PROCESSO N° 35959-PM
INTERESSADO: FRANCISCO CANINDÉ DE PAIVA
ASSUNTO: APOSENTADORIA
EMENTA: — Questionamento sobre a legalidade do Decreto n.° 5.262,
de 17.01.70, que dispôs sobre o auxílio moradia da Polícia
Militar, criado pela Lei n.° 3.775, de 12.11.69, alterada
pela de n.° 6.689, de 06.09.94.
— Natureza do regulamento: “Se o regulamento vai além
do conteúdo da lei, ou se afasta dos limites que esta lhe
traça, comete ilegalidade e não inconstitucionalidade, pelo
que não se sujeita, quer no controle concentrado, quer no
controle difuso, à jurisdição constitucional (RE 189.550SP, STF/2.ª T., RTJ 166/611; RE 154.027-SP, STF/2.ª T.,
RTJ 166/58)”. Assim, a discussão sobre se o regulamento
excede ou não os limites legais não tem natureza
constitucional, pois o que se analisa é estritamente a sua
validade diante da lei regulamentada.
— Função interpretativa do regulamento. A interpretação
extensiva ou ampliativa. Segundo REIS FRIEDE: “A
interpretação extensiva dá-se quando há um desequilíbrio
entre a mens legis e a verba legis, em benefício da
primeira.” No ensinamento de CARLOS MAXIMILIANO: “Nas
palavras não está a lei e, sim, o arcabouço que envolve o
espírito, o princípio nuclear, todo o conteúdo da norma. O
legislador declara apenas um caso especial; porém a idéia
básica deve ser aplicada, na íntegra, em todas as hipóteses
que na mesma cabem.”
— O art. 76 da Lei n.º 3.775/69 (que foi alterado pela Lei nº
6.689/94 no que se refere ao valor da vantagem) prevê
que terá direito ao auxílio moradia “o policial-militar que
não resida em próprio estadual ou não possua imóvel
residencial”. Se o militar reside em próprio estadual ou
possui imóvel residencial, obviamente não faz jus à
gratificação, pois o fato de não pagar aluguel descaracteriza
a “necessidade” do auxílio moradia (dentro do presumido
critério que embasou a criação do benefício) e, portanto,
deixa de preencher a precondição legalmente estipulada.
A situação do policial-militar que adquiriu o imóvel pelo
sistema financeiro de habitação (criado pela Lei federal n.º
4.380, de 21.08.64) e terá de manter a sua casa
hipotecada até o pagamento final do empréstimo.
Características da hipoteca como direito real de garantia.
— Por entender que o bem adquirido sob o regime do sistema
financeiro de habitação (com obrigação mensal de
pagamento do empréstimo, sob pena de o imóvel adquirido
e gravado com hipoteca responder pela dívida) se
assemelhava, em seus pressupostos fáticoadministrativos, à hipótese em que o policial-militar não
tinha casa própria, o Poder Executivo expediu, em 1970,
o Decreto n.º 5.262. Poderia fazê-lo? Adotando a
modalidade de interpretação extensiva, é possível extrair
do enunciado do art. 76 da Lei n.º 3.775/69 um princípio
suscetível de aplicação à hipótese de que trata o § 2.º do
art. 77 do Decreto n.º 5.262/70.
— A idéia básica contida no art. 76 da Lei n.º 3.775/69 (a
concessão de uma vantagem financeira destinada a
garantir condições adequadas de residência ao policial-
militar) deve ser aplicada, na íntegra, a todas as
hipóteses idênticas ou assemelhadas. E, sem dúvida, a
hipótese disciplinada no § 2.º do art. 77 do Decreto n.º
5.262/70 (aquisição da casa própria mediante empréstimo
contraído segundo as normas específicas do sistema
financeiro de habitação, dentre as quais a vinculação do
imóvel à garantia hipotecária) contém-se dentro do
princípio estatuído no art. 76 da Lei n.º 3.775/69
(concessão de auxílio para o policial-militar fazer face ao
pagamento de suas despesas de moradia).
— Além disso, deve-se levar em consideração que o Decreto
n.º 5.262 é de 1970. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais
sufragou, em decisão de agosto de 1999, a tese de que “a
estabilidade e a certeza das relações jurídicas foram
consagradas pelo ordenamento jurídico, que as qualificou
como ponto fundamental, seja do regime jurídico privado,
seja do regime jurídico público. De fácil percepção, pois, a
interferência de um tal princípio na anulação de ofício dos
atos administrativos ilegais. Se tais atos, pela presunção
abstrata de nocividade, tivessem sempre, em qualquer
circunstância, de ser anulados pela administração, sem
considerações sobre a sua repercussão na vida coletiva,
chegar-se-ia muito provavelmente ao extremo de retirar
dos indivíduos aquele mínimo de tranqüilidade real,
indispensável à sobrevivência do próprio ordenamento
jurídico.” Essa tese encontra respaldo no posicionamento
assumido por CAIO TÁCITO em parecer sobre
Acumulação de Proventos. Direito Adquirido.,
constante de seu livro Temas de Direito Público
(Estudos e Pareceres) – Rio de Janeiro, Renovar, 1997,
2.º vol., págs. 1513 a 1521, especificamente nas págs.
1519 e 1520.
— O auxílio moradia é uma gratificação tipicamente pessoal,
instituída por lei para contemplar fato ou situação pessoal
concernente ao policial-militar. Tanto assim que o próprio
art. 76 da Lei n.º 3.775/69, alterada pela de n.º 6.689/
94, refere-se a “policial-militar”, simplesmente, sem
qualquer especificação quanto à função exercida, ao tempo
de serviço ou às condições de trabalho. Resulta, portanto,
suficiente analisar se “subsiste o fato ou a situação que
gera” a concessão do benefício para aferir do direito ou
não ao gozo da vantagem. Desta forma, se, mesmo na
inatividade, o policial-militar não reside em próprio estadual,
não possui imóvel residencial ou não realizou o resgate
total do financiamento obtido para aquisição da casa
própria, subsiste o “fato ou situação que gera” o direito
à percepção do auxílio moradia. A contrário senso, se o
policial-militar, a qualquer tempo, na atividade ou na
inatividade, adquirir casa própria ou promover o resgate
total do financiamento, deve cessar, ipso facto, o
pagamento da vantagem.
