolidando no imaginário local como sinônimo de beleza e elegância.
Por sinal, elegância e sofisticação eram palavras constantes na coluna Krista.
Em julho de 1959, a sofisticação era atribuída à “sra. Nilda Spencer326, com uma
326
Atriz baiana que atuou no cinema, na televisão e notadamente no teatro baiano desde a década
de 50 até a primeira década do século XXI. Entre os últimos trabalhos da notável atriz, podemos
destacar: no cinema, no filme Eu, tu, eles, e, no teatro, na montagem de Ensina-me a viver. Morreu
em 10 de outubro de 2008.
171
bela peruca feita por Fischpan e contando noticias frescas do Rio” 327. Para além do
modismo lançado pela atriz baiana, numa época em que os coques eram
observados como chiques e os permanentes eram a novidade da década, a coluna
ainda ressaltava os drinques da atriz no “Copa”328 e sua empreitada para ver de
perto a atriz Marlene Dietrich, hóspede da casa carioca naqueles dias de inverno.
Atrizes nacionais estavam na pauta da coluna naquele dia. A colunista
destacava ainda o “[...] coquetel oferecido a Cacilda Becker no dia 4, terça-feira, às
18 horas. No dia seguinte Cacilda estreará no Guarani com a peça “Santa Marta
Fabril S.A”329. A coluna, que sempre destacava belezas femininas e modismos,
naquele dia exibia uma fotografia da atriz Cacilda Becker, mostrada na Figura 41.
Figura 41 – O longo da atriz.
Fonte: Diário de Notícias (1959).
Na fotografia, vê-se a atriz portando um longo justo, em tecido brilhante, uma
espécie de “tomara que caia” plissado, preso por uma fina alça, tendo seu corpo
delineado na totalidade pelo modelo, composto ainda de uma enorme calda de igual
327
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 31 jul. 1959. Cad. 2, p. 3.
Refere-se ao Hotel Copacabana Palace no Rio de Janeiro, considerado como hotel de luxo no
Brasil, sobretudo nos anos de 1950 a 1960.
329
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 31 jul. 1959. Cad. 2, p. 3.
328
172
tecido. Nas orelhas, ostenta brincos médios, e a pose para a fotografia incute ares
de majestade, seja na posição das mãos na cintura ou na forma de olhar de soslaio.
“Considerada por Silvio D’Amico a melhor atriz brasileira” 330, destaca a reportagem,
sua representação no periódico era similar à de outras atrizes internacionais, tanto
pela vestimenta quanto pela postura. Sendo o período em estudo marcado pela
produção de vestimentas em costureiras ou mesmo pelas próprias usuárias 331, a
roupa ostentada pela grande atriz brasileira era possível de ser copiada em diversos
lares baianos, mediante certas adequações.
Reproduzir as vestimentas de ícones é uma maneira de aproximação com
essas personalidades ou ainda com personagens por eles(as) vividos, tema
assuntado na obra O império do efêmero. No Brasil e no mundo, em geral, inúmeras
pessoas constroem seu senso de moda vendo as revistas, os jornais, os filmes e
observando
as
celebridades.
Produções
cinematográficas
norte-americanas
possibilitaram uma farta gama de reprodução de modelos atrelados a personagens
de cinema, para não citar outros. Neste sentido, podem-se destacar as jaquetas
usadas pelos galãs James Dean e Marlon Brando332, posteriormente copiadas por
milhares de jovens de diferentes partes do mundo, denotando como a forma de
vestir de uma personagem pode vir a fazer parte do cotidiano de distintas culturas 333.
Todavia essa garbosidade não era restrita aos ícones das películas
cinematográficas. A elegância oriunda das realezas era também foco de atenção
nas páginas do Diário de Notícias e outras publicações no Brasil, e, assim, o
imaginário da sofisticação oriunda de personagens pertencentes à nobreza era
amplamente divulgado pelos meios de comunicações de massa. Mediante as
aparições constantes nas páginas dos jornais, a realeza, sobretudo, a inglesa
330
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 31 jul. 1959. Cad. 2, p. 3.
Por um longo período, o “corte e costura” esteve intrinsecamente ligado ao processo formativo
feminino, aprendido principalmente, mas não exclusivamente, com as mulheres mais velhas da
família, com vistas a suprir as necessidades domésticas de vestimenta. Por sinal, nas camadas
populares a expressão “costurar para fora” caracteriza essa mesma atividade, sob forma remunerada,
quando destinada as pessoas externas ao círculo familiar.
332
No filme The Wild One (1954) ou O Selvagem, titulo que recebeu no Brasil, Marlon Brando fez um
líder de uma gangue de motociclistas, que usava uma jaqueta tipo aviador, preta, curta e justa; e em
Rebel without a cause (1955), conhecido no Brasil como Juventude Transviada, James Dean viveu
um jovem rebelde que ostenta uma jaqueta vermelha.
333
Vestir a mesma peça que o galã ou a mocinha é uma maneira de se sentir igual a eles, isso pode
de certa forma justificar o alto valor de venda de uma vestimenta, como o caso do vestido usado pela
atriz Audrey Hepburn, em Bonequinha de Luxo. O longo preto, usado por ela na primeira cena do
filme, já evidenciado neste trabalho, foi leiloado por 800 mil dólares, 45 anos depois de sua aparição
na tela mágica do cinema. Tê-lo, para muitos, significa resgatar a mesma elegância do personagem
da trama.
331
173
acabava por estabelecer um elo de muita proximidade com o(a)s baianos(as) da
Capital.
Neste percurso de constructo imaginário, é possível destacar o termo rainha,
que faz parte do vocábulo da realeza, sendo frequentemente empregado pelo
jornalismo baiano no período pesquisado, principalmente nos textos relativos aos
certames de beleza: “vai ser eleita esta noite uma nova rainha da beleza” 334,
destacava o jornal no dia do Concurso de Miss Bahia, ou, no caso das misses
gaúchas que visitavam Salvador, quando ressalta em manchete: “Rainhas das
praias gaúchas em Salvador”335. A Miss Universo 1963, Yêda Maria Vargas, quando
esteve em Salvador para participar de festividades teve três fotos suas estampadas
no Diário de Notícias com a seguinte manchete: “Rainha da Beleza”336. Dessa forma,
o imaginário de beleza atrelado à nobreza, às misses e, por consequência, aos
modelos ostentados por essas personalidades, ia-se consolidando entre mulheres
comuns baianas. Não por acaso, as misses, a rainha Elizabeth II, suas roupas, suas
joias e penteados foram recorrentemente rememorados nas entrevistas realizadas
para esta pesquisa.
Dentre as personalidades mais evidenciadas pelo jornalismo local, a Rainha
Elizabeth II era a de maior notoriedade. Suas aparições em eventos, sejam
beneficentes ou políticos, eram sempre destacadas nas páginas jornalísticas.
Nessas aparições, o aspecto da ostentação de poder era notório. A Figura 42 faz
parte desse tipo de reportagem, na qual a imagem da rainha era o destaque e, junto
a ela, símbolos que realçavam seu status de realeza.
A fotografia ilustra uma reportagem que abordava justamente a divulgação de
uma nova fotografia da rainha, clicada pelo fotógrafo Antony Armstrong Jones no
Castelo de Buckinfham337. A foto em questão era, de fato, uma peça para divulgar
pelo mundo, a imagem da nova rainha, coroada em 1953, e que ainda buscava
consolidar sua imagem em diferentes cantos do mundo: em Salvador, o principal
jornal local se encarregou da tarefa.
334
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 4 jun. 1959.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 3, 26 fev. 1959.
336
Idem, p. 2, 12 dez.1963.
337
Idem, p. 9, 29 jan. 1958.
335
174
Figura 42 – As joias da Rainha.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
Na fotografia, as joias eram o destaque; a rainha aparece com coroa, colar e
brincos em diamantes. Sua face tem maquiagem suave, sobrancelhas delineadas e
a boca foi contornada com um batom em tom mais forte, indicando ser rubro. Do
vestido, aparece apenas uma alça larga.
Em face da frequência com que apareciam no periódico local, os vestidos da
rainha eram familiares às leitoras tropicais, como o usado pela monarca nas
festividades comemorativas do Centenário do Clube Alpino de Londres. Embora o
alpinismo não fosse um esporte comum a Salvador, o Diário de Notícias divulga o
evento, com a indumentária real ocupando a centralidade da notícia, conforme
Figura 43338. Na fotografia, a rainha usa um vestido longo em tecido claro e
brilhante, com um decote discreto, que foi coberto com um xale ou pele de animal.
Como de praxe nesse periodo, a nobre inglesa ostenta joias do acervo real, no caso
uma tiara, colar de três voltas e bracelete; na mão, carrega uma bolsa média de uso
em festividades.
338
DIARIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 9, 9 jan. 1958.
175
Dada a sua jovialidade, a rainha tem aparência alegre e esboça um leve
sorriso nos lábios contornados por batom rubro. É pertinente aqui lembrar as
sentenças de Lipovestsky quando associa a nobreza ao luxo, podendo inclusive
trangredir leis, encontrar novos meios “para fazer exibição de luxo” 339, como escreve
ele. Era a moda percebida como expressão hierárquica e individual. Essa ideia
perdurou durante vários séculos, sobretudo na Europa, sendo possivel apurar que
contribuiu para a construção de imaginários.
Ao lado da nobre inglesa, o líder dos alpinistas da Grã-Bretanha, Sir Jonh
Hunt, usa traje de galã, um smoking com algumas diferenciações no corte, mais
justo, o que sugere se tratar de um traje típico do Clube Inglês. Neste caso, e
mesmo em outros noticiados pelo jornal local, as vestes e as joias ostentadas pela
rainha sempre ganhavam maior destaque, sendo a notícia principal.
Figura 43 – O vestido da Rainha.
Fonte: Diário de Notícias (1958).
339
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero..., op. cit., p. 45.
176
Outros personagens oriundos de outras Casas Reais também eram noticiados
nas páginas do Diário de Notícias, sobretudo em visitas ao Brasil, quando
noticiavam todos os passos trilhados pelos nobres visitantes. Assim, a construção do
imaginário de rainhas como símbolo de glamour e elegância, já desencadeado na
infância com os contos populares, ganhava reforço no texto do jornal. Nessas
reportagens, a elegância da nobreza constituía o foco da notícia. A Figura 44 se
insere nesse contexto e mostra a “[...] recepção oferecida pelos soberanos belgas ao
Presidente da República, no Copacabana Palace”340.
No registro, aparece o Presidente Castelo Branco usando um tradicional
smoking, próprio para solenidades de gala como essa; ao seu lado, a Rainha
Fabíola usa um longo branco com bordados, cujos detalhes a fotografia impede de
visualizar; o modelo é de mangas curtas e a nobre belga porta luvas, também
brancas, até o meio do braço; uma tiara e uma pequena bolsa complementam a
indumentária real. Junto a ela, a filha do presidente341, Antonieta Diniz Castelo
Branco, usa um longo escuro em estilo “tomara que caia”, também bordado em tom
escuro. Seus cabelos receberam um penteado em plena sintonia com as modas do
período, com um volume esculturalmente produzido no estilo “bolo de noiva”. Na
filha do presidente, o penteado criava a ilusão de ser uma mulher mais alta. Ao lado
dela, o Rei Balduíno usa um uniforme de gala, sendo a jaqueta em tom claro e a
calça em tom escuro; no colarinho e no bolso, bordados indicam a condição de
realeza do usuário. São comuns, nesse tipo de vestimenta, brasões e outros
elementos em sintonia com a Casa Real ou mesmo a dinastia a que o nobre
pertence.
340
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 7, 17 nov. 1965.
No período de 1964 a 1967, a filha do presidente exerceu o papel de primeira dama, haja vista seu
pai ter ficado viúvo em 1963.
341
177
Figura 44 – Trajes de noite.
Fonte: Diário de Notícias (1965).
É notória, na fotografia, a ausência do uniforme militar no presidente
brasileiro, em contraste com aquele portado pelo monarca belga, de uso comum
entre os membros masculinos das casas reais europeias. De fato, ao longo do
período de exceção no Brasil, os presidentes militares em solenidades de gala ou
mesmo festivas geralmente vestiam-se como civis, tentando, dessa forma,
escamotear sua condição militar e, principalmente, a ausência de democracia no
País.
