jac
leirner
conversa com
adele
nelson
tradução Vera Pereira
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Introdução
Os bônus do viajante frequente, Robert Storr
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Jac Leirner conversa com Adele Nelson
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Sobre os autores
Agradecimentos
Créditos das imagens
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introdução
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A história da arte moderna pode ser entendida como uma narrativa de tensa e complexa relação com o real, ou seja, com as
coisas que nos cercam no cotidiano. O pêndulo da história e do
gosto estético oscila entre o fascínio pelo específico e a atração
irresistível pela abstração e pela transcendência. Jac Leirner
ocupa um lugar central nesse pêndulo, por sua obsessão de
colecionar e categorizar as sobras da vida contemporânea e
depois organizá-las e dar-lhes novo significado, transformando
as coisas em comentário, os objetos em conteúdo, a matéria
em ideia. Por mais que se queira evitar a ênfase exagerada sobre aspectos biográficos ou anedóticos – por exemplo, o fato
de Jac Leirner ter sido educada numa família de artistas muito
criativos, e crescer cercada por uma grande coleção de obras
de arte abstrata –, a verdade é que todos nós somos condicionados pelo contexto em que vivemos, e Jac Leirner conseguiu
direcionar sua sensibilidade anárquica e punk para a criação de
uma relação muito particular e sutil com o real e com o ato de
colecionar e organizar.
Se hoje em dia nos parece corriqueira a ideia de uma artista latino-americana contemporânea, cosmopolita, global e
sofisticada, não se deve esquecer que, em fins da década de
1980, quando Jac Leirner alcançou visibilidade internacional,
isso ainda era incomum. Seus primeiros projetos e exposições lá fora realizaram-se no cenário usual de fascinação pelo
exotismo e pela imagem de uma América Latina marcada
pelos velhos estereótipos do “selvagem exótico”, ou de seus
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equivalentes pós-coloniais mais contemporâneos, que negavam a possibilidade de que uma artista brasileira pudesse
viver no mesmo universo do capitalismo tardio em que se
desenvolve o mundo da arte internacional. O uso de objetos
como cinzeiros de avião, sacolas de museus ou cartões de
visita apareceu como uma afronta, o lembrete atrevido de
que a artista viajava nos mesmos aviões, hospedava-se nos
mesmos hotéis e comia nos mesmos restaurantes frequentados por críticos e curadores que ganhavam a vida promovendo a diferença e a alteridade. Foi uma atitude corajosa e
vital, que abriu caminho para que muitos artistas depois dela
pudessem desenvolver sua carreira sem ter de se submeter
a expectativas alheias sobre o que a América Latina é ou não
é. Desse modo, Jac Leirner foi uma figura-chave no estabelecimento de um elo entre duas gerações de artistas: a vanguarda heroica de Hélio Oiticica, Lygia Clark e outros, e o modelo atual do artista globalizado, que viaja de um programa
de residência para uma bienal internacional sem nem olhar
de relance para a sua identidade cultural.
Não é verdade que a obra de Jac Leirner não seja política
ou não esteja carregada de observações críticas. Seus trabalhos com dinheiro estão entre as mais efetivas e mordazes
críticas à economia mundial, ao seu fetichismo e desprezo
por valores estáveis. Do mesmo modo, Foi um prazer apresenta um retrato da rede do mundo da arte que, nos anos
subsequentes, expandiu-se e tomou uma dimensão e um po12
der assombrosos. Apesar de fortemente ligadas às questões
de sua época, com o passar dos anos essas obras assumiram
maior importância e revelaram-se premonitórias, algo que
dificilmente se poderia dizer sobre obras que são contingentes a uma única série de fatores externos, como essas
inegavelmente são.
A conversa entre a historiadora da arte Adele Nelson e Jac
Leirner aborda a carreira dessa artista pioneira, e um aspecto
que reaparece várias vezes no diálogo é a sensibilidade de Jac
Leirner às coisas que se tornam invisíveis ou redundantes por
sua ubiquidade. Como a própria artista revela em certo momento a Adele Nelson, o que ela faz é “criar um lugar para as
coisas que não o têm”. Essa declaração resume todos os elementos da obra de Jac Leirner: um olhar para o esquecido ou
subestimado, o sentimento do mundo como um palco para
objetos, e uma sensibilidade política (com p minúsculo) que
favorece o lado desprezado.
In Conversation with / en Conversación con é um projeto que
tem por objetivo registrar, em profundidade, diálogos críticos
com destacados artistas e historiadores. Esta série faz parte da
missão da Fundación Patricia Phelps de Cisneros de conscientizar um público internacional mais amplo sobre a qualidade e a
importância da arte e das ideias latino-americanas.
Jac Leirner e Ferreira Gullar são os dois primeiros artistas
que celebram o início de Conversas, agora no Brasil, em parceria com a Cosac Naify.
13
Gostaria de agradecer a Jac Leirner e a Adele Nelson por seu
comprometimento com este projeto, bem como a Donna Wingate e Ileen Kohn Sosa por sua cuidadosa e dedicada supervisão.
gabriel pérez-barreiro
Diretor da Colección Patricia Phelps de Cisneros
14
os bônus do viajante frequente
Robert Storr
15
Alguns chamam de amor à primeira vista. Outros de aprendizagem na prática. Também podemos falar de contrabando, mas
acredito que ninguém, ainda que movido por um afã acusatório, fará uso dessa confissão, agora que o suposto delito já deve
estar prescrito.
Quase vinte anos atrás, graças à intervenção de um amigo
e mecenas das artes, Jorge Helft, e ao apoio da atualmente extinta Fundação Antorchas, que ajudava curadores e críticos a
realizarem pesquisas na América Latina, fiz minha primeira viagem ao Brasil. Como tantos norte-americanos daquela época,
meus conhecimentos sobre a história e a diversidade das
tradições da arte contemporânea ao sul de nossas fronteiras
eram parcos. E, assim como a maioria dos meus compatriotas,
minha compreensão do que se passava do outro lado da Linha
do Equador era ofuscada por nossa atenção exclusiva ao que
acontecia nos lugares mais próximos de nossas fronteiras: México, América Central e Caribe. Embora a Venezuela, situada um
pouco acima da Linha do Equador, fosse um país riquíssimo em
arte de vanguarda, na geografia mental da maioria dos norteños
o país se localizava abaixo da linha equatorial. Por um breve
período, no começo da década de 1970, eu havia trabalhado
como assistente no ateliê do muralista David Alfaro Siqueiros,
de modo que tinha muito mais familiaridade com a arte figurativa do período entre as duas guerras mundiais que a maioria
das pessoas da minha geração nos Estados Unidos. Contudo,
fora dos enclaves mexicano e chicano, esse tipo de preocupa17
ção era em geral anacrônico no mundo da arte daquele tempo,
embora já se percebesse então um novo interesse retórico na
arte política; vista por esse ângulo, minha reação correspondia
ao espírito da época. Afora uma atração especial por Joaquín
Torres-García – que descobri graças às suas conexões com o
movimento De Stijl na Holanda, onde eu também tinha vivido –,
minha compreensão da arte abstrata sul-americana era na melhor das hipóteses bastante limitada, e minha ignorância da arte
conceitual no continente era quase total.
Não são essas as confissões que me levam a temer algum
tipo de punição, mas eu as faço com genuíno constrangimento.
E com uma intenção. Porque, ao usar o exemplo das minhas
próprias limitações, busco chamar a atenção para o fato de
que muita gente progressista, cosmopolita e que hoje se considera bem informada em matéria de arte, até pouco tempo
atrás ignorava completamente a abundância da produção artística de cerca de metade do hemisfério ocidental. Esse tipo
de miopia não é novidade para os que vivem na metade esquecida do mundo – se bem que o conhecimento da própria
América Latina sobre si mesma também tivesse demorado
muito a desenvolver-se até a criação da Bienal de São Paulo, em
1951 –, mas é com muita frequência esquecida pelos que vivem
fora da região e que, subitamente, começaram a se interessar
e a se informar (ainda que de modo limitado e tardio) sobre a
arte quase secular dessa vasta e esteticamente fértil porção do
universo. E o que espanta é a rapidez com que tantas pessoas
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que antes ignoravam a realidade criativa de outros povos subitamente se transformaram em “experts” no assunto. Outro
fato que me surpreende é a rapidez com que, ao descobrir detalhes antes desconhecidos de uma cultura estrangeira, esses
especialistas conseguem sufocá-los em generalizações críticas
homogeneizadoras.
