UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
KATE LANE COSTA DE PAIVA
O CONHECIMENTO ENCORPORADO: ASPECTOS DA
DANÇA DOS ORIXÁS NO CANDOMBLÉ
Rio de Janeiro
2009
KATE LANE COSTA DE PAIVA
O CONHECIMENTO ENCORPORADO: ASPECTOS DA DANÇA DOS ORIXÁS NO
CANDOMBLÉ
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes do Instituto de
Artes da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
PPGARTES/UERJ,
para
obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Isabela Frade
Rio de Janeiro
2009
KATE LANE COSTA DE PAIVA
O CONHECIMENTO ENCORPORADO: ASPECTOS DA DANÇA DOS ORIXÁS NO
CANDOMBLÉ
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes do Instituto de
Artes da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
PPGARTES/UERJ,
para
obtenção do título de mestre.
Aprovada em:_________________
Banca Examinadora:
________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Isabela Frade (PPGARTES/ UERJ– Orientadora)
________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Aureanice Corrêa (IGEO/ UERJ)
________________________________________________
Prof. Dr. Felipe Ferreira (PPGARTES/UERJ)
________________________________________________
Prof. Dr. Aldo Victorio Filho (PPGARTES/UERJ)
Rio de Janeiro
2009
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos os deuses que dançam e a Raphael Vidal, eterno
companheiro.
Axé!
AGRADECIMENTOS
Aos Orixás que me permitiram adentrar seu universo e me acompanham pelas
estradas desta vida. Axé!
À Isabela Frade, minha Orientadora, que se tornou uma grande amiga, sempre
com a doçura e a firmeza de uma típica filha de Oxum! Obrigada por me mostrar por
onde seguir sempre considerando as pedras necessárias aos nossos caminhos.
Aos professores que aceitaram participar da banca examinadora da
dissertação, pelo carinho e disponibilidade em analisar o trabalho. Meu obrigado
especial à Felipe Ferreira e Aureanice Corrêa pelas críticas construtivas durante o
exame de qualificação, que, literalmente, ajudaram a qualificar e construir meu
trabalho.
À minha família que sempre me apoiou em todos os momentos, em todas as
escolhas, em todas às vezes que precisei partir na certeza de que sempre poderia
voltar. Todas as minhas conquistas devo ao amor de vocês! (Agradecimento especial
à minha irmã que sempre acode minhas pressas!)
À Fernanda Pequeno, Renatinha, Alvarito, Gigi e Ricardinho, grandes amigos,
que me acompanham desde os primeiros passos na graduação e sempre me dão
força pra seguir.
Às amigas, Gabi, Cris, Rapha, Flor, Danni (que literalmente pôs esta
dissertação no papel imprimindo cada página!), Carlota e Marleide pelo
companheirismo, pelos conselhos (embora eu tenha ignorado alguns quando deveria
segui-los), pelas discussões conceituais, pelas conversas nos botequins (onde a vida
flui sem maiores conceitos e filosofias!) e àqueles longos papos antes dormir (onde
procuramos na filosofia e nos conceitos uma boa saída para as coisas!). Meu sincero
obrigado!
À Tia Sued, que sempre me recebeu em sua casa com um belo sorriso e um
longo abraço!
À Tia Sandra, Geisa, e Gisele, pelo carinho com me receberam para que eu
pudesse realizar parte deste trabalho.
À Dona Marina, por responder minhas perguntas mais inusitadas e me mostrar
o limite daquilo que se pode dizer. Sem esquecer sua paciência em andar comigo de
ônibus até os terreiros.
Ao Pai Nei e Pai Nilton pela disponibilidade em me abrir as portas de seus
terreiros e mostrar um pouco do cuidado e carinho com que zelam pela religião.
Ao Gustavo Pereira, que um dia me abriu os olhos para os encantos do
folclore, das artes e da cultura popular e guiou meus primeiros passos por este
universo.
Ao Raphael Vidal, meu menino, ex- filósofo de botequim, excelente escritor e
grande companheiro, de quem roubei as primeiras idéias deste trabalho. Espero que
um dia retome-as. Meu eterno e amoroso obrigado pela presença, pelo carinho, pelo
cuidado, pelas atender (e entender!) às minhas correrias e por nunca desistir de mim
até quando eu mesma estive ausente.
Ao povo cigano que descobri em meio à pesquisa. Salve o sol, a lua, o vento e
as estrelas!
Porque orixá não gosta de feiúra não, de coisa mal feita, não gosta mesmo. Orixá
gosta de coisa bonita!
(Dona Marina, informante e grande amiga)
RESUMO
PAIVA, Kate. Corpo e Candomblé - narrativas míticas da dança na roda Xirê. Brasil, 2009, 180
páginas. Dissertação (Mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centro de Educação e
Humanidades. Instituto de Artes. Rio de Janeiro, 2008.
Partindo da experiência corporal adquirida na vivência religiosa do candomblé, o trabalho versa
sobre a articulação corpo/ comunicação/ conhecimento, através de uma análise simbólica dos
movimentos da dança de Ogum, Oiá e Oxum durante o Xirê. O corpo é abordado ainda em suas
implicações estéticas no conjunto das expressões visuais e sonoras que fazem parte do ritual do
candomblé, não só como prática religiosa, mas sobretudo como prática cultural que permitiu a
configuração de um sistema híbrido afro-brasileiro permeado pela narrativa mítica que articula
memórias celebrando saberes.
Palavras-chave: candomblé, corpo, comunicação, dança.
ABSTRACT
Leaving of the corporal experience acquired in the religious existence of the
candomblé, the work turns on the articulation body / communication / knowledge,
through a symbolic analysis of the movements of the dance of Ogum, Oiá and Oxum
during Xirê. The body is still approached in its aesthetic implications in the group of
the visual and sound expressions that they are part of the ritual of the candomblé, not
only as religious practice, but above all as cultural practice that allowed the
configuration of an Afro-Brazilian hybrid system permeated by the mythical narrative
that articulates memoirses celebrating knowledge.
Key words: candomble, body, communication, dance.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Saída de Ogã da Oxum......................................................... pág. 34
Figura 2 – Saída de Logum..................................................................... pág. 35
Figura 3 – Festa de Ogum....................................................................... pág. 36
Figura 4 – Saída de Iaô de Iansã............................................................. pág. 36
Figura 5 – Saída de Ogã de Xangô. ........................................................ pág. 37
Figura 6 – Indivíduos em transe no terreiro.............................................. pág. 45
Figura 7 – Indivíduos em transe no terreiro.............................................. pág. 45
Figura 8 – Iansã manifestada.................................................................... pág. 47
Figura 9 – Quarto de Exu do Ilê Axé Ajenã............................................... pág. 49
Figura10 – Pratos de barro e cabaça........................................................ pág. 50
Figura 11 – Esteira com oferendas e vaso de barro.................................. pág. 50
Figura 12 – Iaô (iniciado) sendo apresentado à comunidade após a feitura de
santo........................................................................................................... pág. 52
Figura 13 – Adé de Oxum........................................................................... pág. 56
Figura 14 – Batendo cabeça....................................................................... pág. 61
Figura 15 – Primeira saída do Iaô............................................................... pág. 68
Figura 16 – Segunda saída do Iaô.............................................................. pág. 69
Figura 17– Orixá tomando rum, dançando.................................................. pág. 69
Figura 18 – Iaôs em estado de erê.............................................................. pág. 70
Figura 19 – Mãos que recebem axé............................................................. pág. 73
Figura 20 – Iaô pintado com as pintas da galinha d’angola e usando
ecodidè.......................................................................................................... pág. 76
Figura 21 – Entrada no Xirê........................................................................... pág. 85
Figura 22 – Vestimenta de Ekédi................................................................... pág. 88
Figura 23 – Ogãs............................................................................................ pág. 89
Figura 24 – Iaôs virados................................................................................. pág. 90
Figura 25 – Orixá do Pai-de-santo.................................................................. pág. 91
Figura 26 – Primeiro momento da roda, Oxossi incorporado em seu iaô....... pág. 91
Figura 27 – Oxum tomando rum..................................................................... pág. 95
Figura 28 – Estados de Oxuns....................................................................... pág. 98
Figura 29 – Estados de Ogum........................................................................ pág. 99
Figura 30 – Estados de Oiá ........................................................................... pág. 100
Figura 31 – Mercadão de Madureira.............................................................. pág. 106
Figura 32 – O salto de Ogum sobre o Axé da casa: centro do mundo........... pág. 113
Figura 33 – Metonímia e Metáfora.................................................................. pág. 115
Figura 34 – Joelhos e mãos dobradas: uso das articulações......................... pág. 117
Figura 35 – Seqüência dos movimentos de Ogum......................................... pág. 120
Figura 36 – Oxum dançando Ijexá.................................................................. pág. 124
Figura 37 – Oxum banha-se nas águas: movimentos fluidos......................... pág. 125
Figura 38 – Iansã com os braços ao vento..................................................... pág. 128
Figura 39 – Oiá, espalhando o vento com seus braços.................................. pág. 129
Figura 40 – Oiá, linhas retas e quebradas de movimento: a inconstância e agilidade
do ar................................................................................................................ pág. 130
Figura 41 – Formas sinuosas das água de Iemanjá....................................... pág. 132
Figura 42 – Oxossi e as formas retas e movimentos rígidos.......................... pág. 133
Figura 43 – Xangô: formas retas..................................................................... pág. 134
Figura 44 – Capa do cd de Vinícius de Morais e Baden Powell. Influência africana do
candomblé na industria fonográfica. .............................................................. pág. 136
Figura 45 – Roupa de santo no mercadão de madureira: moda..................... pág. 136
Figura 46 – Balé Folclórico da Bahia: influência do candomblé no teatro...... pág. 137
Figura 47 – Baianas do acarajé: as roupas e a culinária do candomblé nas
ruas................................................................................................................. pág. 137
Figura 48 – Silêncio e afetividade de orixá: comunhão entre deuses e
homens............................................................................................................ pág. 143
Quadro 1 – Estrutura hierárquica de um terreiro............................................. pág. 39
Quadro 2 – Disposição do barracão no Xirê.................................................... pág. 82
Quadro 3 – Ordem de entrada no Xirê............................................................. pág. 84
Quadro 4 – Tabela com as cores dos orixás.................................................... pág. 92
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. pág. 15
1. O CANDOMBLÉ – UM TERRITÓRIO SIMBÓLICO HÍBRIDO..................... pág. 27
1.1. A configuração do candomblé e a formação dos primeiros terreiros no
Brasil................................................................................................................. pág. 27
1.2. O(s) candomblé(s) nos dias de hoje: hibridizações e
contaminações................................................................................................ pág. 30
1.3. Os terreiros visitados e as imagens recolhidas.................................... pág. 32
1.3.1. O Abafá da Oxum Apará......................................................................... pág. 33
1.3.2. O Ilê Axé Omo Ode................................................................................. pág. 35
1.3.3. O Ekanda Moxicongo Luazyde................................................................ pág. 37
1.4. A família de santo - organização social dos papéis religiosos............ pág. 38
1.5. O terreiro: um território simbólico da heterotopia e da memória........ pág. 40
1.5.1. Heterotopias de crise ou desvio.............................................................. pág. 42
1.5.2. Os posicionamentos contraditórios das Heterotopias............................. pág. 46
1.5.3. Heterotopias do tempo............................................................................ pág. 47
1.5.4. Espaços isoláveis e penetráveis............................................................. pág. 51
1.5.5. Heterotopias de compensação............................................................... pág. 53
1.5.6 O terreiro como território. ........................................................................ pág. 54
2. O CORPO – UM LUGAR ONDE SE MOSTRA O SENTIDO ....................... pág. 58
2.1. O corpo e a comunicação entre homens e orixás ................................ pág. 59
2.2.
A
preparação
do
corpo
–
incorporando
sensações .....................................................................................................................
...... pág. 63
2.2.1. Receber o santo – primeiras sensações. ............................................... pág. 65
2.2.2. Feitura de santo – nasce um novo orixá. ............................................... pág. 66
2.2.3. Erê: as primeiras aprendizagens corporais. ........................................... pág. 70
2.3.
Linguagem,
mito
e
imagens
corporais
–
flutuações
de
sentido ...........................................................................................................................
pág. 72
3. O XIRÊ E A ESTÉTICA RITUAL.................................................................. pág. 80
3.1. Elementos estéticos do Xirê................................................................... pág. 81
3.1.1. O barracão ............................................................................................ pág. 81
3.1.2. A formação da roda do Xirê. ................................................................. pág. 82
3.1.3. A ordem de “chamada” dos orixás. ...................................................... .pág. 85
3.1.4. As vestimentas e adornos ..................................................................... pág. 87
3.1.5. As cores ................................................................................................. pág. 92
3.1.6. A música ................................................................................................ pág. 93
3.1.7. As danças .............................................................................................. pág. 93
3.2. Estados de ser e as qualidades de santo.............................................. pág. 95
3.3.
Odara
–
o
belo
para
os
nagôs
e
a
disputa
pela
tradição. ........................................................................................................................
. pág. 101
3.4.
As
casas
de
macumba
e
o
consumo
–
a
negociação
da
tradição. ........................................................................................................................
. pág. 105
4. A DANÇA PERFORMÁTICA DO COSMO E SUAS FORMAS ................. pág. 109
4.1. A roda e o simbolismo do centro. ........................................................ pág. 111
4.2.
Metonímia
e
Metáfora
–
expansão
do
campo
semântico. .....................................................................................................................
.... pág. 113
4.3. A postura “africana” ............................................................................. pág. 116
4.4. A descrição do movimento. ................................................................. pág. 117
4.5. As formas dançantes do ferro, do rio e do vento: Ogum, Oxum e
Oiá. ......................................................................................................................... pág.
118
4.5.1. Ogum. ................................................................................................... pág. 118
4.5.2. Oxum .................................................................................................... pág. 121
4.5.3. Oiá ........................................................................................................ pág. 126
4.5.4. As formas sinuosas da sensualidade. .................................................. pág. 131
4.5.5. As formas retas da lutas e das guerras. ............................................... pág. 132
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... pág. 135
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. pág. 145
APÊNDICE A – Ficha de identificação Dona Marina ..................................... pág. 150
APÊNDICE B – Ficha de identificação Pai Nilton .......................................... pág. 151
APÊNDICE C – Ficha de identificação Ogã Marcelo .................................... pág. 152
APÊNDICE D – Ficha de identificação Pai Rodrigo ...................................... pág. 153
APÊNDICE E – Ficha de identificação Mãe Deinha ...................................... pág. 154
APÊNDICE F – Ficha de identificação Ekédi Vânia ...................................... pág. 155
APÊNDICE G – Ficha de identificação Pai Nei ............................................. pág. 156
APÊNDICE H – Ficha de identificação Pai Maurício ..................................... pág. 157
APÊNDICE I – Entrevista Dona Marina. ........................................................ pág. 158
APÊNDICE J – Entrevista Pai Nilton. ............................................................. pág. 163
APÊNDICE L – Entrevista Ogã Marcelo ........................................................ pág. 170
APÊNDICE M – Entrevista Pai Rodrigo ......................................................... pág. 172
APÊNDICE N – Entrevista Mãe Deinha ......................................................... pág. 175
APÊNDICE O – Entrevista Ekédi Vânia ......................................................... pág. 178
APÊNDICE P – Entrevista Pai Nei ................................................................. pág. 180
APÊNDICE Q – Pai Maurício ......................................................................... pág. 182
15
INTRODUÇÃO
A Escolha do Objeto
Ao final da rua onde eu morava quando criança, no bairro da Pavuna,
subúrbio carioca, havia uma casa que se diferenciava das outras por ser a única na
vila que possuía em sua entrada, sobre o parapeito do portão, um grande vaso
branco com umas folhas compridas dentro, e de onde, vez em quando, podia-se
ouvir uma música muito diferente das músicas que se ouvia nas outras casas. Das
imagens que guardo da infância, esta é uma que sempre habita minhas lembranças.
Vários mistérios envolviam aquele lugar. Uns diziam que era coisa do demônio,
outros que era perigoso entrar ali, e os menos radicais diziam que na hora certa,
nós, crianças, saberíamos o que era.
Talvez tenha sido aí o meu primeiro contato com um terreiro de candomblé.
Lembro de ter ido a algumas festas neste terreiro, ainda pequena, sem entender
muito bem o que ali se passava ou o que aquelas pessoas, de roupas e gestos
estranhos aos meus, faziam ali. Ainda hoje, quando volto à Pavuna, a “casa”
continua lá, no mesmo lugar, com os mesmos vasos brancos, mas não se ouvem
mais os tambores nem rumores de antigamente.
Mais tarde, durante o ensino médio, já na adolescência, vim a fazer parte de
um grupo de pesquisa e projeção em folclore e cultura popular, onde passei a
conhecer um pouco mais do candomblé, em especial, no que se refere aos
movimentos da dança dos orixás. E a partir da dança, comecei a desenvolver meu
interesse sobre a música, os gestos e a corporalidade afro-brasileiros.
Por volta de 2001, já na graduação, comecei a freqüentar um terreiro de
candomblé. Cheguei lá para visitar um amigo e acabei “botando a saia”, mesmo
sabendo que “quem coloca a saia não larga mais essa religião”, me disse a minha
mãe de santo na época Três anos depois, com o falecimento da mãe- de- santo e o
desentendimento entre alguns líderes do terreiro, deixei de lado a vida religiosa sem
ter sido iniciada.
Durante a faculdade de Educação Artística, na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, algumas leituras, dentre elas do texto de Frederico Morais intitulado
“Contra a arte Afluente: o corpo é motor da obra”, me despertaram para a
16
importância do papel do corpo na relação entre espectador / obra-de-arte e da
possível construção de um conhecimento sensível advindo desta relação.
A filosofia veio a contribuir para a expansão desta hipótese não somente no
campo da arte, mas do conhecimento como um todo. Partindo das teorias de
Merleau-Ponty e de suas considerações acerca de um corpo uno capaz de conhecer
e construir o mundo através dos sentidos e da percepção, procurei transpor a
questão da arte contemporânea para o universo popular, aliando minha antiga
admiração pelo candomblé com os novos horizontes teóricos que a mim se
descortinavam. Era o esboço do projeto que viria a desenvolver atualmente no
mestrado.
Podemos definir genericamente o candomblé como um sistema religioso de
origem africana, que teve seu surgimento, em solo brasileiro, a partir do século XIX,
através da junção das várias crenças e costumes, trazidos de diferentes regiões da
África pelos escravos que aqui chegavam.
Roger Bastide (1985) e Edson Carneiro (1991), no entanto, chamam a atenção
para o fato de que estes escravos, exatamente por serem provenientes de etnias
diversas, possuíam cultos diversos, os quais sofreram alterações e adaptações,
sendo reinterpretados e reinventados no Brasil sob o nome de candomblé. Segundo
Gisele Cossard (2007), esta fusão de cultos que se denominará de candomblé
receberá ainda influência das religiões indígenas e do catolicismo brasileiros,
mesmo que em maior ou menor grau.1
Essas religiões de origem africana, num quadro geral, apresentam-se divididas
em três sistemas rituais de acordo com suas regiões de origem. O sistema de
origem nagô, povos que têm o iorubá como língua, provenientes do que hoje
corresponde ao sul do Benin e ao sudoeste da Nigéria (antigos reinos de Ijexá, Ijebu,
Ketu e Egbá); o sistema de origem jeje, nascido dos povos ewe e fon, região do
antigo Daomé, atuais repúblicas do Togo e do Benin; e ainda um terceiro sistema,
que diz respeito aos povos de língua banta vindos do sudoeste do continente
africano. Os subgrupos desses três sistemas rituais estão divididos e representados
no que chamamos de nação no candomblé. Temos assim, a nação Ketu, nação
Jeje, nação Angola, entre outras.
1
Costuma-se comentar na comunidade religiosa que a Umbanda seria “mais misturada” e o candomblé mais
“puro” em relação a uma matriz africana. A este respeito ver: CAPONE, S. A busca da África no Candomblé.
Pallas, 2004.
17
Cada um desses sistemas rituais apresenta características diferentes,
especialmente, no que tange ao culto de suas divindades, mas estabelecem,
simultaneamente, uma relação híbrida, podendo haver casas de santo (como
geralmente é chamado o espaço onde se realiza o candomblé) que são de Ketu,
mas, em determinado momento do ritual, tocarão Angola, dependendo da
especificidade daquele ritual.
Dessa maneira, o candomblé apresenta formas variadas de apresentação e
abordagens, em relação à sua matriz lingüística, à forma de organização ritual e à
sua origem africana. Por este motivo, ao longo do desenvolvimento do curso
mestrado, houve uma grande dificuldade de se estabelecer um foco dentro da
temática escolhida, bem como do lugar onde seria desenvolvida a pesquisa de
campo, exatamente pela complexidade do objeto de estudo.
Ajustando o Foco do Trabalho...
Dentro destes aspectos diversos optamos por trabalhar as alusões ao corpo,
feitas através da dança, do canto, das vestimentas, verificadas principalmente
durante a manifestação dos deuses, chamados orixás, voduns ou inquices, de
acordo com a denominação de cada nação, durante as festividades ou rituais
religiosos (LUHNING, 2001).
Para que haja a realização dos rituais de candomblé, é necessária a
"incorporação" do orixá, que vem para dançar, espalhando axé, boas energias,
contando sua história, dizendo quem ele é. Note-se que a própria palavra incorporar, já diz de uma referência ao corpo como condição de existência, numa
relação direta com a vivência empírica advinda dos sentidos corporais.
Entretanto, dentro da religião, este corpo “incorporado” poderia ser abordado
ainda sob vários aspectos – dança, canto, indumentária – e em vários momentos e
passagens ritualísticas, de maneira que, inicialmente, o presente estudo apontava
para várias direções, tanto nas abordagens teóricas como empíricas.
Aliado a isto, havia ainda minha vivência pessoal dentro da religião do
candomblé. Minha primeira informante foi uma mãe de santo que conheci na época
em que freqüentava a religião, que acabou se tornando uma grande amiga, por
18
quem guardo profundo carinho e admiração. No entanto, sabendo ela de meu
histórico espiritual, estando eu afastada há mais de 5 anos da religião e sendo uma
abiã, isto é, não iniciada, não me era permitido ouvir certas coisas ou adentrar certos
lugares.
Esta primeira informante foi muito importante para os rumos da pesquisa, pois
ela me fez ver a necessidade de se ampliar o campo do meu trabalho. A
preocupação desta informante era que eu fosse a determinados terreiros e “virasse
no santo” e tivesse de recolher para “raspar a cabeça”, ou seja, ser iniciada. Desse
modo, o trabalho de campo começou a ficar reduzido aos locais onde a informante
me levava, mesmo que eu quisesse tomar outros rumos.
Esse fato foi muito curioso, pois percebi o tamanho do cuidado e mistério que
cercam a religião dos orixás. Na verdade, a preocupação demonstrava o carinho e
cuidado que a informante tinha estabelecido comigo. E pela primeira vez senti a
necessidade que, por vezes, o pesquisador apresenta de afastar-se um pouco de
seu objeto.
Decidi, então, buscar novos informantes, e desta maneira o campo foi se
expandindo e outros terreiros e informantes começaram a aparecer. E conforme eles
a mim se apresentavam mais difusos tornava-se o foco do trabalho. De repente, eu
tinha em mãos três terreiros, de nações diferentes, e vários informantes, de idades
biológicas e idades de santo e funções religiosas diversas.
Os questionamentos começaram a surgir. Sobre que nação a pesquisa se
debruçaria? Qual o critério de escolha das falas colhidas? Idade? Função? Gênero?
Uma gama de questionamentos pertinentes ao modelo tradicional de trabalho de
campo exposto de antropologia surgiam diante do material que começava a colher.
E por diversas vezes entendi e desentendi tanto a Academia, como o universo
estudado.
Durante o exame de qualificação para este programa de mestrado, nenhuma
dessas bases havia sido estabelecida. Porém, intuitiva ou (in) conscientemente, eu
não queria abrir mão de nenhuma destas informações, por mais desorganizadas ou
confusas que elas parecerem aos olhos científicos.
No entanto, o foco do estudo se fazia necessário e ao longo do
desenvolvimento da dissertação esta necessidade se fazia mais e mais presente.
Após ouvir a crítica de estudiosos da área, e de áreas afins, aliados às discussões
19
com a orientadora do projeto, optamos por focar da dança dos orixás durante a roda
do Xirê dentro candomblé e suas relações com as narrativas míticas.
Neste momento do ritual podemos ver os diferentes orixás com suas
diferentes características em um mesmo espaço, a roda, configurando um rico local
para análise dos gestos da dança em suas formas diversas, e dos significados que
elas engendram. Dessa maneira, o projeto se inscreveu na tentativa de uma análise
semiológica dos signos corporais da dança do xirê e suas possíveis articulações
com as questões relativas à memória e à construção do conhecimento para o
referido grupo.
Com isto em mente, outro questionamento surgiu: segundo que nação
analisaríamos estas danças e suas narrativas? Qual o terreiro seria focado para que
colhêssemos nossos gestos e discursos?
Após a leitura de alguns autores, em especial de Stefania Capone (2004), que
aponta para o crescente hibridismo entre as nações de candomblé, percebi que os
terreiros apresentavam muito mais elementos em comum do que pretendiam as
literaturas mais tradicionais que defendiam uma separação extrema entre as nações.
Desta maneira, pude perceber que nos importava mais a potência estética
daqueles rituais e seus locais do que uma etnografia dos mesmos. Havia
características formais comuns a estes terreiros que não os reduzia a uma
uniformidade, mas criava uma espécie de unidade modular, onde cada peça poderia
deslizar e construir novas formas, embora se mantivesse sempre dentro de um
centro, uma órbita, que caracterizava e legitimava estes rituais. Nosso quebracabeça começava a fazer sentido e assumir formas mais definidas, embora sempre
múltiplas. Forma e ritual adquiriam seus sentidos de maneira simultânea.
Foi aí que percebi que precisávamos de uma lente diferente para ajustar o
foco do nosso trabalho. Não estávamos em um universo estático, onde poderíamos
focar um ponto imóvel e ali nos estabelecermos com a segurança e certeza tão
caras à ciência. Nosso objeto estava em movimento, dançava a nossa frente e por
isso era tamanha a dificuldade em captá-lo. Como num caleidoscópio tomando
novas cores, novas formas, misturando-se, hibridizando-se e contaminando-se cada
vez que procurávamos ajustar nosso foco. E, pessoalmente, foi esta a descoberta
mais importante ao longo da pesquisa.
Entretanto, por fins acadêmicos e para que pudéssemos estabelecer uma
base para a pesquisa, optamos por trabalhar com as imagens e discursos colhidos
20
nos diversos terreiros, usando as referências da nação Ketu, do complexo cultural
dos nagôs2. Nossa escolha partiu de dois fatores: os estudos sobre candomblé, em
sua maioria, pautados sobre o modelo nagô-iorubá, que serviram de suporte a nossa
análise acadêmica; e a presença da nação ketu nas nações jeje e angola
encontradas na pesquisa.
O candomblé é uma religião fundamentada na experiência corporal, que abre
a novas perspectivas de vida, conforme se adentra gradativamente aos segredos
rituais (BARBARA, 2002), que, por sua vez, pressupõe esta perspectiva corporal.
Por este motivo estabelecemos como hipótese de nosso trabalho o corpo como meio
peculiar para construir conhecimento, articular memória e transmitir saberes dentro
do universo religioso do candomblé.
Nosso estudo teve por objetivo geral verificar a importância do corpo como
linguagem na articulação da memória e do saber dentro do ritual do candomblé,
através da análise dos gestos da dança na roda do Xirê, parte pública dos rituais de
candomblé.
Para tanto, optamos por focar as danças de Ogum, Oxum e Iansã3 seguindo
os conceitos de Rudolf Laban (1978) para análise do movimento pertinente à
descrição da dança. E recorremos a semiótica e a semiologia para aliar a descrição
técnica à descrição semântica.
A Importância do Corpo ou a Natureza Corporizada do Candomblé – bases
metodológicas e linhas interpretativas.
Dentro do Xirê, as cantigas são entoadas para “chamar” (LUNHING, 2001) os
orixás a incorporarem em seus filhos e obedecem a uma seqüência que procura
recriar o mito de criação de origem do mundo, segundo a cosmogonia do candomblé
(PRANDI, 2001).
2
Por este motivo, as nomenclaturas das danças, dos participantes, dos toques, bem como os mitos narrados ao
longo do texto seguem o vocabulário ioruba. O que pode ser verificado nas nomenclaturas como orixá, para
designar as divindades, ogã e ekédi, fiéis que não incorporam, abiã e ebomy, respectivamente, antes de iniciado e
após completar o ciclo de iniciação. À principio identificadas com os terreiros de nação ketu, elas são utilizadas
por muitos membros de outras nações, que nos remete novamente à multiplicidade do candomblé e a enorme
difusão nagô afirmada por Capone (2004) e Prandi (1995).
3
Uma vez que estes foram os orixás mais recorrentes nas imagens colhidas no campo,
21
Há, no entanto, uma diferenciação entre a dança feita para o orixá, onde os
fiéis fazem o movimento conscientemente, por repetição ou observação; como uma
forma de saudação; e a dança de transe, ou dança do orixá, onde o fiel incorporado
por seu orixá é quem dança e, segundo a lógica interna do grupo, é o próprio orixá
quem dança.
Uma vez que o orixá não possui a fala, o gesto se torna um valioso
instrumento de comunicação e de integração entre mundos aparentemente distintos:
homens e deuses, sagrado e profano, céu e terra, orum e aiê. Em conjunto com a
vestimenta, os cantos e o ritmo, os gestos compõem uma totalidade imagética que
identifica e diferencia um orixá do outro e ainda o orixá de uma pessoa,
especificamente, para o da outra, fazendo com que o gesto assuma também uma
singularidade, marcando identidades e diferenças.
É através deste gesto que os membros do grupo sabem quando aquela
pessoa é mais velha ou mais nova de santo, se é recém- iniciada ou não, qual a
história daquele orixá, que elementos da natureza estão ligados a ele e o que ele
está “dizendo” ao fazer determinada ação. O corpo torna-se um instrumento da
memória social e individual, um corpo coletivo e pessoal.
Com e neste corpo são expressas e constituídas as formas estéticas rituais:
roupas, cores, incisões na pele, gestos, dança, ritmo, etc. Isto é, no e com o corpo a
potencia estética do ritual se apresenta e, com ela, modos de ver, sentir e saber, que
revelam a prática cultural da vivência religiosa.
Connerton (1993) diz que é através da natureza corporizada da existência
social que elaboramos metáforas pelas quais pensamos e vivemos, as quais são
impressas no universo da arte. As práticas corporais desenvolvem uma memória
cognitiva, um conhecimento através do corpo e ao cultivá-lo é o nosso corpo que
compreende.
Luhning (2001) nos chama atenção para questão sonoro-corporal do
candomblé. Cada orixá possui características próprias que serão expressas em
dança, vestimentas e nos cânticos e ritmos ligados a ele. Diferentes expressões de
criação artística que encontraram no corpo não só um suporte, mas um agente
comum.
O dançar de cada orixá, assim como as frases de cada cântico a ele dedicado
ou as cores e adornos escolhidos expressam um pouco a história e do seu traço de
22
personalidade, conhecidos através da sua lendas transmitidas oralmente de geração
a geração (VERGER, 2002).
Neste sentido, a “palavra corpórea” (LUHNING, 2001) exerce um papel
fundamental na transmissão do conhecimento, principalmente, se levarmos em
conta que a oralidade se faz bastante presente no universo de nosso objeto de
estudo.
Através, então, da corporalidade os saberes expressos nas narrativas míticas
podem ser relembrados e celebrados. Pelo aparato corporal os costumes são
interiorizados para serem re-transmitidos a partir da experiência.
No candomblé, portanto, aprendemos menos através da assimilação de um texto,
do que por meio de uma reorganização do corpo que nos permite lidar com as
emoções e sensações experimentadas. (BARBARA, 2002:64).
O corpo, deste modo, assume um papel de fundamental importância na
construção do conhecimento. O uso do corpo no candomblé, seja na dança dos
orixás ou nas posturas assumidas no cotidiano religioso, revela um conhecimento
sensível, com o qual se elaboram e produzem sentidos e significados, inscritos e
transcritos em formas, imagens e sons.
A experiência corporal é vista como calcada não em um corpo-objeto, mas
em um corpo vivido (MERLEAU-PONTY, 1995) que seria o ponto de partida para
analisar a participação humana no mundo cultural (BARBARA, 2002), no qual se
inserem o universo da estética e da arte.
O corpo aqui é entendido como um agente capaz de articular identidade e
memória, fundamento da nossa compreensão de mundo e ponto de base da nossa
experiência enquanto seres humanos. Um corpo pelo qual podemos sentir e,
sentindo, conhecer.
Ao longo da formação do pensamento Ocidental, o homem esteve cindido
entre dicotomias que separavam a experiência sensível da experiência racional,
sendo esta última o único meio pelo qual o conhecimento poderia ser atingido. O
corpo, nesta perspectiva, era aquilo que o ligava ao mundo das emoções e,
portanto, o impedia de atingir a verdade, como dizia Sócrates (470-399 a.C apud
PLATÃO, 1972).
Este modelo de pensamento foi perpetuado por René Descartes (1988) para
o qual “empregar toda a vida a cultivar a razão é a avançar, o mais que pudesse, no
23
conhecimento da verdade”. A emoção e o sensível estariam, assim, para sempre
separados da verdade – privilégio somente da razão, baseada na documentação
escrita e na ciência.
Merleau-Ponty (1995), entre outros filósofos, rompe com este paradigma da
tradição cartesiana ao afirmar que “não há mundo inteligível, há mundo sensível”
Para ele é através da experiência do sensível (onde a arte teria um papel
fundamental), e, por conseqüência, dos sentidos corporais que o homem pode
conhecer as coisas.
Eu organizo com o meu corpo uma compreensão de mundo, e a relação com o meu
corpo não é a de um Eu puro, que teria sucessivamente dois objetos, o meu corpo
e a coisa, mas habito o meu corpo e por ele habito as coisas. (MERLEAU-PONTY,
1995:122).
Desse modo, o corpo sensível, passa a ocupar outro lugar na epistemologia,
onde a construção do conhecimento se daria através de experiências corpóreas,
como é o caso do nosso objeto de estudo.