Ainda no que tange às influências sob o vestir local, sabemos, conforme já
evidenciado, que eram variadas, mas certamente, nos jornais, as fotografias de
misses, atrizes, atores e personalidades das realezas sobressaíam sobre todas as
demais. Dado o poder que a imagem tem na construção do imaginário, podemos
apurar que o status dessas personalidades e sua midiatização foram fortes aliados
na construção do que era interpretado como belo, como chique, como moderno, logo
marcando a composição das aparências de parcelas da população na Cidade do
Salvador.
178
Não é demasiado sugerir aqui o pensamento de Lipovetsky quando analisa a
moda entendida como expressão hierárquica e individual e as formas de sua
propagação em que, observa o autor, existe um caráter despótico muito particular
fundamentado na razão de os homens e mulheres desejarem assemelhar-se
àqueles “[...] que são considerados superiores, aqueles que brilham pelo prestigio e
pela posição”342. Dessa forma, a moda conseguia a sua difusão em diversas
culturas, seja nos séculos aristocráticos ou nos tempos contemporâneos quando o
autor formulou seu pensamento.
3.3 “ALINHAVANDO” ROUPAS E FESTAS: AS ROUPAS DOMINGUEIRAS EM
OCASIÕES ESPECIAIS
Alinhavar é um momento importante no preparo para a costura. Sendo a
costura algo mais definitivo, o momento de alinhavar constitui-se como uma etapa
da confecção, permitindo uma reflexão e visualização de como será a roupa quando
pronta. Essa prática, hoje em desuso, era comum no cotidiano de costureiras e
alfaiates no período de 1958-1968 em Salvador. Todavia, esta dinâmica do preparo
da vestimenta era pertinente também aos grandes costureiros em qualquer lugar do
mundo.
Em fins da década de 50, Christian Dior, costureiro francês e naquele
momento em plena ascensão, fez uma breve pausa nos croquis, alinhavos e
costuras e escreveu um texto para apresentar na Sorbonne 343. Neste, o costureiro
francês “alfinetava”, na primeira linha do discurso, “uma roupa – principalmente
quando é bem trajada – é mais eloqüente do que um costureiro”344. Além de
destacar o poder de comunicação existente em uma roupa 345, Dior fez um breve
histórico da roupa inserida na cultura dos nobres europeus, enfatizando, para além
das agulhas e tecidos, os costureiros como ajudantes das mulheres nobres no papel
342
LIPOVESTSKY, Gilles. O império do efêmero..., op. cit., p. 43.
Na publicação Conferências escritas por Christian Dior para a Sorbonne, 1955-1957. São Paulo:
Martins Fontes. 2011, uma nota esclarece que o texto foi escrito para uma conferencia que se
realizaria em 5 de agosto de 1957 e aparentemente o evento não se realizou. Tanto a Sorbonne
como os arquivos pessoais do criador não registram o motivo do cancelamento
344
DIOR, Christian. Conferências ...., op. cit., p. 11
345
A moda como veículo de comunicação seja como mistificação, como expressão individual, como
definição do papel social, como símbolo político, como status, como símbolo de poder e ideologia são
tratados na obra, já citada neste trabalho, no Cap. 1, de BERNARD, Malcolm. Moda e Comunicação.
343
179
de agradar. Sobre a atuação desses profissionairs no século XIX, Dior destaca que
se reconhecia a roupa de um grande costureiro pelo tecido rico, pelo acabamento da
costura e pelos ornamentos caros, produzida em sigilo absoluto, temendo ser obra
copiada.
O texto do costureiro francês se preocupava ainda em desmistificar a moda
percebida como fútil: “[...] não existe mais futilidade na moda do que na poesia ou na
música. Os séculos passam e, com eles, a moda ganha uma espécie de dignidade.
Ela se torna testemunha de uma época”346. Os escritos do costureiro auxiliam a
comprovar que a moda ocupava, como ainda ocupa, um lugar de destaque na
sociedade francesa, reivindicando uma nova percepção do ofício; o costureiro
deveria ser percebido não como simples auxiliar do desejo feminino, mas como um
criador. Dessa forma, Dior ajudava a conduzir a moda a um novo patamar, vista
como arte e seus realizadores como artistas.
No Brasil, no outro lado do Atlântico, a alta-costura era algo incipiente, da
mesma forma que costureiros e costureiras de alta-costura. Todavia Chataignier
destaca alguns nomes que, segundo ela, realizavam este ofício na década de 60, a
exemplo de José Ronaldo, Guilherme Guimarães, Jérson e Gabriela. Em Salvador,
mediante as apurações realizadas nesta pesquisa, o ato de vestir estava inserido em
outros mecanismos.
Nesse período, na cidade, algumas lojas despontavam vendendo roupas
prontas, todavia, no cotidiano da cidade, comprar os tecidos, escolher os modelos,
mandar uma costureira ou alfaiate realizar era a dinâmica que permeava a feitura
das roupas, notadamente aquelas destinadas a acontecimentos especiais, as
consideradas ‘roupas de ver Deus’.
Sendo o tecido, ou a “fazenda”, como era popularmente chamado, o primeiro
elemento no empreendimento da realização de uma vestimenta, toda a atenção do
comércio e do marketing estava voltada para ele. Dessa forma, eram frequentes,
nas páginas dos jornais, propagandas ou mesmo notícias referentes à aparência,
dando destaque para os tecidos, como nestes casos: “No batizado... Na primeira
comunhão... No baile de debutante... No dia do casamento... organdi Paramount” 347.
346
347
DIOR, Christian. Conferências..., op. cit., p. 21.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1, 2 set. 1958.
180
Em outra propaganda, a mesma fabricante do tecido anunciava: “Nos momentos de
elegância... manhã... tarde... coquetel... soirée... organdi Paramount” 348.
A Casa Alberto, em outra ocasião, anunciou durante o final de semana uma
promoção para a segunda-feira, destacando: “retalhos e cortes de seda, algodão,
linho”349 a serem comercializados na loja da Rua Padre Vieira, 25. Em outubro de
1960, a loja Duas Américas já antecipava o Natal e anunciava seus artigos para as
“festas de fim de ano”; na secção de tecidos, a diversidade era ampla e assim
destacava a propaganda: “rendas finas, linda coleção de padrões, metro de Cr$
600,00 a Cr$ 800,00. Crepe Nasser, tecido próprio para passeio, novidades em
cores, metro Cr$ 300,00”350. A mesma propaganda ainda oferecia tecidos para as
camadas sociais com menor possibilidade de consumo, destacando, “cambraias
mescladas, todos os tipos Cr$ 120,00 a 150,00”351.
Os anúncios, ou ao menos parte deles, nos dão uma ideia de como a feitura
das roupas estava inserida nas práticas culturais de Salvador na época em análise.
Algumas propagandas, além de destacar os valores de cada tecido, também
apontavam para qual fim era apropriado, se passeio ou coquetel, manhã ou noite. O
esmero da costura, a riqueza do tecido, bem como a quantidade de “fazenda” usada
na confecção de uma roupa eram características que singularizavam, então, uma
vestimenta.
Esse aspecto é notório na manchete seguinte: “Cinqüenta metros de
musseline azul: o vestido de Gina em Miami Beach” 352. É importante observar que,
neste título, o tecido ocupa lugar de destaque, antecedendo a própria personalidade
que a portaria. Grande parte do texto jornalístico se destina à descrição do vestido,
de corpete plissado, em musseline de seda, azul claro, que seria utilizado por Gina
McPherson, eleita Miss Brasil 1960, que se preparava para concorrer ao Miss
Universo na disputada noite em Miami Beach.
Sejam feitas por mulheres do lar ou por uma costureira de ganho, o ato de
produzir vestimentas demandava um bom tempo da ocupação cotidiana de muitas
348
Id., loc. cit.
Idem, p. 6, 10/11 abr. 1960.
350
Idem, p. 5, 30/31 out. 1960.
351
Id., loc. cit.
352
Idem, 22 jun. 1960. Cad. 2, p. 3.
349
181
mulheres na Cidade do Salvador no período de 1958-1968. Em alguns momentos do
ano, principalmente nos períodos de festas, a atividade era maior, pois em muitas
casas era momento de costurar roupas para toda a família. Essas roupas, muitas
vezes consideradas domingueiras, tinham como destinação eventos extraordinários
do cotidiano. Vejamo-las em diferentes momentos, iniciando por um que levava a
roupa ao lugar que lhe cabe: a galeria de arte.
Na Cidade da Bahia, em meados de 1960, o traje ganhava notoriedade na
“exposição de cenários e desenhos de trajes para teatro de Beatrice Tanaka, aberta
ao público na Escola de Teatro da Universidade da Bahia”353. Esse evento, além de
inserir a roupa no contexto artístico, conclamava os soteropolitanos a perceberem a
vestimenta como componente da cultura urbana e como uma expressão artística.
Todavia, esse evento que levava os desenhos das roupas à galeria de arte,
era algo extraordinário e tinha temporalidade determinada. No teatro cotidiano
homens e mulheres se vestem com trajes para os rituais de suas culturas, sem
atentarem para o fato de forma mais consciente. É pertinente aqui lembrar Daniel
Roche, que analisa as aparências humanas como “[...] expressão natural de uma
arte de viver”354. Tão naturalizado que, para muitos(as), passa sem a atenção
devida.
Em alguns momentos mais ritualizados, como aniversários, casamentos,
bailes, reuniões comemorativas, entre outros, a roupa ganha relevância e a atenção
dispensada a ela é notória. A Figura 34 faz parte desse contexto festivo, nos quais
as vestimentas despontavam como “estrelas principais” do rito social.
353
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 2, 17/18 abr. 1960.
ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII – XVIII).
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007. p. 19.
354
182
Figura 45 – Família em ‘roupas de ver Deus’.
Fonte: Diário de Notícias (1960).
Na fotografia da Figura 45355, vê-se uma família da classe média baiana
celebrando o aniversário de um filho (o menor) e o batizado de outro (o maior)
356
.
Entre as crianças, os pais: Carlos Pinto de Almeida Castro e Terezinha Arnaldo
Almeida Castro. Todos na cena ostentam certamente roupas domingueiras,
propícias para os eventos especiais, neste caso o batismo e o aniversário das
crianças.
As crianças vestem roupas similares357, sendo conjuntos de bermuda e colete
em tons claros, com as bordas dos conjuntos margeados nas extremidades por um
aviamento escuro e, na parte interna, camisas com colarinhos358, conferindo requinte
aos usuários; a vestimenta infantil completa imitava ternos de adultos.
355
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 22/ 23 maio 1960. Cad. 3, p. 5.
A legenda da fotografia destacava o aniversariante Hélio Mário e Carlos Júnior, que foi levado à
pia batismal.
357
A confecção de vestimentas iguais ou bastante parecidas para irmãos com idades próximas era
algo bastante comum nesse período, tanto na classe média como nas classes populares.
358
Em alguns casos, era uma “falsa camisa”, uma espécie de colarinho extenso, tipo um babador que
era usado por baixo do colete, dando a impressão de ser uma camisa.
356
183
O patriarca da família usa um terno claro, camisa de igual tonalidade, gravata
escura e ostenta um fino bigode, do qual muitos homens do período, sobretudo os
casados e mais ligados à tradição, ainda faziam uso. A mãe veste blusa estampada,
de cetim ou algo similar, de mangas bufantes, com saia lisa escura; um cinto largo
claro aparece dividindo a silhueta da matriarca da família. Sua composição festiva
conta também com brincos redondos médios, provavelmente um clipe, colar de
pérolas de várias voltas e uma suave maquiagem. Todos na cena mostram certo
desconforto diante da máquina fotográfica que eternizou aquele momento da família
baiana.
A lista de eventos frequentados pela elite baiana era diversificada, logo
propícia à ostentação das ‘roupas de ver Deus’. No período pesquisado, as viagens
internacionais despontavam como um modismo para esse seleto grupo da
sociedade. Nas malas, as roupas para essa ocasião eram selecionadas com apuro,
como se pode ver na Figura 46.
Figura 46 – Saias godês em noite de Natal.
Fonte: Diário de Notícias (1960).
