REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
8
Abril/ Junho — 1971
R E V I S T A BRASILEIRA D E C U L T U R A
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octavio de Faria
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura — 7* andar — Rio de Janeiro — Brasil.
REVISTA
ANO
BRASILEIRA DE CULTURA
ABRIL / J U N H O
HI
1971
N.°
8
Sumário
ARTES
CARLOS
CAVALCANTI
A Pintura mais Popular no Brasil
BRUNO
KIEFER
Função
CIÊNCIAS
ARTHUR
GILBERTO
CLARIVAL
IRMÃO
CEZAR
FERREIRA
JOSÉ
PRADO
Música.
Conde da Boa Vista, simpatizante de idéias de reforma
social?
Biografia da
Freitas
...
Lagoa
Rodrigo
43
de
e
Desenvol75
M A N U E L DIÉGUES JÚNIOR
Mestiçagem
e
Transculturação
no Brasil de Antes do Século XIV
HELIO
Manuscritos
perial
VIANNA
37
55
Cultura, Tecnologia
vimento
OTÃO
9
27
HUMANAS
O
VALLADARES
da
O Brasil, de 1530 a 1580 . . . .
REIS
FREYRE
DO
Integradora
da
Biblioteca
91
Im105
LETRAS
CASSIANO
AFONSO ARINOS D E M E L O FRANCO
R.
Grafitos 6 Murílogramas
RICARDO
MAGALHÃES
JÚNIOR
....
Uma
Visão de Proust na Segunda Metade do Século. .
D. Pedro li. Plagiario?
145
155
163
Artes
A PINTURA MAÏS POPULAR NO BRASIL
CARLOS CAVALCANTI
a Santa Ceia de Leonardo da Vinci.
Ainda hoje não há menino brasileiro, principalmente do interior, rico
ou pobre, que não a conheça. Criei-me, por exempla, vendo-a todos os
dias, na sala de jantar de minha casa cearense. Via-a, também, na sala
de jantar das casas de outros meninos do meu tempo. Assim, sentia-a
e sinto-a. ainda agora, inseparável das imagens de minha meninice. Mais
do que isso, como sugestão de algo indefinivelmente nobre e sereno, que
existia ou deveria existir na convivência caseira. Uma sala de jantar
sem ela. para mim, como menino, estava incompleta. Não era tanto
no plano religioso, mas sobretudo no espiritual e moral, uma espécie de
lição, numa influência ou poder de persuasão sutil, que não sabia bem
definir ou explicar, no dispersivo entendimento infantil, feito mais de
emotividade difusa do que de percepção intelectual.
Quando estava ficando taludinho me mudei com a familia para Fortaleza. Voltei a encontrá-la, colorida ou em prêto-e-branco, maior ou
menor, moldura simples ou caprichada, conforme as posses, nas salas de
jantar de outros frangotes do meu tope de ginasiano. Vindo para o Rio,
invariavelmente a encontrava, no lar de parentes e de amigos, nas pensões
do Catete, pelas quais perambulei quando estudante. Achei uma novidade — algumas eram moldadas em gesso, brancas ou coloridas, outras
bronzeadas ou prateadas. O conjunto destacava-se sobre fundo de vellido de tonalidade carregada, para maior realce do contraste.
É
Tanto tempo passado, vejo-as hoje diversificadas nas apresentações,
enfileiradas, postas à vista e oferecidas às preferências dos fregueses, nas
papelarias, casas de molduras e de artigos religiosos. Algumas brilham
espaventosas no relevo polido de antimònio e na suntuosidade pretensiosa
da moldura, quase sempre de irrepreensível mau gosto.
— Isto vende ?
— Vende, sim senhor! Antigamente vendia mais. Ainda hoje
vende bem, especialmente para presente de casamento.
— Tôdas são a mesma. Não há outras diferentes ?
— Não, porque esta é a preferida. É a que agrada mais.
— Estou vendo que a maioria é em alto-relêvo.
— Agora isso está na moda. Gostam mais assim !
— É importada ?
— N ã o . Vem de São Paulo.
O luso, maduro e esperta faz sua sociologia prática de mercador do
sagrado:
— Antigamente, a coisa era diferente, havia mais respeito e mais
sentimento de família. Qualquer sala de jantar do Brasil, Portugal, Espanha, França e Itália, tinha a sua Santa Ceia. Hoje tudo mudou, principalmente nas grandes cidades e capitais. Mudaram até as salas de
jantar. Aqui no Rio, por exemplo, sala de jantar para muita gente em
Copacabana hoje é lanchonete !
! ! !
— No interior, não; como meu amigo sabe, ainda há respeito.
Qualquer sala de jantar do interior ainda tem a sua Santa Ceia. Quando
menino, mirava-a na minha casa em Portugal. Hoje, tenho-a na minha
casa na Aldeia Campista. Mas, sou português antigo !
HISTÓRIA E LENDA
Leonardo pintou-a numa das paredes de fundo, lado norte, do refeitório do Convento dominicano de Santa Maria das Graças, em Milão,
a pedido do duque Ludovico Sforza, o Mouro. Assim o chamavam pelo
moreno abaíanado da pele. O duque queria fazer do convento o panteon
da família. Enterrar-se ali com a mulher e os filhos, amanhã se enterrariam os netos. Por isso, mandara Bramante aumentar e embelezar a
igreja, enquanto Leonardo trabalhava no refeitório. com as obras desses
dois grandes da Renascença, o Sforza esperava ficar, como de fato ficou,
na glória das artes italianas.
Deve ter sido iniciada provavelmente em 1495. Os arquivos do
Convento dessa época foram destruídos. Os poucos documentos existentes a respeito datam de 1497, quando sabidamente já estava em fase
de acabamento, apesar da proverbial lentidão com que, artista ou cientista,
costumava êle trabalhar. Em 29 de junho, desse ano, o duque mandava
um bilhete a seu secretário, Marchesino Stang, para que o apressasse,
porque deveria se ocupar do muro em face. O muro em face era a outra
testada da grande sala do refeitório. Ali o medíocre milanês Donato
Montorfano (1440-1510) representara a afrêsco complicada, movimentada e ornamentada Crucificação, ainda impregnada de sentimento medieval. Leonardo deveria acrescentar-lhe as figuras da família ducal —
de um lado, Ludovico e o filho maior, Maximiliano; de outro, Beatriz
d'Esté e o filho mais môço, Francesco. O acréscimo se fêz. com o
tempo, igual à Ceia — logo veremos isso — as figuras começaram a desbotar, transformando-se quase em borrões.
Admite-se tenha sido terminada em 1498. Quem o diz é um espírito amante da exatidão, apesar de o chamarem os amigos monge tonto
de beleza. É o franciscano, matemático, e geòmetra, professor em Pavia
e Milão, conhecedor de arte, Luca Paccioli, na dedicatória ão duque de
seu tratado Da Divina Proporção, que Leonardo ilustrara.
No Iivro,
elogia-o e faia da obra terminada.
Leonardo lançou a composição em tôda a extensão da parede, nove
metros de comprimento, quatro e meio de altura. As figuras são um
terço maior do que o natural ( Fig. 1 ). A técnica empregada, causa da
tragédia de sua conservação e integridade, ainda hoje é controvertida, pois
não a definiram com precisão. Não foi comprovadamente a do afrêsco,
cuja rapidez de execução, cujo impromptu, feito mais de intuição do que
de reflexão, não se ajustava a seu temperamento meditativo e à delicada
fluidez de sua pincelada. Parece ter sido uma espécie de tempera ou
mesmo de óleo, com solventes e secativos especiais, que obtivera na infatigável curiosidade de pesquisador. Na solução, foram diluídas tintas
cuidadosamente moídas, capazes de permitir particular finura nas transições das tonalidades, luzes, sombras, como numa impressão sobre madeira ou tela.
No outro lado da parede, estavam a cozinha e a copa. Havia também
um tanque para lavagem de pratos e panelas, que provocava constante
infiltração. Ainda por cima, o refeitório fora construido a trancos e
barrancos, apressadamente, sem maiores cuidados. Usou-se mesmo material de demolições. com seu olhar de verruma, Goethe percebera isso.
Se a parede era ruim por fora. devia pensar o alemão criterioso, imaginem
por dentro. como um artista tão consciencioso e exigente consentira
nisso !. ..
O PRESTIGIO DA AURA
Sempre vagaroso em tudo, — a impaciência, escreveu, mãe da tolice,
admira a pressa — Leonardo ainda trabalhava na Ceia e o lendário já
a envolvia.
como em tôda grande obra de todo grande artista, ambos tocando-se
naturalmente de aura, a anedota edificante é inevitável. Não se sabe
de grande criador, em qualquer domínio da criação, sem o seu fabulário.
Quase sempre há um implicante, um invejoso, um mau caráter, que acaba
castigado pelo artista. No Juizo Final de Miguel Ângelo, todos conhecem a história de Biaggio da Cesena, mestre-de-cerimônia do papa
Paulo III. Nos corredores do Vaticano, vivia falando mal da nudez das
figuras. Miguel Ângelo colocou-o então entre os danados do Inferno,
canto inferior da extrema direita da composição — também nu, orelhas
de burro, serpente enroscada no corpo abocanhando-lhe o sexo. O mestre
vai queixar-se ao papa. Pede-lhe ordene ao artista "retirá-lo da grotesca
condenação eterna. Paulo III sorri:
- Meu poder infelizmente não chega ao Inferno. Se êle o tivesse
posto no Purgatório, meu filho, ainda haveria possibilidade.
Aqui mesmo no Brasil — e is outro ungido de aura — conta-se aquela
passagem do Aleijadinho com o coronel João Romão, ajudante-de-ordem
de D. Bernardo José de Lorena, governador da Capitania das Minas.
Recebendo-o no palácio, o ajudante o achou, em alto e bom som, feio
demais. O artista vingou-se caricaturando-o, para divertimento de Vila
Rica, na imagem de São Jorge, que saía nas procissões.
Na Ceia de Leonardo, a anedota não teve o desfecho convencional
do castigo. . Dizem que pelo caráter elevado do artista, forte e intocado
na sua solidão, avesso por isso a mesquinharias. Quem a contou em
1554 foi J. B. Giraldi, que a ouvira do pai. Stendhal a traduziu e
popularizou. Leonardo havia terminado o Cristo, onze apóstolos e o
corpo de Judas. Só faltava a cabeça do traidor. A coisa, porém, não
andava. Impacientado com a lentidão do gênio e a tralha dos andaimes
no refeitório, Vicenzo Bandelle o prior do convento, foi ao duque.
Este mandou chamar o artista e estranhou-lhe a demora. Pasmou Leonardo com a estranheza da príncipe. Garantiu não se passava um dia
sem que trabalhasse, pelo menos duas horas, na pintura. O prior, no
entanto, voltava à carga, agora numa reportagem completa.
— Senhor, disse ao duque — não falta senão uma cabeça, a de
Judas. Faz mais de um ano, porém, que êle não toca na pintura e nem
sequer vem vê-la !
O duque naturalmente subiu por suas suntuosas paredes, ainda hoje
admiradas peles turistas no castelo sforzesco. Novo chamado. Assim
teria sido a conversa:
— Que sabem os frades de pintura? — responde Leonardo. Eles
estão certos quando dizem que há muito tempo não ponho os pés no Convento, mas erram quando não dizem que emprego pelo menos duas horas
por dia no trabalho !
— como, se não apareces lá ?
— Vossa Alteza sabe que não resta fazer senão a cabeça de Judas,
aquêle insigne patife que todos conhecemos. Convém dar-lhe fisionomia
que corresponda à tamanha patifaria. Por isso mesmo, há um ano ou
talvez mais, todos os dias, manhãs e tardes, vou ao Borgheto, onde Vossa
Alteza não ignora que vive a pior canalha de Milão. Ainda não pude
achar a cara de celerado que corresponda à minha idéia. Logo que a
encontre, num dia terminarei a pintura. Se minha procura fôr inútil,
usarei a desse prior, que me serve perfeitamente. Tenho hesitado, porém,
levá-lo a ridículo no seu próprio convento.
O duque achou graça. Ao mesmo tempo, vendo a profundidade
com que trabalhava o artista, compreendia os motivos da admiração geral
que a obra mesmo inacabada já despertava até fora de Milão. A fama
do mural, na verdade, estava correndo mundo. Vinha gente admirá-lo,
plebéia ou nobre. O caso foi que finalmente encontrando a fisionomia
desejada, que anotaria num desenho de singular força expressiva, hoje
na Biblioteca Real de Windsor, Leonardo logo o deu por terminado.
Verdadeiro ou não, o episódio tem sua eloqüência. Serve para
mostrar o processo de criação, artístico ou científico característico de Leonardo. Sua grande mestra, não se cansava de dizer, era a Natureza,
observada diretamente ou submetida, nas causas e efeitos de seus fenômenos, à prova da experimentação. O artista — está nos seus manuscritos — não deve ser o neto, mas o filho da Natureza. Em outras palavras, não deve se valer da vivência alheia senão da própria se deseja
ser realmente criador, isto é, revelar e enlevar.
Sabe-se que quando pintava a Ceia, não tirava os olhos dos judeus
milaneses. Observava-lhes tudo, os tipos, as atitudes, a gesticulação. o
franzir da testa, o modo de olhar, as grandes e pequenas reações, com
a mesma avidez que punha na contemplação do vôo dos pássaros ao se
empenhar na construção da máquina para o homem voar. Buscava o
caráter. Foi justamente o que fascinou Goethe — a revelação do caráter através do gesto.
A mão esquerda do Cristo, por exemplo, espalmada sobre a mesa,
num gesto de resignação superior, dizem que procurou como procurara
a face do Iscariotes. Tudo indica que realmente a procurou e encontrou.
Num dos seus manuscritos, lê-se: «Alessandro Caríssimo de Parma, para
a mão de Cristo.» Teria assim encontrado, certamente num gentilhomem,
a mão excelsamente expressiva que buscava (Fig. 2) . Sempre obediente
aos conselhos de sua mãe N a t u r e z a . . .
A CABEÇA DE CRISTO
Um contemporâneo. Matteo Bandello, jovem frade do Convento,
sobrinho do prior implicante, depois escritor, conta não o que ouvia, mas
o que via.
Leonardo chegava manhã bem cedo. Subia depressa ao andaime.
Pincéis na mão, absorvia-se tanto no trabalho, desde o levantar ao cair
do sol, que esquecia até de comer. Só deixava de pintar quando a
obscuridade da noite o impedia. Outras vêzes, passava quatro ou cinco
dias sem nada fazer. Vinha e ficava, uma ou duas horas, braços cruzados, a olhar as figuras. Aparentemente, esclarece o jovem frade, estava
criticando-as. Via-o, também, em pleno meio dia, quando o calor esvaziava as ruas de Milão, sair da cidadela onde modelava em barro o cavalo
grandioso do monumento a Francesco, pai de Ludovico. Vinha ao Convento, pelo caminho mais curto, sem procurar a sombra. Chegava, dava
duas ou três pinceladas numa cabeça, voltava imediatamente ao cavalo.
Gian Paolo Lomazzo (1538-1600) foi um pintor que escreveu sobre
arte, especialmente depois que cegou.
Seu Tratado da Arte da Pintura
(1584) foi muito lido.
Colaborou também no fabulário de Leonardo.
«Este pintor surpreendente — conta Lomazzo — descobria defeitos nas
pinturas onde outros só viam miraculosas perfeições. Deu tanta beleza
e majestade a Tiago, o Maior, e a Tiago, o Menor, no quadro da Ceia,
que devendo tratar, em seguida, da figura de Cristo, não pôde elevá-la
ao grau de sublimidade que lhe parecia conveniente. Depois de várias
tentativas, foi se aconselhar com seu amigo Bernardo Zenale.
— Oh, Leonardo, — disse-lhe Zenale — o erro que cometeste é
de tal ordem que só Deus poderá corrigi-lo. Não está mais no teu poder
e, mesmo, no de qualquer outro mortal, dar maior beleza e expressão mais
divina do que as que soubeste pôr nas cabeças dos dois Tiago. Assim,
deves deixar o Cristo inacabado, porque jamais o farás ser o Cristo, ao
lado desses dois apóstolos !
E Leonardo — conclui Lomazzo — seguiu o conselho, como hoje
se pode ver, embora a pintura esteja em ruínas.»
Realmente, a lenda da cabeça inacabada de Cristo, o artista sentindose impotente para dar-lhe a feição ideal que concebera ou buscava na
realidade, foi contada e recontada. Na Pinacoteca de Brera, Milão,
guarda-se atraente desenho colorido de uma cabeça de Cristo (Fig. 3) .
Acreditou-se, por muito tempo, fosse o estudo de Leonardo para a Ceia.
Autorizados leonardescos a reconhecem hoje obra anônima de discípulo
ou imitador. Acham-na, inclusive, muito piegas, para ser de quem se
pretende seja. Entre os apontamentos escritos de Leonardo relativos a
Ceia, que não são muitos, encdhtra-se esta indicação — «Cristo, Giovan
dei Conte, aquele do cardeal de Mortaro.» Alguém, de feições nazarenas.
na comitiva ou corte do cardeal. Aliás, também não são numerosos os
desenhos, dispersos por museus e coleções. Um dos mais bonitos é justamente o da cabeça de Tiago, o Maior, na Biblioteca Real de Windsor.
Tem ao pé rabiscos de um castelo e de cúpulas, que lembram o estilo de
Bramante. Não são poucos os que juram que a cúpula bramantesca teve
o «risco» de Leonardo (Fig. 4 ) .
O ETERNO DOENTE
A verdade é que Leonardo ainda vivo — vagando pela Itália, depois
da queda do Mouro, para afinal ir morrer na França, precocemente envelhecido pelo hábito de trabalhar à noite, como César Borgia, de quem
fora engenheiro militar e em cuja corte deveria ter conhecido Maquiavel,
embaixador da Senhoria florentina — a verdade é que ainda vivo Leonardo, começaram não apenas os estragos no mural, pela mistura de óleos
e vernizes, umidade da parede, impericia dos restauradores, inaugurandose assim sua existência de eterno ammalato, eterno doente, como o chamou
Mário Salmi, um entre os muitos de seus ardentes devotos. Começavam
também e ainda não acabaram as análises, interpretações, críticas. Assim
como as cópias, as reproduções inumeráveis, com maiores ou menores,
quando não extravagantes infidelidades (Figs. 5 e 6) .
O inglês Kenneth Clark se confessa aterrado com as montanhas de
livros e estudos que nos seus mais de quatro séculos e meio a obra tem
inspirado no mundo inteiro. Para falar a respeito dela diz que se sente
inibido. Não há mais o que dizer, tudo já foi dito, a favor ou contra.
Conclui, paradoxalmente, que a Ceia não é obra de um homem, mas da
própria natureza. Vejam só ! Por isso mesmo, parece-lhe tão absurdo
analisá-la e criticá-la, como analisar e criticar num mapa a conformação
topográfica das Ilhas Britânicas.
O primeiro grande a contemplá-la, um ano depois de pronta, em pleno
esplendor dos poderes de suas formas e cores, foi Luis XII de França.
Isso se deu em 1499, nas guerras pelo ducado da Lombardia e o reino
de Nápoles, que os franceses reivindicavam e por isso passaram os Alpes,
para se encantarem com a [Itália, mas também para ensanguentá-la. Èsse
Luis de França entrara faustosamente na capital lombarda.
Nos dias
seguintes, percorria-a e visitava o Convento. No refeitório, ao vê-la
ainda intacta, sentiu-se tamanhamente embevecido, que pensou em levála à França. Depois, sempre arrastando seu fausto, foi à cidadela, olhar
o modelo em barro do grande cavalo para o monumento ao velho Sforza.
que o florentino modelava. Tôda a grandeza de Milão, para os grandes,
era Leonardo.
Em 1515, no refeitório, diante da Ceia que se arruinava, está outro
e mais faustoso monarca de França — Francisco I, colecionador de palácios, mulheres, obras de arte e livros. como Luis XII, pensa também
em levá-la. Dois anos depois, em dezembro de 1517, quem visitava o
Convento era Antonio Beatis, secretário do cardeal de Aragão. Ficou
famoso pelas referências ao retrato da Gioconda, na visita mais tarde
de seu amo ao atelier em Cloux, onde o artista vivia sob a proteção do
mesmo galante Francisco. Escreveu ter visto no refeitório uma Ceia,
«pintada por Leonardo da Vinci. . . excelentíssima, ainda que começa a
se estragar, não só pela umidade da parede ou por outra inadvertencia. . .
Os personagens — aqui se insinua o crítico no secretário — são figuras
da corte ou milaneses da época. »
Dois sintomas, registrados mais tarde por Gallarati, anunciavam as
doenças da pintura — um véu aquoso que transudava da parede e conseqüente mofo esbranquiçado, que se difundia por tôda a superfície.
A química do inventivo Leonardo não estava dando certo.
A ruína do majestoso mural prosseguia. Em 1566, o pintor, arquiteto e historiador de arte, Giorgio Vasari (1512-1574), foi vê-lo. Disse
depois ter visto apenas deslumbradora mancha. Em 1587, outro depoimento desolador. Autor de um livro sobre pintura, publicado em Ravena, Giovanni-Battista Armenini (1530-1609) dizia-o bastante estragado. apesar disso.. . belíssimo !
A HISTÓRIA DA PORTA
O primeiro a considerar a necessidade de restaurá-lo foi o cardeal
Frederico Borromeo, no início do século X V I I .
Acariciou a idéia de destacá-lo da parede úmida enquanto pedia ao
milanês Andrea Bianchi (?-?), chamado o Vespino, uma cópia feita em
1612, hoje na Ambrosiana de Milão. Multiplicavam-se, aliás, as cópias
— a óleo, a tempera, a afrêsco, a mosaico, mesmo em escultura. Isso
porque desde o seu primeiro dia, a Ceia demonstrava possuir em alto
grau o que hoje se chama poder de comunicação. Nenhuma outra obra
de arte, no ocidente latino, parece tê-la superado nessa eficácia, tão cara
às especulações da inteligência moderna, particularmente no plano
estético.
Não cessavam, por outro lado, os alarmas de novas deteriorações.
Todos acreditavam no seu breve e inevitável desaparecimento. Talvez
esse clima de pessimismo tenha levado os frades à mutilação de 1652.
Abaixo do mural, existia pequena abertura por onde passavam os
pratos fumegantes, pois, do outro lado, como sabemos, estava a cozinha,
fumegando ainda mais. Naquele ano, o prior aumentou a abertura, transformando-a numa porta, para estabelecer comunicação direta entre refeitório e cozinha. A porta atingiu quase a quina da mesa, sacrificou
os pés de Cristo e, aos lados, os de dois apóstolos, inclusive os de Judas.
Interessante notar que os historiadores da Ceia passam em geral por alto
nesse episódio, afinal de contas pouco recomendável, para os dominicanos. Apenas aludem, sem maiores informaões, à abertura da porta,
mais tarde murada, sem se fazer a reconstituição da área pintada que fora
eliminada (Fig. 1 ) .
O fato é tanto mais significativo quanto se sabe que até o século
XVIII, apesar das progressivas deteriorações, ninguém se atrevia a pôr
a mão, mesmo para salvá-lo, no mural considerado excelentíssimo e belíssimo, ainda que arruinado. Havia invencível respeito, certamente inspirado pelo prestígio da aura. Somente em 1726, Miguel Ângelo Bellotti
(? — 1744) tentou a primeira restauração. Ainda hoje, na opinião dos
entendidos, sua impericia brada aos céus. No seu Dicionário, Benezit
diz que devemos guardar-lhe o nome só para o amaldiçoar, tais os seus
desatinos.
Em 1657, no Microcosmos da Pintura, Francisco Scanelli
considerava-o pràticamente desaparecido. Não restava senão acreditar
na fama do seu passado.
Em 1670, no Retrato de Milão, Cario Torre
o dava como perdido. Em 1770, vinha outro restaurador, Giuseppe
Mazza (1653-1741), também duramente criticado na época.
Em 1796, o padre Domenico Pino escrevia a História Verdadeira da
Ceia. Não conheço este livro senão de referência. Presumo seja uma
defesa dos dominicanos no caso da porta, que teria sido aberta depois
de reconhecida a inutilidade dos esforços para salvar o mural.
BONAPARTE E O MURAL
Nesse mesmo ano de 1796, vencedor dos austríacos, aparecendo em
Milão, Bonaparte fazia o mesmo que Luis XII e Francisco I — foi ver
a Ceia. Verdade que por sugestão do italiano Andrea Appiani (17541817), depois pintor de sua corte.
Ao sair. antes de montar, assinou sobre a perna ordem proibindo
serventia militar do refeitório. Um de seus generais, pouco depois, não
ligava à ordem. Transforma-o em cavalariça. Os soldados se divertiam
atirando bolotas de barro à cabeça dos apóstolos. Depois, melhorou de
destino — servia apenas de depósito de forragem. Appiani, porém, pede
daqui, implora dali. Percorre, incansável, os canais competentes da burocracia militar. Consegue, finalmente, desocupá-lo.
Em 1800, agora desocupado, uma inundação deixou-lhe um palmo
d'água, que se evaporou com o tempo. A umidade dobrou. Feito Comissário de Belas Artes, o devotado Appiani mandava murar em 1802 a
porta de entrada, fechar as janelas, para evitar vandalismos de soldados
e de visitantes. Os visitantes, porém, pulavam as janelas. Para verem
de perto a pintura, encostavam-lhe uma escada. Porta murada e janelas
fechadas dificultavam a aeração da sala. O véu aquoso e o mofo esbranquiçado aumentavam. Desmura-se a porta, abrem-se de par em par
as janelas. O doente precisava de ar. Nos azares da guerra, que não
são poucos, todo o Convento em 1807 está de novo transformado em
quartel.
Nessa altura dos sofrimentos do eterno ammalato, aparece um homem
providencial —- Eugène de Beauharnais (1781-1824), filho de Josefina,
enteado de Napoleão, Vice-Rei da Itália por dez anos. Mandou restaurar o refeitório e para lembrança da obra condenada pediu a Giuseppe
Bossi (1777-1815) fizesse uma cópia nas dimensões do original. Transportada para o castelo Sforza, o fogo a consumiria no bombardeio de
agosto de 1943.
Desfeito o império napoleònico, a Ceia continua, no entanto, na
ordem do dia. Em outubro de 1819. a Academia de Belas Artes de
Milão era chamada a estudar a melhor maneira de protegê-la com um
vidro. uma comissão entendeu que o vidro poderia aumentar a concentração de umidade da parede, aumentando, em conseqüência, as possibilidades de deterioração.
Encontramos agora na história do eterno doente, Stefano Barezzi di
Busseto, mestre restaurador, que inventara um processo de transpor
aíreseos murais para madeira. Propõe-se transpô-lo por simples amor
de artista. Desiste aos primeiros ensaios. Verifica que a técnica empregada não ê o afrêsco, como êle próprio e tantos outros ainda pensavam ou teimavam.
Sereno e nobre, mesmo na sua ruína, o mural continua inspirando
dedicações e padecendo agravos. Depois da insurreição italiana de 1848,
as tropas austríacas se alojaram no Convento por três anos.
A DEVOÇÃO DOS AUSTRÍACOS -
Agora comovidos com o mural estão os austríacos.
Quando suas tropas se instalaram em 1848 no Convento, a Ceia foi
p r o t e g i a com uma parede de madeira. Em 1851, a Academia de Belas
Artes obtém a desocupação da sala e seu presidente, conde A. Nava,
chama um químico competente. Jean Antônio Kramer, que faz análises
minuciosas da parede, molhada há séculos pela lavagem de pratos e
panelas, do reboco, das tintas. As análises revelaram que o suporte
sobre o qual Leonardo pintara é uma mistura, certamente de sua invenção, de céra e carbonato natural, argila e ferro, além de matéria gordurosa. À base dessas análises, Barezzi propõe agora não transposição,
mas restauração, que se fará sob a fiscalização dos pintores Francesco
Hayez, Antonio di Antoni, Giuseppe Moltani e Giovanni Servi.
As experiências iniciais se fizeram num pedacinho da toalha e no
manto do último apóstolo à direita, isto é, Simão, que era chamado o
Cananeu. Muitos o identificam como o esposo das nupcias de Cana.
quando Jesus transformou água em vinho. como Jesus, morreu também
na cruz. O trabalho consistiu em estirar cuidadosamente as escamas quebradiças — craquelures, como dizem nossos irmãos franceses — a que se
havia reduzido a camada de tinta. O ministro da Instrução e Culto
mandou então de Viena comissão especial para acompanhar os trabalhos. Julgou-se melhor fossem suspensos.
Cinco anos depois, novas mazelas no eterno doente. Fazem-se
novos diagnósticos, agora para remover ou deter a umidade, embora Convento e cozinha tenham deixado de existir. Outro químico, Pavesi —
seria melhor dizer outro médico — outro químico demora-se nos exames.
Em 1870, balançava desengañado a cabeça — morte inevitável conseqüente aos óleos, vernizes, secantes, que Leonardo utilizara na sua curiosidade de experimentador. Experimentava tudo. como sabemos, desde
o mecanismo da visão a remédio para enjôo do mar. Por que não iria
experimentar a banalidade de misturar tintas e óleos ?
O BOMBARDEIO DE 1943
Quando se abre este
diretor artístico do Museu
a saúde do eterno doente,
versos sentidos, In morti
século, Luigi Cavenaghi (1844-?), mais tarde
do Vaticano, faz novas tentativas de recuperar
ao mesmo tempo que ecoam pela Itália artística
di un capolavoro, de Gabriele d'Annunzio.
Entre maio e agósto de 1904, Cavenaghi trata de consolidar a película de tinta, que rachava, tornava a se despregar em escamas, tornava
a cair (Fig. 7) . Limpou a poeira de algumas áreas. Parecia renascida
a luminosidade do colorido de que os antigos falavam. Cauteloso, porém,
esperou quatro anos pelos resultados. Só em 1908, antes de ir dirigir
o Museu do Vaticano, retomava o trabalho junto com tentativas para
dessecar a parede. Contou depois tôda a trabalheira, num livro escrito
com Luca Beltrami, amigo e ajudante.
Durante a I Grande Guerra ( 1914-1918), precauções foram tomadas.
Sacos de areia nos dois lados da parede. Assim que o conflito terminou.
o pintor Oreste Silvestre, discípulo de Cavenaghi, fazia em 1919 nova
limpeza. Em 1924, a tinta está se desprendendo mais uma vez. em pequenas escamas. Silvestre injetou sob cada pequena escama essência
de petróleo, para amolecê-las e assegurar a aderência, obtida com um
ferro de engomar, passado e repassado com infinita delicadeza. como
observador das condições do mural e responsável pelos meios de melhorar
o ambiente sempre hostil, indicou Mario Bezzola. Era, por assim dizer,
um médico de plantão à cabeceira do eterno doente.
Em junho de 1940, metendo-se a Itália na II Grande Guerra (19391945), novas medidas de proteção — sacos de areia, madeira incombustível. Numa noite de agosto de 1943, uma bomba caía no claustro do
Convento. Italiano vem ao mundo, como sabemos, para se emocionar.
Estou tirando essas informações de Giorgio Nicodemi. fervoroso leonardesco. Não dormiu naquela noite, que chamou apocalíptica, a imaginar
o pior com sua amada pintura. Mal rompia a madrugada fumegante,
correu ao Convento, para ver a extensão da desgraça. Respirou aliviado.
Altaneiras, entre os destroços, sem um arranhão, as duas paredes de
fundo do refeitório — uma, com a Crucificação, de Montorfano; a outra,
com o seu ídolo (Fig. 8 ) .
Dois anos se foram na restauração do refeitório. Procurou-se repor
tudo como no passado, ao tempo em que Leonardo vinha pelas ensolaradas ruas milanesas, subia depressa ao andaime, dava duas ou três pinceladas, voltava ao cavalo na cidadela, como nos conta Bandello, testemunha jovem dessas coisas que afinal, tratando-se de quem se trata,
não deixam de ter sua aura.
Eram necessários novos cuidados de restauração e conservação, que
foram feitos por Mario Pellicioli. Assim, em 1952, quando se comemorava o quinto centenário de nascimento de Leonardo, o eterno ammalato
pôde apresentar, no meio das solenidades e discursos, uns ares de saúde.
COMPARAÇÕES
São interessantes os estudos comparativos com outras Ceias, anteriores, contemporâneas ou posteriores.
Entre as anteriores mais famosas está a do pré-renascentista florentino Andrea del Castagno (1423 — 1457), pintada a afrêsco entre
1445-1450, no refeitório do convento de Santa Apolônia, em Florença
(fig. 9) . Castagno era um naturalista severo. Filtrara os ensinamentos
do realismo de inspiração popular de Giotto e de Masaccio, mas nao se
dera conta do sentimento de síntese escultórica das formas, simples e
monumentais, desses dois iniciadores de novas visões plásticas. Nas
suas formas, ao contrário, surpreende-se certo gosto da minúcia, que
revela em tantos pintores a persistência do lavor caprichoso da ourivesaria
do quatrocento florentino. A composição obedece à tradição toscana
— Judas sozinho do lado de cá da mesa. A multiplicidade dos elementos
decorativos, traindo a sobrevivência do ornamentalismo gótico, dispersa
a atenção, que borboleteia nos detalhes. Não tem onde se concentrar,
pois as figuras estão inferiorizadas e esmagadas pelos seis grandes quadrados de mármore da parede ao fundo. Falta-lhe o que sobra e dá
eloqüência à de Leonardo — a perfeita unidade plástica e dramática,
tudo nos conduzindo, irresistivelmente, à figura dominadora de Cristo,
para a qual também nos leva o ritmo dinâmico e diversificado da
gesticulação dos apóstolos.
uma posterior, igualmente admirada, é a de Andrea del Sarto
(1487-1531). Está no convento de San Salvi, em Florença (fig. 10).
Para resistir à influência dos três reis da pintura no seu tempo, Leonardo, Rafael e Miguel Ângelo, já se disse que Andrea se refugiou
no cálido colorismo e nas transparências atmosféricas luminosas dos
venezianos. Na sua, se inspirou evidentemente na leonardesca ou fundiu
na composição recursos de Castagno e de Leonardo. Teve, porém, maior
e mais sugestiva percepção do valor do espaço do que Castagno. Nossa
atenção vai, no entanto, em primeiro lugar, para os dois garçons, que
parolam na janela central ao alto. Depois é que desce amortecida ao
acontecimento, com seus figurantes tratados embora com irrecusável
grandiosidade (fig. 11). O impacto inicial está, porém, nos garçons.
Eis uma de suas fraquezas, que Leonardo não cometeria e muito menos
se perdoaria. como Leonardo, rompeu a tradição toscana, não isolando
Judas. Apesar de seus senões, Bernard Berenson diz ser a única que
se pode contemplar com agrado depois da incomparável no convento
de Milão.
CLASSICO E BARROCO
A comparação mais esclarecedora, pela eloqüência dos contrastes,
que definem dois ritmos de vida ou estilos de arte — o clássico e o
barroco — será com a de Tintoretto (1518-1594), em San Giorgio
Maggiore, em Veneza (fig. 1 2 ) .
Tintoretto — desculpará o leitor a informação — foi exasperado
barroco veneziano. Criava gigantes convulsivos, entre lampejos fulgurantes, nesse particular gênio do maneirismo, semelhante a El Greco.
Produziu caudalosamente. Tinha uma destreza de desenhar e pincelar
que chegava ao prodígio. Quase não há parede veneziana, santificada
ou enobrecida, em que não o encontremos, vertiginoso nos clarões,
trepidante no ritmo. Conta-se que Ticiano, também genial na inveja
e na maledicencia, o detestava.
Vejam os contrastes. O clássico Leonardo racionalista e científico,
apoiou sua composição numa vertical central imaginária, que a divide
em duas partes exatamente iguais e nos comunica sentimentos de equilibrio, ordem e unidade. Essa vertical, invisível, mas atuante subliminarmente, divide também simétricamente a pirâmide em que se inscreve
a figura de Cristo. Fala-se muito da calma e superior tranqüilidade
do Cristo leonardesco, entre os apóstolos agitados. A calma e superior
tranqüilidade de Cristo resultam precisamente da inserção na forma
inamovível e incomovível da pirâmide (fig. 2 ) . Nenhuma outra forma
abstrata nos sugere tão forte sensação de estabilidade como a pirâmide.
A composição de Tintoretto, ao contrário, se baseia numa diagonal
audaciosa, visível, porque representada pela posição da própria mesa,
diagonal que nos provoca sensação de movimento, de espaço que se
desata e de desordem emocional.