As religiões, de uma maneira geral, e, em especial o candomblé, pelo que
observamos acima, carregam consigo o que Rosamaria Bárbara (2004) irá chamar
de uma “emocionalidade”. E sendo o homem ser cultural, capaz de se relacionar
com o outro, passando do eu ao nós, através da empatia (MAFFESOLI, 1987),
optamos por trabalhar como pano de fundo do trabalho esta perspectiva filosófica
que posiciona corpo e conhecimento no âmbito do sensível e no cerne da questão
viver/ conhecer.
Heidegger (2006) sugere, por exemplo, que a atividade humana da
compreensão e do conhecimento é uma realização prática, antes de ser uma
operação exclusiva do intelecto. Para ele, o ser seria sempre um ser-no-mundo, um
ser que não é só sujeito, mas que está sempre em relação a alguma coisa, um ser
que se posiciona entre sujeito e objeto, para estabelecer um diálogo entre estas
dicotomias clássicas.
É neste sentido que pretendemos encarar nossos “sujeitos” no candomblé,
enquanto seres sociais que estabelecem relações com o outro, com o grupo,
consigo mesmo e com seus deuses, criando uma rede de relações que perpassam
pelo universo sensível, encontrando no corpo um agente comum.
24
Através do corpo orixás e seres humanos tornam-se partes de uma mesma
matéria (corpo), em um continuum que permite que um se transforme no outro para
agirem como sujeitos do ritual. Por este motivo, nos apropriamos do conceito
desenvolvido por Viveiros de Castro (2002) expresso pelo termo ‘encorporar’,
presente no título deste trabalho. O autor traduz ‘o verbo inglês to-enbody e seus
derivados, que hoje gozam de fenomenal popularidade no jargão antropológico, pelo
neologismo ‘encorporar’, visto que nem ‘encarnar’, nem ‘incorporar’ são realmente
adequados (CASTRO, 2002: 374).
Viveiros (2002) utilizou este conceito em seus estudos sobre a maneira como
a forma corporal humana era apreendida dentro dos esquemas de percepção do
perspectivismo ameríndio, onde ‘humanos e animais acham-se imersos em um meio
sócio-cósmico’ (CASTRO, 2002: 364), tornando-se sujeitos na medida em que são
capazes de se apresentarem.
Buscamos aplicar as idéias deste autor ao esquema cognitivo religioso afrobrasileiro. Da mesma maneira que os esquemas de ação e percepção do
perspectivismo ameríndio, orixás e homens partilham o mesmo meio social-cósmico
no candomblé. Ambos são capazes de se transubstanciar e tornarem-se presenças
nos rituais, especialmente, através do corpo.
Para que a relação gesto/forma/significado fosse analisada houve uma
delicada e complexa busca para se estabelecer uma metodologia de trabalho que
não reduzisse este corpo tão cheio de afetividade, sutilezas e sensibilidades a um
mero suporte de signos e símbolos a serem dissecados pelo olhar do pesquisador.
Mas, obviamente, seria pretensão demais tentar abarcar este corpo em sua
totalidade e em suas relações dentro do candomblé.
A fim de facilitar nosso estudo e torná-lo mais consistente e substancial, de
modo a poder contribuir com outras pesquisas na área, optamos por buscar uma
metodologia que pudesse mesclar conceitos de diversas áreas, para tentar analisar
as imagens da dança no Xirê. Era preciso uma metodologia híbrida para
compreender a semioticidade igualmente híbrida de nosso objeto que mistura
informações tão diversas (som, música, dança, etc).
Segundo Santaella (1983), a semiótica é a ciência que tem por objeto de
investigação de todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o
exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção e
25
significação de sentido. Em especial, a semiótica russa teria como foco os estudos
acerca dos fenômenos culturais, como a comunicação não-verbal e visual
A cultura considerada como uma linguagem que possuiria um conjunto de
saberes transmitidos por diferentes manifestações da esfera da vida cotidiana,
sejam elas a arte, a religião, as leis, etc, forma um tecido, um “continuum semiótico”
sobre o qual as relações humanas se estruturam (Santaella, 1983).
Greimas (2004) nos fala ainda sobre uma semiótica visual ou semiologia da
imagem que permite que não nos satisfaçamos com uma definição que só leve em
conta a materialidade dos traços e das regiões impressas num suporte, mas que se
debruça sobre a investigação de como estes suportes articulam “códigos” de
reconhecimento que tornam o mundo inteligível e manuseável.
O corpo dançante é capaz de operar como uma rede de signos e significados
(“códigos”) reconhecidos pelo grupo. Com o auxilio das lentes da semiótica,
podemos analisar de que maneira isto pode estabelecer uma inteligibilidade de
mundo, fazendo despontar o ser-no-mundo, visto em Heidegger e o corpo sensível
de Merleau- Ponty, citados acima.
As imagens recolhidas em campo, no entanto, nos suscitaram ainda uma
análise simbólica. Além da semiótica, a semiologia, ao tratar do símbolo, também
pode nos auxiliar a entender as relações que a narrativa mítica estabelece com a
gestualidade corporal. Além do mais, estas relações estruturais entre as teorias
semiológicas e semióticas se fazem necessárias uma vez que o signo pode ser
classificado como ícone, índice ou símbolo (SANTAELLA, 2000) e que como diz
Jonh Deely (1990) “a semiótica forma um todo do qual a semiologia é uma parte."
Segundo Landowski (1996), a analise semiológica tem seu foco sobre a
análise de uma práxis enunciativa, sendo capaz de ressemantizar as relações
intersubjetivas e intra-subjetivas, reconhecendo um sentido peculiar, particular.
Sentido este reconhecido na relação imediata entre sujeito e objeto: um sentido
sentido; um sentido que se dá, para usarmos um termo Heideggeriano, como
presença4.
Landowski tenta nos mostrar é que as nossas próprias vivências podem ser tratadas
como uma outra dimensão do sentido e é dela que cabe agora à própria semiótica se
ocupar como um novo desafio, ainda que, provisoriamente, apenas sobre a forma de
um outro olhar. Um olhar que nos permite, no entanto, antes mesmo de uma
4
Heidegger, na obra já citada, aponta para uma relação ontológica entre ser e mundo a qual ele denomina como
presença, através do termo grego dasein.
26
formulação metodológica mais acabada, tentar analisar, numa perspectiva
complementar à semiótica narrativa, determinados textos que esta nunca enfrentou
até mesmo pela dificuldade de reconhecê-los como tal em função do seu caráter
“vivo” e em movimento, por só existirem na forma de um se fazendo, por se darem,
enfim, em ato. (FECHINE, 1998:56)
As danças do fogo, da água e do ferro, apresentadas, respectivamente, por
Iansã, Oxum e Ogum, revelam um saber ‘encorporado’, um saber enraizado em um
corpo social e individual que sente e se movimenta.
Ao dançarem, homens e orixás hibridizam-se, transmutam-se, colocando o
próprio sentido em movimento. E este sentido partilhado e reelaborado pelo grupo
foge a definições, escapa à palavra, refugiando-se em um lugar visível e invisível
onde pode ser elaborado e recriado no espaço do sagrado.
27
1.
O CANDOMBLÉ – UM TERRITÓRIO SIMBÓLICO HÍBRIDO.
1.1. A configuração do candomblé e a formação dos primeiros terreiros no
Brasil.
Os africanos que aportaram no Brasil do século XIX sob a condição de
escravos traziam consigo mais do que a mão-de-obra para as lavouras. Além de
costumes e línguas diferenciados tanto entre si quanto daqueles estabelecidos em
solo brasileiro, as tribos africanas possuíam crenças religiosas particulares
(CARNEIRO, 1991). Cada navio negreiro trazia em seus porões uma África cheia de
oposições culturais, de etnias distintas entre si. A diversidade dos cultos era tão
grande que levou Bastide (1985) a afirmar que as religiões africanas que poderiam
se estabelecer aqui eram tão numerosas quanto às etnias para cá transportadas.
Em África, de uma maneira geral, cada grupo étnico cultuava uma única
divindade ou orixá, em sua cidade ou localização específica. As variações locais
faziam com que o culto de determinados deuses presente em certos lugares fosse
totalmente extinto ou quase desconhecido em outros, como nos lembra Verger
(2002):
[...] ainda não há, em todos os pontos do território chamado Iorubá, um panteão dos
orixás bem hierarquizado, único e idêntico. As variações locais demonstram que
certos orixás, que ocupam uma posição dominante em alguns lugares, estão
totalmente ausentes em outros. O culto de Xangô, que ocupa o primeiro lugar em
Oyó, é oficialmente inexistente em Ifé, onde um deus local, Oramfé, está em seu
lugar com o poder do trovão. Oxum cujo culto é muito marcante na região de Ijexá, é
totalmente ausente na região de Egbá. (VERGER, 2002:17)
Os orixás, em princípio, seriam ancestrais divinizados que em vida foram
capazes de feitos que lhes garantiram um vínculo e um controle sobre certas forças
da natureza como o trovão, o vento e as águas. Essas forças divinas contribuíam
para afirmar o poder dos reis ou chefes locais, estando seus cultos ligados a
ocupação territorial destes líderes políticos.
No processo de escravidão, o culto desses diferentes orixás bem como os
representantes de diferentes posições políticas e sociais africanas se juntaram sob o
28
espaço da senzala, passando por uma reorganização sócio-cultural que possibilitou
a sobrevivência de suas crenças.
O resultado disso foi a formação de um sistema religioso de culto aos orixás
já híbrido e mestiço em seu nascimento chamado candomblé, que seria na definição
de Prandi (2001):
O candomblé é o nome dado à religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX,
a partir de tradições de povos iorubas ou nagôs, com influências de costumes
trazidos por grupos fons, aqui denominados jeje e, residualmente por grupos
africanos minoritários. (PRANDI, 2001: 44)
Os candomblés vieram a se estabelecer dentro dos terreiros, lugares
consagrados aos cultos. Em linhas gerais, os terreiros encontram-se divididos em
sistemas rituais chamados nações, que remetem às etnias africanas que os
originaram e que delineiam seu modelo de culto. As três grandes nações mais
difundidas ao longo do território brasileiro, especialmente na Bahia, Rio de Janeiro e
São Paulo são as nações Ketu, Jeje e Angola, que remetem as aos povos de origem
africana Nagô, Fon e Banta, respectivamente (LUNHING, 2001).
A Bahia foi o local do território brasileiro a receber os primeiros contingentes
de escravos africanos, ainda no século XIV. O que talvez tenha possibilitado o
estabelecimento dos primeiros terreiros de candomblé três séculos mais tarde, cujo
modelo de culto calcado na tradição nagô, ou iorubá, se espalhou por todo o Brasil.
As etnias africanas aportadas em solo baiano eram separadas em confrarias
religiosas sob a égide da Igreja Católica (VERGER, 2002:28). Os nagôs, em sua
maioria vindos de Ketu, formavam as irmandades da Nossa Senhora da Boa Morte,
constituída pelas mulheres (encontrada até os dias de hoje) e a irmandade Nosso
Senhor dos Martírios, reservada aos homens.
Segundo Verger (2002), por volta de 1830, algumas antigas escravas libertas
pertencente à Irmandade da Boa Morte criaram um terreiro de candomblé chamado
Iá Omi Axé Airá Intilé, localizado próximo a Igreja da Barroquinha, em Salvador,
Bahia. Existem diferentes versões sobre a fundação do que seria considerado o
primeiro terreiro de candomblé (Azevedo, 1993; Lima, 1977, Nascimento, 1998;
Carneiro, 1977; Verger, 2002). Em comum, encontramos o relato da existência de
três sacerdotisas portadoras dos títulos honoríficos africanos Ialussô Danadana,
Ianassô Acalá ou Ianassô Oca.
29
Ianassô seria um titulo altamente honorífico da corte do Alafin, ou rei, de Oió,
responsável pelas funções religiosas de maior significação dos iorubá (LIMA, 1977:
24). Essa sacerdotisa é encarregada de cuidar do santuário privado do Alafin e
realiza todas as cerimônias do culto à Xangô, uma das principais divindades do
panteão iorubá e o orixá principal do rei de Oió, cidade que foi a sede do último
império em terras iorubas (BÁRBARA, 2004: 25).
Essa sacerdotisa teria voltado às terras africanas, em especial à Ketu,
acompanhada por Marcelina da Silva, conhecida por Marcelina Obatossi. Com esta
última teria viajado também sua filha Madalena que, por sua vez, teve duas crianças
na África e voltou ao Brasil grávida de uma terceira, Claudiana, que veio a ser a mãe
de uma outra ilustre sacerdotisa da Bahia, Maria Bibiana do Espírito Santo, a Mãe
Senhora, Oxum Miua.
O terreiro Omi Axé Airá Intilé que havia sido estabelecido próximo à Igreja da
Barroquinha mudou-se algumas vezes até se estabelecer na Av. Vasco da Gama
(onde está até hoje), com o nome de Ilê Ianassô, conhecido pelo nome de Casa
Branca do Engenho Velho, considerado um dos mais, se não o mais antigo terreiro
de candomblé do Brasil.
O Ilê Ianassô deu origem a dois outros grandes terreiros de nação ketu. Com
a morte de Marcelina- Obatossi, no Ilê Ianassô, Maria Julia Figueiredo foi escolhida
a nova mãe-de-santo. Uma sacerdotisa insatisfeita com esta escolha na sucessão
da liderança religiosa teria fundado o terreiro Iá Omi Axé Iamassê, o terreiro do
Gantois, no bairro da Federação.
Na sucessão seguinte do Ilê Ianassô, outra dissidência ocorreria pelas mãos
de Aninha Obabií, dando origem ao Axé Opô Afonjá, em 1910, instalado inicialmente
em São Gonçalo do Retiro e posteriormente no bairro do Rio Vermelho em Salvador,
Bahia.
Estes três grandes terreiros originários daquele primeiro instalado próximo à
Igreja da Barroquinha – a Casa Branca do Engenho Velho, o Gantois e o Axé Opô
Afonjá – dizem respeito aos terreiros de nação ketu, que tem suas origens nos
povos nagôs pertencentes ao complexo cultural dos Iorubá. E são estes três
grandes terreiros que acabarão por ser considerados o modelo de culto “tradicional”
do candomblé.
30
1.2. O(s) candomblé(s) nos dias de hoje: hibridizações e contaminações.
Tendo como referência estes três grandes modelos de terreiros ketu, os
primeiros estudos sobre candomblé no Brasil, dentre os quais citamos os de Nina
Rodrigues (1906) e Arthur Ramos (1937) afirmavam uma certa “pureza” da tradição
nagô baiana perpetuadas por estudos posteriores.
Isto acarretou uma ortodoxia nagô que se transformou em sinônimo de
candomblé, tendo a Bahia como berço de uma “africanidade”. O candomblé
transformou-se em religião “tipicamente” africana, esquecendo sua configuração
hibridamente “contaminada” desde o início dos contatos entre Brasil e África.
Segundo nos aponta Stefania Capone (2004):
De fato, uma das características mais marcantes dos estudos sobre o candomblé é
a espantosa concentração das pesquisas etnográficas em três terreiros de origem
nagô (iorubá), transformados, assim, na encarnação da tradição africana no Brasil.
São eles o Engenho Velho ou Casa Branca, considerado o primeiro terreiro de
candomblé fundado no país, o Gantois e o Axé Opô Afonjá, ambos originários do
Engenho Velho (CAPONE, 2004:16).
Prandi (1995) nos aponta que o candomblé ketu já havia tido uma influência
da nação jeje e passou a exercer grande influência sobre nação angola:
A "nação" angola, de origem banto, adotou o panteão dos orixás iorubas embora os
chame pelos nomes de seus esquecidos inquices
A nação jeje, do estado da Bahia, e a jeje-mina, do Maranhão, derivaram suas
tradições e língua ritual do ewê-fon, ou jejes, como já eram chamados pelos nagôs,
e suas entidades centrais são os voduns. As tradições rituais jejes foram muito
importantes na formação dos candomblés com predominância iorubá. (PRANDI,
1995).
Isto nos mostra que as nações não se encontram isoladas entre si. Há uma
circulação entre os modelos de cultos e suas práticas rituais. Os complexos arranjos
da ortodoxia do candomblé indicam que estes cultos não são cristalizados e imóveis
(CAPONE, 2004:28), havendo pontos de interseção que revelam a hibridização
entre eles.
Uma outra “contaminação” estava por ameaçar a “pureza” africana dos
candomblés: a umbanda ou a “macumba”. Estabelecida desde o início do século XX
no Rio de Janeiro, se espalhando, em seguida, por São Paulo e, posteriormente, por
31
vários pontos do Brasil, a umbanda foi apontada como culto “degenerado”, devido a
mistura de tradições africanas (em sua maioria de origem banta), com cultos
indígenas e o espiritismo europeu (CAPONE, 2004).
As trocas entre umbanda e candomblé começam a se intensificar a partir de
1960, quando a crescente industrialização das metrópoles do sudeste atraiu um
grande contingente da população nordestina, dentre os quais os candomblés
figuravam como prática religiosa bastante popular (PRANDI, 2001).
A partir daí, uma prática bastante comum nos candomblés atuais passou a se
dar: a iniciação de membros vindos da umbanda, o que contribuiu para a
reafirmação do candomblé como religião tradicionalmente verdadeira, “de raiz”:
Durante os anos 1960, alguma coisa surpreendente começou a acontecer. Com a
larga migração do Nordeste em busca das grandes cidades industrializadas no
Sudeste, o candomblé começou a penetrar o bem estabelecido território da
umbanda, e velhos umbandistas começaram e se iniciar no candomblé, muitos deles
abandonando os ritos da umbanda para se estabelecer como pais e mães-de-santo
das modalidades mais tradicionais de culto aos orixás. Neste movimento, a
umbanda é remetida de novo ao candomblé, sua velha e "verdadeira" raiz original,
considerada pelos novos seguidores como sendo mais misteriosa, mais forte, mais
poderosa que sua moderna e embranquecida descendente. (PRANDI, 2001: 47)
Entretanto o que era para ser a afirmação de uma “africanidade pura” ou
“tradicional” estava mais para a afirmação uma hibridização complexamente
ortodoxa, ou seu contrário, uma ortodoxia complexamente hibrida, mestiça,
“contaminada”.
A presença de idéias de origem espírita, como a reencarnação ou evolução
do espírito, ou mesmo a utilização de palavras como mediunidade e médium, para
designar aqueles que incorporam os orixás, passaram a ser bastante utilizadas
pelos praticantes do candomblé. A presença destes termos espíritas pode ser
verificada nos discursos de duas grandes mães-de-santo, Stella de Oxossi e Olga de
Alaketu, pertencentes aos terreiros considerados mais “tradicionais” do candomblé:
No candomblé o ewo ou quizila, proibições, não são coisas boas para nós, tanto
espiritual como materialmente. Mas se você rompe com as restrições, sua alma não
irá para o inferno; caso você não cumpra aquele ewo, você se atrasa
espiritualmente, você não consegue evoluir.” (Mãe Stella de Oxossi, 1994 apud
CAPONE, 2004:22).
32
[sobre a relação entre santos católicos e os orixás] “uma transposição de espíritos
em épocas diferentes [...] não um espírito qualquer, mas um espírito que seja
elevado para se tornar um orixá.” (Olga de Alaketu apud CAPONE, 2004:23)
Esta troca intensa resultou na criação da expressão umbandomblé, que,
embora nenhum terreiro se auto-identifique com ela, por seu caráter degenerativo e
corrompido, revela o alto grau de mestiçagem existente entre estes dois sistemas
religiosos afro-brasileiros de forte expressão popular (CAPONE, 2004). O que nos
leva a crer que a ortodoxia deve adaptar-se aos interesses dos atores rituais.
Antes de revelar uma degeneração da pureza africana do candomblé, o que
estas hibridizações revelam é a dinâmica cultural presente no campo religioso, no
caso do presente estudo, afro-brasileiro.
1.3. Os terreiros visitados e as imagens recolhidas.
O intuito de poder observar imagens nas diversas nações, aliado às
contingências referentes ao trabalho de campo citadas na introdução do trabalho 5
nos levou a realizar a pesquisa de campo inicialmente, em três terreiros. São eles: o
Abafá da Oxum Apará, de nação jeje; o Ilê Axé Omo Ode, de nação jeje-mahi e o
Ekanda Moxicongo Luazyde, de nação angola.
Entretanto, notamos que apesar da enorme resguardo em relação à presença
áudio-visual nos terreiros, muitos deles disponibilizavam suas imagens em sites
relacionamento e de busca na internet, dentre os quais cito o Orkut e o Google,
respectivamente. O que nos fez atentar ainda para o caráter “tradicional globalizado
contemporâneo” deste universo religioso tão complexo.
As visitas aos terreiros, no entanto, não seguiram a metodologia da
observação participante tão comum entre os estudos que nos serviram de
referências. Recolher as imagens e alguns discursos in lócu era de fundamental
importância para a pesquisa, mas não pretendíamos fazer disto uma etnografia do
terreiro. Os discursos foram registrados sob a forma de entrevista e as imagens, de
5
Muitos terreiros não deixam seus rituais serem fotografados. O fato de não ser iniciada e não professar a
religião dificultou bastante o processo de recolhimento das imagens em campo, como exposto na introdução do
trabalho.
33
fotografia digital e, em alguns terreiros, como no Ekanda Moxicongo, sob a forma
também de vídeo.
Curiosamente, os cultos encontrados nestes locais não se apresentaram tão
distintos ou distantes um dos outros como gostariam os discursos mais
“tradicionalistas” dos estudos sobre candomblé. Há o que poderíamos chamar de
uma unidade modular, isto é, um fio condutor entre eles que não os reduz a uma
forma pura, mas ao contrário abre uma gama de possibilidades mestiças que
permite a dinâmica cultural da religião.
As diferenças se apresentam em algumas maneiras de vestir, em alguns
vocábulos, mas possuem pontos de interseções que constroem uma estética ritual
bastante característica do candomblé como um sistema religioso híbrido.
Assim, nosso, diga-se de passagem, primeiro contato, com as nações jeje e
angola revelou a presença dessa órbita no qual os rituais transitavam com suas
particularidades. Apesar da familiaridade6, acadêmica e pessoal, com a nação ketu,
em momento algum nos sentimos assistindo a um ritual completamente estranho
daqueles vistos nas tradições iorubá.
Mesmo nas casas jeje, ou ainda jeje-mahi, uma outra subdivisão desta nação,
onde se dá o culto aos voduns que, como nos informou uma ekédi, são divindades
diferentes daquelas denominadas orixá, as divindades que se apresentavam
dançando era muito parecidas com estas últimas e ainda possuíam o mesmo nome.
A Oxum de ketu assemelhava-se em dança, nomes e cores com a Oxum vista em
jeje ou ainda em angola, onde se cultuam os inkices.
Longe de subtrair a legitimidade destes terreiros, como possam querer alguns
discursos religiosos, o que se percebeu foi, de fato, a enorme diversidade e
originalidade presentes neles, as quais o discurso de uma tradição “pura” não
abarcaria. Desta maneira, percebemos o quão valioso foi nossa tramitação por estes
terreiros, aparentemente tão distantes e dinamicamente tão próximos.
1.3.1. O Abafá da Oxum Apará.
6
devo lembrar a experiência pessoal da pesquisadora, familiarizada até então com a nação ketu.
34
Localizado no bairro de Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, desde 1995,
o Abafá da Oxum Apará (Casa da Oxum Apará), de nação jeje, é hoje comandado
pelo Pai Nilton, filho de santo de Jorge de Iemanjá e neto de Tata Fomutinho, um
dos responsáveis pela divulgação da nação jeje no Rio.
Este foi o primeiro terreiro visitado que conseguimos fotografar. Foram
fotografados dois rituais de iniciação: uma saída de um Ogã de Oxum (figura 1),
deusa da beleza; e uma saída de um Iaô de Logum Edé (figura 2), o orixá menino,
respectivamente em Março e Maio de 2008.
Figura 1 – Fotografia. Saída de Ogã da Oxum. Terreiro: Abafá da Oxum. Março de 2008. Fonte: arquivo da
autora.
35
Figura 2- Fotografia: Saída de Logum. Abafá da Oxum Apará, Maio de 2008. Fonte: arquivo da autora.
1.3.2. O Ilê Axé Omo Ode.
Neste segundo terreiro visitado, durante os meses de abril e maio de 2008,
fotografamos uma festa para Ogum (figura 3) , “o deus da guerra”, sincretizado com
São Jorge. Por este motivo a festa se realizou no dia 23 de abril, reservado para o
santo católico no calendário oficial. E também uma saída de Iansã (figura 4).
O Ilê Axé Omo Ode (Casa do Filho de Ode) pertence a nação jeje-mahi, sob
a liderança do Dote, pai de santo, Luís de Iansã, que é filho de Divino de Bessém. O
terreiro fica no bairro de Magalhães Bastos, também na Zona Oeste do Rio.
36
Figura 3 – Fotografia. Festa de Ogum. Ilê Axé Omo Ode. Abril de 2008. Fonte: arquivo da autora.
Figura 4 – Fotografia. Saída de Iaô de Iansã. Maio de 2008. Ilê Axé Omo Ode. Fonte: Arquivo da autora.
37
1.3.3. O Ekanda Moxicongo Luazyde.
O Ekanda Moxicongo Luazyde (Casa do Senhor do Machado) foi o terceiro
terreiro visitado. Lá acompanhamos uma saída de um Ogã de Xangô (figura 5), em
dezembro de 2008.
O terreiro, de nação angola, fica localizado em Piabetá, interior do Estado do
Rio Janeiro e é comandado pelo Pai Nei. Dentre os terreiros visitados este foi o mais
afastado da área urbana.
Pai Nei é filho de Maria de Lembá e neto de mameto (mãe-de santo na nação
angola) Mabeji, zeladora do terreiro do Bate Folha no Rio de Janeiro, um dos
primeiros terreiros aqui estabelecidos de nação angola.
Figura 5 – Saída de Ogã de Xangô. Ekanda Moxicongo Luazyde, Piabetá, RJ. Dezembro de 2008. Fonte: arquivo
da autora.
38
1.4. A família de santo – organização social dos papéis religiosos.
A noção de família está intimamente ligada à religião de culto aos orixás,
como vemos nas palavras de Verger (2002):
A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa, originária
de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria, em
princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe
garantiram um controle sobre certas forças da natureza (...) ou então assegurandolhe a possibilidade de exercer certas atividades. (VERGER, 2002:18)
Num quadro geral, as pessoas são filhas de seus orixás e esta relação é
mediada pela figura do pai ou mãe-de-santo, um zelador responsável pelo culto às
divindades, que, por sua vez, é filho de um orixá que preside o terreiro.
Estes zeladores estão no mais alto grau da escala hierárquica dentro dos
terreiros, seguidos do pai-pequeno ou mãe-pequena da casa. E é este grupo que
participa da iniciação dos fiéis que passam a ser chamados por filho. Estes filhos
são considerados irmãos de santo entre si, pois foram iniciados a partir da mesma
mãe ou pai-de-santo.
Dentro deste grupo de filhos, há aqueles que incorporam, chamados
popularmente de rodantes, e os que não incorporam, nos quais podemos incluir os
ogãs e ekédis. Estes últimos são responsáveis por cuidar do ritual enquanto os
outros estão “virados”7. Eles também auxiliam diretamente o zelador do terreiro.
O grupo das ekédis é formado por mulheres. São elas as responsáveis por
ajudar a vestir o santo, “desvirar”8 o santo, colocá-lo para dançar e conferir tarefas
aos filhos-de-santo. Já o grupo dos ogãs é formado por homens, os quais são
responsáveis pelo auxílio em vários segmentos da preparação do ritual como a
copança dos animais9, manterem a “ordem” e cuidar do terreiro, e, em especial,
tocar os atabaques e cantar para os orixás.
No quadro abaixo apresentamos a estrutura hierárquica geral de um terreiro.
7
Termo utilizado para se referir às pessoas que estão incorporadas ou manifestadas com o orixá.
Termo utilizado para se referir ao fato de chamar a pessoa de volta à consciência em seu corpo,
desincorporando o orixá.
9
Animais oferecidos em sacrifício.
8
39
Quadro 1- Estrutura hierárquica de um terreiro. Fonte: organização da autora.
A reorganização familiar permitiu a sobrevivência dos negros no Brasil. O
estabelecimento desses laços, muitas vezes mais afetivos que sanguíneos, permitiu
a reestruturação e ressignificação das crenças, costumes e valores africanos em
solo brasileiro, que propiciaram o surgimento do candomblé.
Cada filho de santo feito, possuidor de “cargo”10 de yalorixá ou babalorixá,
após o ciclo de obrigações, pode pegar o deká, autorização para abrir uma casa-desanto ou terreiro, tornando-se um novo zelador de santo. Este recém criado terreiro
fica filiado ao terreiro de origem do recém formado zelador, cujo pai ou mãe-desanto passa a ser avô ou avó dos filhos que ele vier a ter.
10
Dentro do candomblé, a pessoa já nasce predestina ao cargo de zelador de santo. Isto é visto durante o jogo de
búzio antes da iniciação e as obrigações que se seguem são feitas com o propósito de ensinar o iniciado a se
tornar o pai ou mãe-de-santo.
40
Assim, as relações que se estabelecem recriam a organização familiar
formada além do pai ou mãe, também pelos bisavós, avós, tios e assim por diante.
Esta estrutura de família-de-santo propiciou a criação de uma rede de relações de
ajuda mútua e partilha do sentido constituinte da comunidade religiosa, que terminou
por assegurar a sobrevivência e expansão do grupo.
Cada terreiro, então, possui uma história baseada nestes laços afetivos,
possuindo uma árvore genealógica religiosa que revela quem foram os
antepassados dos terreiros e quais suas origens, segundo quais tradições híbridas
eles foram fundados.
1.5. O terreiro: um território simbólico da heterotopia e da memória.
Os candomblés localizam-se espacialmente nos terreiros. É dentro deste
espaço que a maioria dos rituais é realizada, inclusive a roda do Xirê, objeto de
nosso estudo do qual falaremos mais adiante.
Ao buscar uma identificação com suas etnias originárias, o terreiro passa a
ser um espaço de articulação da memória, que se faz presente na presente nos
objetos rituais, na forma de falar, de dançar, de vestir, nos gestos que fazem parte
do cotidiano da religião, tornando-se um espaço essencialmente simbólico.
O terreiro passa a ser o lugar da eterna busca de uma origem que se perdeu e
se reconstruiu ao atravessar o Atlântico com a escravidão. São populações inteiras
que perderam seu local de origem, suas terras, suas casas, suas famílias, seus
costumes, para reconfigurá-los em um outro lugar, que começa a se construir num
lugar entre lugares, entre Brasil e África, no meio do oceano, nos porões dos navios
negreiros até aportarem nas nossas senzalas.
Para compreendermos melhor este espaço simbólico, utilizaremos duas
abordagens. A primeira, parte do conceito de heterotopia, desenvolvido por Foucault
(2002; 2006), buscando discutir as questões acerca dos posicionamentos assumidos
dentro do espaço do terreiro que divergem daqueles assumidos por seus
participantes fora deste contexto. O terreiro será visto nesta análise como um
universo micro, em relação ao universo macro do restante da sociedade na qual está
41
inserido. Isto quer dizer, relacionar nosso objeto com o entorno, observando-o como
parte de um todo.
Em seguida, recorremos aos conceitos de território no campo da geografia
cultural, utilizados por Aureanice Corrêa (2004; 2006) para analisarmos a
importância da produção de sentido na constituição do grupo em seu aspecto
cultural. Aqui focaremos o terreiro em suas relações simbólicas com um espaço
vivenciado, buscando aprofundar a visão desenvolvida anteriormente, de modo a
adentrarmos o mais que possível no espaço de nosso objeto de estudo.
Foucault (2002) utiliza o termo heterotopia, pela primeira vez, no prefácio do
livro “As palavras e as coisas”, de 1966, expressando-o desta maneira:
As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem,
porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os
emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e não somente aquela que
constrói as frases – aquela menos manifesta – que autoriza “manter juntos” (ao lado
e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. Eis porque as utopias
permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na
dimensão fundamental da fábula; as heterotopias (encontradas tão frequentemente
em Borges) dessecam o propósito, estacam as palavras nelas próprias, contestam,
desde a raiz, toda a possibilidade de gramática (...). (FOUCAULT, 2002:XIII)
Ao cunhar este conceito, o referido autor buscava problematizar a produção
de sentido levando em consideração os possíveis mundos criados na ficção pósmoderna. Podemos ver esta preocupação com a alteridade em seu texto intitulado
“Outros espaços”, publicado em 1984.
O que se revela nas heterotopias é um pensamento a respeito do espaço
fragmentado, justaposto e multifacetado típico da pós-modernidade. Para Foucault
(2006) o espaço se oferece a nós, sobretudo, como forma de relações de
posicionamentos.
Sendo o candomblé uma manifestação híbrida desde sua criação, traz em si
esta justaposição e fragmentação de culturas e mundos que encontraram num
espaço – o do terreiro – uma reconfiguração própria e bastante singular. É neste
sentido que o referido conceito foucaultiano vem auxiliar nosso entendimento deste
espaço como um lugar mestiço, miscigenado, misturado.
Segundo os escritos de Foucault (2006), as heterotopias seriam utopias
efetivamente realizadas em determinados espaços que estariam à margem das
42
sociedades. Uma espécie de nicho cultural, onde outras formas de organizações e
posicionamentos sociais são assumidas. Nas palavras do próprio autor:
Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização,
lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da
sociedade, e que são espécies de contra posicionamentos, espécies de utopias
efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros
posicionamentos reais que se podem encontrar na cultura, estão ao mesmo tempo
representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de
todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares (...)
eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias. (FOUCAULT, 167:415)
Assim, buscamos apontar para o terreiro como um espaço heterotópico, onde
estas relações de posicionamentos se estabelecem tanto entre seus próprios
membros como perante todo o resto da sociedade.
Se, em Foucault, as utopias seriam os posicionamentos que mantém com a
sociedade uma relação de analogia (FOUCAULT, 2002:414), porém sem encontrar
lugares reais onde pudessem, de fato, acontecerem; as heterotopias, ao contrário,
seriam estes os espaços realizáveis das utopias.
Olhando
o
terreiro
sob
este
prisma,
podemos
perceber
alguns
posicionamentos assumidos pelos praticantes dentro deste espaço, que diverge do
posicionamento assumido pelos mesmos personagens diante do espaço restante da
sociedade. Tais relações constituem uma linguagem, muitas vezes não-verbal,
particular, que vem contribuir para o agenciamento de significados que irão constituir
o espaço religioso como um território, como será analisado mais adiante.