A fotografia mostra um grupo de “moças de família” que participavam da festa
de Natal a bordo do navio Cabo de São Vicente rumo à Argentina. Para a ocasião,
usam indumentárias especiais, dignas de uma noite natalina, que possibilitam
analisar as vestimentas do período. Nesse caso, sobressaem os vestidos de noite,
com saias em estilo godê; sendo verão, as moças optaram por modelos que têm
184
cumprimento abaixo do joelho 359, quase todos deixam o colo à mostra, denotando
certa liberdade de movimento e sendo adequados aos dias quentes da estação. O
aspecto da padronização é notório, seja nas saias dos vestidos, nos penteados, nas
joias e nos sapatos escarpins de bico fino, também muito parecidos, aspectos
notabilizados através da fotografia360.
O uso das saias godês não era restrito aos dias festivos, sendo comum no
cotidiano da cidade, presente nas roupas de ir ao trabalho, mas também nos
uniformes das colegiais, compostos de saias com pregas de tergal e camisas de
algodão, usadas por dentro da saia, que conferiam uma seriedade à aparência,
mesmo para jovens de pouca idade. Esse tipo de saia também era bastante utilizado
como a parte inferior de vestidos, como os que aparecem na fotografia.
A foto em questão revela algo mais do que as vestimentas do período. É
possível perceber que até a pose das jovens na fotografia é de certa forma
uniformizada, era um modelo a ser seguido, no qual a obediência a certos padrões
de postura significavam a manutenção de um lugar social. Data dessa época a
expressão “moça de família”, que, na prática, significava seguir o padrão
estabelecido pela sociedade machista e patriarcal.
Nesta estrutura social, o casamento era um ritual de singular importância,
conforme evidenciado anteriormente. Antes do dia especial para os nubentes e
convidados, palco de exibição, outra festividade despontava como modismo
naqueles dias, o Chá de Cozinha. O evento consistia numa reunião de amigas da
noiva, que antecipavam os presentes para a montagem da casa nova, geralmente
presenteando artigos de cama, mesa e banho. Nesses acontecimentos, as roupas
domingueiras também despontavam como principais. Sendo uma ocasião de
frequência feminina, o cuidado com a aparência era rigoroso, mediante as
possibilidades de julgamentos femininos. Esse esmero pode ser percebido na Figura
47, que retrata o Chá de Cozinha da nubente e ex-Miss Brasil 1962, Maria Olivia
Rebouças Cavalcanti, oferecido por Leda Maria Oliveira.
359
360
Em festividades deste tipo, sobretudo, internacionais, era comum o uso de vestidos longos.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 10/11 jan. 1960. Cad. 2, p. 7.
185
Figura 47 – Vestimentas e penteados em Chá de Cozinha.
Fonte: Diário de Notícias (1963).
Na fotografia, destaca-se a presença feminina. Nossa análise centra-se nas
quatro personagens que aparecem no plano central; destas, duas, à direita, usam
vestidos trapézios, com alças largas, em tons escuros e lisos, os penteados de
ambas é tipo “bolo de noiva”, que despontava naqueles dias de 1963 como a
coqueluche em matéria de penteados, sobretudo em momentos extraordinários do
cotidiano, a exemplo do chá da ex-Miss.
A primeira mulher na fotografia, da direita para esquerda, porta uma bolsa
estilo carteira em dimensões maiores que o trivial, em plena sintonia com as modas
do período. A terceira, no mesmo sentido, usa um provável vestido estampado em
tecido com certo caimento. A quarta personagem usa um vestido em seda ou cetim,
em tom claro e brilhante, com gola em V, margeada por aviamento ou tecido em tom
escuro, que confere maior liberdade de movimento ao pescoço e um aspecto jovial à
indumentária; um revestimento em elástico marca a cintura, criando a ilusão de
veste composta por saia e blusa.
Como a moda não se esvazia em vestimentas e penteados, é pertinente
neste trabalho atentarmos para a mesa da fotografia. Ela tem um arranjo grande de
flores no centro e, ao redor, bandejas, provavelmente de doces e salgados
devidamente ornamentados em papéis. Na Salvador desse período, nas festas de
casamento, de aniversários, de debutantes e outras mais, como o Chá de Cozinha
186
da fotografia, era comum servir doces e salgados preparados por doceiras locais ou
pelas próprias realizadoras das festividades, ostentados em mesas decoradas.
Todavia, a atenção ao cardápio servido nas festividades baianas não
superava a preocupação com a composição da aparência. Neste sentido, é bom
salientar mais uma vez as crônicas de Hildegardes Vianna sobre o vestir em
Salvador. Segundo a autora, mesmo depois que a cidade cresceu, o costume de só
comparecer a reuniões com roupa nova não decresceu 361. Essas reuniões descritas
por Vianna incluem missas, almoços de famílias, rezas nas residências, idas
vesperais ou noturnas ao cinema. Qualquer tipo de sociabilidade pública ou privada
exigia de senhoras e moças roupas domingueiras e vestes solenes aos senhores e
rapazes362. A Figura 48 se insere nesse contexto de dia extraordinário e vestimentas
especiais, conforme podemos verificar.
Figura 48 – Trajes solenes na Formatura em Arquitetura.
Fonte: Diário de Notícias (1962).
A fotografia363, realizada na Igreja de Santa Tereza, é um registro imagético
das solenidades de Formatura da turma de 1962 da Faculdade de Arquitetura da
Universidade Federal da Bahia. Nela, pode-se perceber o esmero dos(as) novos(as)
arquitetos(as)364 em um dia de suma importância, sobretudo para eles(as) que
361
VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim..., op. cit., p. 260..
Id., loc. cit..
363
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1, 23/24 dez. 1962.
364
Segundo a fonte jornalística, a turma formava 22 novos arquitetos, sendo três mulheres: Heloisa
Teles de Oliveira, Isa Vargas Leal e Maria da Conceição Pereira Alves.
362
187
colavam grau, determinando o fim de um período de estudos e sua inserção no
mercado de trabalho, logo, um ritual de transição festivo.
A imagem fotográfica mostra a parte religiosa do evento: os formandos do
sexo masculino usam traje solene, o smoking. Na composição, é importante
destacar também os cabelos devidamente cortados e penteados, conforme a
tradição da época para momentos dessa natureza e importância. A personagem
feminina da fotografia usa vestido claro, com um leve decote em U, de mangas
curtas, na cabeça um véu rendado, justificado por se tratar de uma missa em ação
de graças. A fotografia não permite verificar se há maquiagem, mas percebe-se que
o uso de joias foi descartado.
O registro permite, mais uma vez, vislumbrar a presença da cultura cristã
católica na cidade baiana. Naqueles dias da década de 60, o uso do véu era
constante em diversos rituais católicos, como batizados, missas costumeiras ou
missas especiais de ação de graças, como revelado na foto e, sobretudo, nas
procissões. O uso desse acessório tradicional de moda fazia parte do imaginário
mariano ainda marcante em Salvador, que, conforme já evidenciado anteriormente,
tinha no casamento e na figura da noiva seus expoentes maiores.
O registro fotográfico vem reforçar ainda a ideia, defendida nesta pesquisa, do
arcaico e do novo inseridos na cultura citadina, seja na paisagem, nos costumes,
inclusive no que tange às vestimentas e à moda. Contudo, é importante considerar
que a fotografia foi realizada no período que antecede o Natal, momento em que os
cristãos se voltam de forma mais enfática para os rituais de celebração do
nascimento de Cristo. Logo, sendo a missa parte desses festejos365, a moça optou
pela manutenção da tradição. Todavia, à época, as mulheres mais jovens já abriam
mão do uso do véu, sendo mantido marcadamente por mulheres mais velhas e
casadas.
Parece-nos bastante pertinente destacar o pensamento de Maria do Carmo
Teixeira Rainho, analisando a sintonia entre a cidade e a moda no Rio de Janeiro do
século XIX. A historiadora carioca, baseada nos argumentos de Daniel Roche,
sublinha que revisitar a história do vestuário é uma forma de se chegar ao centro da
365
Na liturgia católica, as missas próximas ao Natal, sejam de qualquer tipo, o tema central da homilia
é sempre o nascimento de Cristo, reforçando a tradição milenar.
188
História Social366. De fato, ao analisar vestimentas de uma sociedade, deparamos
com um emaranhado de questões sociais que extrapolam as questões pertinentes à
moda. Nesse contexto e nesse caso, o simples ato de ostentar um véu interliga o
imaginário, a tradição cristã, a cultura portuguesa, para não citar outros. Enfim, a
História Social aparece em diversas nuances.
Eventos informais também solicitavam roupas adequadas das elites e
populares e, como destaca Vianna, uma simples vesperal de cinema exigia uma
roupa nova de moças e rapazes367. Assim, acabamos por nos deparar com outras
vestimentas masculinas menos solenes que as ostentadas em formaturas. Todavia,
essas indumentárias podem ser percebidas também como domingueiras, porém
mais condizentes com o clima e o “espírito tropical” reinante na cidade, fazendo-se
presentes nos momentos festivos da urbe, conforme mostrado na Figura 49.
Figura 49 – Roupas da rapaziada.
Fonte: Diário de Noticias (1967).
Esse registro foi realizado no coquetel oferecido à imprensa no ato de
inauguração da boate e bar Pescador. O Diário de Notícias destaca na nota que o
366
RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções; Rio
de Janeiro, século XIX. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. p. 35.
367
VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim, op. cit., p. 260.
189
bar dava para “[...] a tradicional Baixa dos Sapateiros. Na recepção estiveram
presentes os pintores Carlos Bastos, Leonardo Alencar, Edvaldo Araújo, Durval,
Agnelo Roberto e a cantora Maria Vitoria, o cantor Luiz Audíface, o poeta Ruy
Espinheira Filho”
368
. O breve texto jornalístico ainda destaca que a recente casa
noturna seria o ponto de reunião de artistas, homens da imprensa e personalidades
da sociedade.
Tendo como norteadora a fotografia e o texto jornalístico, a casa noturna
buscava congregar uma elite intelectual ou uma “burguesia arejada”
369
, em sintonia
com aqueles dias nos finais da década de 60. No período, sob as imposições e
patrulhamento da Ditadura Militar iniciada em 1964, os jovens dos setores artísticos
e intelectuais se reuniam para discutir política e outros temas nos locais de
sociabilidades existentes na cidade, bem como desfrutar de um momento de lazer.
A fotografia revela certo rompimento dos padrões tradicionais de vestimentas
masculinas, no período em plena ascensão. Nela se vê cinco homens em trajes bem
descontraídos numa noite de verão soteropolitano. As calças são lisas, uma delas,
portada pelo rapaz sentada à mesa, aparenta ser mais justa em relação ao padrão
então em voga. O diferencial maior se dá nas camisas listradas e estampadas.
Sendo um reduto de artistas e intelectuais, havia certa descontração no vestir,
diferente do que ocorria em outros setores dessa mesma sociedade. É importante
destacar que a década de 60 foi uma época de revoluções em vários setores da
sociedade, envolvendo política, música, dança e comportamento. Nesse elenco, as
roupas de homens e mulheres passaram também por transformações marcantes. No
que tange à indumentária masculina, o uso de estampas e cores variadas,
constituindo o colorido, representou uma ruptura em relação ao sóbrio das cores
neutras ou mesmo com a reduzida grade de cores usadas pelos homens baianos
das décadas anteriores.
Esse modo de vestir mais ligado ao passado, que, em meados da década de
60, apresentava algumas mudanças, se inseria na conjuntura de hábitos familiares
do vestir baiano. Para muitos homens de então, a escolha das roupas era uma
atribuição feminina, na infância responsabilidade da mãe e, depois de casado,
atribuição da esposa. Nos dois casos, por tradição, era mantida certa austeridade e
368
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 6, 17 jan. 1967.
Nessa expressão, queremos evidenciar uma elite econômica que mantinha relação com as artes e
as correntes políticas da cidade, frequentando lugares e sociabilidades menos convencionais
existentes na cidade.
369
190
formalidade comum ao universo masculino da época. Em suma, de forma geral e
ilustrativa, o azul era cor para meninos e homens e rosa era cor de menina e mulher.
Sendo a roupa um artefato do cotidiano, na prática, o modo de vestir masculino era
repassado de uma geração a outra. Dessa forma, o menino de outrora, na fase
adulta, dava continuidade àquele aprendizado adquirido durante os anos da infância,
marcado pela seriedade dos tons e pelo classicismo dos modelos. A Figura 50
ilustra um pouco desse costume ou mesmo desse aprendizado de vestir da época.