Enquanto no barroco Tintoretto predominam as curvas e contracurvas, criando palpitante e dinâmica atmosfera, no clássico Leonardo
predominam as retas, horizontais e verticais, que sugerem atmosfera de
tranqüila e natural solenidade.
Utilizando a perspectiva científica, que estudara com Piero della
Francesca e aperfeiçoara com Luca Paccioli, aquele frade tonto de
beleza, Leonardo fêz com que tôdas as linhas de fuga, desde as das
cabeceiras da mesa, das portas laterais às do travejamento do teto,
confluissem para o ponto de fuga que colocou na fronte de Cristo,
entre os olhos, pelos quais passa a linha do horizonte na paisagem
ao fundo (fig. 13) . com esse artifício, capta e conduz insensivelmente
nosso olhar à figura de Cristo, que assim fica parecendo a maior. Mas
nos parece a maior não apenas por esse artifício de ótica. Também
por contrapô-la à luminosidade da paisagem, no retângulo da porta
central (fig. 2 ) .
No tumultuoso cenário de Tintoretto, a gente fica procurando Cristo.
Afinal o encontramos, no meio daquela algazarra de luzes. Só o encontramos pelo maior resplendor da aurèola. Recuada, ao último plano,
é quase uma figura secundária. Em Leonardo, não. Ao primeiro golpe
de vista, avulta e domina.
Aliás, no tocante à auréola, vem a propósito observar que Leonardo
não aureolou ninguém. Certamente não lhe agradava ao espírito científico esse símbolo sobrevivente das superstições medievais. Acreditava
em Deus, não o da Bíblia, que se devia deixar em paz, como transparece
nos seus manuscritos. Por isso mesmo, o que aureola Cristo é a luz
que considerava sagrada, fonte de tudo na terra — a luz do Sol. Não
é de admirar, portanto, que nos seus tratados fale do Sol com a religiosidade de um egípcio antigo. Alguns escreveram que antes de se
completarem os efeitos ruinosos dos óleos e vernizes, mesmo com o véu
aquoso e o mofo que a empanavam, a luz solar vibrava, límpida e
luminosa, na paisagem dos fundos, pura da quintessência espiritualizada
posta no cenário da Gioconda ou na caverna da Virgem dos Rochedos
do Louvre. Quando esta tranqüila luz natural, cientificamente contemplada, poderia ocorrer ao emotivo, cenográfico e noturno Tintoretto?
MOMENTO HUMANO
A mentalidade humanística de Leonardo se definiu no momento
da vida de Cristo que escolheu para a sua Ceia.
Via de regra, o momento preferido dos pintores, antes e depois
— seria longa a enumeração — tinha e tem sido o momento divino
e místico da instituição do mistério da Eucaristia. Assim fêz Tintoretto
e fizeram tantos outros. No próprio Tintoretto, porém, o momento
augusto não tem solenidade e transcendência. Está vulgarizado pela
labuta dos serviçais, homens e mulheres, que preparam e distribuem
os pratos. Até um gato se espicha para uma cesta pejada de alimentos,
no primeiro plano. Apesar dos anjos que revoluteiam grandiosos no
alto, tudo é assim doméstico ou culinàriamente prosàico.
Leonardo, não. Escolheu um momento humano da vida de Cristo
— o momento em que o amigo atraiçoa o amigo. Justamente o instante
dramático e surpreendente em que Cristo anuncia que um dos presentes
o entregará. A revelação desencadeia verdadeira tempestade de
emoções, que se sucedem, a um e outro lado, de sua divina impassibilidade. É quando Leonardo se revela o psicólogo que encantou Goethe
— cada atitude, cada gesto, cada duas mãos, um temperamento, definido
com justeza e sobriedade como ainda não se tinha feito.
Entre Pedro e André, face sinistra ligeiramente sombreada, aquela
face longamente procurada na canalha do Borgheto, sentindo-se
apanhado em flagrante, Judas recua surpreso com o dom divinatório
do Supremo Amigo. É também quando Leonardo revela ainda seu
gosto por um recurso expressivo que recomendava — o dos contrastes.
O feio e o belo, o jovem e o velho, o forte e o fraco, a rudeza e a
suavidade, a reta e a curva, a sombra e a luz, sobretudo estas que
o fascinavam.
Vejam o velho e impetuoso Pedro. Impulsivamente se inclina para
o jovem e angélico João. Vejam ainda o feminino e suave Felipe,
mãos cruzadas postas sobre o coração inocente, que se ergue ao lado
do másculo e arrebatado Tiago Maior, que abre os braços indignadamente incrédulo. Fiquemos por aqui. Seria um nunca acabar de
anotações psicológicas, que através dos tempos têm feito o regalo de
críticos e enchido bibliotecas.
O ESPAÇO SOLENE
Um estudioso já chamou a atenção para os efeitos expressivos
que Leonardo obteve, com a representação do espaço, na sua Ceia.
Disse que uma pessoa desconhecedora do conteúdo de sua composição ou mesmo ignorando a História Sagrada, logo perceberá que
entre aqueles treze homens, reunidos naquela mesa, está acontecendo
algo de importante, grave e solene. Essa impressão de importância,
gravidade e solenidade nos é dada pelo predominio do espaço e pelo
modo com que o soube manipular Leonardo. Inclusive com a aplicação
rigorosa das regras de perspectiva, conseguiu amplitude quase grandiosa ao espaço da sala, que ocupa praticamente metade da composição.
Faça o leitor uma experiência curiosa. Esconda o espaço amplo
da sala com uma simples tira de papel. Reduzida a composição ao
friso movimentado, constituído pelas imagens dos apóstolos, e às paralelas da mesa, desaparecerá a sensação de grandiosidade, que antes
experimentávamos. como outros artistas, Leonardo soube extrair felizes
efeitos psicológicos da representação do espaço. Foi o que por sua
vez procurou fazer Andrea del Sarto, com o grande arco, as três
balaustradas, os dois garçons (fig. 1 0 ) . Falou muito e disse pouco,
como sentencia o povo.
Tanto na sua representação ilusionista, como na sua realidade
concreta, não no caso em termos cósmicos, nem nos puramente conceituais, mas nos terrestres e físicos, o espaço é necessário ou decisivo
à afirmação de nossa personalidade e ao nosso sentimento vital.
Os espaços diminutos nos oprimem e deprimem. Insinuam-nos
sentimento ou sensação de insegurança, vago temor. Os espaços amplos
e desimpedidos confortam e exaltam nossa personalidade. Comunicamlhe sentimentos de afirmação e de segurança. Os espaços centimetrados
dos apartamentos populares modernos, por exemplo, são responsáveis
em parte, como lemos nos sociólogos e nos jornais, pelas neuroses nas
cidades grandes. O amplo espaço de uma grande sala, além de nos
inspirar segurança e afirmar nossa personalidade, soleniza-se. Aqui
talvez esteja o poder de comunicação da Ceia. Autêntico artista,
Leonardo dirige-se assim mais aos nossos sentimentos de vitalidade
do que aos religiosos ou à nossa percepção intelectual.
O poder, temporal ou espiritual, sempre se utilizou da força expressiva, solenizadora e majestática, inerente ao grande espaço, interno ou
externo, na ficção ou na realidade. O que ainda hoje cria a sugestão
sacramentai do interior na catedral gótica é o espaço em ascenção. O
grande espaço público urbano promove, como num sortilègio, a idéia
de poder nos regimes políticos. São, por excelência, não tranquilizadores, mas intimidadores, como os criados em todos os tempos pelos
regimes autoritários. Assim entendia os problemas expressivos da representação do espaço o arguto Leonardo. Soube solenizar, serenando-o e
dulcificando-o, o espaço da sala desataviada em que colocou Cristo e os
apóstolos. Eis porque graças à sua espacialidade, a Ceia leonardesca
nos sugere que algo de importante, de grave e de solene está acontecendo entre aqueles homens.
Na sua Ceia (fig. 14), o surrealista Salvador Dali (1904) também
explorou o espaço, numa concepção fantástica, própria de sua escola
Obteve igualmente felizes resultados expressivos. Situou a instituição
da Eucaristia num ambiente enriquecido de sugestões vindas, a um
só tempo, dos poliedros desenhados por Leonardo para o Iivro de
Paccioli e dos equipamentos astronáuticos dos nossos dias.
PODER DE COMUNICAÇÃO
Não se pode negar o poder de comunicação da obra de Leonardo.
«A Ceia — escreveu Mário Salmi — é uma das criações do
intelecto humano mais universalmente admiradas». N ã o faz muito
tempo, realizaram na Europa grande inquérito para saber quais as
dez pinturas mais populares. Os dois primeiros lugares couberam à
Gioconda e à Ceia. Quando se sabe que a rigor Leonardo jamais se
intitulou exclusivamente pintor, mas, acima de tudo, cientista, inventor
de máquinas e engenheiro militar, o resultado do inquérito deixa qualquer um perplexo. A pintura, como a mecânica, a física, a química, a geologia, a anatomia e a fisiologia do homem, dos animais e das plantas,
a ótica e a geometria, era realmente uma de suas ferramentas de
investigação, conhecimento e explicação do universo. Mas, ao que
parece, só nas horas de lazer. Para o seu espírito tão complexamente
ocupado, a pintura, investigar através das formas e das cores, deveria
ser um refrigèrio. Um «hobby», digamos.
Que poderes possuem as pinturas desse pintor nas horas vagas?
Sabe-se como relutou a atender o pedido de um quadro vindo de
Isabel d'Esté, graciosa duquesa de Mantua, absorvido com trabalhos
matemáticos. Naqueles dias, sentia-se matemático, não pintor. No
começo deste ano, a imprensa noticiava que a Rússia emitira selos
coloridos de cinqüenta kopeks com a reprodução de Virgem de Litta,
«do grande mestre italiano Leonardo da Vinci». A Litta está no
Ermitage, em Leningrado. Em 1962, levada aos Estados Unidos,
milhões de americanos foram ver a Gioconda. Certo que nenhuma
outra obra de arte possui sua aura, que se foi tecendo, imperceptível
e irresistível, na imaginação da humanidade civilizada, em quase cinco
séculos. Apesar disso ou por isso mesmo, que poderes de comunicação
de massa possui o «grande mestre italiano» para que ainda hoje essas
coisas aconteçam com sua arte, neste século da síntese e da eletrônica,
inimigo de valores cultuais, que pareciam definitivos a outras gerações?
Por que ainda hoje se cultua uma imagem de mulher simplória como
a da Gioconda, tão diversa, no corpo e na alma, do ideal feminino
moderno?
Serão poderes ùnicamente de pintor? «Um pintor, perguntou
Bernard Berenson — unicamente pintor, um artista mesmo, unicamente artista, poderia ter visto e sentido à maneira de Leonardo?
Duvido!»
Não devemos duvidar com tanta certeza. Leonardo criava na pintura
realmente como artista. Só assim poderia obter a plenitude de expressão
e de comunicação que ainda hoje está alcançando. O intuitivo ou
irracional, inseparável da criação artística para que nos possa comunicar
o ritmo universal da vida, era nele contido ou temperado, na justa
medida, pela disciplina do pensamento lógico de seu espirito científico.
A DOSAGEM FELIZ
Diz-se, ao que parece com sobradas razões, que a universalidade do
agrado de sua Ceia, a permanencia de sua facilidade de comunicação,
a aura que acabou a envolvendo e ainda hoje a envolve, tudo isso está
em que nela Leonardo soube dirigir-se às nossas percepções, a sensível
e a intelectual, ao instintivo e ao racional, numa dosagem feliz, graças
à harmoniosa convivência e exercício, na sua individualidade, das faculdades intelectuais e emocionais. Escreveu sobre os fenômenos da erosão
da crosta terrestre como geólogo, mas, quando os representou como
desenhista, foi um poeta.
O leitor interessado poderá fazer análise ligeira dos elementos
plásticos puros de sua composição ( fig. 1 ) . Quer dizer, abstrair-se
do que as formas representam, objetiva ou figurativamente, para
imaginá-las ou aceitá-las abstratamente, como formas sem representação
das realidades visuais.
Verá, no conjunto, o predomínio de retas, horizontais e verticais,
representadas pela mesa, portas, ângulos das paredes, travejamento do
teto. Em nossa percepção, essas retas fazem apelos a significados intelectuais . Dirigem-se, assim, à esfera do racional. Leonardo evitou, porém,
a supremacia desses valores ou significados intelectuais. No esquema
geral da composição, rigidamente geométrico, estático, quase frio, introduziu os dinâmicos elementos, movimentados, quase dançantes, das curvas
e contracurvas das figuras dos apóstolos, agitados porque emocionados
com a terrível revelação do Mestre. Essas curvas e contracurvas, ao
contrário das retas, apelam para a nossa percepção sensível.
É a dosagem — eis a palavra certa — a dosagem desses apelos,
entre a vivência do racional e a do vital, do consciente e do inconsciente,
intrínsecos à natureza humana, que confere interesse permanente e agrado
constante, acima de sua significação religiosa, ao mural famoso de que
sobrevive em nossos dias apenas um fantasma do original.
CULTURA E INCULTURA
O nosso papa da História da Arte, Arnold Hauser, dogmatizou:
«As camadas incultas do público se manifestam, porém, sob forma
igualmente inequívoca pela arte ruim do que pela boa. O êxito das
obras de arte neste público se rege por pontos de vista extra-artísticos.
O grande público não reage ao valioso ou não valioso artisticamente,
senão por motivo pelos quais se sinta tranquilizado ou intranquilizado
em sua esfera vital. Por isso, aceita também o valioso artisticamente,
quando para êle significa um valor vital, isto é, quando responde a seus
desejos, fantasias e ilusões, quando aplaca sua angùstia vitai e intensifica seu sentimento de segurança».
Vejam como isso parece se aplicar bem à nossa Ceia, que faia
indiferentemente às elites intelectuais e ao «popolo grosso», como diziam
os estetas na Florença leonardesca. Será ela, como quer o inglês, obra
mesmo da natureza, igual à respeitável configuração topográfica das
Ilhas Britânicas?
De minha moradia, em Laranjeiras, vejo do outro lado da rua a
sala de um apartamento centimetrado. um jovem casal ali come, numa
pequena mesa redonda. Na parede, vistosa Ceia de Leonardo, em altorelevo colorido. Num encontro casual com o rapaz, aura de bancário
bem sucedido:
— Gosto muito daquela sua Ceia!
um sorriso de satisfação foi a resposta.
— O senhor deve ser muito católico?
— Até que não. Sou agnóstico!
— E por que a Santa Ceia?
— Porque ela é bonita. Faz bem à gente.
FUNCAO INTEGRADORA DA MÚSICA
BRUNO KIEFER
A
PÓS 1870 dizia-se na Alemanha que a unificação deste país fora o
resultado da música alemã. Descontando o evidente exagero contido nessa afirmação, resta ainda um fundo de verdade. A música
alemã surgira com o Romantismo no começo do século passado. Em
pouco tempo os alemães, espalhados pelos numerosos estados independentes e soberanos, cantavam os «lieder» de Schuber, Weber, Mendelsohhn, Schumann, Brahms; reconheciam seu modo de sentir na música
do «Freischuetz» de Weber; associavam-se em tôda parte para cantar
em coro melodias dos compositores citados e outros. E, ao cantarem,
sentiam que algo os unia por cima das fronteiras entre estados independentes, por cima das barreiras alfandegárias, por cima das divergências
religiosas. Através da música desvelara-se algo que já era comum
mas que se escondia, algo que era informe e que se estruturou, algo que
era disperso e que se concentrou.
Pensamos que a música, como arte, é incapaz de, por mera criação
(invenção, novidade apenas como novidade), colocar algo que se possa
tornar comum. São inúmeras as obras contemporâneas que, depois de
um primeiro impacto, provocado pela novidade, caíram num esquecimento
definitivo. É que o novo somente é novo na primeira audição. O novo
pelo novo carece de sentido.
Em nossa maneira de pensar, a música só comunica, isto é, só torna
comum, a partir do momento em que os ouvintes se reconhecem ou
sentem que aquilo que a música desvela já lhes pertencia obscuramente.
A criação não reside então na invenção como mera invenção, mas no
trazer à tona, no estruturar o que já existia em forma nebulosa, dispersa,
no dizer o que ainda não pôde ser dito. O caráter de novidade que
acompanha a criação concebida dessa maneira é diferente da novidade
como pura novidade. A criação musical, se fosse concebida como mera
invenção, traria como conseqüência a possibilidade de seu aprendizado
e chegaríamos então ao conceito de música como código, à semelhança
do código Morse, por exemplo. Mas a experiência mostra que, a rigor,
não se pode aprender a entender a música, como de resto qualquer arte.
Isto significa que não é possível ensinar a compreensão da música; o
máximo que se pode fazer é mostrar.
Se aquilo que pertence obscuramente ou mesmo inconscientemente
a todos que integram determinado povo, fazendo-o ser o que é, encontra
a sua expressão em determinada obra de música, então ela é dita de
auto-afirmação nacional. Foi o que aconteceu com a música romântica
alemã. Foi o que ocorreu aqui no Brasil com a música criada em torno
do movimento da Semana de Arte Moderna. Tais considerações provavelmente serão tidas como superadas, fora de uso, na era tecnológica,
da comunicação de massas. Resta ver, no entanto, se isto corresponde
à verdade.
Vivemos numa época em que o pensamento pragmático-racionalista
encontra motivos para festejar triunfos nunca vistos na enorme expansão
da tecnologia. Temos a impressão de que as artes, em particular a música, fortemente influenciadas por este pensamento, passaram a ser encaradas, com o máximo de ênfase, do ponto de vista da criação com o
sentido de invenção pura, de novidade como pura novidade, à semelhança
dos produtos industriais. Já existem inclusive tentativas no sentido de
conferir a computadores a tarefa de criar música. Daí para a idéia de consumo de arte vai um passo só. E o que é consumido desaparece, se desgasta, é digerido, necessita de ser substituído, de preferência com melhora de qualidade ou com alguma novidade que desperte a atenção. Há,
além disso, a concorrência com tôdas as suas implicações. Dentro deste
espírito poderemos compreender as últimas conseqüências decorrentes de
tal postura, enunciadas por Décio Pignatari: «Podemos dizer que estamos assistindo à agonia final da arte: a arte entrou em estado de coma,
pois seu sistema de produção é típico e não prototípico, não se prestando
ao consumo em larga escala. Não há por que chorar o glorioso cadáver,
pois de suas cinzas já vai nascendo algo muito mais amplo e complexo,
algo que vai reduzindo a distância entre a produção e o consumo e para
o qual ainda não se tem nome . . .» («Informação, Linguagem, Comunicação» — Ed. Perspectiva, 3* ed., 1969).
Não concordamos, nesse contexto, com a afirmação de Gerd Bornheim («Sentido e Criatividade» — Correio do Povo — 5-9-70) quando
diz que «O homem é essencialmente criador, êle busca o novo, persegue
aquilo que não se repete». O novo, o puramente novo, também acontece pelo acaso. Tal novo, puramente novo, é provocado, por exemplo,
nos trechos aleatórios de numerosíssimas obras musicais contemporâneas.
Ocorre também nos chamados «objetos» dos artistas plásticos nos quais
um conjunto de luzes coloridas se acende e apaga em combinações sempre
novas (porém finitas), imprevisíveis para o observador.
Por outro lado, o novo, puramente novo, pode ser calculado facilmente. Se submetermos, para citar um exemplo, os elementos de determinada estrutura musical a tôdas as permutações possíveis, teremos em
cada uma um novo surgindo por mero cálculo. Procedimentos desta
natureza têm sido aplicados em larga escala. Mais ainda, há na música
contemporânea forte apelo às estruturas axiomáticas. Pierre Boulez,
num livro muito sintomàticamente intitulado «Penser la musique aujour-
d'hui» (1963), diz textualmente: «Quando se estuda, sobre as novas
estruturas (do pensamento lógico, das matemáticas, da teoria física...)
o pensamento dos matemáticos ou dos físicos de nossa época, pode-se
medir, certamente, que imenso caminho os músicos devem percorrer ainda antes de chegar à coesão de uma síntese geral».
E mais adiante, citando Louis Rougier, cujas frases adotaria como
epígrafe de seus trabalhos: «O método axiomático permite construir teorias puramente formais que são redes de relações, sistemas de deduções
já feitas. Daí em diante, uma mesma forma pode ser aplicada a diversas matérias, a conjuntos de objetos de natureza diferente, com a condição única de que estes objetos respeitem entre si as mesmas relações
que as enunciadas entre os símbolos não definidos da teoria». Pierre
Boulez, um dos mais renomados compositores da França em nossos dias,
acrescenta a essas frases de Rougier o seguinte comentário: «Parece-nos
que tal enunciado é fundamental para o pensamento musical a t u a l . . . » .
Refere ainda o mesmo autor que aos mesmos elementos musicais
pode ser aplicado um número ilimitado de sistemas axiomáticos. com
tudo isto pretende satisfazer «a absoluta necessidade de uma consciência
organizada logicamente».
Tal consciência organizada logicamente permitirá criar estruturas
sempre novas, puramente formais; o novo, puramente novo, fundado
logicamente, é o alvo final da criação. E deste novo, puramente novo,
fundado por sistemas axiomáticos, espera o referido compositor, porta-voz de uma geração, «livrar-se da contingência e do transitório». Em
outros termos, poderíamos dizer que o compositor francês procura livrar-se da angústia decorrente da nossa finitude, refugiando-se num
sistema ferrenhamente lógico.
A perseguição do novo pelo novo pode ser também um sintoma
psicopatológico. A procura ansiosa de elementos novos, numa série infindável, sem possibilidade de fixação e incorporação, sem verdadeiro
crescimento interior, é sintomática de certos estados patológicos. Cada
novidade, procurada com ansiedade, decepciona por não causar a pretendida satisfação ou por não resolver o problema oculto. Por esta
razão a vítima vai imediatamente em busca de outro elemento novo, com
a esperança de que talvez desta vez virá a solução. E assim incessantemente. A atitude do homem moderno frente à arte contemporânea
assemelha-se a isto.
Por outro lado, no entanto, não se pode negar que o homem busca
o novo constantemente.
Pensamos que a diferença entre o novo pelo novo (resultado da
mera invenção, do acaso, de estruturas axiomáticas escolhidas racionalmente, etc.) e o novo que buscamos verdadeiramente está nisto: o homem busca o novo que o possa conduzir à maior plenitude de ser. O
novo concebido desta forma pode ser integrado e tem a sua permanência,
maior ou menor, assegurada. As obras de um Bach, por exemplo, per-
manecem; voltamos a elas repetidamente; elas não se desgastam a partir
do momento em que foram novas para nós. O caráter reiterativo da
música se funda nisto. Se acrescentarmos que para Heidegger «A arte
é um vir-a-ser e acontecimento da verdade» («A origem da obra de
arte» — 1960), teremos uma perspectiva que nos permite fixar uma posição face à excessiva preocupação com a novidade, pura e simples, que
se observa na atualidade.
A partir desta perspectiva torna-se fundamental a intersubjetividade.
As relações intersubjetivas do sujeito são, a nosso ver, o fundamento
sobre o qual brota a pergunta pelo sentido, estudada com profundidade
pelo pensador gaúcho antes referido. A criação artística participa deste
perguntar pelo sentido. Colocar o problema da intersubjetividade implica pensar o que nos é comum e o que nos separa. O sujeito não
pode ser compreendido apenas como sujeito, pois este só é possível dentro de relações intersubjetivas. O poeta Hoelderlin disse em algum poema: « . . .e desde que somos um diálogo».. . Isto significa que o homem
não é um ser que, entre outras coisas, pratica também o diálogo; o sujeito
só se constrói mediante o diálogo. Pensamos que o ser-com-os-outros
e o ser-para-os-outros é o ponto de partida para a pergunta pelo sentido.
É sabido que a desvinculação emocional de um sujeito dos outros conduz a uma perda de sentido de tudo. Nossa relação com as coisas e
com as relações entre as coisas, assunto de que trata, por exemplo, a
ciência, também só toma sentido enquanto vinculado, de alguma forma,
às nossas relações intersubjetivas. Seria tolice pensar que o homem
investiga a lua pelo simples fato de ser a lua.
como conseqüência desta linha de pensamento temos isto: uma
obra musical nunca é o produto de um determinado sujeito, concebido
isoladamente. Sua magnificência, o gênio, autosuficiente que criaria
as suas obras a partir de si mesmo, não passa de uma fantasia. A obra
musical é sempre a expressão de uma multiplicidade intersubjetiva. Sua
realização concreta, isto sim, dá-se através de um determinado indivíduo.
Pensamos aqui nas obras de arte que se confirmaram como tais, que
resistiram ao tempo, que estabelecem a comunicação entre as gerações.
As noções de verdade, de sentido, de beleza, de obra de arte, não podem
ser concebidas meramente a partir do sujeito. Nem tampouco o sujeito
isolado tem história. Estamos inseridos, essencialmente, numa coletividade intersubjetiva e esta, por sua vez se liga às gerações anteriores e
posteriores também de um modo essencial.
Posto que a obra de arte tem por um dos fundamentos essenciais
a intersubjetividade, cabe perguntar pela natureza daquilo que é a fonte
da arte.
Por mais que se queira enfatizar a participação da razão na elaboração da obra de arte — e ela, sem dúvida, tem a sua participação — o
ponto de partida da criação artística não são os conhecimentos racionais.
O próprio impulso para a criação artística, muito poderoso e que pode
levar a suportar grandes sacrifícios, escapa à razão ou, pelo menos, não
é fundado pela razão.
As fontes da criação artística, em particular da musical, residem nas
regiões obscuras das relações intersubjetivas e destas com a natureza.
São regiões de coisas informes, nebulosas, de relações difusas, de significações múltiplas e imprecisas, muitas vêzes contraditórias, regiões que
provocam o medo nos racionalistas. São regiões onde atuam, às vêzes
estranhamente, o amor, o ódio, a culpa, a angústia, onde germinam os
nossos desejos, onde se dá o embasamento na comunidade intersubjetiva
e na natureza, onde surgem as perguntas mais fundamentais. Todos
estes movimentos, relações e indagações, não são fundados pela razão.
Ouçamos Guimarães Rosa: «Dor não dói até em criancinhas e bichos, e
nos doidos — não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento ?»
(Grande Sertão: Veredas).
A razão vem depois, procurando pôr alguma ordem (vejam-se os
sistemas axiomáticos, antes referidos), a delinear caminhos, a unir e separar, e muitas vêzes para criar a ilusão de um mundo perfeitamente
claro, previsível — sobretudo previsível — ordenado. O embasamento
do homem no mundo, primordialmente na intersubjetividade, é, no entanto, anterior e independente da razão.
A criação artística parte deste mundo subterrâneo. Ela se dá através de uma busca nessas regiões, de uma vontade de dar forma ao informe, de dizer o não dito, de tornar claro o nebuloso, de trazer à consciência o que era inconsciente. A partir dessa posição poderemos compreender Paul Klee quando diz que a função da arte é tornar visível o
que é invisível. Ou então Herbert Read quando afirma que «sem arte
não saberíamos que a verdade existe, pois a verdade só é tornada visível,
compreensível e aceitável na obra de arte» («Arte e Alienação» — 1967).
E Heidegger ensina que criar implica em buscar. Mais ainda:
«Talvez seja aquilo que chamamos aqui, e em casos semelhantes, de
sentimento, mais razoável, isto é, mais perceptivo, porque mais aberto ao
ser, do que tôda razão .. .» (obra citada).
As nossas considerações giraram, até agora, em torno da obra de
arte musical. Pensando, porém, bem as coisas, constataremos que falta
um aspecto essencial. uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, só é
sinfonia na medida em que tem ouvintes, atuais ou potenciais. Heidegger chama aquêles que se relacionam com a obra de arte e que, por isso
mesmo, são essenciais a ela, de «guardiães» da obra. Nesse contexto
situa o filósofo a ação integradora da arte. Diz textualmente: «A
guarda da obra não singulariza os homens em suas vivências, mas junta-os na pertinência à verdade que acontece na obra, fundando assim o
ser-para-os-outros e o ser-com-os-outros . . . » .
Há muitos modos de relacionamento com a obra de arte e, portanto,
de se realizar a função integradora que ela exerce.
Vem-nos a propósito a palavra coro. Sua raiz etimológica grega
significa: círculo dos que festejam. Jost Trier (revista «Studiam Generale» — 1949 — Alemanha), diz a respeito: «O círculo dos que fes-
tejam implica a noção de cerca. Esta une os membros da comunidade,
separando-os do cotidiano que fica fora do círculo. Somente esta separação faz com que a comunidade possa se apresentar como festejante.
Isto se dá melhor num círculo, pois nesta configuração cada membro
está voltado para todos e, ao mesmo tempo, dá as costas ao que está
fora ou seja: ao cotidiano. Neste círculo valem outros costumes, outros
modos de expressão, outros meios de comunicação. Fala-se também de
outro modo. No círculo que festeja fala-se, por exemplo, em versos,
coisas que um homem fora do círculo talvez ache esquisito».
Poderíamos acrescentar ainda que, num círculo que festeja, a linguagem é, muitas vêzes, a música. Os integrantes do círculo comunicam-se entre si cantando ou participando com gestos rítmicos do acontecimento musical.
A prática musical criada pelo individualismo dá-se de maneira diversa. Os ouvintes não se unem em círculo em torno dos intérpretes
mas são dispostos de tal modo que cada um enxerga as costas dos outros.
Os gestos são proibidos. Quando um conjunto ensaia, não se pensa,
em geral, em algum círculo que festeja, mas em apresentações públicas,
em elogios, em admiração. A grande gratificação emocional do músico,
que é a de ter feito participar os ouvintes na obra, desaparece, freqüentemente, diante da preocupação com o sucesso, com a competição e, quem
sabe, com a bilheteria.
O homem, ao longo de sua história, tem formado coros com as mais
diversas significações. Coros nos quais os participantes se uniam em
torno do sagrado; coros em torno de fogueiras nos quais se festejava o
calor da amizade; as rodas infantis nas quais as crianças voltam as cosras ao cotidiano e se expressam através da linguagem do canto; coros em
torno de touradas nos quais os participantes voltam as costas ao cotidiano pouco heróico para festejar a valentia; coros em torno de acontecimentos esportivos que fazem aparecer a agilidade do corpo, que verdadeiramente festejam o corpo.
Em tais coros estabelecia-se a comunidade, aparecia o que era comum a todos, surgia a comunicação. Hoje pretendemos resolver o problema da comunicação em termos da teoria da informação. Usamos
concentos provindos da máquina para unir as pessoas. Chamamos determinada pessoa de receptor em vez de João e cogitamos de seu «repertório». Campeia também aqui o mesmo formalismo racional já apontado em outro contexto. E èsse formalismo abstrato vem acompanhado
de um otimismo enganoso que chama a atenção. ..
A arte, em especial a música, sempre teve, no passado, uma estreita
vinculação com tais coros. O círculo dos que festejam propicia o aparecimento de condições nas quais aquilo que é expresso pela obra de
arte pode-se tornar efetivamente comum.
um dos aspectos dos modernos meios de comunicação é a possibilidade de dispersão da vida afetiva do homem. Para se dar conta disto,
basta prestar atenção nas músicas que se ouvem durante um dia numa
grande cidade. Ao passar por uma loja de discos, fragmentos de uma
cantata de Bach; na próxima esquina, pedaços de alguma música popular; no táxi, os gemidos de alguma cantora; na televisão, cacos de música,
chamados jingles; nos concertos, colchas de retalhos com remendos que
vão desde o Barroco até os nossos dias. É o pólo oposto daquilo que
acontece num círculo que se uniu para festejar.
Os pedaços de música que nos atingem ao longo de um dia numa
grande cidade têm um efeito seguro: a dispersão interior. O fato de
um grupo de pessoas se unir em círculo implica que prèviamente se tenham despido do cotidiano, se tenham colocado em disponibilidade interior para fazer aparecer o que irá ser comum. E isto dentro de um
clima de estabilidade, de continuidade.
Nesse contexto podemos citar outro pensamento de Heidegger:
«Nas proximidades da obra estivemos bruscamente em lugar diferente do
costumeiro» (obra citada).
O homem não pode estar em todos os lugares interiores ao mesmo
tempo. É necessário que tenha a oportunidade de morar neles, periodicamente, demorar-se, em união com outras pessoas. Os modernos
meios de comunicação, em especial a televisão e o rádio, têm efeitos contrários. São sistemas que geram constantemente novidades, sem outro
sentido mais profundo.
Ciencias Humanas
O BRASIL, DE 1530 A 1580, como CAPÍTULO
DA AVENTURA COLONIAL PORTUGUESA
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
E
M 1530, Portugal era senhor do caminho das índias. A façanha
garantia-lhe o domínio da especiaria e servia à potencialidade que
alcançava e procurava manter. A costa africana estava em suas mãos
seguras. A outra banda do Atlântico, importante para a empresa
daquele domínio oriental, uma vez que evitaria a concorrência que
pudesse suceder se outra nação possuísse trecho de costa, nela implantando sua soberania, estava também sob a posse física imediata, necessária, fundamental mesmo. As notícias que vinham de França,
sobre os preparativos de ações contrárias aos interesses portugueses,
falavam clara e objetivamente da conveniência da adoção de providências
que impedissem a consumação daqueles propósitos imperiais de outros
povos, interessados no estabelecimento de seus respectivos impérios
territoriais, para os rendimentos mercantis que todos desejavam.
É preciso compreender, a essa altura, que tudo quanto estava
ocorrendo decorria de desejos e de iniciativas privadas, da burguesia,
que nascia com um apetite insaciável. Tanto em Portugal como na
França, nos Países Baixos, na Inglaterra, em Espanha, essa burguesia,
à notícia da especiaria rendosa, armava-se de ímpeto maior para o negócio, para os grandes lances de coragem que levariam aos descobrimentos e à posse efetiva de vastas áreas dos novos mundos que se
revelavam com tanta velocidade. A burguesia das cidades italianas,
na façanha anterior sobre o Oriente Próximo, servira de modelo e de
incentivo. É certo que o poder real não se mostrou indiferente à
operação, dela participando através de medidas diretas, impetuosas
também, mas que abriu a oportunidade a que os outros, os da iniciativa
privada, associados, muitas vêzes, ao poder real, se realizassem servindo
aos interesses desse mesmo poder real.
Portugal, na costa atlântica, onde ia surgir por suas mãos, o Brasil,
montara as feitorias iniciais, na execução de seu plano de domínio,
como anteriormente procedera no litoral africano. Fizera a experiência
do que valia a vasta costa. A experiência valera para que se apercebesse do quanto fora certa a atitude dos diplomatas que haviam qizado
o diploma de Tordesilhas, em 1493. Se não se encontrava, nos pri-
meiros tempos, a riqueza que o litoral africano e o Oriente estavam
proporcionando, nem por isso o litoral do Brasil futuro deveria ser
abandonado como presa fácil aos concorrentes europeus. O reconhecimento efetuado pelas armadas, despachadas para inventariar o
novo império em esboço, tímido esboço, não parecera suficiente. A
comercialização, também timidamente iniciada, constante do que se
pudera verificar como o interesse mercantil imediato encontrado, não se
mostrara animadora. O Brasil, apesar de tudo, continuava nos propósitos de domínio, de exercício de soberania de que Portugal não
abria mão. O que explicaria essa decisão senão a consciência de que
aquele litoral era fundamental para o domínio efetivo, irrecusável, do
caminho para o Oriente? A miragem do Prata? O orgulho ferido pela
ousadia dos franceses? O desejo de ter império na América, onde
Espanha construía o seu? A propósito vale indagar — porquê em
Tordesilhas defendera-se a soberania portuguesa sobre a vasta costa?
O domínio do Oriente não se poderia exercer se não houvesse a montagem dos estabelecimentos permanentes que importassem na presença
da soberania portuguesa, capaz de enfrentar, insista-se na tese, os perigos que os outros povos já se mostravam dispostos a executar. Àqueles
motivos, que não podemos desprezar, junta-se este outro, aliás até mais
ponderável no momento a considerar.