Ao descrever as heterotopias, Foucault estabelece alguns princípios que
procuraremos identificar aos discursos verbais e não-verbais, presentes nas
posições de relacionamentos estabelecidas dentro do terreiro.
O primeiro, e mais geral, é que as heterotopias seriam uma constante de
qualquer grupo humano, não havendo provavelmente uma única cultura no mundo
que não se constitua delas (FOUCAULT, 1984: 416). Entretanto, elas podem ser
classificadas em dois tipos: de crise e de desvio.
1.5.1. Heterotopias de crise ou desvio
43
Nas ditas sociedades primitivas, as heterotopias seriam lugares privilegiados,
sagrados ou proibidos, onde os indivíduos se encontrariam em estado de crise, em
relação à sociedade e ao meio humano no interior do qual vivem (FOUCAULT,
1967:416).
Entende-se por crise uma desestabilidade momentânea seja do grupo ou do
indivíduo que foge a ordem cotidiana estabelecida. Tais heterotopias de crise serão
substituídas na contemporaneidade pelas de desvio, na qual se localizam indivíduos
cujo comportamento diverge em relação à média ou à norma exigida.
De qualquer modo, em ambas, o que se nota é que o espaço das heterotopias
é um espaço onde um tipo de comportamento que foge a um padrão estabelecido no
restante da sociedade no interior da qual elas se encontram pode ser assumido.
Sendo o terreiro um espaço onde se realizam os cultos às divindades
africanas e onde se processa uma série de rituais referentes à religião, é inegável o
seu aspecto sagrado e privilegiado. Mas ele é ainda o espaço daquilo que é
proibido. Desde sua origem na senzala, o terreiro se localiza dentro da sociedade,
mas, simultaneamente, à margem da mesma. Ele foi, ao longo da história da
escravidão, o espaço oculto, ilegal, reprimido pela ordem religiosa vigente, que
encontrou no hibridismo do sincretismo sua sobrevivência. Por trás da aparente
aceitação dos santos oficiais católicos, estava o culto às divindades proibidas
africanas.
Após a dissolução do regime escravista, este discurso acerca das religiões
afro-brasileiras passou a ecoar em nomenclaturas pejorativas que perduram até os
dias atuais, como o próprio termo macumba, utilizado para reduzir as diferentes e
complexas vertentes religiosas de origem africana sob o julgo de olhar ainda
colonizado judaico - cristão. O imaginário popular continua ver nossa “macumba”
como algo perigoso, onde forças ocultas atuam de maneira tão singular que
conferem poder a quem souber manipulá-las.
Além disto, não são todos os autorizados a adentrar o terreiro. Geralmente, as
pessoas são convidadas para as festas. E dentro do próprio terreiro aparecem
espaços onde somente determinadas pessoas podem adentrar. Aí está o jogo
dialético que mantém este universo religioso como um espaço sagrado, privilegiado
e, por isto mesmo, proibido. E, neste sentido, concordamos com o a primeira parte
do princípio de Foucault, descrito anteriormente.
44
O terreiro é, via de regra, o espaço onde o orixá pode manifestar-se através
do corpo de seus cavalos, os médiuns. A incorporação dos orixás é imprescindível
para que os rituais aconteçam. Isto confere a estes indivíduos uma capacidade de
adentrar um outro estado que difere tanto de outros indivíduos dentro do terreiro
quanto foge ao padrão ou norma exigida no restante da sociedade, fora do espaço
religioso.
Isto quer dizer que tal posicionamento é assumido dentro do terreiro e
dificilmente seria atingido fora dele, como podemos notar no trecho abaixo, retirado
da fala de um médium entrevistado por Daniel Halperin, em seu artigo sobre o
Tambor de Mina, no Maranhão, manifestação similar ao candomblé, que se insere
na gama de religiões afro-brasileiras de possessão:
Mas, eu sei que a há momentos em que a gente tem um estado de espírito
fantástico, maravilhoso. Eu acho que até a mediunidade, né, é uma coisa muito
profunda... E momentos de uma extrema felicidade... aquela felicidade... de, sei lá,
de uma satisfação tão sensacional que não pertence a ninguém aqui na terra. Nós
não temos essa chance em nosso estado normal, em nossa vida diária, de isso
fluir... (HALPERIN, 1998:77)
É neste sentido que concordamos com a segunda da parte da premissa de
Foucault acerca das heterotopias de crise ou desvio. O terreiro é o lugar procurado
para se curar doenças, para se rezar ou simplesmente para atingir um outro estado
de espírito ou consciência, como no caso do transe (figuras 6 e 7). De qualquer
forma, é um lugar onde os comportamentos escapam à média ou padrões do
restante da sociedade, formando um local onde indivíduos assumem outro tipo de
comportamento que possuem, por sua vez, uma outra lógica, estabelecendo um
outro padrão, típico daquele local.
45
Figura 6 – Fotografia. Indivíduos em transe no terreiro. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Figura 7 – Fotografia. Indivíduos em transe no terreiro. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
46
1.5.2. Os posicionamentos contraditórios das Heterotopias.
Um segundo aspecto da heterotopia seria que ela tem o poder de justapor em
um só lugar real, vários espaços e posicionamentos que seriam incompatíveis
(FOUCAULT, 2006: 418).
O terreiro é o espaço capaz de sobrepor dois outros espaços: o divino e o
humano. É no terreiro que “baixam” os deuses, ali eles dançam, comem, festejam,
comunicam-se. É através do homem e seu corpo que este deus pode manifestar-se.
Estes indivíduos, dentro da lógica ritual do transe encontram-se num estado tal onde
estão, ao mesmo tempo, dentro e fora do espaço do terreiro. Ao mesmo tempo em
que estes indivíduos estão dentro do terreiro, ao entrar em transe, não é mais ele
quem coordena a si mesmo, segundo a lógica da religião, mas sim o orixá. É o orixá
quem dança, através dos movimentos dos corpos de seus filhos. O orixá apresentase11.
Os deuses podem ser vistos através deste corpo que se move, que dança,
que se veste, que se adorna. O orixá enquanto figura divina, ideal, espiritual,
assume um comportamento totalmente humano, material, mundano (figura 8). Deus
e homem co-existem, dentro deste sistema. Há uma espécie de simbiose entre eles
que se dá no espaço do terreiro.
11
E neste sentido, ‘encorpora’, segundo o conceito de Viveiros de Castro (2002) visto na introdução do trabalho
(p.24).
47
Figura 8 – Fotografia. Iansã manifestada. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
O terreiro abriga, simultaneamente, tanto os médiuns como as próprias
divindades, numa relação onde é difícil determinar onde começa o espaço de um e
termina o do outro. Aqui, o próprio conceito de deus, enquanto algo transcendental,
para além do mundo real, se contradiz ao adentrar o espaço humano, o espaço do
visível, do sensível, assumindo a forma do próprio corpo. O corpo é o próprio orixá e
mais especificamente, o orixá daquela determinada pessoa, caracterizando uma
relação intensa, pessoal e intransferível entre homem e deus.
Estão ligados, portanto, de maneira justaposta, e até contraditória, deus e
iniciado, corpo e mente; consciência e não consciência; real e transcendental; sujeito
e objeto; sagrado e profano, em um jogo dialético da diferença, ou do espaço entre,
do terceiro espaço.
1.5.3. Heterotopias do tempo
48
As heterotopias estariam ligadas a recortes de tempo sob duas formas. Um
tempo que se acumula e outro que é efêmero, passageiro. Foucault cita os museus
e bibliotecas como exemplo deste tempo que se acumula infinitamente (FOUCAULT,
1984:415) e que seriam criações típicas da cultura ocidental do século XIX; e as
feiras e festas para este tempo da efemeridade.
Os posicionamentos assumidos dentro do terreiro, desde as vestes até a
língua utilizada, passando pelos objetos rituais, se ligam a este acúmulo do tempo.
Ou em outras palavras, à tradição. Tais posicionamentos expressam os costumes do
grupo que são passados de geração a geração, que, dentro do pensamento
religioso, seria imutável. Isto é, certa ação é justificável no discurso do grupo pela
própria tradição. Este tempo é regido pela narrativa mítica que funda a cosmologia
afro-brasileira.
Nos quartos de santo, dentro do terreiro, estão localizados os “santos” ou os
assentamentos12 tanto de iniciados mais recentes quanto dos mais antigos da casa,
formando uma espécie de “arquivo geral” da história do próprio terreiro e dos
iniciados que por ali passaram. O tempo acumulado nos objetos celebra e traz à
tona a memória do grupo (figura 9).
12
São os objetos que representam o orixá de cada iniciado, criados durante sua iniciação.
49
Figura 9 – Fotografia. Quarto de Exu do Ilê Axé Tajenã, Salvador, BA. Assentamento dos filhos de santo da
casa. Fonte: http://www.soniavandijck.com/candomble.htm, acessado em 15/06/2008.
Esta memória se faz presente não só nos objetos sagrados, como os
assentamentos, mas também no uso de objetos cotidianos. Há uma preferência pela
utilização de objetos que já seriam considerados ultrapassados em suas tecnologia
para que se mantenha a tradição. É o caso do uso do pilão da peneira de palha, da
folha de bananeira para servir alguns alimentos, do prato de barro, das cabaças
(figura 10) para se tomar banhos de erva, da esteira para recobrir o chão (figura 11).
Ou simplesmente de objetos corriqueiros, passados pela mãe da mãe de santo, que
foi do pai de santo dela, que ganhou, por sua vez, quando foi iniciado pela primeira
vez na religião.
50
Figura10 – Fotografia. Pratos de barro e cabaça. Fonte: Arquivo de Cláudio Zeiger.
http://www.flickr.com/photos/zeiger.
Figura 11 – Fotografia. Esteira com oferendas e vaso de barro. Fonte: Arquivo de Cláudio Zeiger.
http://www.flickr.com/photos/zeiger.
A utilização destes elementos aponta para uma necessidade de se resguardar
o tempo simbólico impregnado nestes objetos, que os ligaria a um passado comum
51
ao sistema religioso e da memória de seus participantes. São objetos que
identificam que a casa ou o terreiro é um local considerado “tradicional” pelo grupo.
Por outro lado, o espaço do terreiro também é o espaço das festas de santo.
E nestas festas ocorrem as danças que narram os mitos dos orixás através dos
movimentos. E paradoxalmente, encontramos aqui as duas formas heterotópicas de
recortes de tempo vistas em Foucault. O tempo acumulado na narrativa mítica que
conta a história ligada aos orixás, mas sob o tempo efêmero da festa, após a qual o
terreiro volta ao seu cotidiano.
1.5.4. Espaços isoláveis e penetráveis
Outro princípio heterotópico que podemos perceber presente nos terreiros de
candomblé é o fato de que elas seriam espaços isolados e penetráveis, ao mesmo
tempo (FOUCAULT; 1967). E a maneira de atingir estes espaços seria através da
obrigatoriedade ou da aceitação de seus ritos:
As heterotopias supõem sempre um sistema de abertura e fechamento que,
simultaneamente, as isola e as torna penetráveis. Em geral, não se chega a um
posicionamento heterotópico como a um moinho. Ou se é obrigado, (...) ou é preciso
se submeter a ritos e purificações. Só se pode entrar com uma certa permissão e
depois que se cumpriu certo número de gestos. (FOUCAULT; 1967:420)
Através do ritual de iniciação ou feitura-de-santo (figura 12), o iniciado é
introduzido no grupo religioso. O objetivo desta iniciação é transformação tanto
interna, espiritual e corporal13, quanto externa, nas relações sociais entre a família –
de – santo (BÁRBARA, 2004: 97). Este ritual é um ato de ligação profunda com a
religião, com o próprio terreiro e com o orixá regente daquela pessoa, funcionando
como uma espécie de aliança, que tem de ser afirmada ao longo dos anos, por meio
das chamadas obrigações. E assumir esta ligação significa aceitar os ritos e dogmas
religiosos.
13
Durante o processo de iniciação o corpo do iniciado é preparado para receber a potente força do orixá, através
de banhos de ervas, comidas, entre outros elementos que são passados literalmente no e pelo corpo do iniciado.
52
Figura 12 – Fotografia. Iaô (iniciado) sendo apresentado à comunidade após a feitura de santo. Ilê Axé Omo
Ode. Maio de 2008. Fonte: Arquivo da autora.
Entretanto, a decisão de ser feito muitas vezes independe da vontade do
indivíduo. Em alguns casos eles são “obrigados”, pois passam a sofrer distúrbios
provocados por energias que teriam que ser cuidadas dentro do terreiro, como prega
o discurso religioso. Estes distúrbios passam a interferir tão maleficamente na vida
do indivíduo que influenciam seu convívio social, de modo que o terreiro é procurado
como uma alternativa para solucionar o problema.
Percebe-se aqui uma clara distinção entre o espaço real da sociedade e o
espaço do terreiro que nos leva ao primeiro princípio das heterotopias: lugares
sagrados ou privilegiados que receberiam indivíduos em estado de crise ou
comportamento de desvio. O lugar por excelência onde estas energias ocultas
devem ser manipuladas, seguindo a lógica religiosa, é o espaço do terreiro e não
fora dele. Isto afirma o poder da própria religião e de seu espaço constituinte, que se
distingue do espaço da rua, o espaço da sociedade, do trabalho, do profano.
Assim, o terreiro como espaço heterotópico pode ser isolável à medida que a
própria comunidade religiosa o reconhece como um espaço distinto, sagrado,
privilegiado, que difere do espaço ao seu redor, do qual ele também faz parte. E
penetrável, após a aceitação de suas regras internas, expressas em seus ritos
53
fundamentais, por aqueles que pretendem adentrá-lo, seja por vontade própria ou
por obrigação para solucionar algum problema ou atingir um outro estado de ser.
1.5.5. Heterotopias de compensação
Um último traço da heterotopia que podemos discutir é o fato de que elas
possuem uma função em relação ao espaço restante da sociedade, que se
estabelece entre os extremos da ilusão e da compensação:
Ou elas têm o papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório
ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida
humana é compartimentalizada. (...). Ou, pelo contrário, criando um outro espaço,
um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem- arrumado quanto o
nosso é desorganizado, mal- disposto e confuso. Isso seria a heterotopia não da
ilusão, mas da compensação (...). (FOUCAULT; 1967:421)
Essa última característica, de compensação, talvez se aplique às religiões de
uma maneira geral, uma vez que estabelecem um espaço perfeito, um espaço da
harmonia, onde cada coisa está em seu lugar, corretamente posicionada, arranjada
meticulosamente. Indo na ordem inversa do espaço restante da sociedade, no qual a
realidade desordenada e confusa nos levaria ao caos.
Os posicionamentos assumidos dentro do terreiro de candomblé têm de
serem os mais perfeitos possíveis, seja no tratamento, na vestimenta ou no próprio
falar. Há uma ética a ser seguida dentro deste espaço que gerencia o
comportamento do grupo. O que pode ser visto em gestos como bater cabeça14 para
alguém mais velho, por exemplo.
Este respeito aos mais velhos é muito empregado no candomblé. Eles são as
fontes de memória, através deles os conhecimentos são passados, já que estamos
tratando de uma cultura essencialmente oral15. Comportamento este que diverge
bastante do restante da sociedade na qual o terreiro se insere, onde os mais velhos
são desvalorizados por não terem mais serventia dentro da lógica de produção
capitalista.
14
Ato de reverência ao pai ou mãe de santo ou a uma pessoa mais velha de santo, ou seja, que já possui mais
tempo de iniciado na religião
15
Embora hoje já se encontre bastante literatura sobre o tema no próprio comércio especializado em artigos de
umbanda e candomblé.
54
Neste sentido o terreiro seria uma heterotopia de compensação por procurar
abarcar dentro dele estes posicionamentos organizados e arranjados tão
meticulosamente que chegam a flertar com a perfeição. A busca por esta excelência
muitas vezes vistas na exuberância dos rituais diferencia-se da desordem no espaço
comum do restante da sociedade. Se o mundo fora do terreiro é caótico, dentro dele
tudo deve estar em harmonia. E isto faz sentido já que este é um espaço do
sagrado.
O terreiro, portanto, é um espaço no qual formas utópicas acerca de
relacionamentos, comportamentos, origem e espaço-tempo se manifestam sob a
forma da heterotopia, configurando um espaço à margem, um lugar “entre”.
1.5.6. O terreiro como território.
O terreiro enquanto espaço da heterotopia aponta para posicionamentos
assumidos por certos indivíduos dentro de um determinado espaço que fazem com
que este se diferencie do espaço comum ao restante da sociedade, configurando
uma espécie de nicho social. Tais posicionamentos circunscrevem o universo
simbólico com o qual o grupo opera no espaço.
Para que possamos analisar estas relações simbólicas vivenciadas no espaço
do terreiro em suas dimensões sócio-culturais, recorreremos aos conceitos de
território, paisagem conivente e geossímbolo, sob a ótica da geografia cultural. Esta
abordagem nos permitirá uma análise socioespacial do nosso objeto de estudo por
meio de sua produção material e imaterial.
Para tanto, partimos de uma análise do terreiro por seu arranjo espacial e o
significado atribuído a ele pelo grupo social que o constrói sob uma imaginação
geográfica (CORREA, 2006: 53).
Na relação do homem com seu meio, a cultura surgiria como o fruto e a
totalidade dos produtos humanos, sejam eles de ordem material – que permitiriam
ao homem modificar seu ambiente físico – ou imaterial – simbólico, com os quais o
homem interfere e vivencia o espaço. O arranjo espacial do terreiro aponta para uma
paisagem conivente. Isto é, marcada por signos e significados que semiografam no
espaço os limites do território. (CORRÊA, 2006).
55
O conceito de território móvel (MAIER, 1975 apud CORRÊA, 2006: 53),
embasado na teoria de Jung sobre o inconsciente coletivo, aponta para este fluxo de
produção simbólica que se materializará na espacialidade do terreiro-território
(CORRÊA, 2006).
Os escravos que aqui chegavam haviam perdido seus territórios, suas
famílias, seus lares, sua liberdade. Mas havia um elemento muito sutil que nenhum
senhor branco jamais poderia lhes tomar: a memória. É através dela que a produção
simbólica afro-brasileira irá se constituir. Rememorando o território de origem, o
africano pode ser transpor e ressignificar seu espaço, criando um novo espaço
híbrido afro-brasileiro.
O território móvel se realiza, neste sentido, na produção e transposição de
símbolos, calcados na capacidade humana de imaginar e criar, tendo a memória
como suporte, e que irá (de)marcar no espaço o desenvolvimento material e
imaterial do homem. Nas palavras de Aureanice Corrêa (2006):
Neste sentido, o território móvel ou que é transposto realiza-se através da produção
de símbolos que são portadores da vida em si mesmos, e os símbolos, ao marcarem
no espaço o desenvolvimento do comportamento territorial humano, podem ser
considerados uma forma de produção do controle sobre o ambiente pela ação dos
homens. (CORRÊA, 2006:54.)
Os
lugares
e
itinerários
percorridos
pelos
seres
humanos
estariam
representados através dos geossímbolos (BONNEMAISON, 2002 apud CORRÊA,
2006: 54):
O geossímbolo pode ser um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões
religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas ou grupos étnicos
assume uma dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade.
(BONNEMAISON, 2002: 99-109)
São os geossímbolos que irão construir os territórios ao serem capazes de
semiografar, isto é, representar por signos, as identidades. Eles funcionam como
“uma verificação terrestre dos mitos que são ao mesmo tempo fonte do poder
cósmico e fundamento da organização social” (CORRÊA, 2006:54). São, nesta
medida, representações das concepções de mundo do homem, dizem da maneira
como este homem se posiciona no mundo, suas ações, suas relações, impressas
em marcas no tempo e no espaço, que delineiam sua identidade. Daí a importância
de se analisar esta produção simbólica, uma vez que ela fundamenta a organização
56
social e os significados que as ações assumem dentro do grupo, legando sua
dimensão cultural.
Como exemplo de geossímbolo, podemos apontar a construção do barracão,
que demarca a identidade deste território, rememorando a realeza africana,
lembrada ainda pelo uso do adè (Figura 13), uma espécie de coroa usada pelos
orixás incorporados.
Figura 13 – Fotografia. Adé de Oxum. Ilê Axé Omo Ode. Junho de 2008. Fonte: Arquivo da autora.
Para Corrêa (2006), o barracão aparece como um geossímbolo que
ressignifica o palácio real da cidade-reino iorubana. O palácio real conferia a cidadereino o mais alto grau na hierarquia urbana na prática cultural iorubá, conferindo-lhe
uma centralidade em relação a outras cidades, por ser de propriedade e ocupado
pelo rei que mantinha uma relação de simbiose com o deus protetor da cidade16. O
barracão enquanto um geossímbolo deste palácio real se inscreve na mesma lógica
de atributo de uma centralidade dentro da paisagem conivente do terreiro-território.
16
Como vimos no início do capítulo, cada etnia, em África, cultuava uma entidade distinta. O culto a diversos
orixás dentro de um mesmo espaço se deu em solo brasileiro.
57
Ele é o principal local dentro desta paisagem, onde os orixás dançam e recebem
oferendas, onde o ritual torna-se público (CORRÊA, 2006:56).
O adé é apontado como uma estratégia do africano para reconstruir o
domínio de seu novo território (CORRÊA, 2006: 57). Este tipo de adorno era
ostentado pelo rei iorubá quando se apresentava em público nas cidades-reinos,
para demarcar sua condição social, política e religiosa, superior aos demais.
Assim, de acordo com Corrêa (2004; 2006), partindo da imaginação
geográfica e do significado atribuído ao espaço bem como as ações vivenciadas no
mesmo, articulados pela memória e engendrados no corpo, os escravos que aqui
chegaram puderam demarcar seu território, o terreiro, em uma recomposição do
reino governado pelo rei/ orixá, criando uma cultura própria.
O espaço é delimitado através da produção simbólica que permite àqueles
que a vivenciam reconheçam seu significado e, ao que estão fora, apreciem apenas
suas formas exóticas ou diferenciadas, afirmando a identidade, em dimensões
religiosas, culturais, sociais e políticas do grupo (CORRÊA, 2006):
Uma estratégia/territorialidade para controle e domínio do território que os filhos-desanto conservam e, caso o indivíduo não pertença ao candomblé, esse observa
apenas o luxo ou exotismo da vestimenta e do edifício, desconhecendo o significado
e a importância que essas ações e esses objetos encerraram/encerram para o
processo de recomposição étnica, política, social e religiosa, operado no passado, e
para a permanência de sua identidade no presente. (CORRÊA, 2006:57)
O terreiro é, portanto, um ponto central para que possamos entender o
candomblé em sua pratica cultural, já que é nele que esta se processa. Ao mesmo
tempo em que mantém um vínculo com a sociedade global, pois seus membros
deslocam-se, circulam, trabalham, o terreiro concentra e expressa estruturas e
comportamentos próprios, formando o que Juana Elbein dos Santos (2002) irá
chamar de comunidade flutuante. Por sua vez, os limites desta comunidade serão
demarcados por seus códigos simbólicos, revelados somente àqueles que o
vivenciam e reconhecem seus significados.
O terreiro dá forma à comunidade religiosa como um território heterotópico –
comunidade flutuante- demarcado espacialmente por geossímbolos – códigos
simbólicos –, que semiografam no espaço o território cultural, fazendo emergir o
caráter dinâmico da cultura, através da capacidade humana de criar, imaginar,
mediada pela memória (CORRÊA, 2006).
58
2.
O CORPO – UM LUGAR ONDE SE MOSTRA O SENTIDO
Segundo Rosamaria Bárbara (2004), a experiência corporal seria o ponto de
partida para analisar a participação humana no mundo cultural. Connerton (1993)
nos diz ainda que é através da natureza corporizada da existência social que
elaboramos metáforas pelas quais pensamos e vivemos.
As práticas corporais desenvolvem uma memória cognitiva, um conhecimento
através do corpo e ao cultivá-lo é o nosso corpo que compreende. Através dos
sentidos do aparato corporal, os costumes são interiorizados e re-transmitidos,
construindo saberes, que atuam como redes de perspectivas de mundo. Este saber
passa necessariamente pelo sentir, pela presença do homem no mundo e sua
relação com o meio em que vive.
Nesse contexto, é pela capacidade de sentir e estabelecer relações consigo
mesmo, com o mundo e com o outro que podemos conhecer:
O corpo é, por excelência o modo de ser do homem no mundo, modo peculiar de
quem está-no-mundo-para-alguma-coisa, ser práxico, sinal de um projeto,
intencionalidade operante, vocação de abertura ao outro, coexistência de
consciências engajadas, instauradas sobre o solo originário da percepção, animado
pelo desejo, mediado pelo simbólico e pelo trabalho, singular possibilidade de
ascensão do mundo humano ao mais humano. (MERLEAU- PONTY, 1999)
No percurso mítico-religioso da construção de saber e da memória no
candomblé, não è o corpo- objeto que fala, mas um corpo vivo, que sente, que
posiciona o homem no mundo. Um corpo que articula memória, que è fundamento
da nossa inserção no mundo da cultura e ponto de partida da nossa experiência
enquanto seres humanos (BÁRBARA, 2004).
É por meio da organização corporal que o conhecimento se dá no candomblé
(BÁRBARA: 2004). A reorganização do e com corpo permite que as emoções e
sensações experimentadas passem a agir como um registro, uma forma de escrever
e inscrever no corpo e com o corpo, criando uma palavra corpórea, uma linguagem.
A palavra corpórea permite celebrar as narrativas míticas, que pode ser
relembrada, construindo a memória, transmitido saberes, ensinando costumes e
regras intrínsecas ao grupo. Para Lunhing (2001), esta seria uma maneira de
59
“escrita”, embora não com símbolos gráficos, mas uma escrita com o próprio corpo,
que seria típica das culturas afro-brasileiras e, mais especificamente das culturas
populares, marcadas pela oralidade.
2.1. O corpo e a comunicação entre homens e orixás.
Segundo a cosmovisão nagô, o mundo seria composto de duas partes, o
orum, o céu ou o mundo dos orixás, e o aiê, a terra, o mundo dos seres humanos.
No entanto, no princípio de tudo, estes dois mundos formavam um só, que vieram a
se separar por causa de uma proibição não respeitada:
Em uma época antiga, quando o orum o “incognoscível”, limitava-se diretamente com o
aiyé, o 'mundo', um ser humano tocou indevidamente o orum com mãos sujas, o que
provocou a irritação de Olorum, entidade suprema. Este soprou, interpondo seu
òfurufu, hálito divino, que, transformando-se em atmosfera, constituiu o sánmos, ou
céu. (SANTOS: 1977: 55)
Com o orum separado do aiê, os seres humanos não podiam mais ir ao orum
visitar os orixás e nem estes poderiam vir a terra visitar os humanos, como faziam
antes. As divindades ressentiram-se de saudades. E a solução encontrada para que
homens e orixás pudessem se reencontrar estava no corpo:
Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia ir ao
Orum e retornar de lá com vida. E os orixás também não poderiam vir a terra com
seus corpos. Agora havia o mundo dos homens e dos orixás, separados.
Isolados dos humanos habitantes do Aiê, as divindades entristeceram. Os orixás
tinham saudades de suas peripécias entre os humanos e andavam tristes e
amuados. Foram queixar-se com Olodumare, que acabou consentindo que os
orixás, vez por outra, retornassem à Terra.
Para isso, entretanto, teriam que tomar o corpo material de seus devotos. Foi a
condição imposta por Olodumare. (PRANDI, 200:526)
Para Verger (2002), o orixá, um ancestral divinizado, seria:
[...] uma força pura, axé imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos
incorporando-se em um deles. Esse ser escolhido, o possuído pelo orixá, um de
seus descendentes, é chamado seu elegum, aquele que tem o privilegio de ser "
montado", gùn, por ele. Torna-se o veículo que permite ao orixá voltar à terra para
saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram.
(VERGER, 2002:19)
60
Prandi (2000) diz ainda que Olodumare deu aos orixás a incumbência de criar
e governar o mundo, ficando cada um deles responsável por alguns aspectos da
natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humanas. Cada
pessoa é filha de um orixá, do qual herda características físicas, psicológicas e
místicas. São eles que regem os acontecimentos da vida de seus filhos, sob uma
lógica harmônica entre as pessoas e os seus destinos ou caminhos.
Há uma continuidade existente entre o mundo dos homens e mundo dos
deuses, que se fundem materialmente no corpo. Encontram-se como partes
interligadas de um todo o divino e o humano, o sagrado e o profano, o material e o
imaterial, ou aquilo que algumas religiões e correntes filosóficas chamarão de corpo
e espírito ou alma.
O axé é força imaterial, uma energia sagrada que flui em todas as coisas,
plantas, animais, seres humanos (BÁRBARA, 2004: 39). Os ritos servem para
adquirir, manter, transpor e acrescentar o axé, posto em equilíbrio e emanado pelos
orixás ao dançarem durante o Xirê.
Embora atualmente possamos apontar para o crescente acervo literário sobre
o candomblé, ele permanece ainda como uma religião bastante marcada pela
tradição oral em suas práticas rituais. Os ensinamentos religiosos são passados
pelos “mais velhos de santo”, à medida que vão se galgando os degraus de
aprendizagem em cada obrigação, como são chamados os rituais do ciclo de
iniciação.
Os processos ritualísticos são calcados no corpo e suas percepções, levando
à construção gradual de um conhecimento, por sua vez, calcado na experiência
corporal. O corpo é vivido como divino, como sagrado, em comunicação contínua
com os deuses, a natureza e os próprios homens (BÁRBARA, 2004).
No cotidiano, o corpo assume posturas específicas de tratamento e
comportamento dentro da família- de- santo. Não é só na esfera divina que o corpo
se apresenta como um elemento fundamental. No dia-a-dia religioso é através dele
que os fiéis se comunicam entre si.
Há toda uma gama de posturas pertinentes ao grupo que deve ser aprendida.
Dentre elas citamos o “bater cabeça” (figura 14) para saudar o pai ou mãe-de-santo
ou mesmo o orixá, uma saudação que demonstra respeito e humildade diante de um
mais velho ou de algo sagrado. Esta postura humilde e respeitosa também deve ser
adotada por aqueles não iniciados, os abiãs. Um processo de aprendizagem corpo-
61
crença, que revela um conhecimento encarnado, interiorizados por aqueles que
integram o grupo.
Figura 14 – Fotografia. Batendo cabeça. Saudação em sinal de respeito. Fonte: arquivo da autora.
Como toda prática religiosa, o candomblé revela sua dimensão cultural, que
leva a posturas e comportamentos característicos do grupo. Não comer
determinados alimentos, resguardar-se do sexo e de bebidas alcoólicas em alguns
dias, não adentrar certos lugares, vestir branco em datas previstas, revelam um
cuidado e cultivo ao corpo que aponta para a continuidade do sagrado na vida
cotidiana dos fieis.
Para Bourdieu (1977) a sociedade imbui o corpo de princípios fundamentais
da cultura através de meios sutis, como trajes, comportamentos verbais, corporais,
etc. No entanto, estes princípios não são incorporados conscientemente, mas
através de um esquema prático de percepção e apreciação que existe em um nível
infra-linguístico, que o autor em tela chamará de habitus.
Nada parece ser menos inefável, menos incomunicável, menos inimitável e, por
isso, mais precioso que os valore transmitidos ao corpo, feitos corpo pela
transubstanciação adquirida pela persuasão escondida de uma pedagogia implícita,
capaz de insuflar toda uma cosmologia, uma ética, uma metafísica, uma filosofia
62
política, através de mandamentos insignificantes como fique em pé’, ou ‘não pegue
a faca com a mão esquerda’ (BOURDIEU, 1987:94)
Assim, o corpo também pode ser apontado como um corpo coletivo, social,
no e com o qual são inscritos as leis e comportamentos referentes ao grupo. O corpo
é marcado, carimbado, criando cicatrizes que revelam uma memória pessoal e
social, tornando-se o lócus em que se inscreve e são manifestadas várias
dimensões da vida.
No candomblé, este corpo além de adornado e ensinado é literalmente
marcado com cicatrizes, as chamadas curas, incisões feitas durante a iniciação.
Estas incisões funcionam como uma aliança entre o orixá e o iniciado, identificandoo ao grupo ao qual pertence.
A sabedoria é armazenada e enraizada corporalmente ao longo de um
processo que se passa no e com o corpo. Às danças de transe são uma síntese
deste processo religioso. Após ser cuidado, preparado, adornado e sacralizado, o
corpo está pronto para se por em movimento na forma de orixá.
Os orixás são chamados á incorporação por meio do canto e da dança. Os
deuses incorporados são adornados e vestidos para dançarem enquanto seus fiéis
cantam em sua homenagem.
Segundo Roger Bastide (2001), as danças dos orixás evocam e recriam
episódios míticos, são fragmentos de episódios da história desses deuses. Outros
pesquisadores das religiões afro-brasileiras, como Nina Rodrigues (1935), Pierre
Verger (2002) e Raul Lody (2001) relatam a centralidade da dança e atribuem a ela
o caráter de narrativa. Gisele Cossard (2007) dirá que a dança reproduz em
movimentos e gestos a história e os feitos dos Orixás cultuados pela comunidade.
O caráter comunicativo do corpo aparece também na dança ritual. Esta
comunicação se dá através de elementos visuais e sonoros que seguem um padrão
estético próprio ao candomblé. Estes elementos criam uma espécie de imagem total,
composta pela curas, pelos trajes litúrgicos, pelas danças e pela música, que agem
diretamente sobre os sentidos e através deles comunicam, celebrando saberes e
memórias.
O corpo, neste sentido, não se inscreve sob a ótica pragmática das
dicotomias entre sujeito- objeto, razão- emoção, ou um sujeito-objeto. Mas se
configura como uma experiência sensorial total, sinestésica, participando da
63
cognição e percepção com as quais o homem elabora conceitos que agem no
universo simbólico.
Não se pode considerar o corpo só como um texto, a ser lido e analisado, pois tal
postura subtrai do corpo seus odores, tactos, texturas, gostos, e, em poucas
palavras, sua sensualidade, ponto fundamental de sua experiência no mundo. Não
existe, assim, a separação corpo-mente, mas antes sua união numa experiência
total (BARBARA, 2002:60).