— O segundo questionamento suscitado, neste Processo,
diz respeito ao “adicional de inatividade”, criado pela alínea
“b” do inciso I do § 2.º do art. 52 da Lei n.º 4.630, de
15.12.76 mas que somente começou a ser concedido com
o advento da Lei n.º 5.544, de 30.12.86, responsável pela
fixação do valor do referido adicional.
— No Parecer n.º F-09, emitido em 30 de agosto de 1991
e publicado no DOE de 4 de setembro do mesmo ano, o
Prof. RAIMUNDO NONATO FERNANDES, quando no
exercício do cargo de Consultor-Geral do Estado,
manifestou o entendimento de que “o adicional de
inatividade, pago a policiais-militares pela transferência
para o reserva remunerada ou reforma, não se confunde
com a gratificação adicional por tempo de serviço, porque
seu fundamento é a mudança de situação funcional, ao
passo que o dos qüinqüenios é o próprio tempo de serviço,
enquanto o servidor se encontra na atividade.” A Emenda
Constitucional n.º 18, de 5 de fevereiro de 1998, em seu
art. 2.º, que deu nova redação ao § 1.º do art. 42 da
Constituição Federal, abstém-se de impor, desde logo, aos
militares dos Estados, o disposto no § 2.º do art. 40 da
mesma Constituição (com a redação da Emenda
Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998). Isso
significa que os militares estaduais podem perceber na
inatividade mais do que percebem em atividade.
— O que mudou, em termos de ordenamento jurídico, do
Parecer n.º F-09 para hoje? Um aspecto, apenas. O inciso
XIV do art. 37 da Constituição Federal proibia que os
“acréscimos pecuniários percebidos por servidor público”
fossem computados ou acumulados “para fins de
concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título e
idêntico fundamento”. A Emenda Constitucional n.º 19,
de 05.06.98, alterou essa norma da Lei Maior, tornandoa mais restritiva: atualmente, os “acréscimos pecuniários
percebidos por servidor público” não podem ser
computados nem acumulados, em nenhuma hipótese,
para efeito de concessões posteriores. Esse dispositivo
constitucional é aplicável aos militares estaduais por força
do que prescreve o art. 42, combinado com o art. 142, §
3.º, inciso VIII, da Constituição Federal (com as alterações
da EC n.º 18/98).
— O art. 2.º da Lei n.º 5.544, de 30.12.86, prevê que o
adicional de inatividade é “calculado mensalmente sobre
os respectivos proventos”. Pode, no entanto, esse adicional
incidir apenas sobre determinada parcela dos proventos?
A Lei n.º 4.630, de 16.12.76, que “dispõe sobre o Estatuto
dos Policiais Militares do Estado” (alterada pelas Leis ns.
5.042, de 03.07.81, 5.209, de 26.08.83 e 6.053, de
18.12.90), enseja que se possa admitir essa hipótese. O
§ 2.º do art. 52 dessa Lei, ao ocupar-se do que ela
denomina de “remuneração dos policiais militares em
inatividade”, estabelece que “os policiais-militares em
inatividade percebem remuneração, constituída pelas
seguintes parcelas: 1. Mensalmente: a) proventos,
compreendendo soldo ou quotas do soldo, gratificações e
indenizações incorporáveis”.
— O próprio texto legal, desta forma, especifica qual a
composição dos proventos: soldo ou quotas do soldo,
gratificações e indenizações incorporáveis. Se há,
legalmente, essa decomposição dos elementos que
integram os proventos, então é possível calcular o adicional
de inatividade apenas sobre a parcela dos proventos
correspondente ao soldo. Por que se deve proceder dessa
forma? Porque é inadmissível, face ao disposto no inciso
XIV do art. 37 da Constituição Federal, a partir da vigência
da EC n.º 19, de 05.06.98, calcular o adicional de
inatividade sobre outros acréscimos pecuniários. Sendo
assim, a interpretação da regra do art. 2.º da Lei n.º 5.544,
de 30.12.86, que determina o cálculo do adicional de
inatividade “sobre os respectivos proventos”, deve ser feita
em harmonia com o prescrito no inciso XIV do art. 37 da
Constituição Federal, o qual proíbe a computação ou
acumulação de “acréscimos pecuniários percebidos por
servidor público (...) para fins de concessão de acréscimos
ulteriores”. Daí resulta que o adicional de inatividade
somente poderá incidir sobre a parcela dos proventos
correspondente ao soldo, que está expressamente previsto
e identificado como parcela integrante dos proventos na
alínea “a”, item 1, do § 2.º do art. 52 da Lei n.º 4.630, de
16.12.76.
— Conclusões pela total improcedência da argüição de
ilegalidade do § 2.º do art. 77 do Decreto n.º 5.262, de
17.01.70 (relativo ao auxílio moradia) e, também, pelo
reconhecimento da plena vigência da alínea “b” do inciso I
do § 2.º do art. 52 da Lei n.º 4.630, de 15.12.76 e a Lei
n.º 5.544, de 30.12.86 (que dispõem sobre o adicional de
inatividade), com a ressalva, no tocante à segunda
conclusão, constante do itens 31 e 32 deste Parecer.
PARECER N.º I - 21
1. A Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas do Estado emitiu o Parecer n.º 032/
2000, no Processo n.º 01804/99-TC (cujo número original é 0152/99-DIR/FIN),
apreciando a “legalidade da inclusão do ‘auxílio moradia’ nos proventos, bem como do
adicional de inatividade sobre o soldo e vantagens (25%) incidirem efeito cascata sobre as
demais vantagens” (fl. 49 do referido Processo).
2. De início, é apreciada a “legalidade do auxílio moradia”. O ex-Consultor-Geral do TCE,
autor do mencionado Parecer, CARLOS THOMPSON COSTA FERNANDES, manifesta o
entendimento de que o Decreto n.º 5.262, de 17.01.70 (ou seja, de trinta anos atrás),
ampliou indevidamente o alcance da Lei n.º 3.775, de 12.11.69, alterada, por sua vez,
pela Lei n.º 6.689, de 06.09. 94.
3. O art. 76 da Lei n.º 3.775/69 estabelecia:
“Art. 76. O Oficial, o Aspirante a Oficial, o Subtenente e o Sargento quando
casados, que não residam em próprio estadual e não possuam imóveis
residenciais, terão direito ao auxílio para moradia, que lhes será mensalmente
atribuído e correspondente a 10% (dez por cento) do soldo do posto ou
graduação efetivos”.