Figura 50 – Roupa de menino.
Fonte: Diário de Notícias (1965).
Na fotografia, aparece o garoto Carlos Reis, filho do advogado Renato Reis e
dona Rilza Reis, no dia de seu aniversário. Veiculada no Jornal Diário de Notícias,
assemelha-se a um modelo de fotografia bastante realizado no período, geralmente
produzida em estúdios de fotógrafos espalhados pela cidade. No empreendimento,
era comum a criança vestir uma ‘roupa de ver Deus’ ou, em outros casos, sua única
roupa domingueira para o registro.
A vestimenta usada pela criança, certamente escolhida pela mãe, era um
estilo comum de roupa de menino: conjunto marinheiro em tecido mais grosso, como
a sarja, de cor branca, com gola e detalhes da manga em tecido azul-marinho. Na
gola e nas extremidades da manga, um aviamento conhecido por sianinha, de cor
191
branca, dando o contraste com o listrado, azul-marinho e branco. Esse “uniforme de
gala”370 em algumas famílias era passado para o irmão mais novo, quando não mais
cabia no usuário primordial, pois de certa forma era uma moda atemporal.
A fotografia foi realizada em 1965 e, por esse motivo, é pertinente considerar
que os militares estavam no poder, logo os uniformes faziam parte do cenário da
cidade. Ostentados principalmente em desfiles cívicos, causavam certo fascínio nas
crianças, sendo por vezes reproduzidos pelas mães para usos cotidianos. Todavia, é
importante esclarecer que o uso desse tipo de vestimenta infantil já era usado na
cidade antes do Golpe Militar de 1964.
É certo que o modo de vestir das crianças denuncia muito sobre a sociedade
que as veste. Na interpretação do Brasil realizada em Casa Grande e Senzala 371,
Gilberto Freyre acaba por enveredar na História da Criança, sobretudo no tocante às
posturas de meninas e meninos no Brasil colonial. Segundo Freyre, para entender o
comportamento do grupo dos patriarcas de engenhos, “era necessário saber como
seus membros haviam sido criados”372.
Na obra, considerada por Fernand Braudel como uma “sociologia fina e
impecável”373, Freyre presta atenção nas crianças negras, brancas e ameríndias, e
em “[...] suas roupas, seus jogos e seus brinquedos e, acima de tudo, seus
relacionamentos
com
adultos”374.
Para
o
sociólogo
pernambucano,
esses
relacionamentos funcionavam como geradores e perpetuadores de costumes,
inclusive dos hábitos do vestir. Na Salvador do meado do século XX, a vestimenta
infantil aponta para um diálogo com o final do século XIX e com as primeiras
décadas do século XX. Os pais desse período (1958-1968) viveram a infância
marcada pela formalidade no trato com adultos, vestidos com rigor e austeridade,
característicos do patriarcado apontado por Freyre.
370
Na década de 70, por tradição, essa vestimenta era usada em dias de procissão ou desfiles
cívicos como o Sete de Setembro como traje de gala por estudantes de Escolas Paroquiais de
cidades do interior da Bahia, como Jacobina, no Piemonte da Chapada Diamantina do Estado.
371
A obra de Freyre está inserida nessa discussão, e também sua análise do comportamento do
senhor de engenho e sua família tendo como locus privilegiado o Nordeste, no qual a Bahia e
Pernambuco se destacam no estudo. Por esse motivo, sofreu inúmeras críticas do mundo
universitário, conforme analisado na obra de BURKE, Peter Burke; PALLARES-BURKE, Maria Lúcia
G. Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo: UNESP, 2009.
372
BURKE, Peter; PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Repensando os trópicos:..., op. cit., p. 86.
373
Destacado na obra de BURKE, Peter; PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Repensando os
trópicos..., op. cit., p. 137, quando se propõe a analisar a recepção da obra Casa Grande e Senzala
por intelectuais de vários países.
374
BURKE, Peter; PALLARES-BURKE, Maria Lúcia G. Repensando os trópicos..., op. cit., p. 85.
192
Os adultos do período 1958-1968, de forma lenta e contínua, começavam a
romper com essa formalidade do vestir. Entretanto, a atenção com a apresentação
pessoal na esfera pública era mantida e levada a sério. As ‘roupas de ver Deus’,
para além da expressão, percebidas aqui enquanto produção de uma vestimenta
especial, eram uma prática costumeira que envolvia inclusive certos sacrifícios, na
escolha de tecidos, na seleção de modelos, na realização por uma costureira ou
alfaiate e na busca por este profissional.
Quando a vestimenta era destinada à aparição na televisão ou nas páginas
dos jornais, os cuidados em sua realização eram certamente maiores, tratando-se
de misses, cuidados redobrados. As entrevistas com as ex-misses, candidatas ao
concorrido concurso de Miss Bahia, não deixam dúvida de que as aparições eram
sempre cercadas de cuidados extremados quanto a indumentária, maquiagem,
penteados, em suma, em tudo que contribuísse para produzir uma aparência
condizente com o padrão estético da época. Obviamente que estas já eram
cuidadosas com sua aparência, mesmo antes de serem convidadas para participar
dos concursos de beleza. A Figura 51 permite observarmos o esmero das moças e
vermos outras ‘roupas de ver Deus’, inseridas nos programas de televisão, que
debutavam na Cidade da Bahia.
Figura 51 – As misses e suas vestimentas especiais.
Fonte: Diário de Notícias (1963).
Na fotografia, é possível observar “[...] duas candidatas ao Miss Bahia 1963,
apresentadas ao público baiano no programa da TV Itapoan ‘O assunto é Miss
193
Bahia’”375, são elas Débora de Almeida Souza (vestido escuro) e Damiana de Souza
Neiva (vestido claro), ao centro o jornalista Luiz Sampaio. É notável na fotografia
que a aparência das candidatas foi cuidadosamente pensada para a entrevista na
televisão.
Débora de Almeida Souza, candidata do Bahia Country Clube, usa um vestido
reto, estilo tubinho, em tom escuro, provavelmente preto, sem mangas e com gola
canoa, que lhe proporciona liberdade; com comprimento, a julgar por sua postura
sentada, acima dos joelhos, provável reflexo da liberdade que as mulheres
conquistavam naquele momento. Sua ‘roupa de ver Deus’ é complementada com
um corte de cabelo curto e tiara também escura; no pescoço, ostenta uma corrente
com medalhão. Em sua composição, destacam-se, ainda, as sobrancelhas,
desenhadas por pince e bem finas, um modismo copiado das estrelas de cinema.
Sobre as pernas, em que pese a qualidade da fotografia, tudo indica haver uma
grande bolsa, tipo carteira, em cor escura e com dois detalhes brancos.
No outro extremo da foto, aparece Damiana de Souza Neiva, portando um
vestido em tom claro, mas não branco, talvez em cinza ou amarelo, sem mangas e
com certo volume a julgar pela sua posição sentada na cadeira. Suas sobrancelhas
foram delineadas, porém são mais volumosas; no pescoço, um colar grosso; o
penteado, com franja na parte frontal, parece ter algum acessório embutido, que lhe
confere volume e, sobre as pernas, uma bolsa de grandes dimensões.
A fotografia nos possibilita analisar que as candidatas, além dos traços físicos
distintos, reflexo da nossa diversidade identitária, também possuem estilos díspares,
a julgar pelas indumentárias e pelo próprio gestual de corpo 376. Em suma, a
candidata Damiana parece ser mais formal em relação à outra, que apresenta certo
despojamento em meio a sua elegância.
Na fotografia, ainda aparece o jornalista Luiz Sampaio vestindo um terno
escuro, camisa clara e gravata. O mestre de cerimônia, conforme o jornal mostra,
ostenta um fino bigode e tem os cabelos esculpidos à moda da época. Sua
aparência se aproxima do latino galante, comum nas fitas de cinema e popularizado
pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek. Todavia, sua aparência segue o padrão
garboso e formal que o jornalismo televisivo usava e ainda usa no Brasil.
375
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 1, 1º/2 maio 1963.
A antropologia e sua metodologia de descrição densa permitem analisar comportamentos sociais
tendo o gestual como a base para a análise, perceptível no trabalho de MESSEDER, Suely Aldir. Ser
ou não ser: uma questão para pegar masculinidade. Salvador: EDUNEB, 2008.
376
194
Seja uma Miss ou um aspirante ao sucesso musical, aparecer na mídia
televisiva era motivo para ostentar uma roupa domingueira. Ter sua imagem
veiculada no jornal também seguia a mesma dinâmica. Posto constituir uma forma
de se apresentar ao grande público, logo pedia um trajo especial, como parece ser o
caso do jovem oriundo de Santo Amaro, naqueles dias, um residente da cidade da
Bahia, que se juntava a uma massa de rurais tangidos para a Capital, como destaca
Milton Santos. Ele é visto na Figura 52.
Figura 52 – Vestimenta social do jovem Caetano Veloso.
Fonte: Diário de Notícias (1962).
Na fotografia, vê-se o “jovem Caetano Veloso”377, enquanto preparava a trilha
sonora para a montagem do espetáculo, A Exceção e a Regra. O jovem tímido,
parecendo tenso diante da máquina fotográfica, veste calça escura em tecido
grosso, paletó claro e camisa sem colarinho, possivelmente uma camiseta em
malha, estilo t-shirt, branca, que em 1962 despontava como uma moda oriunda do
377
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, p. 7, 27 nov. 1962.
195
cinema, popularizada pelos personagens marginais vividos na tela por Marlon
Brando e James Dean.
Embasado nas reminiscências do cantor na obra Verdade tropical, o aspirante
a artista da época frequentava assiduamente “exposições no MAMB 378, peças na
Escola de Teatro, o Clube de Cinema e a Casa da França para ver filmes de arte” 379.
Também eram constantes as reuniões improvisadas com outros jovens também
interessados por arte, no Colégio Severino Vieira, em sua casa no bairro do Tororó
ou no “Jardim de Nazaré conversando até altas horas da madrugada”380. Esses
jovens, atentos e críticos nas suas práticas culturais cotidianas, realizam de certa
forma um movimento de contracultura no que se refere ao convencionalismo do
trajo.
Na indumentária de Caetano Veloso, dois aspectos podem ser considerados
inseridos nessa conjuntura. O cabelo, levemente encaracolado, dadas as suas
dimensões, ia de encontro aos padrões de corte dos jovens baianos de classe
média. De um modo geral, os cabelos masculinos eram penteados com esmero e,
em muitos casos, o uso de cosméticos, como a brilhantina, dava durabilidade a essa
maneira formal de manutenção dos cabelos fora do recinto do lar.
Outro aspecto que se encaixa na “contramão” da aparência convencional,
refere-se ao uso do paletó de tonalidade diferente da calça, sinalizando certo
rompimento com os padrões tradicionais do vestir do período. Todavia, a ostentação
da peça aponta para um dúbio sentido. Ao tempo em que ela é uma quebra do
padrão de vestir masculino de Salvador da época, ela também é a rendição do
jovem ao convencionalismo reinante. O jovem, uma vez designado para aparecer no
periódico, investe-se da formalidade social do período, através do paletó, uma ‘roupa
de ver Deus’. É importante apontar que à época, os códigos de conduta exigiam de
um homem uma vestimenta formal, marcadamente um terno ou um paletó, seja em
festividades familiares ou em outras práticas sociais cotidianas.
O próprio Veloso, em sua obra autobiográfica, fornece pistas quanto à
vestimenta do período em estudo e reconhece o seu grupo de contato mais próximo
como diferente em atos e atitudes que perpassam o modo de vestir. Em relação às
atitudes, destaca suas saídas com a irmã Maria Bethânia, então uma jovem de
378
Refere-se ao Museu de Arte Moderna da Bahia, hoje comumente chamado de MAM
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 62.
380
Id., ibid., p. 65.
379
196
quinze anos, constituindo um diferencial de atitude entre irmãos. Enfatizando o
padrão convencional de muitos jovens, assim escreve sobre um amigo que
considerava sua atitude inaceitável, “[...] sendo um moço másculo parecido com um
garoto comum da alta classe média de qualquer cidade do Ocidente na segunda
metade do século XX”381. Sua observação sobre os jovens ocidentais da época, de
caráter amplo, acaba por excluí-lo da categoria de garotos comuns, logo, um
diferente em meio ao todo.