O corpo que dança, canta, comunica e se adorna é percebido por todos os
sentidos corporais, tanto daqueles que incorporam quanto daqueles que recebem o
axé dos deuses encarnados que se movimentam no espaço. Uma sinestesia através
da qual se dá o conhecimento.
2.2. A preparação do corpo – incorporando sensações.
Para que o corpo no candomblé possa comunicar através das danças dos
orixás ele deve ser preparado como um lugar sagrado. Assim como se prepara o
espaço do terreiro para que ocorram os rituais, o corpo também precisa de cuidados
especiais para abarcar esta experiência sinestésica religiosa.
A preparação do corpo funciona como uma aprendizagem para estes
comportamentos sociais dentro do candomblé. A iniciação é o começo de uma longa
caminhada para se penetrar nos mistérios e saberes do candomblé.
Não são só os iniciados quem podem “receber santo”, ou incorporar o orixá.
Alguns abiãs também o fazem. Entretanto, é somente depois da iniciação que o
orixá fica “firme”, isto é, quando ele chega da maneira como lhe foi ensinado. Por
isto a iniciação é uma etapa importante para que a incorporação aconteça de
maneira adequada e para que o orixá possa dançar e se expressar durante o Xirê
(BÁRBARA, 2004).
No candomblé o conhecimento é construído empiricamente, através da
vivência das sensações corporais nos rituais. Esta experiência constrói um
conhecimento tanto religioso/espiritual – a ligação com os deuses regentes de cada
pessoa – quanto social/ humano – as maneiras de se relacionar dentro do grupo.
64
A capacidade sensível corporal amplia o campo da percepção. É sentindo
que se percebe a presença dos deuses; é sentindo que se recebe axé; é sentindo
que se aprendem maneiras de ser e de saber dentro do grupo. É pela capacidade de
sentir com este corpo individual e coletivo que o sentido se mostra. Um corpo
individual, pois trata de uma experiência pessoal e intransferível, e coletivo porque
abarca percepção e posturas construídas coletivamente.
Merleau – Ponty (2000) diz que é através da experiência sensível, advinda
dos sentidos localizados no corpo, que o homem pode conhecer as coisas. O
homem não é visto como um ser dividido entre sujeito (eu/ mente) e objeto (corpo/
coisas externas), como afirmava o pensamento socrático- platônico- cartesiano, mas
como uma unidade capaz de conferir sentido às coisas através da percepção. Nas
palavras do próprio autor:
[...] Tenho consciência do meu corpo como de uma potência indivisa e sistemática
de organizar certos desenvolvimentos de aparência perceptiva. [...] Eu organizo
com meu corpo uma compreensão de mundo, e a relação com o meu corpo não é a
de Eu puro que teria sucessivamente dois objetos, o meu corpo e a coisa, mas
habito o meu corpo e por ele habito as coisas. A coisa me aparece assim como um
momento da unidade carnal de meu corpo, como encravada em seu
funcionamento. O corpo aparece não só como o acompanhante exterior das coisas,
mas como o campo onde se localizam as sensações. (MERLEAU- PONTY,
2000:122)
Através desta capacidade de sentir com o corpo, o homem confere sentido às
coisas e ao mundo. Mas este sentir não se instaura somente no âmbito da
admiração ou contemplação, mas emerge como um exercício de reflexão. Em
contraposição a idéia de que haveria uma consciência pensante, como afirmava
Descartes (1988), ou uma alma capaz de sentir, para Merleau-Ponty (2000), sujeito
e objeto estariam paradoxalmente localizados no corpo. E o sujeito só se torna
sujeito quando é posto em relação com o mundo, sentindo-o, tocando-o,
vivenciando-o.
Assim, eu me toco tocando, realizo uma espécie de reflexão, de cogito, de
apreensão de si por si. Em outras palavras meu corpo torna-se sujeito: ele sente.
Mas trata-se de um sujeito que ocupa espaço, que se comunica consigo mesmo
interiormente, como se o espaço se pusesse a conhecer-se interiormente. Desse
ponto de vista, é certo que a coisa faz parte do meu corpo. Há entre eles uma
relação de co-presença. O meu corpo aparece como “excitável”, como “capacidade
de sentir”, como “uma coisa que sente”. [...] O meu corpo é simultaneamente sujeito
e objeto. (MERLAU-PONTY, 2000:123)
65
O corpo como uma totalidade (sujeito+objeto) coloca o homem em interação
com o mundo. O homem percebe e é percebido, relacionando-se não só com
consigo mesmo, mas com outros corpos. E desta interação surge o conhecimento
como uma rede de perspectivas. E destas perspectivas, novas possibilidades de
mundos.
[...] cada percepção é mutável e somente provável; isto, se quisermos, não passa
de uma opinião; mas o que não o é, o que cada percepção mesmo falsa significa é
a pertença de cada experiência ao mesmo mundo, seu poder igual de manifestá-lo,
a título de possibilidades do mesmo mundo.” (MERLEAU-PONTY, 1995:49)
A experiência corporal dentro do candomblé desvela estas redes de
perspectiva de mundo. A possessão pelo orixá, as curas, os trajes rituais, as
posturas aprendidas nas práticas religiosas desencadeiam práticas culturais que
circunscrevem a dimensão cognitiva do grupo.
O corpo surge, nesta perspectiva, como estrutura original, como modo de ser
do homem no mundo, veículo de intenções, de ações e interações. Corpo enraizado
no espaço como uma experiência vivida, dinâmica, animado pelos afetos, pela
sensibilidade motora e perceptiva com a qual o homem se abre ao mundo e aos
outros.
2.2.1. Receber o santo – primeiras sensações.
“A gente sente o orixá, minha filha”, disse um pai de santo durante uma das
entrevistas. A incorporação, como muitos outros assuntos dentro do terreiro, é
cercada de muito mistério e segredo. Geralmente, os relatos são de que aqueles
que incorporam, de nada se lembram ou lembram muito pouco sobre o momento do
transe (HALPERIN, 1998).
Entretanto, o momento que antecede a incorporação pelo orixá, é sempre
relatado como um conjunto de sensações que se processam no corpo. Calafrios,
tremedeiras, suores, fazem parte da aproximação do orixá ao corpo de seu cavalo, o
chamado barra-vento, como costuma dizer o povo de santo.
Outro vocabulário, utilizado também pela Umbanda, chama este processo de
Irradiação. Na irradiação, já há a perda momentânea de consciência, mas o orixá
66
ainda não tomou conta por completo do corpo de seu filho. É uma fase intermediária
entre a vibração ou barra-vento e o transe ou incorporação (HALPERIN, 1998).
É muito comum ouvirmos as pessoas dizerem que passam mal quando
entram em terreiros ou ainda que são levadas a entrar para a religião por motivo de
saúde ou doença, como foi o caso de Pai Nilton, do Abaffá da Oxum Apará:
Eu passava muito mal quando era criança, vivia doente! E era umas doenças ruins,
difíceis de curar. Aí, a coisa foi ficando feia, eu comecei a ter uns desmaios e não
havia médico que descobrisse o que era! Aí, tinha uma velha rezadeira que falou
pra minha mãe: o problema desse menino é santo! Esse menino é do Omolu e não
vai ter meio de salvar ele se o santo num quiser. Aí, não teve jeito, minha mãe
procurou um terreiro e assim que eu cheguei lá já deitei pra raspar! (Pai Nilton,
2008)
Dentro da lógica religiosa do candomblé, qualquer pessoa está suscetível a
receber o santo ou experimentar estas sensações dentro do terreiro, não estando
presa a um grupo religioso ou étnico específico. Acredita-se que seja o orixá quem
escolhe seu filho, desde o nascimento e o acompanha para o resto da vida.
Alguns abiãs, por exemplo, já manifestam a incorporação de seus orixás,
embora ainda não tenham sido iniciados. Quando o orixá vem nestes membros do
grupo, é considerado um orixá bruto (BÁRBARA, 2004), pois ainda não passou
pelos processos iniciatórios que firmam os laços entre ele e seu filho.
Desta maneira, ao manifestar esta pré-disposição para “receber” o santo em
seus corpos, os abiãs, são convocados pelo orixá em um determinado momento
para serem feitos, ou seja, iniciados e tornarem-se iaôs (noivos ou noivas do orixá).
Ao ser iniciado orixá e indivíduo passarão por uma série de ritos que os modificarão
e estreitarão os laços religiosos, afetivos e corporais entre eles, fazendo com que a
incorporação fique “firme”.
2.2.2.Feitura de santo – nasce um novo orixá.
O processo iniciático, ou feitura-de-santo, como é chamado por muitos é um
dos rituais mais secretos do candomblé. As pessoas recém iniciadas são
aconselhadas a não falar sobre ele e aquelas mais velhas revelam apenas
informações gerais. O que assegura que o conhecimento sobre este processo, como
67
sobre maioria dos outros ritos de candomblé, se dá unicamente através da
experiência, pessoal e intransferível.
O ritual de feitura dura aproximadamente trinta dias corridos. Na primeira
semana o abiã ainda convive com outros irmãos de santo. Nestes primeiros sete
dias são feitos os banhos de ervas e os ebós, que servem para purificar o corpo,
limpá-lo e livrá-lo das coisas ruins, preparando- o para receber a energia sagrada do
orixá daí por diante.
Na semana seguinte, com o corpo limpo, o abiã adentrará o roncó, um lugar
reservado do terreiro, onde só podem entrar aqueles mais velhos que participarão
da feitura do novo santo. O abiã, agora chamado de iaô, permanecerá por vinte e
um dias corridos, nos quais ocorrerão os rituais secretos que farão com que um
novo orixá nasça dentro do terreiro.
Neste período o iaô ficará “recolhido” dentro do roncó. Privado do convívio
social com seus irmãos de santo, o corpo do iaô passará por modificações físicas,
mentais e emocionais que fazem parte do processo de aprendizagem ritual. O
cabelo é raspado, são feitas incisões em algumas partes do corpo – as curas –, só
podem ser usadas roupas brancas, deve-se comer de colher e deitar somente em
esteira de palha, dentre outras restrições.
Também é durante este período reservado que o orixá será “ensinado a
dançar”, a chamada queima de efún. Ao menos uma vez ao dia o orixá incorporado
sai na sala para dançar, acompanhado pelos seus iniciadores, sem, no entanto, ser
exposto a comunidade religiosa (VERGER 2002).
Segundo uma de nossas entrevistadas, o orixá deve ser ensinado nos modos
humanos, já que ele não pertence a este mundo, para ficar bonito, para ter postura.
O que revela a preocupação estética do ritual.
“O orixá ele é um ser superior, né? Então, ele sabe tudo! Mas ele tem que ser
ensinado nos modos aqui da gente. Então, muitas vezes, ele já sabe dançar, mas o
que acontece é que ele tem que ter alguém pra guiar ele, porque ele não pertence
ao Aiê [terra], ele pertence ao Orum [reino dos Orixás], então, ele vem aqui nos dar
axé, mas ele é de outro lugar. Por isso, quando um orixá nasce, a gente vai dando
pra ele postura, pra não ficar feio, né? Imagina um Orixá todo torto que não sabe
dançar direito, ah num pode não... (rss). Tem que ficar tudo bonito pra festa. Tem
que ficar tudo bonito porque orixá não gosta de feiúra não, de coisa mal feita, não
gosta mesmo, ele gosta das coisas boas, de ver que seus filhos estão agradando
17
eles.” (Dona Marina, 2008)
17
Ver entrevistas em Anexo.
68
Ao final destes processos iniciatórios, no vigésimo primeiro dia, um novo orixá
nasce no terreiro e é apresentado à comunidade religiosa durante a saída-de-santo.
Ele será apresentado à sociedade em três momentos:
I - A primeira saída – vestido e pintado de branco, onde baterá o paó, palmas,
para saudar o terreiro, os orixás e os mais velhos. (figura 15)
II - a segunda saída – com a cabeça pintada de azul e após dar uma volta no
barracão, o orixá profere seu nome. Nasce um novo orixá (figura 16)
III - a terceira saída ou rum – na terceira saída o orixá toma rum e é saudade
pela comunidade em sua dança sagrada. (figura 17)
Figura 15 – Fotografia. Primeira saída do Iaô. Ilê Omo Ode. Maio de 2008. Fonte: arquivo da autora.
69
Figura 16 – Fotografia. Segunda saída do Iaô. Ilê Omo Ode. Maio de 2008. Fonte: arquivo da autora.
Figura 17– Fotografia: orixá tomando rum, dançando. Ilê Omo Ode. Maio de 2008. Fonte: arquivo da autora.
70
O orixá é coletivo e individual, simultaneamente. Coletivo porque rege e
protege a todos; e individual porque, durante a saída, profere um nome único e
secreto que o liga aquele iaô que acaba de ser feito. Por isso, a cada feitura, pode
ser dizer que surge um novo orixá, em um novo corpo.
A partir daí, através deste novo corpo, os laços entre iaô e a religião se
estreitarão cada vez mais conforme forem dadas as obrigações. O ciclo de
obrigações dura sete anos, período no qual o iaô torna-se um ebômi, sendo-lha
facultado o direito de abrir seus próprio terreiro.
2.2.3. Erê: as primeiras aprendizagens corporais.
Durante o período de reclusão na feitura-de-santo, os iaôs passam a maior
parte do tempo incorporados. No entanto, como a incorporação do orixá costuma
deixar o filho-de-santo muito cansado, uma outra incorporação auxilia no momento
da feitura: o estado de erê (figura 18).
71
Figura 18 – Fotografia. Iaôs em estado de erê no Ekanda Moxicongo Luazyde, Piabetá, RJ. Dezembro de 2008.
Fonte: arquivo da autora.
O erê é uma entidade infantil que possui uma ligação direta com o orixá dono
da cabeça18 daquele que está sendo iniciado. Possui comportamento e falas
infantilizados, como fosse um orixá criança e seus nomes geralmente são em
português, diferente dos nomes dos orixás. O erê de uma filha de Ogum pode
chamar-se Espadinha ou Soldadinho, assim como o de uma filha de Iemanjá pode
ser Estrela-do-Mar, enquanto um erê de Xangô pode ser chamado Foguete ou
Trovãozinho (Verger, 2002). Todos estes nomes têm correspondência com a
simbologia e o arquétipo que envolve cada orixá.
O erê pode conversar e agir livremente, diferente do orixá, que se manifesta
sempre de olhos fechados e não fala. Por este motivo, o erê é chamado a auxiliar na
feitura do santo. Enquanto estão de erê, os iaôs podem aprender posturas, as
danças e as cantigas dos orixás, bem como levar e trazer recado aos mesmos
(BASTIDE, 2002). Através do estado de erê o orixá pode ser “educado” e “ ajustado”
ao corpo de seus filhos.
Devido a sua natureza infantil, os erês são impulsivos e imprevisíveis. Como
crianças, precisam ser educados dentro da religião, precisam de regras e
responsabilidades. E ao educá-los, é o próprio corpo quem se educa, interiorizando
os papéis sociais religiosos. Conforme Prandi (1991):
O primeiro papel a ser interiorizado é o do erê, depois o papel do orixá. Quero,
entretanto, chamar a atenção para o fato de que esses papéis são papéis vividos
religiosamente e, portanto, desempenhados e sentidos a partir de um código de
comportamento que é código religioso. (…) na sociedade, o comportamento vem
junto com o código; às vezes o comportamento se mantém quando o código já foi
esquecido e o código pode sobreviver ao comportamento — assim, um papel pode
ou não estar provido de sentido. Nas conversões religiosas, o novo comportamento
passa a ser vivido junto com a crença; ação e código são uma coisa só. Ao mesmo
tempo que o indivíduo age, interioriza-se o sentido da ação, de cada gesto.
(PRANDI, 1991: 137)
Durante o estado de erê são aprendidas posturas como a de colocar as mãos
do lado esquerdo junto a cintura quando o orixá está parado, indicando que se trata
de um santo novo; é ensinado a pedir benção aos seus mais velhos; e pode também
dizer se algo está agradando ou desagradando os orixás. Este estado se revela
18
Cada pessoa possui um orixá que é o dono da cabeça, ou seja, o orixá principal, que faz parte do seu carrego,
um conjunto de orixás com suas respectivas qualidades que influenciam a personalidade e os caminhos pelos
quais segue a vida da pessoa.
72
como um ponto intermediário entre o orixá e seu filho, uma intermediação que
acontece com e no próprio corpo sob a forma do erê.
2.3. Linguagem, mito e imagens corporais – flutuações de sentido.
Dança, música, adornos e vestimentas se apresentam interligados nos rituais
de candomblé. A dança ritual está extremamente ligada à manifestação dos deuses.
A incorporação é estimulada pelo ritmo e pelas cantigas. Não é somente o indivíduo
praticante da religião que dança ou canta, mas é a própria divindade que se
expressa e se apresenta por estes meios. O que os torna elementos essenciais para
que tanto os rituais, quanto a própria religião possam se efetivar.
A dança dos Orixás é sentida (e percebida) por todo o aparato corporal. Não
basta ver o orixá dançar, é preciso receber seu axé, e para recebê-lo os fiéis,
incorporados ou não, ficam com as mãos levantadas e abertas (figura 19) na direção
do orixá que está dançando no salão, criando uma continuidade entre o corpo que
percebe e aquilo que é percebido.
73
Figura 19 – Fotografia. Mãos que recebem axé. Iemanjá (de pé à esquerda) e filha de santo (sentada ao centro)
com as mãos espalmadas para receber axé. Saída de Iansã do Ilê Axé Omo Ode, no bairro de Magalhães
Bastos no Rio de Janeiro em Maio de 2008. Fonte: Arquivo pessoal da autora.
A roupa, o canto, os movimentos, os adornos possuem uma plasticidade ou
uma visibilidade total. São elementos que dependem um do outro, aqui só são
divididas por fins acadêmicos. Estas imagens totais são as materializações de uma
linguagem própria do candomblé, compondo um campo estético sinestésico de
comunicação. Sinestésico, pois suscita a percepção de todos os sentidos corporais.
Neste sentido, concordamos com Gerheim (2008):
A linguagem, em geral, é definida como capacidade de abstração, mas na medida
em que dá forma ao pensamento, podemos dizer que possui também uma
plasticidade e, portanto, uma materialidade. (GERHEIM, 2008:8)
O candomblé sendo um sistema religioso que estabelece práticas culturais
específicas e com elas modos de pensamento, de ação e de fazer, possui uma
linguagem calcada na percepção corporal. E esta linguagem, que desvela a maneira
74
de pensar e de se posicionar do grupo, assume formas plásticas de som, imagem,
movimento, gestos, criando um sistema estético.
Há uma linguagem constituída por códigos experienciados pelo e no corpo.
Entender tais códigos significa poder entender o que está sendo “dito” (embora não
com símbolos de grafia ou fala, mas com símbolos visuais) durante as cerimônias. A
linguagem partilhada pelo grupo assume a forma de imagens, a partir das quais o
próprio sentido é partilhado e negociado entre os membros do grupo.
A comunicação se encontra na base desta produção estética que está
extremamente ligada à forma como este grupo conhece o mundo através da
vivência. Elas falam sobre uma prática cultural que trabalha com outras maneiras de
ver, sentir e saber, que por sua vez, atuam como modos de conhecer.
Esta linguagem é uma linguagem híbrida como o meio que a gerou. Ela cria
uma zona de significação que engloba palavra, imagem, som e movimento. Palavras
vindas das rezas e saudações proferidas durante o ritual. Imagens compostas pelo
arranjamento do próprio espaço do terreiro para as festas, as vestimentas e as
cores. Som dos atabaques e cantigas entoados para chamar o orixá e fazê-lo
dançar. E movimento dos gestos corporais tanto da dança dos orixás como da
interação dos participantes do ritual. Ela é uma imagem contaminada por
informações de naturezas diversas. E voltamos novamente a Gerheim (2008) : a
linguagem como potência transformadora capaz de criar imagens.
A linguagem no candomblé se fundamenta na narrativa mítica. A escolha de
cada elemento que compõe esta produção de imagens, em especial, os gestos da
dança, encontrará sua explicação no mito que narra a estória de cada Orixá, criando
uma espécie de órbita onde o sentido pode se movimentar. A divindade executa
movimentos que celebram seus feitos, narrando suas estórias. A forma é embasada
pelo conteúdo mítico.
O mito enquanto linguagem, comunicação, encontra seu suporte na criação
imagética, na forma/ conteúdo presente na imagem, percebida em sua totalidade e
presença no e com o corpo durante a dança dos orixás no Xirê. Podemos perceber
estas imagens corporais fundamentadas na narrativa mítica na passagem abaixo,
que narra o mito de iniciação ao candomblé (figura 20), descrito por Prandi, em
Mitologia dos Orixás:
75
No começo não havia separação entre o Orum, Céu dos Orixás, e o Aiê, a Terra
dos humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e dividindo vidas e
aventuras. Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê, um ser humano
tocou o Orum com as mãos sujas. O Céu imaculado do Orixá fora conspurcado. O
branco imaculado de Obatalá se perdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum,
Senhor do Céu, Deus Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a displicência
dos mortais, soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o céu da
terra. Assim, o Orum separou –se do mundo dos homens e nenhum homem
poderia ir ao Orum e retornar de lá com vida. E os Orixás também não poderiam vir
a Terra com seus corpos. Agora havia o mundo dos homens e dos orixás,
separados. Isoladas dos humanos habitantes do Aiê, as divindades entristeceram.
Os Orixás tinham saudade de suas peripécias entre os humanos e andavam tristes
e amuados. Foram queixar-se com Olodumare, que acabou consentindo que os
Orixás pudessem vez por outra retornar a Terra. Para isso, entretanto, teriam que
tomar o corpo material de seus devotos. Foi a condição imposta por Olodumare.
Oxum, que antes gostava de vir à Terra brincar com as mulheres, dividindo com
elas sua formosura e vaidade, ensinando-lhes feitiços de adorável sedução e
irresistível encanto, recebeu de Olorum um novo encargo: preparar os mortais para
receberem em seus corpos os orixás. Oxum fez oferendas a Exu para propiciar sua
delicada missão. De seu sucesso dependia a alegria dos seus irmãos e amigos
orixás. Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua volta, banhou seus corpos com
ervas preciosas, cortou seus cabelos, raspou suas cabeças, pintou seus corpos
com pintinhas brancas, como as penas da galinha-d’angola. Vestiu-as com
belíssimos panos e fartos laços, enfeitou-as com jóias e coroas. O ori, a cabeça, ela
adornou ainda com a pena ecodidé, pluma vermelha, rara e misteriosa do papagaio
da costa. Nas mãos as levar abebés, espadas, cetros, e nos pulsos dúzias de
dourados indés. O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas e múltiplas
fieiras de búzio, cerâmicas e corais. Na cabeça pôs um cone feito de manteiga de
ori, finas ervas e obi mascado, com todo condimento de que gostam os orixás. Esse
oxo atrairia o orixá ao ori da iniciada e o orixá não tinha como se enganar em seu
retorno ao aiê. Finalmente as pequenas esposas estavam feitas, estavam prontas,
e estavam odara. As iaôs era as noivas mais bonitas que vaidade de Oxum
conseguia imaginar. Estavam prontas para os deuses. Os orixás agora tinham seus
cavalos , podiam retornar com segurança ao Aiê, podiam cavalgar o corpo das
devotas. Os humanos faziam oferendas aos orixás, convidando-os à terra, aos
corpos das iaôs. E enquanto os homens tocavam seus tambores, vibrando as batás
e agogôs, soando as xequerês e adjás, enquanto os homens cantavam e davam
vivas a aplaudiam, convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê, os
orixás podiam de novo conviver com os mortais. Os orixás estavam felizes. Na toda
das feitas, no corpo das iaôs, eles dançavam e dançavam e dançavam. Estava
inventado o candomblé.
76
Figura 20 – Fotografia. Iaô pintado com as pintas da galinha d’angola e usando ecodidè. Autor: Pierre Verger.
Fonte: Fundação Pierre Verger.
O mito confere sentido ao ritual e vice-versa, na medida em que reelaboram e
celebram a narrativa mítica. O mito determina como os iaôs devem se vestir, que
gestos são feitos, como os orixás irão dançar. Tudo possui um “fundamento”, como
diz o povo de santo. E este “fundamento” se encontra na narrativa mítica, criando
uma imagem que fala, que comunica através do corpo, ao mesmo tempo em que
reinventa o mito, perpetuando-o.
O universo simbólico do candomblé é constituído a partir da linguagem
híbrida de imagens totais de naturezas diversas – canto, dança, reza, vestimentas,
posturas. Um modo de conhecer as coisas, num contínuo processo de codificação e
decodificação do mundo, atuando diretamente na construção do sistema cultural.
Roland Barthes (2006) nos chama atenção para os diferentes modos de
atenção que a imagem suscita na ordem da percepção e sua diferença em relação à
escrita. A narrativa mítica é veiculada pela visibilidade da imagem, que, por sua vez
77
pode engendrar significados diversos, diferentes possibilidades de leitura, que fogem
a linearidade da escrita e da narrativa.
A atribuição de sentido está intimamente ligada à contigüidade entre
linguagem e mundo. Atribuir valores e sentidos é também nomear coisas, construir
redes de conhecimentos e possibilidades de mundos. A inteligibilidade do mundo é
tanto sensível quanto semântica, onde a própria sensibilidade já envolve uma
semioticidade (PICADO, 2003).
A significação se inscreve no âmbito do sensível, na nossa capacidade de
perceber/ nomear o mundo a nossa volta. Uma percepção que é sentida com o
corpo todo, externa – olhos, mãos, nariz, boca, pele – e internamente – consciência,
inconsciência, mente, estômago, músculos.
A relação entre significante, significado e signo no processo de produção de
sentido passa necessariamente pelo intérprete. Isto gera uma proximidade entre
significante e significado, não os reduzindo a uma igualdade. O sentido produzido
possui um lócus de enunciação, ou seja, um local histórico, cultural e social onde se
encontra aquele ou aqueles que proferem o sentido (BHABHA, 2005).
Em nosso objeto de estudo, o apelo que as visibilidades exercem sobre os
espectadores e participantes dentro do ritual do candomblé agem diretamente sob
os sentidos corporais. Uma percepção corporal no interior da qual surgem
significações. E é curioso como a própria palavra sentido(s) aponta para esta
relação entre significado e percepção: sentido, do verbo sentir. Sentido, os sentidos
corporais (tato, paladar, olfato, visão, tato); Sentido, ter significado, expressar algo.
O corpo se comunica através de uma semiótica instaurada no âmbito da
sensibilidade e da percepção, calcada neste aparato sensorial uno e não dividido em
partes fisiológicas. A percepção é um fato total e não privilégio de um olho/ visão.
Através desta construção simbólica sensível que o conhecimento e o saber se
articulam, encontrando na corporeidade seu agente fundamental.
Se este corpo pode comunicar dentro do sistema de significação do
candomblé é porque ele é capaz de dar conta de uma expressão que a língua falada
ou escrita já não podem. Ele se apresenta como um corpo-imagem que se instaura
na percepção.
Ao performatizar e presentificar a narrativa mítica é o corpo do iniciado quem
fala, age, se apresenta. O corpo na dança cerimonial precede a questão linear da
78
mera representação de um determinado mito. Ele não é a re-apresentação deste
último e sim a sua presentificação.
Muniz Sodré (2006) aponta para a esta expressividade do corpo em relação à
linearidade da grafia:
A infinita e imediata expressividade do corpo leva à suposição de que o poder ativo
e passivo das afecções ou dos afetos, além de preceder a discursividade da
representação, é capaz de negar a sua centralidade racionalista (...). Um exemplo
talvez pequeno, mas certamente significativo, mostra-se no teatro, quando a
qualidade de expressão do corpo do ator transcende a qualidade do texto. (...).
Fatores como ritmo, tempo, entrosamento, energia, gesto e corpo sobrepõem-se à
literalidade da peça. (SODRÉ, 2006: 24)
Gruzinsky (2006) aponta para a imagem como uma impossibilidade velada da
palavra, que permite cristalizar crenças que seriam difíceis ou perigosas de
verbalizar. E esta seria a força criadora da imagem.
Os Orixás não falam, como nos disse uma ekédi do Ilê Axé Omo Ode, um dos
terreiros nos quais realizamos nossa pesquisa de campo, situado no bairro de
Magalhães Bastos, subúrbio carioca: “Orixá não fala, não, minha filha, Orixá é um
vento...”. Se eles não possuem a palavra através da língua falada, sua comunicação
se dá nos elementos visuais e sonoros que o compõem. As imagens, sons e gestos
“falam” ao narrar os mitos de cada orixá e seu silêncio mantêm os mistérios destes
códigos.
Já os erês, seus representantes infantis, falam, possuem a palavra e, por
isso, são os responsáveis por trazerem algumas mensagens destes orixás em
ocasiões especiais. Nota-se, então, que ao mesmo tempo em que há uma
impossibilidade da fala, ela também pode ser invocada, em raros casos, quando a
imagem já não é suficiente.
Pensar a produção imagética do candomblé e sua produção de sentido é
pensar o sistema religioso em sua prática cultural, pensar a cultura como diferentes
maneiras de conhecer, de saber, calcada em sistemas de significações que criam
linguagens próprias para conhecer o mundo. Isto significa analisar a dinâmica
cultural através da diferença, do híbrido, dos lugares que estão entre, que estão aqui
e acolá, pois os significados engendrados nos códigos que compões as práticas
culturais nunca são isolados, ou puros, ou verdadeiros. Eles estão sempre em
relação à alguma coisa, podendo ser modificados ou suprimidos.
79
E, se estes significados ligados ao universo simbólico da produção do
conhecimento podem flutuar, mesmo que não fujam à órbita do consenso do grupo,
pode-se dizer que é o próprio conhecimento quem assume estas redes flutuantes. O
conhecimento, então, se torna mais aberto às questões de percepção sensível, dos
modos de ver e sentir. No caso do nosso objeto de estudo, num corpo que canta e
dança, que se movimenta, se entrega, que sente.
O que buscamos é a compreensão da complexidade deste universo, não para
garantir leis universais intrínsecas a ele, mas para se aproximar dele em sua
dimensão poética, em suas formas de sentido e de saberes.
O conceito que eu defendo (..) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max
Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como
uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à
procura do significado. (GEERTZ, 1989:15)
80
3.
O XIRÊ E A ESTÉTICA RITUAL
O Xirê, em linhas gerais, pode ser definido como a parte pública dos rituais de
candomblé. Neste ritual a manifestação dos orixás e suas danças são abertas ao
público. É composto por uma grande roda formada pela família-de-santo pertencente
ao terreiro, isto é, o pai ou mãe-de-santo e seus filhos (iaôs, ekédis e ogãs), os abiãs
e alguns convidados de outros terreiros, geralmente os mais velhos de santo, ou que
são próximos à casa que realiza a cerimônia.
Encontramos o Xirê presente nas cerimônias de saída, seja na feitura ou em
obrigações19, de iaôs, ekédis e ogãs. Ele também ocorre em rituais de louvações aos
orixás. Estes últimos costumam seguir o calendário anual elaborado por cada
terreiro. Assim, há ao longo do ano o que se chama “toque” para os orixás, toque pra
Oxum, toque pra Iansã, etc. que são festividades onde se louva o orixá e ocorre o
Xirê. No trabalho de campo observamos apenas as cerimônias de saída.
Neste ritual público é estabelecido um momento de troca de experiências e de
afirmação do grupo. Os integrantes do terreiro entram em contato com a
comunidade religiosa (formada não só pela família de santo, mas por membros de
candomblé que pertencem a outros terreiros), afirmando o domínio e a partilha dos
códigos por eles estabelecidos; e a comunidade não-religiosa (visitantes, curiosos,
estudantes, que são levados para assistir o ritual). Constituindo aí um espaço de
comunicação.
Podemos dividir o Xirê em duas partes. A primeira quando entram os
componentes do terreiro e formam uma roda onde irão dançar ainda conscientes. E
a segunda onde, incorporados, dançam os orixás.
É durante o Xirê que podemos observar a dança dos orixás e a celebração
dos mitos narrados nos movimentos. É também na roda do xirê que os abiãs, que
não incorporam, aprendem a dançar, observando seus mais velhos e os próprios
orixás incorporados.
O Xirê é um ritual de confraternização e aprendizagem entre os membros do
terreiro e destes com a comunidade. É uma maneira de mostrar para o público a
19
A feitura, como foi vista no capítulo 2, é a fase de iniciação no candomblé, sendo reafirmada através das
obrigações, dadas sequencialmente em 1, 3 e 7 anos desde a iniciação.
81
força espiritual e reafirmar a importância e a identidade do terreiro e de seus
membros.
3.1. Elementos estéticos do Xirê
O Xirê envolve é realizado dentro de uma sala pública que recebe o nome de
barracão e geralmente é precedido pela matança, oferecimento dos animais em
sacrifício, ritual interno reservado à família de santo.
A música está presente em todos os momentos do Xirê, antes, na sua
preparação; durante, nas danças; e depois, no fechamento da roda. E esta roda,
bem como a música, obedece uma (conformação) específica que determina tanto a
entrada dos componentes do terreiro no Xirê, como a manifestação dos próprios
orixás.
3.1.1. O barracão:
O Xirê acontece em um espaço público do terreiro chamado barracão. Aí
estão localizados os três atabaques que comandam a cerimônia – Rum, Rupi e Lê –
na frente dos quais dançam os orixás e se forma a roda do Xirê. Ao redor da roda se
localiza a assistência, composta pelos convidados que irão assistir à cerimônia.
Temos, assim, a disposição exposta no Quadro 2.
82
Quadro 2 – Disposição do barracão no Xirê. Fonte: Organização da autora.b
Todo o barracão é enfeitado para a cerimônia, com folhas e tecidos nas cores
do orixá homenageado. Os atabaques, sendo sagrados, também são enfeitados e
preparados para o ritual.
No barracão será realizada toda a cerimônia pública do candomblé. Desde o
despacho do padé até fechamento do ritual
3.1.2. A formação da roda do Xirê.
83
O Xirê possui uma ordem de entrada para seus componentes, que segue a
hierarquia religiosa da família-de-santo. Assim, temos a seguinte ordem, vistos nas
ilustrações abaixo (quadro 3 e figura 21):
- Pai ou mãe de santo – a frente, segurando o adjá, uma espécie de sineta ou
chocalho, usado para chamar o orixá.
- Mãe ou Pai pequeno
- Ogãs e Ekédis
- Ebômis
- Iaôs – por ordem de iniciação, começando pelo mais velho.