4. Com a nova redação dada pelo art. 1.º da Lei n.º 6.689/94, esse dispositivo passou
a vigorar com o seguinte teor:
“Art. 76. O policial-militar que não resida em próprio estadual ou não possua
imóvel residencial terá direito ao auxílio moradia, que lhe será mensalmente
atribuído e corresponde a 30% (trinta por cento) do soldo do posto ou
graduação efetivos”.
5. Por sua vez, o § 2.º (o preceito malsinado) do art. 77 do Decreto n.º 5.262/70
estatui:
“Art. 77.....................................................................................................
...........................................................................................................................
§ 2.° Fará jus ao mesmo auxílio o militar que tenha adquirido ou venha a
adquirir imóvel para sua residência, mediante financiamento por
estabelecimento de crédito oficial ou fiscalizado pelo Governo, até o resgate
total do financiamento”.
6. O argumento em que intenta basear-se o ex-Consultor-Geral do TCE para considerar
inválido o 2.º acima transcrito é de que:
“Enquanto, inicialmente, a Lei n.° 3.775, de 12 de novembro de 1969 – e,
posteriormente, a Lei Estadual n.° 6.689 de 06 de setembro de 1994 –
tinha como premissa a sua concessão àqueles que não residiam em próprio
do Estado ou não possuíam imóveis para esse fim, a regra regulamentar
excedeu-a para estender o benefício àqueles que adquiriram ou irão
adquirir imóvel para fins de usufruí-lo como residência, desde que para
tanto hajam assumido financiamento junto a entidade de crédito do Governo
ou por ele fiscalizada, e até o seu resgate total.
Esse aumento do campo de incidência de lei formal mediante a edição de
decreto governamental não encontra respaldo no sistema jurídicoconstitucional brasileiro. A doutrina e os Tribunais pátrios são unânimes
em desconhecer a subsistência no Brasil dos cognominados regulamentos
autônomos – hipótese em que se enquadraria o regulamento ora examinado”
(fl. 51).
7. O argumento de que, em tese, o regulamento não pode exceder os limites legais é
conhecido e acolhido na doutrina e jurisprudência nacionais. Resta, apenas, analisar a
sua adequação e pertinência ao presente caso. É bem de ver que o possível conflito
ou, mesmo, dissonância, entre lei e regulamento, não podem ser questionados sob
ângulo constitucional e sim exclusivamente sob a ótica da própria lei regulamentada,
para que se caracterize ou não uma pretensa ilegalidade. É essa a orientação
consagrada pelo Supremo Tribunal Federal:
“Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, ou se afasta dos limites que
esta lhe traça, comete ilegalidade e não inconstitucionalidade, pelo que não
se sujeita, quer no controle concentrado, quer no controle difuso, à jurisdição
constitucional (RE 189.550-SP, STF/2.ª T., RTJ 166/611; RE 154.027-SP,
STF/2.ª T., RTJ 166/58)”. Constituição Federal Interpretada pelo STF,
5.ª edição, São Paulo, 2000, ed. Juarez de Oliveira, organizada por
ANTONIO JOAQUIM FERREIRA CUSTÓDIO, pág. 122).
8. Citando PONTES DE MIRANDA, destaca CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO que
não pode o regulamento “limitar, ou ampliar direitos, deveres, pretensões, obrigações ou
exceções à proibição, salvo se estão implícitas” (Curso de Direito Administrativo,
12.ª ed., 2.ª tiragem, São Paulo, Malheiros, pág. 307; grifos acrescidos). Anota CELSO
ANTÔNIO:
“Em diferentes conceituações ou comentos sobre o regulamento, para
aclarar-lhe a compreensão, costuma-se dizer que os regulamentos executivos
destinam-se a ‘explicitar’ o conteúdo da lei, às vezes menciona-se que
‘interpretam’ a lei, ou diz-se que ‘existem para explicá-la’, e em outras tantas
averba-se ser sua função a de ‘desenvolver’ ou ‘pormenorizar’ o texto
regulamentando” (ob. cit., pág. 313).
9. O mesmo doutrinador, em tópico subseqüente: “O regulamento tem cabida quando a
lei pressupõe, para sua execução, a instauração de relações entre a Administração e os
administrados cuja disciplina comporta uma certa discricionariedade administrativa”
(ob. cit., pág. 313; g. a.). Especifica CELSO ANTÔNIO duas hipóteses em que se justifica
a edição de regulamento. A primeira delas diz respeito à necessidade de “um regramento
procedimental para regência da conduta que órgãos e agentes administrativos
deverão observar e fazer observar para cumprimento da lei” (pág. 313). Depois:
“Uma segunda hipótese ocorre quando a dicção legal, em sua generalidade
e abstração, comporta, por ocasião da passagem deste plano para o plano
concreto e específico dos múltiplos atos individuais a serem praticados para
aplicar a lei, intelecções mais ou menos latas, mais ou menos
compreensivas. Por força disto, ante a mesma regra legal e perante
situações idênticas, órgãos e agentes poderiam adotar medidas diversas,
isto é, não coincidentes entre si”. (ob. cit., pág. 314; g. a.).
10. Uma importante função do regulamento é, sem dúvida, a de interpretar a lei. Nas
palavras de CELSO ANTÔNIO: «ainda é mais evidente sua função interpretativa, que será,
no que a isto concerne, exclusivamente interpretativa, cumprindo meramente a função de
explicitar o que consta da norma legal ou explicar didaticamente seus termos, de modo a
‘facilitar a execução da lei’, expressões, estas, encontráveis, habitualmente, nos conceitos
doutrinários correntes sobre regulamento» (ob. cit., págs. 317 e 318).
Segundo HELY
LOPES MEIRELLES, «só lhe cabe explicitar a lei, dentro dos limites por ela traçados. Na
omissão da lei, o regulamento supre a lacuna, até que o legislador complete os
claros da legislação. Enquanto não o fizer, vige o regulamento, desde que não
invada matéria reservada à lei» (Direito Administrativo Brasileiro, 26.ª ed., São
Paulo, Malheiros, pág. 121, g. a.).
11. R. LIMONGI FRANÇA, em obra clássica na bibliografia jurídica nacional, ensina:
“Uma terceira variedade de interpretação pública tem sido olvidada pelos
doutrinadores, a saber, a administrativa, realizada por órgãos do Poder Público
que não são detentores do Poder Legislativo nem do Judiciário.
Por sua vez, a interpretação administrativa pode ser:
a) regulamentar; ou
b) casuística.