Em meus primeiros encontros com o mundo da arte latino-americana tive a sorte de contar com a orientação de pessoas
que realmente o conheciam a fundo. Durante as viagens que
fizemos juntos, Helft me apresentou a importantes críticos e
curadores, nenhum deles tão enfronhado nesse mundo artístico, nem mais generoso, que Paulo Herkenhoff. Helft também
me pôs em contato com artistas e colecionadores; e, em certa
ocasião, com ambos simultaneamente. Uma viagem a São Paulo
para visitar a inigualável coleção de Adolpho Leirner de arte
geométrica, concreta e neoconcreta, dos anos 1940 a 1960,
propiciou-me a oportunidade de conhecer sua filha, Jacqueline.
Foi esse encontro que me levou ao ateliê da artista e serviu para
que eu elaborasse o núcleo deste breve texto, que espero tenha
alguma utilidade informativa e polêmica.
Filhos de grandes colecionadores raramente se tornam artistas. Talvez porque compreendam desde muito cedo como
a realidade do mundo da arte pode ser cruel, o que acaba por
desestimulá-los. Talvez porque, como acontece com os filhos
de artistas consagrados, e não tão consagrados assim, tenham
adquirido uma profunda compreensão das dificuldades que se
19
apresentam até aos mais talentosos, além de uma experiência
pessoal da dura competição representada pelas obras extraordinárias que contemplam diariamente desde a infância. O que é
um prazer para o orgulhoso colecionador pode ser intimidante,
esmagador, para a sensibilidade de um artista em formação. O
privilégio de nascer em determinada família não é de nossa
escolha, mas cobra um preço, por mais esclarecida que seja a
fonte desse privilégio e mais enriquecedores seus benefícios.
O fato de Jac Leirner ter conseguido desenvolver-se em meio
a tão ampla e diversa coleção das maiores obras da geração
imediatamente anterior à sua é menos uma exceção à regra
que um testemunho de sua capacidade de absorver e de essencialmente transformar esse passado herdado com uma independência anárquica que, para o bem de sua obra e da arte de
sua geração, aceita com naturalidade certas coisas para poder
livremente imaginar-lhes outras possibilidades. Um dos seus engenhosos détournements dos costumes familiares foi a decisão
de basear seu trabalho na coleção de objetos descartáveis de
uma cultura consumista e perdulária. Sem querer sugerir que
Guy Debord tenha tido influência direta na obra da artista (embora Greil Marcus tenha insinuado haver uma ligação entre Debord e o punk, o movimento musical insurrecional da juventude
de Jac),1 apropriei-me do termo por ele utilizado para definir a
1 Greil Marcus, Lipstick Traces: A Secret History of the Twentieth Century. Cambridge, ma: Harvard University Press, 1989.
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alteração criativa ou destrutiva da finalidade original das coisas
ou objetos; e acrescento a essa definição o conceito de “deriva”
ou “deslocamento psicopoético” para caracterizar as viagens
nômades durante as quais Jac obtém os objetos cujas funções
ela redefine, agindo como uma autodenominada situacionista.2
Encontramos uma alquimia edípica parecida com a maneira
com a qual Hélio Oiticica deu a volta na rigidez estética do concretismo. Filho de um renomado fotógrafo e designer, Oiticica
foi um gênio do estilo vanguardista, o qual virou pelo avesso ao
construir as capas de tecido de seus Parangolés neoconcretistas como se fossem as placas suavizadas de suas primeiras esculturas em madeira. A mágica obtida por Jac é de outra ordem,
uma espécie de inocente furto neodadaísta. Para ela, o mundo
de bens de consumo, pacotes e comodidades cotidianas constitui um inventário sempre disponível para formas e texturas
recombinantes, ready-mades à espera de serem manipulados
e reposicionados. Seu vínculo com a herança do concretismo
pode ser percebido na acertada receptividade à sintaxe cromática e geométrica dos objetos furtados ou encontrados ao
acaso. Dá para imaginar seu olho como o sensor automático de
um satélite espião ou de um robô de filme de ficção científica a
rastrear em volta até deparar com uma anomalia interessante;
nesse instante, as engrenagens começam a operar: os calibradores são acionados, o sensor localiza seu alvo e se retrai, inicia2 Segundo os princípios debordianos. [n. t.]
21
-se a medição do objeto que é então arquivado em um dispositivo de rastreio programado, o qual o identifica e logo se põe a
especular sobre as possibilidades de transformá-lo em outra
coisa, em outra forma, ou ajustá-lo, como peça de um quebra-cabeça, no qual outros fragmentos parecidos também poderiam ser encaixados.
Mas não faz justiça ao trabalho livre e imprevisível com
que Jac Leirner vasculha seu entorno, nem aos métodos rigorosos e obsessivos de composição da artista, sugerir que
sua obra seja fruto de uma inteligência artificial reproduzível
ou de qualquer sistema esquemático e repetitivo. Ao contrário, o impulso inicial de suas peças parece originar-se de
uma irônica obsessão por algo banal e insignificante do dia a
dia que, de repente, parece-lhe estranho, e o passo seguinte
consiste em exagerar a banalidade ou seu uso corriqueiro até
que o absurdo ou a beleza inerentes ao objeto se tornem evidentes, ou que seu significado intrínseco se torne aparente.
Numa sociedade em que artigos de qualidade muitas vezes
indiferente são fabricados mecanicamente em quantidades ilimitadas, as oportunidades para essas apropriações e
adaptações a novos usos são igualmente infinitas. Contudo,
Jac escolhe seus alvos com muito cuidado. A inflacionada
moeda brasileira, por exemplo, converteu-se no módulo para
acumulações que vagueiam, sem destino ou valor, por espaços modernistas vazios, subindo e descendo escadas, numa
ironia à trajetória sísmica dos prognósticos da economia
22
[ils. 15, 26, 33]. E os cartões de visita de artistas profissionais
acabaram sendo expostos publicamente em frisos delgados,
que podiam ser alcançados por qualquer pessoa que quisesse
copiá-los para suas agendas de endereços, ou que desejasse
entrar em contato com algum poderoso inalcançável do
mundo da arte [ils. 38-39]. Seria esse esbanjamento de nomes
um gesto, meio irônico, meio vaidoso, de uma jovem artista
que irrompeu nesse circuito mágico por esforço próprio?
Ou seria antes uma sutil vingança contra o mundo da arte
por parte de alguém que conhece seus jogos de esconde-esconde desde a infância? Talvez seja o primeiro caso, talvez o
segundo. Provavelmente os dois.
De maneira ainda mais radical e literal, Jac criou carpetes
em patchwork e tapetes de parede feitos com sacolas de
plástico recheadas, contendo os nomes e os logotipos de
butiques de luxo, principalmente sacolas de museus; além
disso, fez colagens em relevo, quase construtivistas, usando
etiquetas de objetos museológicos reciclados, ou esculturas
quase minimalistas, baixas e flexíveis no estilo de Carl Andre,
compostas de correspondência eletrônica enviada ou recebida de centros e fundações de arte [ils. 22, 31-32]. Com uma
“simples” agregação, Jac representa as funções de input/output da indústria cultural, valendo-se de um foco penetrante e
de um tom crítico que nos faz lembrar o olhar explicitamente
oblíquo das fotografias de obras de arte em museus feitas por
Louise Lawler. Tal como Lawler, Jac nos obriga a olhar além
23
das “preciosidades” que os museus e as galerias de arte celebram como seus objetos de interesse maior, no intuito de
melhor avaliar as miríades de produtos e subprodutos que
realmente preocupam os que trabalham ou compram nesses
lugares. Assim como as fotografias de Lawler, as ilustrações
práticas de Jac são um bem-vindo descanso para a sisudez e o
peso de boa parte da crítica escrita, não só porque amenizam
sua verborragia, como o fazem para aumentar a concentração
no objeto de exame cético. No ato de compilar, acumular e representar essas coisas, de maneira bela mas ironicamente provocativa, Jac transforma seu valor normal, ou sua falta de valor,
em retratos coletivos institucionais e em registros indicativos
das transações em que tais instituições se especializam. Nesse
processo, a artista estabelece um vínculo entre ela mesma e
o espectador como portadores dos papéis similares do consumidor, que estuda a mercadoria, e do caçador de curiosidades, que vislumbra furtivamente as cenas de um território
habitualmente esquivo e impreciso. Junto com a artista, nos
tornamos espiões na casa da arte.
Intencionalmente ou não, essas instituições põem seus recursos à disposição da proposta de Jac, atenuando a agudeza
de suas sondagens, mas sem torná-las menos afiadas. Outras
séries da artista incluem a exploração não autorizada de materiais, como peças feitas com objetos tirados de aviões, alguns
gratuitos e descartáveis, outros destinados ao uso temporário
da própria aeronave: fones de ouvido, talheres, guardanapos,
24
etiquetas de bagagem e cinzeiros – furtados das poltronas, fato
geralmente ignorado pelos tripulantes a partir da época em
que passou a ser proibido fumar durante os voos [ils. 22, 34-37].