Na esfera de atitudes e diferenças, a obra em vários trechos destaca a roupa
como importante elemento diferencial. Com certo entusiasmo irônico, Veloso
menciona os vestidos ostentados pela jovem irmã, que lhe conferiam certo exotismo;
observa que, sendo ele, aos dezenove anos, magro e alto, quando perambulava
pela cidade ao lado dela, formavam um casal que causava “[...] estranheza a
pacatos cidadãos baianos”382: ele, em um terno multicor, ela, em vestidos retos, de
cetim roxo, marcas premonitórias da ousadia que marcaria a carreira artística dos
jovens baianos nas décadas seguintes.
Ao rememorar o Festival da Record de 1967, que considera o momento inicial
do Tropicalismo, Caetano descreve a surpresa, em forma de vaia, da plateia com os
rapazes do conjunto argentino Beat Boys, que o acompanhou na canção “Alegria,
Alegria”, por “[...] seus cabelos longos, suas roupas cor-de-rosa e suas guitarras
elétricas de madeira maciça” 383. A vaia foi interrompida pela entrada do cantor no
palco, causando também espanto, por sua aparência multicolor, que portava,
quebrando o protocolo, “[...] diferentemente de todos os outros cantores, dos
músicos e dos apresentadores, um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê
laranja-vivo”384.
Em suma, a ousadia, já perceptível no início da década, ganhava contornos
mais agressivos. Em 1967, Caetano era um artista iniciante, sua música de fácil
apelo escolhida para ser apresentada no Festival, aliado ao som das guitarras
elétricas e indumentárias bizarras, cumpria aquilo combinado previamente com
381
VELOSO, Caetano. Verdade tropical, op. cit., p. 65.
Id., ibid., p. 67.
383
Id., ibid., p. 173.
384
Id., loc. cit.
382
197
Gilberto Gil: “no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução”385, uma revolução de
costumes.
Longe da postura agressiva de mudanças de costumes protagonizada pelo
artista baiano, na velha Cidade do Salvador, as camadas populares cumpriam seus
rituais costumeiros de práticas cotidianas. Nestes, uma vestimenta categorizada
como de ‘ver Deus’, em muitos casos, era a única. O valor sentimental agregado a
elas certamente que extrapolava o valor incutido pelas camadas médias 386. Essas
roupas exclusivas se destinavam às sociabilidades julgadas como mais importantes
entre todas aquelas vividas na urbe. A Figura 53 se insere nesse contexto.
A fotografia de 1960 ilustra os dias de efervescência cultural em Salvador e
está relacionada a uma reportagem que abordava a presença de populares na
programação do Museu de Arte Moderna da Bahia, espaço também frequentado por
jovens “modernos”, como salienta Caetano Veloso. O texto jornalístico observava
que a “gente humilde” da cidade cada vez mais comparecia para conferir as
exposições existentes no Casarão Colonial que abrigava o Museu idealizado pela
italiana Lina Bo Bardi387. Segundo o periódico, os populares da cidade “[...] no final
saem impressionados com o colorido das telas e o bom gosto do local” 388. A
impressão primeira que a fotografia nos passa é de contemplação. As mulheres da
fotografia observam atentamente as esculturas de formas humanas, mas o olhar
curioso e desconfiado da criança maior está voltado para o realizador da fotografia,
não para as esculturas expostas na nobre casa.
385
VELOSO, Caetano. Verdade tropical, op. cit., p.165.
Nas entrevistas realizadas, foi notável ver que as pessoas das camadas populares atribuem maior
sentimentalismo às roupas rememoradas.
387
A atuação da arquiteta italiana na Bahia não se restringiu a idealizar o Museu de Arte Moderna da
Bahia, pois, com frequência, escrevia artigos no Jornal Diário de Notícias. Muito daquilo escrito nesse
período foi reunido recentemente na obra de RUBINO, Silvana; GRINOVER, Mariana. Lina por
escrito: textos escolhidos de Lina Bo Bardi.São Paulo: Cosac Naïfy, 2009.
388
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Salvador, 10/11 jan. 1960. Cad.3, p.3.
386
198
Figura 53 – Gente humilde em ‘roupas de ver Deus’.
Fonte: Diário de Notícias (1960).
Para além da informação do jornal, que anunciava a condição social dos
retratados, a própria fotografia nos fornece alguns elementos neste caminho,
perceptível principalmente nos penteados, bem mais simples do que aqueles
identificados nas fotos de mulheres da classe média. Todavia, o mais importante
para nossa pesquisa são as vestimentas ostentadas. Certamente se tratam de
‘roupas de ver Deus’. Dado a importância da sociabilidade para a “gente humilde”,
conforme o jornal destaca, a roupa escolhida tinha um caráter diferencial, pois sendo
o evento considerado como extraordinário, logo uma roupa especial para aparecer
naquele espaço de artes era imprescindível.
Na fotografia, vê-se uma senhora, com idade mais avançada, usando um
vestido, bem característico de senhoras da época, em tecido de algodão claro, com
pequenas estampas em tons mais escuros. A saia do vestido é godê, na mão
carrega uma bolsa em tamanho médio, destinada nesse período aos passeios
diurnos, não usa acessórios nas orelhas e o cabelo foi preso em forma de coque. A
forma de ostentar o cabelo e a falta de um par de brincos despontam como
indicativos da sua condição social. Na época, as mulheres das camadas médias
geralmente portavam alguma joia no espaço público, bem como um penteado mais
elaborado.
199
A outra mulher presente na fotografia, mais jovem, usa conjunto de duas
peças escuras, na blusa detalhes na gola e mangas em tom claro. A parte de baixo
deixa dúvida se é uma saia ou calça, provavelmente calça com elástico, pois a
mesma parece grávida. Assim como a outra senhora presente na cena, o cabelo
pouco elaborado e a falta de joia chamam a atenção e denunciam sua condição de
mulher popular e do lar. Tem com ela duas crianças e, dada a postura corporal, tudo
indica se tratar de filhos. O menino usa bermuda e camisa xadrez, devidamente
colocada por dentro da bermuda, conferindo rigor à criança. Sua aparência se insere
no aprendizado do vestir masculino adulto, já mencionado. A menina que está no
colo, usa um vestido em tom claro e bem volante, tem mangas e o comprimento
parece ser abaixo dos joelhos.
Esse tipo de vestido era muito usado por meninas da época, principalmente
em ocasiões especiais, como aniversários e batizados. A peça era comum nas
camadas tanto abastadas quanto médias e pobres da Capital e interior. O diferencial
se dava por conta dos tecidos utilizados na confecção. Essa peça poderia ser
confeccionada em algodão, veludo ou seda, para não citar outros tecidos, todavia o
diferencial maior se dava na quantidade de peças que uma criança das camadas
médias e abastadas possuía em contraste com o reduzido leque de que dispunha
uma criança das camadas populares.
Em muitas famílias soteropolitanas das camadas baixas, como a mostrada na
fotografia, algumas vestimentas julgadas como ‘roupas de ver Deus’, sejam elas de
adultos ou das várias crianças existentes numa mesma família, se configuravam
como a única peça destinada às atividades consideradas importantes, podendo ser
um desfile cívico, uma festividade familiar, uma festa de largo ou mesmo uma
procissão389.
Todavia, para além dos registros fotográficos, essas roupas residem nas
memórias de muitos e fazem parte de suas boas lembranças. Nas camadas pobres,
essas roupas têm significados especiais que superam o significado atribuído por
aqueles mais abastados. Essas vestimentas, dada sua exclusividade, são
consideradas como ‘roupas de ver Deus’.
389
O farto material fotográfico realizado pelo etnógrafo francês Pierre Verger nesse período retrata
muitas festividades públicas e privadas na Cidade do Salvador. Nesses registros, as roupas
ostentadas pelas camadas populares são notáveis.
200
3.4 “COSTURANDO” HISTÓRIA E ROUPAS: MEMÓRIAS E AS ‘ROUPAS DE VER
DEUS’
Quem constrói histórias geralmente está compartilhando memórias. Tratandose da Historia Contemporânea referente ao Governo JK, ou mesmo aos “anos de
chumbo”, é vasto o conjunto de memórias individuais e coletivas que permeiam
esses tempos, como afirma Lucília de Almeida Neves Delgado. Para muitos que
entrevistamos, é uma época relacionada aos tempos de sua mocidade, logo são
depoimentos e memórias permeados de saudade.
Delgado, discutindo questões relativas à memória e às identidades, aponta a
saudade como um elemento constante nas recordações das pessoas, muitas vezes
referente a um tempo não vivido por elas próprias, mas que acabam por integrar
suas histórias individuais em função de “[...] imagens disseminadas e registradas
pelo senso comum, por livros, por amigos, por familiares e, também, muitas vezes,
pela própria história institucional”390.
A
inserção
das
memórias
neste
trabalho
buscou
contemplar
as
reminiscências referentes às roupas, sobretudo aquelas roupas consideradas
especiais por seus usuários. Como as roupas não possuem memórias, são os
homens e mulheres que as têm, sendo as roupas apenas “guardadoras” das
memórias de quem as vestiu, constituindo dessa forma uma memória, como salienta
Stallybrass. Aqui buscamos evidenciá-las através das lembranças de alguns
personagens de diferentes camadas sociais. Contudo, ressalte-se, não buscamos
elaborar histórias de vida, ou seja, uma reconstrução da trajetória de sujeitos
históricos, conforme as orientações de Delgado. Esse empreendimento, por sinal,
exige metodologias específicas que fogem aos anseios desta pesquisa.
É importante destacar que nosso objeto de investigação, as vestimentas,
sejam ordinárias e/ou especiais e, por consequência, o cotidiano onde estas são
ostentadas, se insere em uma rede simbólica, margeada de subjetividades. Dessa
forma, os depoimentos, reveladores das memórias, nos possibilitam tornar mais
palpáveis os artefatos de tecidos percebidos nas fotografias, que podem ser um
mero trapo para uns e especial para outros, ou mesmo categorizado como a roupa
domingueira.
390
DELGADO. Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006. p. 17.
201
Nesta tessitura de memórias, de roupas, de emoções e de tecidos, Maria
Angelina (rever Figura 9) desponta como uma personagem singular, dada a
“riqueza” da suas memórias, e plural, pois, mais que memórias de trajos e episódios
de sua vida, guarda ainda, entre pedras de naftalina, algumas peças de roupas da
sua história de vida. Sua memória relacionada a indumentárias é ampla e se mistura
com episódios mundiais, como o casamento (1947) e a coroação (1953) da Rainha
Elizabeth, eventos reportados pela Revista O Cruzeiro, guardada por ela como uma
espécie de troféu. São memórias que remetem aos anos de sua juventude.
Nas entrevistas realizadas, ficou evidente que o tema da moda e modismos
esteve presente nos anos de sua juventude e em grande parte da sua vida adulta,
pois, como sinalizou em entrevista, “sempre fui vaidosa”391. Desse aspecto da
personalidade sinalizado pela octogenária senhora, resta pouco, todavia seu
argumento “de vaidosa” pode ser conferido pelas inúmeras fotografias mostradas
durante a realização das entrevistas. Nestas desponta, através dos penteados, das
vestimentas ou mesmo dos acessórios, sua rememorada vaidade.
Da infância marcada por dificuldades econômicas, guarda na memória as
cantigas, as brincadeiras de rodas, os castigos escolares, mas as roupas foram
esquecidas, fenômeno comum no percurso da memória, que seleciona alguns
episódios e esquece outros. Dos “tempos de moça”, nas palavras da própria
depoente, lembra dos seus dois noivados, acertados depois da permissão do pai, de
seus desfechos. Um foi desfeito, pois, segundo ela, “[...] não queria casar com um
chofer de caminhão, este tipo de homem tem mulher em todos os lugares”392. Nas
entrelinhas da entrevista, ficam evidentes os traços da personalidade da depoente,
avessa às regras impostas pela família. Idas ao cinema e a algumas festividades
entre amigos, inclusive para ouvir alguém tocar violão393, destacam-se como
momentos especiais, até ser desposada em meados dos anos 50.
O enlace, segundo a entrevistada, foi um acerto entre o noivo e seu pai,
depois de um namoro constituído por breves encontros com o rapaz. Todavia, o
matrimônio ao que parece correu a sua revelia, algo que não constitui uma novidade
para o período. Em muitos casos, os casamentos eram fruto de escolhas das
391
Entrevista realizada em 18 de julho de 2011.