A expedição de 1530, atribuída a Martim Afonso de Souza, evidentemente estava contida naquela decisão do Estado. O Capitão de
30 anos, o que significava a conveniência de um homem jovem, capaz
de engajar-se na empresa com os ímpetos e a energia que os moços
possuem, trazia competência ampla, que ia do simples comando militar
da expedição à de implantar núcleos, estabelecer o ato administrativo,
iniciar colonização, estabelecendo definitivamente, o domínio. A missão
era gigantesca, se considerarmos a extensão do território sobre que deveria atuar Martim Afonso. A fronteira norte e a fronteira sui deveriam ser atingidas. No norte seria a bacia amazônica; no sui, o rio
da Prata, que despertava emoções e provocava o interesse generalizado,
às notícias do que nele poderia desvendar-se como empreendimento
econômico. Espanha, à notícia da montagem da expedição, prevendo
o sonho português sobre o Prata, lançara protesto. Os espanhóis, com
um vasto império em construção, não se podiam conformar com a penetração portuguesa em área que entendiam, pelo diploma de Tordesilhas, parte integrante daquele império, de tão vastas proporções. E
o Prata estava incluído nesse império.
Ora, pelo que sabemos, à falta de melhores elementos elucidativos
para a conclusão que teremos de admitir como válida, os portugueses,
a fim de assegurar-se o domínio da costa, tinham de ocupá-la. Os
limites naturais estavam no norte e no sui, na bacia amazônica e na
bacia do Prata. Eram limites naturais. A concepção geopolítica do
novo Estado que se ia montar era uma concepção perfeita.
As capitanias hereditárias, com o que Portugal pretendeu mobilizar
a iniciativa privada, ao mesmo tempo em que mantinha certos privile-
gios e direitos de um feudalismo que não se realizara plenamente no
Reino, se não lograram o êxito que se imaginava, importaram como
experiência, na comprovação de que a terra nova, se continuava um
mistério no que diz respeito à riqueza em metais preciosos, ou seja, o
ouro, a prata, os diamantes, que faziam a grandeza do negócio colonial
de Espanha, era apropriada para uma agricultura tropical, rendosa, tentadora. Os engenhos em funcionamento em São Vicente e em Pernambuco eram a melhor resposta aos que negavam a excelência da
terra brasileira. Confirmava-se, desse modo, a informação, que parecera apresssada, de Caminha, Pero Vaz Caminha, o relator dos primeiros
contactos de Portugal com o espaço litorâneo do Brasil. com as Capitanias hereditárias, Portugal afirmara sua política de preservação do
espaço definido em Tordesilhas — as concessões cobririam posteriormente tôda a vasta área ali fixada.
As Capitanias, de outro lado, significavam também a possibilidade
de uma vida menos agressiva entre os que chegavam da Europa e os
que viviam anteriormente na nova terra. Ainda — o meio físico, com
suas implicações climáticas, não se opunha a uma permanência dos que
chegavam e podiam ser seduzidos para um fico definitivo. A visão
paradisíaca da terra era, por fim, um convite permanente aos deserdados de tôda espécie, mundo onde, inclusive, os que se haviam afastado das regras do bom viver poderiam obter uma renovação de comportamento, restituindo-se à sociedade de que estavam egressos.
As Capitanias, como primeiro passo na direção de um propósito
oficial de posse útil e de domínio efetivo, portanto, serviriam a esse
objetivo político. O fracasso, que se pretende ver na experiência, não
ocorreu com as violências características negativas, por que tem sido
proposto. Se não houve o sucesso previsto, dizemos muito claramente
o sucesso previsto, aquêle da presença da iniciativa e dos capitais privados na empresa política e mercantil, colonial realmente, e com a
presença a execução do plano de Estado para o domínio soberano,
tirando-se do Estado o peso da iniciativa, quando êle tinha pela frente
tôda uma vasta problemática que não se restringia ao território nacional
ibérico, mas a todo o ultramar que elaborava incessantemente, o que
vale dizer, um peso realmente muito grande, houve aquele outro, o do
que se apurava como possibilidade para o futuro. As Capitanias
constituíam, assim, um prefácio na tomada de consciência do que valia
a colônia que se estabelecia. Os povoadores europeus que, na condição de náufragos ou fugitivos de expedições anteriores, estavam na
terra, servindo aos que chegavam agora para a empresa mais demorada,
falavam de todos aqueles fatores positivos a serem utilizados. A
criação do Governo Geral para impor, em forma definitiva, a autoridade
de Portugal, ia permitir que todo o passado recente servisse aos objetivos nacionais da criação do Brasil.
Os fatos que se seguiram, em nenhum momento podem permitir
interpretação diversa. Os conflitos sustentados com os franceses, ou-
sados impetuosos, decididos a estabelecer o seu ultramar na América do
Sul, foram conflitos que serviram ainda mais para testemunhar os objetivos nacionais de Portugal sobre o Brasil. Ao invés de ceder aos
intrusos, Portugal atirou-se, com vontade, na luta para expulsá-los. E
com a expulsão, a ocupação de espaço intermediário, que seria a segurança da façanha de preservação do litoral e, com essa preservação,
a segurança da colônia, desse modo com sua vida assegurada.
Entre 1530 e 1580, quando Portugal perdeu a autonomia, sob a
monarquia comum à Espanha, o Brasil teve seus fundamentos estabelecidos. Se o extremo norte só seria alcançado em definitivo em 1616,
e Laguna, sobre o extremo Sul, só em 1676 estaria fundada, nem por
isso devemos deixar de admitir que, na fase em questão, é que se
decidiu da sorte da colônia, seja na institucionalização do poder, seja
na elaboração da sociedade, da economia tropical, seja na espiritualidade
social e na formação dos primeiros quadros da inteligência local, na
obra admirável que os Jesuítas, a serviço do Estado, promoveram sem
cessar e sem desfalecimentos e hesitações.
A base física foi assegurada, pela ocupação, através de pequenos
núcleos urbanos que vinham do período das Capitanias ou estavam
surgindo agora, como foi o caso do Rio de Janeiro, de Cabo Frio, de
São Paulo, e os estabelecimentos de pesca e os sítios agrários, as
fazendas de criar, os engenhos de açúcar. Essa base física representava-se, no particular dos núcleos urbanos, inicialmente na cidade-militar
ou cidade-fortaleza, como lhe chamaram, a cidade do Salvador, onde
sediaria o Governo Geral. um planejamento urbano foi traçado e
seguido à risca. Plantava-se uma cidade que, a certos aspectos, repetia
Lisboa, com a parte baixa e a parte alta. Nela levantaram-se os edifícios públicos, necessários à instalação do poder que principiava nos
termos do Regimento expedido a Tomé de Souza.
Esse Regimento seria o diploma inicial, com ares de Carta Constitucional, como lembrou Pedro Calmon, estatuto que regulava os poderes
do Governador, impondo a disciplina política a vigorar na colônia.
Fixavam-se ali normas de conduta, estabelecia-se tôda a sistemática
de vida a viver-se em coletividade. A administração, em suas linhas
centrais, a ordem pública, as relações entre as pessoas de varia côr e
situação social, a conduta a ser adotada para que, em nenhum momento,
pudesse ocorrer o perigo de uma perda substancial do território que
iria crescer pela expansão ao longo do litoral e a penetração sobre o
sertão interior, tudo fora considerado para as providências da ordem
jurídica. A cobiça, de outros povos, não cessava, agora somando-se
aos franceses os ingleses, que começavam a tomar contacto com a explendida realidade que os trópicos representavam e se dispunham a neles
criar também suas bases ultramarinas de exploração e de comercialização.
Os fundamentos políticos, não será demais insistir, no Regimento
do Governador, nó Regimento do Provedor-mór da Fazenda, no Regimento do Ouvidor-mór, no Regimento do Capitão-mór da Costa, por-
tant numa série de diplomas, estavam regulados exemplarmente. A
ordem civil estabelecida, garantindo-se, com ela, o processo de desenvolvimento que se deveria acelerar e assegurar.
A história que se iria escrever nos anos seguintes, até 1580,
quando termina o período marcado a este trabalho, foi uma história
viva, de defesa da terra, de estabilização do domínio, de estruturação
de uma unidade que resultará, inicialmente, do equilíbrio social que se
elaborou com a sociedade solidária, de indígenas americanos e de portuquêses do Reino e logo após também das ilhas madeirenses em especial.
Essa sociedade solidária seria o elemento básico, em nosso entender, a
explicar tudo quanto ocorreria de então por diante. Principiara sua
elaboração muito antes do estabelecimento do Governo Geral, com o
relacionamento natural entre corpos de pigmentação diferente, mas tornado veloz à medida que os tempos passavam e homens e mulheres se
realizavam num sistema familiar que, a certos aspectos, sem as formalidades legais, reproduzia as formas portuguesas da sistemática familiar.
A essa participação e integração social, que resultava de tal entrosamento de sangue, somar-se-ia, em breve, o stock: de mulheres solteiras,
as Órfãs da Rainha, trazidas de Portugal, senão num movimento de
raiz racista, que não era a característica portuguesa, mas de purificação
ética, pois que aquêles relacionamentos, sem o manto da lei, estavam
provocando excessos, que as autoridades religiosas desejavam coibir.
Ao equilíbrio social, some-se a economia de plantação, a lavoura
canavieira, de rendimento que permitiu uma produção de tipo monopolista. O que as ilhas tinham, até agora, dado como contribuição
nesse particular, alterou-se com a participação brasileira, verdadeiramente sensacional. O criatório de gado vacum, trazidas as sementes,
para os primeiros plantéis, das ilhas, assim transformadas em laboratório
experimental do Brasil, foi o outro elemento a importar na existência
rápida de uma economia, capaz de comercialização e da manutenção
material da sociedade em início. Os engenhos e as fazendas de criar
multiplicavam-se. Em 1580, podemos dizer que já constituíam motivação fundamental, gênero de vida que movimentava o Brasil na projeção que alcançava. À pobreza com que a terra desanimara muitos,
sucedia empresa de possibilidades ilimitadas.
O trabalho para a manutenção desse estado de coisas na economia
de produção não fora possível, no entanto, realizar-se com a mão de
obra indígena. A colaboração da multidão aborigine não se ampliara
até lá. O resultado fora a importação do braço africano, na condição
de escravo para as tarefas essenciais à atividade de criação econômica.
O índio, todavia, servira no negócio do gado, revelando-se pastor
excelente, utilizado sem dificuldades. A importação de africanos
aumentou, desse modo podendo acelerar-se a produção. A concorrência
das Antilhas não se faria a essa altura e só no século seguinte confutaría com a nossa produção açucareira, produção que se fazia ali pelos
mesmos métodos a mesma sistemática social e com a mesma mão de
obra importada da Africa.
A essa altura de nossas reflexões do que significava o Brasil
nascente no período limitado de cinqüenta anos, cabe perfeitamente a
pergunta — e a ação da Igreja, no campo da formação ética e da
preparação das inteligências moças que teriam de surgir na nova área
social? A Companhia de Jesús, antecedida pelos Franciscanos, de
muito limitada sua atuação nessa fase, teve a seu cargo justamente
essa tarefa. É certo que um Bispo, com os poderes que aquele tipo
de autoridade religiosa possuía, já existia em pleno comando da espiritualidade em que a sociedade deveria organizar-se e manter-se.
Foram, no entanto, os Jesuítas, os que na verdade promoveram o exercício das regras espirituais, conformando-as, quando se tratou de agir
sobre a multidão gentia, à realidade sócio-cultural com que se defrontavam. Porque se sobre o colono, vindo de Portugal ou das ilhas,
esse agir não foi fácil, não teve de alterar-se na maneira por que era
ministrado, nem nas fórmulas por que se enunciava, quando se tratou
da gentilidade, precisou ser acomodado àquelas realidades ponderáveis
de uma psicologia, de que eles imediatamente se deram conta e souberam aceitar para os êxitos que alcançaram. Os Jesuítas, por delegação do Estado, não ùnicamente nas igrejas e colégios que foram
montando, na faina espiritual, sagraram-se merecedores do entusiasmo
por que hoje os compreendemos. Nas escolas de primeiras letras que
abriram, nos ofícios que ensinaram, no relacionamento em que puzeram
filhos de colonos e filhos de aborigines, no teatro que usaram com a
participação do silvícola, que representava, serviram à obra de preparação dos primeiros núcleos de inteligência, dos quadros ilustrados
que seriam a semente e a raiz da cultura brasileira.
O Brasil, entre 1530 e 1580, estava lançado em seus fundamentos
mais originais, autênticos, capazes de assegurar a continuidade da colônia e, com ela, o Brasil de séculos posteriores. Entre 1530 e 1580,
entrara na cogitação firme de Portugal, como o espaço que seria a sua
grande realização colonial. Se já estava em cogitação, em hora de
perigo, a transferência da Corte para o novo Império, que o Príncipe
D. João anunciaria dois séculos depois! um prefácio da vida brasileira
escrevera-se com a maior segurança e a melhor decisão de Estado.
O CONDE DA BOA VISTA, SIMPATIZANTE
DE IDÉIAS DE REFORMA SOCIAL? (*)
GILBERTO FREYRE
Q
UE dizer de Francisco do Regó Barros, Barão e depois Conde da
Boa Vista, que não seja simples repetição do que nos informam
a seu respeito seus biógrafos e os historiadores? Sob que nova luz
poderá ser apreciada ou considerada sua personalidade, sua figura histórica, sua ação de homem público no Brasil do seu tempo, agora que
se comemora o centenário da sua morte? Haverá aspectos dessa personalidade ou dessa ação a ser senão revelados, reinterpretados?
É possível que sim. A rigor não há biografias definitivas, O
modo por que se interpreta hoje uma figura histórica pode ser superado ou alterado, quer por um conhecimento não tanto maior porém
mais profundo dessa figura, quer pelo que venha a saber de uma
psicologia das relações entre governantes e governados, ou entre autores e leitores, ou entre ativos e passivos sociais de qualquer espécie,
capaz de alterar nossa sociologia da História; e importando na reinterpretação do que foi tal ou qual personalidade em relação, quer com
o seu tempo, quer com o nosso tempo e com os tempos intermediários.
E', afinal, sob perspectivas de tempo social sucessivas e às vêzes contraditórias que uma personalidade ilustre sobrevive como figura não só
representativa de uma época como de valores transtemporais.
Francisco do Rego Barros foi muito da sua época. Foi muito
da sua gente. Foi muito da sua região. Foi muito da sua classe. Foi
muito, até, da sua família. Será, entretanto, que houve nele alguma
coisa de contemporâneo do, para o seu tempo, futuro, e para o nosso
tempo, presente? Será que êle foi não apenas o que parece ter sido,
mas, em alguns aspectos, o que nós supomos não ter sido, de modo
algum? Será que parte de sua personalidade se conserva encoberta?
Dúbia? Contraditória? É possível.
Interessante o fato de, pernambucano de origem caracteristicamente rural, Francisco do Rego Barros ter se tornado o maior amoroso
( ) Parte deste ensaio foi lida, sob a forma de conferência em solenidade
comemorativa do falecimento de Francisco do Rego Barros, Conde da Boa Vista",
promovida pelo Arquivo Público de Pernambuco no Recife, em outubro de 1970
do Recife — Cidade sob vários aspectos anti-rural — que jamais exerceu o supremo governo de Pernambuco. Foi ao mesmo tempo que
homem muito da sua Província e, sobretudo, muito da capital dessa
Província, brasileiro, como homem público, a amplo serviço, transprovincial, nacional, imperial, do Brasil. Tanto que seu último ofício de
homem público assim pan-nacional seria o de Presidente da Província
do Rio Grande do Sul.
Exatas estas sugestões, teríamos nos seus traços essenciais, o
triângulo biográfico de Francisco do Rego Barros — pernambucaníssimo na origem rural; concentradamente recifense por opção como que
amorosa de rurbano; nacionalmente, imperialmente brasileiro, por vocação de homem público que nele foi expressão de constante responsabilidade cívica — se, à base do triângulo, não fosse preciso acrescentar
este característico também essencial de personalidade tão equilibrada:
o de ter sido um brasileiro telúrico, nascido em terras de massapê, de
formação intelectual feita no estrangeiro. Feita em Paris, na França,
na Europa não-lusitana.
Ainda não apareceu o estudo reclamado por este tipo que, sendo
histórico, é ainda atual, de brasileiro particularmente benéfico ao Brasil,
embora tido às vêzes por menos brasileiro que os demais: o que tendo
feito estudos no estrangeiro, reintegrou-se, assim enriquecido, no Brasil
para melhor servi-lo, muitas vêzes, que os apenas castiços. Pois acrescentando a constantes inovações, enfrentando arcaísmos com renovações, desviando-se aventurosamente de rotinas, sem desobedecerem a
essenciais de tradição nacional ou regional, antes, em alguns casos, valorizando-os ao extremo, anglicizados, afrancesados, germanizados,
ianquizados, vêm se constituindo, em nosso país em inovadores, renovadores, revolucionários mais exigidos que apenas reclamados por sucessivas situações brasileiras de inércia ou de rotina. Francisco do Rego
Barros foi um afrancesado desse tipo como, antes dele, desse tipo fora,
com maior amplitude e até maior grandeza — como um norte-europeisado — o mais lúcido, mais harmonioso ao mesmo tempo que mais contraditório dos estadistas brasileiros, o mais conservador ao mesmo tempo
que o mais revolucionário dos nossos homens públicos, José Bonifácio
de Andrada e Silva, ao trazer para o serviço do Brasil sua vivência,
sua experiência e não apenas sua ciência de pan-europeu, tanto aportuguesado ao modo coimbrão como norte-europeizado germanizado e afrancesado naquilo que num homem pode enriquecer sua personalidade sem
separá-la das duas raises nacionais ou pré-nacionais.
A esse tipo de brasileiro enriquecido por estudos no estrangeiro
que, no jovem de personalidade forte, parece, sempre, antes aumentar
que diminuir o vigor de consciência nacional e o senso de responsabilidade de dever para com a terra natal, pertencem os dois Rego
Barros de Pernambuco, um, Francisco, afrancesado, outro, Sebastião,
germanizado, por estudos superiores na Europa. Os dois voltaram a
Pernambuco cheios de ânimo brasileiro. Decididos, por isto mesmo, a
romperem com inercias, com arcaímos, com rotinas; e a acrescentarem
à pura lusitanidade que, no Brasil de então, constituía quase inteiramente, a parte européia da sua cultura, outros estímulos, valores e
motivos de vida e de desenvolvimento nacionais: os norte-europeus.
Na realização de tais objetivos, Francisco do Rego Barros foi
magnífico. Revolucionou sem deixar de ser à sua maneira, conservador.
Explica-se que pelos conservadores do tipo convencional fosse acusado
de estrangeirice que fosse caricaturado como excessivo nas suas francesices; que se duvidasse do seu bom senso de homem de governo tal o
arrojo como que quixotesco, de algumas de suas inovações: suas ou
do Vauthier que foi por vêzes uma projeção do seu ser político. uma
projeção do seu ser em termos de ciência aplicada à administração
pública.
Foram reações, essas, ao que nele havia de exótico, de diferente,
de esquisito, aos olhos de conservadores de um feitio diferente do seu
— o de conservador renovador — que enfrentou com uma tranqüila
firmeza de aristocrata de casa-grande dos nascidos — o caso de alguns
e não de todos — sob o signo de ser uma nobreza, a sua, que obrigava.
Que obrigava o fidalgo a comandar, servindo.
Foi o que fêz durante tôda uma vida de exemplar homem público:
comandou, servindo. Inovou, conservando. Afrancesou o Recife sem
que, sob seu governo, o Recife deixasse, no essencial, de ser recifense,
pernambucano, brasileiro. Tanto que do mais ilustre dos franceses —
Louis Léger Vauthier — que, a seu convite, veio ser um dos assessores técnicos — como hoje se diria — do seu governo, é um dos mais
lúcidos elogios que já foram feitos à arquitetura já brasileira, daqueles
dias, de casas de residência: a de casas-grandes de engenhos e a de
residências senhoris de cidades. Arquitetura desenvolvida, em grande
parte, em Pernambuco, à base de combinações, desde o século X V I ,
realizadas pelo bom senso do colonizador português entre seus próprios
tipos de habitação rural e formas orientais de telhado, varandas indianas (que aqui se alargariam em alpendres ou copiares), janelas
de feitio sabiamente árabe, evitando-se excessos de luz ou de sol dentro
das casas.
De que foi encarregado Vauthier pelo Presidente Francisco do
Rego Barros desejoso de modernizar o Recife? De várias obras para
o Brasil e para a época revolucionárias. De levantar — um exemplo
— edifício de teatro num estilo de que não havia modelos portugueses
ou tradições brasileiras de arquitetura idônea — a arquitetura de teatro
diferente da de casa-grande, da de convento, da de igreja, da de forte,
Arquiteturas, essas outras, de que o luso se revelou mestre no setor
lusotropical — enquanto os franceses eram mestres dessa arte especialíssíma: o edifício para teatro. Levantou-se no Recife, com Rego Barros,
o mais belo edifício de teatro, de que até hoje, pode orgulhar-se ó
Brasil: o Teatro Santa Isabel. Mais: quis êle que se modernizasse no
Recife o sistema de ruas e de calçadas, o de suprimento dágua, o de
defesa contra enchentes. Quis e todos esses serviços urbanos foram
senão realizados, iniciados no seu governo, de modo admirável: sob
a direção de Vauthier e da sua equipe de técnicos franceses. Iniciados
com Rego Barros prestigiando-os contra a gritaria demagógica e a
histeria nativista que se levantaram contra os inovadores e as inovações.
Outro acomodaticio, ou mais politicóide do que político — teria recuado: os franceses que voltassem à França. O Recife que continuasse arcaico. A rotina que retomasse seu domínio sobre a cidade e sobre
a província.
Francisco do Rego Barros, com aquela sua tranqüila firmeza de
bom homem público que lhe valeria expressiva consagração popular ou
folclórica — a de «Chico Macho» — não fraquejou: a modernização do
Recife se fêz dentro do plano para ela traçado por técnicos de um
saber, de uma visão, de uma perspectiva do futuro, como na época
não havia no Brasil nem em Portugal. Buscou-os o futuro Conde da
Boa Vista na Paris onde estudara; que conhecia de perto; que lhe
abrira os olhos a valores de que dificilmente teria se apercebido se
seus estudos superiores tivessem sido em Olinda ou em Coimbra. A
Paris da Escola Politécnica.
Quem diz a Escola Politécnica de Paris na primeira metade do
século XIX diz o maior centro, em tôda a Europa, de ciência aplicada
ao que hoje chamaríamos desenvolvimento. Foi desse centro de estudos
mais que superiores que Francisco do Rego Barros trouxe para Pernambuco não um aluno qualquer, mas um laureado: Louis Léger Vauthier. Foi com esse centro de estudos mais que superiores que o então
Presidente da Província de Pernambuco pôs em contato sua terra
numa como repetição dos métodos de governo do Conde Maurício de
Nassau no século XVII, isto é, dando excepcional relevo à cooperação
com os responsáveis políticos pela administração pública, de homens
de ciência, de intelectuais, de sábios.
O resultado foi a extraordinária época, na história da administração pública no Brasil já nacional, que pode ser designada como a época
Rego Barros — Vauthier. Época de modernização não só do Recife
como de Pernambuco, em geral, cujo sistema de comunicações Vauthier
e os seus técnicos, prestigiados sempre por Francisco do Rego Barros,
revolucionaram. Pois o sistema de estradas que desde então alterou as
relações entre o interior da Província e a sua capital importou em verdadeira revolução que de tecnológica passou a econômica, em particular,
e, de modo lato, a social. A social e a cultural.
Realização, de quem? De um homem de radical vocação e do feitio
demagógico de um Borges da Fonseca? De um político de tendências
bolivarianas como Abreu e Lima? De algum discípulo ardorosamente
republicano de Frei Caneca? De modo algum: realização de um pernambucano de casa-grande de engenho do Sul de Pernambuco. De
um antes conservador que revolucionário nos seus modos. De um fristocrata pela família, pela origem, pela situação social. De um político
acusado pelo seu mais terrível adversário na imprensa livre e até desmandada daqueles dias, o Padre Lopes Gama, de, como membro da
chamada oligarquia, então dominante, proteger ladrões, assassinos, contrabandistas, alguns dos quais, segundo o panfletário, seus parentes.
O paradoxo vai além: esse suposto conservador inveterado trouxe,
para Pernambuco, Vauthier, sabendo-o não só adiantadíssimo na sua
ciência e arrojado na sua técnica de laureado pela Escola de Paris como
socialista. Socialista pré-marxista. Socialista já com alguma coisa de
cientifico mas de orientação diferente da que seria seguida judaico-germânicamente por Marx. Socialista discípulo de Fourier. Socialista de
uma tendência que os mais modernos desenvolvimentos da filosofia de
organização social estão antes reabilitando que desprestigiando, em face
dos fracassos de um marxismo, senão mal desenvolvido, mal aplicado
que, com tôdas as suas pretensões científicas, várias delas contrárias às
próprias idéias do grande humanista e até poeta que foi Marx, vem se
revelando, além de inumano, anti-científico, anti-sociológico e mesmo
antieconômico. O socialismo que Vauthier trouxe para o Brasil, nos
dias de Francisco do Rego Barros presidente da Província de Pernambuco, era do tipo humanista, socialmente democrático, adaptável a situações diversas e não uniforme. Socialismo que permitiu a um
pernambucano de notável inteligência, A. P. de Figueiredo — discípulo, como Vauthier, de Fourier — traçar uma das críticas mais profundas do sistema de monocultura latifundiária então, e um pouco até
nos nossos dias, em vigor em Pernambuco.
um aspecto esquecido do processo de desenvolvimento, do Brasil
tropical, em nação moderna sob influências de tecnologia norte-européia,
é esse que vem até nós da época Rego Barros-Vauthier em Pernambuco. Particularmente no Recife. É esse socialismo por trás de
uma revolução neotécnica.
É um aspecto expressivo, quer das relações do Brasil com a França,
quer de um processo revolucionário então já em vigor, há anos, no
Brasil: o de revoluções tecnológicas, algumas realizadas à sombra de
uns como para-socialismos de Estado . Vêm elas afetando o que no
nosso país são relações de cultura européia com ambiente ou situação
tropical, pela influência que têm chegado a ter além do setor técnico
ou do apenas econômico.
Inclusive através de sugestões de ordem
ideológica que têm acompanhado o impacto tecnológico. O socialismo
fourierista como acompanhamento ideológico de renovação tecnológica
de importante área brasileira foi um desses impactos.
O mais surpreendente é ter se verificado, ao lado de um impacto
revolucionariamente tecnológico, outro sociológico, potencialmente também revolucionário, durante o governo, em Pernambuco, de um aparente ortodoxo de política conservadora como era Francisco do Rego
Barros. O que se verificou através de Vauthier, convocado por Rêqo
Barros, para dirigir as Obras Públicas da Província. Foi uma atividade,
a de Vauthier, animada de tendências que, não tendo chegado a ser
nunca pròpriamente fourieristas — nem sequer parece ter Vauthier cogitado de animar em terras brasileiras a criação de falanstèrio — não
deixou de ser contrário a interesses então estabelecidos no Nordeste
Agrário do Brasil.
A ação de Vauthier, no sentido de contagiar brasileiros com algumas das idéias de Fourier ou desse socialismo francês pré-marxista,
tomou aspecto singular. O aspecto de difusão entre os mesmos brasileiros, de um fourierismo mais plástico, mais psicológico, mais flexivelmente ideológico e mais realìsticamente sociológico que o dos falanstérios utópicos e sistemáticos.
Difusão inteligente e penetrante que
alcançando, de modo particular, como parece ter alcançado Antônio
Pedro de Figueiredo, teria se comunicado também, segundo boas evidências, através de Figueiredo e de outros afrancesados, a Nascimento
Feitosa e a Aprígio Guimarães, para chegar ao próprio Joaquim
Nabuco.
Nenhum desses se entusiasmaria pela idéia de falanstèrio: do
fourierismo absoluto ou perfeito. Ou de uma forma sistemática desse
socialismo. Mas não lhes faltaria às tendencias reformistas um fermento revolucionariamente socializante.
O que Vauthier parece lhes ter comunicado de essencial diretamente a uns, indiretamente a outros, como Aprígio Guimarães e Joaquim
Nabuco — das novas tendências no pensamento social francês, foi o
pendor para as soluções sociais e não apenas políticas ou somente
jurídicas, dos problemas brasileiros. Pendor que tanto distinguiria Nabuco, de Ruy Barbosa; e os homens públicos, como Francisco do Rego
Barros, e intelectuais do Recife, como Joaquim Nabuco, de outros homens públicos e intelectuais do Império, menos alcançados por idéias
francesas do sabor e da amplitude daquelas que Vauthier evidentemente
concorreu para propagar no Pernambuco do meado do século passado.
O Recife, Capital de uma Província governada pelo aparente
conservador ortodoxo que foi Francisco do Rego Barros, recebeu, assim,
desde a primeira metade do século XIX — volto a assunto já ferido
em trabalho publicado há alguns anos para considerá-lo aqui sob critério,
em parte, novo — uma influência do mais objetivo socialismo premarxista europeu; e superior ao marxista no seu humanismo: o francês,
de Fourier. Essa influência se prolongaria, durante anos, depois de
ter concorrido — pensamos alguns — para dar colorido social e até
de certo modo, socializante, à chamada Revolta Praieira.
Seria um engano pensar-se que a ação de Vauthier, de sentido
revolucionário tanto no plano tecnológico como no social, tenha se
limitado, no Brasil, ao período de sua presença por assim dizer física,
no Recife. Presente no Brasil como técnico, como orientador, como
renovador, não só de paisagem, de vida e de economia tropicais e,
na época, ainda sociologicamente coloniais, como também de idéias e
de métodos de ação, êle continuou, durante sua vida de europeu reinte-
Fig. 9 — ANDREA DES CASTAGNO (1423-1457).
A Santa Ceia.
Convento de Santa Apolônia, Florença.
Fig. H - SALVADOR DALÍ (1904).
A Santa Ceia.
Galería Nacional de Washington.
uma
das mais populares modernamente.
grado na Europa, após a aventura brasileira, ligado ao trópico e ao
Brasil. Sua aventura brasileira só cronològicamente durou cinco ou
seis anos: na verdade durou cinqüenta. Mais de cinqüenta até.
Vauthier — de quem nunca será possível separar-se a figura de
Francisco do Rego Barros, que o trouxe da França ao Brasil e prestiqiou sua ação renovadora, foi um desses homens tentaculares no
espaço e no tempo que se expandem em influência por meios biológicos
ao mesmo tempo que culturais, psicológicos ao mesmo tempo que sociais.
No Brasil êle deixou filho brasileiro: filho mestiço, Vauthier de côr:
franco-africano. Eurotropical. Continua assim biològicamente presente
no Brasil.
*
E deixou discípulos: o já referido Figueiredo, se não foi discípulo
seu e de Fourier tanto quanto de Cousin, não deixou de receber sua
influência, receptivo como era, pelo próprio ecletismo aprendido com
Cousin. No Brasil permaneceram, abrasileirados ou aculturados em
brasileiros, dois dos seus principais colaboradores franceses, o engenheiro Milet — que aqui se tornou agricultor e aqui constituiu família,
casando-se com uma pernambucaníssima Albuquerque — e Boulitreau;
que também aqui se fêz agricultor e constituiu família. Ao Brasil,
Vauthier continuou preso, consultado, como sempre foi em sua vida,
a respeito de obras de engenharia. Houve obras que dirigiu da Europa. Por correspondência: à base do seu conhecimento da ecologia
tropical do Nordeste. De modo que sua presença, do ponto de vista
sociológico, ultrapassou em dezenas de anos sua presença pessoal ou
física e sua continuação biológica em filho brasileiro, aliás obscuro e
não apenas escuro.
É interessante assinalar-se que os anos imediatos ao regresso de
Vauthier à França e à presença de Francisco do Rego Barros na presidência da Província foram, no Recife, dos de mais intenso afrancesamento que tem experimentado a capital de Pernambuco. Foi como se
Vauthier, prestigiado pelo Presidente Rego Barros, tivesse provocado,
regressando à França, um surto ou uma febre de francesismo na Cidade brasileira onde acabara de viver e agir, também intensamente.
Viveu e agiu como se fosse um homem de dupla e contraditória personalidade: engenheiro que aqui provocaria ou acentuaria, como
provocou e acentuou, um surto de progresso industrial e mecânico,
perturbador da ordem social, inclusive do que nessa ordem patriarcal,
a despeito da escravidão em vigor, era humanismo ibérico, personalíssimo lusocristão, atenção à pessoa humana. Socialista, e também, a seu
modo, humanista e personalista, Vauthier — o amigo francês do afrancesado Francisco do Rego Barros — no Brasil se abrasileirou a pomo
de ter aqui, seguido costumes caracteristicamente brasileiros, deixado
filho natural. E aqui deixaria — este o grande impacto da sua influência — sugestões no sentido de uma nova ordem que — é-nos lícito
imaginar — não sendo mais a patriarcal, fosse, idealmente uma ordem
entre traterna e hierárquica: e corrigisse no progresso industrial ou
mecânico, os seus excessos, tomando esse progresso e aquela ordem
aspectos complementares de uma realidade e de uma mística sociais
também novas. Brasileiramente novas.
É possível que essas idéias — se é que foram exatamente as suas
— êle as tivesse comunicado ao próprio Francisco do Rego Barros. O
qual não deixou de tomar, como Presidente da Província de Pernambuco, umas tantas iniciativas que podem ser classificadas como de socialismo de Estado. Socialismo, é claro, humanista. Fourierista. Mas
socialismo — como o de Vauthier — bem menos utópico que científico.
Ou paracientífico.
O que está aqui se sugerindo com algum escândalo? Que èsse
aparente ortodoxo de política conservadora que foi Francisco do Rego
Barros favoreceu no Brasil, como Presidente da Província de Pernambuco, um dos maiores surtos de tecnologia revolucionária que já agitaram
o nosso país; e com esse surto, outro — socializante — e ainda outro,
intelectual: a primeira presença no Brasil de uma perspectiva quase
cientificamente sociológica de problemas brasileiros.
Segundo o Professor Moreno, a Revolução Francesa teria empregado sua energia prática na emancipação da burguesia e sua energia
teórica na instituição da ciência social ou da sociologia, implicando, este
fato na fecundação do socialismo científico por pensadores franceses
pré-marxistas. A Revolução francesa, pensa esse moderno sociólogo,
hoje tão em voga na Europa, ter feito nascer a sociologia como ciência.
Teria sido o ponto de partida de uma série de reações que, segundo
êle, através de Saint-Simon, Fourier e Augusto Comte, chegaria a
Durkheim. E afetaria — acrescente-se a Moreno — o um tanto sociólogo que foi, genialmente, Karl Marx completado por Engels.
Desses pensadores, está provado que pelo menos Fourier — o mestre
do Vauthier tão prestigiado por Francisco do Rego Barros — influiu
sobre o chamado socialismo científico que veio a desenvolver-se menos
na França que na Alemanha e paradoxalmente na Rússia. E provado
parece estar também que a idéia de progresso básico para o socialismo
chamado científico quando se extremou em movimento messiânico —
consolidou-se primeiro na França. Vinha de Voltaire, através de Condorcet, e chegaria a Guizot, que dela se ocuparia nas suas famosas
conferências de 1828. Conferências cuja repercussão deve ter chegado
ainda muito viva aos ouvidos do então adolescente Vauthier.
O socialismo francês da primeira metade do século XIX pretendeu
a um tempo socializar e humanizar o progresso industrial. Pretendeu
resguardar os valores vitais da civilização humana de sua fragmentação ou desintegração através de atividades industriais, soltas ou descontroladas, corrigindo o Progresso livre — o laissez-faire do liberalismo econômico — implícito nessas atividades soltas, com a Ordem,
como se diria no Positivismo comtista. um Positivismo, em parte con-1
tinuador do sistema de Saint-Simon; e do de Fourier, em vários pontos.
Vauthier foi no Brasil da primeira metade do sécuIo XIX — no
Pernambuco governado por Francisco do Rego Barros — um representante da situação assinalada pelo Professor Moreno como cruda
pela Revolução Francesa; e que, por sua vez, teria criado a Ciência Social e contribuído para criar o Socialismo Científico. Introduzido no
Brasil, por Vauthier, durante o governo em Pernambuco de Francisco
do Rego Barros, o Fourierismo parece a alguns de nós ter dado o
primeiro sentido sociologicamente, senão socialista, socializante, a uma
das expressões mais características do processo revolucionário brasileiro: a que vem tendo sua base no Nordeste. Principalmente em Pernambuco: no Recife: Num Recife menos pioneiro, no Brasil, de qualquer socialismo sistemático fácil de tornar-se sectário ou arcaico —
como aconteceu com o Positivismo de Comte, sempre fraco no Recife
e forte no Sul do país — do que de soluções sociais e brasileiras para
problemas sociais e brasileiros. Soluções mais amplas que as jpenas
jurídicas ou somente políticas.