Além de uma dose de suspense oportunista, há um elemento
sub-reptício de astúcia – ou, quem sabe, certo espírito vingativo – nos furtos de Jac; afinal, ela era uma fumante inveterada,
e a obra chama a atenção para a presença redundante de cinzeiros nos atuais aviões, embora também possa ser uma alusão a
um antigo privilégio individual atualmente revogado em nome
da saúde pública.
Não é que os efeitos cumulativos dos cigarros tivessem
passado despercebidos à artista, antes mesmo que as normas
contra o tabagismo se tornassem tão rígidas e as mensagens
dos anúncios oficiais tão cruas e explícitas. O próprio fato de
Jac ter usado o órgão mais afetado pelo ato de fumar, o pulmão,
como título para um conjunto de trabalhos deixa isso bem
claro [ils. 8-9, 11, 23]. Dizem que em Chicago – o “embutido
do mundo”, segundo a inesquecível frase de Carl Sandburg –
“todo e qualquer pedaço dos animais que entram nos currais é
aproveitado, inclusive seu berro”. De modo semelhante, cada
elemento de um maço de cigarros que cai nas mãos de Jac é
consumido, de uma forma ou de outra, transformando o tabaco em prazer e as cinzas em premissa habitual para outras
metamorfoses, que, às vezes, parecem mágicas. Diga-se de
passagem que Jac é estritamente fiel à sua marca preferida. De
um lado, o chamativo visual vermelho do maço de Marlboro
25
oferece-lhe atrativas possibilidades para satirizar o design modernista; de outro lado, a escolha da marca de cigarro também
se presta a reflexões argutas sobre a recolonização do planeta
realizada pelos impérios comerciais do Norte. De novo, a crítica cultural aparece como um fator implícito na proposta de
Jac, embora nunca seja demasiado agressiva.
Após minuciosa dissecação de um maço de cigarros vazio –
o cadáver que a intoxicação deixa para trás –, cada invólucro
de celofane, cada folha de papel laminado que forra a embalagem, inclusive a fita que abre o invólucro, cada selo fiscal e
cada embalagem, tudo é reciclado e reconvertido em arte.
Um total de 1200 maços de cigarro foram transubstanciados
dessa maneira, calibrando efetivamente o esforço criativo da
artista pela inalação e expulsão de oxigênio misturado com gases nocivos, uma medida viva do preço existencial dessa estética, imagem tão evocadora quanto qualquer gesto expressionista. O ato mais dramático e mais irônico, no caso de Jac, foi
esmagar 1200 caixas de Marlboro e amarrá-las com duas extensões de tubos cirúrgicos de poliuretano [ils. 8]. Pendurado
na parede, esse “colar” de faces brancas e vermelhas assume
a elegância e o equilíbrio de um relevo concretista, ou de uma
obra em arco de Ellsworth Kelly. De um ponto de vista semiótico, a obra está carregada de signos sociais e culturais, e tão
cheia de alusões à mortalidade quanto qualquer peça de Felix
Gonzalez-Torres.
Mas tudo isso é absorvido lentamente, como acontece com
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a melhor arte baseada no conceito, mas acessível à percepção sensorial. Quando vi Pulmão pela primeira vez no ateliê
de Jac, em São Paulo, entendi a obra de imediato, mesmo sem
entendê-la completamente – quer dizer, reagi com emoção
ao seu significado intuído mas ainda não elaborado, senti suas
múltiplas ressonâncias e desejei tê-la com todas as minhas
forças. Recém-admitido como curador do Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma) e pouco familiarizado com os procedimentos usuais nessas situações, perguntei a Jac, de pronto,
se eu poderia adquirir a obra para o museu. Ela me respondeu
com igual entusiasmo que sim, e sugeriu que a colocasse em
minha bagagem e levasse comigo para Nova York, no dia seguinte. Foi exatamente o que fiz, sem nenhuma documentação,
mas com um prazer perverso de saber que, se me perguntassem na alfândega se eu levava cigarros nas minhas malas, poderia declarar sem culpa alguma que não; e, se não acreditassem em mim e revistassem minha bagagem, eu poderia provar
minha palavra e, ao mesmo tempo, tornar-me integralmente
cúmplice dos pecadinhos da artista para realizar outras obras,
um cúmplice a posteriori.
Quando apresentei a obra ao comitê de aquisições do museu,
produziu-se o mesmo extraordinário amor à primeira vista que eu
havia experimentado, de modo que Pulmão foi uma das primeiras
obras de uma nova geração de arte latino-americana no Moma,
onde o colecionismo havia se concentrado até então na pintura
figurativa heroica de Cândido Portinari, Diego Rivera, David Alfaro
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Siqueiros e José Clemente Orozco.3 Considerando que a coleção
de arte latino-americana do Moma aumentou muito desde o início da década de 1990, com o acréscimo de importantes trabalhos de Hélio Oiticica, Gego, Mira Schendel, Lygia Clark, Waltercio
Caldas, Cildo Meireles, Liliana Porter, Eugenio Dittborn, Doris Salcedo e muitos outros – graças em boa medida ao incomparável
discernimento estético, à convicção e à generosidade dos senhores Patricia e Gustavo Cisneros –, que fez do Moma, mais uma vez,
um dos centros mais importantes da arte latino-americana nas
Américas, pode-se dizer que Jac inaugurou um novo capítulo na
história do Moma e ao mesmo tempo se converteu em uma das
figuras transformadoras de um mundo artístico que, esperamos,
se tornará no futuro um mundo sem barreiras culturais. Ela mostrou, sem dúvida, que há muitas maneiras de deslizar entre as barreiras ainda existentes e de descobrir um caminho que penetre no
imaginário dos povos que habitam os dois lados dessa linha divisória. Sua arte é seu passaporte.
3 Em 1942, Nelson Rockfeller criou anonimamente o Inter-American Fund, com
a finalidade de adquirir obras de arte provenientes da América Latina para a coleção do Moma. A obra de Jac Leirner foi adquirida com recursos do David Rockfeller Latin American Fund, criado no fim dos anos 1960 com o objetivo de continuar o trabalho do Inter-American Fund. A respeito da história da coleção de arte
latino-americana no museu, consultar Miriam Basilio, “Reflecting on a History of
Collecting and Exhibiting Work by Artists from Latin America”, in M. Basilio et. al.
(org.), Latin American and Caribbean Art: Moma at El Museo. Nova York: El Museo
del Barrio / The Museum of Modern Art, 2004, pp. 52-68.
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jac
leirner
conversa com
adele
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colecionar quantidades, descobrir a
transgressão
Jac Leirner nasceu em 1961, em São Paulo, numa família de fortes
ligações com o mundo da arte. Seus pais, Adolpho e Fúlvia Leirner,
bem como o tio-avô Isai Leirner, são colecionadores; sua tia-avó,
Felicia Leirner, as tias Giselda Leirner e Jeanette Musatti, o tio Nelson Leirner e a irmã Betty Leirner são artistas; a prima Sheila
Leirner é crítica de arte; e o tio Bruno Musatti é marchand.
adele nelson Sua família e a coleção de arte de seus
pais tiveram impacto em seu interesse e formação nas artes
visuais?
jac leirner Com certeza. Crescer cercada de arte é
algo muito especial; é uma experiência que você vive antes
mesmo de entender. Minha irmã, meu irmão e eu costumávamos ir com nossos pais a lugares distantes para procurar
artigos muito refinados, que iam de cartões-postais a tapetes. Eles amavam o estilo e a beleza dos mais diversos materiais e formas – art déco, art nouveau, e logo as pinturas, as
esculturas e o design do construtivismo brasileiro. Nossa
casa era cheia de belos objetos – livros, tapetes, móveis.
Cada objeto fazia parte de uma coleção específica. Todos
eram compras de ocasião, feitas nos fins de semana. Meus
pais sabiam que estavam adquirindo objetos preciosos e de
valor inestimável por um preço irrisório. Para eles, colecio31
nar era como um jogo que os apaixonava. Mas eu não faço
isso. Sinto de outra maneira. Não compro. Busco apenas
uma linguagem. Música, poesia, minha pequena coleção de
obras de amigos e companheiros, cartas – quase nunca adquiro coisas de que não necessito. Não sou materialista, mas
já recebi presentes maravilhosos.
an Você acha que existe alguma diferença entre comprar objetos de arte e reunir e acumular coisas da vida cotidiana, como maços de cigarros ou cartões de visita?
jl São tipos diferentes de coleções. Eu me interesso
pelas quantidades das coisas, sejam elas maços de cigarros,
cartões de visita ou mesmo nós, e as organizo. Às vezes me
parece que tudo tem a ver com números. As obras de arte
partem de números específicos e são determinadas por eles
até que o trabalho esteja completo. Mas o que me agrada especialmente é colecionar coisas pequenas, como etiquetas
de preço e pequenos pedaços de cordas, coisas sem importância alguma. Fiz minha primeira compra quando tinha
sete anos de idade; estávamos na Argentina, e eu comprei
uma caixa de fósforos do tipo que se pode acender na sola
do sapato, como vemos nos filmes. Eram apenas fósforos.
an Conversamos algum tempo atrás sobre a importância da música para você, especialmente da música clássica, e
como em determinado momento você decidiu que preferia
ouvir música a tocá-la. Quando você começou a ouvir música
e de que tipo?