- Abiãs
84
Quadro 3 – Ordem de entrada no Xirê. Fonte: Organização da autora.
85
Figura 21 – Fotografia. Entrada no Xirê. Ekanda Moxicongo Luazyde, Piabetá, Rj. Dezembro de 2008.
Fonte: arquivo da autora.
Após esta formação a roda ainda se subdivide em duas rodas concêntricas,
sendo a interna reservada aos mais velhos e a externa aos mais novos de santo.
3.1.3. A ordem de “chamada” dos orixás.
Assim como a entrada da família de santo obedece a uma ordem específica,
as músicas usadas para chamar os orixás também. E esta ordem obedece também
à mitologia afro-brasileira.
Primeiramente, é preciso “despachar Exu”, saudado em cantigas e com uma
oferenda de farinha com dendê que é posta na porta do barracão – o padê de Exu.
Ele é o orixá mensageiro, que rege os caminhos, é entidade primeira e responsável
86
pela proteção da casa de santo. Sem o consentimento de Exu, nada se faz no
candomblé.
Após o padê de Exu, o Xirê prossegue na seguinte seqüência de toques e
cantos para os orixás:
- Ogum – junto com Exu, é responsável pelos caminhos, pelas estradas. É o
deus da guerra e seu domínio são o aço e o metal, responsável por defender o
terreiro e seus filhos de todo o mal.
- Oxossi – irmão de Ogum. É o caçador, deus da fartura, do alimento,
responsável por prover o terreiro.
- Obaluaiê – deus da saúde, responsável pela doença e pela cura. Seu
domínio é a terra.
- Ossaim – o dono das folhas, utilizadas em diversos rituais do candomblé. As
folhas são consideradas sagradas.
- Oxumaré – o deus do arco-íris, responsável pela ligação entre as nuvens do
orum e a terra, o aiê. Assume a forma de serpente.
- Xangô – o grande rei, deus do trovão que cospe fogo. Responsável pela
riqueza, simbolizada em seus búzios.
- Oxum – a segunda das três esposas de Xangô. Deusa das águas doces, da
beleza e do amor, da vaidade e da fertilidade feminina.
- Logun-Edé – filho de Oxossi com Oxum, porém criado por Iansã e Ogum. É
o orixá menino que santo velho respeita.
- Iansã – deusa do vento, dos raios e das tempestades, é a primeira esposa
de Xangô e com ele divide o poder do fogo.
- Oba – a terceira mulher de Xangô e irmã de Iansã. É a deusa guerreira,
única mulher a desafiar Ogum.
- Nanã – a deusa mais velha do panteão dos orixás, é detentora do saber
ancestral, ligada às águas profundas dos pântanos. É mãe de Oxumaré.
- Iemanjá – a mãe de todas as cabeças, deusa das águas salgadas e dos
oceanos, rainha dos mares. Esposa de Oxalá.
- Oxalá – quando jovem, também é chamado de Oxoguiã, um jovem
guerreiro. Quando mais velho, assume a forma de Oxalufã, o velho sábio. É o pai de
todas as cabeças, senhor de toda a criação do universo.
87
A ordem de “chamada” dos orixás no Xirê, através do canto para cada um,
obedece a uma lógica mitológica, fundamentada na rede de relações familiares e
afetivas entre os orixás, o que revela também a sua dimensão humana.
3.1.4. As vestimentas e adornos.
As roupas e os adornos são elementos que distinguem os papéis hierárquicos
religiosos durante o Xirê. Quanto maior a “idade de santo”, mais luxuosa ou mais
elementos pode conter a vestimenta dos indivíduos. O uso dos fios-de-conta, colares
sagrados que servem para proteção dos filhos de santo, também segue esta lógica
hierárquica religiosa.
Ekédis e os Ogãs costumam usar roupas diferenciadas dos rodantes, que,
geralmente usam a vestimenta de baiana, para as mulheres e o chocotô e camisú
para os homens. As ekédis usam uma espécie de túnica, tamancos e um torso que
possui uma amarração específica que as identifica como tal (figura 22).
88
Figura 22 – Fotografia. Vestimenta de Ekédi. Abassá da Oxum Apará. Maio de 2008. Fonte: arquivo da autora.
Já os ogãs possuem uma maior liberdade nas vestimentas. Eles não
possuem uma vestimenta fixa, podem usar roupas comuns, ou roupas brancas de
uma maneira geral, de acordo com cada casa (figura 23).
89
Figura 23 – Fotografia. Ogãs (ao fundo, tocando atabaques), vestimentas variáveis. Ekanda Moxicongo Luazyde.
Dezembro de 2008. Fonte: arquivo da autora.
No grupo dos rodantes, o iaô costuma vestir-se de maneira mais simples,
apresenta-se descalço e seus fios-de-conta são mais discreto, de menor espessura
e tamanho. Do mesmo modo o seu santo também será vestido de uma maneira
mais simples do que um santo mais velho (figura 24).
90
Figura 24 – Fotografia. Iaôs virados. Discrição nas vestes. Ekanda Moxicongo Luazyde. Dezembro de 2008.
Fonte: arquivo da autor.
Os ebômis, costumam usar fios-de-conta mais complexos, de maior tamanho
e espessura, bem como tecidos mais elaborados, e podem usar calçados. Seus
santos também possuem um requinte maior nas vestes, especialmente, se for o
orixá do pai ou mãe-de-santo.(figura 25)
91
Figura 25 – Fotografia. Orixá do Pai-de-santo. Quanto mais velho, mais luxuoso pode ser o orixá. Ekanda
Moxicongo Luazyde. Fonte: arquivo da autora.
O abiã só veste as roupas simples e brancas, sem adornos, nos rituais e
festas, e é proibido de adentrar alguns locais do terreiro. Caso haja a incorporação,
o santo do abiã também não é vestido, nem adornado, ele permanece com a mesma
roupa que estava e, em alguns casos, não dança, sendo desvirado20 em um local
separado daqueles que já são iniciados.
20
ao incorporar usa-se o termo “virar no santo”, em alguns casos, sendo usado, portanto, o termo “desvirar”, para
que a pessoa saia do transe mediúnico.
92
3.1.5. As cores
As cores estão presentes tanto nas vestimentas e adornos como na
ornamentação que envolve o próprio espaço do barracão no dia do Xirê. Cada orixá
possui cores características que estarão presentes de maneira mais visível nestes
enfeites tanto do corpo como do espaço. Assim, os fios-de-conta, as roupas, os
tecidos que enfeitam os atabaques estarão de acordo com esta escala cromática.
A seguir, apresentamos uma tabela (quadro 04), com as cores e seus
respectivos orixás.
ORIXÁ
Exu
Ogum
Oxossi
Obaluaiê
Ossaim
Oxumarê
Xangô
Oxum
Logun-edé
Iansã
Oba
Nana
Iemanjá
Oxalá
COR
Vermelho e preto
Azul escuro ou verde escuro21
Azul turquesa
Preto e branco ou preto, braço e vermelho22
Verde
Verde e amarelo ou amarelo e preto
Vermelho e branco ou marrom
Amarelo
Azul-turquesa e amarelo
Vermelho ou marrom
Vermelho e amarelo
Lilás
Azul e branco
branco
Quadro 04 – Tabela com as cores dos orixás. Fonte: organização da autora.
As cores de cada orixá podem se misturar nas vestimentas e adornos de
acordo com as qualidades de cada santo, como veremos mais adiante.
3.1.6. A música
21
Algumas casas da Bahia, como o Axé Opô Afonjá, usam o verde escuro para Ogum, por estar associado ao
trabalho agrícola.
22
Quando novo, este orixá é chamado também de Omolu e recebe as cores preta e branca; quando mais velho,
Obaluaiê, recebe as cores preto, branco e vermelho.
93
A música é de extrema importância para os rituais de candomblé. No Xirê ela
é comandada por uma orquestra formada por um trio de atabaques e um agogô,
também chamado gã. Os atabaques estão divididos do grave para o agudo em:
Rum, Rumpi e Lé e são tocados exclusivamente por homens, os ogãs, chamados
alabês. Já o agogô pode ser também tocado por mulheres, as ekédis. Estes dois
grupos, juntamente com o pai ou mãe de santo e os pais ou mães pequenos,
entoam as cantigas no ritmo dado pelos alabês.
Luhning (1990) faz uma classificação das cantigas que fazem parte do
repertório do candomblé, das quais destacamos duas, que se relacionam com a
roda do Xirê:
- Cantigas de Xirê: entoadas durante a primeira parte do ritual para saudar os
orixás. São entoadas uma média de três a sete cantigas para cada orixá;
- Cantigas de rum ou de fundamento: entoadas na segunda parte do Xirê,
onde os orixás já estão manifestados nos corpos de seus filhos. Estas cantigas se
relacionam com a narrativa mítica pertinentes a cada orixá.
Por estarem relacionadas aos mitos que envolvem a dança de cada orixá, as
cantigas de rum estarão intimamente ligadas a gestualidade dos movimentos dos
mesmos na roda do Xirê. Elas narradas no movimento da dança dos orixás. Ao
analisarmos a gestualidade da dança, abordaremos algumas cantigas de rum.
3.1.7. As danças
Observando as imagens que colhemos em campo, podemos dividir as danças
do Xirê em duas partes: as danças de louvação ou homenagens aos orixás e as
danças de rum (tomando emprestado o conceito de Luhning citado anteriormente).
As danças de louvação se concentram na primeira parte do Xirê, onde se
canta para todos os orixás. Ao cantar para cada orixá, estes vão incorporando em
seus filhos e passam a dançar na roda, juntamente com aqueles que estão
“acordados”, isto é, não incorporados. Nesta primeira parte, encontramos na roda
tanto indivíduos incorporados como não incorporados, ambos dançando para os
orixás (figura 26).
94
Figura 26 – Fotografia. Primeiro momento da roda, Oxossi incorporado em seu iaô (canto esquerdo da
foto, de cabeça baixa), dançando com os outros ainda não incorporados. Abassá da Oxum Apará. Maio de 2008.
Fonte: arquivo da autora.
As danças de rum aparecem num segundo momento quando cada orixá,
incorporado, dança no meio do salão individualmente suas cantigas específicas, as
cantigas de rum que narram seus feitos mitológicos. Neste momento, que foi o foco
de nossa pesquisa, no meio da sala encontram o orixá, incorporado, acompanhando
por uma mãe ou pai-de-santo, ou um mais velho da casa e uma ekédi, que irão
estimulá-lo em sua dança (figura 27).
95
Figura 27 – Oxum (ao centro) tomando rum, dançando com o pai de santo (à esquerda, de amarelo) e a ekédi (à
direita, de laranja). Abassá da Oxum Apará. Maio de 2008. Fonte: Arquivo da autora.
3.2. Estados de ser e as qualidades de santo
A dança traz à presença o próprio deus e sua história. Entretanto, quem
dança não é o indivíduo dotado de uma, se podemos assim chamar, consciência
racional, fazendo o gesto intencionalmente. Ao dançar incorporado, o indivíduo
torna-se o próprio Orixá, assumindo um outro “estado de ser”.
O termo “estados de ser” transpusemos dos estudos feitos por Els Lagrou
(2002) ao tratar da arte Kaxinawa.
Desde que consciência é inconcebível sem uma consideração do estado de corpo,
estados de consciência tornam-se estados de ser. Uso “estados de ser” em
substituição à definição comumente usada para “estados de consciência”, porque,
desse modo, evitamos o perigo de inadvertidamente opor mente e corpo.
(LAGROU, 2002)
96
Como não pretendemos apontar aqui para esta divisão entre corpo e mente a
que a autora acima se refere, optamos por tratar o transe ritual como estes
estados de ser, apontando para a continuidade existente entre orixá e iniciado, já
que estes estão intimamente ligados.
No transe da dança ritual, o orixá se presentifica, torna-se, portanto, um ser –
agente. O que há, assim, é a transformação de um ser – homem, o iniciado, em
outro ser – deus , o orixá. Ao dançar, é o corpo incorporado do iniciado quem
dança, e é o Orixá quem “fala” através da dança e por ela se mostra.
Por isto, concordamos com Viveiros (2002), ao presentificarem-se, tornaremse presença, orixás e homens tornam- se indivíduos dentro do ritual, sendo desta
maneira ‘encorporados’23. Mais do que in-corporado ou encarnado, que
aprisionaria o orixá dentro de uma forma corporal humana, ao se ‘encorporado’
orixá e homem partilham da mesma substancia corpo para manifestarem-se como
indivíduos atuantes no ritual.
Segundo Deleuze (1988), a possibilidade de mudar de natureza é o que
constitui o indivíduo. Esta é a mudança que se apresenta nos estado de ser deste
indivíduo, não é a substituição separada de um (homem) pelo outro (deus), mas
uma continuidade entre eles.
Sendo o candomblé uma religião onde deuses e homens coexistem no corpo
tanto um como outro estão suscetíveis a estes estados de ser. O homem é capaz
de transformar-se em orixá e este é capaz de assumir variados contornos e
sutilezas que lhes conferem identidade e diferença nas chamadas qualidades de
santo.
De acordo com a filosofia religiosa, os orixás possuem determinadas
qualidades, que os interligam uns aos outros em suas características de
personalidades. Como os elementos visuais e sonoros representativos de cada
orixá expressam esses dados de personalidade advindos das narrativas míticas,
também eles podem misturar-se entre si, criando uma gama de possíveis orixás
com características híbridas a partir do panteão afro brasileiro.
Assim, por mais que tenhamos filhos do mesmo orixá, eles serão sempre
diferentes um dos outros devido a qualidade de cada um. Mesmo que tenhamos
23
O termo cunhado por Viveiros de Castro (2002) é descrito na introdução deste trabalho (p.24).
97
vários Oxossis, ou Xangôs, ou Iansãs e Oxuns, dançando ao mesmo tempo, por
mais que elas se pareçam iguais, serão diferentes entre si, pois cada um terá uma
qualidade que traz em si uma identidade e, com ela, uma alteridade.
Segundo Verger (2002) estas qualidades seriam explicadas pelos diversos
modelos de culto encontrados em África no início do fluxo do tráfico de escravos.
Como um orixá era cultuado ao longo de uma região, ele recebia diversos nomes
e algumas particularidades que teriam sido ressignificados sob a expressão
qualidade de santo.
Deste modo, uma Oxum Ipondá, esposa de Oxossi e mãe de Logun-edé
poderá misturar ao seu amarelo característico o azul turquesa característico de
seu marido, dançando também os ritmos e movimentos consagrados a ele e a
seu filho. Ou uma Oxum Abalu, a mais velha das Oxuns, que “come” com Oxalá e
por isso usa o branco. E ainda uma Oxum Apará, a Oxum guerreira que, como
Iansã e Ogum, usa a espada além do seu abebê (figura 28). Podemos ver
também um Ogum que pode vestir usar coroas tanto de metal quanto de palha
(figura 29); ou ainda uma Iansã que usa os mariôs (folhas) como Ogum ou fiosde-conta transparentes como os Iemanjá (figura 30).
98
Figura 28 – Fotografia. Estados de Oxuns. Fonte: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das
letras, 2001.
99
Figura 29 – Fotografia. Estados de Ogum. Fonte: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das
letras, 2001.
100
Figura 30 – Fotografia. Estados de Oiá. Fonte: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das
letras, 2001.
As qualidades permitem uma mobilidade aos elementos visuais e sonoros
característicos das divindades. E ao tornarem-se padrões deslizantes, é o próprio
sentido quem desliza entre eles. Os elementos se misturam e hibridizam-se
seguindo os laços de parentescos narrados pela mitologia afro-brasileira. Isso
lhes confere possibilidades de criação e inovação, mas que não fogem à órbita de
sentido estabelecida pelos ensinamentos adquiridos desde o processo de
101
iniciação. E quando este padrão é desobedecido e a própria veracidade do ritual
quem se coloca em jogo.
3.3. Odara – o belo para os nagôs e a disputa pela tradição.
A organização dos elementos do xirê cria padrões interligados por uma rede
semântica, onde cada forma existe em função daquilo que foi aprendido durante
anos, desde a iniciação na religião, configurando um regime estético.
Seguir tais padrões inscritos neste regime significa estar de acordo com as
tradições aprendidas neste longo processo iniciático, afirmando os valores
pertinentes ao grupo, que expressam a forma como este se posiciona no mundo.
Neste sentido, é o próprio regime estético quem expressa maneiras de agir e pensar
o mundo.
Sobre a articulação entre maneiras de fazer e pensamento, nos diz Ranciére
(2005):
Um regime específico de identificação e pensamento das artes: um modo de
articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidades dessas maneiras de
fazer e modos de pensabilidade de suas relações, implicando em uma determinada
idéia de efetividade de pensamento. (RANCIÉRE; 2005:13)
As formas de fazer, de conviver e de viver assumem visibilidades que
expressam um pensamento específico característico do meio em que elas surgem.
O candomblé, com suas maneiras de fazer e suas formas de visualidades
configuram um campo estético que expressa maneiras de pensar do grupo. E com
isto, é capaz de estabelecer relações entre aquilo que é visto e o que é dito,
articulando maneiras de ver, modos de fazer e viver expressos por seu regime
estético, que por sua vez, revela o meio cultural em que surge.
Estes padrões estéticos criam uma unidade modular baseada na tradição e
na funcionalidade. Eles determinam quem tocam os atabaques, quem entoa
cantigas, o que pode ou não ser cantado, quais espaços podem ou não serem
penetrados, etc. Isto cria uma órbita onde as forma e seus sentidos devem se
102
desenvolver para que os rituais sejam reconhecidos e afirmados pelo grupo como
autênticos ou verdadeiros, mesmo aqueles mais “inovadores”.
Há uma liberdade para acrescentar elementos que conferem individualidade e
identidade a cada terreiro em seus rituais e a cada orixá, como veremos nas
qualidades de santo. No entanto, a criação transita dentro desta órbita do regime
estético. E aquilo que foge a ela pode ser considerado impróprio, falso, ou
simplesmente feio.
Segundo Marco Aurélio Luz (1995), o conceito de belo ocidental não existe na
tradição iorubá. A definição de belo do complexo nagô pode ser expressa pela
palavra odara, que significa simultaneamente “bom, útil e belo”. O belo, neste
sentido, é uma conjugação de valores subjetivos e objetivos.
Quando um ritual é bem feito, segue às tradições, possui os fundamentos
religiosos, tem verdade e emoção, diz-se que está tudo odara. Quando uma
divindade aceita uma oferenda porque esta foi feita de coração e bem arranjada, dizse que está tudo odara. Quando um Orixá dança com vigor e a comunidade religiosa
o saúda fervorosamente, odara é a palavra que o define.
Se uma cantiga é entoada por alguém que não deveria, se algo está fora do
lugar onde deveria estar, se um mais velho é desrespeitado ou se um orixá aparece
de uma maneira completamente diferente que destoe da maneira aceita pelo grupo,
o ritual torna-se “feio”, sem fundamento e, portanto, sem legitimidade.
É a fidelidade à tradição e aos ensinamentos adquiridos que distingue um
“bom” de um “mau” candomblé ou ainda um ritual “bonito” de outro “feio”. Há um
sistema de eleição calcado no discurso dos participantes que julga se os rituais
estão ou não de acordo com o que foi ensinado, se tem ou não fundamento, como
diz o povo de axé.
Estes julgamentos que levam ao ritual ser considerado bom e bonito, dentro
de padrões estéticos compartilhados pelo grupo, revelam um discurso sobre a
dimensão artística destes rituais de candomblé. O campo da arte, no qual se
inscreve o poder estético, não aparece dissociado de outras dimensões da vida
religiosa, embora o discurso sobre ele seja raramente percebido como tal.
Segundo Geertz (2000) muitas vezes o discurso sobre arte em determinados
grupos de culturas tradicionais não está dissociado das outras dimensões práticas
da vida cotidiana:
103
Não há dúvida, porém, de que esses povos falam sobre arte, como falam de
qualquer coisa fora do comum ou sugestiva, ou emocionante que surja em suas
vidas – dizem quem toca, ou quem faz, que papel desempenha nessa ou naquela
atividade, pelo que pode ser trocado, qual seu nome, como começou e assim por
diante. (GEERTZ, 2000:147)
A estética ritual tem de estar de acordo com as regras que regem a
funcionalidade das formas por ele engendradas. Não há uma separação entre o
discurso estético, a função do ritual e a visão de mundo. A beleza dos rituais é algo
que combina forma, conteúdo, tradição, e cognição, conjugando uma continuidade
entre aquilo que agrada aos deuses, ao grupo e aos sentidos.
Sob o prisma da tradição as narrativas míticas fundamentam as regras
sociais e estéticas do grupo. E deste modo o discurso acerca do que é ou não
tradicional se torna bastante importante para o estabelecimento do próprio sentido
engendrado neste regime estético.
No entanto, a identidade religiosa dos terreiros, marcada pelo discurso
tradicional, é sempre o resultado de uma negociação dos atores sociais que
compõem o grupo (CAPONE, 2004).
Os rituais como o Xirê passaram por diversas modificações em suas formas
desde a “invenção” do candomblé e o surgimento do primeiro terreiro “tradicional”. O
que é tido como tradicional hoje em dia, provavelmente, não o era há alguns anos
atrás.
Dona Marina, uma de nossas informantes, em entrevista, nos revelou um
pouco desta mudanças, especialmente no que diz respeito a feitura:
Naquela época era tudo muito diferente de hoje, sabe. Era tudo mais difícil. Quando
eu fui feita, eu tinha 17 anos e o resguardo era de 6 meses. 6 meses sem namorar,
sem sair de casa, a gente só podia sair par trabalhar e estudar, mesmo assim de
cabeça baixa, toda de branco e com a cabeça coberta! Hoje, o iaô com 3 meses já
pode sair do resguardo.
Atualmente até os candomblés mais tradicionais adotaram a duração deste
período como sendo de três meses, e abrem algumas exceções em relação à
vestimenta e aos adornos com relação ao local de trabalho do iniciado; ele pode, por
exemplo, não usar todos os fios- de- conta, preservando somente o mais simples
que simbolize o seu orixá e não precisa usar estritamente as vestes brancas, desde
que elas sejam claras, nunca escuras.
Estas adaptações tiveram de ser feitas em função do tempo cada vez mais
acelerado das sociedades atuais. Algumas características consideradas tradicionais
104
dos rituais tiveram de ser adaptadas ou até suprimidas devido às exigências
cotidianas de uma sociedade “moderna” e “globalizada”. O período do resguardo do
Iaô é um exemplo desta adaptação.
As incisões feitas na pele do corpo dos iniciados, as curas, são outro exemplo
de uma “tradição adaptada”. As curas, que costumavam ser grandes em tamanho e
espessura, sofreram uma redução, tornando-se mais difíceis de serem percebidas.
Há uma permanente multiplicidade presente no discurso sobre a tradição, que
aponta para a dinâmica da mesma. A tradição enquanto algo puro, verdadeiro, se
revela na prática ritual como algo é o tempo todo construído e negociado dentro da
lógica interna do grupo e da articulação dos elementos que o compõem. E, neste
sentido, concordamos com Stuart Hall (2003) quando nos diz que:
Isso nos deve fazer pensar novamente sobre aquele termo traiçoeiro da cultura
popular: a “tradição”. A tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a
ver com a mera persistência de velhas formas. Está muito mais relacionada às
formas de associação e articulação dos elementos. (HALL, 2003:239)
O hibridismo acabou por se configurar como um meio de sobrevivência deste
sistema religioso, presente desde sua formação histórica. Poderíamos apontar para
o sincretismo24 como uma forma híbrida de sobrevivência (CANEVACCI, 2001), que
aplica-se também ao candomblé.
Os escravos costumavam identificar seus orixás ao santos católicos, dentro
da senzala, para que pudessem professar suas crenças sem que os senhores
soubessem. Os elementos usados tanto por católicos como pelos rituais afrobrasileiros eram os mesmo em sua forma – as imagens dos santos. No entanto, a
maneira como cada um deles usava estas imagens e os significados atribuídos a
elas é o que lhes diferenciava não só como grupo religioso, mas como grupo
cultural. Os santos católicos geraram uma nova possibilidade de sentidos e
significados.
Se a tradição não tem a ver com velhas formas estagnadas, articulando,
combinando e recombinando elementos, podemos dizer que ela é sempre a atuação
de forças que estabelecem o que é ou não é tradicional. A tradição está sempre em
relação, sua característica é a dinâmica, é poder se colocar em disputa. E
disputando quem é mais tradicional, os terreiros de candomblé adquirem seu poder
enquanto instituições religiosas.
24
O conceito de sincretismo refere-se aquele utilizado por Canevacci (2001).
105
Deleuze (2005) nos diz que se as relações de poder implicam as relações de
saber, estas, em compensação, supõem aquelas. A disputa pela tradição é o que
rege a disputa do poder e vice-versa. Neste jogo de força, nessa tensão se situa a
tradição. Antes de ser algo estável, esta seria fruto de uma negociação feita pelo
próprio grupo que a legitima.
E quando falamos em força estamos falando de maneira plural, isto significa
que sua característica principal é estar em relação com outras forças. De forma que
toda força já é uma relação, onde ‘a força afetada não deixa de ser também uma
capacidade de resistência’. (DELEUZE, 2005:78).
Estas forças estão presentes na estética ritual do candomblé. São elas as
responsáveis pelo acréscimo e supressão de elementos visuais que compõem os
processos ritualísticos. O ritual público do Xirê afirma ou reafirma estas forças, pois
nele estão presentes aqueles que legitimam tanto os rituais como os terreiros, a
comunidade religiosa e seu entorno. São eles que julgam se um ritual está ou não
odara. E esta legitimação exerce enorme influência sobre aquilo que é ou não
tradicional. Ou seja, quanto mais odara estiver um candomblé, mais tradicional e,
com isto, mais poderosa, é a casa que o oferece.
Por outro lado, estes elementos que compõem uma “estética candomblecista”
se ligam a um mercado de consumo religioso, onde o preço material está pautado
no preço simbólico, fundamentado na tradição.
3.4. As casas de macumba e o consumo – a negociação da tradição.
Os elementos materiais usados para compor a estética do Xirê fazem parte
de todo um sistema econômico que fabrica e revende estes materiais através das
casas de artigos religiosos, chamadas popularmente casas- de- macumba. Há toda
uma produção de mercado voltada para este público, cujo valor monetário é
impresso pelo discurso da tradição.
O expoente máximo desta indústria religiosa é o Mercadão de Madureira,
reduto das casas de artigos religiosos no Rio de Janeiro, famoso pela venda em
atacado e preços mais acessíveis (figura 31).
106
Figura 31 – Fotografia. Mercadão de Madureira. Fonte: Http://www.forselles.com/rio. Acessado em: 20/08/2007.
Uma esteira tida como “tipicamente nagô”, uma conta de orixá feita com
“búzios africanos”, ou um pano- da- costa vindo “diretamente do Daomé”, poderão
se tornar muito mais caros economicamente do que outros artigos made in brazil.
Isto porque o peso simbolicamente “africano” revela que estes produtos seriam mais
“tradicionais” que outros.
A relação entre o valor simbólico e o valor econômico, presente no consumo
dos elementos visuais do Xirê, pode ser vista também nas vestimentas usadas pelos
mais novos e pelos mais velhos. Conforme o iniciado evolui em seus processos
iniciáticos, evolui também a manifestação de suas divindades, e ele adquire o direito
de utilizar bens de maior valor econômico, que por sua vez adquirem um maior valor
simbólico.
107
Os rituais, nos aponta Canclini (1995), servem para manter a coesão dos
significados dentro do grupo, que são selecionados e fixados graças um acordo
coletivo. Os bens usados nestes rituais servem para estabelecer estes sentidos e
quanto mais “dispendiosos” eles forem, maior será potencial simbólico – afetivo e a
eficácia do próprio ritual.
Os rituais eficazes são os que utilizam objetos materiais para estabelecer o sentido
e as práticas que os preservam. Quanto mais custosos sejam esses bens, mais forte
será o investimento afetivo e a ritualização que fixa os significados a eles
associados. (CANCLINI, 1995: 59)
A identidade dos papéis religiosos revelada pelo consumo destes elementos
estéticos está associada à maneira como estes indivíduos criam sentidos e
significados a partir da escolha de utilização destes elementos. E este consumo, por
sua vez, revela a maneira como este grupo negocia coletivamente os valores destes
bens. O valor mercantil destes objetos é fruto mesmo das interações socioculturais
nas quais são utilizados e que determinam quem pode ou não ter acesso a eles. E,
neste sentido, voltamos a Canclini (1995):
Mas se os membros de uma sociedade não compartilhassem os sentidos dos bens,
se estes só fossem compreensíveis à elite ou à maioria que os utiliza, não serviriam
como instrumentos de diferenciação. Um carro importado ou computador com novas
funções distinguem os seus poucos proprietários na medida que quem não pode
possuí-los conhece o seu significado. (CANCLINI, 1995:56)
A enorme variedade de cores e formas que compõem as vestes de cada
orixá, segundo suas qualidades e o gosto pessoal do filho-de-santo, nos revelam a
capacidade que o significado tem de ser negociado e assumir diferentes maneiras
de visibilidades. Embora, possa deslizar, o significado flui sempre dentro da órbita do
discurso da tradição, mesmo que esta esteja em constante movimento.
O tradicional, assim como o popular foram, durante muito tempo, identificados
com o rural, com o imutável, como aquilo que estaria à margem dos processos de
modernidade e tecnologia do espaço geral da sociedade, ou seja, aquilo que
resistiria bravamente ao processo de dominação exercido pela indústria cultural
(CANCLINI, 1997), marcada pelo consumo e pela alienação.
No entanto, o que se percebe é que as culturas tradicionais ou populares
estão sempre em um constante processo de reinvenção de suas próprias tradições
que passam por negociações com a cultura dominante. Essas negociações estão
108
ligadas diretamente aos usos e consumo não só de bens materiais, mas de idéias e
conceitos ligados a outras classes ou grupos sociais (como a redução do tempo do
período de resguardo do iaô). E este consumo não é fruto somente de uma
imposição, mas passa por um processo de escolha, de incorporação e resistência a
dos elementos materiais que comporão padrões estéticos dentro dos rituais.
Se nos propomos a pensar a produção de sentido das imagens que fazem
parte do sistema de comunicação do candomblé, temos de levar em consideração
sua dinâmica cotidiana, a influência que recebe do meio onde se insere e as
articulações que estabelece com ele. E dessa maneira buscar um entendimento de
sua complexidade sem enclausurá-la sob o peso de uma tradição estaticamente
preservada que isolaria a prática cultural desta religião sob o peso de uma tradição
ingenuamente imutável.
O consumo ou uso de alguns elementos são condicionados por este acordo
coletivo que revela o que é ou não tradicional, ou, em outras palavras, o que pode
ou não pode se acrescentado ou escolhido para que o ritual continue odara.
109
4.
A DANÇA PERFORMÁTICA DO COSMO E SUAS FORMAS.
No candomblé, os orixás são considerados energias ou “vento” 25. Eles são
responsáveis pelo equilíbrio do universo e do indivíduo, uma vez que domina tanto
aspectos da natureza, como o destino e personalidade de seus filhos. O orixá dança
para espalhar axé e assim manter o universo em harmonia (BÁRBARA, 2004).
A dança dos orixás possui uma ligação com o cosmo. Elas relatam o papel
desempenhado por cada orixá na criação do mundo e manutenção do equilíbrio
universal, através do axé. A cada Xirê os orixás são chamados a espalharem suas
energias através da dança, manifestando todo seu poder - para o grupo religioso
(coletivo) e para o filho de santo (individual) que será possuído - para reorganizar o
cosmo.
A roda do Xirê reúne novamente aiê e orum, como no início dos tempos. É
durante a dança ritual que os orixás tomam o corpo de seus filhos para matarem as
saudades dos humanos (PRANDI, 2001:526), como vimos anteriormente. Neste
sentido, temos a recriação e celebração do mito de surgimento do mundo que, mais
do que uma repetição, se torna a vivência do mesmo, estabelecendo o tempo mítico
primordial onde tudo se encontrava em equilíbrio. Nesta cosmovisão, todas as
energias da natureza são chamadas a descer a fim de restabelecer o antigo
equilíbrio entre deuses e os homens, entre céu e terra entre orum e aiê.
Sobre isto, nos diz Eliade (1969):
A repetição do ato cosmogônico não consiste tanto numa repetição dos processos
vitais, mas numa verdadeira e própria criação dos mesmos processos através da
repetição ritual daquele acontecimento primordial, arquetípico, que em 'illo tempore',
gerou a mesma vida. Existe um tempo mítico e primordial no qual tudo já aconteceu,
um tempo puro que se identifica com o instante da criação. (ELIADE, 1969: 33).
A energia cósmica dos orixás é revelada na dança, narrando o papel que
cada um desempenhou na criação do mundo e seus domínios sobre os elementos
da natureza, que por sua vez, possuem poderes sobre o destino dos homens. Este
papel é afirmado e reafirmado cada vez que o orixá põe-se a dançar para espalhar
sua energia, seu axé.
25
Esta expressão foi utilizada por Pai Nei durante a entrevista para definir o orixá. (ver Apêndice P, na página
180 deste trabalho)
110
A dança se torna uma forma de estar junto, de compartilhar emoções,
sentimentos e ensinamentos, através de uma estética e poética próprias. Ela
comunica afetiva e diretamente, produzindo sensações que permitem ao grupo
repensar sua dinâmica cultural e organização social. A dança revela-se como um ato
performático dentro da vida cultural dos indivíduos envolvidos nesta prática religiosa.
O conceito de performance na antropologia é transdisciplinar, surge de
questionamento e definições vindos de diversas áreas do conhecimento. Um
hibridismo bastante conveniente à análise destas imagens-signos-movimentos
igualmente mestiços e miscigenados.
O rito é visto como um ato performático, capaz de transformar o indivíduo e a
sociedade (GEERTZ, 1989). Segundo Turner (2005) os ritos criam um espaço de
liminaridade que permite que os indivíduos resolvam seus conflitos sociais,
restabelecendo a ordem da sociedade.
Através da liminaridade os ritos invertem a ordem social cotidiana para depois
restabelecê-la. Isto é, se iniciam com uma separação da vida cotidiana, para depois
voltar a ela. Aquilo que seria velado no cotidiano é revelado, estabelecendo um
momento de reflexão, onde os participantes refletem sobre si mesmo e sobre o
grupo, pensando sua própria sociedade.