Impossível deixar-se de considerar a contribuição fourierista para
o que esse processo revolucionário brasileiro, que, irradiando do Recife, adquiriu, ainda na primeira metade do século XIX, muito menos
de conteúdo que de estímulo sociologicamente socializante: um estímulo
hoje presente na obra inconfundível de que socialismo de Estado de
um novo tipo — tipo brasileiro — representada pela S U D E N E , que,
segundo já notou o Professor Munhoz da Rocha, se baseia em idéias
de um intelectual recifense. um quase socialismo de Estado que
coopera, e busca, a cooperação, de seu suposto opositor inconciliável,
que é a iniciativa particular, segundo fórmula consagrada na Constituição Brasileira de 46 e na atual, por influência, em grande parte, de
sugestão recifense. Conciliação que já estaria no novo método de
administrar Província iniciado por Francisco do Rego Barros assessorado por Vauthier.
O nome de Francisco do Rego Barros está associado à primeira
presença menos de parasocialismo, com pretensões a científico, embora
também humanístico e humanitário, que ao início, em termos já modernos, no Brasil, de uma como sociologia aplicada à administração
pública e à política social de um governo. Associado a uma revolução
tecnológica a que não faltou — repita-se — o acompanhamento ou o
estímulo de elemento parasociológico. Associado, portanto, a um movimento de renovação regional, no nosso país, que implicou em crítica
revolucionária à ordem econômica e à estrutura social, monocultora e
latifundiária de tôda uma vasta região do então Império. Crítica que
seria seguida de alterações consideráveis nessa ordem e nessa estrutura.
De modo que, válidas as sugestões que aqui se esboçam, torna-se
necessária uma revisão da figura ou da personalidade de Francisco
do Rego Barros que admita nessa figura ou nessa personalidade traços
anticonservadores tais que ela deva ser considerada, sob certos aspec-
tos, mais revolucionária que conservadora. De outro modo, não se
compreenderia o prestígio que Francisco do Rego Barros deu, de modo
tão incisivo, a um, além de revolucionário tecnológico, opositor à rotina,
quer em engenharia, quer em administração de obras públicas, como
foi Louis Léger Vauthier. Francês de quem o Presidente durante sete
anos da Província de Pernambuco — seria no fim da vida, em dias
difíceis para o Império, Presidente da Província do Rio Grande do Sul
— vivido em Paris e inteirado de fermentos intelectualmente renovadores na cultura francesa ou européia de então, não ignorava que fòsse
um discípulo de Fourier. E quem diz Fourier, diz não só um precursor,
tanto quanto Saint Simon, de Augusto Comte, por um lado, mas também — sugira-se ainda uma vez — de Karl Marx, por outro. Fourier
foi uma das mais nítidas expressões, no seu tempo, do que a cultura
francesa apresentava de renovado e de renovador, nas suas projeções
intelectuais sobre a ação política ou sobre movimentos de reforma social.
Quem hoje passar pela estátua de Francisco do Rego Barros —
à noite, sem iluminação: sempre na sombra — que se ergue no antigo
Campo das Princesas do Recife — estátua que o apresenta senhorilmente sentado como um sedentário e apolíneo conservador — não passa,
entretanto, por monumento em honra apenas da memória de um defensor da Ordem e da Segurança Nacional: defensor que êle sem
dúvida foi contra demagogias rasteiras e antinacionais. Passa também
pelo monumento de um dos maiores renovadores, no Brasil, de qualquer
época, de perspectivas e de métodos de administração e de governo;
de um estadista do Império que favoreceu a introdução no Brasil não
só de técnicas como de idéias francesas então de vanguarda. Não só
essa estátua de corpo inteiro precisa de ser à noite iluminada em vez
de deixada tristonhamente no escuro. É a vida, a pessoa, a personalidade, de Francisco do Rego Barros, Barão e depois Conde da Boa
Vista, que principalmente carece de ser iluminada por uma biografia
mais que biográfica: uma espécie de novo um Estadista do Império.
Há hoje entre certos historiadores menos idôneos o afan retrospectivamente demagógico de desprestigiar nos passados nacionais
quanto foi atuação de elites, de aristocracias, de indivíduos superiores,
para exaltar-se apenas o valor dos seus contrários: os elementos de
uma população subordinados a dominadores e indiscriminadamente considerados sempre mártires ou vítimas totais dessa dominação.
Pretende-se glorificar apenas as massas só por terem sido massas em
relação com indivíduos de qualidades criadoras, quer inatas, quer desenvolvidas das inatas por aquisição ou por esforço. É uma tendência
que se filia a um generalizado afan demagógico sectariamente quantitativista e antielitista, característico da época de desajustamento entre
valores tradicionais e os reclamados por novas circunstâncias de
convivência humana que o mundo atravessa; e que vem atingindo o
máximo do seu furor, menos, atualmente, na Rússia Soviética — onde
há agora forte movimento de revalorização de tradições e valores do
passado nacional: inclusive valores culinários, folclóricos e religiosos
que nos tecnològicamente superdesenvolvidos e, no momento, espiritualmente em crise quase mortal, Estados Unidos da América.
Sob esse critério gritantemente deformador do que se possa considerar interpretação sociológica do passado ou da atualidade de um
conjunto nacional, é claro que «desprezível», «reacionário», «elitista»
dado às elites um sentido pejorativo — quanto se faça a favor da
memória de um Conde da Boa Vista ou de um Marquez de Olinda.
Só por terem sido titulares do Império e homens bem nascidos e bem
educados deveriam ser considerados sumariamente figuras negativas
do nosso passado.
A verdade, porém, é que no Brasil de hoje há quem saiba, nos
momentos justos, procurar fazer justiça histórica tanto aos que, no
passado prenacional e no nacional do nosso país, agiram como elementos de elite, como aos que, nesse passado, contribuíram para a atual
grandeza brasileira como gente obscura, plebéia, anônima.
Inclusive
como escravos. Os escravos a quem o Brasil tanto deve sem que para
reconhecer-se essa dívida seja preciso negar os serviço à nação brasileira de alguns dos bons, patriarcalmente bons, barões do Império.
Será «saudosismo» reconhecer-se como válida essa dupla ou mista
realidade? Será «saudosismo» reconhecer-se no que foi a formação
patriarcal do Brasil o positivo para só enxergar-se o negativo? Será
«saudosismo» deixar-se de ver o tratamento em geral — nem sempre:
em geral — dispensado pelos barões e senhores de terras brasileiras
aos seus escravos uma benignidade que de ordinário — de ordinário:
nem sempre — faltou — o depoimento de numerosos estrangeiros idôneos — aos donos europeus ou brancos de terras e de negros noutras
áreas escravocráticas do mundo, do século X V I ao XIX? Será «saudosismo» deixarmos os brasileiros de estimar valores contraditórios
vindos do nosso passado para, negando-os, fazermos passivamente n
jogo antibrasileiro de estrangeiros, ajudados por uns poucos brasileiros,
empenhados em julgar simplistamente nosso sentido imperfeito, porém
mais avançado que qualquer outro, de democracia racial, vinda de uma
miscigenação que na própria sociedade patriarcal corrigiu excessos de
dominação e de subordinação? Serão nossos julgamentos de raça iguais
aos ódios de brancos a negros, aos furores atuais de negros contra
brancos, em vigor noutras partes do mundo? De modo algum podemos
resvalar nesse jogo sem renunciarmos nossa independência intelectual
e nossa dignidade nacional na análise, na avaliação e na interpretação
do que em nós são, e vêem sendo, traços positivos e traços negativos
de comportamento e de cultura. Toca-nos repudiar as pressões sobre
nós de agentes estrangeiros, uns comprometidos com branquitudes,
outros com negritudes, e a todos os quais devemos opor cada vez mais
a nossa mística que é a da morenidade, ou a da morenitude, ou seja
a de uma crescente democracia, ao mesmo tempo racial e social.
Prestigiando a atuação no Brasil no seu tempo — particularmente
em Pernambuco - - de um neo-técnico que era também um socialista
de tipo mais científico ou mais sociológico que doutrinário, Francisco
do Rêgo Barros, aristocrata de engenho do Cabo, antecipou-se a Joaquim Nabuco em ser um tanto desertor de sua própria classe para
favorecer interesses e desenvolvimentos sociais contrários aos dessa
classe; e desfavorável à própria população então dominada que, com
a abolição, se tornaria o grosso do povo brasileiro. A obra de Vauthier,
inseparável do governo Rêgo Barros, é o sentido que tem: o neo-técnico
em oposição ao paleotécnico; o abridor de novas perspectivas s o c i a i s
em oposição à rotina; a valorização do Recife em prejuízo não de legítimos interesses rurais, mas de privilégios daquela oligarquia territorialfeudal de que Francisco do Rêgo Barros, Barão e Conde da Boa
Vista, era, êle próprio, além de membro, figura sob vários aspectos
representativa.
um dos encantos do desenvolvimento do Brasil em democracia
social, vem sendo o da procedência diversa de seus líderes mais a serviço, como homens públicos ou como empresários, dessa democratização, alguns dos quais procedendo paradoxalmente dos elementos mais
privilegiados da população: bem nascidos, bem criados, bem educados.
Pela lógica deveriam ter sido conservadores absolutos e até reacionários. Na realidade foram conservadores revolucionários. Francisco do
Rêgo Barros merece ser situado entre líderes desse tipo: mistos. Contraditórios. Não se fixou no serviço exclusivo nem de sua classe nem
mesmo de sua região. Foi panhumano e panbrasileiro nas suas principais iniciativas de homem de governo, tendo se antecipado a assimilar
menos do socialismo francês, humanístico e não apenas economicista,
da sua época, quer de uma então nascente sociologia com pretensões
a ciência aplicada à administração pública, sugestões úteis ao Brasil:
à modernização técnica e à democratização social da nação brasileira.
BIOGRAFIA DA LAGOA RODRIGO DE FREITAS
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
— I —
HISTÓRIA E CRÔNICA
Ão pretendemos fazer aqui um rigoroso estudo historiográfico.
Aliás, a história da Lagoa Rodrigo de Freitas é muito rica de
crônica, de informações e impressões dispersas, encontradiças no relato
de viajantes e nos escritos de cronistas, porém não no texto histórico
de episódios celebrizados.
Nosso comentário sob o título «Lagoa Rodrigo de Freitas» inevitavelmente abrangerá tôda adjacência em que se implica o paisagismo
para o qual a lagoa é o epicentro.
Quase nos identificamos com a definição dada pelo urbanista Alfred
Agache: « . . . esta lagoa está favorecida de uma maneira excepcional
pela natureza. Colocada entre as montanhas e o oceano, ela é desenhada
de tal forma, que um passeante que lhe percorra a beira apercebe, ora
separadamente, ora num conjunto grandioso, o Corcovado, os Dois
Irmãos, a Gávea, o Pão de Açúcar e outras perspectivas entre as mais
belas do Rio». ( . . . ) «Quando o Governo de Portugal empreendeu
a criação do Jardim Botânico, previu sem dúvida as vantagens que esse
bairro poderia oferecer mais tarde e é assim que começou o embelezamento da Lagoa,» ( . . . ) «sem plano determinado». ( x )
A antevisão de Agache parece sugerir um roteiro para uma sucessão
cenográfica da paisagem. Bem diferente é a secura dos historiadores,
p. ex., Melo Morais, quando dedica ao tema as informações precisas
sobre « . . . a Lagoa Rodrigo de Freitas, conhecida nos primórdios da
Cidade, por Sacopenopã, ou Socopenopã. Em fins do século XVI, Diogo
de Amorim Soares tornou-se dono do engenho de açúcar construído
pelo Governador Antônio Salema, por volta de 1575-1578, em terras
marginais à lagoa. Mais tarde, em 1609, o estabelecimento passou a
seu genro Sebastião Fagundes Varela, que o vendeu em 1660 a Rodrigo
de Freitas de Melo e Castro, cujo nome batizou definitivamente a lagoa.
Em 20 de agosto de 1748, a Gazeta de Lisboa anunciava o falecimento
de seu filho, Rodrigo de Freitas Castro, Fidalgo da Casa Real, Cavaleiro
da Ordem de Cristo, Senhor do Engenho da Lagoa, e da Mesma Lagoa,
padroeiro da Igreja da Conceição na Cidade do Rio de Janeiro». ( 2 )
Vamos, agora, a outros historiadores para melhor conhecimento
desses personagens, da Crônica da Lagoa.
Elisio de Oliveira Belchior, biografando Antônio Salema, Governador do Rio de Janeiro entre 1575 e 1578, diz que . . . «Coube-lhe
ainda erguer nas margens da Lagoa de Socopenapã um engenho de
açúcar que mereceu história controversa» ( . . . ) «pois fora construído
com um gasto total de 3.000 cruzados, mas o provedor da fazenda real
Cristóvão de Barros, anos depois de sua instalação afirmaria que não
valia mais de 500 cruzados, sendo aconselhável sua venda para evitar
maiores despesas». ( 3 )
José Vieira Fazenda ( 4 ) — aprofunda-se mais na recomposição
da história indicando Diogo de Amorim Soares como primeiro donatário
da sesmaria de terrenos próximos à Lagoa, em 1598, fundador do
engenho de N. Sra. da Conceição. Foi seu genro Sebastião Fagundes
Varela que entre 1609 e 1617 obteve mais terras contíguas, . . . «tornando-se possuidor da grande fazenda ( . . . ) com 1.700 braças de
testada e 4.500.000 braças de área incluindo a lagoa». ..
Esta foi a enorme propriedade que o pesquisador de história Luis
França Almeida e Sá (Rev. Inst. Hist. Geog. Bras, n 9 62) indica
na medição de 1809, sob a denominação de Fazenda da Conceição de
Sacopenan, comprada pelo Govèrno a Dona Maria Leonor de Freitas
Melo e Castro, herdeira de Rodrigo de Freitas (falecido em 1803),
por 42.193$430, no ano de 1811.
Além dessas origens escrituradas, Pizarro ( 5 ) — comentando sobre
o Roteiro do Brasil de Pimentel assinala que esta consta de 5 léguas de
comprido, desde a barra de Guaratiba até a Marambaia, por onde corre
a Restinga. No Roteiro de Pita (liv. 2 ) , numerou 14 l é g u a s . . . «com
pouca verdade por não exceder a mais de légua e meia, em cujo fim
principiam as doze léguas de restinga que confinam com a Guaratiba.
Marambaia não é ilha — acentua Pizarro — está ligada à terra firme,
pois que caminhando pela restinga, e costa do mar, se vai à cidade,
entrando pela Lagoa Rodrigo de Freitas». ( 6 )
A casualidade do nome do proprietário Rodrigo de Freitas tornar-se
o topònimo da área mais bela de tôda a Cidade do Rio de Janeiro é
um dos acontecimentos curiosos de nossa história. Num país em que
as ruas e logradouros, túneis, viadutos, estádios e aeroportos consagram
vidas ilustres, ocorre a exceção da regra para um topònimo, incidental
e tradicionalizado, do latifundiário que nem residia naquelas bandas. . .
«tinha êle casa de residência nesta cidade à Rua de São José, e morreu
em Portugal no ano de 1748, com 61 anos de idade na sua quinta de
Suariba, da freguesia de São Paio de Visela». ( 7 )
O caso merece atenção dos especialistas em linguistica, capazes de
explicar que eufonia predomina para que os tempos aceitem os apelidos
Rodrigo de Freitas como topònimo de um acidente geográfico antes
denominado de Lagoa de Sacopenapã, Lagoa do Engenho da Conceição,
e até de São João, pois foi dentro da Freguesia de São João da Lagoa,
criada pelo decreto de 13-6-1808.
A substituição do topònimo original de Sacopenapã para Copacabana se explica pela invocação iniciada antes de 1638 de Nossa Senhora
de Copacabana, na primitiva Igreja da Misericórdia. Lê-se, no Santuário
Mariano de Frei Agostinho de Santa Maria, que o Padre Miguel da
Costa, naquele ano de 1638, colocou a Imagem de Nossa Senhora do
Bonsucesso na Santa Casa e não na primitiva igreja cujo altar já estava
ocupado pela imagem de Nossa Senhora de Copacabana. A única
explicação dada pelo autor dos dez volumes do relato universal do Santuário Mariano, realizado entre 1702 e 1709, consta no seguinte trecho:
. . . «e por que não nos referimos nada dela, digo o que se me representa, e é como a Senhora é tida em todo o Império Peruano por um
grande prodígio pelos contínuos milagres, que continuamente obra
naquela sua sagrada Imagem Peruana, poderia ser a trouxesse de lá
algum Português, como a trazem muitos em uns relicarios de prata». ( 8 )
Em terras do Cónego Antônio Duarte Raposo, pequena parte da
primitiva sesmaria de Nicolao Baldim (1614) foi fundada a Capela
de Nossa Senhora de Copacabana, constituída em Igreja e Irmandade
da Freguesia de N. Sra. Copacabana em Suruhi, em 1669.
Conclui Vieira Fazenda: . . . «É hoje quase impossível saber, por
que e em que ano saía da Misericórdia a Imagem de Nossa Senhora de
Copacabana, para a praia das Pescarias». ( . . . ) «Em 1746 João Gomes
Pina doou 100 braças de chão de largo e 200 de comprido em Sacopenapan a Nossa Senhora de Copacabana».
Quando o Bispo D. Antônio do Desterro retornava de Angola
para ocupar a diocese do Rio, quase pereceu numa tempestade. Consta,
num manuscrito do I . H . G . Bras., que no momento de perigo o Bispo
«implorou o amparo de N. Sra. de Copacabana, cuja ermida, em
ruínas, divisava em meio aos vagalhões, na altura da Ilha da Cotunduba
e prometeu, caso escapasse do naufrágio, tomar a si a restauração da
capela. E cumpriu a palavra».
«Quando em 1845 Bernardino José Ribeiro vendeu terras a Carlos
Leblon, declarou na escritura que não vendia a Capela por pertencer
à Mitra. Havia, junta àquela igrejinha, uma casa para os romeiros mas
a assistência religiosa foi dificultada, e por isso relegada pelos beneditinos
e carmelitas» ( . . . ) «pelos inconvenientes que sentiu aquela Religião
pela residência, no sítio, de alguns de seus indivíduos» (Pizarro) . Assim
era Sacopenapã naqueles idos de 1771 a 1773.
Sacopenapan, ou Sacupenupan — derivado conforme opinião de
Iheodoro Sampaio, de çocó-pê-nupan. ou çoocó-apê-nupan, pancada
nos socos, caminho batido dos socos. (°)
Ainda comenta Vieira Fazenda: etmologia bem explicada pela
vizinhança da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Certo, mas cabe acrescentar: bem denunciada, pois indica a fauna
predominante de um pássaro dependente de espécie piscosa lacustre,
de água doce.
Noutras palavras: a paisagem de Sacopenupan era decorrente,
biològicamente, da lagoa.
Nos tempos primevos, aquela vasta região era povoada por grupos
dispersos e não fixados de tamoios, dedicados à pesca, pois as áreas
do recôncavo guanabarino e do Norte, ou as mais distantes do Sul,
ofereciam melhores condições de caça e plantio de mandioca.
Assim concluímos o primeiro capítulo da Biografia da Lagoa Rodrigo
de Freitas, correspondendo ao tempo de uma área selvática habitada
mais pelos socos, até a data de desapropriação da Fazenda da Lagoa
Rodrigo de Freitas, por Dom João VI, em 13-6-1808 e sua posterior
incorporação ao Patrimônio Nacional por lei de 28 de setembro de
1835. ( 10 )
— II —
PERIODO SEGUNDO: FABRICA DE PÓLVORA JARDIM BOTÂNICO
Nenhum cronista deixa claro o verdadeiro motivo, o interesse de
aquisição da imensa área compreendida pela Fazenda da Lagoa. O
primeiro aproveitamento consistiu na instalação de uma Fábrica de
Pólvora e Fundição de peças de artilharia. Somente em 1869 o Governo
Imperial pagou 50 apólices à Câmara Municipal para o domínio direto
de tôdas as terras, . . . «cuja planta foi levantada pelo tenente general
Carlos Augusto Napion e capitão Jacques Augusto Conny». ( n )
Quem era esse General Napion? Simplesmente Carlos Antônio
Napione, natural de Turim, nascido cerca de 1758, militar de carreira
em seu país de origem e depois contratado para servir a Portugal como
inspetor de Arsenal e das Oficinas e Laboratórios dos Instrumentos
Bélicos. Transferiu-se para o Brasil com a família Imperial, em 1808,
sendo logo, a 13 de maio, incumbido de criar e inspecionar a Fábrica
de Pólvora da Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi presidente da junta
diretora da Academia Real Militar, Brigadeiro, Marechal-de-Campo.
Faleceu no Rio em 1814. ( 12 , 13 , 1 4 )
Este notável engenheiro militar é autor do levantamento topográfico
que consta do Arquivo Militar com o título — Planta topográfica do
Terreno ao Sul da Cidade do Rio de Janeiro, compreendido Entre a
Dita Cidade e o Oceano», acrescido do projeto das «Fortificações a
fazer, para evitar o desembarque na Costa, e no caso déste se efetuar,
não poderem avançar os desembarcados para a cidade» trabalho de
relevante valia na época e na posteridade, pois resultou no documento
indispensável para delimitar propriedades e herdades, até à presente
centùria.
É cogitável ter havido no encargo do General Napione motivação
estratégica, para eventual defesa, ao detalhar a topografia de uma área
que foi percurso dos invasores franceses de 1710 e 1711.
Nas Memórias do Rio de Janeiro de Monsenhor Pizarro lê-se, no
capítulo sobre a «Entrada dos Franceses na Cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro e seus progressos, no ano 1710» que. . . «da Ilha
Grande despediram dois navios com a balandra e sumaca que sondaram
a costa nas praias de Sacopenapã, e da Lagoa, e na noite de 10 intentavam desembarcar duas léguas distantes da cidade. No dia seguinte
chegaram à barra Tojuca, quatro léguas da cidade e à de Guaratiba,
quatorze distante».
Noutro trecho o mesmo cronista, ( 1 5 ) Das fortalezas e redutos
da cidade e seus subúrbios. Dos corpos de infantaria e cavalaria de
linha, e de outros semelhantes de milícia, que guarnecem a Cidade e
Capitania-» — dá breve e expressiva notícia de interesse militar, referente
ao tempo do Vice-Rei Marquês do Lavradio: «Acautelando o mesmo
Vice-Rei ingresso de inimigos pela praia de Copacabana, fêz coroar
o monte alto e sobranceiro», ( . . . ) «com um reduto denominado Fortaleza do Leme; e na estrada de São Clemente, que de Botafogo segue
à Lagoa Rodrigo de Freitas, estabeleceu um presídio a quem protegiam
dois pequenos baluartes ocultos dentre os matos a um e outro lado
da mesma estrada».
A missão de Carlos Napione se estenderia, entretanto, para uma
iniciativa de enorme significação econômica e administrativa. A fertilidade daquelas terras era já conhecida em relação ao plantio de cana
de açúcar e também de café: . . . «Dos lugares mais fartos dessa
planta e melhor cultivados até o ano de 1800, eram superiores o da
Tojuca e tôda sua circunferência em volta da Gávea para a Lagoa
Rodrigo de Freitas; o da fazenda Medanha, na freguesia de Campo
Grande. . .» ( 16 )
Nos «Anaes do Rio de Janeiro — Contendo — A descoberta e
Conquista deste pais — A fundação da Cidade com a História Civil
e Eclesiástica até a Chegada d'El Rei Dom João VI; além de notícias
topográficas, zoológicas e botânicas», da autoria de Balthazar da Silva
Lisboa, publicado em 1834, lê-se: «Adiante o Rio da Tejuca, que tem
a vertente na Gávea, oferecendo-nos pela semelhança as saudosas
lembranças de Cintra; he navegável para lanchas. Passado esse se
descobre a Lagoa Rodrigo de Freitas, que tem dous terços de légua
de comprimento, e hum de largura, sem foz, mas abundante de pescado. Os córregos que nele desaguara oferecem, na sua superfície
azougue, rubins e jacintos». ( " ) Num outro tópico, o mesmo cronista
da-nos outra notícia de conotação econômica daquela área«As
montanhas secundárias são de argila, tabatinga, gesso,
amianto: o da praia (Passeio Público) servem-se dela para
para a porcelana os de diversas qualidades da barreira dos
de Santo Antonio da Cidade, e da Boa Viagem, a argila
Lagoa de Rodrigo de Freitas. ( 18 )
espato e
figuras, e
religiosos
rubra da
Esta é a única referência que detectamos na vária e numerosa obra
dos cronistas da terra fluminense, sobre um aproveitamento de matéria
prima para aplicação de artesanato, na Lagoa.
Temos, assim, já caracterizadas duas importantes qualidades da
região para justificar o empenho de Carlos Napione no deselvolvimento econômico: a fertilidade, com aclimatação favorável e a disponibilidade de materiais de construção.
Determinado trecho de Monsenhor Pizarro ( 1 9 ) informa que a
lagoa não era pantanosa, de mangue ou lameira, como por equívoco
alguns atribuem, comparando-a com as enseadas do recôncavo guanabarino. Assim descreve Pizarro: . . . «Marchetam o território desta
província várias lagoas aprazíveis, onde se colhe sempre o peixe com
fartura. A de Rodrigo de Freitas, longe da cidade mais de légua e
meia, tem de andadura em redor além. de um quarto de légua, é assaz
funda e se despeja no mar de Copacabana, quando assaz farta lhe
dão saida abrindo os seus vizinhos o caminho impedido por montões
de areia solta».
E, para ser ainda mais explícito quanto à salubridade da lagoa
naquela data, descreve: . . . «Nela se nutre saboroso peixe, o lagostin,
o camarão e o siri, a que em Portugal dão o nome de carangueijo,
por ser ali desconhecido o verdadeiro carangueijo, criado em sítios
lodosos, e de construtura diferente, como aparecem balsamados em
alguns gabinetes de História Natural; e siri porém suposto seja uma
espécie de carangueijo, sustenta-se em lugares menos lamosos, e de
ordinário em lagoas comunicáveis com o mar, ou nele».
Não é possível maior clareza numa descrição ecológica. Ali,
naquela surpreendente região de natureza diversificada — praieira,
lacustre e serrana — haveria com certeza de surgir o Jardim Botânico
que em seu próprio tempo de instalação Carlos Napione chamou-o
de Real Jardim da Lagoa Rodrigo de Freitas. Foi criado pelo Alvará
de 11-3-1811 (art. 32) e regulamentado pelo Decreto de 11 de maio
de 1819, porém em virtude das resoluções regias de 27-7-1809 e de
7-7-1810, a primeira premiando e a segunda isentando de direitos e
dízimas qualquer especiaria aclimatizada e produzida aqui, aquelas
terras marginais da lagoa foram se transformando em campos experimentais, horto e cultivo de plantas exóticas, por interesse de Dom
João VI e sob orientação pessoal de Carlos Napione. ( 20 )
História fabulosa foi a que ocorreu com o Chefe de Divisão Luis
Abreu Vieira e Silva, náufrago em Goa, prisioneiro de guerra em mãos
dos franceses na Ilha Mauricia de onde conseguiu fugir trazendo con-
sigo preciosa carga de mudas e sementes de várias plantas surripiadas
do Jardim Gabrielle. Luis Abreu retornou a bordo do veleiro «La Ville
d'Autun» e presenteou-as a Dom João VI que fê-las plantar no Real
Horto da Lagoa, em 1809. Eram sementes e mudas da for de coral
da índia, caneleira, canforeira, litchi, cravo da índia, ôlho-de-boi,
jaqueira, fruta-pão, noz-moscada, cajá-manga, sagù e nogueira, e a
célebre palmeira imperial, a primeira e mãe de tôdas as outras que
medram pelo Brasil afora. Esta histórica palmeira frutificou pela primeira vez ao tempo do diretor Bernardo José de Serpa Brandão (entre
1829 e 1851) que desejou monopolizar o raro espécime, mandando
queimar cada ano tôdas as sementes produzidas.
Conforme crônica de C. Sarthou, citado nas anotações da 3*
edição de Moreira de Azevedo, o monopólio fracassou p o r q u e . . . «os
escravos que trabalhavam no jardim levantavam-se durante a noite e
subindo à árvore colhiam as sementes que vendiam a 100 reis cada
uma». Desse modo a palmeira imperial se espalhou por todo o Brasil,
formando os majestosos renques de acesso às casas nobres e marcando
a paisagem nativa.
Neste trabalho não pretendemos cobrir tôda a história do Jardim
Botânico, aqui incluído como área integrante e decorrente da Lagoa.
Cuidar da crônica do Jardim é compromisso para livro. Talvez seja
um dos mais empolgantes temas do contexto fluminense, abordado e
tangenciado por quase todos que escreveram sobre o Rio de Janeiro,
mas ainda insuficientemente historiado. Além do plantio oriundo da
aventura de Luis de Abreu, em 1809, Dom João mandou vir de Caiena
mais sementes de especiarias e plantas medicinais e do Ceará a planta
indígena chamada Carnaúba, em 1810. Em 1896 Vieira Fazenda (-1)
se diz incapacitado para dar notícia circunstanciada da história moderna do Jardim Botânico e apela para outros mais habilitados, ao tempo
em que era diretor o seu ilustre amigo e célebre botânico João Barbosa
Rodrigues.
Já na época do Marquês de Sabará (1808), o pequeno jardim e
horto atraía visitas que eram então acompanhadas por soldados do
arsenal. Em 1819 novo decreto aumentou a área do Jardim Real,
anexando sua administração ao Museu e nomeando diretores João
Severiano Maciel da Costa e João Gomes da Silveira Mendonça. Em
1822 determina-se a anexação à Secretaria de Estado dos Negócios
do Interior, órgão que deu origem às futuras repartições do Ministério
da Agricultura. Em 1860 o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura passa a dirigi-lo, instalando fazenda e oficinas de instrumentos
e máquinas de lavoura, chegando a manter milhares de espécies diferentes, indígenas e exóticas, vinte e uma variedades de cana de açúcar,
vinte e sete espécies de mandioca, várias de aipim, de algodão, plantio
de palmeira bombonassa do Peru para fabrico de chepéu de palha,
fumos de Djebel e Havana, amoreiras, bicho da seda, chá da índia,
e um sem número de plantas ornamentais. Parte da mão de obra e
do trabalho especializado era ocupado por aprendizes egressos de
orfanatos da Santa Casa de Misericórdia.
Cedros do Líbano, longanas, bambus, mangueiras, jaqueiras, a
árvore da teca, da cànfora, da goma, formavam bosques e aléias nutridas pelas águas do Rio Macaco. Ainda na fase inicial, quando era
mais uma estação agrícola experimental, tentou-se a mando do Imperador o cultivo do chá da India, a encargo de emigrantes chineses
especialmente contratados que residiram naquela verdejante várzea e
encosta até a remessa das primeiras amostras para Londres onde foram
desaprovadas, rejeitadas. com isto abandonou-se o cultivo do chá e
todos os sonhos imperiais a respeito. Mas, até hoje, não se soube o
que de fato houve com o chàzinho da beira da Lagoa quando posto
nas chávenas dos provadores londrinos. Teria gosto de água salobra,
sabia a infusão de cororoca, ou simplesmente era assunto incômodo,
pretensioso, querendo vez num, comércio oriental dominado pelos preços
ditados, ao bel prazer, de Albion?
Outra frustração do Jardim Real, isto é, do campo experimental
de esperanças agro-econômicas do Regente foi o fabrico de chapéu
de palha, dito Chapéu do Chile, na época, com as fibras da palmeira
bombonaça ( 22 ) que aliás medravam viçosamente.
Há evidência documental de que Dom João VI convergia grandes
esperanças econômicas nos plantios aclimatados, visando distribui-los
em diversas outras regiões — Pernambuco, Bahia, Minas e São Paulo,
bem como cambiar entre Estados brasileiros, trazendo do Norte espécimes nativos p. ex., a carnaúba do Ceará.
Em 1824, por conseguinte três anos após o retorno de Dom
João VI a Portugal, foi nomeado diretor o ilustre botânico Frei Leandro do Sacramento, carmelita e a este se deve a transformação do
campo de aclimação de plantas exóticas em cultivo de caráter científico.
Era Frei Leandro do Sacramento membro das Academias de Ciências
de Londres e Munique. O cronista dos Anaes do Rio de Janeiro ( 2 3 ) ,
Balthazar da Silva Lisboa, assim rememora-o: «Floresceram nesta
província Carmelitana homens eminentes em letras e virtudes. Ainda
de nossos dias pessoalmente ouvimos lições de botânica no Passeio
Público a Frei Leandro do Sacramento, Inspector do Jardim Botânico:
dele temos a excelente memória da cultura do chá e seu fabrico no
Jardim da Lagoa de Rodrigo de Freitas, tão enriquecido de plantas
e árvores exóticas, que atrai a visita e recreio dos nacionais e estrangeiros àquela linda situação. Lastimamos a sua morte tão fatal naquele ramo de nossa literatura e civilização».
Sacramento Blake informa, no verbete biográfico «Frei Leandro
do Sacramento», que êle nasceu em Recife, Pernambuco, em 1778 e
faleceu no Rio em 1829 «era licenciado em filosofia pela Universidade
de Coimbra, foi lente de botânica e zoologia da academia médicocirúrgica desta cidade (Rio de Janeiro) mais tarde diretor do passeio
público e por ùltimo diretor do Jardim Botânico em 1824». ( . . . )
«além de lecionar na Academia, fazia constantemente sábias preleções
nos dois estabelecimentos que dirigia, às quais concorriam não só seus
alunos, mas também homens de elevada posição...» ( . . . ) «não fêz
qrandes explorações como naturalista porque disso o impossibilitava
sua saúde precária, nem escreveu quanto poderia talvez» (o biógrafo
está exigindo demais de um naturalista, religioso e filósofo morto aos
51 anos!) . Seus trabalhos são mencionados, com relevância, por
Auguste de Saint Hilaire e Giuseppe Baddi que o consagrou ao classificar e estabelecer o gênero Leandra, na ordem das mellastomaceas.
Era sócio da Academia Real das Ciências de Munique, da Academia Imperial da Rússia, da Real Sociedade Horticultural de Londres,
da Sociedade Real de Agricultura e Botânica de Gent (Bélgica) e
do Instituto Colombiano etc. Sacramento Blake arrola seis obras de
sua autoria, entre tese, monografias e um Compêndio de Botânica,
conhecido de seus alunos, historiado por José de Saldanha da Gama
(v. Rev. Inst. Hist., tomo 38), entretanto desaparecido. ( 24 )
De suas obras mencionadas merece destaque, como trabalho pioneiro da temática de preservação do patrimônio cultural, aquela publicação datada de 1819 (LVI-77 págs. in 4' B . N . ) modestamente
intitulada «Instruções para os viajantes e empregados nas Colônias
sobre a maneira de colher, conservar e remeter os objetos de História
Natural», originalmente escrita em francês e traduzida por ordem de
Sua Majestade Fidelíssima.. . «aumentadas e precedidas de algumas
reflexões sobre a história natural do Brasil e estabelecimento do museu
e jardim Botânico em a Córte do Rio de Janeiro».
Há, na história do Jardim Botânico, um outro carmelita de destacado mérito: Frei Custódio Alves Serrão, nascido na velha Alcântara
do Maranhão em 1799 e falecido no Rio de Janeiro em 1873. Desde
cedo demonstrou aversão à vida monástica, recusando-se a estudar
teologia. Voltou ao Rio, bacharelado com as melhores notas, em 1825
e foi nomeado em 1826 lente de botânica e zoologia da Academia
Militar, após de química e mineralogia e, em 1828, diretor do Museu
Nacional, onde exerceu o cargo com muito brilho.
— III —
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO JARDIM BOTÂNICO,
QUE SE CHAMOU JARDIM DA LAGOA
Em 1859 Frei Custódio Alves Serrão foi nomeado diretor do
Jardim Botânico, cargo a que renunciou por discordar da anexação ao
Instituto Fluminense de Agricultura. (2») Em quase a totalidade das
crônicas, o período de 1860 a 1890 foi estacionário, burocratizado e
de pouca ressonância. Interpretamos este fato como a conseqüência
dos fracassos do cultivo de aclimação para expectativas econômicas
O século XIX foi destacadamente o período dos naturalistas e por
isso pouco se entende do desinteresse e desestímulo tão prolongados,
até que nos primeiros anos da República (1890) se nomeou um dos
brasileiros mais ilustres, o naturalista João Barbosa Rodrigues.