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jl A música sempre me proporcionou experiências
estéticas muito fortes. Para minha sorte, meus pais também
amavam música. Cresci cercada de música o tempo todo, do
clássico ao popular, em casa e em salas de concerto, composições de mestres como Beethoven, Bach e Schubert, e também Brahms, Satie e Ravel. Depois descobri Mahler, Wagner,
Richard Strauss, Villa-Lobos e Luciano Berio. Sou louca por
música, adoro ouvir. Quando tive de escolher uma profissão,
resolvi que o que eu mais queria era poder ouvir música e
trabalhar ao mesmo tempo. Precisava de liberdade para ouvir música, e por isso me tornei artista. Música é pura magia,
e é nela que se encontram minhas melhores lembranças.
an Você estava no Ensino Médio quando teve de escolher que rumo seus estudos iam tomar, não?
jl Sim, eu tinha entre dezesseis e dezessete anos, e
costumava fazer retratos dos meus colegas de colégio, ir
para casa, ouvir Mahler, ler meu livro sobre Paul Klee e voltar a desenhar.1 Levava um tempo enorme para terminar um
desenho. Eram muito detalhados, e eu adorava a sensação
de me dedicar a fazê-los. Não conseguia resistir.
an Você estudou na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), uma faculdade particular de São Paulo, de 1979
1 Marcel Marant, Klee. Paris: F. Hazan, 1974. Jac Leirner logo comprou
outros livros de Klee, entre eles: Pedagogical Sketchbook. Nova York: F. A. Praeger, 1953; e Théorie de l’art moderne. Genebra: Gonthier, 1964.
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a 1984, e tirou o diploma de licenciatura plena, equivalente
a uma graduação em belas-artes (bfa), nos Estados Unidos.
Foi um período fértil no Brasil – a democracia estava de volta,
após duas décadas de ditadura militar, os professores eram
artistas, educadores e pensadores proeminentes, e você e
seus colegas de turma vieram a ser artistas importantes e respeitados de sua geração. Entendo que entre os professores
de sua época na Faap estavam Nelson Leirner, Julio Plaza e
Regina Silveira.
jl E também Tomoshige Kusuno, Walter Zanini,
Evandro Carlos Jardim, Donato Chiarella e Ubirajara Ribeiro. Cada professor ou artista impunha seu estilo próprio, mas a ênfase principal era na técnica. E a faculdade era
muito bem equipada. Eu era aluna tempo integral, estudava
à noite e trabalhava como assistente de dois ou três professores pela manhã, o que me levou a receber uma bolsa de
estudos. A teoria da cor me deslumbrou, a cor era o paraíso
para mim. Achava fascinante a teoria científica da cor conforme descrita nos textos de Goethe, Johannes Itten e Josef
Albers. Eu fazia aquarelas e guaches, e misturava as cores até
encontrar o valor tonal exato, a cor ideal. Adaptei-me rapidamente e adorava a escola.
Nos anos 1970 e início dos 1980, Nelson Leirner, Plaza, Silveira e
Walter Zanini empreenderam uma reforma no currículo da Faap,
acentuando o rigor tanto da formação técnica quanto da formação
34
teórica.2 As disciplinas de formação básica do primeiro ano, que Jac
Leiner fez com Chiarella e Plaza, inspiravam-se no curso preliminar
da Bauhaus. O fundamento da pedagogia da Bauhaus propunha
que a base da expressão visual provém do estudo experiencial e abstrato da cor, da forma, da textura e dos materiais.3 A ênfase na experimentação e no conhecimento profundo dos materiais escolhidos
moldou a abordagem técnica e conceptual do trabalho de Jac Leiner.
an Em seus primeiros estudos na Faap, você se concentrou em criar aquarelas abstratas, brilhantes, em formato pequeno e médio, inspiradas na aplicação da teoria da cor.
jl Água, pigmento, precisão e paciência são requisitos
para explorar os aspectos técnicos da aquarela. Eu gostava de
aplicar uma camada de pigmento por cima de outra até obter a
cor exata. Embora pareça simples, a aquarela consome muito
tempo. Neste desenho [1], você pode verificar também minha
propensão para as quantidades. Um amarelo, outro amarelo,
2 Sobre a pedagogia da Faap nesse período, ver: Tadeu Chiarelli, “Problematizando a natureza da pintura”, in Leda Catunda. São Paulo: Cosac Naify, 1998,
pp. 9-10; Daniela Name & Fernanda Lopes, “Entrevista com Nelson Leirner”, in Onde
está você, Geração 80? Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2004,
pp. 132-33.
3 A respeito da pedagogia da Bauhaus e do curso preliminar, ver Leah
Dickerman, “Bauhaus Fundaments”, in B. Bergdoll & L. Dickerman (orgs.), Bauhaus,
1919-1933: Workshops for Modernity. Nova York: The Museum of Modern Art,
2009, pp. 15-18.
35
1 Sem título, 1982.
outro amarelo, mais um amarelo, e depois outro amarelo
ainda. Um verde, outro verde, outro verde – cada qual com
um valor tonal diferente. Observe todos os vermelhos – um,
dois, três, quatro, cinco – e depois os pontos. Quantidade e
organização já estavam presentes no meu trabalho.
36
an Quando você estava criando suas aquarelas, durante os primeiros anos na Faap, achava que seus temas eram
semelhantes aos dos colegas que exploravam a pintura?
jl Sim. No fundo, todo mundo estava pintando, desenhando, etc. A gente trazia as aquarelas que tinha feito
em casa e trocava experiências. Nosso estilo individual
já estava presente. Eu me fixei nas aquarelas, enquanto a
maioria dos colegas fazia pinturas. Os grupos da minha geração em São Paulo já tinham se formado. Um deles se chamava Casa Sete 4 e o outro fazia parte de um círculo maior
que incluía o Rio de Janeiro, e era chamado Geração 80.5
Eu não pertencia a nenhum desses grupos. Eu também desenhava, mas a partir de 1981 passei a buscar outras linguagens, como a arte conceitual, o minimalismo e a arte povera.
Ficava na minha.
an Em 1981, aos vinte anos, você fez uma longa viagem
aos Estados Unidos e à Europa, passando um mês em Nova
York e um mês na Europa. Qual foi o significado dessa viagem
para você? Que tipo de arte viu?
jl Fui ouvir Die Walküre de Wagner, concertos de
4 Casa Sete era um grupo de jovens pintores neoexpressionistas que
dividia um ateliê e fazia exposições coletivas no começo da década de 1980, em
São Paulo.
5 Grupo de jovens artistas neoexpressionistas, cujo nome foi tirado da
exposição Como vai você, Geração 80?, realizada na Escola de Artes Visuais do
Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1984.
37
Luciano Berio e Black Flag, e obviamente vi toda a arte que
pude, principalmente em museus e espaços públicos. Em
Amsterdã, vi as obras de Philip Guston e Piet Mondrian. O
velho Stedelijk Museum, com sua escala moderna, me encantou. Em Nova York, entrei em contato com os círculos
de arte e descobri novas dimensões e propostas dedicadas à
arte nas galerias do Soho e nos ateliês de meus amigos. Tudo
era muito emocionante. Voltei com a convicção de que as
coisas tinham mudado: havia um novo modo de enfocar o
mundo – intelectual, mas ainda assim muito visual.
an Essa viagem teve um papel importante em sua descoberta da arte conceitual, do minimalismo e da arte povera?
jl Sim, entre muitas outras descobertas riquíssimas.
Foi quando descobri que o quilômetro estava quebrado, que
havia cera na cadeira e que uma pessoa como Eva Hesse tinha existido.6 On Kawara estava vivo, assim como Merz.7 Aí
eu disse: “Até mais, amadas aquarelas!”.
an Sua primeira exposição realizou-se na Galeria
Tenda, em São Paulo, em 1982, quando você ainda era estu-
6 Walter de Maria, Quilômetro quebrado, 1979, Dia Art Foundation,
Nova York; Joseph Beuys, Cadeira com gordura, 1963, Hessisches Landesmuseum, Darmstadt.