Regulamentar, a que se destina ao traçado de normas gerais como a grande
massa dos decretos, portarias etc., em relação a certas prescrições das leis
ordinárias.
Casuística, a que se orienta no sentido de esclarecer dúvidas especiais, de
caráter controversial ou não, que surgem quando da aplicação, por parte
dos aludidos órgãos, das normas gerais aos casos concretos. ”
(Hermenêutica Jurídica, São Paulo, 7.ª ed., Saraiva, 1999, pág. 7).
12. Temos, assim, que, através do regulamento, o Poder Executivo exerce a função
interpretativa da lei. Ora, a hermenêutica, tradicionalmente, classifica a interpretação
quanto a seus possíveis efeitos. Com base nessa classificação, a interpretação dividese em declarativa, extensiva e restritiva. Interessa-nos, para aplicação neste caso,
apenas a interpretação extensiva, ampliativa ou lata. Na definição de R. LIMONGI
FRANÇA: “Extensiva, também chamada ampliativa, diz-se a interpretação segundo a qual
a fórmula legal é menos ampla do que a mens legislatoris deduzida. Mas não apenas isto.
Com a devida vênia dos autores que assim a conceituam, temos para nós ser extensiva
também aquela que, tendo deduzido a mens legislatoris dentro de limites moderados e
cientificamente plausíveis, adapta essa intenção do fautor da norma às novas exigências da
realidade social.” (ob. cit., pág. 12). Ou, de acordo com a conceituação de REIS FRIEDE:
“A interpretação extensiva dá-se quando há um desequilíbrio entre a mens legis e a verba
legis, em benefício da primeira. Ou seja, o legislador acabou por dizer menos do que era
desejado e, dessa forma, necessariamente devemos interpretar o dispositivo de maneira a
estender o seu alcance.” (Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica
Jurídica, 2ª ed., São Paulo, 1999, Forense, 2000, pág. 145). CHRISTIANO JOSÉ DE
ANDRADE delimita de forma precisa e sintética a natureza desse tipo de interpretação:
“A interpretação extensiva é uma ampliação do sentido porque o texto diz menos do que
pretendia (lex minus dixit quam voluit lex minus scripsit, plus voluit). Neste caso, o sentido
ultrapassa o texto, indo além da letra da lei” (O problema dos Métodos da Interpretação
Jurídica, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1992, pág. 118). A abordagem de TERCIO
SAMPAIO FERRAZ JR. é das mais completas e atuais, em termos de ciência jurídica:
“Trata-se de um modo de interpretar que amplia o sentido da norma para além do contido
na sua letra. Isto significa que o intérprete toma a mensagem codificada num código forte
e a decodifica conforme um código fraco. Argumenta-se, não obstante, que deste modo
estará respeitada a ratio legis, pois o legislador (obviamente o legislador racional) não
poderia deixar de prever casos que, aparentemente, por um interpretação meramente
especificadora, não seriam alcançados” (Introdução ao Estudo do Direito (técnica,
decisão, dominação), São Paulo, Atlas, 1991, pág. 269). Surpreendente como se
preservou o ensinamento de CARLOS MAXIMILIANO: “Nas palavras não está a lei e, sim,
o arcabouço que envolve o espírito, o princípio nuclear, todo o conteúdo da norma. O
legislador declara apenas um caso especial; porém a idéia básica deve ser aplicada,
na íntegra, em todas as hipóteses que na mesma cabem. Para alcançar este objetivo,
dilata-se o sentido ordinário dos termos adotados pelo legislador; também se induz de
disposições particulares um princípio amplo” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 17ª
ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998, pág. 199).
13. Ora, o art. 76 da Lei n.º 3.775/69 (que foi alterado pela Lei nº 6.689/94 basicamente
no que se refere ao valor da vantagem) prevê que terá direito ao auxílio moradia “o
policial-militar que não resida em próprio estadual ou não possua imóvel residencial”. A
intenção da lei (mens legis) é nitidamente a de assegurar ao policial-militar as condições
para uma residência condígna. Se o militar reside em próprio estadual ou possui imóvel
residencial, obviamente não faz jus à gratificação, pois o fato de não pagar aluguel
descaracteriza a “necessidade” do auxílio moradia (dentro do presumido critério que
embasou a criação do benefício) e, portanto, deixa de preencher a precondição
legalmente estipulada. Qual a situação, no entanto, do policial-militar que adquiriu o
imóvel pelo sistema financeiro de habitação (criado pela Lei federal n.º 4.380, de
21.08.64) e terá de manter a sua casa hipotecada até o pagamento final do empréstimo
(o Decreto-lei n.º 70, de 21.11.66, dispõe, em seu art. 9.º, sobre a cédula hipotecária)?
A hipoteca, como direito real de garantia, gera dois efeitos básicos, como assinala
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:
“Dos efeitos da hipoteca no que diz respeito à relação jurídica em si mesma
dois merecem ser especialmente salientados: a preferência e a seqüela.
A preferência é o direito reconhecido ao credor de se pagar prioritariamente,
sem se sujeitar a concursos ou rateio.
A seqüela, como o próprio vocábulo indica, é a particularidade de seguir a
coisa onde quer que se encontre, própria dos direitos reais em geral. Se o
imóvel é transferido, inter vivos ou causa mortis, pode o credor perseguí-lo
em poder do adquirente, e sem dependência de ressalva especial”
(Instituições de Direito Civil, vol. IV, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Forense,
págs. 269 e 270)
14. MARIA HELENA DINIZ estabelece o conceito didático de hipoteca: “A hipoteca é um
direito real de garantia de natureza civil, que grava coisa imóvel ou bem que a lei entende
por hipotecável, pertencente ao devedor ou a terceiro, sem transmissão de posse ao credor,
conferindo a este o direito de promover a sua venda judicial, pagando-se, preferentemente,
se inadimplente o devedor” (Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 2.ª edição, São
Paulo, Saraiva, 1996, vol. 5, págs. 169). Detalhando esse conceito, enumera a referida
doutrinadora os “seguintes caracteres jurídicos da hipoteca”:
“1) É direito real de garantia, pois vincula imediatamente o bem gravado,
que fica sujeito à solução do débito, sendo, ainda, oponível erga omnes,
gerando para o credor hipotecário o direito de seqüela e a excussão da coisa
onerada, para se pagar, preferencialmente, com sua venda judicial.
2) Possui natureza civil, embora haja autores, como Carnelutti, que a
consideram um instituto processual. (...)