Entrevista realizada em 18 de julho de 2011.
393
A memória musical da entrevistada é notável, nela constam canções, cantores e cantoras de sua
juventude. Entre eles, destacou Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga,
para não citar um grande elenco.
392
202
famílias, não dos próprios nubentes, sobretudo desconsiderando a vontade da
mulher. Sua fala revela que, mesmo tendo uma personalidade forte, expressando
vontade própria nos tempos de moça, foi rendida ao casamento por vontade familiar
e mediante circunstâncias não reveladas pela entrevistada.
Leitora de revistas, Maria Angelina sabia dos protocolos que envolviam um
enlace e nos falou deles com riqueza de detalhes, com destaque para as roupas do
casal. Na tarde matrimonial, ela usava um vestido na altura dos joelhos de cor rosa
smoking394, com mangas bufantes, sendo a parte superior ou o corpo do vestido
justo e a parte baixa em estilo godê395, e sapatos de salto baixo, em cor bege. Ele
vestia um terno em linho JK396, de cor amarronzada ou bege, provavelmente
comprado, segundo ela, em São Paulo, pois já havia morado por lá e comprou
alguns ternos. A memória de Maria Angelina ainda guarda lembrança da barba de
Osvaldo, o noivo, que tinha sido rigorosamente raspada, ficando apenas um fino
bigode, e do uso de uma gravata borboleta preta397.
Mesmo tendo a fotografia inserida na cultura familiar, a ocasião não teve o
registro fotográfico: ”penso que pai estava sem dinheiro, tava endividado, ele não
tinha máquina, mas gostava de fotos. Na ocasião, tínhamos chegado de uma
viagem grande para a Paraíba”398. Tudo que sabemos dessa tarde matrimonial e as
vestimentas ostentadas na ocasião foi através do depoimento da noiva.
Maria Angelina diz ter confeccionado seu trajo nupcial em uma costureira
local. Sua fala dá margem a pensar o modelo, a cor e o tecido usados na feitura
influenciados por alguma cena de filme visto no cinema ou saído das páginas da
Revista O Cruzeiro, posto que a leitura de revistas e idas ao cinema eram atividades
esporádicas na vida da entrevistada.
Mesmo o enlace não tendo ocorrido conforme idealizado pela depoente, fica
evidente que a indumentária nupcial foi um fator de preocupação para a noiva. A
‘roupa de ver Deus’, como alusão a uma roupa nova, neste caso é notável. Seu
discurso aponta ainda para ressentimentos, elemento que faz parte da memória, “[...]
394
A cor à qual a entrevistada se refere, na atualidade seria um rosa bebê ou salmão.
Tipo de corte de tecido para se obter um movimento ondulado.
396
Tecido feito com o fio extraído da fibra do linho JK, uma denominação dada a um tipo de linho nos
anos 50.
397
A entrevistada nos revelou que guardou esse objeto por longos anos e deu de presente a um neto
para usá-lo numa ocasião especial.
398
Entrevista realizada em 28 de março de 2010.
395
203
em seu sentido psicológico é comumente compreendido como um estado ou
condição duradoura”399, verificável através da metodologia da História Oral.
Nesse contexto que envolve velhas roupas, fotografias amareladas e joias de
pouco valor, o conjunto quadriculado adquirido em 1968 desponta como uma ‘roupa
de ver Deus’: “Este conjunto era um blazer, a mesma coisa que uma jaqueta e uma
saia, fiz uma bainha maior e ficou mais curta”400, tendo sido comprado para a Festa
de Nossa Senhora da Conceição, pois, segundo ela, “à procissão eu ia arrumada”.
Do conjunto de saia e jaqueta em malha, tipo jérsei, quadriculado, em tons de lilás e
roxo, naqueles dias uma moda principalmente para senhoras, resta, meio que já
desbotada pelo tempo, a saia que aparece na Figura 54. Ela é um documento
valioso, pois, para além das memórias afetivas que envolvem a depoente e a
vestimenta, nos permite identificar as cores, o tecido e o corte401.
Figura 54 – Saia em jérsei.
Fonte: Guarda-roupa pessoal da entrevistada.
Ela rememora que, junto à vestimenta especial para o dia de procissão da
Senhora da Conceição, adquiriu “um sapato marrom escuro com fivela cromada e
399
No artigo “Ressentimento: história de uma emoção”, David Konstan analisa este sentimento
partindo da Antiguidade e das noções modernas, perpassando a sociologia e a psicologia. (In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. São Paulo: UNICAMP, 2001. p. 59-79).
400
Entrevista realizada em 18 de julho de 2011.
401
Como já apontado anteriormente, o hábito de guardar roupas por muitos anos não é uma
característica da cultura brasileira ou baiana. Elas, assim como muitas memórias, são descartadas
com o passar dos tempos, Angelina, segundo se apurou, parece ir na contramão dessa corrente.
204
saltos médios”402 para a composição especial; por se tratar de um evento religioso
dedicado a Maria, mãe de Jesus. Comprou também um véu de tecido finíssimo, com
detalhes do mesmo tom em forma de florais, tendo nas extremidades uma franja em
rosa mais cintilante, denotando certo brilho discreto. Este artefato guardado pela
depoente, possível de ser visto na Figura 55, constitui um expoente palpável de
indumentária que estabelece uma forte ligação com o imaginário mariano, já
destacado.
Figura 55 – O véu de Maria.
Fonte: Guarda-roupa pessoal da entrevistada.
É perceptível que o tecido fino, a cor rosa bem suave e o detalhe floral, que
lembra os lados dos oratórios, dialogam com os aspectos angelicais presentes nas
representações de Maria. Ressalte-se que, em que pese esse elemento do ritual
católico, a depoente nos assegurou ter uma prática católica pouco expressiva,
resumida à participação em alguns poucos cultos da religião, embora tenha batizado
catolicamente uma filha com o nome de Maria da Conceição. O discurso de Maria
Angelina dá margem a perceber que a adesão ao véu ocorreu mais por modismo do
que por devoção a Nossa Senhora, como evidencia: “Minha comadre Pastora
comprou um azul, bem clarinho e eu comprei este”. Todavia, outros elementos como
a guarda do objeto por décadas ou o nome da filha reforçam o imaginário mariano
presente em sua vida, mesmo que por laços tênues.
402
Entrevista realizada em 18 de julho de 2011.
205
No guarda-roupa de Maria Angelina, descansam várias roupas consideradas
por ela como de ‘ver Deus’, todas permeadas de recordações e sentimentos. O
vestido verde (Figura 56), com flores verde-escuras e brancas, e ramos em tom de
ocre, é outro exemplar de suas roupas domingueiras.
Figura 56 – Vestido floral.
Fonte: Guarda-roupa pessoal da entrevistada.
A vestimenta de tecido sintético tem decote em V e possuí mangas três
quartos, com comprimento indo à altura dos joelhos. A peça lembra as conclusões
de Flávio de Carvalho em relação às formas básicas da moda, pois se encaixa
naquilo que o artista categorizou como “Curvilínea Fecundante” 403, que se liga à
alegria de viver. Sendo uma peça mais voltada para uso noturno, o tecido tem certo
brilho, tendo sido confeccionado em um tipo de malha acetinada; mesmo que
discretamente, expressa esta alegria de viver do brasileiro e, marcadamente, do
baiano, que se materializa em alguns casos nas vestimentas.
Através da entrevista com a proprietária da vestimenta, foi possível tomar
conhecimento de que se trata de uma peça adquirida para uma festa de formatura
403
Para saber mais sobre as formas básicas da moda definidas por Flávio de Carvalho, é importante
a leitura de seus artigos reunidos em A moda e o novo homem..., op. cit.
206
de um familiar. Ainda sobre a peça, disse: “Tinha um cinto com fivela quadrada
verde”404, destacando que a compra se deu junto com uma “sandália de couro alta
preta”405 e sentenciou, com certo entusiasmo: “Comprei tudo com meu dinheiro” 406.
O depoimento atrelado a outras fontes, como a própria peça de roupa, nos
revela que muitas roupas, em fins de 1960, já poderiam ser compradas prontas em
Salvador e em outras cidades brasileiras, além de que a variedade de tecidos e a
inserção dos tecidos de fibras mistas também é notável. Por último, o discurso de
Maria Angelina nos sinaliza para a ascensão da mulher no mercado formal de
trabalho, com recebimento de proventos próprios, uma transformação social que se
tornaria crescente nas décadas seguintes. No caso específico desta depoente, a
liberdade econômica adquirida com seu trabalho foi reforçada recorrentemente em
seu discurso.
Em geral, esse empoderamento social da mulher brasileira e baiana
perpassava uma educação formal sólida, que possibilitaria um trabalho mais bem
remunerado. Foi o caso de Lucia Regina Castro407 que, em 1968, era uma jovem
com menos de vinte anos e, mediante sua beleza, concorreu ao título de Miss Bahia
1968. Diferente de muitas mulheres da época, que se rendiam ao casamento e, por
consequência, ao lugar de “rainha do lar”, ela ingressou na universidade e
desenvolveu uma carreira de sucesso atrelada a sua formação acadêmica.
Assim como parte significativa da população na Cidade do Salvador, Lucia
Regina é oriunda do interior baiano, fazendo parte da “massa de rurais”, conforme
destaca o geógrafo Milton Santos. Em meados dos anos 60, a moça cursava o
secundário em Salvador e, em paralelo, estudava as línguas inglesa e espanhola e
também piano. Em 1968, “havia terminado o segundo grau e estudava para prestar
vestibular”408, quando participou do mais importante certame de beleza existente na
cidade: o Miss Bahia. Suas reminiscências do período se misturam com o próprio
concurso, com roupas e temas relacionados com a beleza, mas por vezes se podem
observar
aspectos
relacionados
à
imposição
da
família
comportamento dos jovens.
404
Entrevista realizada em 18 de julho de 2011.
Idem.
406
Idem.
407
Nome fictício para a ex-Miss, que concorreu ao titulo de Miss Bahia em 1968.
408
Entrevista realizada em março de 2011.
405
em
relação
ao
207
Lucia Regina revela que “gostava de praia, de cinema, de música e
principalmente, de dançar, mas meu pai era muito rígido quanto às saídas para
festas, a não ser em sua companhia e da minha mãe” 409. Ainda sobre as saídas,
observa que frequentava, sempre em companhia materna, “os famosos assustados,
também conhecidos como hi-fi, na época”410.
Mesmo vivendo na Capital, o diálogo com o interior era fecundo na vida da
jovem. Em sua entrevista, revela que “pouco frequentava festas, entretanto em
minha terra natal era mais frequente acontecer, em época de férias, e numa destas
fui escolhida uma das dez mais elegantes”411.
Como se pode observar, o tema da elegância e, por consequência, as
vestimentas permearam a juventude de Lucia Regina. Para ela, a expressão ‘roupa
de ver Deus’ não está no passado, referindo-se ao termo como se ainda fosse usado
na atualidade: “Roupa de ver Deus era e até hoje é aquela que consideramos
especial, por ser mais rebuscada, mais fina e feita para ocasiões especiais”. Suas
roupas domingueiras, segundo ela, eram retiradas de revistas “importadas e
brasileiras”, “praticamente todas eram confeccionadas por costureiras e até por
minha mãe”. Vestidos rodados e vestidos tubinhos são rememorados como
vestimentas preferenciais.
A memória de Lucia Regina em relação às vestimentas é ampla, mas ficou
restrita ao que era utilizado pelos jovens em sua época de “moça saideira”, sendo a
ex-Miss mais reticente em abordar seus próprios gostos e usos. Mas sentencia,
“nunca usei minissaia”. É possível ser observado, nas entrelinhas do discurso, certo
pudor em relação a essa peça do guarda-roupa feminino, reflexo, quem sabe, da
repressão do pai conservador, que somente permitiu à filha concorrer ao certame
por se tratar de um evento socialmente valorizado. Neste caso, ao que parece, o
conservadorismo foi vencida pelo
status oferecido por esse aspecto da
modernidade.
No entendimento de Lucia Regina, a roupa domingueira é uma vestimenta
mais fina. O vestido utilizado na noite da disputar o título de Miss Bahia 1968 se
encaixa nesse perfil. Segundo suas reminiscências, era uma ‘roupa de ver Deus’:
“Vestido de baile comprido, como se usa até hoje, escolhido por mim e as
409
Entrevista realizada em março de 2011.