No resumo biográfico de Sacramento Blake ( 26 ) lê-se que J. B.
Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro em 1842, formou-se em economia,
foi desenhista por pendor e autodidata em ciências naturais com
notáveis obras em botânica, etnografia e antropologia. Comissionado
pelo governo imperial, excursionou através da Amazônia classificando
numerosas espécies de palmeiras inéditas, mesmo em face da pesquisa
pregressa de Martius, Richard Spruce, Alfredo Wallace e outros.
Êle próprio desenhava os espécimes estudados. Sofreu usurpação de
várias de suas descobertas por parte de James Trail e outros exploradores visitantes, ambiciosos de prioridade. Em 1884 foi diretor do
Jardim Botânico do Amazonas que fundou ao tempo em que aculturava
a tribo dos crichanás. Deixou numerosa obra científica e literária numa
amplitude de verdadeiro humanista. Faleceu, no Rio de Janeiro,
em 1909.
Dos diversos e sucessivos diretores do Jardim Botânico, destacamos, de acordo com o critério de nosso estudo, Antônio Pacheco
Leão, nascido no Rio de Janeiro em 1872 e falecido em 1931. Era
médico, formado em 1896, sanitarista, nomeado por Osvaldo Cruz em
1904, no Serviço de Profilaxia da Febre mareia. Em 1911 foi nomeado Diretor Geral da Saúde Pública. Em 1912 excursionou ao
Amazonas com Carlos Chagas, experiência que suscitou seu grande
interesse pela flora brasileira. Em 1916 era diretor da seção botânica
do Jardim Botânico e em 1925 ocupou a cátedra de Biologia Geral e
Parasitologia da Faculdade de Medicina. Manteve-se na diretoria
do Jardim Botânico desde 1914 até a data de sua morte em 1931. ( 27 )
A importância de Antônio Pacheco Leão como diretor do Jardim
Botânico está na luta que manteve, sobretudo entre 1920 e 1922,
contra a usurpação do patrimônio original resultante da desapropriação
da área marginal da lagoa para a construção do hipódromo projetado
pelo arquiteto e diretor do Jockey Club, Mário Ribeiro.
A mutilação foi definitiva, amputando a contigüidade das coleções
de aclimação mesológica específica àquela topografia. ( 28 )
O argumento progressista de Mário Ribeiro e outros baseava-se
na escusa viciada de falta de verba do Ministério da Agricultura para
manter o Jardim Botânico e até mesmo para sanear aquela área lodosa,
verdadeiro criatório de mosquitos, pantanoso, de plantas aquáticas.
Tais argumentos de Mário Ribeiro, Lineu de Paula Machado e de
outros vultos da elite mandatária repercutiam no julgamento do público,
sempre apavorado com o espectro da febre amarela, em nada importando que do lado oposto, isto é, do lado dos que defendiam a
integridade necessária para manter as características ecológicas de um
Fig. 1 - LEONARDO DA VINO (1452-1519) ...A Santa Ceia.
Vê-se a marca deixada pela portaria, aberta em 1652.
Fig.
2
— LEONARDO DA V I N C I
(H52-1519).
A figura
de Cristo, inscrita numa pirâmide, realçada pela luminosidade
da paisagem ao fundo,
Fig.
3 — ANÔNIMO LEONARDESCO.
Cabeça de Cristo.
Pinacoteca de Brera, Milão.
Fig. 4 — LEONARDO DA VINCI (1452-1519). Tiago, o Maior. Desenho
a saguínea. Biblioteca Real de Windsor.
Fig. 5 —
uma
das numerosas reproduções populares. Acréscimos e modificações verificáveis num confronto
com
o original ( f i g . 1)
Fig. 6 - Em cerâmica, feita na Bahia.
Também modificada e de colorido berrante ao gosto popular.
Fig. 7
INARDO DA VINCI (1452-1519). A Santa Ceia. Detalhe da cabeça
de São Pedro. Estado atual de conservação depois das últimas restaurações
Fig.
8 — Refeitório do Convento de Santa Maria das
bombardeio de agosto de 1943.
Graças depois do
Fig. 10 — ANDREA DES SARTO (1487-1531).
A Santa Ceia.
Convento de San Salvi. Flocença.
Fig. 11 — ANDREA DEL SARTO
(1487-1531).
A Santa Ceia. Detalhe: Cristo e um apóstolo.
Fig. 12 — TINTORETTO (1518-1594) . À Santa Ceia. San Giorgio Maggiori, Veneza.
Fig. 13 — LEONARDO DA VINCI (1452-1519).
Esquema da perspectiva: as linhas de
fuga
passa a linha do horizonte.
confluem na [conte de Cristo, por onde também
1)
Lagoa Rodrigo de Freitas (dezembro de 1970) vista do caminho para o Corcovado.
Exemplo de progresso
rio resultante da especulação imobiliária de Leblon e Ipanema e sucessivos aterros desde 1922 com multilação
da primitiva contiguidade do Jardim Botànico a Lagoa.
Comparar com a foto XXVII (p. 400-1) do II vol.
Aparência do Rio de Janeiro», de Gastão Cruls, 1945. Ed. J. Olimpio — Rio.
Foto: C. P. Valladares
2)
Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Aléia das Palmeiras Imperiais do tempo de Dom João VI com replantio para
preservação paisagística,
(dezembro,
1970).
Foto:
CP.
Valladares
3)
Jardim Botânico do Rio de Janeiro,
(dezembro de 1970)
Foto:
CP.
Valladares
4)
Jardim Botànico do Rio de Janeiro,
(dezembro. 1970)
Foto:
C.P.
Valladares
5) Jardim Botànico — Pio de Janeiro. «Primeira estátua fundida no Brasil no Vice-Reinado de D. Luiz de Vasconcelos, em 1783 — Estátua feita por Valentim da Fonseca e Silva, naturai de Minas Gerais — conhecido
por Mestre Valentim
NOTA:
Estátua alegórica da ninfa Eco (Naiade)
originalmente do Passeio Público,
{dezembro
de 1970)
Foto:
CP.
Valladares
6) Jardim Botànico do Rio de Janeiro.
Valentim da Fonseca e Silva, dito Mestre Valentim — Estátua de ferro —
«Diana, caçadora».
Esta e a da ninfa «Eco» foram feitas para o Passeio Público, trasladadas para o Jardim Botanico.
Foto:
CP.
Valladares
7 )
Nesta casa, antiga sede do Engenho de N. Sra. da Conceição da Lagoa, residiram o antigo proprietário do Engenho Rodrigo de Freitas Mello c Castro e o Primeiro Diretor da Fábrica de Pólvora criada em 1808, General
Carlos Antonio Napion.
Aqui se liospcdava D. João VI e a Família Imperial em vilegiatura. Nela viveu João
Barbosa Rodrigues que aqui faleceu a 9-11-1909».
Foto:
CP. Valladares (dezembro, 1907)
8)
Jardim Botânico do Rio de
Janeiro — Casa
do Engenho N. Sra. da Conceição — Veja legenda 7.
Foto:
C.P. Valladares (dezembro, 1970)
Ruínas da portada da Fábrica de Pólvora do ¡ardirti Botànico, construída pelo General Carlos Antonio Napion
ão tempo de D. João VI — 1808-1810.
(Rio de Janeiro — dezembro, 1970)
Foto:
C.P. Valladares
9) Arq. Grandjean de Montigny —
pórtico da demolida Academia Imperial de Belas Artes (1937) e reerguido no
Jardim Botânico do Rio de Janeiro pelo SPHAN.
Relevos em terracota da autoria de Zeferino Ferrez.
(dezembro, 1970)
Foto:
CP. Valladares
7
11) Detalhe do pórtico da Academia
Imperial de Belas Artes.
Relevo em
Foto:
terracota do escultor Zeferino Ferrez.
C.P. Valladares (dezembro, 1970)
12) Detalhe do pórtico da Academia Impeciai de Arte — Relevo em terracota do escultor Zeferino Ferrez.
escultura desta portada monumental é em cantaria de granito fluminense.
Foto:
C. P. Valladares (dezembro, 1790)
Lagoa Rodrigo de Freitas, vista do Caminho do Corcovado
Foto:
CP.
Valladares —
1971
Vista da Lagoa Rodrigo de Freitas do Alto do Sumaré.
Foto:
C.P.
Valladares — 1971
dos mais ricos e belos jardins botânicos do mundo, legado por Barbosa
Rodrigues, estivesse à frente, precisamente, um sanitarista da escola
de Osvaldo Cruz, professor de parasitología.
Naquela luta desigual haveria de vencer o prestígio do turfe que
concluiu em 1926 suas elegantes construções sobre os aterros na área
subtraída do Jardim. O govèrno e o meio social aprovaram com
entusiasmo aquelas arquibancadas e instalações, de fato um dos exemplos pioneiros como estrutura livre de concreto e ricamente decoradas
com ornatos e estudo do arr noveau. Analisado sob critério de consideração estilística, isto é, de estilo da época, as construções do
Jockey Club se integram ao mesmo capítulo da Confeitaria Colombo,
da Rua Gonçalves Dias (1912), do Magazin Tórre Eiffel (demolido),
da Rua do Ouvidor, da sede do Jockey Club, na Avenida Central, do
Edifício do Elixir de Nogueira, da Praia do Russell (demolido), e
do notável mausoléu (ossuàrio coletivo) do Cemitério da V. O. Ill
de São Francisco da Penitência, no Caju, datado de 1907. ( 29 )
As pretensões do Prof. Antônio Pacheco Leão, fundador dos
«Arquivos do Jardim Botànico», careciam de consistência para merecer
apoio daquela sociedade festiva de 1922, o ano do ' centenário da
Independência, radioso de edificações fantasiadas.
Pacheco Leão lutou pela integridade do patrimônio de características
mesológicas particulares a um cultivo experimental e científico. Era seu
propósito fazer do Jardim Botânico não só um belíssimo parque mas novamente um centro de pesquisas científicas, um centro educacional, um
mostruário de plantas nativas e exóticas, devidamente estudadas e catalogadas.
«Em 1945 a área do parque compreendia mais de 54 hectares, ou
sejam 546.343m 2 , sendo 135.182m 2 de matas naturais e o restante cultivado.» Nesses últimos anos o paisagista Roberto Burle Marx tem se
dedicado à defesa do que resta do Jardim Botânico, delimitado em 1945.
Visivelmente inspirado nos anseios de Pacheco Leão e, doutro modo,
impossibilitado de corrigir as amputações praticadas de 1922 em diante,
Roberto Burle Marx projetou em 1963 uma ilha a ser construída no
centro da Lagoa, constituída de ripado e cultivo para as espécies de
plantas marginais lacustres e aquáticas da flora brasileira, juntamente
com instalações laboratoriais para estudo e controle da ictiología. ( 80 )
Do mesmo modo que como ocorreu a Pacheco Leão, todo e qualquer
idealista da preservação da natureza e de seu tratamento lógico e científico assumirá idêntico risco.
A destruição da paisagem nativa, a diminuição da amplitude original,
a mutilação, as deformidades ancilares, o vandalismo estatal contra o seu
próprio patrimônio genuíno são contingências e características da patologia social, mais exacerbadas nas cidades de maior densidade demográfica e de escassa rentabilidade industrial e agrícola. O Estado da Guanabara enquanto permanecer como remanescência topográfica de um ex-
tinto Distrito Federal, agora entregue à pròpria sorte e sob risco de
resvalar para autofagia, não terá opção de tratamento de sua natureza
fisica primitiva senão a de saturá-la de construções.
Onde não se semeia milho ou trigo, cana ou café, onde não se
pastoreia e quando não se tem os ponteiros da civilização bem ajustados
com a seiva da cultura humanística e o pulso da tecnologia, então tem
que se plantar mesmo edifícios de apartamentos. (31, 32, 33, 34 )
* * * *
Nunca faltarão as justificações melifluas para os aterros, mutilações.
uso impróprio e sobretudo para o sacrifício dos atributos culturais em
favor de um progresso mal digerido.
Em todo o mundo ocorre a mesma coisa. Poucos percebem que a
civilização industrial agoniza e, em seu lugar, vem vindo a civilização
tecnológica capaz de salvar o homem, ou de simplesmente exterminá-lo.
Chega de embolias, de esclerose, de congestão, de oclusões, de necrose e de amputações, que se sucedem e se admitem, em face da lògica
do absurdo de que uma desgraça traz outra.
Progresso mal digerido e cultura mal assimilada têm trazido para a
Lagoa exemplos de edificações que são mais «modernosas» que modernas, ou mais «caluniais» que coloniais.
A mortandade periódica de peixes e, correlatamente, a destruição do
equilíbrio ecológico, não deve ser equacionado como um mistério da natureza, mas simplesmente como um desproduto da civilização urbana cujo
nome é poluição. (3S)
Para tal ocorrência, não se requer fábricas de tóxicos, indústrias
químicas nos arredores. Basta que a cirvunvizinhança seja área consumidora de tôda a prodigiosa escala dos produtos químicos propostos para
o bem-estar cotidiano da vida doméstica: detergentes, removedores, aromatizantes, inseticidas, lubrificantes, desinfetantes, resíduos de combustíveis, enfim, a quase infinita lista dos «sprays», plásticos e enlatados.
Quem dá atenção para este terrível e hodierno capítulo da ecologia
há-de perceber que a poluição se processa com mais franquia nas áreas
consumidoras que nas de fabrico.
Isto é fácil de se compreender, pois nas últimas as medidas de precaução e contenção são mais conscientizadas.
Por este motivo, de veracidade científica, tornam-se suspeitas e temerárias as propostas de se instalar em novas subtrações da área original,
isto é, nos aterros em prosseguimento, unidades de grande consumo dos
produtos industriais propostos para o bem-estar de todos e felicidade geral
da nação, entretanto identificados à linha dos desprodutos.
Supermercados, centros comerciais, áreas de parqueamento e abastecimento, postos de lubrificação, mafuás modernizados com maquinaria
de «Coney Island», «drive-in», saturação de arranha-céus onde se erradicou a favela e até a ameaça de um heli-pôrto — (helipôrto quer dizer
estação para pouso e decolagem de helicópteros provida de meios de
abastecimento, lubrificação, reparos e mais algumas outras implicações
da poluição) — são tôdas ameaças e propostas de risco para a nossa
desavisada e inocente Lagoa.
Em trabalho anterior, ao qual intitulei «Preservação da Natureza e
Integração Social», criticamos a escolha das margens da Lagoa Rodrigo
de Freitas para implanto desse poderoso equipamento da nova sociedade
de consumo. Indicamos as extensas margens das novas e belas estradas
que saem do Rio como áreas mais compatíveis aos empreendimentos giqantescos do complexo industrial-comercial. (3Ú)
A sociedade de consumo se caracteriza pela particularidade de empregar o tempo do lazer, condição do homo ludus, — que antes era dedicado à reza, à leitura, às prendas, aos jogos e ao devaneio — nas idas
aos mostruários (vitrines, mercados, magazines, etc.) para exercicio de
sua capacidade aquisitiva, ou na atitude passiva, sedentária de submissão
à televisão que é o instrumento motivador do interesse de consumo.
Recuso-me a tratar desses assuntos em termos de protesto romântico,
de apelo lírico para preservação do que é belo, certo e puro porque foi
feito pela mão do Criador e em tempos idos foi usado com respeito pela
mão do homem.
Continuo sendo o patologista que fui em minha carreira médica, agora
capaz de entender a erradicação de uma favela como meio de se curar
uma úlcera, mas também habilitado a reconhecer nas propostas de construções saturadas e fontes de desprodutos, não uma cura, e sim o desenvolvimento de uma neoplasia.
O desenvolvimento histórico do progresso urbano atinente à Lagoa
e sua adjacência, considerado na faixa de um século evidencia que a carga
de erros se condensa mais nos nossos dias que no passado.
Tentarei agora um resumo cronológico e sinóptico dos eventos marcantes:
1868 — ¡Inauguração da linha de bonde de tração animal entre a
Rua do Ouvidor e o Jardim Botânico da Lagoa.
1884 — Inauguração da linha férrea para o Corcovado, deslumbrando a vista aérea da Lagoa.
1892 — (regime republicano) — eletrificação da linha de bondes
do Largo do Machado ao Jardim Botânico, de investimento
inglês, denominada originalmente — «Botanical Garden».
1903 — Presidência de Rodrigues Alves de grande caráter progressista. Prefeito Pereira Passos, sanitarismo de Osvaldo
Cruz e direção de obras do Engenheiro Paulo Frontín.
1906 — Instalação dos carris urbanos da Light and Power e chegada dos primeiros automóveis.
1909 — 1910 •— Serzedelo Correia — Saneamento de Copacabana.
1910 — Conde Paulo Frontín — Alargamento da Avenida Atlântica e prosseguimento da Avenida Meridional (IpanemaLeblon) .
1922 — Prefeito Carlos Sampaio — Conclusão da Avenida Niemeyer. Remodelação da Lagoa Rodrigo de Freitas. Início
do desmonte do Morro do Castelo.
1922 — 1926 — Prefeito Alaor Prata. Construção do canal de
drenagem e contrôle do nível da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Idem, do canal Leblon-Gávea.
1926 — 1930 — Plano Agache — Capítulo Elementos funcionais
do Plano Diretor — Fig. 29, texto p. 199.
1926 — 1930 — Obras do Engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito na Lagoa. Correção das margens. Injeção
de água do mar, por comportas, e exclusão das águas
doces.
Desvio do esgoto de águas pluviais na direção N - O , abertura do canal da Avenida Visconde de Albuquerque entre
os rochedos da Ponta do Vidigal e da Avenida Niemeyer. ( 37 )
Propostas do Plano Agache:
a) conclusão do sistema viário do contorno da Lagoa.
b) sistema de esgoto Ipanema-Leblon.
c) desobstrução e limpeza final do fundo da Lagoa.
d) aterro da parte denominada Praia Funda mediante desmonte,
em trincheira, (fenda) entre o morro Canta Galo e dos Cabritos.
e) saneamento, maior profundidade, eliminação dos bancos de
areia, retificação das margens, maior circulação de água salgada, e vias
de abertura a outros bairros.
f) construção de Centro Comercial, Cidade Jardim, parque e pòrto
para esportes náuticos. (38)
Ainda não tive tempo suficiente de meditar sobre a história da Lagoa,
de 1930 aos dias atuais.
Tenho em preparo um pequeno estudo sobre a Favela da Catacumba
visando o aspecto de exemplo de comunidade consistente com profunda
diversificação religiosa e, mais destacadamente, com uma das construções
mais curiosas do que considero, na temática de meus estudos, o comportamento arcaico brasileiro.
Refiro-me àquela já demolida Assembléia de Deus, de caracteres
estilísticos ausentes dos figurinos estrangeiros e por isso dificil de se
diagnosticar. Talvez menos difícil para os que dela se lembrem, agora
quando não mais existe, como se fora uma pintura de Alfredo Volpi.
Surpreendo-me no risco de parecer romântico. Receio o exemplo de Monsenhor Pizarro, cronista amoroso da Lagoa, assim como se
vê em sua descrição, de 1815: «Farta de belíssimas e puras águas, de
que se formam o grande rio da Cabeça e outros menores, cujos despejos
recolhe a notável e piscosa lagoa, é seu território repartido em chácaras,
sítios e fazendas cultivadas de café, ananazes, diferentes árvores de espinho e produtivas de outras frutas, tôdas saborosíssimas, além de legumes
vários. Junto à Casa, ou Fábrica de Pólvora, se fundou um jardim, onde
felizmente nutrem as árvores e sementes exóticas». ( 39 )
Mas aquele cronista lírico da Lagoa, fluminense nascido em 1753,
conselheiro de Dom João VI, arcipreste da Real Capela, deputado da
mesa de consciência e ordens, procurador geral de três ordens militares,
de tanto amar as belezas de sua terra, teve um merecido fim. «Em 14
de maio de 1830, quando dava um passeio no jardim da Lagoa Rodrigo
de Freitas, faleceu de apoplexia, com 77 anos de idade».
Esta é a informação de Rubens Borba de Moraes, prefaciador e
anotador de suas Memórias Históricas do Rio de Janeiro.
Dr. José Vieira Fazenda, outro cronista apaixonado desta cidade,
e que também era médico, completa a informação: «Monsenhor Pizarro
tendo ido passear no Jardim Botânico, depois de ter jantado, comeu a
fruta carambola; isso perturbou-lhe a digestão. Morreu fulminado por
um ataque de apoplexia cerebral, em uma das ruas do Jardim da Lagoa».
N O T A S E R E F E R Ê N C I A S BIBLIOGRÁFICAS
1 )
v «Cidade do Rh de Janeiro — Extensão — Remodelação •— Embelezamento
— Alfred Agache, E. de Groer, W. Palanchon, A Duffieux — p. 199, cap. Ill —
E d . Foyer Brésilien — Paris, 1930.
2) A. J. Melo Morais — «Corografia Histórica, Genealógica e Política
pèrio do Brasil-» — 1858, 1863 — 5 vol. — «Crônica Geral e Minuciosa do
do Brasi/», Rio — 1879 (v. referida citação em «O Rio de Janeiro — sua
monumentos e homens notáveis* usos e curiosidades-», de Moreira de Azevedo,
3' ed. 1969, anotada por Elisio de Oliveira Belchior.
do ImImpério
historia,
1' vol.,
3) Elisio de Oliveira Belchior — «Conquistadores e Povoadores do Rio de Jane-ro», 1965, p. 438.
4)
José Vieira Fazenda — «Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro-», Rev.
Inst. Hist. Geog Bras. 140, 1921, ps. 341 e seguintes.
5) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — «Memórias Históricas do Rio de
Janeiro», INL, Rio, 1945, 1» vol., nota 6 3 .
6) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit. cap. Il — «Da Instituição
da Prelazia, desde o ano 1577».
7)
José Vieira Fazenda — op. cit., p. 342.
8) Frei Agostinho de Santa Maria — «Santuário Mariano e História das Imagens
Mitagrosas de Nossa Senhora», Tomo X — Lisboa, 1722-1723 — (exemplar existente
no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro) .
9) Teodoro Sampaio — «O Tupi na Geografia Nacional», 4ª ed.. Câmara Municipal de Salvador — 1955, anotada por Frederico G. Edelweiss, p. 277.
10) Gastão Cruls — «Aparência do Rio de Janeiro'», 2' ed , José Olimpio Editora, Rio, 1952, 2' vol., p. 504 — cap. «As Lagoas».
O autor menciona as diversas lagoas existentes no Rio antigo, na área urbana
guanabarina: a de Botafogo, a da Carioca, a de Sto. Antonio da Pavuna, a do
Boqueirão, a do Polé, a do Desterro e a da Sentinela, tôdas desaparecidas por sucessivos aterros resultantes do desenvolvimento urbano. Gastão Cruls conclui: «De
tudo isso, nos restam quatro lagoas, tôdas situadas na zona Sul da cidade: a Lagoa
Rodrigo de Freitas, na Gávea e as de Jacarepaguá, Camorim e Marapendi, em Jacarepaguá. A Lagoa Rodrigo de Freitas, hoje urbanizada e com belas avenidas ao
derredor, foi primitivamente conhecida por Lagoa de Sacopenapã, Lagoa de Sebastião
Varela e Lagoa de Diogo do Amorim Soares. ( . . . ) Quanto às outras três lagoas,
pertencem à zona rural».
Sob critério geológico não se pode incluir a Lagoa de Rodrigo de Freitas entre
as do primeiro grupo de dentro da barra da Guanabara. Ela faz parte do conjunto
de lagoas do litoral oceânico Sul, da formação das restingas entre os maciços da Tijuca,
Gávea e Guaratiba.
No capítulo Copacabana (p. 432) o citado autor comenta:
«Nos primórdios da cidade, a designação Sacopenapã, depois mais restrita
à atual Lagoa Rodrigo de Freitas e arredores, abrangia a Praia de Fora, hoje
Ipanema, com que se comunicava a mesma lagoa».
11)
José Vieira Fazenda — op. cit., p. 344.
12)
Moreira Azevedo — op. cit, p. 566, nota X X I .
13) Hélio Viana — «Manuscritos
Jornal do Comércio, Rio, 12-12-1969:
da
Biblioteca do
Imperador»,
Folhetim
do
Nº 16 — Carta, em italiano, datada de Turim, 9 de setembro de 1792, de Serravalle, dirigida ao Cavaleiro Napione, remetendo-lhe, conforme lista anexa, em pacote
ã parte, seis amostras de diversos minerais.
O destinatário, Carlos Antônio Napion, em 1807 era Brigadeiro do Exército português, vindo para o Brasil com o Principe-Regente D, João. Aqui chegou a Marechal-de-Campo e Tenente-General, tendo sido Inspetor-Geral de Artilharia, membro
do Conselho Supremo Militar, Conselheiro de Guerra. Foi incumbido da criação e
inspeção da Fábrica Real de Pólvora, no Rio de Janeiro instalado próximo à Lagoa
Rodrigo de Freitas. Aqui faleceu em 1814.
(Cf. Laurênio Lago — Brigadeiros e
Generais de D. João VI e D. Pedro I no Brasil — Dados Biográficos — 1808-1831,
Rio, 1938, pag. 2 1 ) .
14) General Francisco de Paula e Azevedo Ponde — «Tenente-General Carlos
Antonio Napkm — Patrono do Quadro de Material Bélico», Rev. Militar Brasileira —
A n o L1V — nº> 1 — 1968.
Monografia dedicada ao estudo da personalidade e dos feitos militares do fundador
e primeiro diretor da Fábrica de Pólvora do Engenho de Nossa Senhora da Conceição
da Lagoa de Rodrigo de Freitas. Deste estudo ressaltam-se as informações do nome
original, procedência, formação, atividades pregressas e realizações no Brasil. Cario
Antonio Gerolano Maria GaVcanni Napione Di Coconato (Turim, Itália, 1957
Rio
de Janeiro, 1814), irmão de Giovanni Francesco Napione, conde e ministro de finanças
de Turim. Serviu no Exército Sardo especializando-se em- mineralogia e química,
professor e autor de compêndio dessas matérias para o curso dos Oficiais do Laboratório Metalúrgico do Arsenal de Turim (1786). Foi diretor do Laboratório Químico
Metalúrgico e do Museu Mineralògico e membro do Real Conselho de Minas. Contratado pelo Ministro Plenipotenciario em Turim, Dom Rodrigo de Souza Coutinho,
«para reorganizar o Exército e os Arsenais do Reino de Portugal», no posto de T e nente-Coronel em 1800; nomeado em 1802 para a direção das Fábricas de Refino do
Salitre e da Pólvora e no ano seguinte Vogai na Inspetoria de Artilharia.
Integrou
a comitiva de 10.000 pessoas da transladação da Córte de D. João para o Rio de
Janeiro onde foi logo promovido ão pósto de Marechal de Campo, galgando em 1810
o mais elevado pósto no Brasil, de Tenente-General.
Fundador e diretor da «Real
Fábrica de Pólvora da Lagoa de Rodrigo de Freitas», em 13 de maio de 1808. Presidente da Junta Militar encarregada de dirigir o ensino da recém-criada Academia Real
Militar, em 1811. Por sua excepcional capacidade administrativa, como engenheiro,
químico, professor e militar, e ainda considerando-se sua numerosa obra escrita de
mineralogista desde 1784, Napion pode ser reconhecido um dos mais ilustres fatores
de civilização trazidos por D. João ao Brasil. Faleceu em 27-VI-1814 e foi sepultado
no Convento de Santo Antônio do Rio de J a n e i r o . O Decreto n° 59.363, de
12-8-1966 o instituiu como Patrono do Quadro de Material Bélico, em decorrência
do estudo biográfico que lhe dedicou Francisco de Paula e Azevedo Ponde.
15)
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit, vol. VII, p. 108.
16)
id. ib., vol. VII, p. 9 2 .
17)
Balthazar da Silva Lisboa — o p . cit., vol., I, p. 166.
18)
id. ib., vol. I, p. 197.
19) José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. cit, cap. VIII, vol. VII,
pp. 101-102.
20)
id. ib., vol. VII, p. 267.
21)
José Vieira Fazenda — op. cit, vol. I, pp. 42-43.
22) v. Gastão Cruls — o p . cit., p. 606: «Por esse tempo (1809-1821), no Horto
Real, além da cultura do chá se fazia bons chapéus do Chile, com as folhas da bombonaça, Cadudovica palmata, também aclimada entre nós e reproduzida abundantemente.»
23)
Balthazar da Silva Lisboa — op. cit., Tomo VII, p. 189.
24) Sacramento B!a|ke — «Dicionário Bibliográfico Brasileiro», 5' vol., ed. Cons.
Fed. Cultura, 1970, p. 203.
25)
id. ib., 2 ' vol., p. 143.
26)
id. ib., 3 ' vol., p. 359.
27) Antonio Pacheco Leão — nasceu no Rio de Janeiro em 11 de abril de 1872.
Formou-se em Medicina em 1896. Em 1900 foi nomeado Delegado de Saúde e
depois foi designado pelo Dr. Oswaldo Cruz diretor da Policia Sanitària para fazer
parte do Serviço dos focos de febre amarela, como Inspetor do Serviço de Profilaxia
da Febre Amarela. Em 1911 foi nomeado pelo Presidente Hermes da Fonseca para
exercer, em comissão, o lugar de Diretor Geral da Saúde Pública. Em 1922 foi
feito Membro do Conselho Superior da Sociedade Nacional de Agricultura.
(Nessa
ocasião esteve no Amazonas com Carlos Chagas e lá se interessou muito pela
flora brasileira) . Em 1914 o Presidente da República nomeia Pacheco Leão para
exercer o cargo de Diretor e Chefe da Seção Botânica do Jardim Botânico. Em 1916
êle foi feito sócio efetivo da Sociedade Brasileira de Ciências. Em 1925 o então
Presidente, Afonso Pena, nomeou-o Catedrático de Biologia Geral e Parasitologia da
Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro (cargo que êle exercia há
muitos anos como professor substituto) — e também nomeou-o Vice-Diretor da referida
Faculdade (14-4-1925). Em 1930 (25-10), Pacheco Leão pede exoneração do cargo
de vice-diretor, Pacheco Leão foi diretor do Jardim Botânico desde 12 de novembro
de 1914 até a sua morte em 21 de julho de 1931.
Nota: informações biográficas do Professor Antonio Pacheco Leão organizadas
e cedidas por cortesia de Rosalina Leão.
28)
Sobre a história da construção do hipódromo do Jóquei Clube, ver:
a)
Villela dos
Rio, 1922.
Santos — «História
do
Jóquei
Clube» — (1868-1922) —
b)
Mario de Azevedo Ribeiro — «História da Construção do Hipódromo
Brasileiro», (1920-1926), ed. particular do Jóquei Clube, Rio.
c) Carlos Sampaio — «A Lagoa Rodrigo de Freitas», (impresso em Paris,
24-7-1922, quando prefeito do Distrito Federal) .
d) Regnaldo Lloyd, L. T. Delaney, Joaquim Eulálio e outros — «Impressões do Brasil no SécuIo Vinte», Londres, 1913, pp. 1.079, ver cap.
«sport», pp. 161-166, (precioso reg'stro histórico do furf no Brasil, de
1849 a 1913).
29) Clarival do Prado Valladares — «O Rio de Janeiro da Belle Epoque» in
«A Cigarra», Rio, março 1964, n" 3.
30) Clarival do Prado Valladares — «uma Ilha para a Lagoa», in «A Cigarra»,
junho 1963. nº 6.
31) Walter Gropius — «Apoio en Ia Democracia», Monte Avila, Editores, Caracas — Venezuela, 1968.
32) Peter Blaíke — «God's Own Junkyard», (The
planned
deterioration of
America's landscape) —• Holt, Rinehart and Winston — N. York — 1964.
33) Roberto Burle Marx — «Jardim e Ecologìa», Rev. Brasileira de Cultura,
C F C — M E C — n ' 1, 1969.
34) Roberto Burle Marx — «Paisagismo e problemas urbanos».
— M E C — Rio, Ano 4, nº 32 — 1970.
Rev. Cultura
35) v. Berta Chnaiderman Leitchic — «O Problema dá Lagoa
Rodrigo
de
Fre.tas», (relatório apresentado ao Secretano Geral de Viação e Obras da Guanabara) — pub. na Rev. Municipal de Engenharia — 1954, n° 4, Rio.
36) Clarival do Prado Valladares — «Preservação da Paisagem e Integração
Social», apresentado no debate «Defesa da Paisagem», IAB — Clube de Engenharia,
Rio de Janeiro, set. 1970 (organizado pelo arquiteto Jorge Moreira Machado) .
37)
Alfred Agache — op. cit.
38)
id. ib.
39)
p. 238.
40)
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo — op. clt., Livro V
cap. Ill,
v. Gastão Cruls — op. cit., pp. 605-608, textos das legendas
XXIII — «A
Vitória-régia num dos lagos do Jardim Botánico e
XXVII — «Gávea, Ipanema e Leblon,
41) J. Fernando Carneiro —
Agir Editora, Rio, 1947.
vistos do Corcovado».
«Catolicismo — Revolução e Reação»
—
Liv.
V. cap. «Guanabara» pp. 103-106. . .. «será preciso também defendermos a lagoa
Rodrigo de Freitas. Está desaparecendo a lagoa (1947) diante de cujo cenário se
extasiava aquele canadense que tanto amou a nossa terra e que foi autor de um
notável trabalho, de uma obra básica sobre geologia e geografia física do Brasil:
Charles Frederic H a r t » .
Fernando Carneiro temendo naquela data o que ocorreria à lagoa, lembra o vaticinio amargo de Machado de Ass's, no fim do século passado, através da boca de
Aires em Esaù e Jacob, a propòsito da enseada do Botafogo: . .. «A enseado nao
difere de sì. Talvez os homens venham, algum dia a atulhá-la de terra e pedras
para levantar casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a
corridas de cavalo. T u d o é possível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade,
barão, é que morremos antes.»
42) J. Fernando Carneiro — «Conversa Amarga» — Org. Simões Editora, Rio,
1958, pp. 51-63 — cap. «A Cidade que foi maravilhosa».
Curioso histórico das tentativas de administradores da Guanabara desejosos de
aterrar a Lagoa Rodrigo de Freitas, desde o Império até a data da crônica de F.
Carneiro publicada no Diário de Noticias de 2-12-1956.
ICONOGRAFIA
(PARCIAL)
DA LAGOA RODRIGO DE FREITAS
(Anotações à margem de catálogos de museus, Bienais de São Paulo, exposições,
indicações bibliográficas e coleções p r i v a d a s ) .
I) Nicolas Antoine Taunay — (Paris 1755-1830) — «A Lagoa Rodrigo de
Freitas» — painel, oval 10x08 — reg. nº 227.
Museu de Arte Assis Chateaubriand,
S. P .
II) C. V. Maranhão — desenho, sobre papel, preto e branco, datado de 27
de setembro de 1812 — Col. Raymundo Castro Maya, Museu Debret, Floresta da
Tijuca, Rio de Janeiro.
III) Conte de Clarac — (1777-1847) — desenho sobre papel, datado de 1814
Col. Raymundo Castro Maya, Museu Debret, Floresta da Tijuca — Rio de
Janeiro.
I V ) «Lagoa Rodrigo de Freitas» — óleo sobre tela, assinado (ilegível), datado
de 1825 — Col. Raymundo Castro Maya, Museu Debret, Floresta da Tijuca, Rio
de Janeiro.
V) Maria Graham (1785-1842) — «Lagoa Rodrigo de Freitas» (desenho) datado de 21 de dezembro de 1821, Col. Museu Britânico, rep. in «Diário de uma viagem
ao Brasil...» Companhia Editora Nac'onal, S. P . , 1956 da edição original inglesa,
Londres — 1824.
Ver Gastão Cruls, «Aparência do Rio de Janeiro», vol. 2, p. 608, 1952.
V I ) Johann Moritz Rugendas (1802-1858) — «Praia Rodrigues» — lit. V. B.
Brodtmann — Col. Gilberto Chateaubriand — Rio de Janeiro (sep. «Viagem Pitoresca através do Brasi!», J. M. Rugendas, Liv. Martins Ed. São Paulo, 1967).
VII) Henri Nicolas Vinet (1817-1876) — «Clareira na [loresfa em Cantagalo»,
óleo sobre tela, assinado, 1865 — Col. Guilherme Guinle, Rio de Janeiro.