3) É um negócio jurídico civil que requer a presença de dois sujeitos: o
ativo, que é o credor hipotecário, cujo crédito está garantido por hipoteca, e
o passivo, que é o devedor hipotecante, que dá o bem como garantia do
pagamento da dívida.
4) O objeto gravado deve ser da propriedade do devedor ou de terceiro,
que dá imóvel seu para garantir a obrigação contraída pelo devedor.
5) Exige que o devedor hipotecante continue na posse do imóvel onerado,
que exerce sobre ele todos os seus direitos, podendo, inclusive, perceberlhe os frutos. Só vem a perder sua posse por ocasião da excussão hipotecária,
se deixou de cumprir sua obrigação.
6) É indivisível, no sentido de que o ônus real grava o bem em sua totalidade;
enquanto não se liquidar a obrigação, a hipoteca subsiste, por inteiro, sobre
a totalidade da coisa onerada, ainda que haja pagamento parcial do débito.
(...)
7) É acessório de uma dívida, cujo pagamento pretende garantir. É, como
diz Lafayette, ‘um direito real criado para assegurar a eficácia de um direito
pessoal’. De modo que, se se extinguir, anular ou resolver a obrigação
principal, desaparecerá o ônus real” (ob. cit., págs. 169 e 170).
15. Por entender que o bem adquirido sob o regime do sistema financeiro de habitação
(com obrigação mensal de pagamento do empréstimo, sob pena de o imóvel adquirido
e gravado com hipoteca responder pela dívida) se assemelhava, em seus pressupostos
fático-administrativos, à hipótese em que o policial-militar não tinha casa própria, o
Poder Executivo expediu, em 1970, o Decreto n.º 5.262. Poderia fazê-lo, nos termos
em que o fez? Entendo que sim, pois, adotando a modalidade de interpretação
extensiva, é possível extrair do enunciado do art. 76 da Lei n.º 3.775/69 um princípio
suscetível de aplicação à hipótese de que trata o § 2.º do art. 77 do Decreto n.º 5.262/
70, desde que no mencionado dispositivo legal (art. 76), como diria CARLOS
MAXIMILIANO, “o legislador declara apenas um caso especial; porém a idéia básica
deve ser aplicada, na íntegra, em todas as hipóteses que na mesma cabem. Para
alcançar este objetivo, dilata-se o sentido ordinário dos termos adotados pelo legislador
(...)” (ob. cit., pág. 199). A idéia básica contida no art. 76 da Lei n.º 3.775/69 (a concessão
de uma vantagem financeira destinada a garantir condições adequadas de residência
ao policial-militar) deve ser aplicada, na íntegra, a todas as hipóteses idênticas ou
assemelhadas. E, sem dúvida, a hipótese disciplinada no § 2.º do art. 77 do Decreto
n.º 5.262/70 (aquisição da casa própria mediante empréstimo contraído segundo as
normas específicas do sistema financeiro de habitação, dentre as quais a vinculação
do imóvel à garantia hipotecária) contém-se dentro do princípio estatuído no art. 76 da
Lei n.º 3.775/69 (concessão de auxílio para o policial-militar fazer face ao pagamento
de suas despesas de moradia).
16. Além disso, leve-se em consideração que o Decreto n.º 5.262 é de 1970. Apreciando
situação correlata, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais sufragou, em decisão de agosto
de 1999, a seguinte tese:
“Revogação de Atos Administrativos – Poder não-absoluto - Respeito aos
Direitos Adquiridos – Considerações.
EmbInfr. n.° 130.913/7.00 na ApCv n.° 88.716-6 - Embargante: Olegário
Silva Araújo – Embargada: Câmara Municipal de Ipatinga – Relator: Des.
José Antonio Baía Borges. Terceira Câmara Cível.
‘Pode-se, portanto, adiantar que, de parelha com a sua relevância
teórica, de resto rigorosamente afinada com a utilidade do direito,
a estabilidade e a certeza das relações jurídicas foram consagradas
pelo ordenamento jurídico, que as qualificou como ponto
fundamental, seja do regime jurídico privado, seja do regime
jurídico público.
De fácil percepção, pois, a interferência de um tal princípio na
anulação de ofício dos atos administrativos ilegais. Se tais atos, pela
presunção abstrata de nocividade, tivessem sempre, em qualquer
circunstância, de ser anulados pela administração, sem
considerações sobre a sua repercussão na vida coletiva, chegarse-ia muito provavelmente ao extremo de retirar dos indivíduos
aquele mínimo de tranqüilidade real, indispensável à sobrevivência
do próprio ordenamento jurídico. A anulação mecânica, servil,
indiferente a situações concretamente determinadas, sem qualquer
possibilidade de mensuração entre dois interesses, igualmente
públicos, a se traduzirem, o primeiro deles na chamada
administração legal, e o segundo, na estabilidade e certeza das
relações jurídicas, seria o mesmo que admitir a falta de
correspondência e de adequação das fórmulas abstratas à realidade
factual, Ou o mesmo que admitir, muitas vezes, o sacrifício do
interesse coletivo sob o pretexto de realizá-lo.
Ora, a sociedade tem tanto interesse em que a administração se
exercite nos limites da lei, quanto em que as relações jurídicas não
oscilem ao sabor da instabilidade ou da incerteza na sua validade e
na produção dos efeitos a que se preordenaram..
Não nos parece, pois, extravagância ou demasia considerar que um princípio
interfere com o outro no sentido de mitigar-lhe o rigor lógico da sua aplicação,
em atenção a exigências que são também de uma só e mesma coletividade’
(A estabilidade da relação jurídico-administrativa e a anulação de atos
ilícitos, de José Sérgio Monte Alegre, RDA 139/286-297).” (BDA - Boletim
de Direito Administrativo (Jurisprudência), ed. NDJ Ltda., n.º 12 de
dezembro/2000, págs. 987 a 989).
17. Essa tese, por sinal, encontra respaldo no posicionamento assumido por CAIO
TÁCITO em parecer sobre Acumulação de Proventos. Direito Adquirido., constante
de seu livro Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres) – Rio de Janeiro, Renovar,
1997, 2.º vol., págs. 1513 a 1521, especificamente nas págs. 1519 e 1520 –,
encontrando-se no seguinte tópico a síntese do pensamento desse eminente
administrativista: “A revisão de decisões definitivas quando sobrevenha nova
orientação interpretativa abalaria a autoridade e a estabilidade da Administração,
gerando – conforme o testemunho de Francisco Campos – ‘uma atmosfera de
incerteza e de hesitação, que acabaria por prejudicar a eficiência de seus próprios
atos’ (Direito Administrativo – 1943 – p. 62).”