Idem.
411
Idem.
410
208
costureiras”, produzido especialmente para a ocasião, em tecido esvoaçante e com
duas fendas falsas na parte inferior frontal. Na parte superior, um decote quadrado,
bordado, que deixava todo o colo à mostra, com alças grossas, permitindo maior
liberdade corporal.
As falsas fendas na parte frontal do vestido longo se assemelhavam a uma
grande prega, dessa forma, o detalhe permitia à candidata desfilar com maior
desenvoltura. A vestimenta especial era complementada por um sapato alto, um par
de brincos redondos, grandes; o longo cabelo preto da moça morena foi preso em
um penteado conhecido como ‘bolo de noiva’, com o detalhe de duas pequenas
mechas de cabelo, soltas, próximas às orelhas.
A vestimenta especial da ex-Miss em seu dia também especial chama a
atenção por esbanjar liberdade, seja pelo decote, não vulgar, ou ainda pela ausência
de mangas, contrastando com o que foi portado por outras candidatas, a exemplo de
Marta Vasconcelos, que optou por um modelo de mangas compridas. Neste sentido,
a vestimenta da moça parece estar em plena sintonia com seu tempo, pois, como
ressaltou em sua entrevista, “os jovens queriam a liberdade”.
Nossa outra depoente, Maíta Nogueira Bittencourt de Andrade, nasceu em
1940, e suas reminiscências de infância não guardam referências sobre vestimentas
ou temas relacionados à moda. Do período de criança, lembra-se do pai, um médico
com inclinações políticas, que, ao final da Segunda Guerra, soltou fogos em
comemoração. Ela alega não ter entendido o que se passava, mas o pai enfatizava
“é a guerra minha filha”412.
Em sua entrevista, recorda do período entre infância e adolescência, segundo
ela “anos dourados”, e sentencia: “Eu fui do quadrinho e do cinema”. Nesse trajeto,
rememora sua infância comparando-a ao filme Cinema Paradiso413, marcada pelas
cidades do interior onde o pai atuou como médico e pelas idas ao cinema.
Sua juventude mantém laços estreitos com o bairro dos Barris em Salvador.
Em 1952, seu avô constrói, no quintal que margeava sua residência de dois
pavimentos, o Edifício Nogueira, com sete andares, uma das primeiras construções
verticalizadas do bairro. Da época, rememora as casas com muros baixos, o contato
entre a vizinhança e o bonde, cuja carreira iniciava na Praça Municipal, próxima ao
412
Entrevista realizada em julho de 2011.
No filme Cinema Paradiso, a infância e a juventude do protagonista são contadas relacionando-as
ao cinema de uma pequena cidade italiana e aos filmes assistidos por ele. Por esse motivo, a
depoente comparou a sua infância a este filme.
413
209
Elevador Lacerda, e finalizava nos Barris. Diz ela: “Ficávamos aqui pela frente,
acabávamos de jantar e dávamos uma volta. O bairro era ótimo. Todo bairro tinha
sua turma, de Nazaré, da Barra, dos Barris.”414. Enfatizou ainda certa disputa entre
essas turmas de jovens de diferentes bairros, gerando inclusive confusões em
alguns momentos 415.
Do período final da década de 50, recorda dos anos de colegial no Instituto
Feminino, instituição rigorosa dirigida por Henriqueta Catarino, que “vestia preto e
era sempre vigilante e temida pelas alunas” 416. É nesse percurso de memórias
juvenis escolares que insere suas primeiras lembranças de roupas. Rememora a
vestimenta escolar clássica: “A saia era de casimira azul marinho no meio da canela,
tecido antitropical, tipo lã, meia comprida branca, sapato masculinizado, a camisa
era de mangas compridas com listas azul e branco, gravata azul marinho. De fora,
só as mãos e o rosto”417, enfatizando os rigores impostos às moças da época.
Todavia se preocupa em esclarecer que, mesmo diante das imposições, as regras
eram quebradas ao término diário das aulas: “Cinco horas, pegávamos o bonde,
enrolávamos as meias, dobrávamos as camisas e íamos para a Rua Chile”. A atitude
transgressora das colegiais sinaliza para o incômodo produzido pelas vestimentas
escolares, marcadamente antitropicais e demasiadamente formais, mas sendo a
Rua
Chile
um locus
de
aparições,
elas
buscavam,
mediante
pequenas
interferências, adequar a roupa ao lugar.
Nas memórias de Maíta Nogueira, sua formação domiciliar parece contraporse ao rigor imposto pela formação escolar. A figura paterna desponta como um
herói, a família é apontada como laica, sendo o pai “quase agnóstico”: “Minha mãe,
apesar de ser de uma geração antiga, não tinha santos”. O pai, membro da
maçonaria, sempre viajava para o Rio de Janeiro e São Paulo e, por esse motivo, a
inseria nas modas do momento: “Eu me vestia mais avançadinha talvez que minhas
amigas. Papai não tinha nem noção do que fazia. Maiô, por exemplo, só não trazia
duas peças, tudo na linha Miss Brasil”.
Em seu depoimento, recorda das calças, maiôs e outras “novidades”
compradas pelo pai em viagens e trazidas como presentes. A calça aparece como
414
Entrevista realizada em 8 de dezembro de 2011.
Gilberto Gil fez referência similar na canção “Tradição”, composta para o disco Tropicália 2,
quando recorda da época em que “a turma ia procurar porrada”, referindo-se aos tempos de sua
juventude em Salvador.
416
Entrevista realizada em 8 de dezembro de 2011.
417
Idem.
415
210
um presente inovador, pois “papai tinha cabeça boa”, todavia salienta que só passou
a “usar já com quase vinte anos”, embora o avô a botasse “para fora de sua casa e
dizia para meu pai ler a Bíblia”. Sua fala remete à dicotomia entre tradição e novos
hábitos existente na cidade. Neste caso, o pai e, por consequência, a depoente
assumem um papel de agente modernizador, causando incomodo ao avô, ainda
ligado à tradição cacaueira do século XIX, inserido na modernidade soteropolitana
apenas por conta da dinâmica imobiliária que marca a cidade nos meados do século
XX.
Maita Nogueira, rememorando sua juventude, nos insere em outras inovações
do período, a exemplo da minissaia. Ela aborda a peça partindo se sua inventora
Mary Quant, todavia enfatiza “aqui custou a chegar”, tendo portado uma versão não
tão curta, pois, com o casamento em 1964, o uso ficou inapropriado para uma
mulher casada.
Nas suas reminiscências, a peça inovadora aparece em sintonia com a
dinâmica da Cidade do Salvador, ganhando aos poucos proporções menores: “A
minissaia foi subindo devagar”. Nesse percurso, as colegiais tiveram papel
destacável, pois iam dobrando as saias aos poucos, tornando-as mais curtas. No
final da década de 60, Maita, já professora de Literatura do ICEIA, formada pela
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, presenciou a substituição da saia pela
calça, pois, segundo ela, “as minissaias estavam muito exageradas”.
Em seu baú de recordações, guarda fotos que remetem a essas dinâmicas,
como se pode observar na Figura 57. Na fotografia, aparecem três de suas alunas
em um trabalho de campo acerca da musicalidade de Dorival Caymmi, também
presente neste registro. Nela, as saias são nosso objeto de observação primordial,
pois a fotografia mostra o mecanismo espontâneo de encurtamento produzido pelas
colegiais. Note-se que as três saias têm comprimentos diferentes, fruto do gosto de
cada usuária ou mesmo dos mecanismos que cada uma empregou para torná-las
mais curtas. Na extremidade direita, a moça de cabelo curto porta a mais curta das
saias e também a blusa escolar de algodão mais aberta, denotando maior liberdade
de movimento ou ansiando maior conforto e liberdade.
211
Figura 57 – As minissaias colegiais.
Fonte: Memória pessoal da entrevistada.
Nas memórias de Maita Nogueira, o seu casamento em 1964 e o vestido
usado ocupam lugar de destaque. O enlace, que aconteceu às onze horas da
manhã, foi realizado na pequena igreja de Nossa Senhora do Salete 418. Realçando o
aspecto tradicional que marcava esse tipo de evento na época, conta a depoente
que, em seu enlace, não havia a necessidade de um automóvel para o
deslocamento, pois a igreja situa-se defronte do Edifício Nogueira, onde residia e
reside até hoje. Todavia, “como a tradição mandava que a noiva chegasse de
carro”419, um automóvel foi providenciado para o evento. “Meu primo tinha um carro
importado, ele me pegou, demos uma volta pela Piedade e paramos na igreja” 420.
Segundo ela, o protocolo da época exigia esse comportamento, que ela cumpriu à
risca, inclusive realizando a fotografia típica da época, que era a noiva descendo de
um automóvel na porta da igreja.
Por tradição, também se rendeu à cerimônia católica, pois mesmo não sendo
praticante “queria casar de noiva”421 e, por esse motivo, se casou na igreja, defendese ela. A vestimenta especial consistia em um vestido longo, de cor branca perolada,
418
Templo católico de culto a Maria, mãe de Jesus, localizado na Rua do Salete, no bairro dos Barris
em Salvador.
419
Entrevista realizada em 8 de dezembro de 2011.
420
Idem.
421
Idem.
212
estilo reto, confeccionado em shantung422, “bem cortado e nada de calda”, em estilo
tomara que caia, com um bolero423 de mangas compridas, bordado com ráfia 424.
Esta peça complementar e o corte do vestido foram atributos defendidos pela
professora como elementos que imprimiram sofisticação à peça, cumprindo também
o papel de tornar a peça mais séria e apropriada para o ambiente religioso, já que à
época muitos padres proibiam roupas decotadas ou sem mangas nos espaços
sagrados. A indumentária nupcial contou ainda com uma grinalda com véu curto.
Em suas reminiscências, o vestido de casamento, peça confeccionada para
uma ocasião especial, logo uma ‘roupa de ver Deus’, foi produzido em consonância
com as demandas da época: “Naquela época, tinha baile, logo, eu aproveitava o
vestido para outras ocasiões”425. Percebem-se, no discurso de Maita Nogueira,
aspectos da “praticidade moderna” que muitas mulheres da época foram
incorporando a suas rotinas, que contemplava, entre outras coisas, uma formação
antes do casamento, possibilitando a inserção no mundo do trabalho e roupas para
serem usadas em diversos momentos.
No Brasil e em Salvador do período pesquisado, mas também na atualidade,
muitos vestidos de casamentos constituem peças de um único uso, posteriormente
guardados em caixas e destruídos pela ação do tempo e das traças. A senhora
Nogueira foi na contramão dessa tradição, assim como muitas mulheres da
atualidade. A atitude em aproveitar a vestimenta nupcial em atividades posteriores
singulariza sua maneira de pensar o mundo. Oriunda de uma formação marxista,
defende a ideia de que “minha geração era uma geração engajada, queríamos
escola pública, queríamos fazer pelo povo, um povo com uma formação melhor
culturalmente”426. Neste sentido, a jovem engajada, como ela própria se rotula,
aliava teoria à sua prática cultural cotidiana, perpassando inclusive às vestimentas e
suas utilidades.
Todavia, a outrora jovem da década de 60 deixa claro também que à época
as vestimentas, as ‘roupas de ver Deus’, eram presenças constantes e motivo de
preocupação no cotidiano de diferentes pessoas das mais diversas esferas sociais.
422
Tecido brilhoso similar a seda, sendo ele mais pesado, que lhe conferia maior armação, sendo
apropriado para vestidos mais justos.
423
Espécie de casaco curto que se usa por cima de blusa ou vestido e pode ser confeccionado em
diversos tipos de tecidos.
424
Tipo de fibra ou fio sintético oriundo de palmeira nativa da África ou America do Sul de igual nome.
O fio deste vegetal quando usado em bordado confere certa rusticidade à peça bordada.
425
Entrevista realizada em 8 de dezembro de 2011.
426
Entrevista realizada em 8 de dezembro de 2011.
213
Em suma, como apontado em entrevista, “se tivesse uma festa queríamos um
vestido novo. Tínhamos a diferenciação de roupa do dia a dia e roupa de festa”427.