V I I I ) Nicolau Facchinetti (1824-1900) — «Lagoa Rodrigo de Freitas»,
sobre tela, 0,25 x 0,66, as«. s/d, adq. em 1885.
óleo
IX) Luiz Graner y Arrufi (1863-1929) — «Nascer do Sol na Lagoa» — óleo
sobre tela, 1,60 x 3,00 c. 1921, v. cat. exposição «Aspecíos do Rio», MNBA, 1965.
X) Oswaldo Gocldi (1895-1961) —• «Lagoa Rodrigo de Freitas» — xilogravura,
0,22x0,28 — col. Gunter Pappe.
XI) Luis Frenandes de Almeida Junior (1894-1970) — «Lagoa Rodrigo de
Freitas» (Dois Irmãos e Pedra da Gávea) 1931, óleo sobre tela, 0,61x1.06 — MNBA,
nº inv. 44.
XII) V. Gilberto Ferrez — «A M u i t o Leal Cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro» — ed. Raymundo Castro Maya, Paris, 1965.
XIII) V. «¡Cidades e Arredores do Rio de Janeiro, A Jóia do Brasil» — Kosmos
Editora, Rio, s . d . _ Fotos 35, 112, 113, de Malta, Rosenfeld e Whitmore.
X I V ) Johann Moritz Rugendas — «Lagoa! das Tretas» — Tretas Lagoon» —
estampa 3/15 — «Viagem Pitoresca através do Brasil», Liv. Martins Ed., Sao Paulo.
1967.
Sem dúvida trata-se de corruptela da Lagoa Rodrigo de Freitas, representada à
margem da Praia Funda em movimentada cena de embarque em botes de travessia
de senhores que chegam em carruagem e montarías e vários escravos de companhia.
X V ) J. M. Rugendas — op. cit., estampa 3/25 — «Plantação de Chá por Chineses». Cena do cultivo de chá no «Jardim das Plantas» (depois Jardim Botanico)
com o trabalho bracai de escravos negros, assistência técnica de chineses, e supervisão patronal de brancos encartolados. Ao fundo, aparece a lagoa emoldurada de
penhascos e ponteada de velas de barcos. No texto, informa Rugendas: «É, principalmente ao Conde de Linhares que se devem as tentativas feitas até agora em prol
da cultura do chá. Há alguns anos fêz êle vir quantidade de mudas, alguns chineses
para tratá-las e formou uma plantação atrás do Corcovado, à beira da Lagoa Rodrigo
de Freitas, perto do Jardim das Plantas. Era de seis mil o número de arbustos em
1825. Plantam-se em fileiras, a três pés de distância uns dos outros, com ótimos
resultados» ( . . . ) «Entretanto afirma-se com certa razão que este chá não tem o
gosto requintado e aromático das espécies de primeira qualidade da China; ao contrário,
tem êle um gosto acre de terra».
Sobre o número de chineses estabelecidos perto da Lagoa
eram cerca de trezentos e na suspeita de Rugendas, baseado em
dores . . . «não se teve, tampouco, muito cuidado na escolha dos
para essa cultura», inexperientes no cultivo do chá, pois muitos
da China logo se fizeram em mascates e cozinheiros...
Rodrigo de Freitas
opinião de conhecechineses importados
daqueles emigrantes
Noutro trecho Rugendas enfatiza a paisagem da lagoa num depoimento que deveria ser considerado pelos atuais aterradores: . . . «Do pé deste rochedo (refere-se
ã Pedra da Gávea) parte um caminho, em muitos lugares dificil, por causa dos
areões, profundos, mas, que compensa tal inconveniente pelos panoramas magníficos
que oferece, de um lado sobre o mar e de outro sobre o Corcovado e a montanha
oposta chamada de Dois Irmãos. Passando perto do Jardim Botânico, esse caminho
conduz da Lagoa Rodrigo de Freitas ao Botafogo, onde as belezas desse pais encantador se desenvolvem com maior variedade ainda», (p. 20, op. c i t . ) .
XVI)
«Pian de la Baie de Rio de Janeiro» — in Viagem Pitoresca e Histórica
ao Brasil* de Jean Baptiste Debret, Liv. Martins Editora, São Paulo, 2* ed.
O mapa indica, em continuação à Ponta do Leme e de «Nossa Senhora de CopaCabana» a «plage Freitas» em tôda a área que corresponde a Ipanema e Leblon. limitada ao Sul pelo «Cap do Irmão» (corruptela de «Dois Irmãos») .
A estampa 54 (terceira da «Suite de Panorama de la Baie de Rio de Janeiro»
tomada do alto do Corcovado) mostra a topografia aérea da lagoa e do canal aberto
para o mar.
CULTURA, TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO
IRMÃO JOSÉ O T Ã O
O DRAMA DE NOSSOS DIAS
O
MUNDO de hoje vive problemas nunca dantes imaginados. Há
uma preocupação pela paz; mas, a turbulência existe em vários
pontos. São os dramas da humanidade.
Sempre tem havido dramas no mundos. Eles não são o privilégio
da época atual. Não vivemos na era da dramagenia. Mas existe um
DRAMA.
O drama de nossos dias é o desnível entre países ricos e
países pobres, entre nações que têm e nações que não têm. Essa gigantesca disparidade «esse insulto atirado à face da humanidade», conforme as palavras de Paulo VI, é o problema mais urgente que enfrenta
o mundo de hoje.
O drama de nossos dias é que os miseráveis do mundo tomam
consciência da disparidade entre sua sorte e a nossa porque o mundo
se unifica sob nossos olhos.
«O mundo — na feliz expressão do
Cardeal Eugênio Sales — é uma casa de vidro», e no dizer de Mc Luhan
«é uma aldeia global»: Tudo é logo conhecido por todos.
Por sua vez dizia o falecido presidente Nehru aludindo ao mesmo
problema: «A fome e a miséria não são novas. O que é novo, na
índia, é a consciência da fome e da miséria».
O drama de nossos dias é que os países ricos são, na grande
maioria, países cristãos e os países pobres, que geralmente não são
cristãos, irão julgar a cristandade de acordo com nossa atitude neste
assunto, atitude que para eles é assunto de vida ou de morte.
«Não é exagero afirmar que um desequilíbrio entre os povos é mais
perigoso do que a guerra fria, porque é guerra permanente, é mais
explosivo que a bomba atômica, mais escandaloso, em certo sentido,
do que a divisão dos cristãos entre si» afirma o cardeal Suenens.
Diante do problema da miséria do terceiro-mundo sob suas diversas
formas, a Igreja tem um imenso papel a desempenhar: o DESPERTAR
DA CONSCIÊNCIA
INTERNACIONAL.
CRISTÃ
PARA O DEVER DA AUTÊNTICA
SOLIDARIEDADE
A Universidade, em geral, e a Universidade Católica, em particular,
é a cátedra perene donde a Igreja, através de seus pensadores, anuncia
o alvorecer desse sentimento internacional. Nessa cátedra precisamos
preparar uma magna-carta da solidariedade internacional, uma nova
teologia adaptada a cada continente e a cada país, uma nova ética do
desenvolvimento, uma nova teologia da tecnologia, «um NÔvo j u s
GENTIUM» de que falou Paulo VI em Genebra, com a finalidade de
«DOMAR OS DIREITOS DOS POVOS FORTES E FAVORECER O DESENVOLVIMENTO
DOS POVOS FRACOS».
Comentando o pronunciamento do Papa, assim se exprime o jurista
Haroldo Valadão: «Esse ideal de um novíssimo Direito Internacional
do Desenvolvimento e. mais ainda da integração, acha-se hoje na crista
da onda do pensamento jurídico e o vimos defendendo desde 1961,
com a socialização do Direito Internacional.» Nota ainda o professor
Valadão que «a América Latina sempre foi pioneira do progresso do
Direito Internacional. E não podemos perder nosso posto agora».
O Concilio Ecumênico Vaticano II faia que está surgindo no mundo
de hoje «um novo humanismo caracterizado pela responsabilidade do
homem perante seus irmãos e a História» (GS, nº 55) .
O Brasil, através da Universidade, não pode omitir-se, mas, deve
estar presente nesta encruzilhada da História. Não pode esquivar-se
ao dever de presença ativa no problema do desenvolvimento integral
e harmonioso do homem, mediante o emprego das técnicas humanas e
do seu poder intelectual em benefício de todos os povos.
1. O DESENVOLVIMENTO
Na encíclica Populorum Progressio encontra-se o pensamento do
Papa concernente ao Desenvolvimento.
«Nos desígnios de Deus — ensina o Pontífice — cada homem
é chamado a desenvolver-se, porque tôda sua vida é crescimento, isto
é, desenvolvimento.»
O desenvolvimento é. em resumo «a passagem de condições menos
humanas para condições mais humanas». O pensamento do Papa é
claro. Mas êle teme que a humanidade não o compreenda suficientemente
e pràticamente. Por isso êle mesmo explicita o conceito de «condições
menos humanas e condições mais humanas», afirmando:
São condições menos humanas:
—
as carências materiais dos que são privados do mínimo vital;
—
as carências morais dos que são mutilados pelo egoísmo;
—
as estruturas opressivas, quer provenham de abusos da posse
ou do poder, da exploração dos trabalhadores ou da injustiça
das transações,
E são condições mais humanas:
—
—
—
—
—
—
—
—
—
a passagem da miséria à posse do necessário;
a vitória sobre os flagelos sociais, pragas, s e c a s . . . ;
a aquisição generalizada da cultura;
a consideração crescente da dignidade de todos os homens;
a orientação para o espírito de pobreza contentando-se com o
crescimento médio;
a cooperação no bem comum:
a vontade de paz e de convivência pacífica com todos,
o reconhecimento pelos homens dos valores supremos e sobretudo de Deus que é a origem de todos eles:
a unidade na caridade que chama todos os homens a viverem
na fraternidade a vida de Deus.
Em carta ao Secretário-Geral da O N U , em 26 de maio de 1966,
Paulo VI volta a conceituar o Desenvolvimento, pontificando: «Desenvolvimento é a promoção harmoniosa do homem em sua INTEGRIDADE
para a satisfação da tríplice fome de sua natureza física, intelectual
e espiritual».
Razão dobrada tinha um pensador ao afirmar que o desenvolvimento
«é a realização do homem em tôda sua dimensão humana e em tôda sua
dimensão divina».
Sem o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens não
haverá desenvolvimento verdadeiro, porque, «enquanto há um escravo,
todos somos escravos», afirma o saudoso Presidente Kennedy.
Mas o desenvolvimento não é um firn pré-fabricado, um traje que
a pessoa enverga de vez. Êle não se faz a partir de fora, mas deve
ter seu ponto de apoio no interior. Êle resulta, necessariamente, não
de pura assistência mas de cooperação. Por isso, no desenvolvimento
é preciso afastar o PATERNALISMO, que é a própria negação do desenvolvimento autêntico. No ponto de partida de qualquer esforço de
auxílio mútuo é preciso gravar esta palavra de Lavelle: «O MAIOR DOM
QUE SE PODE FAZER AOS OUTROS NÃO CONSISTE
NOSSA RIQUEZA MAS EM REVELAR-LHES A SUA» .
EM
COMUNICAR-LHES
«A primeira tarefa dos responsáveis pelo desenvolvimento consiste
em ajudar os povos a se erguerem em seus próprios pés, dando-lhes uma
base para sua auto-expressão como criaturas humanas, proporcionando-lhes condições para a eclosão da inteligência e o despertar da liberdade, levando-os a descobrir a existência de seus semelhantes e a aprender a integrar e a deixar-se integrar, ajudando a comunidade nascente
a ultrapassar o egoísmo, a mobilizar iniciativas e a exigir o respeito
e a cooperação das autoridades» (21.8.62)
A Universidade em geral e Católica em particular, como farol
aceso da Igreja no seio da humanidade, tem sempre procurado acender
no mundo o sentido da evolução social humana e cristã. A meta que
ela pretende atingir é a realização da plenitude do homem, ser livre
e consciente, numa progressiva liberação de mil servidões para que
possa crescer na fecundidade da liberdade fundamental, isto é, na capacidade de libertar-se a si mesmo para doar-se aos demais.
Há hoje no mundo todo uma ânsia generalizada para o desenvolvimento. Os governos procuram unir esforços neste sentido, dependendo o êxito da sua capacidade catalizadora.
A Igreja Católica por sua vez sempre propugnou pela promoção
humana. Aliás, no confronto de tôdas as instituições humanas, técnicas.
humanísticas, sociais, espirituais é aquela que oferece ao homem o ideal
mais elevado, o ideal de alcançar tôdas as possibilidades da TEMPORALIDADE e tôdas as espeianças da ETERNIDADE.
E isto desde sua instituição. Provam-no, à saciedade, o exemplo de Jesus Cristo trabalhando
pessoalmente, curando doentes e dando de comer aos famintos, ordenando aos seus seguidores conquistassem todo o universo, e aspirassem
ao desenvolvimento do próprio Pai celeste: «Sede perfeitos como vosso
Pai celeste é perfeito».
Provam-no os missionários, construtores não só de Igrejas mas
também de hospitais, escolas e universidades, ensinando aos nativos o
aproveitamento dos recursos naturais e protegendo-os contra a cobiça
dos gananciosos.
Em muitas regiões foram mesmo os missionários contados entre os
pioneiros do progresso material e do desenvolvimento cultural.
A História da América Latina é outro comprovante da iniciativa
da Igreja em prol do desenvolvimento humano. Cada país tem longa
enumeração de fatos comprovadores da tese. No Brasil, a SUDENE,
para não evocar senão o último dos inequívocos empreendimentos pela
promoção do homem, a SUDENE nasceu em 1954, em Campina Grande,
por iniciativa do episcopado nordestino.
Embora a finalidade da Igreja seja precipuamente de ordem espiritual, ela não descura da ordem temporal para a qual fornece a visão
global do homem e da humanidade. Assim ela ensina através da Cátedra Universitária que «a natureza humana tem o direito de participar
dos bens da cultura, dos bens materiais e do banquete social» (João
X X I I I , -PACEM IN TERRIS).
Os bispos do Nordeste brasileiro, por sua vez, também ensinam
que «não pode haver desenvolvimento ou promoção onde não se coloca
o homem em primeiro lugar», porque, invocando o Concilio, «a pessoa
humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de tôdas as instituições
sociais» (GS nº 2 5 ) .
Não há, pois, desenvolvimento efetivo, real e seguro sem a promoção humana. O progresso puramente material é apenas uma das
condições ou uma das razões do desenvolvimento pròpriamente dito.
O desenvolvimento é buscado apaixonadamente não só pelos povos
desenvolvidos que querem melhorá-lo e expandi-lo sempre mais, mas
igualmente pelos povos sub-desenvolvidos e pelo chamado terceiro
mundo.
Houve um tempo em que o saber técnico era mais ou menos secreto
por ser monopólio do branco. Hoje os amarelos, os pretos e os índios
o conhecem. Hoje a técnica é patrimônio e está a serviço da humanidade. A tese de Spengler sobre a decadência do Ocidente esboroa-se
como tantas profecias emocionais e míopes diante do fato de as Universidades e as Empresas estarem construindo uma nova era em que
a Ciência e a Tecnologia são, efetivamente, instrumentos de enriquecimento coletivo de poder.
A linguagem de hoje é algo diferente da do passado. A Ciência
e Tecnologia constituem o instrumento fundamental de desenvolvimento
e de poder. A cultura científica, o domínio da tecnologia e da administração científica, como elementos essenciais à aceleração do desenvolvimento, estão sendo implantados em todos os países subdesenvolvidos
como meio de queimar as etapas do atraso, procurando reduzir o tão
discutido descompasso de ciência e de técnica. Para tanto, tôdas as
nações em desenvolvimento enviam estudantes para aprender no estrangeiro, atraem professores, especialistas e técnicos de nível superior
para incorporá-los à Universidade e à Empresa. Num esforço mais
agressivo ainda, atraem e apoiam firmas estrangeiras para que contribuam com a tecnologia avançada para o estímulo das empresas nacionais.
Em matéria de incorporação de cultura e de tecnologia não há mais
lugar para o jacobinismo que conduziria a sociedade a fechar-se, a esterilizar-se e a se estagnar.
Nenhum país em desenvolvimento e sobretudo subdesenvolvido
reduzirá o fosso científico e tecnológico que o separa dos povos desenvolvidos se não se apropriar das lições da metodologia e das conquistas por eles realizadas.
Essa é pròpriamente uma tarefa da Universidade e dos Institutos
de Pesquisa: deflagar a batalha pelo desenvolvimento.
Foi assim que procedeu a Universidade no passado e mesmo até
os nossos dias? — N ã o . Todos o sabem e todos o sentem. Decorre
dai a reestruturação universitária em curso no mundo inteiro.
A Universidade passou por uma crise. N ã o só a nossa. O fato
é geral no mundo. Mas se em tôda crise há um aspecto de morte de
estruturas arcaizadas e de símbolos obsoletos nela há também um
aspecto de ressurreição e de vida. A afirmação vem confirmada pelo
Relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho da Reforma Universitária Brasileira que assim se exprime traçando o perfil da Universidade
tradicional:
«A Universidade se expandiu, mas em seu cerne permanece a
mesma estrutura anacrônica a entravar o processo de desenvolvimento
e os germes de inovação. Se, apesar disso, se fêz pesquisa científica
em certos setores, e se a Universidade demonstrou alguma capacidade
criadora em determinados ramos da tecnologia, podemos dizer que o
sistema, como um todo, não está aparelhado para cultivar a investigação
científica e tecnológica. Por outro lado, mantendo a rigidez de seus
quadros e as formas acadêmicas tradicionais, faltou-lhe a flexibilidade
necessária para oferecer produto universitário amplamente diversificado
e capaz de satisfazer às solicitações de um mercado de trabalho que se
diferencia cada vez mais.
«A Universidade em seu conjunto, revelou-se despreparada para
acompanhar o extraordinário progresso da ciência moderna, inadequada
para criar o know-how indispensável à expansão e à indústria nacional
e, enfim desajustada sócio-culturalmente porque não se identificou ao
tempo social da mudança que caracteriza a realidade brasileira, poderia
dizer, a realidade universal».
O mesmo Grupo de Trabalho, tentando gizar o perfil da Universidade de hoje, assim a caracteriza: «A Universidade que se pretende
reformar tem que ser bàsicamente um instrumento autêntico de acumulação de cultura, um centro de formação de cientistas, técnicos, artistas,
filósofos. Deve ser UMA FRONTEIRA QUE AVANÇA sobre o desconhecido,
um núcleo de criação, de vibração intelectual, um cento de desenvolvimento de conhecimentos, um núcleo de criação imaginativa e de cultura.
Na palavra de W H I T E H E A D :
«A UNIVERSIDADE É IMAGINATIVA OU NÃO
É NADA, PELO MENOS NADA DE ÚTIL».. («A Educação que nos convém»).
A Universidade renovada que buscamos, só o será se exercer em
quantidade e qualidade a sua complexa missão.
A Universidade será instrumento eficiente de educação, irradiação
da cultura e do desenvolvimento se possuir elevado grau de produtividade, quer em termos quantitativos quer qualitativos. A Universidade
será tanto mais útil ao meio social a que serve quanto maior fôr o número
de jovens que educa, limitando-se esse número pela capacidade do
mercado e pelas exigências de especialização.
Os dados estatísticos revelam que o Brasil possui 1 (um) acadêmico sobre 300 habitantes. Na França, tal situação é de um para 85;
na Finlândia, de 1 para 100 e nos Estadtos Unidos, 1 para 4 5 .
Na América Latina, em geral, a proporção não é superior a 1
acadêmico para 100 habitantes.
O número reduzido de universitários da América Latina explica o
descompasso quantitativo e qualitativo de que se ressente o continente
tanto no atendimento das necessidades populacionais quanto no da pesquisa científica e tecnológica.
Pela constatação universal, creio que o desenvolvimento de um país
está em estreita relação com a quantidade e a qualidade de universitários
e de pesquisadores científicos e tecnológicos que possui. Sabe-se que os
países, cuja média de universitários ultrapassam os 10% da população
etária universitária, estão classificados entre os DESENVOLVIDOS. E
aqueles, cuja média universitária não alcance essa percenatgem, gravitam ainda na órbita dos SUBDESENVOLVIDOS.
Diante dessa constatação, os responsáveis pelo desenvolvimento dos
povos podem antever a chave do desenvolvimento. Basta que Governos,
Empresas e Universidades se unam para que o respectivo País ultrapasse o percentual universitário indispensável para ingressar na área
dos Países desenvolvidos.
São imprevisíveis os avanços do mundo tecnológico nas próximas
décadas. Em seu livro «Perfil do Futuro» Antbur C. Clarke apresenta
um quadro lisongeiro daquilo que o porvir reserva à humanidade.
Tudo, porém, será fruto do trabalho e do esforço da humanidade
solidária.
2. A TECNOLOGIA
A tecnologia é um dos instrumentos do homem para acelerar o desenvolvimento. Mas todo instrumento é manejado ou guiado pelo espírito. Por isso, a tecnologia é uma espécie de encarnação do espírito
humano para manipular as forças do mundo e dirigi-las para as metas,
também intencionalizadas pelo espírito. Daí poder dizer-se que tôda
tecnologia nova tende a criar novo ambiente. Desse ponto de vista o
mundo é uma recriação permanente pois que as novas técnicas são de
todos os momentos. A invenção da escrita e a utilização do papiro
criaram o ambiente social dentro do qual pensamos. O estribo e a roda
criaram ambientes de grande importância em seu tempo de dominação.
Os ambientes tecnológicos não são meros recipientes passivos que contêm
dentro de si o homem, mas processos ativos que remodelam os povos e
também as outras tecnologias, por uma reação em cadeia. Em nosso
tempo, o brusco salto da tecnologia mecânica para a dos circuitos
elétricos representa um dos maiores avanços de todos os tempos. A
imprensa criou um novo ambiente totalmente inesperado, o grande público, o público planetário.
Os exemplos de tecnologias — que poderíamos multiplicar ao infinito — provocam reações em cadeia em todos os sentidos e em velocidade cada vez maior entre as diversas ciências e sistemas sócio-econômicos e até as mais profundas reações de cada indivíduo, originando
uma verdadeira MUTAÇÃO HUMANA apenas comparável às mutações de
ordem biológica sofridas pelas diversas espécies no decorrer de sua
evolução multi-milenar.
O Concilio Ecumênico Vaticano II deu-se conta da mutação real
que está atravessando o mundo quando afirma: «O espírito científico
produz um sistema cultural e MODOS DE PENSAMENTO diferentes dos
anteriores. A TÉCNICA progride a ponto de TRANSFORMAR a face da
terra e tenta conquistar o espaço interplanetário. A inteligência humana dilata de certa maneira o seu domínio também sobre o TEMPO.
Sobre o passado pelo conhecimento histórico. Sobre o futuro pela
prospectiva e Planificação. . . (GS, n? 5) .
«Tôda TECNOLOGIA é como que a extensão do corpo humano ou
de alguma de suas partes», diz M c LUHAN. A evolução das armas,
atômica. O dinheiro é um modo de ESTOCAR trabalho; a roda é extensão dos pés; o telefone, o rádio, a T V , o prolongamento do sistema
nervoso, do pensamento, etc.
Mas a extensão do ser humano, do olho, das mãos ou do espírito,
afeta todo seu complexo psíquico, social, religioso. Tôda invenção é
uma extensão ou um superestímulo a um dos sentidos ou a uma das
faculdades. um exemplo estupendo entre muitos: o desenvolvimento da
palavra escrita possibilita a organização visual da vida, tornando possível ao homem a liberação do INDIVIDUALISMO, da INTROSPECÇÃO com
tôdas suas conseqüências sociais. A palavra ouvida, falada, é envolvente, desperta emoções e atitudes de vida. Liga, de uma forma ou
de outra, os interlocutores e mesmo os solidariza, podendo unificar a
humanidade ou separá-la sempre mais pelas divergências pessoais.
O fato cósmico de hoje é que a humanidade é bombardeada constantemente por novas tecnologias, novas formas de percepção, novas
formas de pensamento, novas formas de ação. Essa mutação humana
nada mais é do que a conquista de um nível de SER provocado por
este fenômeno completamente novo que está nos marcando a todos.
Disso se pode concluir que o processo tecnológico está desencadeado. Êle é cego e irreversível. Onde levará a humanidade?
Apenas uma reforma em profundidade no ser humano, reforma
de tôdas as estruturas mentais, sociais, econômicas, religiosas, poderá
fazer face a esse desafio. O problema que se nos coloca de ora em
diante, tanto para os povos desenvolvidos como para os subdesenvolvidos, é o seguinte: ou se deflagra a REVOLUÇÃO DO HOMEM ou as contradição da dominação continuarão até ficarem intoleráveis.
Ou o
homem readquire o sentido exato e pleno da vida ou as opressões se
tornarão generalizadas. Então duas alternativas serão possíveis em
nosso horizonte: a destruição da espécie por um cataclisma global ou
a divisão da humanidade em duas: a pós-humanidade e a sub-humanidade.
A tecnologia, porém, não é e não pode ser estática. Deve atualizar-se continuamente.
Por isso não basta a multiplicação pura e simples dos universitários
para garantir a entrada e a permanência na área do desenvolvimento
por parte dos países subdesenvolvidos. A entrada pode ser conseguida
através do esforço de todos os responsáveis pelo desenvolvimento. Mas
a permanência no desenvolvimento requer um novo esforço, continuado,
sistemático sempre mais eficaz. É o aspecto novo da revolução da educação que vai pelo mundo. É a idéia da educação permanente. Ela
não significa apenas a criação de cursos de extensão universitária, ou
cursos que o adulto deva continuar a freqüentar na Universidade durante tôda a vida, como discente regular, mas significa também o possibilitar-se ao adulto retomar estudos interrompidos ou prosseguir além
de um curso inicial limitado, ou ainda, poder atualizar-se de contínuo
em cursos universitários, em carreiras de curta duração, em ciclos de
estudos que vêm melhorar sua profissão e sua atuação. Não são cursos
de formação de doutores ou de professores, mas cursos que visam à
ampliação e aprofundamento de uma educação começada. Louis Armand, no livro «Plaidoyer pour l'avenir» chama de RECYCLAGE a
èsse processo de educação contínua que permite aos homens aprenderem,
no decurso de sua carreira não escolar, dez vêzes mais do que aprenderam nos bancos da escola.
A educação permanente, na forma de especialização e de atualização, é condição sine qua non de nao ficar completamente obsoleto
em face das conquistas cientificas e tecnológicas modernas.
O segredo da superioridade norte-americana em relação a todos
os países do mundo, na opinião irrefutável de Servan-Schreiber, autor
do conhecido best-seller «DESAFIO AMERICANO», está precisamente na
organização sistemática da EDUCAÇÃO PERMANENTE e da contínua atualização e renovação da tecnologia.
Para que a tecnologia seja sempre mais eficaz faz-se mister melhorá-la e difundi-la, estendendo seus princípios a um número sempre
maior de interessados.
Cabe aqui uma referência ao problema de acumulação e utilização
da fabulosa massa de informações técnicas e científicas que é publicada
constantemente. Cabe ainda uma referência à cibernética como ciência
dos processos de informação.
Se cada empresa procura manter-se a par dos progressos de seu
setor, a Universidade deve também participar da tarefa de reunir, classificar e ter à mão e divulgar a parte mais essencial da massa de dados
que vem sendo divulgada.
Richard Kaufman, em «Strategies of Atlantic Technological Development», mostra que tal disseminação deve ser considerada tão importante para reduzir o «technological gap» quanto ao avanço da própria
tecnologia.
Segundo estatísticas, editam-se cerca de 30.000 publicações técnicas
e científicas no mundo e èsse número cresce de 1.500 anualmente.
Lembra ainda Kaufman que parte da liderança tecnológica dos
Estados Unidos é motivada pelo seu superior equipamento de manusear
informações. Computadores de todos os níveis de sofisticação são usados
pelas empresas, pelas comunidades universitárias e pelos governos. Lá
existem cérca de 500 computadores de resumo e catalogação de Ciência
e Tecnologia, enquanto que no resto do mundo èsse nùmero deve sêr
de 800 a 1.000. O «Chemical Abstracts Service», da American Chemical Society, é o maior centro de serviço de informação do mundo
relativo a UMA ÚNICA DISCIPLINA, empregando um STAFF permanente
de cérca de 1.000 técnicos, apoiado por 3.000 voluntários na elaboração de resumos e 100 editores de seções especializadas.
Que existe de tudo isto na América Latina?
Que podem ou devem fazer as Universidades para entrar nessa
corrida para o desenvolvimento?
como conseqüência destas considerações compreende-se a necessidade de garantir a tecnologia, viva e atualizada, por um sistema ou
plano de pesquisa.
A Universidade como centro de pesquisa e de inovação tecnológica
é talvez o aspecto que mais diretamente interessa aos empresários.
Aquêles que têm a responsabilidade de planejar, construir e operar os
núcleos de produção de bens e de serviços de uma economia moderna,
sabem que um dos maiores riscos da empresa de certa importância está
na obsolência de sua tecnologia e na inadequadação de sua estrutura
administrativa, tanto quanto na fisionomia de seus balanços financeiros.
A empresa espera que a Universidade lhe ofereça pessoal de nível superior de educação atualizada. Para isto, esta deve estar sempre em
processo de atualização da cultura e da tecnologia. Essa atualização se
fará desde que os mestres compreendam que, na palavra de Fourastié,
«não podemos ensinar hoje o que nos ensinavam ontem, nem podemos
ensinar amanhã o que ensinamos hoje». (Do livro «Quarenta mil
horas»).
A Universidade é o berço da pesquisa científica. Hoje, por razões
diversas, grande parte da tarefa de pesquisa científica e tecnológica
deslocou-se para as empresas e instituições especializadas.
Nos países de maior desenvolvimento econômico as tarefas de pesquisa são realizadas em cooperação pelos governos, pelas universidades
e pelas indústrias ou instituições privadas. As Universidades, no caso
norteamericano, lideram a aplicação de fundos em pesquisa básica
( 4 7 % ) , seguidas das indústrias ( 3 3 % ) , do Governo Federal (13%) e
de outras instituições ( 7 % ) . Os fundos usados nessa pesquisa se originam do Governo Federal ( 5 1 % ) , das indústrias ( 3 0 % ) , das Universidades (13%) e de outras fontes ( 6 % ) . Convém notar que 9 5 % da
pesquisa e desenvolvimento patrocinada pelo Governo Federal é atribuída a cérca de 100 das 2.000 e poucas Universidades americanas.
(A educação que nos convém).
A política de pesquisa nos países subdesenvolvidos difere da dos
desenvolvidos. Enquanto nestes o Estado, as Empresas e a própria
Universidade dispõem de recursos humanos e financeiros próprios, naqueles predomina a incorporação de conhecimentos científicos e tecnológicos ao patrimônio cultural do país pela importação de descobertas
alheias e pela contratação de técnicos estrangeiros sempre dentro das
disponibilidades financeiras. O importante é que esses países periféricos
ou satélites da técnica e da pesquisa incorporem a mais avançada tecnologia dos desenvolvidos nos setores em que estejam preparados para
um desenvolvimento dinâmico.
com este processo de incorporação e assimilação das tecnologias
os Países subdesenvolvidos estão se organizando para aproveitar oi
talentos, os gênios e os recursos materiais, podendo contribuir para o
avanço da ciência e da tecnologia, porque, como lembra Mc Ñamara
«Deus é um democrata na distribuição do talento e do gênio».
Importante na política de pesquisa è que os governos tenham diretriz central lúcida, imaginação sem devaneio e mensagem que seja um
desafio às capacidades técnico-científicas da população.
Cabe, porém, às Universidades manter um clima de permarfínte
insatisfação na escalada do desenvolvimento, procurar e sugerir r ovas
formas de ação e, atrair recursos humanos e materiais para os objetivos
visados.
3. A CULTURA
Na atual conjuntura do mundo a técnica tem dado saltos tão gigantescos em minitempo que, a continuar nesse ritmo, é imprevisível
como será a vida humana individual e social no dia de amanhã. Porque
a técnica rasga caminhos e a humanidade neles embarca «por mares
nunca dantes navegados», na expressão do incomparável vate lusitano.
Aplaudimos as conquistas da técnica porque sabemos que, se guiada
pela bússola da razão e dà fé, as estradas do porvir serão mais humanas
e mais cristãs.
Enquanto perdurarem e forem operantes as bússolas da razão e
da fé não haverá o perigo, antevisto por alguns, de uma extrapolação da técnica sobre a cultura, com verdadeira ameaça ao equilíbrio da
sociedade.
O sociólogo brasileiro Ovidio Cunha faz a mesma ressalva quando escreve: «Os modelos atuais dos chamados grandes países do grupo
nòrdico, que já têm um equilíbrio sócio-econômico apreciável e um
alto padrão <de desenvolvimento tecnológico, levam-nos a supor que
um rápido progresso econômico sem que paralelamente surja o desenvolvimento NÃO MATERIAL (PROGRESSO MORAL) pode conduzir à frustração da civilização conforme se revela dos altos índices de suicídios
nesses países» (Temática Geral, pag. 116).
Em face dessa constatação, encontrável na maioria dos sociólogos
espiritualistas, julgamos necessário que para a era da Tecnologia,
surja simultáneamente com o técnico em materialidade o técnico que
Paulo VI qualifica de TÉCNICO EM HUMANIDADE ( P P nº 1 5 ) . como
o primeiro se apodera da força cósmica e a canaliza para o polimorfo
progresso humano, o segundo se apossa da energia espiritual e crista
existente na Igreja e a encaminha para a fraternidade universal da
justiça e do amor, favorecendo déste modo o aparecimento de «HOMENS
SÁBIOS», amantes da verdade e do bem» (GS, nº 5) .
Homens portadores do facho do «Novo HUMANISMO», O qual se define, em primeiro
lugar, por sua responsabilidade perante os seus irmãos e a História
(GS, nº 5 5 ) .
A função da Universidade em Geral e da Católica em particular
sempre tem sido a de preparar profissionais competentes, pesquisadores
categorizados e técnicos polivalentes. Hoje a Universidade se renova.
Em seus laboratórios, além de atualizar-se para preparar melhor os
próprios profissionais, técnicos e pesquisadores, ela deve criar uma nova
classe de homens, a classe dos HOMENS SÁBIOS e dos TÉCNICOS EM
HUMANIDADE, esses líderes de alto nível, espécies de astros de primeira
grandeza no firmamento da cultura, cujo prestígio pessoal e cuja atuação
no seio da humanidade sejam catalizadores não do espírito de mandar
mas do espírito de servir, homens que substituem o relativo pelo absoluto, a imitação pela criação, o poder pela disponibilidade, o TER MAIS
pelo SER MAIS. O que vem a ser, na essência o triunfo do «HOMEM
NOVO», o homem que faz do amor e da justiça seu pàbulo e sua mensagem.
Do alto dessa nova cátedra da Universidade de hoje o TÉCNICO
se encontra em situação muito mais sublime e elevada
do que qualquer cientista ou técnico profissional. Pois quem vive do
amor do outro vive perenemente em crescimento e, pelo fato mesmo,
aumenta de contínuo sua capacidade tecnicizante. A nosso ver, é o
AMOR a maior força do técnico em humanidade. Por isso, a NDVA
UNIVERSIDADE deve favorecer a multiplicação dos Mestres portadores
cesse EXPLOSIVO UNIFICANTE no seio da humanidade.
EM HUMANIDADE
4. A GUISA DE CONCLUSÃO
Parafraseando célebre poeta que cantava: «Cesse tudo o que a
musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta», diríamos hoje:
Cessem tôdas as formas de guerra, tôdas as estratégias belicosas, porque hoje o mundo inteiro está empenhado na batalha do desenvolvimento com tôdas suas implicações e resultados benéficos para a humanidade.
E o Brasil está vivamente empenhado nesta batalha.
O grande lider militar General Lyra Tavares ao proferir em março
de 1969 a aula inaugural no Instituto Militar de Engenharia do Rio
de Janeiro, assim resumiu a estratégia do desenvolvimento para o caso
brasileiro:
—
—
para diminuir nosso descompasso tecnològico não bastam o
entusiasmo, a competência, o poder criador, o patriotismo;
o problema é, antes de tudo, de ORGANIZAÇÃO PARA O DESENcom base na educação, na pesquisa e na cultura.