Dentro da idéia de drama social26, os gêneros performáticos não se limitariam
ao campo das artes – teatro, concertos, etc – mas se expandiriam a elementos da
vida cotidiana – rezas, ritos, cerimônias, casamentos, etc. Isto porque estas seriam
atividades ligadas a um recorte de tempo, que possuem uma seqüência de
atividades programadas e um conjunto de atores, platéia, lugar e ocasião para
acontecer, como vemos no Xirê.
Deste modo, entendemos a dança de transe dos orixás como atos
performáticos. Através dela e seus movimentos se “dizem” coisas que não são ditas
cotidianamente, como os feitos míticos dos orixás e seus fundamentos. E quando
ela se encerra, junto com todo o Xirê, a vida cotidiana ordinária volta a se
estabelecer, envolta pelo axé do orixá, em equilíbrio e harmonia.
Ao produzir sensações em seus atores sociais, adentrar o campo da
liminaridade na vida social, comunicar por diversos meios expressivos, acionando
mecanismos poéticos e estéticos, é que entendemos a dança ritual de transe dos
26
O conceito de drama social cunhado por Turner segue o modelo proposto por Goffman (1983) e considera que
os indivíduos de uma sociedade são atores sociais que desempenham papéis sociais e estão a todo tempo um
jogo de negociação onde um tenta convencer o outro da importância de seu papel.
111
orixás, como uma dança performática do cosmo, através da qual o grupo pode
pensar sobre si mesmo e se comunicar com seus deuses.
O ato performático distingue-se pela sua dimensão poética e expressiva: a
experiência invocada pela performance é resultante do mecanismo poético e
estético de vários meios comunicativos expressados simultaneamente. O ato
performático envolve os atores sociais por meio da invocação e produção de
sensações de estranhamento do cotidiano. A performance se torna um importante
veículo de comunicação, não só pelo “Quê” ela expressa, mas pelo “Como” ela
expressa.
A dança sagrada assume uma dimensão de espetacularidade grupal e global,
promovendo a união dos participantes. Os movimentos da dança são minuciosos,
acontecem com e para a interação do grupo; pois é no coletivo que todos se
expandem e alcançam o bem-estar comum, além de assegurar a permanência do
todo, da comunidade religiosa.
A performance assume dimensões que dialogam e explicam o corpo, na
construção de um corpo mítico e sagrado. História de um corpo biológico que, ao
praticar formas de performances, revela também a história de um corpo cultural e
social.
4.1. A roda e o simbolismo do centro.
O Xirê é dançado em roda e a dança dos orixás desenvolve-se no centro
deste círculo de pessoas, que dançam tanto em torno de um centro comum- o meio
da sala -, quanto de um centro individual - o eixo de seu próprio corpo. O que nos
remete a configuração do sistema solar, com as atividades de rotação e translação
do planeta. Aqui novamente vemos configurada a conotação cósmica da dança
sagrada.
Segundo Eliade (1998), as formações circulares podem ser observadas em
diversas culturas. Elas partem da criação de um centro, que seria para o “centro do
mundo”. E ao ser recriado é o próprio mundo quem se recria.
No centro do terreiro do barracão onde giram e dançam os fiéis, se encontra o
fundamento da casa, o axé implantado no solo, que é o começo, o princípio das
112
forças daquela casa ou daquele terreiro. Isto é, o centro daquele mundo mágico,
místico e mítico que ali se encontra.
Voltando a Eliade (1998) com o simbolismo do centro, a roda ou o círculo
protege este centro do mundo e determina o espaço e quem pode adentrá-lo. Ao se
estabelecer em torno do axé casa, a roda do Xirê, com suas danças, protege o
terreiro e informa quem são os participantes e defensores dos segredos e mistérios
do grupo.
Os orixás dançam sempre no centro do barracão. Ou seja, estão sempre no
“centro do mundo”, em sua dança cósmica. E ao entrarem em contato com seus
filhos, estes estão em comunhão com o mundo.
Entretanto, o círculo não está presente somente na formação em roda ou no
giro individual dos filhos de santo. Eles se encontram também nas danças dos orixás
incorporados. Vários deles dão um salto acompanhado de um giro para afirmar seus
poderes e seus reinos (figura 32). As próprias divindades afirmam seus papéis,
estabelecendo os centros de seus mundos.
113
Figura 32 – Fotografia. O salto de Ogum sobre o Axé da casa: centro do mundo. Ekanda Moxicongo Luazyde.
Dezembro de 2008. Fonte: arquivo da autora.
4.2. Metonímia e Metáfora – expansão do campo semântico.
As danças acionam um campo de significado que permite que os atores
sociais identifiquem cada orixá e seus feitos mitológicos através da gestualidade.
Para pensar a maneira como estes gestos se inserem no campo semântico,
114
recorremos a duas figuras de pensamento da área da lingüística: a metáfora e a
metonímia.
A metáfora seria uma figura que, através da associação de idéias e conceitos,
expandiria o campo semântico de um determinado símbolo (LEITÃO, 1998). Uma
espécie de comparação que associa idéias de maneira tal que uma se torna a outra.
Pela metáfora o orixá torna-se vento, caçador ou guerreiro. Ele assume outra
forma que fazem parte de seu campo de significados engendrados pela narrativa
mítica. Metaforicamente as formas gestuais se tornam os elementos que pertencem
ao campo semântico daquele determinado orixá.
A metonímia também aproximaria idéias, mas através de uma unidade menor
que identifica uma parte maior. O macro contido no micro, como num fractal, onde
todas as partes expressariam o todo.
Pela metonímia sabe-se através de um pequeno gesto, como o do dedo
indicador tocando de uma mão tocando o polegar da outra (figura 30), que se trata
de uma dança para Oxossi ou que é o próprio Oxossi manifestado.
Dessa maneira, podemos observar o seguinte esquema de associação de
significados na dança dos orixás: a metáfora transforma o gesto e símbolo e a
metonímia identifica este símbolo ao todo.
Usando como exemplo a dança de Ogum, podemos dizer que ao apontar o
braço com as mães em riste, este metaforicamente assume a forma de espada. A
espada (ligada a uma série de elementos como as cores e o toque)27, por sua vez,
pela metonímia, identifica que se trata de orixá guerreiro.
Assim, poderemos apontar o seguinte esquema simplificado (figura 33):
27
Lembramos que a dança é uma imagem total ligada a uma série de elementos, que aqui foram dividas por fins
acadêmicos.
115
Figura 33 – Fotografia e desenhos. Metonímia e Metáfora. Fonte: organização da autora.
Obviamente, a produção de significados dentro do ritual é bem mais
complexa do que o esquema acima, pois leva em consideração uma gama de
elementos de informações diversas (roupas, cores, adornos, ritmos, cantigas, etc.)
aprendidos ao longo de vários anos de iniciação e vivência religiosas. O esboço
acima trata apenas de uma pequena parte deste ritual focando a gestualidade da
dança, a fim de facilitar o entendimento sobre a associação de significados que faz
com que o grupo identifique qual o orixá que está dançando e a narrativa mítica
ligada a ele.
Desse modo, a metáfora e a metonímia nos ajudam a entender como cada
orixá está relacionado a certos elementos e gestos que, por sua vez, o identificam.
Isto faz com que os orixás não só representem os elementos, mas assumam a forma
destes. Oiá-Iansã, por exemplo, não só representa o vento em toda a sua
gestualidade e movimento, mas ela é o próprio vento, que por sua vez a identifica
como Oiá. Da mesma maneira, Oxum é a água que dança fluida e leve ao banhar-se
nos rios, e assim por diante.
116
As danças sagradas não só transmutam o corpo do fiel em orixá, mas a
própria energia sagrada em movimento capaz de comunicar a narrativa mítica. O
orixá torna-se o próprio movimento e vice-versa.
Este esquema de significação nos auxiliará na identificação de algumas
formas básicas observadas no material empírico de nossa pesquisa. Três deuses se
apresentaram com um ponto de interseção entre os terreiros visitados: Ogum, Oxum
e Iansã. Como no Xirê são apresentados, no mínimo, dezesseis orixás, nossa
análise se aterá a este três orixás que apresentaram o maior número de imagens
para nosso estudo.
4.3. A postura “africana”
Câmara Cascudo (2001) revela a introdução de uma nova postura corporal à
cultura brasileira com a vinda dos escravos: o rebolado. As danças de origem
africana põem todo o corpo em movimento por meio de uma dinâmica que encontra
sua força propulsava em torno da bacia, conferindo ao corpo uma leveza e
elasticidade que se completa com um dobrar de joelhos, conferindo a famosa ginga
brasileira, presente em diversas manifestações de nossa cultura, como o samba e o
futebol.
É claramente observável o uso das articulações como as dos joelhos, sempre
dobrados, ou as dos cotovelos (figura 34). Isto faz com que o movimento se amplie.
A oscilação da bacia confere a todo corpo um movimento contínuo, que observamos
na dança dos orixás, não só as danças de transe como nas danças de louvação
durante a primeira parte do Xirê.
117
Figura 34 – Fotografias. Joelhos e mãos dobradas: uso das articulações. Fonte: Organização da autora.
4.4. A descrição do movimento.
Segundo Laban (1978), nas danças religiosas o movimento representa os
poderes sobre-humanos que dirigem tanto os acontecimentos da natureza, pessoal
e do grupo, criando um pensamento-movimento de articulação deslizante. Ao
deslizarem, o homem e sua divindade envolvem-se em uma experiência de infinitude
do tempo e cessação da gravidade, criando um novo universo.
Ao analisar os gestos da ação dramática, o referido autor diz ainda que as
formas e ritmos do movimento e dos gestos revelam uma atitude, seja ela objetiva
ou subjetiva, da pessoa que se move, caracterizando estados de espírito e traços de
personalidade (LABAN, 1978).
Entendendo as danças sagradas em sua dimensão dramática, na medida em
que se desenvolvem dentro do drama social do grupo, recorremos às teorias de
Laban (1978) ao tratar da análise do movimento dos orixás Ogum, Oxum e Oiá. Os
movimentos e seus gestos revelam traços de personalidade e intencionalidade
destes deuses, conhecidos através da narrativa mítica que os envolve.
Assim, utilizaremos as anotações sugeridas por Laban (1978) para descrição
do movimento, levando em consideração os seguintes fatores básicos:
— tempo – duração na qual o movimento se processa quanto à velocidade longo (tempo lento) e curto (tempo rápido);
118
— peso – peso do corpo em relação à lei da gravidade e da força, que seria a
quantidade de energia gasta: forte (muita energia), fraca (pouca energia) e os
graus de tensão (de tenso a relaxado);
— espaço, direção na qual o corpo se movimenta, isto é, a definição espacial
do corpo: alto, médio e baixo, o nível vertical e frente, trás e lado, no nível
horizontal;
4.5. As formas dançantes do ferro, do rio e do vento: Ogum, Oxum e Oiá.
4.5.1. Ogum.
Ogum teria sido o filho mais velho de Oduduá, fundador de reino de Ifé.
Guerreando contra os territórios vizinhos, Ogum expandiu os domínios do reino do
pai até fundar seu próprio reino na cidade de Irê, sendo chamado de Ogum Onirê
(Ogum rei de Irê), que, no Brasil, dá nome a uma das qualidades deste orixá
(VERGER, 2002).
Em cultos mais arcaicos Ogum também é associado à caça e à agricultura,
domínios de outro orixá, Oxossi, de quem em aparece ora como pai, ora como
irmão28 (PRANDI, 2001). Entretanto, foi seu aspecto guerreiro que mais se difundiu
nos cultos afro-brasileiro, tornando-se a divindade masculina associada à luta e à
conquista impiedosa, muitas vezes ligada á impulsividade e à violência, como vemos
nesta reza registrada por Verger (2002)
Ogum que, tendo água em casa, lava-se com sangue,
Os prazeres de Ogum são os combates e as lutas.[...]
Ogum que corta qualquer um em pedaços mais ou menos grandes.
Ogum que usa um chapéu coberto de sangue.
Ogum, tu és o medo na floresta e o temor dos caçadores.
Ele mata o marido no fogo e a mulher no fogareiro.
Ele mata o ladrão e o proprietário da coisa roubada.
Ele mata o proprietário da coisa roubada e aquele que critica esta ação.
Ele mata aquele que vende um saco de palha e aquele que o compra. (VERGER,
2002: 88)
28
No mitos registrados por Prandi (2001) há citações em que Ogum e Oxossi são irmãos e em outras são pai e
filho.
119
O arquétipo impulsivo e violento de Ogum também está presente no seu mito
de origem, como vemos nesta outra passagem, retirada de um mito registrado por
Prandi (2001):
Ogum era o rei de Irê, Oni Irê, Ogum Onirê.
Ogum usava uma coroa sem franjas chamada acorô.
Por isso também era chamado de Ogum Alacorô.
Conta-se que, tendo partido para a guerra, Ogum retornou a Ire depois de muito
tempo.
Chegou num dia em que se realizava um ritual sagrado. A cerimônia exigia a
guarda total do silêncio. Ninguém podia falar com ninguém. Ninguém podia dirigir o
olhar para ninguém.
Ogum sentia sede e fome, mas ninguém o atendia. Ninguém o ouvia, ninguém
falava com ele.
Ogum pensou que não havia sido reconhecido. Ogum sentiu-se desprezado. Depois
de ter vencido a guerra, sua cidade não o recebia. [...]
Humilhado e enfurecido, Ogum, espada em punho, pôs-se a destruir a tudo e a
todos. Cortou a cabeça de seus súditos. Ogum lavou-se com sangue. Ogum estava
vingado.
Então, a cerimônia religiosa terminou e com ela a imposição do silêncio foi
suspensa. Imediatamente, o filho de Ogum, acompanhado de um grupo de súditos,
veio à procura do pai. Eles renderam homenagens devidas ao rei e ao grande
guerreiro Ogum. [...]
Mas ogum estava inconsolável.
Havia matado quase todos os habitantes de sua cidade. Não se dera conta das
regras de uma cerimônia tão importante para o reino. Ogum sentia que já não podia
ser rei. [...] Estava arrependido de usa intolerância, envergonhado por tamanha
precipitação.[...]
Não tinha medida seu tormento e nem havia possibilidade de autocompaixão.
Ogum então enfiou sua espada no chão e num átimo de segundo a terra se abriu e
ele foi tragado solo abaixo.
Ogum estava no Orum, o Céu dos deuses, não era mais humano. Tornara-se um
orixá.
Se “o arquétipo do orixá guerreiro é o das pessoas briguentas, violentas e
impulsivas” (VERGER, 2002:95), o mito acima também ressalta sua imparcialidade
em exercer a justiça.
Ele é o dono do ferro, que serve para fabricar armas e instrumentos de
trabalho. Por este motivo, Ogum é o representante não só do conquistador, mas
também do trabalhador manual, do operário, daquele que transforma a matériaprima em produto acabado. É orixá da atividade criadora do homem sobre a
natureza.
O ritmo dedicado a Ogum é o adarrum, de andamento rápido e forte. Os
passos de sua dança, de mesmo nome, carregam estas mesmas características.
Podemos definir a dança de Ogum a partir da seguinte seqüência de ações
(figura 35):
120
I-
Pequenos saltos sobre o mesmo lugar, no centro do barracão,
acompanhado por gestos das mãos em diagonais, cortando o ar. Corpo
levemente inclinado para frente.
II-
Aceleração do passo e corrida;
III-
Parada diante dos atabaques e volta ao movimento I.
IV-
Giro sobre o próprio corpo voltando novamente ao movimento I.
Figura 35 – Fotografia e desenho digital. Seqüência dos movimentos de Ogum. Fonte: organização da autora.
Os movimentos de Ogum são rápidos, executados em tempo curto. As mãos
apresentam ficam tensas e retas, empregando bastante força de resistência à
gravidade. Já os pés, embora estejam igualmente rígidos, apresentam maior leveza
ao correr, tocando o chão poucas vezes, especialmente quando ocorre o salto.
Já vimos que as mãos eretas simbolizam a espada do guerreiro. Elas
celebram suas conquistas e suas lutas. Ogum movimenta-se por todo o espaço do
centro da roda do Xirê, inquieto e ágil, como o arquétipo ligado ao guerreiro.
121
Podemos atribuir o giro de Ogum também ao simbolismo do centro, visto
anteriormente, como a maioria dos giros dentro do candomblé, que celebram e
afirmam o mundo sagrado. Quando Ogum gira sobre si mesmo afirma seu reino, sua
potência de guerreiro e o povo de santo celebra, saudando deus da guerra: Ogunhê!
4.5.2. Oxum
Oxum é a senhora das águas doces, deusa do amor e da fertilidade. É a
“dona do ouro e da vaidade” (PRANDI, 2001: 22). Seus contos relatam a exuberante
beleza da deusa e sua determinação em obter as coisas, seja amor, dinheiro ou
fama, através deste atributo.
Dotada de grande suavidade, Oxum é, ao lado de Iemanjá, símbolo de
maternidade e feminilidade. Seu objeto sagrado é o abebê, uma espécie de espelho
que demonstra o quanto a divindade é vaidosa e preocupada com sua beleza, por
isso, gosta de se enfeitar com jóias, colares e perfumes.
Oxum é a segunda mulher de Xangô, tendo vivido antes com Oxossi, Ogum e
Orumilá (VERGER, 2002). É filha de Iemanjá29 com Oxalá e irmã de Oiá.
O arquétipo de Oxum é das mulheres sensuais e sedutoras, porém
reservadas e discretas (diferente de Oiá, que também é símbolo de sensualidade)
(VERGER, 2002). Ela é ligada à elegância e à esperteza paciente de quem sabe
controlar seus impulsos e agir na hora certa, sempre extremamente preocupada com
sua aparência e com a opinião alheia.
Abaixo, citamos trechos de alguns mitos que expressam as características
simbólicas de Oxum:
Mulher elegante que tem jóias de cobre maciço.
É uma cliente dos mercadores de cobre.
Oxum limpa suas jóias antes de limpar seus filhos. (VERGER, 2002:174)
Oxum morava perto da lagoa. Todos os dias oxum ia à lagoa se banhar; todos os
dias ia polir suas pulseiras, seus indés.[...]
Oxum ia à lagoa sempre esperando um amor, que viria, um dia, espreitando,
apreciar sua beleza. [...]
Aí um dia aproximou-se da lagoa um belo caçador e Oxum logo por ele se
enamorou.
29
Nos mitos descritos por Prandi (2001), aparece também como irmã de Iemanjá.
122
Dentro da lagoa, Oxum dançou suas danças, dançou para o jovem caçador danças
de amor, de sedução. E o caçador deixou-se atrair por tanto encanto.
O caçador enamorou-se de Oxum. Não via o rosto dela, encoberto pela cascata de
contas que escondia sua face dos olhar dos curiosos [...]. (PRANDI, 2001:327)
Perante Obatalá, Ogum havia condenado a si mesmo a trabalhar duro na forja para
sempre. [...].
Ogum estava cansado do trabalho de ferreiro e partiu para a floresta, abandonando
tudo.
Logo que os orixás souberam da fuga de Ogum, foram a seu encalço para
convencê-lo a voltar à cidade e à forja, pois ninguém podia ficar sem os artigos do
ferro de Ogum, as armas, os utensílios, as ferramentas agrícolas.[...]
Sem os instrumentos para plantar, as colheitas escasseavam e a humanidade já
passava fome.
Foi quando uma bela e frágil jovem veio à assembléia dos orixás e ofereceu-se a
convencer Ogum a voltar a forja. Era Oxum a bela e jovem voluntária.
Assim, Oxum entrou no mato e se aproximou do sítio onde Ogum costumava
acampar.
Usava ela tão somente cinco lenços transparentes presos à cintura em laços, como
esvoaçante saia. [...]
Ela dançava, o enlouquecia. Dele se aproximava e com seus dedos sedutores
lambuzava de mel os lábios de Ogum. E ela o atraía para si e ia caminhando pela
mata, sutilmente tomando a direção da cidade. Mais dança, mais mel, mais sedução.
[...]
Quando Ogum se deu conta, eis que se aproximavam ambos da praça da cidade.
Os orixás todos estavam lá e aclamavam o casal em sua dança de amor.
Ogum estava na cidade, Ogum voltara! [...]
Ogum voltou à forja e os homens voltaram a usar seus utensílios e houve plantações
e colheitas e a fartura baniu a fome e espantou a morte.
Oxum salvara a humanidade com sua dança de amor. (PRANDI, 2002:322)
Um dos ritmos mais conhecidos consagrados a Oxum é o Ijexá, ritmo
cadenciado de andamento cadenciado. A dança é caracterizada por um forte apelo à
sedução, que é uma das armas desta deusa, como vemos nas passagens acima.
Os movimentos de Oxum são contínuos, sem paradas, à semelhança das
águas dos rios, e tem um andamento constante. São executados em tempo longo,
isto é, lento, necessitando do emprego de pouca força, apresentando gestos
relaxados e ondulatórios, fluídos como a água dos rios da deusa.
Os passos são os pequenos movimentos rotatórios dos ombros. Os pés
fazem um movimento de abertura para o lado direito e para o lado esquerdo, e,
simultaneamente, abrem-se os cotovelos, girando sobre si mesma. O clímax da
dança da Oxum é o momento do banho, quando a deusa agacha-se ao centro do
barracão, retirando suas jóias e banhando-se nas águas do rio.
Podemos dividir a dança da Oxum nas seguintes partes:
V-
Dança com os braços dobrados à altura do peito, em caminhadas leves
123
feitas em círculo (figura 36)
VI-
Formação de um círculo no centro do barracão, em volta da deusa, que
se agacha no centro para a cena do banho da Oxum.
VII- Agachada, a deusa faz gestos com os braços como se retirasse seus
pertences para banhar-se em um rio (figura.37)
VIII- Ainda agachada, o corpo dobra-se sobre os joelhos, projetando-se à
frente com um fremir das articulações do ombro, o chamado Jincá, como se
mergulhasse nas águas dos rios.
IX-
A deusa levanta-se e volta ao movimento inicial de caminhada com os
braços à altura do peito.
124
Figura 36 – Fotografia e desenho digital. Oxum dançando Ijexá. Movimentos das mãos e pés. Ekanda Moxicongo
Luazyde, Dezembro de 2008. Fonte: Organização da autora.
125
Figura 37 – Fotografia e desenho. Oxum banha-se nas águas: movimentos fluidos. Fonte: arquivo da autora.
Oxum roda sobre si mesma e vemos aqui novamente o simbolismo do centro.
Girando sobre si mesma, mostrar sua beleza e o fato de que ela é uma mulher
senhora todas as belezas.
O centro do movimento de Oxum é a bacia, o que demonstra que ela é a
dona da fertilidade. Os movimentos ondulatórios se propagam até os ombros, como
uma pequena onda, que relembram o movimento das águas, domínios da deusa. Os
movimentos de Oxum são redondos, leves e suaves, que revelam a personalidade
da rainha das águas doces, que utiliza sua doçura e seu charme para atrair seus
amantes ou as coisas de que precisa.
O momento mais esperado da dança da Oxum quando ela toma banho e se
enfeita com anéis e jóias. A platéia em volta grita e saúda a deusa. Ela começa a
tirar os anéis, as pulseiras, o adé (coroa), pega a água atirando-a sobre si mesma,
com as mãos, abaixando-se até se ajoelhar para, novamente, pegar outra porção de
água que joga sobre si com uma mão, e depois com a outra, enquanto algumas
filha-de-santo, ao seu redor suspendem a sua saia e a movimentam como se fossem
126
pequenas ondas de uma lagoa ou um rio. Depois disso a deusa enfeita-se,
colocando outra vez os anéis, as pulseiras e a coroa e levanta-se andando em
direção aos atabaques para a saudação ritual: Ora Yè Yè ó!
4.5.3. Oiá
Oiá ou Iansã é a deusa dos ventos e das tempestades, rainha dos raios e dos
espíritos dos mortos, os quais ela encaminha para o outro mundo (PRANDI, 2002).
Oiá é a grande guerreira, bela e sensual, desafiadora e autoritária. Se Oxum é a
feminilidade conservadora e discreta, Oiá é dona de uma feminilidade mais
agressiva, ligada à ousadia e à independência.
Iansã é uma mulher que pode se transformar em búfalo. Rápida como o
vento, pode se esconder entre os bambuzais, vivendo na floresta, ou seguir
guerreando contra sues inimigos. Ela adentra os domínios do universo masculino,
competindo de igual pra igual.
Ela foi a primeira mulher de Xangô e única dentre as três esposas deste a
acompanhá-lo ao final de seu reinado, recolhendo-se para debaixo da terra com o
marido (VERGER, 2002). Ela viveu ainda com Ogum e deitou-se com diversos
orixás para conseguir seus poderes, como vemos no mito abaixo:
Iansã usava de seus encantos e sedução para adquirir poder. Por isso entregou-se a
vários homens, deles recebendo sempre algum presente.
Com Ogum, casou-se e teve nove filhos, adquirindo o poder de usar a espada e sua
defesa e dos demais.
Com Oxaguiã, adquiriu o direito de usar o escudo, para proteger-se dos inimigos.
Com Exu, adquiriu os direitos de usar o poder do fogo e da magia, para realizar os
seus desejos e os de seus protegidos.
Com Oxossi, adquiriu o saber da caça, para suprir-se de carne e a seus filhos. [...]
Com Logun Edé, adquiriu o direito de pescar e tirar dos rios e cachoeiras os frutos
d’água para a sobrevivência sua e de seus filhos.
Com Obaluaê, Iansã tentou insinuar-se, porém, em vão.
Dele nada conseguiu.
Ao final de suas conquistas e aquisições, Iansã partiu para o reino de Xangô,
envolvendo-o, apaixonando-se e vivendo com ele para a vida toda.
Com Xangô, adquiriu o poder do encantamento o posto da justiça e o domínio dos
raios. (PRANDI, 2002: 297)
Outro mito revela como Oiá, tornou-se a rainha dos Eguns, espírito dos
mortos e alguns aspectos de sua dança:
Certa vez houve uma festa com todas as divindades presentes.
127
Omolu-Obaluaê chegou vestindo seu capucho de palha.
Ninguém o podia reconhecer sob o disfarce e nenhuma mulher quis dançar com ele.
Só Oiá, corajosa, atirou-se na dança com o Senhor da Terra.
Tanto girava Oiá em sua dança que provocava o vento.
E o vento de Oiá levantou as palhas e descobriu o corpo de Obaluaê. Para surpresa
geral, era um belo homem.
O povo aclamou por sua beleza.
Obaluaê ficou mais que contente, ficou grato. E, em recompensa, dividiu com ela o
seu reino. Fez de Oiá a rainha dos espíritos dos mortos. [...]
Oiá então dançou e dançou de alegria. [...] quando ela dança agora, agita no ar o
iruquerê, o espanta-mosca que afasta os eguns para o outro mundo.
O quebra pratos ou ilú é o ritmo mais conhecido de Iansã. É um ritmo de
andamento rápido, com bastante dobradas ou variações nos toques dos atabaques,
marcado pelo contratempo.
A dança se inicia com os braços esticados para frente na altura dos ombros,
que se dobram na articulação dos cotovelos; depois, os braços balançam-se para o
lado direito e esquerdo, como se estivessem ao vento (figura 38).
Oiá locomove-se em linhas retas e quebradas, em movimentos ágeis com as
mãos e os pés. Os braços fazem movimentos rotatórios no ar (figura 39)., como se
espalhassem ou remexessem o vento, que é a própria deusa em movimento. Os pés
seguem movimentos retos, com linhas quebradas, em breves corridas (figura 40),
mudando de direção.
Movimentando–se em diversas direções, Oiá ocupando todo o espaço do
barracão. Algumas vezes, abre os braços, inclina a cabeça para trás e roda sobre si
mesma, desenhando uma espiral com o próprio corpo e locomovendo-se no espaço.
128
Figura 38 – Fotografia e desenho digital. Iansã com os braços ao vento. Ilê Axé Omo Ode. Maio de 2008. Fonte:
organização da autora.
129
Figura 39 – Fotografia e desenho digital. Oiá, espalhando o vento com seus braços. Ekanda Moxicongo Luazyde.
Dezembro de 2008. Fonte: organização da autora.
130
Figura 40 – Fotografia e desenho. Oiá, linhas retas e quebradas de movimento: a inconstância e agilidade do ar.
Ekanda Moxicongo Luazyde. Dezembro de 2008. Fonte: organização da autora.
A dança de Oiá-Iansã expressa tanto a energia da guerreira pronta para lutar,
imponente e agressiva, quanto a leveza e a fluidez do vento, do movimento do ar,
que é seu elemento primordial. Mas Oiá também é o fogo, visto quando roda em
espiral sobre si mesma, agitada como as labaredas.
Oiá – Iansã rodopia empurrando a parte superior do busto para frente e
abrindo os braços. Não está, portanto, em equilíbrio. Ao contrário apresenta o
desequilíbrio necessário ao deslocamento do corpo, em especial nas breves corridas
apresentadas em sua dança.
Oiá costuma dançar com Ogum e Xangô. Com o primeiro os movimentos tem
uma alusão sexual, celebrando o mito da grande paixão que Ogum tinha por Iansã.
Mas ela também luta com Ogum empunhando sua espada, enfrentando-o. Já com
Xangô, com quem Oiá fugiu de Ogum, traindo-o, ela dança seguindo-o passo a
131
passo, em sua marcha nas guerras. De uma maneira geral, as danças de Iansã
celebram este aspecto bravo e corajoso da guerreira.
Oiá é o símbolo da liberdade e coragem femininas, mulher que anda livre se
sem pedir licença a ninguém. E por isso quando ela corre a pula sensualmente,
frente aos atabaques, o povo de santo grita para a deusa: Eparrei Oiá!
4.5.4. As formas sinuosas da sensualidade.
Percebemos que os orixás femininos, como vimos em Oiá e Oxum,
apresentam formas mais arredondadas e sinuosas em seus movimentos de dança.
Podemos observar esta fluidez e sinuosidade também nas danças de Iemanjá e de
alguns orixás masculinos que podem assumir formas femininas como Logun Edé e
Oxumarê.
Na dança de Iemanjá (figura 41), a rainha do mar, notamos que os braços se
movimentam em forma de ondas. E corpo todo oscila neste movimento que lembram
as águas do mar, domínios de Iemanjá.
A
sinuosidade
destas
formas
dançantes
pode
assumir
gradações,
apresentando-se cadenciadas e leves como na dança de Oxum ou fortes e
marcantes como na dança de Iansã.
Também nas dançar de Exu, o orixá mensageiro, a divindade responsável
pela comunicação entre deuses e homens vemos uma certa sinuosidade que se liga
a sensualidade. Sua dança apresenta movimentos em espiral, assim como a dança
das deusas citadas acima. Durand (1997) sugere que a espiral simboliza a
permanência do ser, através das flutuações da mudança da vida. Ela expressa a
evolução a partir de um centro, simboliza a vida, porque indica o movimento numa
unidade de ordem ou, ao inverso, a permanência do ser na mobilidade.
O movimento circular confere uma sensualidade que resgata o aspecto
feminino e sedutor das deusas. Eliade (1998) diz que a feminilidade esteve muitas
vezes associada ao binômio lua – água, formando uma tríade relacionada à
fecundidade e à geração da vida. O autor diz ainda que “desde o neolítico a água
era representada por formas circulares, ou linhas onduladas” (ELIADE, 1998:154).
Desta maneira podemos associar as linhas sinuosas da iabás, orixás femininos, a
132
sua feminilidade e seu poder de sedução, que por sua vez, são marcas do
imaginário do universo feminino.
Figura 41 – Fotografia e desenho. Formas sinuosas das água de Iemanjá. Fonte: arquivo da autora.
4.5.5. As formas retas da lutas e das guerras.
Os orixás masculinos ligados à guerra ou a caça, como Ogum, Oxossi e
Xangô apresentam movimentos mais rígidos em formas retas. Os movimentos são
fortes quebrados, em oposição à sinuosidade e o balanço feminino.
133
Vimos que Ogum apresenta grande agilidade nos movimentos, está sempre
guerreando contra os inimigos. Os braços assumem formas retas que simbolizam a
espada do guerreiro (como visto anteriormente). Iansã, quando está guerreando
também apresenta os mesmos movimentos.
Oxossi apresenta a postura bastante ereta no movimento da dança em que
simula cavalgar de seu cavalo. Os pés vão para frente e para trás no cavalgar do
Orixá caçador (figura 42).
Figura 42 – Fotografia e desenho digital. Oxossi e as formas retas e movimentos rígidos. Abaffá da Oxum Apará.
Maio de 2008. Fonte: organização da autora.
Xangô, como Oxossi, apresenta uma postura bastante ereta enquanto parece
marchar sob seu ritmo forte e compassado. Um passo de cada vez, com os pés
batendo forte no chão, marcha o grande Rei, deus do trovão. Seus movimentos
possuem bastante força, como a pedreira que o simboliza (figura 43)
A reta é associada à simplificação da forma, o que se liga à praticidade
atribuída ao universo masculino. Os orixás masculinos trabalham ainda com
movimentos de força que relembram seu passado mítico como reis, guerreiros ou
caçadores, celebrando a coragem e bravura destes orixás.
134
Figura 43 – Fotografia e desenho digital. Xangô: formas retas. Fonte: Organização da autora.
As formas apresentadas acima podem se interligar, se misturar de acordo
com as qualidades e idade de santo e só estas possibilidades de hibridizações já
seriam material para um novo estudo. Os orixás femininos podem assumir formas
retas para simbolizarem a guerra ou a caça (como em Iansã) dependendo a que
qualidade pertence aquele orixá ou que narrativas míticas o envolvem. O que nos
revela que é preciso sempre lembrar a hibridização e possibilidade de combinação e
criação de elementos que possui este sistema cultural e religioso.
135
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história do candomblé está ligada à história da escravidão no Brasil e, com
isto, à diáspora africana30. Os escravos que haviam perdido mais do que seus
lugares de origem, seus costumes, suas crenças, suas famílias, seus lares,
encontraram um valioso instrumento de sobrevivência: a memória.
A memória aliada à imaginação e à criatividade, marcas de nossa
humanidade, permitiram a ressignificação de símbolos e a criação e demarcação de
um espaço totalmente novo e híbrido onde estes povos pudessem se expressar.