7 On Kawara, AINDA ESTOU VIVO, 1970-presente, várias coleções; Merz
era um neologismo inventado pelo artista Kurt Schwitters, em 1919, para descrever seu movimento vanguardista.
38
dante e seus trabalhos se distinguiam bastante das pinturas
dos colegas, inclusive de suas próprias aquarelas.8 A exposição era composta de colagens, de formato quadrado e pequeno, com uma paleta de cores restrita, em geral, ao preto,
branco e marrom. A série de obras recebeu o título de “Imagens objetuais” [2]. Qual o significado desse título?
jl Expressa um paradoxo. As obras são imagens,
pois tentam representar algo, mas ao mesmo tempo
apresentam coisas. Elas usam corda, arames e diversos
tipos de papel. São cortadas. Têm profundidade, cor e
forma. Mas há também a distorção que transforma o
objeto em imagem. Todas são ambíguas, ou pelo menos
tentam mostrar ambiguidade. Eu estava pesquisando
materiais e pensava em presenças e ausências, e nos contrastes. Essas peças me lembram Waltercio Caldas, cujo
trabalho eu não conhecia na época. Provavelmente estava bem perto de descobri-lo.
an É preciso observar com muita atenção essas obras
para perceber se determinada composição é nanquim, pintura ou colagem, se um elemento está na frente ou atrás de
outro. E, assim que o olhar se afasta da obra por um instante
e depois volta a observá-la, a ambiguidade reaparece e o olho
é mais uma vez induzido a tentar dar sentido ao objeto. Julio
8 Acão Barros, Jac Leirner. São Paulo: Galeria Tenda, 1982. A exposição
mostrou trabalhos dos dois artistas.
39
2 Imagem objetual, 1982.
Plaza escreveu um breve ensaio sobre as “Imagens objetuais”
num fôlder preparado para a exposição, no qual interpreta as
colagens por uma ótica marxista. Segundo Plaza, elas tornam
tangível a interação não mercantilizada que é possível entre
pessoas e objetos através dos sentidos – nesse caso, o sentido
40
da visão.9 Cita uma passagem dos primeiros textos de Marx
para sublinhar as implicações sociais que estão em jogo na estruturação do ato de ver com intensidade: “O olho tornou-se
olho humano quando seu objeto se tornou objeto social, humano, feito pelo homem e para o homem”.10 Marx ou outros
pensadores foram importantes para definir os objetivos de
sua arte? Você acha que ela tem objetivos sociais ou políticos?
jl Tenho um amigo que diz que minha arte é comunista. Mas não é verdade. Plaza também menciona a opinião
de Marx de que a ação da beleza consiste em nos deixar sem
fala.11 Minha meta sempre foi uma arte que se refira a outra arte. Qualquer outra consequência escapa do meu controle. Não posso evitar que o trabalho evoque a economia,
a matemática ou a circulação de mercadorias. Ele te leva a
direções que são, de fato, grandes questões, como o crime.
E, antes que ele se transforme em um comentário sobre uma
grande questão, prefiro que seja uma representação visceral
dela – que seja a questão em si mesma. A boa arte leva, em
primeiro lugar, a mais arte de qualidade.
an No início da década de 1980, além das colagens,
9 Julio Plaza, “ArteLetra para as ‘Imagens objetuais’ de Jacqueline
Leirner”. São Paulo: Galeria Tenda, 1982.
10 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos [1844]. São Paulo:
Boitempo, 2010, p.109 [grifos no original]
11 J. Plaza, op. cit.
41
você fazia experiências com um amplo espectro de materiais
tridimensionais e trabalhava em espaços reais em vez do espaço virtual do plano da pintura. Que obras eram essas?
jl Antes de me encantar com a infinidade de materiais, eu estava fascinada pela ideia do espaço e sua materialidade – a altura das paredes, a largura das paredes, as medidas. Fiz uma série de pinturas para representar grandes
desenhos, com expressivas linhas pretas sobre superfícies
brancas de formatos irregulares [3]. Essas peças não parecem pinturas, nem são esculturas ou desenhos. Talvez estivessem próximas do grafite, mas contêm profundidade e outros detalhes. São ambíguas, como as “Imagens objetuais”. E
são também divertidas e deslocadas.
Também há peças de borracha e aço cujos comprimentos determinavam sua elaboração: uma tinha 12 centímetros, outra 37 e uma terceira 60. Eu estava pensando em
tamanhos, e esses tamanhos se converteram nas obras.
Inacabável (roda sobre roda), 1982 [4], mostra numerosos materiais de diferentes tamanhos. Camadas e camadas
de materiais, do maior ao menor, compondo uma forma que
lembra uma meia esfera. Ela tem peso e texturas com sensações opostas. Minha escolha dos materiais – feltro, vidro,
alumínio, couro, borracha, plástico, papel e espuma – era
quase interminável, porque eram facilmente encontráveis no
comércio. Mas no caso do plástico bolha foi diferente, ele é
que me descobriu. Aí não era apenas a questão do material, o
42
3 Espião, 1982.
43
4 Inacabável (roda sobre roda), 1982.
plástico bolha também implicava o ar encapsulado. A ideia de
pedestais de ar ou bases de ar é recorrente em outras peças.
Ocupar espaços com blocos de ar parece poético, não é?
an Sua evolução entre o final dos anos 1970 e o começo
da década seguinte pode ser descrita como uma transição das
obras bidimensionais em papel, feitas com meios artísticos
tradicionais, para colagens tridimensionais e esculturas que
cada vez mais recorriam a materiais não tradicionais. Mas
sua geração de artistas, que se tornou conhecida depois, por
44
exemplo, da exposição Como Vai Você, Geração 80?, realizada
na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em 1984, no Rio de
Janeiro, era formada sobretudo de pintores e, mais especificamente, de pintores neoexpressionistas que trabalhavam em
telas de grandes dimensões. Por que a pintura não lhe pareceu
um caminho viável?
jl Pintar exigia dedicação integral. Eu demorava
muito para terminar uma aquarela e, ao mesmo tempo, me
interessava por outras linguagens; gostava muito de poesia,
de escrever, de música e, além disso, estava descobrindo novos caminhos na arte. Me pareceu evidente que eu não podia ficar presa a nenhuma técnica em particular. Precisava
sentir-me livre para “passar minha borracha”, manipular o
espaço, lidar com camadas físicas, usar tesouras.
an Numa entrevista de 1986, você descreveu sua transição de duas para três dimensões como uma “extrapolação
do papel”, ou seja, a inferência de algo desconhecido – o
espaço real e o volume físico – com base em algo já conhecido – o espaço pictórico. E afirmou que tinha começado a
desenvolver suas ideias menos com o lápis e o papel e mais
com a cabeça.12 O que a levou às três dimensões e a optar por
um processo criativo mais conceitual? Por que o trabalho em
12 Tadeu Chiarelli, “Entrevista com a artista plástica Jac Leirner” [1986],
in No calor da hora: Dossiê jovens artistas paulistas, década de 1980. Belo Horizonte / São Paulo: C /Arte / Centro Cultural São Paulo, 2011.
45
três dimensões lhe parece mais fértil ou interessante do que
a pintura?
jl A pintura estava muito amarrada à história. Depois
que entrei em contato com o trabalho dos que estavam revolucionando as coisas nos anos 1970, inclusive a pintura,
não havia maneira de voltar atrás. Novos procedimentos e
novas escalas já faziam parte do jogo. Eu pensava como uma
pintora, mas tinha paixão pela escultura e o desejo de encontrar uma linguagem que abarcasse uma série mais ampla de
ideias e técnicas.
an Em fins dos anos 1970 e início dos 1980, você também participou de dois campos criativamente vibrantes fora
das artes visuais: o cinema experimental e a música punk. No
primeiro caso, você participou da produção de quatro filmes,
inclusive os dois primeiros que Sergio Bianchi dirigiu: Maldita coincidência, de 1979, e Divina providência, de 1983, além
do documentário experimental de Adilson Ruiz sobre o movimento tropicalista, Infinita Tropicália.
jl Nessa época, eu tinha dezessete para dezoito anos
e costumava visitar a escola de cinema da Universidade de
São Paulo, onde meu namorado e minha irmã estudavam. Já
que estava ali, queria trabalhar: na verdade, eu estava aprendendo e experimentando o tempo todo. Sergio Bianchi me
incluiu em duas produções, e eu atuei em dois outros filmes.