Estas tarefas requerem:
VOLVIMENTO,
—
píssoal humano altamente capacitado com cursos de pós-graduacão;
—
funcionamento permanente desses cursos;
—
programação das atividades de pesquisa;
—
atração de técnicos estrangeiros;
—
a convicção de que a inteligência humana constitui o mais
essencial recurso do país.
A batalha para o desenvolvimento demanda ainda o esforço conjugado do Governo, das Empresas e das Universidades, para efeito de
levantamento do mercado de trabalho, de programação e de execução
das tarefas necessárias ao êxito pleno e continuado,
É a renovação e atualização da tecnologia.
como em nosso entender a causa principal do desenvolvimento
é o HOMEM, somos de parecer que no planejamento, com vistas ao
desenvolvimento tecnológico, devem merecer prioridade as áreas que
favorecem a humanização e a personalização, como sejam, a educação
generalizada, o atendimento da saúde extensivo a todos os cidadãos,
a alimentação, a habitação, a convivência social fraterna e as relações
internacionais. Desse alvo a atingir, surgiriam, então, os estabelecimentos universitários que atenderiam prioritàriamente o setor da VALORIZAÇÃO DO HOMEM, tais como as Escolas de Medicina, de Farmácia,
de Odontologia, de Enfermagem, de Higiene, de Agronomia e Veterinária, de Zootecnia, de Ciências Domésticas, de Educação, de Psicologia, de Engenharia em todos os ramos, de Serviço Social, de Administração de Empresas, de Ciências Econômicas. Para essas instituições e suas congêneres de grau médio seriam canalizados recursos
humanos e financeiros em percentagem elevada para o atendimento
global da população. Para as demais áreas, como das Ciências Jurídicas e Políticas e outras, o atendimento se faria dentro das disponibilidades financeiras.
Esta política — verdadeira batalha para o desenvolvimento —,
iria preparando o HOMEM como instrumento principal do desenvolvimento, ao mesmo tempo que suprimiria o luxo e a suntuosidade de
obras materiais adiáveis ( P P , n ? 21), enquanto o HOMEM TODO E TODOS
OS HOMENS
não entrassem na
ESPIRAL DO DESENVOLVIMENTO
individual
e coletivo, plenamente conscientes de que a primeira riqueza das nações
é e será sempre o HOMEM .
como bem observa Alceu de Amoroso Lima em conferência sobre
«Cultura e Técnica» (Documenta 33 — vol. II, jan. 1965):
«Técnica ou tecnologia é, por natureza, especialização. E não há
cultura autêntica sem especialização. Mas, cultura é por natureza generalização. E não há boa especialização sem o preparo por meio das
idéias gerais».
Há, assim, necessidade de ligar, de unir, de entrosar os esforços
da tecnologia e da cultura para levar ao pleno desenvolvimento.
A cultura geral prepara o caminho para a tecnologia e esta, por
sua vez, se bem conduzida, leva ao desenvolvimento.
Cabe, assim, preparar técnicos com boa, com desenvolvida cultura
geral e reciprocamente, cabe também, levar aos que atuam no campo da
cultura geral os princípios e as normas da técnica.
Evitam-se, deste modo, os perigos da idolatria da técnica e os
desvios da vaidade dos humanistas, mantendo-se o equilíbrio na ação
que levará ao desenvolvimento.
Em todo este esforço o HOMEM deve estar sempre presente, tornando-se mesmo a figura central.
A política de valorizar o HOMEM em primeiríssimo lugar é doutrina do Concilio Ecumênico Vaticano II, quando afirma: «A pessoa
humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de TÔDAS AS INSTITUIÇÕES SOCIAIS»
(GS, nº 25) .
O desenvolvimento só é real quando alcança o homem e o leva à
plenitude.
Só com homens plenamente desenvolvidos, plenamente realizados,
plenamente livres, plenamente capacitados a conviverem na sociedade
pluralista, é que podemos pensar em desenvolver também a natureza
material, transformando-a, melhorando-a para torná-la sempre mais útil
ao homem. Só com homens desenvolvidos é que eliminaremos pouco a
pouco as lacunas científicas e tecnológicas, os descompassos de amizade
e de fraternidade, de que padecem não somente os países subdesenvolvidos mas os próprios países desenvolvidos.
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MESTIÇAGEM E TRANSCULTURAÇÃO NO BRASIL
DE ANTES DO SÉCULO XIX
M A N U E L DIÈGUES JÚNIOR
1. OS GRUPOS QUE SE ENCONTRARAM
I RÊS correntes humanas, distintas em suas origens físicas e não menos
- em suas condições culturais, se encontraram no território brasileiro, a partir do momento da descoberta, no século X V I e pelos três
séculos seguintes: o indígena, dono da terra, do estoque mongolòide; o
português, desobridor e colonizador, do estoque caucasóide: e o negroafricano, vindo como escravo, do estoque negroide. Talvez em nenhuma outra terra se tenha verificado encontro tão significativo: representantes dos três grandes estoques humanos, em pleno processo de
contacto fisico e de intercâmbio cultural, na formação do brasileiro.
Nem o indigena, nem o português, nem o negro-africano se podem
considerar puros; vinham todos eles de longo processo de formação,
a que não eram estranhos elementos mais antigos. Diversidade de tipo
físico, às vêzes imperceptível; diversidade de cultura, na variedade de
níveis em que se encontravam, um em re!?.ção aos outros, e cada
um dentro de seu próprio grupo. No ambiente brasileiro realizou-se
este encontro; e abriu margem, o contacto entre os três grupos, para
o processo de formação do homem brasileiro, cuja diversidade já começa a pronunciar-se no século XVI, e irá acentuar-se nos séculos seguintes, para presenciar-se, em nosso século atual, este quadro de pluralismo étnico que o Brasil apresenta.
De indígena as primeiras descrições de seu aspecto físico encontramos em Pero Vaz de Caminha, o cronista da descoberta, cuja carta
escrita ao Rei de Portugal, é de importância muito mais etnográfica
que puramente histórica. Descreve-o Caminha, na pureza de uma caracterização ainda não envolvida por qualquer mistura, ao contrário vendo
o índio antes de qualquer contacto com o europeu: ;<a feição dêles é
serem pardos, à maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes» .. . «os cabelos . . . são corredios» . . . «andavam tosquiados,
de tosquia alta», sendo que, quanto às mulheres em particular «com
cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas»,
(4)
O que Caminha disse a respeito do indígena, foi confirmado, quase
textualmente por Vespucci, (16) em sua carta a Lorenzo de Medicis,
dois anos depois; Vespucci viu os indígenas de côr tirante a vermelha,
cabelos negros e crescidos; os homens com face, lábios, nariz e orelhas
furadas, e as mulheres furavam somente as orelhas. E seguidamente,
outros cronistas, no contacto com o indígena, foram informando sobre
seu aspecto físico, numa quase repetição do que observara Caminha,
cuja carta, todavia, somente foi conhecida em 1817.
De modo que a descrição feita na carta de 1 de maio de 1500
se foi confirmando com os cronistas posteriores, o que testemunha a
acuidade com que Caminha viu os nossos índios. Sua informação, a
de Caminha, constitui, de fato, a primeira de uma série, que se desenrolaria pelos anos afora, neste mesmo século X V I , e nos séculos XVII
e XVIII, nos cronistas e nas narrativas de viajantes, nas cartas ou
informações dos padres da Companhia de Jesus ou nos tratadistas que
procuraram fixar a paisagem brasileira daquelas centúrias. Inclusive
nos cientistas do período holandês, como Marcgrave, por exemplo;
ou em cientistas já brasileiros, formados na Europa. E não só em
relação ao tipo físico, senão ainda em relação às características culturais.
Destas nos dá o mesmo Caminha as primeiras informações: «cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em
um pau entre talos, mui bem atadas e por tal maneira que andam
fortes» .. . «são três traves atadas entre si» (a jangada) . . . «uma
povoação em que havia nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta sua nau capitanea. Eram de madeira,
e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos
esteios; e de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que
dormiam». «Debaixo, para se quentarem, faziam seus fogos».
Talvez em nenhum outro povo se encontre depoimento tão preciso
com relação a seus primitivos habitantes, como no caso do Brasil. E
foi com essa gente, as populações indígenas, classificadas como tupi,
que se verificaram os primeiros contactos do português. Este chegava
em terra deparando com índias nuas, naquela expressão tão característica fixada por Gilberto Freyre: «o europeu saltava em terra escorregando em índia nua» (6) . A atração para a mestiçagem não era
difícil; e logo se fêz.
Do português sabe-se que nos primeiros tempos vinham solteiros, ou, se casados, tinham deixado a mulher em Portugal. Aqui se
deram os abraços, de que resultaria o primeiro produto da mestiçagem
brasileira: o mameluco. Não havia restrições ao uso da mulher indígena, sobretudo pelas próprias condições em que se implantava a nova
sociedade. Predominava, na época, o conceito de que ultra equinoxialem non peccavit; abria-se assim o caminho à mais ampla liberdade de
relações. E isto se deu, sem dúvida. Debalde os padres da Compa-
nhia de Jesus, a partir dos começos da segunda metade do século, tentaram moralizar a sociedade. Tentativas aqui ou ali bem sucedidas,
mas, de modo geral, superadas, ou vencidas, pelo próprio ambiente,
pela situação em que se implantava a nova sociedade. Talvez a exceção tenha sido a capitania de Pernambuco, para onde Duarte Coelho
trouxe, em 1535, sua família, seus parentes, seus colaboradores, estabelecendo desde logo os fundamentos de uma sociedade moralizada,
com estabilidade na própria organização da família.
Por outras partes, e sobretudo por todo o século XVI, a situação
diferia; as relações ilícitas, de que dão notícias as cartas jesuíticas,
abundavam. De Pernambuco mesmo, em carta de 2 de agósto de 1551.
dizia o padre Antônio Pires ( 3 . I I ) que só então os moradores estavam
casando; anteriormente «queriam antes estar amancebados com suas escravas e com outras negras forras». Da mesma época é o depoimento
do padre Nóbrega (3.1) que também registrava: homens casados em
Portugal vivendo, por tôda a costa, grandes pecados; pelo sertão se
espalhavam filhos de cristãos vivendo e criando-se nos costumes do
gentio. Os grandes pecados eram as mancebías; e estes filhos de
cristãos, os mamelucos.
As relações ilícitas marcaram assim as origens das populações brasileiras, que desde cedo se verificaram entre o português e o indígena;
e que igualmente se alongaram às relações entre o português e a negra
africana, trazida nos navios negreiros. De quando começa o comércio
de escravos no Brasil é difícil fixar a data; sabe-se, contudo, que nas
primeiras décadas, já se faia na presença de escravos negros no Brasil;
movimento que, ano a ano, século a sécuIo, vai num crescendo acentuado, graças ao crescimento da economia, à ampliação das atividades
agrícolas e pastoris, às exigências dos trabalhos domésticos. O certo é
que a presença do elemento negro importado como escravo da Africa
vai abrir um outro quadro de mestiçagem, o que se desenrola entre o
português e a negra escrava.
Mas não fica aí a multiplicidade desse relacionamento; negro e
indio, sobretudo em certas zonas de penetração interior, dão origem
a um outro tipo mestiço que irá incluir-se no quadro da mestiçagem
brasileira. É o chamado cafuso ou curiboca. Embora não tenha sido
muito grande o volume dessa mestiçagem, tal como se verificou entre
o português e o índio, e o português e o negro, a verdade é que êle
se manifestou em várias partes do Brasil; e para essa mestiçagem
Roquette Pinto chama a atenção dos estudiosos em um de seus excelentes estudos.
Este relacionamento — o de negro e índio —- nunca foi bem recebido na América Hispânica, segundo a observação de Magnus Morner.
Registra este autor que as autoridades locais lutaram contra qualquer
forma de relação afro-indígena, mesmo o concubinato; e o faziam de
tal forma violenta que, no século XVI, havia ordenações municipais
impondo como castigo a castração do negro encontrado ou suspeito de
relação com índia. E isto, apesar de a legislação règia proibir esta
penalidade. O certo — acrescenta Morner — é que as relações continuaram de todos os modos (7) .
De modo que, em pleno século XVI, se abre no território brasileiro a formação de nossa população através de uma mestiçagem variada e diferenciada, que constitui os alicerces de nossas populações
atuais. O século X V I lança os fundamentos da mestiçagem brasileira;
desde então começam a formar-se e a caracterizar-se os nossos tipos
mestiços, que, no presente, se multiplicam em variados aspectos, decorrentes de novas participações nesse processo, e não apenas da mestiçagem que se desenvolveu, através dos séculos seguintes, entre os próprios descendentes dos primeiros cruzamentos.
2. INFORMAÇÕES SOBRE A MESTIÇAGEM
Desde cedo tornou-se a terra terreno propício para a mestiçagem.
A aventura pelo desconhecido era o que trazia os homens europeus
à terra brasileira nos primeiros anos, ou pelo menos nos trinta primeiros anos: 1500 a 1530. A partir desta última data começa a cuidar-se
da colonização, vindo primeiro Martin Afonso de Souza, e logo depois,
em 1534, se estabelece o sistema de capitanias. Inicia-se a organização
do território. Toda%'ia, a liberdade de costumes continua a existir.
com os S. J. começa a disciplinar-se a sociedade que, ressalvados
casos esporádicos, nos séculos XVII e XVIII, está inteiramente organizada, através de um sistema de patriarcalismo social, que haveria
de marcar a fundo nossa estrutura social, somente começando a modificar-se no século atual.
Em carta do Irmão Pero Correia, de junho de 1554 (3.II) encontra-se a informação de que em São Vicente há um homem —
deve referir-se a João Ramalho — que há 40 anos está na terra e tem
já bisnetos. Este fato é confirmado — refere-se ao assunto Magnus
Morner (7) — pelo fato de o Governador do Brasil haver escrito a
El-Rei dizendo que João Ramalho tinha tantos filhos que não ousava
anotar o número. De outro pioneiro no povoamento, este na Bahia,
Diogo Alvares, o Caramuru, dizia a mesma autoridade que constava
ter pelo menos uns 60 filhos.
De pouco antes, 1549, é a informação do padre Nóbrega (3.1)
em carta ao Mestre Simão: nesta terra há um grande pecado que é
terem os homens quase todos suas Negras por mancebas. Carta de
Leonardo Nunes, de São Vicente, em 20 de junho de 1551 ( 3 . I J ) ,
alude a um filho de Cristão e India, que teria de idade 20 anos. São
algumas das informações que encontramos nas cartas jesuíticas, testemunhando o processo de mestiçagem luso-indígena, já anterior a 1530
ou mais ou menos desta época.
Sao estes depoimentos, os dos padres da Companhia de Jesus,
os mais expressivos como testemunho do que então se verificava, abrindo a caminhada para o longo processo de mestiçagem das populações
brasileiras. Claro que não são únicos; muitos outros poderiam encontrar-se em pesquisa que se faça sobre documentos dos séculos X V I ,
XVII e X V I I I . E, de outra parte, não são apenas com referência ao
elemento indígena; alongam-se tais informações, de modo especial, na
segunda metade do século XVI e nas centúrias seguintes, quanto ao
elemento negro-africano.
Ao findar da primeira metade do século XVI, encontramos informações a respeito do mameluco em Hans Staden, (15) o célebre
viajante alemão que foi prisioneiro dos indígenas. Refere-se êle diretamente aos indígenas, e no capítulo XV de seu livro, registro de sua
vivência entre os índios brasileiros, faia num grupo de mamelucos que,
aliados dos portugueses, combateram contra os tupinambás, que eram
aliados dos franceses. Todavia não os descreve.
É claro que a leigos, não religiosos, o processo de relações entre
portugueses, índios e negros desperta menor atenção; e não atrai tanto
registro. O que não sucede com as cartas dos padres jesuítas, e de
outros religiosos, cuja preocupação é justamente moralizar a terra.
assentando costumes correspondentes aos que se encontravam em
Portugal.
Em carta de 1551, de Pernambuco, o padre Antônio Pires (3.II)
refere-se aos muitos casamentos a serviço de Deus, e alguns foram
com mulheres da terra. É êle mesmo que alude ao trabalho para pôr
em costume o casamento entre escravos na porta da Igreja. De sua
parte, o padre Francisco Pires (3.II) pede virem mulheres de Portugal
para casarem com os homens da terra. O mesmo que já em 1549,
mal chegado ao Brasil, fazia Nôbrega. Este escrevia a El-Rei sobre a
conveniência de mandar mulheres a estas partes, ainda que fossem
erradas, porque casarão tôdas. Logo depois, em 6 de janeiro de 1550,
o mesmo Nôbrega (3.1) insistia na necessidade de que venham para
casar aqui muitas órfãs e quaisquer mulheres ainda que sejam erradas.
Tal migração — a de mulheres órfãs — não seria muito necessária para
Pernambuco, mas especialmente para outras capitanias, era o que acentuava Nôbrega em carta a El-Rei de 14 de setembro de 1551 ( 3 . 1 ) .
Em outro jesuíta, ainda no século X V I — quase que nos seus
fins — o padre Fernão Cardim (2), encontram-se também referências
às mulheres e homens habitando nas vilas e povoados que visitou
acompanhando o padre Cristóvão de Gouveia. Todavia, não se refere
diretamente à mestiçagem. Sua narrativa, entretanto, é muito interessante como depoimento da vida que levavam então, na terra, portugueses, indígenas, mamelucos, enfim tôda a população espalhada em
povoados e vilas.
Mais adiante, ainda nos fins do século XVI, Gabriel Soares de
Souza, em seu justamente celebrado Tratado Descritivo (14), se refere
à existência de mestiços de franceses na Bahia. Registra que os franceses deixavam, entre os gentíos, alguns dos seus, «os quais se amanceba vam na terra», onde viveram como gentíos com muitas mulheres.
Quanto ao tipo físico desses mamelucos, que assinalava serem muitos,
dizia-os «louros, alvos e sardos». Se bem tenha sido grande a presença
de franceses no litoral brasileiro, na luta pelo comércio de pau brasil,
antes da colonização sobretudo, talvez se possa atribuir tal descendência de louros e alvos também a portugueses.
De fato, a grande maioria de portugueses vindos para o Brasil,
sobretudo no século XVI, procedia do Norte de Portugal. E nesta
região portuguesa, predominava o tipo louro e alvo, como influência do
elemento suevo que, na penetração germânica nos séculos V a VIII,
se arraigou justamente naquela região, influenciando na caracterização
física da população que dali surgiu. Desses portugueses louros e alvos
é que procedem, no sertão nordestino, as nossas populações de olhos
claros, às vêzes tidas como de origem holandesa, o que não é verdadeiro .
uma estatística elaborada com dados obtidos em fontes do século
XVI, sobretudo as Confissões e Denunciações do Santo Ofício, pelo
historiador Tarcizio do Rego Quirino, mostra a evidente supremacia
do elemento vindo do Norte de Portugal para o Brasil daquele tempo,
o que, aliás, ressalta o autor do trabalho. Tanto na Bahia como em
Pernambuco e em outras capitanias, o português do norte predominava; somava 181 pessoas, num total de 381, ou seja 4 7 , 5 % . Só em
Pernambuco eles representavam 58,6%, e na Bahia 3 5 , 5 % . Dois autores confirmavam essa predominância nortista: o S.J. Fernão Cardim,
em seu Tratado, e o autor do Sumário das Armadas, e t c , ambos citados pelo historiador Quirino (9) .
De modo que são importantes as informações que se recolhem,
pelo século XVI, a propósito das raízes da mestiçagem brasileira, com
o que se pode conhecer as atividades então realizadas: de um lado, a
mestiçagem se desenvolvendo livremente, alheia às conveniências religiosas e aos próprios costumes que a colonização procurava implantar;
de outro lado, a procura de estabelecer-se uma sociedade estável, com
os casamentos regularizados, mesmo com índias e negras. De qualquer modo, procurando dar-se aspecto legal ou socialmente regular à
mestiçagem que então se processava.
Isto iria acentuar-se nos séculos seguintes, no XVIII principalmente, com a legislação regia, que então passa a estimular o casamento
de portugueses com índias. O alvará de lei de 4 de abril de 1755 não
considera infame o que case com índia. A política pombalina, estimuladora do casamento entre branco e índio, era, entretanto, contrária ao
casamento entre branco e negro e entre índio e negro.
É certo que, oficialmente, ou pelo menos, assim se considerava, o
casamento entre negro e indio era considerado contrário à limpeza do
sangue. A legislação pombalina, em que pese seu fundo liberal em alguns
aspectos, não estendia seu apoio ao negro. De fato, com o elemento
negro, o casamento ainda não era permitido, embora também não fosse
rigorosamente proibido. Tratava-se de escravo. E, no caso, a posição
social, o status na sociedade patriarcal, era o que importava. Acredito
que o fato de não haver casamento, nem sua permissão, não era contra
o negro africano, mas sim contra o escravo. Ou, pelo menos, o elemento
que vinha como escravo.
3 — O MAMELUCO E O MULATO
Mameluco foi o nome dado ao descendente das relações entre o
branco português e o índio da terra. Deste mestiço, já em 1551 dizia
o padre Leonardo Nunes (3,11) que são muitos os que andavam pela
teira dentro, assim homens como mulheres. Referia-se o S . J . a São
Vicente. De outro extremo, de Pernambuco, escrevia Nóbrega (3,1) em
1551: andam muitos filhos dos cristãos pelo sertão perdidos entre os
gentíos. Êle próprio repetia, no mesmo ano, em outra carta também de
Pernambuco, dirigida a El-Rei: o sertão está cheio de filhos de cristãos,
grandes e pequenos, machos e fêmeas, com viverem e se criarem nos
costumes do gentío.
Em carta do padre Leonardo Nunes, de São Vicente, em 1551,
(3,11) encontramos a primeira descrição do tipo do mameluco. Referindo-se a um filho de cristão e índia, com seus 20 anos, e que vivia entre
os gentíos, assim o descreve: «JÊ mui alto de corpo e mui alegre». E só;
nada mais disse o S . J . Contudo, tem-se a impressão de que o padre
Leonardo se entusiasmou com o mameluco, pois, escreve ainda, quisera
mandá-lo pelo navio que estava para sair para que vissem em Lisboa
o que há por cá, pelas terras brasileiras.
São raras as descrições a respeito do tipo físico do mameluco, e
ainda assim sempre incompletas. Os próprios S . J . , em outras cartas
ou em outras oportunidades, a êle se referem, sem entretanto pormenorizar suas características físicas. Tem-se a impressão, através da carta
de Leonardo Nunes, de ser um tipo alto, forte, de ombros largos. Daí
seu entusiasmo em revelá-lo aos portugueses da Europa.
Nóbrega (3,1), por exemplo, referindo-se a Pernambuco, registra
a presença de mamelucas, filhas de portugueses e índia, as quais poderiam casar na terra, com portugueses e seus filhos. O que denota
serem elas de tipo físico agradável e simpático, pois admitia o S.J. que
tôdas agora casarão.
O mameluco, no correr do tempo, com o mestiçamento mais acentuado, vai dar margem ao tipo que chamamos hoje caboclo. com a
diminuição da população indígena, sobretudo afastada para zonas não
ocupadas pelos elementos considerados brancos, a mestiçagem entre estes
e as índias diminuiu bastante. Acentuou-se, portanto, o relacionamento
entre os descendentes, na continuidade das combinações sucessivas; são
os hoje chamados caboclos, numa generalização que não sendo profundamente científica, é, contudo, plenamente aceitável na caracterização
das populações brasileiras.
Da importância do mameluco na formação das populações paulistas seria supérfluo referir; os cronistas e mesmo os genealogistas são
unânimes em ressaltar seu papel na origem das famílias paulistanas.
Mamelucos também os que abriram caminhos para as bandeiras, onde
igualmente não foi estranha a presença do elemento negro-africano.
Contudo, o mameluco conhecia, de certo, pela influência materna, os
caminhos, os lugares onde poderia a bandeira abrigar-se e encontrar
água, os pontos onde os veios auríferos se achavam. Localizado o ouro,
na fase da exploração, outro elemento se incumbia de explorá-lo; era o
negro-africano. Ai começava seu papel na escavação da terra, ao passo que o mameluco continuava a abrir caminhos e indicar outros veios
de ouro.
Esta participação do elemento negro escravo no bandeirismo, a
princípio negado, pois se acreditava apenas na presença do índio no
empreendimento, está hoje inteiramente comprovada. Abriu perspectivas
para o conhecimento dessa presença, sobretudo como elemento de fixação do grupo, tal como antes procuramos explicar, o estudo realizado
por Cassiano Ricardo (12), verdadeiramente pioneiro ao evidenciar, em
trabalho publicado inicialmente em 1938 e desenvolvido no livro de 1940,
que o africano escravizado se tornou o elemento de fixação, de permanência, do bandeirismo nas áreas desbravadas e ocupadas.
Menores são, sem dúvida, as informações a respeito do mestiço
oriundo das relações entre o branco e o negro africano: o mulato. Nascendo na senzala, continuando a viver como escravo a exemplo de sua
mãe, o pobre do mulato não tinha oportunidade de aparecer na importância do quadro de mestiçamento que se desenvolvia. O contrário do
que sucedia com o mestiço do índio: este era exaltado e incorporado à
vicènda social que se desenvolvia. Criou-se, inclusive, um sentido de
nobreza na descendência indígena. É o que vemos, em séculos posteriores, no século XVIII quanto a ordens regias permitindo o casamento
cem índias, e o que vamos verificar, no século XIX, com o romantismo.
Nome indígena passou a substituir nome português em famílias brasileiras .
Dessas manifestações nativistas que levaram à mudança de nome
português por indígena, numa espécie de reação patriótica contra o colonizador, lembro o caso da família Rodrigues Leite nas Alagoas. Conta
um de seus descendentes, o antigo Senador da República Francisco de
Paula Leite e Oiticica ( 8 ) , que numa das reuniões de patriotas, seu
antepassado José Rodrigues Leite disse aos amigos que deviam adotar
um nome brasileiro; e sem hesitar logo acrescentou que de então em
diante se chamava Pitanga. E seu irmão adiantou-se: eu me chamo
Oiticica. Outro irmão adotou o nome Gejuiba. Assim nasceram as
atuais famílias Oiticica, Pitanga e Gejuiba.
Outros exemplos poderiam ser citados: os das hoje famílias Cajueiro Gitaí, Jatobá, Xexéu, Tiririca, tudo nome da terra; e também o de
Cansanção de Sinimbu, que, no Império, se tornaria ilustre pela presença de João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, Visconde de Sinimbu,
como Ministro e Chefe de Gabinete. O mesmo sucedeu em outras então
Províncias brasileiras, como é o caso de Montezuma na Bahia. Nomes
nativos se incorporaram assim aos de famílias brasileiras, tradicionalmente ao menos pelo sobrenome portuguesas.
O mesmo não acontecia, nem poderia acontecer, com o mulato, nem
coir nome procedente da África. Filho de escrava, no mais baixo da
escala social, numa sociedade rigidamente estratificada, era inevitável que
ficasse abandonado, esquecido, e até quase ignorado neste processo de
miscigenação, que não era apenas físico, mas também social, que o
Brasil presenciava a partir do século XVI, e principalmente neste mesmo século X V I .
como que eco desse esquecimento do que era o mulato, o próprio
Euclides da Cunha (5) para exaltar o mameluco, isto é, o homem sertanejo, encontrou no mestiço litorâneo «o raquitismo exaustivo dos mestiços neurasténicos». Éste mestiço neurasténico deveria ser justamente
o mulato, em cuja atividade repousou tôda a construção da economia,
da vida urbana, dos serviços domésticos, de tudo quanto se implantou
e se desenvolveu na vida de beira-mar do Brasil, onde se construiu até
quase nossos dias todo o processo da chamada civilização brasileira. A
genialidade de Euclides não percebeu a importância do mulato; e, de
resto, de sua pena escapou a afirmação, inteiramente negada pela ciência
moderna, de que a mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos,
prejudicial. Donde via na mestiçagem um retrocesso.
Contudo, muitos daqueles mestiços do interior, o sertanejo, eram de
origem negro-africana. como de ascendência negro-africana são muitas
— é Gilberto Freyre quem lembra (6) — das melhores expressões de
vigor ou de beleza física no Brasil: as mulatas, as baianas, as crioulas,
as quadradonas, os cabras de engenho, os fuzileiros navais, os marinheiros nacionais, os capoeiras, os estivadores. Da mulata, em particular,
sabe-se que se tornou verdadeiro símbolo de beleza brasileira, não raro
apresentada como «tipo» brasileiro, o que não corresponde rigorosamente
à realidade, pois ela é apenas um dos tipos brasileiros, dentro da diversidade que o Brasil apresenta em sua morenidade. Na canção popular
sua exaltação é notável, através de músicas e cantos que a consagraram,
quando menos como «a tal».
Já Roquette Pinto (13) assinalava, em seus estudos acerca da mestiçagem no Brasil, que no mulato brasileiro há sensível tendência para
o grupo branco; e registrava ainda que nenhum dos caracteres estudados
nos mulatos permitia considerá-los como tipos involuídos. O que
realmente vem sendo confirmado pela antropologia moderna, tal como
registrou a declaração sobre raça de 1964: está comprovado que a mestiçagem não apresenta inconvenientes biológicos para a humanidade.
Mesmo porque não existe na espécie humana uma raça pura.
O caso brasileiro parece justamente negar a afirmativa euclidiana
e confirmar a validade da mestiçagem; e é em torno dessa mestiçagem
que se processa a formação do homem brasileiro, ainda em pleno desenvolvimento . Mameluco e mulato do primeiro século vão se desdobrar
em múltiplos tipos físicos, numa diversidade de características e numa
variedade de aspectos, que permitem testemunhar o êxito da mestiçagem
em nossa terra, nos séculos seguintes e até hoje. O mestiço brasileiro
se constitui evidentemente uma negativa redonda e firme de que a mestiçagem é prejudicial. Aí estão nossos mamelucos e mulatos, seus descendentes — pardos, cabras, caborés, e tantos mais — exemplificando,
com a formação de nossas populações, o êxito, se não a consagração, da
mestiçagem brasileira.
O PROCESSO TRANSCULTURATIVO
Longe de nós a idéia de que mestiçagem e transculturação se processam paralelamente, num mesmo nível. Ao contrário: bem sabemos
que a mestiçagem se refere tão só ao relacionamento físico, ao passo que
a transculturação exprime o relacionamento cultural. Podem verificar-se
separadamente, e os exemplos são múltiplos. Não há dúvida, porém, de
que a mestiçagem constitui, muitas vêzes, a oportunidade também para
que se desenvolva a transculturação.
No caso do Brasil correram paralelamente, não há esconder. Ao
mesmo tempo que se incrementava a mestiçagem, através dos encontros
físicos entre portugueses, índios, negros e mais tarde de seus descendentes, implantava-se o processo de transculturação, com o intercurso de
valores culturais entre os três grupos. Nada o testemunha melhor, e
seria supérfluo querer repeti-lo aqui, do que o estudo desse processo em
Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, de modo especial para
reportar-se ao que se verificou a partir do século X V I . Valores, técnicas, instrumentos, maneiras de viver se intercambiaram entre os três
grupos, de modo a constituir os primeiros elementos da formação de
uma cultura nova, com a que haveria de surgir e desenvolver-se no
Brasil.
Além de Caminha, a que já nos referimos, outros cronistas fixaram
aspectos da cultura indígena, principalmente em relação ao processo
transculturativo que se iniciou no século X V I . O caso de Vespucci, que
entrou em contato com o índio logo depois da descoberta, antes ainda de
qualquer relacionamento prolongado deste com os europeus. Vespuc-
ci (16) observou o uso do arco e flecha, o uso também de raízes de
plantas, a ausência de panos, lã ou linho. E numa demonstração de
etnocentrismo disse que o indígena nao possuía nem templos, nem leis,
nem reis, como se sua organização tivesse de ser igual à européia na
prática da religião, na vida social e na ordem política.
Depoimento bem expressivo foi o que nos deixou Cardini, ao descrever a viagem do Visitador da Companhia de Jesus, em seu livro já
referido (2); descreve uma festa de Natal, talvez a primeira em terra
brasileira, em 1583, e mais tarde, em 1584, outra festa natalina, esta no
Colégio do Rio de Janeiro. Tanto num ano como no outro foi armado
um presépio, em torno do qual se juntavam padres, índios, colonos, columins, para ouvir «boa e devota música». Do presépio do Rio de Janeiro, acrescenta que fazia esquecer os presépios de Portugal. Cantaram e dançaram autos pastoris, acompanhados pelo berimbau do irmão
Barnabe. Primeiro encontro festivo do Natal abrasileirando-se no
contato entre grupos diferentes.
A esse relacionamento — a aproximação entre colonos e indígenas
— referem-se também outros documentos jesuísticos, inclusive através
das referências que se encontram, por exemplo, nas cartas de Nóbrega
a propósito das práticas religiosas dos índios. São as primeiras descrições, se não interpretações, da religiosidade indígena, nem sempre compreendida pelos padres, mas sem dúvida evidenciando as crenças existentes nas populações aborigines. Ao registrar as idéias dos índios acerca
de religião, Nóbrega — e como êle, outros S.J. — estava contribuindo
para conhecer-se o processo transculturativo que ia verificando-se.
À proporção que o tempo vai correndo, nos séculos seguintes, o
processo vai acentuar-se e, quase diria, multiplicar-se, através das diversas formas que a criatividade cultural torna possível. Os elementos que
se encontravam vão oferecendo novos valores, capazes de exprimir, de
par com o relacionamento entre os grupos, o espírito criador do brasileiro.
É um quadro cultural quase todo novo que se vai evidenciar. Se sua
base é portuguesa, se há nele ingredientes indígenas e africanos, sua
originalidade, entretanto, já é brasileira. E cada vez mais se acentua
neste sentido de uma originalidade brasileira.
É evidente que a mestiçagem e a transculturação são distintas, cada
uma se processando à sua maneira; pode haver mestiçagem sem transculturação, da mesma forma que pode haver transculturação sem mestiçagem. No caso do Brasil, todavia, poderemos dizer que os dois
processos correram paralelos, principalmente no século X V I . Ao mesmo
tempo que se desenvolvia a mestiçagem, processava-se a transculturação.
E tal fato iria tornar-se ainda mais expressivo nos séculos seguintes,
criando ao começo do século XIX um quadro perfeitamente definido
do que já podemos chamar uma cultura brasileira.
O português chegado ao Brasil solteiro, ou deixando a mulher em
Portugal, teve de participar dos dois processos. Relacionou-se fisicamente com as índias e socialmente, para sobreviver, aceitava hábitos alimentares indígenas, e também seus costumes, seus usos, sua maneira
de viver. Aliás, o mesmo se deu com o português vindo casado. Teve
de adaptar-se à alimentação da terra, com o uso da mandioca, pois não
podia importar o trigo em quantidade suficiente para o consumo permanente. Teve de aceitar tipos de habitação adequados ao novo meio.
Aceitou, igualmente, hábitos e costumes que o indígena lhe transmitia,
de modo a integrar-se, e não apenas adaptar-se, à nova sociedade.
Mais tarde, e mais intensamente já na segunda metade do século X V I , o mesmo se verificaria, no relacionamento com o africano
trazido como escravo. Se em alguns casos não houve o relacionamento
físico, não deixou de haver o relacionamento cultural; e a cultura trazida
pelos escravos, embora condicionada e perturbada pela própria situação
— o regime de escravidão — passou a influenciar na vida brasileira. O
processo transculturativo incorporava assim outro elemento — o negroafricano, embora na condição de escravo — que atingiu também nossa
formação cultural.
Desta forma são estes três grandes grupos — o indígena, o português, o negro-africano — que alongam, em terras brasileiras, seu relacionamento físico ao processo transculturativo. Nossa cultura se vai formando, através do tempo, e com origem naqueles elementos interculturados inicialmente no século XVI, com os valores de que são portadores
estes três grupos. Trata-se, na realidade, de verdadeiro processo de
transculturação, no intercâmbio de elementos oriundos de cada grupo,
de modo a criar uma nova cultura: a brasileira. Tal como as populações,
também mestiça; e mestiça pelo que cada um dos grupos contribuiu para
a criatividade cultural que daí resultou.
Foi este processo de criatividade cultura! que especialmente se verificou no Brasil; e que começou a reformular-se justamente no século X V I
com o encontro entre os três grupos étnicos no território brasileiro. Não
raro, pela natureza de sua cultura mais desenvolvida, e não apenas a
dominante, a influência portuguesa foi mais importante e mais decisiva;
serviu de lastro para o acolhimento dos valores de outras procedências,
de modo que os elementos dos três grupos se interculturaram e formaram
o que podemos chamar hoje de cultura brasileira. O português foi assim
o elemento básico, o fundamento sobre que os dois outros se esteiaram,
sem prejuízo, é evidente, da interpenetração ou da troca de elementos,
surgindo valores que consideramos hoje brasileiros.