18. Nessa ordem de raciocínio, atente-se para o fato de que compete privativamente
à Assembléia Legislativa “sustar os atos normativos do Poder Executivo que
exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (art.
35, inciso V, da Constituição Estadual, que reproduz o art. 49, inciso V, da Constituição
Federal. No entanto, essa competência privativa, caso se admita que o § 2.º do art. 77
do Decreto n.º 5.262/70 exorbitou do poder regulamentar, não foi até hoje exercida no
tocante a esse Decreto, o que reforça e intensifica ainda mais a tese de que a
prerrogativa de anulação dos próprios atos, pela Administração Pública, apesar do
enunciado das Súmulas ns. 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, não constitui poder
absoluto, sendo forçoso admitir
a interferência do princípio da estabilidade e certeza das relações jurídicas na
anulação de ofício dos atos administrativos ilegais. Afinal, de conformidade com a
tese consagrada na decisão acima transcrita do Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
“se tais atos, pela presunção abstrata de nocividade, tivessem sempre, em
qualquer circunstância, de ser anulados pela administração, sem considerações
sobre a sua repercussão na vida coletiva, chegar-se-ia muito provavelmente ao
extremo de retirar dos indivíduos aquele mínimo de tranqüilidade real,
indispensável à sobrevivência do próprio ordenamento jurídico.”
19. Releva observar, ainda, que o policial-militar faz jus ao denominado auxílio moradia,
consoante a própria literalidade do § 2.º do art. 77 do Decreto n.º 5.262/70, “até o
resgate total do financiamento”. O que significa dizer, à toda evidência, que, mesmo
na inatividade, enquanto não consumado o “resgate total do financiamento”, dentro dos
pressupostos até agora analisados, o policial-militar tem direito à percepção do auxílio
moradia.
20. E quanto ao policial-militar que percebia o auxílio moradia na atividade por não
residir em próprio estadual ou não possuir imóvel residencial, deixa de recebê-lo ao
ingressar na inatividade?
21. A contribuição de maior densidade teórica para a sistematização das vantagens
pecuniárias em nosso Direito Administrativo proveio de HELY LOPES MEIRELLES, que
adotou a seguinte classificação:
“Vantagens pecuniárias são acréscimos ao vencimento do servidor,
concedidas a título definitivo ou transitório, pela decorrência do tempo de
serviço (ex facto temporis) ou pelo desempenho de funções especiais (ex
facto officii), ou em razão das condições anormais em que se realiza o serviço
(propter laborem) ou, finalmente, em razão de condições pessoais do
servidor (propter personam). (...)Certas vantagens pecuniárias incorporamse automaticamente ao vencimento (v.g., por tempo de serviço) e o
acompanham em todas as suas mutações, inclusive quando se converte
em proventos da inatividade (vantagens pessoais subjetivas); outras apenas
são pagas com o vencimento, mas dele se desprendem quando cessa a
atividade do servidor (vantagens de função ou de serviço); outras
independem do exercício do cargo ou da função, bastando a existência da
relação funcional entre o servidor e a Administração (v.g.; salário-família),
e, por isso, podem ser auferidas mesmo na disponibilidade e na
aposentadoria, desde que subsista o fato ou a situação que as gera
(vantagens pessoais objetivas)” (ob. cit. no item 10 deste, págs. 449 e
450).
22. No entendimento de HELY LOPES MEIRELLES, a gratificação pessoal, como independe
do tempo de serviço, do exercício de determinada função ou das condições de trabalho,
decorrendo tão-somente de fatos ou situações individuais, pode ser percebida
“independentemente do exercício do cargo”, ou seja, na inatividade:
“Gratificação pessoal, ou, mais precisamente, gratificação em razão de
condições pessoais do servidor (propter personam), é toda aquela que
se concede em face de fatos ou situações individuais do servidor, tais como
a existência de filhos menores ou dependentes incapacitados para o trabalho
(salário-família) e outras circunstâncias peculiares do benefício. Tais
gratificações não decorrem de tempo de serviço, nem do desempenho de
determinada função, nem da execução de trabalhos especiais, mas, sim, da
ocorrência de fatos ou situações individuais ou familiares previstas
em lei. Daí por que podem ser auferidas independentemente do
exercício do cargo, bastando que persista a relação de emprego entre
o beneficiário e a Administração, como ocorre com os que se
encontram em disponibilidade ou na aposentadoria” (ob. cit., pág.
459).
23. O auxílio moradia é uma gratificação tipicamente pessoal, instituída por lei para
contemplar fato ou situação pessoal concernente ao policial-militar (não residir em próprio
estadual ou não possuir imóvel residencial ou, ainda, adquirir imóvel para sua residência
mediante financiamento por estabelecimento de crédito oficial ou fiscalizado pelo Governo).
Tanto assim que o próprio art. 76 da Lei n.º 3.775/69, alterada pela de n.º 6.689/94,
refere-se a “policial-militar”, simplesmente, sem qualquer especificação quanto à função
exercida, ao tempo de serviço ou às condições de trabalho. Resulta, portanto, suficiente
analisar se “subsiste o fato ou a situação que gera” a concessão do benefício para
aferir do direito ou não ao gozo da vantagem. Desta forma, se, mesmo na inatividade,
o policial-militar não reside em próprio estadual, não possui imóvel residencial ou não
realizou o resgate total do financiamento obtido para aquisição da casa própria, subsiste
o “fato ou situação que gera” o direito à percepção do auxílio moradia. A contrário senso,
se o policial-militar, a qualquer tempo, na atividade ou na inatividade, adquirir casa
própria ou promover o resgate total do financiamento, deve cessar, ipso facto, o pagamento
da vantagem. Evidencia-se, assim, despicienda e desfocada qualquer avaliação que se
proponha a analisar, como pré-requisito à fruição do benefício, a necessidade ou não
de permanência do policial-militar na atividade. O que interessa sopesar, a meu ver, é
unicamente a subsistência ou não do “fato ou situação que gera” o direito à percepção
do auxílio moradia. Se subsiste, a vantagem deve ser mantida. Caso não subsista,
deve ser suprimida.