Era péssima atriz, mas cheguei a ser protagonista de um
filme chamado Muerdeme morenito, de 1980. Fiz o papel de
46
um vampiro com uma estranha predileção: comer fatias de
carne do corpo da vítima. Foi uma produção antropofágica
de péssima qualidade, mas muito divertida.
Naquele tempo, o mundo era meu, e tudo me chegava
facilmente. Não é como hoje. Agora sei que nada é meu; se
quero alguma coisa, tenho de ir buscar e assumir o risco de
só conseguir pegar um pequeno pedaço, não importa quanta
energia eu invista.
an Ao mesmo tempo, a cena punk estava explodindo
em São Paulo, você começou a frequentar espetáculos e se
tornou baixista numa banda punk denominada ukct [5].
jl Eduardo Braga, um bom amigo de escola, que me
apresentara à melhor arte das décadas anteriores, também
me introduziu à ideia do punk, sua estética e sua música.
De saída, a aspereza, a velocidade e o lado experimental do
punk me impressionaram fortemente. Me senti pasmada.
Havia ali um novo paradoxo: o punk era e não era música.
Era anti: antimúsica e antiestablishment. As bandas inglesas,
americanas e nórdicas eram incríveis. Na época, eu já gostava muito de Lou Reed e David Bowie. Tinha os discos deles, de modo que estava preparada para o punk. Também me
sentia preparada porque conhecia o que tinha vindo antes.
Além dos discos clássicos, eu tinha a coleção quase toda de
Miles Davis, muito blues, jazz e um pouco de pop; era uma
pequena colecionadora muito entusiasmada. Os punks conquistaram meu coração e sua música me atingiu visceral47
5 ukct, 1983.
mente. A gente se encontrava em vários lugares e em casas
noturnas bem underground. Eu me sentia parte do grupo e
era bem recebida.
Entrei para a banda dos ukct quando o baixista saiu.
Antes disso, eu era tiete deles e assistia a suas apresentações
sempre que dava. Nós fazíamos uma mistura de punk, rockabilly e hardcore. Tínhamos muito estilo. Fazer parte da
ukct era como um sonho. Ouvíamos dia e noite todos esses
48
intérpretes e músicos extraordinários, totalmente viscerais.
Por isso, não entendo o punk como música. Pode ser uma
massa sonora, um muro de sons com raízes viscerais. Cada
nova banda que ouvíamos era um maravilhoso feito, e todas
alimentavam meu senso estético.
an Como sua obra se relaciona com a estética ou a atitude punk?
jl A transgressão é um atributo que pode ser associado tanto à arte quanto ao punk, de diferentes maneiras, é
claro. Pense em Chris Burden atirando em um avião.13 Essa
obra tem a ver com a poética punk. Embora ela não seja necessariamente punk – é arte pura –, as duas expressões podem se misturar. E creio que meu trabalho consegue juntar
esses extremos.
an De que maneira seu trabalho junta os extremos da
arte pura, ou do formalismo, e a transgressão punk?
jl No começo do século passado, o movimento dadá
era muito radical e extremo. Nesse sentido, o punk é um
pouco dadá. A aspereza sempre foi uma qualidade dos materiais que uso em meu trabalho, e nesse sentido ele é radical.
Furar notas de papel-moeda corrente, furtar objetos nos
13 Chris Burden, 747, 05 / 01 / 1973: “Por volta de oito da manhã, atirei várias vezes contra um Boeing 747 em uma praia perto do Aeroporto Internacional
de Los Angeles”, in A Twenty-Year Survey. Newport Beach, ca: Newport Harbor
Art Museum, 1988, p. 59.
49
aviões, fumar os materiais e mostrar dados privados de outras pessoas são atitudes transgressoras.
O cenário punk em São Paulo ocupava basicamente as zonas periféricas e economicamente marginalizadas da cidade, e as bandas quase sempre eram politicamente de esquerda. Leirner, uma
estudante de arte sem atividade política, proveniente de uma comunidade rica, se sentia bem-vinda nesse ambiente, embora, por
paradoxo, se sentisse uma pessoa estranha no mundo da arte.
jl Eu vivia fora do mundo punk, a arte era minha
realidade. A maioria dos meus amigos artistas não morava em São Paulo: Fernanda Gomes, Tunga e Cildo Meireles moravam no Rio, Saint Clair Cemin e Alberto Simon
viviam em Nova York. Aos 27 anos, me aproximei de José
Resende, e compartilhamos a arte e a vida, e muitos anos
depois nosso filho, Marcelo. Cresci como artista dividindo
experiências com esses amigos e aprendendo com eles.
Eram mais velhos que eu, mas muito jovens de espírito,
cheios de energia e absolutamente brilhantes. Mantive
sozinha minhas pesquisas sobre música, poesia e arte. Frequentava vernissages, mas não me considerava ligada a
nenhum dos grupos que trabalhavam em São Paulo. Mais
tarde, só de brincadeira, comecei a chamar esses grupos de
“Escola Paulista”.
an Quando você conheceu Meireles e Tunga, o que
50
6 Cildo Meireles, O sermão da montanha: Fiat Lux, 1973-79.
lhe interessou mais no trabalho deles, ou que aspecto lhe pareceu relacionado com o que você estava tentando fazer?
jl Ambos eram transgressores, exatamente o que
eu procurava no meu trabalho e na minha vida. Cildo se
interessava pelas quantidades em algumas peças e empregava materiais que não só estavam em meus pensamentos
como na minha vida: caixas de fósforos, dinheiro e texto
[6]. A obra de Tunga é como uma corrente, vai fluindo,
fluindo para chegar a lugares, mas continua a fluir, sem parar nunca. Embora as obras de Cildo alcancem níveis diferentes de circulação e quantidade, é uma declaração pura,
51
muito clara e direta, diferentemente de Tunga, cujas obras
nunca se detêm em um lugar: elas fazem brotar pernas e
correm. Seja como for, os dois tinham mais de trinta anos,
tinham tido experiências importantes em suas vidas e na
arte, e eu estava na casa dos vinte e poucos anos e amava
poesia e música moderna.
an Hélio Oiticica e Lygia Clark foram importantes em
seu trabalho? Você tinha reparado nas obras deles antes, na
coleção dos seus pais ou em outros lugares?
jl Levou algum tempo para que eu os descobrisse.
Embora suas obras estivessem nas paredes de casa e, portanto, fizessem parte da minha educação visual, não ouvia
falar os nomes deles e ninguém me ensinou especificamente sobre seus trabalhos. Não havia bibliografia nem exposições sobre as obras deles, que também não estavam em
museus nem faziam parte de acervos públicos. Posso afirmar que meus pais foram os primeiros a colecionar obras de
ambos, mas só o fizeram de maneira sistemática bem mais
tarde. Minha formação artística não se dava com base em
explicações ou nomes, mas na experiência do que estava ao
alcance de minha vista: uma peça pontuda, uma redonda ou
uma colorida e cheia de texturas [7].
Com o tempo, fui aprofundando meus conhecimentos sobre Oiticica e Clark. Somente nos últimos vinte anos
é que suas obras se tornaram decisivas para a compreensão da arte contemporânea. Ainda continuo descobrindo
52
7 Lygia Clark, Trepante, 1965.
obras, textos e experiências que eram muito abertos. Eles
deixavam que o próprio trabalho lhes guiasse os passos à
medida que suas ideias e sua arte progrediam. Do ponto de
vista conceitual, eram muito abertos. Ainda acho que o que
eles fizeram foi mágico: criar algo do nada, como tirar um
coelho da cartola.
an Apesar da carência de informações facilmente
disponíveis sobre a história da arte brasileira no pós-guerra
até a década de 1990, pensadores conhecidos como Ronaldo Brito e Aracy A. Amaral produziram textos e expo53
sições importantes sobre essa história desde meados dos
anos 1970.14 A coleção de arte de seus pais lhe permitiu um
acesso incomum a obras tanto de Oiticica e Clark como de
Willys de Castro, Mira Schendel, Alfredo Volpi e muitos outros. Como artista jovem, você estava comprometida com a
arte concreta e neoconcreta? Seus colegas da Faap tinham
esse mesmo interesse?
jl Infelizmente, o grupo de professores da Faap não
era próximo nem de Aracy Amaral nem de Ronaldo Brito.
Não nos apresentaram os livros desses críticos, nem as
obras dos artistas que você mencionou. Diferentemente
dos outros, Volpi sempre foi muito popular. Sua produção
era enorme e já tinha sido estudada antes. Mira também
criou grande número de obras, mas, como aconteceu com a
maioria dos outros artistas, sua descoberta foi tardia. É uma
pena que já não estivessem aqui para saberem do sucesso
que seus trabalhos viriam a fazer.