A religião dos orixás propiciou não só a sobrevivência dos negros que aqui
chegaram, mas perpetuaram sua existência através da memória simbólica até os
dias de hoje. A história/memória social se faz presente na estética ritual do
candomblé, marcando o que poderíamos chamar de afro-brasilidade.
O candomblé hoje não é mais só “religião de negro”, “coisa de preto”,
“batuque” ou macumba. Seu legado está em ritmos, gestos, expressões verbais e
vestimentas presentes em diversas formas de manifestação artística – coco, samba
de roda, samba, maracatu, entre outros. Invadiu as ruas, os mercados, a culinária, a
moda e as artes.
A religião dos orixás, entre outras expressões, possibilitou a perpetuação e
reinvenção da memória africana, através de processos dinâmicos de negociações,
aberturas e fechamentos com as culturas dominantes. Passou de proibido a exótico.
De exótico a patrimônio de nossa cultura.
30
Utilizamos aqui o conceito de Diáspora proposto por Stuart Hall (2003) ao falar do deslocamento espacial de
determinados povos que possibilitou a reestruturação das identidades culturais dos mesmos em locais diversos.
136
Figura 44 – Fotografia. Capa do cd de Vinícius de Morais e Baden Powell. Influência africana do candomblé na
industria fonográfica. Fonte: http://www.rabisco.com.br/84/imagens/afro_samba06.jpg
Figura 45 – Fotografia. Roupa de santo no mercadão de madureira: moda. Fonte:
http://g1.globo.com/Noticias/Rio/foto/0,,11792722-EX,00.jpg
137
Figura 46 – Fotografia. Balé Folclórico da Bahia: influência do candomblé no teatro. Fonte:
http://g1.globo.com/Noticias/Rio/foto/0,,11792722-EX,00.jpg
Figura 47 – Fotografia. Baianas do acarajé: as roupas e a culinária do candomblé nas ruas. Fonte:
http://oglobo.globo.com/blogs/bordo/post.asp?t=pernambuco-turismo-de-aventura-artesanato-sao-destaque-noriocentro&cod_Post=14560&a=49
138
As imagens acima mostram que as formas estéticas religiosas do candomblé,
seja na música, no movimento, na culinária ou nas vestes, podem também ser
espetacularizadas. São esvaziadas de seu sentido sagrado para serem apreciadas e
consumidas em seu puro esteticismo, dentro até mesmo do próprio universo
religioso que as originou.
Para aqueles que participam da fé nos orixás, o contato com os deuses é
pautado em um a relação corpo a corpo e o conhecimento é construído também por
esta relação. Segundo o consenso religioso do grupo em questão, o conhecimento é
galgado ao longo de anos de iniciação, onde o iniciado terá de adquirir uma nova
visão de mundo fundamentada numa consciência do corpo e nas suas percepções.
Por este motivo, quando um iaô é feito, diz-se que é um novo nascimento: do
indivíduo e seu orixá.
O corpo tem de ser cuidado, ensinado, para ser marcado, adornado e entrar
em comunhão com o grupo. Através dele se ensina, se cuida do outro, criando um
corpo coletivo e individual, um corpo histórico, sensível e social.
A ligação com o sagrado permeia o cotidiano, passando do extraordinário ao
ordinário, criando uma rede afetiva que permite que os fiéis se reconheçam como
uma família, a família de santo. Há um fluxo de continuidade de existência desde o
ancestral até o recém-nascido, seja no âmbito carnal seja no espiritual (BÁRBARA,
2004).
O corpo no candomblé é visto como algo uno, não dividido, como um todo
integrado, fundamentado na junção das partes que formam o ser humano, numa
dinâmica "dançante". E é este corpo que possibilita a construção de um
conhecimento sensível calcado na percepção.
Essa concepção difere daquela da concepção tradicional ocidental, segundo
a qual o saber é advindo do uso lógico de uma razão dissociada de um corpo, vista
nas teorias de filósofos como Platão (1972), Sócrates (470-399 a.C apud PLATÃO,
1972.) e Descartes (1988).
− E, agora, diz-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente sabedoria, é ou não
o corpo um entrave, se, na investigação, lhe pedimos auxílio? [...] Não é também
este teu modo de ver?
− É exatamente este.
− Quando é, pois, que a alma atinge a verdade? Temos dum lado que, quando ela
deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questão que seja, o corpo, é claro,
a engana radicalmente.” (PLATÃO, 1972:65)
139
No candomblé, corpo não se coloca como entrave à sabedoria, mas sim
como condição para que ela se construa, sempre gradualmente conforme se
vivenciam os ritos e mitos religiosos. É através dos sentidos corporais em sua
totalidade sinestésica, comendo, ouvindo, tocando, dançando, imaginando, que o
conhecimento se dá.
Neste sentido nos aproximamos do que diz Merleau-Ponty (1995) sobre a
relação corpo e conhecimento: o corpo como condição de possibilidade do ser no
mundo. É com o corpo que o homem se posiciona, cria, inventa, recria, colocandose em relação consigo mesmo e com o outro. E isto confere ao homem sua
dinâmica social que o revela como ser cultural.
Dentro desta dinâmica cultural do candomblé encontraremos a configuração
de um sistema estético que participa do sistema cognitivo do grupo. Esta estética
igualmente calcada na corporeidade, através da dança, do canto, das vestimentas,
põe em discussão um conceito de belo próprio expresso pela palavra iorubá odara.
Odara expressa um ideal de beleza para além da pura forma. Mas um ideal
de beleza regido pelo apego ao que o grupo legitima como tradição e ao
aprendizado alcançado em anos de iniciação nestas experiências “corporizadas”.
O potencial estético está ligado à funcionalidade do ritual. Se ele está odara,
compartilha axé, espalha boas energias através do contato entre deuses e homens,
então, cumpre sua função religiosa. Porém, se fugir completamente à tradição, o
ritual se torna feio e sem sentido e os deuses, infelizes por não serem agradados,
não espalham seu axé, ridicularizando a casa e a família de santo.
No entanto, esta tradição, ainda que pareça tão hermética, permite dobras,
negociações, incorporando novos elementos, hibridizações. As cores e formas
rituais podem assumir uma gama infinita de matizes, de gradações que dependem
do gosto pessoal do pai-de-santo, da qualidade-do-santo, ou da vontade de “fazer
bonito”. Ou seja, a associação de todos os elementos que compõem esta série de
fatores permite que a tradição, assim como os deuses, dance, criando uma órbita
onde o sentido pode se movimentar de acordo com as negociações engendradas
por aquilo que é legitimado como tradicional pelo grupo. A dança dos orixás também
obedece a este padrão estético. O orixá também precisa estar odara quando
incorpora em seus filhos.
Refletindo sobre o fato da dança sagrada dos deuses ser ensinada aos iaôs
durante a feitura do santo, sendo aprimorada ao longo dos anos, percebe-se que
140
isto cria o que poderíamos chamar de uma técnica corporal que permite aos filhos
de santo adequar seus corpos às vontades dos deuses, adornando-os e dançando
conforme os movimentos deles.
E aqui nos remetemos às considerações de Mauss (2003) sobre a técnica
como um saber tradicional e eficaz:
Chamo técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que nisso não difere do ato
mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser tradicional e eficaz. Não há técnica e
não há transmissão se não houver tradição. Eis em que o homem se distingue antes
de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por
sua transmissão oral. (MAUSS, 2003: 407)
O corpo, em especial, na dança, torna-se o meio de expressão por excelência
do orixá, já que este, na maioria dos casos e, principalmente, nos rituais observados,
não possui o poder da fala. Isto faz com que a comunicação entre deuses e homens
se estabeleça neste corpo dançante.
Os orixás necessitam entrar em contato com o aiê para restabelecer a
harmonia mítica primordial de quando homens e deuses conviviam em um mesmo
espaço. Para matar a saudade dos humanos, os orixás descem a terra na roda do
Xirê, recriando o mito de origem, recriando o mundo.
E isto se dá porque, no candomblé, os orixás e os homens fazem parte de um
mesmo continuum. Ambos são sujeitos cósmicos, constituidores de mundo(s).
Entretanto, os orixás não são sujeitos disfarçados de humanos, mas ganham sua
humanidade exatamente por serem sujeitos dentro do ritual (CASTRO, 2002).
Sujeitos dotados de personalidades, vontades, laços afetivos, alma.
Neste sentido, o candomblé se aproxima do animismo analisado por Viveiros
de Castro (2002) sobre os sujeitos cósmicos ameríndios, onde os animais, assim
como os orixás afro-brasileiros, possuem alma e personalidades humanizadas e
“humanizantes”:
Deixemos claro: os animais e outros sujeitos dotados de alma não são sujeitos
porque são humanos (disfarçados), mas, ao contrário, são humanos porque são
sujeitos (potenciais). O animismo não é uma projeção de qualidades humanas
substantivas sobre os não-humanos; o que ele exprime é uma equivalência real
entre as relações que humanos e não-humanos mantêm consigo mesmo.
(CASTRO, 2002:374)
141
Deuses e homens compartilham diferentes estados de uma mesma matéria
que pode se transubstanciar: o corpo. E, neste sentido, constituem “uma socialidade
englobante” (CASTRO, 2002:364).
Para
Viveiros
(2002)
a
divindade
é
‘encorporada’31
ao
se
fazer
forma/presença em rituais e celebrações dos povos ameríndios. Aspecto que se
aproxima dos rituais afro-brasileiros.
Os orixás são ‘encorporados’ ao se tornarem presença nos rituais, assumindo
a forma corporal humana. Os deuses são incorporados, encarnados e também
‘excorporados’, exteriorizados em formas, gestos e personalidades humanas. O
transe das danças sagradas faz parte de um esquema de percepção e ação onde a
forma corporal humana é aprendida pelo deus e vice-versa.
Este aprendizado corporal expande-se ao cotidiano, fazendo-se presente nos
gestos de saudação aos mais velhos, nas posturas corporais, nos modos de agir.
Podemos dizer que no candomblé é o próprio conhecimento que é ‘encorporado’. As
formas corporais humanas são aprendidas e exteriorizadas por humanos e nãohumanos.
Os deuses ‘encorporados’ são vestidos e adornados para dançarem para a
comunidade religiosa, criando uma rede de comunicação composta por informações
e linguagens de diversas naturezas, fundamentada nas narrativas míticas. Estes
elementos compõem um sistema estético que comunica não só o mito, mas os
modos de fazer, agir e pensar do grupo.
O sistema estético configurado pelo candomblé e observado durante o Xirê é
permeado por um universo simbólico, pautado pelo mito expresso nos ritos. Cada
riqueza de detalhe rememora e celebra as narrativas míticas, trazendo à tona a
memória, construindo saberes.
A relação entre estética-símbolo-saber se aprimora com o passar o do tempo,
com as obrigações que renovam e reafirmam as alianças afetivas entre iniciado,
orixá e religião. Por este motivo se pode entender porque aos mais velhos de santo
é dado o direito de usar mais detalhes e mais elementos em suas roupas e seus
adornos, ao mesmo tempo, tanto sua dança como sua incorporação ficam mais
‘firmes’, mais odara. A estética se torna mais complexa para abarcar a complexidade
do saber galgado ao longo de anos e anos de iniciação no processo de
‘encorporação’ do saber.
31
Ver definição do termo na introdução deste trabalho (p.24).
142
A memória simbólica costura a enorme colcha de retalhos formada pelos
elementos estéticos e sociais do ritual, alinhavando esta massa fluida que
chamamos cultura. Ela opera um conhecimento sensível, não só por ser agenciado
pelos sentidos, mas porque através dele coloca os indivíduos em relação, em
movimentos uns com os outros afetivamente.
No candomblé, estas relações assumem a estrutura hierárquica da família, a
família de santo, que, como a família ‘social’, possui toda uma gama de laços
afetivos, de fissuras, de desdobramentos que formam sua árvore genealógica. Esta
que, em última instância, se apresenta como uma árvore genealógica da própria
cultura, pois fala da história dos povos e seus modos de perceber, saber e fazer.
Para Maffesoli (1996) esta capacidade afetiva sustenta uma economia
simbólica que preside a sociabilidade dos seres humanos, ‘enformando’ padrões de
gosto, relações, técnicas e posturas. ‘Enformam’ porque possuem uma forma, uma
plasticidade comunicante, modos de pronunciamentos e discursos que trazem
consigo o universo simbólico tanto individual como coletivo. E esta forma é o que
funda uma comunidade, o que põe os sujeitos em comunhão, sejam eles humanos,
animais, orixás, deuses, plantas, etc.
143
Figura 48 – Fotografia. Silêncio e afetividade de orixá: comunhão entre deuses e homens. Fonte: arquivo da
autora.
As imagens apresentadas neste trabalho buscaram apresentar estas formas
e, com elas um pouco destes modos de ver, perceber e sentir dentro do candomblé.
A imagem em suas variadas formas, dançantes, cromáticas, comunicam o saber
‘encorporado’ afro-brasileiro.
A potência que a imagem suscita nos levou a respeitar cada vez mais o
silêncio e a reserva do povo de santo ao nos receber em suas casas. Ao retratá-los
em imagens ou palavras, algo muito caro está em jogo, aquilo que os diferencia, que
compõe suas histórias de vida, suas percepções, seus afetos e seus gostos: o
sagrado. Aquilo que não se pode falar se exprime em formas.
O sentido das formas é compartilhado na dádiva silenciosa do axé. Dádiva na
medida em que se torna uma troca simbólica que se insere na trilogia do dar,
receber, retribuir (STEFFEN, 2008:143). Esta “coisa” partilhada pode ser uma dança,
uma magia, um nome, um ser humano, enfim, tudo aquilo que faça sentido, que
possa criar no outro obrigações, uma espécie de dívida (GODELIER, 1996).
A dádiva é definida por Mauss (2003) como um fato social total que exprime
várias instituições sociais: jurídicas, econômicas, religiosas, morais, estéticas e
morfológicas.
Assim, o filho de santo precisa dar o seu melhor para o orixá, seja em objetos
materiais – comidas, roupas, adereços, instrumentos, etc – seja sob a forma de afeto
– carinho, agrado, verdade, etc. O orixá recebe a ‘energia’ oferecida e a retribui sob
a forma de axé. Quando este ciclo se completa o ritual fica odara.
O sentido é partilhado na forma. A imagem do sagrado é sentida e confere
sentido vestindo-se, movendo-se, colorindo-se, miscigenando-se, para estar sempre
odara.
144
6.
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______. Floresta de Símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Rio de Janeiro: Eduff,
2005.
VALVERDE, Monclar (org.). As formas do sentido: estudos em estética da
comunicação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
VELHO, Gilberto. Sistema Cognitivo e Sistema de Crenças. Comunicação. Rio de
Janeiro: PPGAS/ UFRJ, 1984
VERGER, Pierre. Orixás. São Paulo: Corrupio, 2002.
ZALUAR, Alba. Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1990.
149
APÊNDICE A
Ficha de identificação Dona Marina
Informante: DONA
MARINA
Entrevistado Em: 02/04/2007
Identificação Civil
Nome:
MARINA MELLO
Idade:
66 ANOS
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
-------------
-----------------
Localização
-----------------
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
MARINA DE AIRÁ
50 ANOS
Função ou Cargo:
MÃE DE SANTO
150
APÊNDICE B
Ficha de identificação Pai Nilton
Informante:
Entrevistado Em:
PAI NILTON
20/05/2008
Identificação Civil
Nome:
NILTON DE OLIVEIRA
Idade:
52 ANOS
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
ABAFFÁ DA OXUM APARÁ
JEJE
Localização
REALENGO, RIO DE JANEIRO, RJ.
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
PAI NILTON DA OXUM
40 ANOS
Função ou Cargo:
PAI DE SANTO
151
APÊNDICE C
Ficha de identificação Ogã Marcelo
Informante:
Entrevistado Em:
OGÃ MARCELO
20/05/2008
Identificação Civil
Nome:
Idade:
MARCELO DE ANDRADE CORRÊA
36 ANOS
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
ABAFÁ DA OXUM APARÁ
JEJE
Localização
REALENGO, RIO DE JANEIRO, RJ.
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
OGÃ MARCELO
15 ANOS
Função ou Cargo:
OGÃ
152
APÊNDICE D
Ficha de identificação Pai Rodrigo.
Informante:
Entrevistado Em:
PAI RODRIGO
23/04/2008
Identificação Civil
Nome:
Idade:
RODRIGO MOREIRA DE LIMA
35 ANOS
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
ILÊ OMO ODÉ
JEJE-MAHIN
Localização
MAGALHÃES BASTOS, RIO DE JANEIRO, RJ.
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
RODRIGO D’TOGBO
12 ANOS
Função ou Cargo:
PAI PEQUENO
153
APÊNDICE E
Ficha de identificação Mãe Deinha
Informante:
Entrevistado Em:
MÃE DEINHA
23/04/2008
Identificação Civil
Nome:
Idade:
ANDRÉA DOS SANTOS RODRIGUES
36 ANOS
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
ILE OMO ODÉ
JEJE-MAHIN
Localização
MAGALHÃES BASTOS, RIO DE JANEIRO, RJ.
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
MÃE DEINHA DE OIÁ
16 ANOS
Função ou Cargo:
MÃE PEQUENA
154
APÊNDICE F
Ficha de identificação Ekédi Vânia
Informante:
Entrevistado Em:
EKÉDI VÂNIA
23/04/2008
Identificação Civil
Nome:
Idade:
EDVÂNIA DE SOUZA PEREIRA
40 ANOS
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
ILE OMO ODÉ
JEJE-MAHIN
Localização
MAGALHÃES BASTOS, RIO DE JANEIRO, RJ.
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
EKÉDI VÂNIA
20 ANOS
Função ou Cargo:
EKÉDI
155
APÊNDICE G
Ficha de identificação Pai Nei
Informante:
Entrevistado Em:
PAI NEI
06/12/2008
Identificação Civil
Nome:
Idade:
SIDNEI FERREIRA DE MORAES
45 ANOS
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
EKANDA MOXICONGO LUAZYDE
ANGOLA
Localização
PIABETÁ, RJ.
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
NEI DE XANGÔ
25 ANOS
Função ou Cargo:
PAI DE SANTO
156
APÊNDICE H
Ficha de identificação Pai Maurício
Informante:
Entrevistado Em:
PAI MAURÍCIO
06/12/2008
Identificação Civil
Nome:
MAURÍCIO DA SILVA
Idade:
42 anos
Identificação do Terreiro
Nome:
Nação:
EKANDA MOXICONGO LUAZYDE
ANGOLA
Localização
PIABETÁ, RJ
Identificação religiosa
Nome de santo
Idade de santo:
MAURÍCIO DE OXUM
20 ANOS
Função ou Cargo:
PAI PEQUENO
157
APÊNDICE I
Entrevista Dona Marina.
Kate: Quantos anos a senhora tem de feita?
Dona Marina: uns 50 anos, vou fazer 67 e fui feita aos 17 anos...
K: E como a senhora entrou pra religião?
D.M: Quando eu era bem pequena, tinha uns 7 anos, eu acho, meu avô faleceu. E
eu um dia falei pra minha mãe que tinha visto ele lá em casa. Aí eu ficava tendo
visões e uma amiga da minha mãe disse pra me levar num terreiro perto de casa pra
eu ver isso. Quando chegou lá a moça disse que eu tinha que dar um bori, porque
eu era médium e pra eu não ter medo, porque essas visões iam me acompanhar pra
vida toda. Fui crescendo e comecei a freqüentar a religião. Era um terreiro de Jeje.
Naquela época era tudo muito diferente de hoje, sabe. Era tudo mais difícil. Quando
eu fui feita, eu tinha 17 anos e o resguardo era de 6 meses. 6 meses sem namorar,
sem sair de casa, a gente só podia sair par trabalhar e estudar, mesmo assim de
cabeça baixa, toda de branco e com a cabeça coberta! Hoje, o iaô com 3 meses já
pode sair do resguardo. A gente sentava no chão, comia com a mão, não podia
comer certas coisas, sabe? Tinha que tomar abô, aquela erva que é fedorenta a
beça! Ficava assim num porrão enterrado no chão, a gente tinha que tomar aquilo.
Era tão ruim que o santo até passava! (risos) Só no roncó a gente passava uns dois
meses! É, minha filha não era mole não, ta pensando?
K: A senhora tem cargo de mãe de santo, né? Mas não abriu casa...
DM: É... eu, na verdade, tinha cargo de mãe de santo, né? Então, você tem toda
uma preparação pra ser mãe de santo. Faz as obrigações até dar 7 anos de santo,
quando você já pode abrir sua casa e pegar sua ‘mão de faca’ que é passada
através da sua mãe de santo. Aí você já pode abrir sua casa. Mas eu não queria
abrir casa não, por que é uma vida toda dedicada aquilo né? Então, eu ajudava
muito no terreiro onde eu freqüentava. Aí meus irmãos foram abrindo suas casas e
eu ia, e eu ia e dava obrigação pra tapear o orixá, né? Porque o orixá cobra, né,
minha filha? Então, eu tinha que abrir casa, mas não queria abrir. Eu não gostava
dessa coisa de receber santo! Eu tinha que trabalhar, eu cuidei da Luciana [filha]
158
sozinha, a gente morava num barraquinho lá na tabajara, foi uma época muito difícil.
Aí eu fui tapeando, tapeando, dando obrigação, dando bori e não abri casa
nenhuma. Cuido das minhas coisas, meus santos hoje estão na minha casa, mas
não abri casa de santo não. Tem um pai de santo que também cuida das minhas
coisas. “Vou lá nele e resolvo tudo e pronto.”
K: Dona Marina, eu queria entender um pouco mais da dança dos orixás. Porque
eles dançam?
DM: Ah, minha filha! O Orixá dançando na sala é a coisa mais bonita que tem nesse
mundo! Na hora que um orixá está na sala e dança... olha é uma emoção só. Mas
eu não sei te dizer por que eles dançam não, mas que eles gostam de dançar eles
gostam! O orixá gosta de ser agradado, de estar bem vestido, com as obrigações
feitas, se ele estiver feliz, ele dança que é uma beleza. Depende também da ekedi
ou do pai de santo que eles é que botam o santo pra dançar. Se a ekedi não souber
puxar o santo, a dança fica feia, o orixá fica murchinho... mas quando o pai de santo
sacode o adjá com força, e balança e balança, ih, o orixá dança que é uma
maravilha! (risos) Aí a festa fica bonita! Ai o santo gosta, todo mundo gosta! Quando
o orixá ta dançando na sala, ele ta ali mandando axé, sabe, mandando coisas boas,
ninguém sai dali ruim, porque o orixá é só bondade. Quando é uma feitura, então,
que o orixá ta novinho, nascendo... nossa, é muito bonito! Você vê que o orixá está
ali! Que ta bem feito! E quem tem santo, roda, ta? Na hora então que o roixá dá o
nome, quem tem santo bola! Se eu fosse você, tomava cuidado! (risos)
K: Cada orixá dança de um jeito, né, Dona Marina? Como é, eles mudam muito de
nação pra nação? Queria que a senhora me falasse um pouquinho sobre isso...
DM: Muda um pouco. Mas é quase a mesma coisa. Não muda muito não. Muda uma
coisa ou outra, uma cantiga, um passo... Mas eles dançam de acordo com as
qualidades. Tem Oxum que dança mais rápida, tem umas que dançam mais
devagar, porque tem Oxum que caça, tem Oxum que não caça. Isso depende muito,
né? Mas elas dançam, assim, um jexá, aquele com a mão aqui assim. Iansã já
dança mais rápida, porque ela é a rainha dos raios e das tempestades, né minha
filha. E quando ela faz assim com a mão é porque está espantando os eguns,
porque Iansã é a dona dos eguns também, ela é guerreira, quando ela ta batendo
com o chicote é que ta mandando os eguns embora. O Xangô, que é meu pai,
159
também, é outro que tem o toque rápido, mas ele dança mais forte assim, porque ele
é rei, né? Então, ele vem com a coroa dele e com o machado e as vezes ele faz
assim que é quando ele ta guerreando. Aí, assim, vai. Tem o logun, que quando ele
faz assim ele ta lavando a roupa da mãe dele, que é a Oxum, e quando ele faz
assim ele está caçando, igual ao pai dele, que é Oxossi. Oxossi também, dança
cavalgando, pulando assim, as vezes ele rola no chão quando ele está caçando.
Então, essas coisas servem pra gente ver que o orixá ta ali mesmo, que esta
defendendo a casa de santo, que está ali. Aí, cada nação vai fazer isso de um jeito,
porque cada uma tem um jeito de tratar o orixá. Mas foi como eu te falei, eles vão
contando a história deles e isso traz o axé pra casa de santo. E cada santo traz uma
coisa. Oxossi traz a fartura, porque ele é o deus da caça. Em casa de filho de Oxossi
não pode faltar é comida! Oxum traz o amor, a maternidade. Logun traz a alegria de
menino, porque ele é um menino. Obaluaê protege das doenças, cura. Iansã
espanta os eguns e as coisas ruins. E assim vai, tem um monte de coisas! Só com o
tempo mesmo...
K: Mas pelo que a senhora falou, então, os movimentos têm a ver com o
temperamento ou a personalidade de cada orixá...
DM: Ah, tem! Tem sim! Mas também com a qualidade daquele orixá, com os anos
de feito do orixá. Porque o orixá ele é ensinado se comportar, a ter postura, então,
isso depende de como o orixá vem. Se ele já vem mais ou menos doutrinado. Mas
os toques já são assim, como se diz, uma característica que cada orixá tem, porque
aí você vê o alujá, que é mais rápido eles são tocados pra Xangô, Iansã, que são
marido e mulher e também mexem com o fogo, né? Foi Xangô que deu pra Iansã o
poder de mexer com o fogo. Ela acompanha Xangô na guerra, Oxum não, Oxum
cuida da casa, faz tudo pra que ele possa guerrear, mas não guerreia com ele.
Quem guerreia é Iansã! Elas duas são mulheres de Xangô e ciumentas à beça! As
vezes dá até briga quando elas estão dançando com ele!
K: É mesmo? Mas elas brigam, igual a gente briga?
DM: (risos) é brigam assim na dança, uma quer se mostrar mais pra outra, se exibir
sabe, pra poder ganhar o amor de Xangô. Porque Oxum é o grande amor de Xangô,
ela é o kekê de Xangô! Mas ele admira muito Iansã, porque ela é muito companheira
dele, vai pra guerra e está com ele o tempo todo! Aí pronto, dá-se a confusão!
160
Ninguém gosta de ver o marido da gente admirando outra mulher né, milha filha?
(risos)
K: É verdade... E me diz uma coisa, um orixá já “nasce” sabendo dançar? A senhora
falou que eles tem que ser ensinados...
DM: O orixá ele é um ser superior, né? Então, ele sabe tudo! Mas ele tem que ser
ensinado nos modos aqui da gente. Então, muitas vezes, ele já sabe dançar, mas o
que acontece é que ele tem que ter alguém pra guiar ele, porque ele não pertence
ao Aiê [terra], ele pertence ao Orum [reino dos Orixás], então, ele vem aqui nos dar
axé, mas ele é de outro lugar. Por isso, quando um orixá nasce, a gente vai dando
pra ele postura, pra não ficar feio, né? Imagina um Orixá todo torto que não sabe
dançar direito, ah num pode não... Tem que ficar tudo bonito pra festa. Tem que ficar
tudo bonito porque orixá não gosta de feiúra não, de coisa mal feita, não gosta
mesmo. Orixá gosta de coisa bonita! Ele gosta das coisas boas! De ver que seus
filhos estão agradando eles.
K: Eu reparei também que mesmo quem não está incorporado também dança...
DM: É porque é assim, na hora da roda, a gente vai tocando pra todos os orixás na
ordem do xirê, que é assim, primeiro pra Exu, porque ele é o mensageiro, ele que
abre os caminhos, depois pra Ogum, pra Oxossi, Ossaim, Obaluaiê, Oxumarê.
Xangô, Logun, Oxum, Iansã, Oba, Nana, Iemanjá e Oxalá, deixa eu ver se esqueci
algum... hum... é acho que não. Com o tempo a memória da gente vai ficando
ruinzinha... Então, as pessoas que estão na roda vão dançando pra louvar aquele
orixá, fazendo a dança dele. O que acontece, é que geralmente, na hora que canta
pro santo que é daquela pessoa, a pessoa vira. E aí, depois que todo mundo vira, a
gente veste o orixá pra ele dançar. Mas eles dançam pra louvar o orixá.
K: Qual a relação da incorporação com a idade de santo da pessoa? O orixá evolui
junto com o médium, não é?
DM: Ah, evolui sim, fica com mais postura! Porque tem gente que no início recebe,
mas sente mais assim um barra-vento. Depois a incorporação vai ficando mais firme.
E com o tempo você já consegue saber quando vai incorporar e não incorpora mais
em tudo quanto é lugar. Quando o santo ta novo, o iaô dá um espirro o santo passa!
(risos). Depois não, você já consegue mais ou menos controlar. Só se jogarem
161
canjica na sua cabeça é que danou-se! Aí não tem santo que resista! E também tem
aquilo, com o tempo, a matéria já não agüenta mais uma incorporação. Eu, por
exemplo, já peço pra Xangô não passar, porque eu fico muito cansada depois e eu
já não estou mais na idade, né? Eu estou com 66 anos! Imagina, Xangô vem e quer
pular, dançar, depois ele vai embora e quem sofre sou eu!
K: Então, depois que o orixá vai embora ... o que a senhora sente? A senhora
lembra do momento da incorporação?
Olha, tem gente sente, tem gente que não sente. Uns se lembram de alguma coisa,
outros não lembram de nada. Fica assim como se tivesse dormindo, sabe? Quando
a pessoa volta a gente dá água e chama o anjo de guarda da pessoa que é pra ter
certeza que o orixá subiu. Mas, orixá deixa a gente muito bem. A matéria pode ficar
cansada, porque recebe uma energia muito forte, mas dá uma sensação de paz...
uma coisa boa. Tanto que um iaô se aborrece, geralmente, o santo passa que é pra
tirar as coisas ruins. Ou quando tem uma gira pesada, no final vem o orixá ou o erê
que é pra aliviar as coisas. Mas a energia do orixá é coisa muito boa de se sentir!
162
APÊNDICE J
Entrevista Pai Nilton.
Kate: Pai Nilton, me conta um pouco da sua história no candomblé. Como o senhor
começou na religião?
Pai Nilton: Ah, minha filha, eu já sofri muito até aceitar meu cargo sabe? Ta vendo
essas marcas aqui [mostra algumas cicatrizes no braço] isso foi tudo surra que eu
tomei porque eu fugia do meu compromisso com orixá.
K: Mas o senhor fugia por quê?
PN: porque você ta vendo isso aqui [mostrando o terreiro]? Isso tudo é muito
trabalho, pai de santo não tem folga, é dia, é noite, bateu gente aí, a gente tem que
atender. Fora ali ó [mostrando os quartos onde ficam os orixás]. É comida, é roupa,
é bicho é um trabalhão danado. Mas, quando a gente tem que fazer, não tem jeito.
Hoje eu faço tudo com muito amor, porque sei da minha obrigação com os Orixás e
não quero contrariar eles nunca mais.
K: Mas o que o senhor fazia de tão grave pra “apanhar” assim?
PN: Ah, eu era muito danado (risos)! Fugia do barracão, não dava minhas
obrigações e por aí vai...
K: Mas o senhor sabia dessa que tinha de ser pai de santo desde pequeno?
PN: Eu soube quando eu fiz santo, foi quando me disseram...
K: E quando foi isso, Pai Nilton?
PN: Quando eu fiz santo?
K: e quando foi que o senhor fez o santo?
PN: Ah, eu tinha uns 10 anos...
K: O senhor ainda era criança... E como foi? O senhor que quis fazer santo?
163
PN: Não! Os orixás é que quiseram! Eu passava muito mal quando era criança, vivia
doente! E era umas doenças ruins, difíceis de curar. Aí, a coisa foi ficando feia, eu
comecei a ter uns desmaios e não havia médico que descobrisse o que era! Aí, tinha
uma velha rezadeira que falou pra minha mãe: o problema desse menino é santo!
Esse menino é do Omolu e não vai ter meio de salvar ele se o santo num quiser. Aí,
não teve jeito, minha mãe procurou um terreiro e assim que eu cheguei lá já deitei
pra raspar!
K: Mas assim, o senhor já chegou lá e já foi feito?
PN: Minha filha, ou era isso ou eu ia morrer!
K: Nossa! E o senhor a partir daí já sabia que ia ser pai-de-santo?
PN: Quando a gente é feito o jogo [de búzios] já diz se a pessoa tem cargo ou não.
Então, quando deitei já avisaram minha mãe: esse menino tem cargo, esse menino
vai ser pai de santo...
K: Mas, então, porque o senhor teve de “apanhar” tanto, como o senhor falou, pra
aceitar isso?
N: é a pergunta que me faço até hoje! [risos]. Porque, depois que eu fiz santo, dei
minhas obrigações até 3 anos, mas chegou uma época que eu num queria mais
aquilo. Eu era jovem, sabe? Tinha a vida toda pela frente. Quando a gente é jovem
assim que nem você faz um monte de besteira né? Você não gosta de sair com seus
amigos, de namorar...
K: é verdade...
N: então, eu ao podia fazer nada disso! Era dia e noite em barracão de candomblé!
Então, fui largando pra lá...
K: e o que aconteceu?
N: aconteceu isso [mostrando o braço de novo]
K: nossa...
N: isso foi Mulambo... ela me pegava e me dava cada surra que você nem imagina!
Isso foi ela enfezada, que me pegou uma faca e danou-se a cortar meu braço e falou
164
que da próxima vez que ela voltasse se eu num tivesse caçado meu rumo que ela
num ia dar era mais recado nenhum! Eu entendi o recado e votei correndo pro
barracão. Isso eu já tava perto de dar obrigação de 7 anos e abrir casa.
K: Nossa! Mas, então, o senhor tava incorporado com a Mulambo e ela cortou seu
braço? E o que o senhor sentiu na hora?
N: na hora não senti foi nada, quando voltei a mim é que olhei pro meu braço e o
estrago já tava feito...
K: Ai, depois dessa o senhor se tornou pai de santo?