Era a ‘roupa de ver Deus’ ou uma domingueira, como muitos e muitas chamavam,
na época, as vestimentas especiais.
427
Idem.
214
CONCLUSÃO: REMATE DE PONTOS
Roupa de ver Deus era e até hoje é aquela que consideramos
especial, por ser mais rebuscada, mais fina e feita para
ocasiões especiais.428
Roupa de ver Deus era aquela roupa nova, aquela roupa
arrumada que mandávamos fazer para uma festa, uma
procissão, uma ocasião diferente. Procissão, eu ia arrumada.
Veja este vestido, ele tinha um cinto verde de fivela, tudo foi
comprado com o meu dinheiro.429
Ficávamos aqui pela frente, acabávamos de jantar e dávamos
uma volta. O bairro era ótimo, todo bairro tinha sua turma, de
Nazaré, da Barra, dos Barris. Eu me vestia mais avançadinha
talvez que minhas amigas. Papai não tinha nem noção do que
fazia. Maiô, por exemplo, só não trazia duas peças, tudo na
linha Miss Brasil. Se tivesse uma festa queríamos um vestido
novo. Tínhamos a diferenciação de roupa do dia a dia e roupa
de festa. Naquela época, tinha baile, logo, eu aproveitava o
vestido de noiva para outras ocasiões.430
As citações acima ilustram bem a proposição final deste trabalho, estruturado
em torno da análise das vestimentas rotineiras e especiais na Cidade do Salvador e
seus diálogos com os imaginários, a cultura local e culturas externas. Como se
apurou, uma vestimenta, para além de ser um artefato de tecido que cobre um corpo
nu, é também um elemento cultural que agrega valores e símbolos. Por esse motivo,
ainda era chamada, na Salvador de meados do século XX, de ‘roupa de ver Deus’,
justificando seu caráter exclusivo.
Através das reminiscências das mulheres que entrevistamos, mais do que
situar a expressão popular como algo ainda válido para os dias atuais (conforme
evidenciado em epígrafe), foi possível verificar que a sociedade soteropolitana, ou
parte dela, tinha roupas destinadas a sociabilidades especiais e outras destinadas à
rotina diária. Foram também essas memórias que nos apontaram parte das
mulheres que, na época, ascendiam socialmente, dentro de uma dinâmica social
tanto local como nacional. Neste sentido, as roupas seguiam, de certa forma, o
dinamismo feminino, podendo um vestido de casamento ser pensado antes da sua
confecção para ser aproveitado posteriormente em outras ocasiões, como nos bailes
e outras sociabilidades extraordinárias.
428
Fala de Lucia Regina Castro (nome fictício), em entrevista em julho de 2011.
Fala de Maria Angelina dos Santos, em entrevista em 18 de julho de 2011.
430
Fala de Maita Nogueira, em entrevista em 8 de dezembro de 2011.
429
215
Ao longo da pesquisa foi possível identificar inúmeras modas e modismos
presentes na cidade. Inicialmente podemos destacar os tecidos usados na
confecção de diversos tipos de vestimentas, como: organdi, seda, algodão, linho,
rendas finas, crepe de seda, crepe de algodão, cambraias, cambraias mescladas,
usseline de seda, cetim, shantung.
Quanto ás vestimentas foi possível verificar o uso de: vestidos tubinhos,
vestidos longos, vestidos túnicas, vestidos rodados,vestidos trapézios, saias godês
colegiais, vestidos com alças, vestidos e blusas com mangas de diversos tipos,
conjuntos safáris, conjuntos de saia de blusa ou calça e blusa, chambres,calças
cigarettes, camisetas com alças para homens, cuecas samba-canção, ternos,
camisas estampadas,camisas com colarinho sem entretela,smoking.
Na composição da aparência foram identificados inúmeros acessórios e
outros itens de composição. A exemplo das tiaras, lenços com amarração abaixo do
queixo, colar de pérolas de várias voltas, sandálias baixas, sapatilhas com fivelas e
broches, sapatos scarpins, sapatos masculinos com bicos redondos, sandálias
masculinas de couro, penteados bolo de noiva, penteados rabo de cavalo, óculos
tipo gatinha, óculos extravagantes, biquínis ou duas peças, maiôs, chapéus de praia
femininos, chapéus de baeta e palha para homens, bolsas com alças de dimensões
médias e grandes e tipo carteiras dentre outros.
Analisando as indumentárias, foi constatado um diálogo com o cinema e suas
estrelas e astros, introduzidos no imaginário local por intermédio dos filmes de
sucesso. Suas aparências acabavam por se consolidar como doutrina ou uma marca
da influência daquilo considerado como moda, como belo, como elegante. Não é
demasiado ressaltar que, em nossa cultura, o senso de moda é adquirido por
muitos(as) mediante aquilo que se vê nas revistas e jornais, geralmente usados por
aqueles(as) hoje considerados(as) celebridades.
Neste trajeto de influências ou diálogos com culturas, não podemos deixar de
considerar as representantes da beleza feminina, marcadamente as misses, os
expoentes da música e as personagens da realeza, que despertavam fascínio
similar àquele produzido por astros do cinema no período coberto pela pesquisa. É
importante destacar a majestade real inglesa, a Rainha Elizabeth, que, mediante sua
constante aparição nos jornais e revistas, ainda hoje é rememorada por muitas
mulheres e acaba por evidenciar muito do imaginário local do período em relação à
aparência.
216
Sobre
imaginário,
foi
importante
analisar
o
vestido
de
noiva,
preferencialmente na cor branca ou em tons suaves, como o azul celeste ou o rosa,
indicando uma aproximação com o imaginário mariano. O vestido do enlace era uma
representação da Virgem Maria, mãe de Jesus, a que concebeu sem pecado. Não
parece exagero destacar o culto a Maria nas práticas culturais locais desde o tempo
da Colônia, seja na adoração a sua imagem, seja nas ladainhas, seja na procissão
pelas ruas da cidade.
A pesquisa possibilitou observar o sentido dado às roupas exclusivas e as
ambições nelas incutidas. Um exemplo notável verificado foi o desejo de liberdade
ou mesmo certa fuga da imposição familiar e da sociedade, bem como, já
salientado, a importância dispensada à aparência, seja em momentos especiais ou
mesmo em um dia chuvoso. Por meio delas, foi também possível enxergar em
Salvador a cultura do trajo ligada ao passado, sendo vencida por outras
indumentárias sintonizadas com as mudanças do período – uma época em que o
texto jornalístico local frequentemente categorizava como de bossas, denotando
sempre o novo ou o moderno.
Foi possível perceber o sentido dado a certas vestimentas e a aparência em
sentido mais amplo, remetendo aos séculos das Casas Grandes e Senzalas, dos
Sobrados e dos Mucambos, aludindo a Freyre. Os apontamentos do sociólogo de
Apipucos a respeito das aparências registram um esmero no público e um desleixo
no privado. Sendo a época colonial marcada por sociabilidades esporádicas,
principalmente religiosas, tendo a missa de domingo como expoente, o termo parece
ter sua gênese nesse período. Não por acaso, a expressão ‘roupa de ver Deus’, tem,
como sinônimo popular, “roupa domingueira”.
O vestir em Salvador no período 1958-1968 indica uma sintonia com a própria
cidade, seja nos tecidos de algodão mais propícios ao clima quente ou mesmo a
oferta local deles, seja pelas transformações socioculturais por que a cidade
passava, incorporando novos hábitos e costumes. É pertinente destacar a
arquitetura moderna invadindo a cidade de feições barrocas e a atmosfera cultural e
artística que se vivia naqueles dias na velha cidade, apontando para “coisas novas”
que viriam a se consolidar tempos depois. Nessas sociabilidades e nesses espaços
ditos modernos, a escolha da indumentária era uma preocupação para muitos(as)
É importante também lembrar, como exemplo, que ainda hoje a roupa dos
soteropolitanos para frequentar a sala principal do Teatro Castro Alves é
217
criteriosamente selecionada. Esta casa de cultura, um expoente notável da
arquitetura modernista, era o espaço onde aconteciam os espetáculos mais
importantes, por este motivo, envolvia um cuidado especial com as indumentárias.
Intentou-se na pesquisa não desprezar as influências do vestir dialogando
com outras esferas do cotidiano. Assim, o próprio contexto interno da política de JK
e seu look “fina estampa” também acabaram por influenciar as aparências dos
cidadãos comuns aliado ao seu otimismo e seu discurso de desenvolvimento rápido.
Essas influências se materializavam em trajos, muitos deles eleitos por seus
usuários como ‘roupa de ver Deus’, destinado a sociabilidades especiais como a
chegada de político importante, lembrado por Hildegardes Vianna.
É importante observar às influências pertinentes às aparências em sentido
amplo, ainda marcadamente oriunda de culturas externas. Dessa forma os
penteados, os vestidos, a maneira de desenhar as sobrancelhas, os cabelos longos
que muitos rapazes da época usaram, os acessórios masculinos e femininos que, de
fato, eram usados na Europa ou Estados Unidos e introduzidos na nossa cultura de
diversas maneiras. Parece-nos que, por este motivo, o sociólogo Gilberto Freyre e o
arquiteto Flávio de Carvalho, nos anos 50 e 60, já chamavam a atenção dos
brasileiros para um vestir em sintonia com as nossas identidades. O próprio
movimento tropicalista idealizado por baianos também criticava, através de suas
vestimentas bizarras, a formalidade do trajo.
No intento de análise das vestimentas e do cotidiano extraordinário, esta
pesquisa inseriu-se na vida privada da sociedade soteropolitana, revelando festas de
aniversários, de casamento, de chá de cozinha, de formatura, os “assustados” ou
“hi-fi”, as festas na boate do Hotel da Bahia e outras sociabilidades nas quais as
aparências despontavam em primeiro plano. Todavia, não foram esquecidas, na
análise, a rotina da cidade e as roupas usadas pelos mercadores, pelos colegiais e
andarilhos da urbe, pois, como se sabe, o cotidiano citadino é praticado pelos
trabalhadores e por aqueles das elites e por muitos(as) outros(as), seus percursos,
enfim, suas práticas culturais.
Em suma, este estudo tentou perceber as vestimentas de uma época em
sintonia com as diversas dinâmicas e os imaginários da sociedade que as vestiu,
inclusive categorizando algumas como “roupas de baia”, face ao seu caráter rotineiro
e cotidiano, e outras como ‘roupa de ver Deus’, seja pelo corte, cor, tecido ou
simplesmente por ser nova.
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Na intenção de “costurar” as roupas e a História, finalizando nossa “colcha de
retalhos”, enveredamos pelas memórias de algumas personagens, deparando com
as afetividades dessas “moças” de outrora e as roupas usadas em seus tempos
juvenis. Todavia, como pode ser percebido, não tínhamos como finalidade resgatar
suas histórias de vidas, mas identificar reminiscências dos tempos de infância, do
período colegial, das músicas ouvidas entre amigos, das estrelas de cinema, e
perceber como esses momentos se amalgamavam com os vestidos usados, com a
primeira calça comprida e com as estratégias para encurtar as saias colegiais.
Assim, nosso objetivo foi criar um mosaico temporal no qual as roupas se aliaram às
memórias para fazer o arremate, aspecto singular no ofício da costura e no ofício do
historiador.
A inserção das memórias no trabalho ocupou um lugar ímpar. Por meio delas,
os caracteres subjetivos próprios do imaginário ganharam contornos palpáveis, não
apenas por motivação da fonte, que, diante de nós contavam e reconstruíam “suas
verdades”, mas, sobretudo, por encontrarmos, em suas gavetas “cheirando a
naftalina”, algumas vestes que evidenciavam esse passado. Nelas, entremeando o
pó, o cheiro e o cuidado, foi possível enxergar afetividades ou mesmo
ressentimentos, configurando aquilo que Stallybrass categoriza como “memória da
roupa”.
Ali estavam as ‘roupas de ver Deus’, não mais como uma expressão oriunda
do imaginário de uma sociedade, porém materializadas, palpáveis, guardadas
cuidadosamente para serem espreitadas, remexidas e rememoradas como
vestimentas especiais. Peças impregnadas de histórias, sentimentos, trajetórias,
musicalidades e cuidados, possíveis de serem observados através da oralidade,
mas, principalmente, pelo gestual das mãos enrugadas, desfazendo aos poucos
cada dobra do velho vestido estampado em flores.
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