14 Ronaldo Brito, “Vértice e ruptura”. Malasartes, n. 3, 1976; Aracy A.
Amaral, Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro / São
Paulo: mam-rj / Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977. Uma versão ampliada
do texto de Brito foi publicada em R. Brito, Neoconcretismo: Vértice e ruptura do
projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
54
fazer escolhas, criar lugares
Depois de sua primeira exposição individual em 1982, Leirner participou de várias mostras coletivas até meados da década, inclusive
da xvii Bienal de São Paulo, em 1983, e exposições como Arte na rua,
do mesmo ano, e A nova dimensão do objeto, em 1986, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (mac-usp).15 Ela não realizou nenhuma outra exposição individual até
1987, quando se apresentou em duas mostras seguidas, nas quais
expôs o grupo de trabalhos intitulado “Os cem”, em maio e junho
na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, e a série “Pulmão”, de 1987, em
outubro e novembro, na Galeria Millan, em São Paulo.
an Em contraste com seu trabalho escultórico do começo dos anos 1980, realizado com rejeitos industriais, em
meados da década você passou a incorporar materiais da
vida cotidiana, como cédulas de dinheiro e maços de cigarros.
15 As exposições coletivas das quais Jac Leirner participou na primeira
metade da década de 1980 incluem: A. A. Amaral, Arte na rua. São Paulo: mac-usp,
1983; J. Plaza, Arte e videotexto, xvii Bienal Internacional de São Paulo (catálogo).
São Paulo: Fundação Bienal, 1981; Maria Cecília França Lourenço, Proposta para
os anos 80. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1984; v Bienal Americana de Artes
Gráficas. Cali, Colômbia: Cartón de Colômbia / Museo de Arte Moderno La Tertulia, 1986; A. A. Amaral, A nova dimensão do objeto. São Paulo: mac-usp, 1986; M.
C. F. Lourenço, Dezenovevinte: Uma virada no século. São Paulo: Pinacoteca do
Estado, 1986.
55
Como foi a decisão de usar maços de cigarros para compor
Pulmão [8]?
jl Por volta de 1985, alguns objetos inesperados começaram a me fazer pensar e a solicitar de mim um tratamento especial: cartões de visita, notas de dinheiro, adesivos autocolantes, cinzeiros furtados de poltronas de aviões,
embalagens de cigarros e sacolas plásticas. Todos estavam
destinados a se tornar arte. Levou algum tempo para que
cada material descobrisse o modo certo de se integrar a uma
entidade chamada “escultura”.
No caso de Pulmão, me dei conta da diversidade de
materiais que constituem um maço de cigarros, bem como
dos gestos que eu fazia ao manipulá-los para fumar. Resolvi
aproveitar essas observações para analisar, experimentar
e compreender esses materiais. Procurei infundir-lhes um
valor que merecesse atenção e manipulação, sem me precipitar para os transformar de pronto em objetos de arte. Eu
tinha todo o tempo de que precisasse, e o usaria para pensar.
Que fazer com esses pedacinhos insignificantes de papel?
Como resolver a presença do celofane dobrado? Ainda hoje
sigo esse procedimento com os materiais que uso. Cada um
deve ter seu próprio tamanho e peso específico, e seguir seu
próprio caminho. Na série “Pulmão”, uma peça se converteu em nós, outra foi costurada, e uma terceira é um simples
empilhamento de papel laminado dobrado. Em outra peça
usei cola para unir os elementos. Era evidente que cada obra
56
tinha suas peculiaridades e condições. Uma podia ser
enorme e outra muito pequena. “Pulmão” não foi um trabalho simples. Estava organicamente ligado à minha vida.
Foi ele que determinou meus gestos. Colecionar as fitinhas plásticas que abrem os maços e fazer arte tinham o
mesmo sentido para mim; ao fazer uma coisa, pensava na
outra, sempre em busca de soluções que permitissem que
o material, em sua expressão máxima, se transformasse
em arte. “Pulmão” também provocou minha decisão de
parar de fumar quando as obras estivessem terminadas,
exatamente o que fiz. No entanto, em alguns meses, eu
já voltara aos cigarros e aos meus maços. Fumei durante
33 anos, dos onze até pouco tempo atrás.
an Enquanto você acumulava os materiais, qual foi
seu processo criativo: além de pensar, fazia esboços?
jl Sim, tenho alguns esboços para “Pulmão”, desenhos sem maiores pretensões. Às vezes, pegava os
materiais, movia-os de um lugar para outro e brincava
com o lápis.
an Seu plano inicial previa passar três anos colecionando materiais para “Pulmão”, ou depois de três anos
você simplesmente decidiu que já tinha material suficiente?
jl Em alguma hora eu tinha de parar. Já havia colecionado 1 200 maços de cigarros, aspirados um a um pelos meus pulmões em três anos inteiros. Achei que essa
quantidade era uma boa oportunidade para parar, pôr um
57
8 Pulmão, 1987.
58
59
ponto final no processo e transformar o trabalho em algo
que tivesse existência própria.
an “Pulmão” foi concebido desde o início para compor uma série?
jl Sim. O nome “Pulmão” foi concebido desde o início e previa que cada uma das seis partes que constituem um
maço de cigarros tivesse sua forma específica. O conjunto
de peças constitui um grupo, talvez mais que uma série,
cheio de diferenças e antagonismos.
an Falando sobre essas diferenças, como você chegou
à forma da peça feita com as fitas de lacre de abertura dos maços [9]?
jl Que mais se poderia fazer com uma fitinha mínima
de celofane? É tão pequena! Como eu poderia fazer que se
formasse algo do nada? Nesse caso, a única possibilidade
eram os nós.
an Quando você estava fazendo a peça, já conhecia
os nós em papel de arroz de Mira Schendel, as “Droguinhas”
(c. 1964-66) [10]?
jl Eu já estava fazendo essa peça quando vi no jornal
a fotografia de uma bela e gorda Droguinha. Só consegui dizer: “Caraca! Agora é tarde!”.
an Enquanto trabalhava, você tinha em mente algumas referências na história da arte?
jl Sem dúvida. Havia referências históricas e contemporâneas. Os mestres estavam... como posso dizer...
60
9 Pulmão, 1987.
an Berrando nos seus ouvidos?
jl Isso. Foi Sérgio Camargo quem disse: “Um artista
sem pai é um filho de uma puta”.16
an Alguns entenderam as peças que compõem
16 O ex-marido de Jac Leirner, o artista José Resende, era amigo íntimo do escultor Sérgio Camargo e costumava citá-lo com frequência, inclusive
essa frase.
61
10 Mira Schendel, Droguinha, 1966.
62
“Pulmão” como representações metafóricas do corpo humano,
interpretando, por exemplo, as caixas de acrílico que contêm
invólucros de papel celofane como um pulmão [11].17 Como
você as descreveria?
jl Essa peça, a única que virou um múltiplo, me lembra Donald Judd. Na verdade, acho que é um Judd – pelas estantes verticais –, só que em pequena escala. É tão pequena,
tão reduzida. Como poderia pensar que fosse um pulmão humano? Somos sangue e cor. Essa peça é absolutamente limpa,
transparente e reta. Nesse sentido, se ela tentasse reproduzir
um pulmão, teríamos, ao contrário, uma narrativa.
an Portanto, pensar no minimalismo foi muito importante para “Pulmão”?
jl A aparente simplicidade, a economia de gestos da
obra aponta claramente para o minimalismo, mas também estão lá a arte povera, a pop art, o conceitual, o dadá e a colagem.
Como curadora, Lynn Zelevansky foi a primeira pessoa a reconhecer que Jac Leirner fazia parte de uma geração transnacional de
artistas que incluía Mona Hatoum, Rachel Whiteread e Andrea
17 Jacob Klintowitz, “E eis que do inútil surge a arte”, Jornal da Tarde,
p. A-5, 14 / 11 / 1987; Guy Brett, “A Bill of Wrongs” [1989], in L. Canongia (org.), Jac
Leirner: Ad infinitum. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002, p. 211;
Amada Cruz, Directions: Jac Leirner. Washington, dc: Hirshhorn Museum and
Sculpture Garden / Smithsonian Institution, 1992.