N: Não, aí eu peguei meu deká [autorização para abrir casa de santo] mas não abri
casa. Porque eu me achava esperto e achei que dando obrigação de 7 anos eles
iam me deixar em paz, né? Mas, minha filha, orixá vê é tudo! Um belo dia, Mulambo
veio e falou assim pro meu irmão: dessa vez eu num vou dar recado nenhum e num
vou dar recado nunca mais, ele teve a chance dele, o caminho dele ta escolhido. Aí
todo mundo achou muito estranho porque ela tava muito arretada e foi embora sem
falar mais nada. Um belo dia estou eu na fila do banco, senti uma dor no meu
coração e desmaiei. Eu achei que ia morrer. Quando eu acordei, tava na cama do
hospital todo encubado! Fiquei um tempão sem andar e até hoje meu lado esquerdo
não mexe direito.
K: o que o senhor teve?
N: os médicos dizem que foi infarto, mas eu era muito novo, devia de ter meus 32
anos. Mas eu tenho certeza que foi coisa de Mulambo!
K: Nossa, e como o senhor se salvou dessa?
N: Ah, minha filha, haja ebó! O que foi feito de ebó pra eu sair daquele hospital não
tava no gibi. E Omolu é um santo muito difícil de agradar, quando ele se inquizila
com alguma coisa, sai de perto! Aí, foi feito um monte de ebó e um acordo com o
orixá pra eu poder ter outra chance, e graças ao mau pai Omolu e minha mãe Oxum
ficou tudo bem e eu nunca mais deixei minha vida espiritual de lado. E to eu aqui,
né? É por isso que eu sempre digo, se tem que entrar nessa religião que seja pelo
amor e nunca pela dor, porque eu entrei pela dor e é muito triste. Olha só, eu podia
ter me poupado de tudo isso e fiquei de teimosia. Orixá só quer amor, só isso! Se
165
você tem, tem, dá amor pro teu orixá, não deixa ele com raiva não, porque as vezes
a gente não tem outra chance não...
K: é... Mas, pai Nilton, deixa eu te perguntar uma coisa. O senhor disse que não
sentiu quando Mulambo lhe cortou, né? O senhor não sente nada quando está
incorporado?
N: no início eu ainda lembrava alguma coisa, mas hoje em dia, não sinto nada
mesmo, só vou ver as coisas quando acordo...
K: E com Orixá é a mesma coisa quando o senhor incorpora?
N: É sim, mas a energia é diferente. É diferente a energia do orixá, do exu, do erê...
quando eles estão chegando a gente sente!
K: e sente como?
N: ah, a gente sente, a gente sabe se é um erê, um orixá, um exu ou até um egun
que tá perto. Quer ver uma coisa? Você é filha de Iansã, num é? Já lhe disseram
que você é de Oiá?
K: sim, já me disseram sim... [risos]
N: Ta vendo só [risos]. A gente sente o orixá, minha filha! E lhe digo mais, você tem
um povo de muita luz que te acompanha! Mas isso é um papo pra outra hora...
[risos]
K: [risos]. E é todo mundo que sente isso?
N: Não! Muita coisa a gente nasce sabendo, outras a gente aprende com o tempo.
K: e quando o senhor diz que sou de Iansã é porque o senhor sempre soube ou por
que aprendeu a ver?
N: um pouquinho de cada... Sentir as energias é um dom que nasce com a gente,
quem tem, tem! Tem uns que podem ver, outros que podem sentir, mas é um
presente, nasce com a gente! Agora com o tempo você vai aprendendo a trabalhar
esse dom, vai aprendendo a sentir e ver, e, principalmente, a falar e agir na hora
certa. É isso que a gente tem que aprender, minha filha, é como lidar com isso que
deus nos deu...
166
K: Pai Nilton, e uma coisa que eu queria saber é porque os orixás dançam? As
festas de candomblé são sempre muito animadas né? Tem sempre roupas bonitas,
dança, música e muita comida, né?
N: É! É uma festa, como você mesmo disse! Ou você já viu alguma festa sem
comida, dança e música? E quando a gente vai pra festa a gente tem que ir com a
melhor roupa que a gente tem!
K: Isso é verdade.. É que isso é uma coisa bem particular do candomblé, né? a
dança...
N: O Orixá, minha filha, na verdade, não precisa de nada disso. O Orixá é energia! A
gente agrada orixá com amor no coração, é só isso!
K: Então, porque eles se vestem e dançam e comem como a gente?
N: E quem foi que lhe falou que eles comem que nem a gente? [risos]. Não, não,
não, não. eles comem do jeito deles! A gente faz essas coisas pra gente, mas Orixá
mesmo é bem maior que isso! Orixá não precisa de nada disso, ele vai ficar
satisfeito com uma vela ou com um banquete, depende é do amor com que você
coloca o presente pra eles. Porque eles gostam de ser agradados, de amor, que, é
que não gosta disso?
K: Mas no momento que eles estão dançando, incorporados, por que eles fazem
certos movimentos? Cada um dança diferente do outro, né?
N: Orixá gosta de dançar, minha filha! Quando ele dança é porque ele ta feliz,
porque ta tudo odara! É o jeito de a gente saber que o orixá ta gostando...
K: Mas cada um dança de um jeito...
N: é, cada um tem uma energia diferente, tem um toque diferente...
K: Então, os toques e a dança dependem da energia de cada orixá?
N: é, cada orixá tem um jeito de dançar. O ritmo é diferente. A Oxum vem dançando
mais devagar quando dança o ijexá, já Iansã dança mais rápido, quando tocam o Ilú,
que a gente toca em Ketu. Porque eu sou de Jeje, fui feito no Jeje, e o axé da minha
casa é Jeje, mas toco Ketu também. Mas essas coisas dependem também da
167
qualidade do orixá, porque se for uma Oxum Apará, por exemplo, que é minha mãe,
ela come com Oxossi, então dança junto de Oxossi, carrega o Ofá de Oxossi e faz
alguns passos de Oxossi...
K: e como é isso de qualidade de santo?
N: todo mundo acha que orixá é uma coisa só. Aí, ficam falando, o povo da oxum é
chorão, o do Ogum é briguento. Isso é tudo bobagem! A característica do santo
depende de muita coisa, inclusive da qualidade que ele tem. Cada orixá tem uma
qualidade. A Oxum Apará mesmo que lhe falei, muita gente confunde com Iansã,
mas num é. Elas são parecidas, porque são mulheres guerreiras, mas não é mesma
coisa. E outra, cada orixá é um só, é da pessoa!
K: E como que a gente sabe quem é quem?
N: no jogo; o jogo de búzio é que vai te dizer de que santo você é. E quando você for
feito ele dará um nome que é nome do teu orixá e de mais nenhum. Ele é só teu e
de mais ninguém!
K: mas quando eles estão dançando a gente consegue perceber a diferença de um
pro outro...
N: ah, consegue por causa de um monte de coisa e consegue até perceber a
qualidade do santo. Bom, pelo menos eu consigo, a gente vai aprendendo a ver
melhor se aquele orixá tem fundamento com outro, se ele ta feliz, vai aprendendo a
lidar com orixá.
K: Pai Nilton, deixa só eu lhe perguntar mais uma coisa pra gente finalizar. Cada
orixá possui uma história, né?
N: é
K: A gente consegue perceber essa história na hora que eles estão vestidos na sala
dançando?
N: a gente consegue ver sim, mas muita gente que vê não sabe o que eles estão
fazendo. A gente sabe porque aprende a escutar as histórias dentro do barracão pra
não ficar “kossi” [burro, ignorante], mas tem que aprender a ouvir. Não tem ninguém
que vai ficar te explicando, olha é isso, olha é aquilo. Não é assim não! ou você
168
corre atrás pra saber o que é, ou vai ficar sem saber mesmo! E vai passar vergonha
quando alguém lhe perguntar. Então, se você ver lá um Xangô carregando um Oxalá
nas costas, por exemplo, não vai entender nada se não souber da história entre
deles...
K: e qual a história entre eles?
N: é que tem uma passagem que conta que Xangô carregou Oxalá nas costas. É a
mesma coisa. Ninguém vai botar um Xangô pra virar num Olubajé e nem um Omolu
pra virar numa fogueira de Xangô, porque sabem que eles não se dão. Se fizer isso,
arruma quizila pro resto da vida! [risos]
K: então, pra gente saber dessas histórias só sabendo ouvir?
N: sabendo ouvir e tendo paciência pra aprender, porque nem tudo vão te dizer...
algumas coisas você vai descobrir sozinha...
K: que tipo de coisa?
N: ah, minha filha, coisa que só na prática a gente aprende, é que nem na vida né?
não a adianta a mãe da gente falar uma coisa, a gente vai lá e faz, as vezes dá
certo, outras vezes dá tudo errado! [risos]. Na vida de santo é assim também, temos
pai, mãe, que nos ensinam, mas a gente teima e algumas vezes acerta e outras
erra, mas a gente sempre vai aprendendo...
169
APÊNDICE L
Entrevista Ogã Marcelo
Kate: Você é ogã né? Como é a função que você exerce no terreiro?
Ogã Marcelo: eu sou um ogã, sou um runtó, sou responsável por tocar os atabaques
e puxa cantigas pros orixás. A parte da música fica toda com a gente. Mas a gente
também ajuda na arrumação da casa, dos instrumentos, afinar os atabaques, ver se
o couro ta bom, ver se o agogô ta direito, e por aí vai. A gente que apronta tudo.
K: E como foi que você começou a se dedicar à vida religiosa, Marcelo?
OM: Eu, na verdade, comecei na capoeira. Eu sou professor de capoeira. E na
capoeira a gente tem que saber tocar tudo, do berimbau ao atabaque. Então,
comecei a me interessar pela música africana e já pesquisava os toques de
candomblé. Aí, pedi a um amigo meu que era consulente aqui do Pai Nilton pra ele
me trazer pra conhecer o terreiro, fazer um jogo, coisa e tal. Aí conheci a casa,
comecei a freqüentar, mas não vinha muito não, porque eu era muito preguiçoso! Aí,
me tornei filho de santo, depois de um tempo, fiz meu santo, já sabia que era ogã e
estamos aí!
K: Você podia me falar, então, um pouco sobre essa parte musical do candomblé?
Como são os ritmos? Cada orixá tem um ritmo próprio né?
OM: Sim, cada orixá tem seu ritmo e cada ritmo tem um nome e em cada nação é
diferente. O bravum é muito usado em jeje, mas tem também o aguerrê, o adarrum,
ijexá, opanijé, alujá, e por aí vai... cada um tem uma cadência, um gingado, um
tempo diferente do outro.
K: Mas como você sabe que ritmo usar pra cada orixá?
OM: A gente aprende isso quando é iniciado e vai aprendendo ouvindo, prestando
atenção nos mais velhos... nosso trabalho é saber o ritmo certo de cada orixá! Pra
isso serve um ogã!
170
K: e o que acontece se você tocar um ritmo errado pra um orixá?
OM: Não acontece! O orixá não dança! Se o ritmo não for o dele ou se a cantiga
tiver errada, ele fica parado e todo mundo sabe que o ogã ta errado... é uma
vergonha danada (risos).
K: ah, é? Então quer dizer que o orixá também sabe se vocês estão cantando certo?
OM: Claro! Quer ver só? Uma vez numa saída, tinha um Ogum que não dançava de
jeito nenhum! Não havia maneira de fazer ele dançar! E puxavam cantiga dali, a
cantavam de lá... e nada! Mas puxaram cantiga de tudo quanto é canto e Ogum
nada de dançar! Menina, eu sei que de repente apareceu foi uma mãe de santo bem
velhinha e puxou uma cantiga que ninguém nunca tinha visto. Pronto! Foi a velha
cantar que Ogum dançou! Pra você ver! As vezes não é nem que o Ogã ou o pai de
santo ou a ekédi não saibam, mas é que ninguém sabe tudo e as vezes tem santo
que pede uma coisa muito, muito do jeito dele. Orixá é difícil!
K: nossa!
Então, quer dizer, sem música, o orixá não dança?
OM: ué, e tu já viu alguém dançar sem música? Só doido! (risos)
K: é verdade!
Mas, Marcelo, você saberia me dizer porque a dança é tão importante pros orixás?
OM: Olha... essa pergunta aí é difícil, hein! Orixá gosta de dançar! Ele dança pra
espalhar o axé. Na verdade, a gente recebe o axé quando eles dançam. Ah, não sei!
Acho que não sei explicar isso não! (risos). Só sei que quando eles dançam todo
mundo gosta! Todo mundo sabe que ali tem santo! E todo mundo sai renovado do
barracão!
K: (risos) Já disse tudo, Marcelo!
OM: (risos) é, ué! É assim, porque é assim e pronto! (risos)
171
APÊNDICE M
Entrevista Pai Rodrigo.
Kate: Conta um pouquinho da sua história no candomblé?
Pai Rodrigo: ta. Eu fui iniciado com 23 anos, pelo meu Doté [pai de santo] Luís de
Iansã, que é filho de Divino de Bessém. Quando meu irmão veio abrir esta casa, eu
fui declarado Opaotun e aqui estou eu!
K: O que é um opaotun?
PR: opaotun é o que se chama de pai pequeno da casa em outras nações. São os
braços direitos dos zeladores da casa, dos pais de santo. Bom, pode-se dizer que
somos uma espécie de coordenador da casa, ajudamos nas feituras, aconselhamos
os filhos de santo, cuidamos da organização geral, porque sozinho o Doté não dá
conta...
K: Ah, sim...e o que te levou à religião, Pai Rodrigo?
PR: ah... o meu irmão já freqüentava o candomblé e minha mãe era de umbanda. Eu
sempre gostei das músicas e ia muito nas festas desde pequeno. Eu sabia que tinha
um lado espiritual para cuidar, mas como era jovem, preferi deixar o tempo passar...
e fui freqüentando sem compromisso, até que um dia Ogum me chamou e eu não
tive como fugir. Mas, eu sempre ouço falarem que na religião se entra pelo amor ou
pela dor, bom eu tenho orgulho de dizer que entrei pelo amor. [risos]
K: É, eu ouvi muito isso também...
PR: você é feita?
K: Não, não... por enquanto estou só pesquisando mesmo... [risos]. Mas eu cheguei
a freqüentar uma casa que era de ketu, depois a mãe de santo faleceu e eu acabei
não procurando outra casa...
Isso que eu queria perguntar pro senhor. As danças que eu vi aqui na saída de
Iansã são muito parecidas com as que eu já vi em Ketu, mas a nação aqui é Jeje,
não é?
172
PR: Sim, a nação aqui é Jeje- Mahin. O axé é Jeje-Mahin, mas também tocamos
Ketu. Na saída de Iansã que você viu tinha muita coisa de Ketu...
K: E qual seria principal diferença entre estas nações?
PR: Olha tem muita diferença sim, no dialeto, nos toques e principalmente nos
fundamentos. Mas o que acontece é que, em jeje, cultuamos os voduns. Vodum não
é Orixá e vice-versa, cada um é cada um. Vodum é Vodum, Orixá é Orixá. Mas o
que acontece é que todos os dois são respeitados no axé da casa e vai depender
muito do caminho daquele que está sendo feito. Então, o que acontece é que
cultuamos os voduns, mas também os orixás, todos eles merecem nosso respeito e
nossa devoção. Então, quando a gente vê Iansã dançando na sala, como a que
você viu, o que pode acontecer é muitas vezes estarmos tocando em Ketu, por
exemplo, que foi o que você mesma conseguiu identificar, porque a Iansã que tava
lá tem um fundamento com a nacão ketu. O que acontece é que na hora da saída,
as coisas acabam se misturando, mas quem sabe, entende que uma coisa é uma
coisa e outra coisa é outra coisa...
K: Então, na hora que Iansã estava dançando ela estava dançando em Ketu?
PR: em alguns momentos sim...
K: quais momentos?
PR: quando a gente toca o ilú, por exemplo, que é um toque de Ketu. Aí cantamos
as cantigas de ketu e ela faz os movimentos, tudo como se tivesse em Ketu, mesmo
a casa sendo de Jeje, entendeu?
K: ah, sim...
E esses movimentos, Pai Rodrigo, o que eles querem dizer?
PR: ah, cada um quer dizer uma coisa. Quando ela dança com o aquele rabo de
cavalo que parece um chicote, você viu? A gente chama aquilo de ieruxim, e serve
pra Iansã espantar os Eguns, quando ela dança, então, tá comandando estes
espírito dos mortos, porque ela é a responsável por eles. Ela leva eles do mundo
dos vivos para o mundo dos mortos. Mas ela também dança guerreando com Ogum,
que é um de seus maridos, quando usa sua espada.. ela também dança com Xangô,
173
que de quem também é esposa e geralmente segue atrás ou ao lado dele na dança,
porque eles nunca se separam... e por aí vai...
K: E como o senhor sabe estas histórias, Pai Rodrigo? Porque a dança tem a ver
com a história desses orixás, né?
PR: ah, tem que estudar muito! [risos]. Isso a gente vai ouvindo dos mais velhos, e o
que a gente não sabe, vai perguntando, igual você ta fazendo agora [risos]. Aí muita
coisa a gente não entende, mas vai entendendo aos poucos. Vai entrando na roda e
dançando e aos poucos vai pegando as coisas. Pergunta pra um, pra outro e com o
tempo você vai sabendo separar o joio do trigo
K: Queria que o senhor me falasse um pouco do ritmo... eles são diferentes pra cada
orixá, não é?
PR: sim, eles são diferentes uns mais rápidos outros mais devagar... Iansã que é
espevitada, dança rápido, você viu né? Ó, ela, Xangô, Ogum e Oxossi tem o ritmo
bem acelerado. Oxum, Oxalá, Iemanjá, esse povo da água tem o ritmo mais
cadenciado... Oxalá, então, vem quietinho, abaixadinho, que ele é um senhor de
idade já. Mas quando ele vem como Oxoguiã, que é ele mais jovem, guerreiro, aí ele
dança mais forte, vem com espada e escudo! Nana também! Dança mais
cadenciado... é isso, cada um tem seu ritmo e temos de respeitar e receber o axé de
todos eles! Porque quando o orixá está ali na sua frente, a gente percebe que tem
santo, e que eles são maiores do que tudo nessa vida!
174
APÊNDICE N
Entrevista Mãe Deinha
Kate: Mãe Deinha, como foi que você começou não candomblé?
Mãe Deinha: Eu sou iniciada há 16 anos, que é mais ou menos a idade da minha
filha. E eu costumo dizer que não fui em quem escolhi a religião, foi ela quem me
escolheu. Quando a eu engravidei da minha filha, os médicos me disseram que era
uma gravidez de risco, que possivelmente o bebe não chegaria a nascer. Aí... eu
procurei a Jurema [cabocla Jurema, entidade de umbanda], eu freqüentava a
umbanda nessa época e ela me disse: minha filha, quem vai carregar essa criança
no braço sou eu! Pode deixar vim que ela ta por minha conta! E eu prometi a Jurema
que se ela nascesse bem eu me dedicaria aos orixás. E ela me disse: você vai se
dedicar aos orixás porque isso ta no teu caminho, mas você ainda vai sair daqui pra
ir pra outro lugar... Aí, eu tive minha filha e um tempo depois eu fiz um jogo e
precisava ser feita, mas tinha de ser feita no candomblé e não na umbanda. Aceitei
meu caminho e fui feita pelo meu pai Luís de Iansã.
K: então, a Jurema tava certa?
MD: Certíssima! E advinha que está no carrego da minha filha? Ela mesma! Dona
Jurema!
K: e a senhora é mãe de santo?
MD: Não! Eu sou mãe pequena! É quase uma mãe de santo...
K: ah, sim!
Mãe Deinha, a minha pesquisa é sobre a dança dos orixás. Você pode me falar um
pouco sobre isso?
MD: Mas o que exatamente você quer saber?
K: ah, eu queria saber por que eles dançam? Queria aprender um pouco mais sobre
as danças...
175
MD: então, minha filha tem que ficar de olho aberto! Porque no candomblé a gente
aprende é vendo! Agora é aquilo, tem muita coisa boa e tem muita ruim! Tem muita
gente que tem compromisso com o santo e muita gente que só quer faze festa... a
gente tem que saber olhar e saber ouvir um mais velho, fica atenta! Quanto às
danças é assim, não tem nada no candomblé que não tenha música e dança...
quanto a gente macera uma erva, bate uma folha, lava um fio de conta ou copa um
bicho, tudo isso tem reza, tudo isso tem canto, e tem um canto pra cada coisinha
dessa! É um monte de detalhezinho que a gente vai aprendendo pra poder tratar do
orixá e principalmente do orixá dos outros! Porque orixá é coisa muito séria. Se a
gente bota uma mão errada na cabeça, se faz uma reza errada, se bota uma comida
que não é pra botar a gente pode acabar com a vida de um filho de santo! Então,
quer dizer, é tudo muito sério, tem que ter muito cuidado, porque a gente ta aqui pra
levantar a vida dos outros. Orixá tem que dar caminho, tem que dar progresso! E
quando ele dança ele ta dizendo pra gente isso: que ele ta feliz com tudo que a
gente ofereceu a ele. Então, ele retribui isso em forma de energia, em forma de axé!
K: e como é que a gente aprende a dançar pros orixás?
MD: ah, quando a gente é abiã, a gente fica de fora da roda. O abiã ele tem que
saber olhar pra poder aprender. Tem que olhar como faz um passo e saber porque
faz assim e não assado. E aos poucos a gente vai vendo como os mais velhos
fazem e vamos aprendendo. E aos pouquinhos a gente vai botando nosso jeitinho,
um remelexo aqui, um requebrado, porque ninguém dança igual a ninguém!
K: e os orixás? Eles dançam um igual ao outro?
MD: mas de jeito nenhum! O orixá é teu, minha filha! É como uma digital... ela é só
tua, não vai ter no mundo outra igual a tua! Então, eles tem uma família. Assim,
existem aqueles orixás que são da família da Oxum, assim, elas são todas oxuns,
mas cada uma vai ter um nome, entendeu? E aí cada uma vai dançar de um jeito,
vai usar uma roupa, um adereço diferente da outra.
K: mas por exemplo, as pessoas dessa família dançam de maneira parecida né? por
exemplo, Oxum dança de uma maneira que dá pra identificar que aquela é oxum...
MD: Ah, sim! Isso é sim! A gente sabe como cada orixá dança e esses orixás tem
cada um suas qualidade, mas mesmo assim, aquele orixá dessa qualidade ele é
176
pessoal, pertence a uma pessoa específica, por isso ele dá o nome dele quando é
feito.
K: mas a senhora podia falar um pouquinho de como cada um deles dança?
MD: cada orixá tem uma personalidade, minha filha e a gente vê isso quando eles
dançam, na maneira com andam, como se vestem, etc. Aí tem toda uma ordem pra
gente chamar esses orixás porque cada um deles tem o seu lugar, tem sua
hierarquia. O primeiro de tudo é Exu, ele é o primeiro. Sem permissão de Exu, não
tem candomblé! Ele é o primeiro a dançar, o primeiro a comer e também é o primeiro
a pular quando uma coisa ta errada. Exu é espevitado, é esperto, é ligeiro. Já Oxalá
não, que é o oposto de Exu. Ele é o último do Xirê. Ele é o mais sábio, mais
paciente, porque ele é que tem a sabedoria! Ele já dança mais calminho, vem com
seu cajado devagarinho... e assim vai... tem um monte de orixá e eles vão se
apresentando pra gente conforme o jeito que cada um tem.
177
APÊNDICE O
Entrevista Ekédi Vânia
Kate: Ekédi Vânia a senhora é responsável por cuidar dos filhos de santo na hora
que eles estão incorporados no orixá, não é? Como é essa função que a senhora
exerce?
Ekédi Vânia: Bom, ekédi não incorpora, passa a festa toda acordada! Aí já viu, né?
sobra mesmo é pra gente cuidar de quem tá com santo. Mas eu não reclamo não.
Gosto muito de cuidar do Orixá! A gente tem que cuidar dele e cuidar pro filho de
santo também não ficar o tempo todo virado pra não cansar... é a gente quem
enxuga o rosto do orixá quando ele ta suado, a gente veste ele, a gente canta pra
ele, é tudo com a ekédi. E o pai de santo chama, e o filho de santo chama, ekédi é
igual mãe, tudo é com a gente na hora da festa!
K: e na hora que os orixás estão dançando, eu vi que a senhora dança junto com
eles, né? queria saber por que...
EV: ah, a gente tem que dançar junto que é pra louvar o orixá e pra ele dançar
bonito! Imagina se ninguém dança, o orixá fica sem graça! Quando todo mundo
dança é que a festa fica bonita. Então, a gente que é ekédi tem que ficar o tempo
todo do lado do orixá, tem que fazer ele dançar bem pra festa ficar boa, ficar bonita.
Quando todo mundo dança fica muito mais bonito, né?
K: é verdade...
E nestas danças a senhora que ensina? Como foi que a senhora aprendeu a
dançar?
EV: Olhando! No inicio a gente fica meio desajustado, mas depois você vai
pegando... tem dança que é mais fácil, que o povo pega rapidinho, o ijexá todo
mundo pega rápido, porque também não tem mistério nenhum. Agora, tem umas
que são mais complicadinhas. A de Xangô e Iansã pra mim, são as mais difíceis.
Mas tem gente que já vai achar outras. Eu acho que essas é que são mais
complicadas porque é rápida e tem coordenar muito bem o pé com a mão, tudo
rápido, aí fica mais difícil né?
178
K: Ekédi, e os movimentos dessas danças? Eles tem um significado né? Assim,
cada gesto quer dizer alguma coisa, é isso?
EV: é, é sim. Olhe, quando Omolu dança, por exemplo, ele faz assim com uma mão
e com a outra, assim...[faz o movimento com a mão, de baixo pra cima] ele ta
mexendo na terra, que ele é o dono da terra. Aí ele dança assim: tum, tu, tum, tu,
tum, tu ta, fazendo assim com essa mão [a mão direita] e com essa [faz também
com mão esquerda] nesse ritmo e pra lá e pra cá. Que ele ta mostrando que ele é
quem manda nas doenças e nas curas, com uma mão ele pode espalhar a praga
com a outra ele pode curar! É ele quem manda na saúde! Então, quando ele vem
dançando ele vem mostrando isso!
K: então, só de ver um Orixá dançar a senhora sabe quem ele é? Se é Omolu,
Oxum, Xangô...
EV: a gente sempre sabe quem é o orixá que ta ali, quando o santo é novo é que é
mais difícil de saber. Se alguém que nunca vi virar aqui, a gente até desconfia de
quem possa ser, mas a certeza mesmo é com jogo. Agora, quando o santo já ta
feito, já vem firme, aí quando ele chega a gente já sabe logo quem é!
K: e sabe como?
EV: sabe porque ele vem do jeito que ele tem que vim! Quando tu fala, a gente sabe
que é tu e não é outra pessoa que ta falando, certo? Aí a gente fala, fulana chegou,
mesmo que a gente não esteja vendo a fulana. Só de ouvir a voz, já sabe! Ih, olha,
fulana ta aí! Com o Orixá é a mesma coisa. Ele baixou, só do jeito como ele vem, a
gente já sabe quem é. Mas essas coisas a gente só aprende é com o tempo
mesmo...
179
APÊNDICE P
Entrevista Pai Nei
Kate: Pai Nei, primeiro eu queria perguntar pro senhor o que o senhor sente depois
que Xangô vai embora? Eu o vi dançar e fiquei impressionada! O senhor fica
cansado?
Pai Nei: Muito!!! Muito mesmo! Não é à toa que candomblé aqui em casa só de
tempo em tempo. Imagina se eu fosse dar uma obrigação por semana?
K: Pai Nei, eu gostaria que o senhor me falasse um pouco da dança dos orixás...
características, funções... Só pra eu ter uma idéia, não vou tomar muito seu tempo
não.. o senhor deve estar doido pra descansar...
PN: Estou sim, minha filha, saída de santo é muito trabalho! Mas deixa eu ver, deixa
eu tentar falar um pouco pra você sobre isso... primeira coisa que você tem que
entender é que orixá é energia. Aquilo que a gente vê, as danças todas, as roupas,
aquilo tudo são coisas materiais que a gente faz pra agradar o orixá, porque assim
ele pode nos dar sua energia e o que tem de melhor. O orixá ta em tudo, ta na
natureza, ta aqui entre eu e você. Orixá é vento! O que a gente faz é concentrar
essa energia e ela assume a forma do corpo da gente e aí dança pra mostrar que
ela ta viva, que está presente! Isso é uma coisa. Outra coisa é que o orixá ele tem
que ser cuidado porque ele é vida e agradando a ele a gente dá caminho pra gente
mesmo. Cada pessoa tem um orixá que lhe guarda, que abre seus caminhos e se
esse orixá não está fortalecido, se abre um espaço pras coisas ruins chegarem e
bagunçarem a vida da gente. O orixá cura, traz coisas boas e afasta as coisas ruins.
E quando ele está dançando ele está tirando tudo o que há de ruim e está deixando
só as coisas boas. Quando as pessoas vão pra um candomblé elas tem que
aproveitar o máximo dessa energia do orixá. Isso é em toda a religião. A gente vai
em busca de coisas boas pra gente. No fundo, é tudo a mesma coisa, só mudam os
nomes e a maneira como cada um pensa, mas o que todo mundo quer é ficar bem e
a religião tem que proporcionar isso.
K: é verdade...
180
Mas eu queria saber pai Nei um pouquinho mais sobre a dança, como se aprende,
as diferenças de uma pra outra....
PN: bom, isso você só vai aprender com os anos e anos. Eu mesmo não sei tudo. O
que posso lhe passar é uma parte do que eu sei, mas isso é segundo a minha casa
de santo, a minha nação e como me foi ensinado. Se alguém me chegar aqui
dizendo que não é assim eu vou aceitar e vou dizer: então, na sua casa você faça
do se jeito. Porque em candomblé é muito assim: todo mundo se acha dono da
verdade e acabam desrespeitando a casa dos outros. Aqui é assim, lá fora eu já não
sei. Por exemplo aqui na minha casa a gente não quer luxo. A gente quer o melhor
que você possa dar. Os orixás daqui se vestem pra dançar, mas sem ostentação. O
importante é eles estarem feliz e dançando, espalhando seu axé. Aí você vai ter uma
gradação enorme de dança. A gente geralmente começa o ritual com a vamunha,
pra formar a roda do xirê. Aí a gente saúda o presente, o passado e o futuro e abre
os trabalhos da casa. Com a roda formada, cada orixá é louvado de uma vez.
Depois que eles viram, a gente bota pra tomar rum. Geralmente os mais velhos
puxam as cantigas, porque já conhecem o orixá. Aí cada um dança sei ritmo, sua
cantiga, mas sem exagerar pra não deixar o filho de santo cansado, porque a
incorporação é um troço que cansa demais. Vê eu aqui! Eu já to velho! (risos). Mas é
isso, minha filha, cuidar de orixá é isso, é amor, é dedicação pra deixar tudo nos
conformes, tudo bonito pro santo. Eu não sei se respondi sua pergunta, mas tento
passar um pouquinho do que eu sei...
K: está ótimo, Pai Nei. Muito Obrigada!
181
APÊNDICE Q
Entrevista Pai Maurício
Kate: Pai Maurício, o senhor pode contar um pouco da sua história... como o senhor
começou a freqüentar o candomblé...
PM: bom, eu praticamente nasci dentro de um terreiro! Minha mãe era de
candomblé, era ekédi, minha tia era mãe-de-santo, então eu sou macumbeiro desde
pequeno! (risos). Agora a família toda se mudo pra casa do senhor (protestantes),
mas eu continuo defendendo minha raiz! Sou macumbeiro, sim! E amo minha
religião!
K: ah, então senhor freqüenta desde pequeno? Como foi quando você foi iniciado?
PM: a iniciação é um período de provação! Você tem que seguir uma série de
preceitos, não pode isso não pode aquilo, mas depois a tua vida muda tanto que
você vê que vale a pena! Depois que eu fui iniciado minha vida mudou muito, tomou
rumo. Arrumei um bom emprego, me casei e hoje crio meus filhos feliz! A iniciação é
ato de compromisso religioso, quando você assume é que nem casamento, tem que
ser pra sempre. Bom, eu acredito que casamento é pra sempre, mas tem gente que
se casa mil vezes, né? aí fica assim pulando de religião pra religião! Mas pra mim a
iniciação foi uma benção!
K: Ah, que bom!
Pai Maurício, eu queria saber mais sobre as danças dos orixás? Por exemplo eu vi
ali que tinha uma Iansã que se banhava como a Oxum, eu queria entender melhor
essas coisas, como cada um se comporta na hora da dança..
PM: ah, sim... isso se refere à qualidade do santo. A Oiá que estava dançando era
uma Oiá Onirá, que tem fundamento com Oxum, por isso tem uma parte do rum que
ela dança como a Oxum, porque ela também esta ligada às águas doces como
Oxum. Oxum se banha porque ali é o reino dela. Ela tira as jóias todinha, entra no
rio, se banha, depois coloca as jóias e volta a dançar pela sala.
182
K: Então, na verdade, a dança de cada orixá conta um pouquinho dessas histórias?
Elas são baseadas nas lendas de cada orixá?
PM: Ah, sim, isso com certeza! Quando eles dançam, eles estão contando suas
histórias. A dança fala de cada coisa que o orixá viveu. Por isso eles dançam cada
um de um jeito, porque cada um tem uma personalidade, uma função, um poder,
cada um diferente do outro...
K: e isso fica expresso na dança?
PM: fica pra quem saber entender. Porque se você botar alguém que nunca viu um
candomblé pra ver uma dança de orixá,eles não vão entender nada. Só quem
entende é quem sabe!
K: e como se sabe?
PM: como se sabe? Vivendo! Ali, ó, todo dia, limpando bicho, varrendo barracão e
ouvindo aqui, perguntando ali. É assim que se aprende dentro do candomblé, com
trabalho, dedicação e atenção! Por isso é uma religião tão difícil e tão bonita, porque
a gente tem toda uma tradição pra seguir, pra manter!
K: e se não seguir essa tradição, o que acontece?
PM: aí a casa fica sem fundamento. E casa sem fundamento em pouco tempo
acaba, porque ninguém procura. A gente sente quando tem axé, quando tem santo.
Se você chega numa casa onde ta tudo errado, você acha que orixá vai gostar
disso? Não vai mesmo! E quando o orixá não gosta, já era, ele vai embora mesmo.
Aí vira charlatanismo!
K: então, quer dizer, a tradição é muito importante pro terreiro né?
PM: Claro! O terreiro tem uma linhagem, tem seus superiores tem um nome a zelar.
E se ficar tudo fora da tradição, vira bagunça, fica feio e ninguém gosta! Muito
menos o orixá!
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