24. O segundo aspecto examinado no Parecer n.º 032/2000, do ex-Consultor-Geral do
TCE, diz respeito ao “adicional de inatividade”, criado pela alínea “b” do inciso I do §
2.º do art. 52 da Lei n.º 4.630, de 15.12.76 mas que somente começou a ser concedido
com o advento da Lei n.º 5.544, de 30.12.86, responsável pela fixação do valor do
referido adicional.
25. Aduz o mencionado parecerista:
“Afeiçoado o que o legislador considera ‘tempo de efetivo serviço’, ver-se-á
que o Adicional de Inatividade, criado pela Lei n.° 5.544, de 30 de dezembro
de 1986, tem fundamento idêntico ao da Gratificação de Tempo de Serviço,
estatuída no artigo 15 da Lei n.° 3.775, de 12 de novembro de 1969 – e
incorporável na forma do artigo 87 da mesma Lei -, qual seja o ‘tempo de
efetivo serviço’.
Logo nessa marcha, há vislumbrar que o dispositivo que deu forma ao
respectivo Adicional de Inatividade é incompossível com a Constituição
Federal de 1988, a qual, em seu texto inaugural, e mais agora, com a Emenda
Constitucional n.° 19, de 05 de junho de 1998, venda expressamente
nova computação e acumulação de acréscimos pecuniários já
percebidos anteriormente pelos servidores públicos, independentemente se
sob o mesmo título ou idêntico fundamento. Essa vedação, prevista no
artigo 37, inciso XIV, da Constituição da República, aplica-se por força de
preceito explícito encartado no seu artigo 142, § 3.°, inciso VIII, também
aos militares (...)
De sorte que, como o Adicional de Inatividade tem fundamento similar
àquele da Gratificação de Tempo de Serviço, ou seja o tempo de efetivo
serviço, é manifesto o dever-poder de o Tribunal de Constas considerá-lo
incompátivel com o sistema constitucional vigorante
Como se não bastasse, é de se apontar outra incompatibilidade da referida
Lei, que também vai de encontro ao preceito estabelecido no inciso XIV, do
artigo 37 da Constituição Federal. Tal antagonismo estriba-se na fórmula
de cálculo do respectivo adicional, que se instrumentaliza, em razão da
soma do tempo de efetivo serviço, mensalmente, sobre os
respctivos proventos. Em outras palavras e exemplificadamente, se
determinado militar do Estado perceber R$ 1.000,00 a título de proventos,
com 25 anos de efetivo serviço, o Adicional de Inatividade será de 25%
sobre o total dos proventos, e não sobre parcela específica do mesmo. Esse
procedimento depõe, por isso mesmo, contra a norma constitucional, uma
vez que estaria autorizando a incidência de uma vantagem sobre outras.
Eis o que chamam de efeito ‘cascata’ ou ‘repique’” (fls. 62, 63 e 64).
26. No Parecer n.º F-09, emitido em 30 de agosto de 1991 e publicado no DOE de 4 de
setembro do mesmo ano, o mestre RAIMUNDO NONATO FERNANDES, quando no exercício
do cargo de Consultor-Geral do Estado, manifestou entendimento, em quase sua
totalidade, contrário ao expendido no texto acima transcrito, como se pode inferir da
seguinte ementa do mencionado Parecer:
“ - O adicional de inatividade, pago a policiais-militares pela transferência
para o reserva remunerada ou reforma, não se confunde com a gratificação
adicional por tempo de serviço, porque seu fundamento é a mudança de
situação funcional, ao passo que o dos qüinqüênios é o próprio tempo de
serviço, enquanto o servidor se encontra na atividade
- As duas vantagens se diversificam, ainda, pelo tempo computável, que
para a primeira são os anos de serviço, incluindo as ficções legais, e para a
segunda é o tempo de efetivo serviço, bem como pela base de incidência,
que num caso são os proventos e, no outro, é o soldo.”
27. No corpo do aludido Parecer, o emérito administrativista norte-rio-grandense explicita
o seu raciocínio:
“Deixou-se aí demonstrado, portanto, que a gratificação adicional por tempo
de serviço (qüinqüênios) e o adicional de inatividade são vantagens distintas,
porque o fundamento da primeira é o próprio tempo de serviço (enquanto o
militar se encontra em atividade, como acertadamente acrescenta a
exposição do Gabinete do Comando-Geral) , ao passo que o da segunda é a
mudança de situação funcional, ou seja, a transferência do militar para a
reserva ou sua reforma.
Além disso, no caso dos policiais-militares, só se conta para qüinqüênios o
‘tempo de efetivo serviço’ (Lei n.° 3.775, de 1969, artigo 15), com exclusão
das ficções legais, como a contagem em dobro de licença especial não gozada,
que, ao contrário, é computável para a passagem à inatividade, por se basear
esta nos ‘anos de serviço’, e, assim, para o adicional respectivo (Lei citada,
artigo 125).
O único ponto de coincidência entre essas vantagens é a forma de cálculo
(item 5, retro), sem reflexo, entretanto, no seu fundamento legal e, ademais,
diversificada quanto ao tempo computável para a incidência dos percentuais.
Não há cogitar, além disso, de ‘efeito cascata’, pelo menos do tipo criado
pelo Decreto-Lei n.° 2.019, de 1983, em que os percentuais se acumulam,
de forma progressiva, como se vê do artigo 1.° desse diploma: 5%, 10%,
15%, 20%, 30% e 35%, do que resultava um total de 140%.
Na espécie, têm-se duas séries de percentuais, que incidem separadamente,
os dos qüinqüênios sobre o soldo (Lei n.° 3.775/69, artigo 16) e os do
adicional de inatividade sobre os proventos (Lei n.° 5.544/86, artigo 2.°)”.
28. O Parecer n.º F-09 é irrepreensível no tocante aos argumentos usados pelo ilustre
professor que o emitiu quanto ao fato de que “o adicional de inatividade, pago a policiaismilitares pela transferência para o reserva remunerada ou reforma, não se confunde com a
gratificação adicional por tempo de serviço”. Além disso, a Emenda Constitucional n.º 18,
de 5 de fevereiro de 1998, em seu art. 2.º, que deu nova redação ao § 1.º do art. 42 da
Constituição Federal, abstém-se de impor, desde logo, aos militares dos Estados, o
disposto no § 2.º do art. 40 da mesma Constituição (com a redação da Emenda
Constitucional n.º 20, de 15 de dezembro de 1998). Ou seja: os proventos da
aposentadoria dos militares “poderão exceder à remuneração do respectivo servidor, no
cargo efetivo em que se deu a aposentadoria”.