63
11 Pulmão, 1987.
Zittel; essa geração, que surgiu no início dos anos 1990, encarava
a arte das décadas de 1960 e 1970, principalmente o minimalismo,
como pontos de partida.18 No caso de Leirner, a inspiração profunda veio não só da arte conceitual e do minimalismo europeu e
18 Lynn Zelevansky, Sense and Sensibility: Women Artists and Minimalism in the Nineties. Nova York: Moma, 1994.
64
norte-americano, como também da arte neoconcreta e conceitual
brasileira. A geometria e a repetição serializada da arte minimalista e do concretismo brasileiro – assim como a distorção da
geometria proposta pelos artistas pós-minimalistas e neoconcretistas – proporcionaram-lhe padrões férteis para a organização
dos materiais catados entre os refugos e as coisas desvalorizadas
da sociedade consumista do mundo contemporâneo.
jl Sequências, séries e repetições foram soluções que
não pude evitar. Minha natureza é dada a organizar; tendo a
pôr as coisas uma depois da outra e lado a lado.
an O peso elusivo de muitas peças da série “Pulmão”,
especialmente das esculturas penduradas na parede, me recorda Eva Hesse.
jl Certa vez tive a oportunidade de ver uma exposição com muitos trabalhos dela, com suas presenças aparentemente frágeis – aquelas estranhas obras feitas de borracha, suas aquarelas, incrivelmente belas, e os desenhos com
infinitos redondos, repetições, sequências. O efêmero do
seu trabalho, a delicadeza de seus desenhos, o respeito pela
natureza dos materiais – para mim, Eva Hesse era a rainha.
Fiquei fascinada, encantada.
an Em “Pulmão”, as obras apresentam qualidades físicas diferentes, que vão das formas despencadas, brilhantes e
foscas, compostas de fitinhas de lacre de abertura dos maços,
das etiquetas de preços às caixas de acrílico transparente, que
65
parecem não ter peso algum, contendo invólucros de celofane, e colagens feitas de pedacinhos de papel e celofane. Em
uma palestra recente no Blanton Museum of Art, em Austin,
você falou sobre a importância de respeitar as naturezas distintas dos materiais.19 Como essa noção de respeito às características únicas de cada material se relaciona com as formas
finais de cada obra da série?
jl Cada material na série “Pulmão” tem uma natureza diferente. Há celofane, papel e folha laminada de alumínio. A etiqueta de preço é muito pequena e bidimensional. O
papel laminado está dobrado. O celofane transparente que
envolve a embalagem de papel forma uma pequena caixa
que perde a tampa quando se puxa a fitinha plástica de lacre. Cada material do maço tem uma natureza específica, e
todos juntos ocuparam meus devaneios até o momento em
que cada parte assumiu sua própria, inesperada e singular
realidade. Por isso, quando digo natureza, estou me referindo tanto à especificidade quanto a uma situação dada
que orienta e proporciona a chave para os primeiros passos,
os movimentos do artista entre infinitas soluções matemáticas. O pedacinho de papel impunha estritas direções a seguir: “Você me pega, me põe ao lado de meu gêmeo e repete
a mesma coisa cem vezes, depois mais cem vezes, e aí usa
19 Jac Leirner, “Artistic License: Jac Leirner”. Austin: Blanton Museum
of Art / The University of Texas at Austin, 19 / 2 / 2009.
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a máquina de costura para nos unir para todo o sempre”.
Cada material oferece suas próprias condições de cor, peso
e tamanho, informações que multiplicam a gama de soluções e permitem que surjam novas possibilidades. Você
pode fazer nós, pode costurar, pode colar. Pode usar o texto
impresso sobre várias superfícies. Minhas escolhas levavam
em conta essas múltiplas possibilidades.
an Você tinha usado esses processos em trabalhos anteriores ou os estava descobrindo naquele momento? Costurar, por exemplo, se tornou uma técnica recorrente adotada
na série “Os cem” e em séries posteriores.
jl Coser geralmente resulta numa técnica mais limpa
e extremamente eficiente.
an Isso quer dizer que sua técnica era pragmática, ou
seja, descobrir o processo apropriado para os materiais?
jl O melhor para cada um, de acordo com o que ele
eventualmente oferece como solução definitiva, final e que,
além disso, permita que o material se mantenha tão próximo quanto possível de sua condição original.
an Esse respeito pela natureza individual de determinado material e seus esforços para encontrar a técnica adequada estão relacionados, a meu ver, com a experimentação
deliberada exigida nos cursos preliminares da Bauhaus. Você
acha que esses processos têm a ver com as abordagens ensinadas nos cursos básicos da Faap?
jl Creio que sim. Isso tem a ver com uma lógica in67
terna das coisas, resolver as equações entre os materiais. O
conhecimento técnico também tem um papel importante.
A Faap oferecia uma ampla gama de oficinas práticas bem
estruturadas sobre as técnicas e os materiais mais consagrados. Sempre gostei de lidar com técnicas e, principalmente,
de inventá-las, o que requer muito trabalho intelectual seguido de experimentação.
an Ao mesmo tempo que você começou a trabalhar na
série “Pulmão”, deu início a um grupo de obras intitulado “Os
cem”. Como ocorreu a ideia de usar o papel-moeda?
jl Por volta de 1985, a quantidade de dinheiro em circulação no país era inacreditável. A inflação crescia forte e
vertiginosamente na economia brasileira. O dinheiro se desvalorizava num instante. Era uma situação chocante na qual
tiravam de nós, o povo, a noção de valor. O nome das moedas e seu valor mudavam de tempos em tempos, e os preços
de bens e serviços aumentavam diariamente de acordo com
números determinados pela máquina pública daquela economia instável.
Em certo momento, a gaveta de minha escrivaninha já
estava repleta de montes de cédulas, principalmente de cem
cruzeiros, com a efígie do líder militar brasileiro do século
xix, Luís Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias. Era a nota
de menor valor em circulação, e eu resolvi guardá-las em
casa, já que teria de carregar um volume enorme de cédulas para não comprar nada. Esse volume potencializado ao
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longo do tempo e da acumulação me fez compreender que
o material tinha muitas qualidades: o tom rosado das notas,
a sensação de algo velho e desgastado, muitas vezes em más
condições. Estava de posse de um material intrinsecamente
rico que, após uma enorme quantidade de trabalho intelectual e manual, poderia transformar-se numa bem-sucedida
obra de arte. Isso me tomaria alguns anos. Novamente, o
material se impunha aos meus pensamentos e consumia
meu tempo, deixando-me sem opção alguma. Logo a série
foi batizada de “Os cem”. Juntei o máximo possível das notas rosadas de cem cruzeiros a fim de construir as duas ou
três peças de chão que eu tinha em mente: dois círculos, um
formado com 8 mil e o outro com 10 mil cédulas [pp. 178-79],
e a terceira, com um par de tiras compridas, cada uma contendo cerca de 40 mil notas ou mais [12]. O processo era
cansativo e minucioso. Tinha de furar as cédulas para poder
uni-las através de estruturas de metal, no caso dos círculos,
e de corda de poliuretano – mais tarde, cabos de aço –, no
caso das tiras.
Quando comecei a perfurar as notas, descobri que
elas continham um tesouro especial: milhares de palavras
anônimas rabiscadas.20 Cerca de dez por cento das cédulas
tinham algum tipo de mensagem sobre os mais variados
assuntos. Eu fazia os furos e descobria os grafites quase
20 Leirner trata essa expressão como grafite. [n. t.]
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12 Os cem, 1986.
como uma voyeur – eram mensagens de amor, palavras religiosas, manifestações de protesto e, por fim, mensagens
sobre a economia e o próprio número cem, escrito ora com
a letra “c”, ora com a letra “s”. Não foi por acaso que batizei
a série de “Os cem”. Em português, a semelhança fonética
da palavra e as grafias distintas remetem a dois sentidos diversos: escrita com “s” – sem – significa “os despossuídos”
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(literalmente, “os que não têm”), e com “c” – cem – indica o
numeral 100. Assim, “Os cem” evoca ambos os significados:
tanto o número quanto a ideia “dos que não têm”. Não deixa
de ser um pequeno paradoxo, reduzido a uma palavra que
sugere um duplo significado.
an As peças compostas de cédulas rabiscadas geralmente se destinam a pendurar na parede. Os temas aparecem
como subtítulos e incluem desenhos de crianças, assinaturas,
deformações superficiais, pornografia e política [13]. Como
você determinou as formas dessas obras?
jl Solucionar o aspecto formal foi um desafio. Eu
tinha de transformar certo número de notas rabiscadas em
algo visualmente interessante. A charada foi às vezes bem
difícil de resolver. As quantidades não concordavam com
meu desejo de conferir-lhes certas formas específicas. No
fim do processo, eu dispunha de doze peças, cada uma com
um assunto e uma solução formal singular.
an Por que você conservou os buracos depois de perfurar as cédulas? Por que foi importante incluí-los no grupo
de obras?
jl Já que eu estava disposta a lidar com qualquer
tipo de material, por que iria descartar os buracos? Eles representavam os espaços inúteis desses corpos. Além disso,
eram provas do meu delito; mas no aspecto formal não tinham nenhum significado, eram quase absurdos. Coincidiam com o nariz impresso do duque de Caxias.
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