29. O que mudou, em termos de ordenamento jurídico, do Parecer n.º F-09 para hoje?
Um aspecto, apenas. O inciso XIV do art. 37 da Constituição Federal proibia que os
“acréscimos pecuniários percebidos por servidor público” fossem computados ou
acumulados “para fins de concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título e idêntico
fundamento”. A Emenda Constitucional n.º 19, de 05.06.98, alterou essa norma da Lei
Maior, tornando-a mais restritiva: atualmente, os “acréscimos pecuniários percebidos por
servidor público” não podem ser computados nem acumulados, em nenhuma hipótese,
para efeito de concessões posteriores. Foi, portanto, eliminada a exigência, para a
proibição, de identidade de título ou fundamento. Merece melhor exame, assim, a
compatibilidade do adicional de inatividade (art. 2.º da Lei n.º 5.544, de 30.12.86) com
a proibição constante do inciso XIV do art. 37 da Constituição Federal, na versão
decorrente da EC n.º 19/98, dispositivo esse aplicável aos militares estaduais por força
do que prescreve o art. 42, combinado com o art. 142, § 3.º, inciso VIII, da Constituição
Federal (nos termos da EC n.º 18/98).
30. A orientação cristalizada pelo Supremo Tribunal Federal está refletida na seguinte
ementa de acórdão:
“Contagem sucessiva de parcelas de remuneração, ou seja, influência
recíproca de umas sobre as outras, de sorte que seja a mesma gratificação
incorporada ao estipêndio do servidor, para vir a integrar, em subseqüente
operação, a sua própria base de cálculo.
Sistema incompatível com o disposto no art. 37, XIV, da Constituição, por
isso contrariado pelo acórdão recorrido (STF, RE 1300960-1/SP, rel. Min.
Octávio Galloti, 1ª Turma, decisão: 12-12-1995, DJ 1, de 8-3-1996, p.
4217).” Constituição Federal Anotada, de UADI LAMMÊGO BULOS, 2ª
ed., São Paulo, Saraiva, pág. 590.
31. O art. 2.º da Lei n.º 5.544, de 30.12.86, prevê que o adicional de inatividade é
“calculado mensalmente sobre os respectivos proventos”, como, por sinal, não poderia
ser diferente, já que se trata de uma gratificação que, como denota a sua própria
designação, é percebida após a passagem para a inatividade. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA
DE MELLO define proventos como “a designação técnica dos valores pecuniários devidos
aos inativos (aposentados e disponíveis)” (in ob. cit, pág. 250). Está subjacente nessa
definição a prenoção de que os proventos se constituem de parcelas agregadas (valores
pecuniários) que se somam para formar a “remuneração” do pessoal na inatividade
(§ 2.° do art. 52 da Lei n.° 4.630, de 16.12.76.) Pode, diante disso, o adicional de
inatividade incidir apenas sobre determinada parcela dos proventos? A Lei n.º 4.630,
de 16.12.76, que “dispõe sobre o Estatuto dos Policiais Militares do Estado” (alterada
pelas Leis ns. 5.042, de 03.07.81, 5.209, de 26.08.83 e 6.053, de 18.12.90), enseja
que se possa admitir essa hipótese. O § 2.º do art. 52 dessa Lei, ao ocupar-se do que
ela denomina de “remuneração dos policiais militares em inatividade”, estabelece:
“Art. 52.....................................................................................................
..................................................................................................................
§ 2.° Os policiais-militares em inatividade percebem remuneração, constituída
pelas seguintes parcelas:
1. Mensalmente:
a) proventos, compreendendo soldo ou quotas do soldo, gratificações
e indenizações incorporáveis; e
b) adicional de inatividade.
2. eventualmente, auxílio invalidez.”
32. Desta forma, o próprio texto legal especifica qual a composição dos proventos:
soldo ou quotas do soldo, gratificações e indenizações incorporáveis. Se há, legalmente,
essa decomposição dos elementos que integram os proventos, então é possível calcular
o adicional de inatividade apenas sobre a parcela dos proventos correspondente ao
soldo. Por que se deve proceder dessa forma? Porque é inadmissível, face ao disposto
no inciso XIV do art. 37 da Constituição Federal, a partir da vigência da EC n.º 19, de
05.06.98, calcular o adicional de inatividade sobre outros acréscimos pecuniários. Sendo
assim, a interpretação da regra do art. 2.º da Lei n.º 5.544, de 30.12.86, que determina
o cálculo do adicional de inatividade “sobre os respectivos proventos”, deve ser feita em
harmonia com o prescrito no inciso XIV do art. 37 da Constituição Federal, o qual proíbe
a computação ou acumulação de “acréscimos pecuniários percebidos por servidor público
(...) para fins de concessão de acréscimos ulteriores”. Daí resulta que o adicional de
inatividade somente poderá incidir sobre a parcela dos proventos correspondente ao
soldo, que está expressamente previsto e identificado como parcela integrante dos
proventos na alínea “a”, item 1, do § 2.º do art. 52 da Lei n.º 4.630, de 16.12.76.
33. Entendo, com base nas razões constantes dos itens 1 a 23, que improcede
totalmente a argüição de ilegalidade do § 2.º do art. 77 do Decreto n.º 5.262, de
17.01.70 (relativo ao auxílio moradia) e, também, com base na abordagem realizada
nos itens 24 a 32, que se acham plenamente em vigor a alínea “b” do inciso I do § 2.º
do art. 52 da Lei n.º 4.630, de 15.12.76 e a Lei n.º 5.544, de 30.12.86 (que dispõem
sobre o adicional de inatividade), com a ressalva, no tocante a esta segunda conclusão,
objeto dos itens 31 e 32.
34. É o parecer, s. m. j.
Natal, 11 de maio de 2001.
IVAN MACIEL DE ANDRADE
Consultor-Geral do Estado
PROCESSO Nº 35.959/99-PM
INTERESSADO: FRANCISCO CANINDÉ DE PAIVA
ASSUNTO: APOSENTADORIA
DESPACHO
Em, 14-5-2001
Aprovo o Parecer nº I-21, do Consultor-Geral do Estado.
Após a publicação no Diário Oficial do Estado, encaminhe-se o processo
à Secretaria de Estado da Administração e dos Recursos Humanos para adoção das
providências cabíveis.
DOE Nº 9.998
Data: 15.5.2001
Pág. 1 a 3
GARIBALDI ALVES FILHO
Governador
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Parecer I-21 sobre o(s)