Se se verificou esta situação de ser a cultura portuguesa a fundamental, isto não exclui que se tenha verificado também a assimilação
pelo português de elementos indígenas e negros, e recìprocamente entre
os três grupos; daí resultou, pela fusão ou absorção, o surgimento de
novos valores neste processo de transculturação, de modo a criar uma
cultura já brasileira, e nao exclusivamente portuguesa, nem puramente
indígena ou negro-africana. Claro é que muitos valores conservaram a
marca de sua origem principal: a mandioca, e o milho, por exemplo,
como influência indígena; o uso da rede de dormir igualmente influência
indígena; ainda de influência indígena o uso de frutas como o caju, o
jenipapo, a goiaba; os quitutes chamados afro-baianos, como influência
neqra; a música popular sincopada, também de marca negro-africana; o
samba ou o coco ou o frevo, igualmente de ascendência negro-africana;
assim por diante.
De modo que a transculturação caracterizou nossa formação como
cultura; e através da criatividade cultural surgiram os elementos que,
originados dos três grupos étnicos fundamentais, pela absorção ou fusão,
vieram a caracterizar a originalidade de nossa cultura. A cultura brasileira representa assim um resultado da transculturação iniciada no século XVI com portugueses, indígenas e negro-africanos; e que se alongou
através dos tempos não raro com a participação de outros grupos. Sobretudo a partir das primeiras décadas do século XIX com a imigração
chamada estrangeira.
F O N T E S UTILIZADAS
1 — Buarque de Holanda, Sérgio — Raízes do Brasil. Col.
leiros, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro.
Documentos Brasi-
2 — Cardim, padre Fernão — Tratados da Terca e da Gente do Brasil, Introdução
e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 2" ed.
Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1939.
3 — Cartas Jesuíticas.
Publicações da Academia Brasileira de Letras.
neiro, 1931, volumes I, II e III.
4 — Cortesão, Jaime — A Carta de Pero Vaz de Caminha.
Portugal. Rio de Janeiro, s/d.
Rio de Ja-
Edições Livros de
5 — Cunha, Euclides da — Os Sertões. 2ª1 edição. E d . Laemmert.
1902.
6 — Freyre, Gilberto — Casa Grande & Senzala. Formação da familia brasileira
sob o regime de economia patriarcal. 8" ed. 2 volumes. Livraria José Olympio
Editora. Rio de Janeiro, 1954.
7 — Morner, Magnus — La mezcla de razas en Ia Historia de América Latina.
Paidos. Buenos Aires. s / d .
8 — Oiticica, Francisco de Paula Leite e, Memorial Biográfico do Comendador Pitanga. Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. Vol. V I ,
n' 1, janeiro a março. Maceió, 1915, p. 152.
9 — Quirino, Tarcizio do Rego — Os habitantes do Brasil no fim do século XVI.
Caderno nº 1. Instituto de Ciências do Homem. Divisão de História. Imprensa
Universitária, Recife, 1966.
10 — Ramos, Arthur — Le métissage au Brésil. Hermann et Cie. Editeurs.
1952.
Paris,
11 — Ramos, Arthur — Introdução à Antropologia Brasileira. 2 volumes. Livraria
da Casa do Estudante do Brasil Editora. Rio de Janeiro, 1943-1947.
12 — Ricardo, Cassiano — Marcha paca o oeste. Influencia da «Bandeira» na formação social e política do Brasil. Col. Documentos Brasileiros. Livraria José
Olympio Editora. Rio de Jaeniro, 1940.
13 — Roquette Pinto — Ensaios de Antropologia Brasi/cica. Companhia Editora Nacional, Sao Paulo.
14 — Souza, Gabriel Soares de — Tratado Descritivo do Brasil cm 1587. Comentários de Francisco Adolfo Varnhagen. 3ª edição. Companhia Editora Nacional. Sao Paulo, 1938.
15 — Staden, Hans — Viagem ao Brasil. Versão de Alberto Lófigren. Revista e
anotada por Theodoro Sampaio. Rio de Janeiro, Publicação da Academia
Brasileira. História, 1930.
16 — Vespucci, Américo — Cartas, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, vol. XLI, 5.
MANUSCRITOS DA BIBLIOTECA IMPERIAL
HÉLIO
VIANNA
A
LÉM dos impressos, mapas e estampas de todos os gêneros, enriqueciam a «Biblioteca Particular de S . M . J . » (dizeres do respectivo
carimbo-identificador, com o /, em vez do /, à moda antiga), alguns
milhares de manuscritos. Muitos dos quais preciosos à História e Letras
de Portugal, Brasil e outros países.
Entre eles, devemos distinguir os que fazem parte, propriamente,
do Arquivo da Família Imperial, a ela especialmente relativos, dos que
lhe são estranhos, em geral comprados ou ganhos por alguns de seus
membros: a Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro II (em sua quase
totalidade), a Princesa D. Isabel, seu marido, Conde d'Eu, o filho mais
velho do casal, D. Pedro de Alcântara de Orleans-Bragança, Príncipe
do Grão-Pará.
Os inestimáveis papéis arquivísticos, por resolução de Sua Alteza
o Príncipe D. Pedro Gastão de Orleans-Bragança, de acordo com
intenção antes manifestada por seu pai, foram, em 1941, generosamente
doados ao governo brasileiro. Encontram-se, hoje, no Museu Imperial,
de Petrópolis, com grande proveito à disposição dos estudiosos de nosso
passado monárquico.
Os demais, que constituem as peças do Catálogo «C», de Códices
e Livros Manuscritos, do «Inventário> procedido pelo historiador Alberto
Rangel, quando o valioso acervo se guardava no Caste'o d'Eu, em França,
pertencem ao citado bisneto do Imperador. Cuidadosamente se conservam
na cidade serrana, onde, por sua gentileza e amizade, tivemos a satisfação de examinar um por um, seus 280 lotes. Completamos, então,
muitas das indicações com que foram mencionados no referido Catálogo,
incluído nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. LV,
de 1933 (Rio, 1939), quando Diretor da instituição nosso saudoso
amigo Rodolfo Garcia.
Dão perfeita idéia do valor do contingente de Manuscritos na
Biblioteca Imperial, a maior e mais rica no século passado organizada
por um particular no Brasil, quiçá em todo o continente americano.
Ao examinar, embora de modo sucinto, o grandioso conjunto, mencionaremos, primeiramente, peças ligadas à História e Literatura de
Portugal. Depois, as concernentes ao passado e Letras do Brasil. Ou,
simultaneamente, do interesse dos dois países, durante quase três sécuios
e um quarto, de 1500 a 1822, de existência comum, política e literária.
Na parte final, veremos manuscritos relativos a alguns países estrangeiros.
HISTÓRIA DE PORTUGAL
Estritamente interessam à História Portuguesa muitos manuscritos
da Biblioteca do Imperador.
Assim, minuciosa Informação de D. Aleixo de Meneses, Aio d'ElRei D. Sebastião, sobre sua morte na Batalha de Alcácer-Quibir, em
1578 (n? 219-D, do citado Catálogo, daqui por diante sempre mencionado pelos respectivos números) . Sobre o mesmo D. Aleixo, o de nº 82.
Catástrofe de Portugal — Nascimento de D. Afonso VI ( n' 120).
Conforme nota do bibliògrafo Inocencio Francisco da Silva, dono anterior do manuscrito, a parte final deste, da página 175 em diante, foi
impressa em Apêndice à Anti-Catástrofe — História d'El-Rei D. Afonso
VI de Portugal (Porto, 1845), mas dela difere. Comprára-o em Lisboa,
1867. Passou à posse de D. Pedro II, diretamente ou por aquisição
no leilão posterior à morte de Inocencio.
Também do século XVII é outro manuscrito longamente inédito,
do português Antônio Coelho Gaseo, magistrado no Brasil falecido em
1666: Primeira Parte das Antigüidades da Mui Nobre Cidade de Lisboa,
Empório do Mundo e Princesa do Mar-Oceano (nº 28) . Dedicado ao
Cardeal Eduardo Farnese, Governador de Parma. Os bibliógrafos
Inocencio e Brito Aranha, relacionaram, no inestimável Dicionário Bibliográfico Português, vols. I, VIII, XX e XXII, os poucos exemplares
desse manuscrito, existentes em Portugal. Podemos supor que o pertencente à Biblioteca Imperial tenha procedido do leilão da Livraria
dos Marqueses de Castelo Melhor, cujo Catálogo dos Preciosos Manuscritos, sob nº 152, declarava não haver notícia de outra cópia em
Portugal, — o que não era exato. De uma das que existiam, somente
em 1909-1910 e 1911 publicou-o Simões de Castro, no Arquivo Bibliográfico da Universidade de Coimbra, vols. IX, X e XI, daqueles anos.
De interesse para a História de Portugal, embora em grande parte
se refira a assuntos eclesiásticos, é a Correspondência de D. João V,
contida em cinco volumes, relativa ao período de 1736 a 1742, existente
na Biblioteca Imperial (n° 37) . De tanta importância, que para ela
chamou especialmente a atenção do Advogado e Procurador da Casa
Imperial, Conselheiro Silva Costa, o Conde d'Eu, em nota sobre o destino
a ser dado aos mais preciosos manuscritos e livros conforme registramos
em trabalho anterior, sobre a Doação da Biblioteca do Imperador, de
D. Pedro II, publicado no n' 6 desta Revista, à pag. 9 1 .
A Série dos Reis de Portugal reduzida a Tábuas Genealógicas
(n? 209), de D. Antônio Caetano de Sousa (1674-1759), embora
Carta do Imperador D. Pedro II, dirigida ao Conselheiro de Estado Dr. José
da òilva Costa, Advogado e Procurador da Familia Imperial Brasileira, generosamente doando a sua riquíssima Biblioteca Particular, Museu Arqueológico e Antropologico, Coleções Mineralógicas e Botânicas, à Biblioteca Naconal da cidade de seu
nascimento, em que viveu sessenta dos seus sessenta e seis anos de vida; ao Instituto
Histórico e Geografico Brasileiro, de que era Protetor; e ao Museu Nacional.
Instituições, tôdas, do Rio de Janeiro.
Original no inestimável Arquivo da Família Imperial, pela mesma também doado
ao governo brasileiro, que o destinou ao Museu Imperial de Petrópolis, ond* se
encontra, com grande proveito posto à disposição dos estudiosos do nosso passado
monárquico.
ao escritor Eugênio Gomes, quando este dirigia a Biblioteca Nacional do Rio de
janeiro.
publicada em 1743, era de suma raridade, pela exígua tiragem de 25
exemplares, segundo o Manual Bibliográfico Português de Livros
Raros, Clássicos c Curiosos, de Ricardo Pinto de Matos, revisão e
Prefácio de Camilo Castelo Branco (Porto, 1878), pag. 534.
Competem simultaneamente, às Histórias Política e Literária de
Portugal e do Brasil, por serem de patrício nosso, as Carras, Discurso
c Representação de Alexandre de Gusmão (n° 148) . Pertenceram a
Inocencio Francisco da Silva, conforme nota sua, de 1855. Segundo a
qual, muitas saíram truncadas, no periódico Investigador Português,
de Londres; outras seriam inéditas. Razão por que deveriam ser estes
manuscritos alexandrinos confrontados com os que coordenou e publicou
o benemérito Jaime Cortesão, nas Obras Várias de Alexandre de
Gusmão e em seus Documentos Biográficos, parte II, tomos I e II, de
Alexandre de Gusmão c o Tratado de Madrid, edições de nosso
Ministério das Relações Exteriores (Rio de Janeiro, 1950) . É de nosso
interèsse, conquanto já conhecido e publicado, seu Discurso sobre os
Tratados de Limites, dirigido ao heróico Antônio Pedro de Vasconcelos,
Governador e intransigente defensor da Nova Colônia do Santíssimo
Sacramento do Rio da Prata.
Também constam da Biblioteca Imperial manuscritos relativos à
Inquisição em Portugal (nº 217) . E lista de presos no Forte da Junqueira, feita pelo Marquês de Alorna (nº 123).
Cartas de Portugal, sobre o Estado Passado e Presente do Reinei;
e juízo crítico às mesmas, por Sebastião José de Carvalho e Melo, é
cópia, como outras no Rio adquiridas pela Imperatriz D. Leopoldina a
José Maria de Andrade Cardoso, conforme documento n° 482, do maço
9, sem data, do Arquivo da Família Imperial, hoje no Museu petropolitano (nº 147-B) .
Obras do Marquês de Pombal, em oito códices, como outras peças
manuscritas do Imperador pertenceram a Inocencio, conforme nota de
sua autoria (nº 40) . A propósito de uma edição de 1820, em 5 vols., de
Cartas e Obras de Pombal, assinalou o bibliògrafo, em seu Dicionário,
vol. VIII, pag. 215, quanto é incompleta essa publicação. Que talvez
possa ser ampliada com os diversos manuscritos pombalinos da Biblioteca
Imperial, acrescentamos.
Também Camilo Castelo Branco possuiu, na parte de sua Biblioteca
posta em segundo leilão, em 1883, dois exemplares manuscritos daquelas
Cartas escritas sobre o Passado e o Presente de Portugal. com o
acréscimo das Cartas e Juizo que o Marquês escreveu em 1778. Tiveram
o nº 1.861, à pag. 73 do Catálogo da Preciosa Livraria do eminente
escritor Carràio Castelo Branco, leiloada em dezembro de 18S3 por
Matos Moreira & Cardoso, de Lisboa.
De interesse tanto histórico quanto literário, são as Obras Poéticas
contra o grande herói Marquês de Pombal, Secretário d'Estado que foi
de Portugal, por desgraça dos portugueses, códice de 372 folhas, com
copioso indice, em que se recolheram numerosas peças satíricas aparecidas
depois da destituição do famoso Ministro de D. José I (N° 151).
Pertenceu a um «João Antônio», em 1777; no sécuIo passado, a Inocencio, de quem passou a D. Pedro II. (Conforme informação no
Dicionário daquele, vol. VII, pag. 215) .
Igualmente contêm escritos contra Pombal, as Queixas apologéticas do povo da Córte e Reino de Portugal ( n º 147-B).
Digno de nota é que, entre os escritos do próprio Marquês (N n 40,
já mencionados), apareça um contra a Inglaterra, em suas relações
com Portugal.
É também este o tema de outro códice, redigido em várias letras,
com epígrafe de «Ph. Peine» (Thomas Paine?) ao célebre Abade
Raynal: Ensaio Político sobre os crimes de Inglaterra tem cometido
contra Portugal (sic) (N 0 147-A).
Assunto a que não foi estranho, na parte econômica, com idêntica
veemência, o nosso José Bonifácio de Andrada e Silva, conforme
documento da parte de seu Arquivo recolhida ao Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, do Rio de Janeiro. O qual revelamos por
ocasião das comemorações do Bicentenário do Nascimento do Patriarca
da Independência ( x ) .
Ligado à pombalina Reforma da Universidade de Coimbra, de
tantas conseqüências para a cultura luso-brasileira, é a cópia de um
caderno (conforme nota de Inocencio), sobre a Polêmica matemática,
de 1786, entre os lentes D r s . José Monteiro da Rocha e José Anastácio da Cunha (N° 147-F) . O último também atingido no poema
cômico-satírico O Reino da Estupidez, do mineiro Francisco de Melo
Franco (1757/1823). Obra, em nossa opinião, mais contra a deturpação da Reforma que contra a própria Alma mater coimbrã.
Da Regência e Reinado do Príncipe, depois Rei, D. João VI, em
Portugal (1792/1807), e no Brasil (1808/1821), muitas são as peças
histórico-literárias manuscritas da Biblioteca de seu neto D. Pedro I I .
Citaremos algumas, reservando outras para a parte mais estritamente
relativa às letras portuguesas da época.
Relação das Festas do Casamento da Infanta de Portugal,
D. Maria Teresa, com o Infante de Espanha, D. Pedro Carlos de
Bourbon, a 13 de maio de 1810, 4 3 ' aniversário do então PríncipeRegente D. João, pai da nubente (N° 60) . Riscada está a afirmação
de ter sido posta em ordem, pelo Padre Joaquim Dámaso Álvares, da
Congregação do Oratório, de Lisboa. Figurou entre as cópias vendidas
por Andrade Cardoso à Imperatriz D. Leopoldina.
(J) Hélio Vianna — «Economia luso-brasileira no Arquivo do Patriarca», Folhetim publicado no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a 26 de julho de 1963:
transcrito na Revista cb Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol
260 de
julho-setembro de 1963, p. 321-324.
Ao Infante D. Miguel dedicou Elogio em versos Bernardo
Cunha Ferreira, recitado pelo autor Manuel Álvares Ferreira ( n º 35,
omitido no Catálogo de Rangel).
Alusivo à expulsão de Portugal dos invasores napoleónicos é o
«drama alegórico» — A Lisia Libertada ou a Gália Subjugada, em
arranjo de obras de Bocage e Pedro Inácio Ribeiro Soares, por um
anônimo de 1808
( n º 34-M) .
um parecer do Desembargador, Conselheiro, depois Ministro
Tomás Antônio de Vila Nova Portugal ( n º 35-A); três cartas autografas, a êle dirigidas por D. João VI; uma, não assinada, da Rainha
D. Carlota Joaquina (Código nº 221, documentos B, C, D e E) ( 2 ) .
De Francisco Joaquim Moreira de Sá o poema O Real Plano,
com o retrato de D. João VI, a quem se refere ( n º 45) .
Dirigida ao médico brasileiro Dr. José Corrêa Picanço (1 o Barão
de Goiana), foi a «Notícia de um parto bastante raro e extraordinário»,
dada por Manuel da Costa, da cidade da Guarda (Nº 35) .
Clamando contra a prolongada permanência da Família Real no
Brasil, foram as Vozes de Portugal na ausência de seu Soberano
(Nº 35-E, onde figura como «Panfleto político»).
Referem-se a episódio da época, versos de D. José Manuel da
Câmara, dedicados à D. Luisa de Oeynhausen, a Infeliz (N'º 35-B) .
Poeta cujas composições figuram entre as de cópias vendidas por
Andrade Cardoso a Imperatriz D. Leopoldina. A citada D. Luisa
(1791/1817), que se casou com Heliodoro Jacinto Carneiro d'Araújo,
Fidalgo-Cavaleiro da Casa Real, do Conselho de D. João VI, Ministro Residente na Suíça — era a sétima filha da famosa Alcippe, 4ª
Marquesa de Alorna, 6ª Condêssa de Assumar, pelo casamento Condêssa de Oeynhausen, a poetisa D. Leonor d'Almeida Portugal.
Autora, esta, de Paralelo da Política, da Potência e Meios dos Romanos e dos Franceses ( n º 147-G) . Trabalho que não consta dos verbetes a ela dedicados por Inocencio, no Dicionário Bibliográfico Português, vol. V, nem no respectivo Suplemento, vol. XIII, de Brito
Aranha. Igualmente omitido por Olga Morais Sarmento da Silveira,
em Mulheres Ilustres — A Marquesa de Alorna (Lisboa 1907) .
Outras poesias, algumas das quais de interesse histórico, do
tempo da Regência e Reinado de D. João, fazem parte de quatro
conjuntos de cópias vendidas à nossa primeira Imperatriz: Poesias
de vários autores, copiadas dos próprios originais; Poesias anônimas,
copiadas dos próprios originais, ou Coleção de diversas Obras Poéticas;
Coleção de Poesias Várias, dignas de tôda a estimação, que copiou
em exação o Padre Joaquim Dámaso Álvares, de bons manuscritos,
(2) Às cartas de D. João a Tomás Antônio, aludimos em Folhetim intitulado
«Códice luso-brasileiro de D. Pedro II», publicado no Jornal do Comércio de 7 de
novembro de 1969; no qual também aludimos à carta de D. Carlota Joaquina; duas,
das de D. João integralmente publicamos em Folhetins do mesmo jornal intitulados:
«D. João VI e a carne nos açougues» (de 28 de dezembro de 1969), D. João VI
e a questão da Banda Oriental (1820)» (de 1º de janeiro de 1970).
dos quais a maior parte cram os mesmos originais; Coleção de Obras
Poéticas dirigidas ao Marquês e Marquesa de Aguiar, por diferentes
autores, em que entra o Barão de São Lourenço (Targini) (Ns. 34,
34-A e 3 4 - U ) . Muito há a pesquisar, a respeito, se se quiser identificar os respectivos autores, sabendo-se se são publicadas ou inéditas.
Dentre elas, algumas são de brasileiros natos, conforme depois
indicaremos.
Conseguida a Independência do Brasil, continuou a História de
Portugal a figurar entre os manuscritos da Biblioteca de D. Pedro II.
Assim, no códice de cópias de cartas por nosso Imperador D. Pedro I (em 1826 transitório Rei D. Pedro IV, de Portugal), de 1826
a 1828 escritas sobre assuntos de política lusitana, em letra do diligente Secretário e Oficial do Gabinete Francisco Gomes da Silva, o
Chalaça ( n º 176) . Do ano de 1828, cópias de Portarias relativas a
negócios de Portugal (N° 177). De 1831/1832, índice de Correspondência do mesmo D. Pedro, então Duque de Bragança, Regente
de Portugal em nome da filha D. Maria II, temporariamente destronada pelo tio e ex-noivo, D. Miguel ( n º 155).
Do mesmo Duque, ex-Imperador e Rei, é uma bela carta, de São
Migue', nos Açores, em 1832 dirigida ao tutor dos filhos que havia
deixado no Brasil, José Bonifácio, que, de acordo com outra via, existente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicamos na
Revista deste, vol. 260, de julho-setembro de 1963 ( n º 221-A) .
De 1853 será o Pranto pela Morte de D. Maria II, como pêsames
enviados a seu irmão D. Pedro II por Fidélis Honorio da Silva dos
Santos Pereira ( n º 145).
LITERATURA PORTUGUESA
Deixando a parte histórica, em que também várias vêzes necessariamente entraram as letras, e passando a mais pròpriamente literária,
nos manuscritos da Biblioteca Particular de D. Pedro II, muito temos
a registrar, embora sem esgotar o tema. Mais uma vez se verificará
a infiltração de motivos históricos, impossíveis de serem separados
daqueles.
Preliminarmente, devemos nos reportar à nossa opinião, expendida em Folhetim a 31 de outubro de 1969 publicado no Jornal do
Comércio, intitulado «Três fases intelectuais do Imperador». Nele
sustentamos que, em seu primeiro período de formação educativa, recebeu D. Pedro II a influência de um Preceptor pernambucano de
formação portuguesa, Frei Pedro de Santa Mariana, Bispo de Crisópolis, e de brasileiros formados em Coimbra, inclusive o próprio primeiro
Tutor, José Bonifácio de Andrada e Silva, e o mais estimado de seus
Professores, Cândido José de Araújo Vianna, Visconde e Marquês
de Sapucaí. Teria sido, portanto, luso-brasileira, essa fase inicial,
caracterizada pelo respeito aos clássicos e a outros escritores lusitanos
de seu próprio século. Motivo pelo qual figuram estes, em grande
número, em sua Livraria, tanto na parte de impressos como na de
manuscritos, assim como em sua Correspondência, até agora divulgada.
(Notadamente em «Pedro II e intelectuais portugueses», trabalho de
Alcindo Sodré, no Anuário do Museu Imperial, vol. VIII, de 1947).
como nos diversos relatos, até agora aparecidos, das várias estadas de
nosso monarca em Portugal, pátria de seus antepassados do lado
paterno.
Além dos manuscritos que já tivemos ocasião de mencionar, no
capítulo anterior, a seguir acrescentaremos outros, sucinta ou indiretamente indicados no Catálogo «C», de Códices e Livros Manuscritos,
da Biblioteca Imperial, principalmente sediada no Palácio de São
Cristóvão.
Obra impressa, não manuscrita, de 1630, é uma que ali erroneamente figura: a Breve Composição e Tratado novamente tirado das
Antigüidades de Espanha, de João Vaz (nº 43, onde aparece como
de João Paz — «Poemas sobre o Rei Almançor». uma nota de D. Pedro
II assinala que ganhou o volume quando de passagem por Braga, a
3 de março de 1872, oferecido por Ferreira Caldas, Professor do Liceu
bracarense.
Do cronista Rui de Pina, possuía o Imperador cópia manuscrita
da Crônica de D. Afonso IV, só publicada em Lisboa, 1633 (nº 160).
Do Padre Antônio Vieira há, no já citado códice n° 121-F, cópia
(se não fôr o original, como não parece impossível) do notável Voío
sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo, acerca da Administração dos índios, de 1694. A êle já nos referimos, no citado Folhetim
«Códice luso-brasileiro de D. Pedro II», do Jornal do Comércio.
Convém acrescentar que no códice intitulado Brasil, sob nº 1.915, à
pag. 79 do Catálogo da Preciosa Livraria do eminente escritor Camilo
Castelo Branco, também aqui já citado, que entraria em leilão em Lisboa,
dezembro de 1883, apareceu cópia desse mesmo parecer vieirino, embora
com a data por engano dada como «1691». Teria sido a adquirida
pelo Imperador, sempre atento aos leilões de livros, mapas e manuscritos
de seu interesse? Em caso afirmativo, tê-lo-ia feito encadernar no citado
códice nº 221, se coincidissem as respectivas dimensões, com as de
outras valiosas peças nele contidas.
Erroneamente atribuído a «Teixeira Pinto» (aliás o portuense Bento
Tei xeira, apenas), mas, na verdade, como depois apuraram Capistrano
de Abreu e Rodolfo Garcia, aceitando-o Jaime Cortesão, de autoria do
também português Ambròsio Fernandes Brandão, constou dos imperiais
manuscritos cópia do inestimável Diálogo das Grandezas do Brasil,
do primeiro terço do século XVII (nº 204) . Constou, porque não está
no Palácio Grão-Pará, de Petrópolis.
Do poeta Pedro Antonio Joaquim Corrêa Garção (1724-1772),
várias são as composições contidas na Biblioteca de D. Pedro II
(nº 18). Sabendo-se que suas Obras só postumamente se publicaram,
em 1778 e 1812, delas edição mais completa, dedicada ao nosso Imperador, em Roma, 1888, artisticamente publicou o brasileiro Conselheiro
José Antônio de Azevedo Castro.j
Do erudito D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, Bispo de
Beja (1744-1814), obteve cartas inéditas a Biblioteca Imperial
(nº 147-E).
Acreditamos que tenha sido dada a D. Pedro II por Monsenhor
Joaquim Pinto de Campos, uma carta do militar e matemático português Francisco de Borja Garção Stockier (1759-1829), também
incluída no códice 221-1. Dirigida ao pernambucano João de Deus Pires
Ferreira, seu conhecido de Portugal. Datada de Angra, Açores, 21
de dezembro de 1820, quando o então Tenente-General governava o
Arquipélago, contém referências ao poeta, orador sacro e epistològrafo
brasileiro Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814).
Stockier, que tinha e tem parentes no Brasil, foi, em 1823, intitulado
Barão da Vila da Praia. ( 3 )
De José Agostinho de Macedo (1761-1831), possuiu curiosissima
carta o Imperador, de grande interesse para a História do Romantismo
em Portugal. A 20 de agosto de 1824 dirigida ao então jovem Antônio
Feliciano de Castilho, seu ofertante a D. Pedro II (Códice 221-K).
Por sua importância, já a divulgamos. ( 4 )
Do polígrafo, eventualmente político e Ministro Silvestre Pinheiro
Ferreira (1769-1846), tinha a Biblioteca Imperial duas peças valiosas.
A primeira, uma Mémoire sur l'origine et les progrès pontonniers chez
les anciens (n° 142-B) . com texto em francês, grego e latim, datada
de 1788, quando o depois filósofo teria apenas 19 anos de idade,
atestará sua precoce erudição. A outra, trabalho muito posterior: um
exemplar da De la Nature de l'Univers, de Lucano, impresso, mas
repleto de notas de sua autoria, com uma carta do Abade Delacouture
e a declaração da oferta do livro a D. Pedro II, pela filha de Silvestre (nº 41).
A primeira grande figura do romantismo em Portugal a desaparecer, como Antônio Feliciano de Castilho e Alexandre Herculano
ligada à corrente política liberal, em Portugal chefiada por nosso D.
Pedro I — foi João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett,
(3) Hélio Vianna — «Códice luso-brasileiro do Imperador», Folhetim do Jornal
do Comércio de 15 de novembro de 1969; «Carta de Garção Stockier a um amigo
pernambucano», idem, de 16 e 23 de janeiro de 1970.
(4) Hélio Vianna — «Importante documento para a História do Romantismo cm
Portugal — Carta de José Agostinho de Macedo ao jovem Antônio Feliciano de
Castilho», no boletim Cultura, do Conselho Federal de Cultura, Rio de Janeiro nº 32,
de fevereiro de 1970.
Visconde de Almeida Garrett (1788-1854). Não o conheceu pessoalmente D. Pedro II, como ocorreu aos dois antes citados. Era, entretanto, seu admirador, como prova a concessão, que em 1852 lhe fêz,
da Grã-Cruz da Ordem da Rosa. Pelo escritor agradecida em carta
que o Imperador guardou. ( 5 )
Em 1864, anunciando-se a realização, no Rio de Janeiro, de leilão
de livros remetidos de Lisboa pelo escritor Francisco Gomes de Amorim
(1827-1891), amigo e biógrafo de Garrett, apressou-se o Imperador a
mandar que o D r . Antônio d'Araújo Ferreira Jacobina, Ajudante do
Mordomo da Casa Imperial, nele tentasse comprar volumes que tivessem
pertencido ao grande escritor, talvez com suas anotações. ( 6 ) Entretanto, por intervenção de um amigo de Amorim, o bibliófilo lusobrasileiro Francisco Ramos Paz (1838-1919), não se efetivou o referido
leilão, devolvendo-se a Portugal os respectivos livros, acompanhados
da importância desejada pelo pretendente a vendê-los, 1:472$552 fortes
(moeda portuguesa), presente de seus admiradores do Brasil. ( 7 )
Mais tarde, pela primeira vez indo a Portugal D. Pedro II, em
1871 presenteou-o o teatrólogo Francisco Palha (1826-1890), ou o
bibliófilo Fernando Pereira Palha Osório Cabral, falecido em 1897,
com um original garrettiano, luxuosamente encadernado, o da peça um
noivado no Dáfundo, ou Cada terra com seu uso, cada roca com seu
[uso (nº 191). A dúvida quanto ao ofertante vem de constar, no
volume, apenas « F . Palha»; e na publicação do Catálogo «C», desconhecido «Flaminio Palha». Se Francisco era elemento oficialmente
ligado aos teatros lisboetas, ( 8 ) Fernando foi bibliófilo, sendo o
Catálogo de sua Biblioteca, em quatro tomos, impresso em francês,
Lisboa, 1896. (°) Quanto à peça, teve publicação póstuma, no Teatro
Moderno (Lisboa, 1857), conforme Inocencio, no Dicionário Biblio~
gráfico Português, vol. X, pag. 183.
Outro autógrafo de Garrett possuiu nosso Imperador: a carta,
datada apenas de «Julho 21», provavelmente de 1847, em que benèvolamente apreciou A Festa do Baldo — «Poema misto em oito cantos»,
(5) Alcindo Sodré — «Pedro II e intelectuais portugueses», no Anuário do
Museu Imperial, de Petrópolis, vol. VIII, de 1947, págs. 91-92.
Duvidosa cópia de obsceno soneto atribuído a Garrett, intitulado Cupido maganão,
contém-se no conjunto do nº 142-C.
(6) Bilhete ao Mordomo Conselheiro Paulo Barbosa da Silva, pertencente à
Sra. Carmen Rabelo Penido Monteiro, copiado por gentileza do Professor Américo
Jacobina Lacombe, também neto do Dr. Jacobina.
(7) J. Capistrano de Abreu — Francisco Ramos Paz (Rio de Janeiro, 1920),
reproduzido em Ensaios e Estudos (Crítica e História), 2' Série (Rio, 1932), pag. 208.
( 8 ) MEndes
dos Remédios — Historia da Literatura Portuguesa. 6? ed. (Lisboa,
1930), pag. 516.
(9) Rubens Borba de Moraes — Bibliografia Brasiliana (Amsterdam — Rio
de Janeiro, 1958), vol. II, pag. 129.
naquele ano em Lisboa publicado pelo diplomata brasileiro Álvaro
Teixeira de Macedo (1807-1849). Em reedição de 1868, do Rio de
Janeiro, de A Festa, reproduziu-se a honrosa apreciação crítica garrettiana. Que também figura nas Obras de Almeida Garrett, vol. I
(Porto, 1963), pag. 650. Original no citado códice 221-L, da Biblioteca
Imperial.
Ainda quanto aos poetas portugueses que do século XVIII passaram, ou não, ao seguinte, outra curiosa observação deve ser feita,
relativamente aos de cujos versos possuía cópias, ou originais, o
Imperador D. Pedro I I .
Assim, do citado Corrêa Garção, teve o editor Azevedo Castro o
cuidado de excluir, de suas Obras Poéticas e Oratórias, todos os sonetos
que, com benevolência, julgou apenas do «gênero picaresco» — «a
fim de não macular o livro» (págs. X X X V I e X X X V I I da respectiva
«Introdução»).
Não incluindo, portanto, versos fesceninos, que, não se sabe com
que procedência, também lhe atribuiu o coletor dos Sonetos inéditos
do nº 142-C, do Catálogo «C», de Alberto Rangel. Nos quais, a poesia
erótica portuguesa daquela época tem larga e impressionante representação. Quanto aos versos de «demasiada soltura», existentes em
coleção que pertenceu ao Morgado de Assentis (também citado quanto
a Francisco de Paula Cardoso), confirmou sua existência o bibliògrafo
Inocencio, em seu Dicionário, vol. VI, pag. 392.
Além de Garção, no pequeno e sujo códice está mais longamente
presente o famoso Antônio Lobo de Carvalho, nascido, supõe-se, em
Guimarães, por volta de 1730, falecido em Lisboa, 1787. ( 10 ) José
Daniel Rodrigues da Costa (1757-1832), chistoso pasquineiro miguelista; João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838), Deputado às
Cortes, preso de 1828 a 1833, poeta em grande parte inédito; Ricardo
José Fortuna (1776-1860), ponto dos Teatros Nacionais, folgazão e
plagiàrio autor de farsas e de uma Elegia ao verdadeiro patrono da
classe, que seria o famigerado José Agostinho de Macedo; Pedro José
Constancio (1778-1818), irmão de Francisco Solano Constancio, autor
de versos publicados em coletânea de Poesias Eróticas, Burlescas e
Satíricas de Manuel Maria Barbosa da Bocage, outro astro do gênero,
aparecida em Bruxelas, 1854; Antônio José Maria Campeio (17801851), poeta de muitos inéditos; de Domingos Monteiro de Albuquerque e Amaral (1744-1830), de quem muitas poesias se perderam,
segundo Inocencio, é um soneto em que advertia a José Agostinho ser
«tempo de mudar de ofício». E ainda o já mencionado Francisco de
(10) Segundo Inocencio, no Dicionário, vol. I, pag. 186, Poesias Joviais e
Satíricas de Antônio Lobo de Carvalho somente em 1852, publicaram-se em Cádis,
com 200 sonetos e 10 décimas, Apontamentos sobre sua vida: «a frase descomposta
e termos obscenos as tornam incapazes de serem lidas pelas pessoas que se abonam
de exemplares e modestas».
Paula Cardoso de Almeida e Vasconcelos, Morgado de Assentis ( 17691847). autor e tradutor de peças teatrais, segundo Inocencio, Dicionário,
vol. III. págs. 21-22. Súcia das mais representativas, no setor da
obscenidade poética, cujas produções, não se sabe como, foram parar
na Biblioteca Imperial. Talvez provindas das coleções do bibliógrafo
português, de quem nos servimos, para as informações acima. Ainda
no mesmo grupo, incluem-se Pedro Caetano Pinto de Morais Sarmento e o Padre Henrique José de Castro (1764-1829), de quem
Inocencio não cita obras satíricas, no Dicionário, vol. III, pag. 185.
De Antônio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), o Elpino Nonacríense da Arcàdia, muitas são as poesias, em cópias (quem sabe se
algumas originais?), existentes na Biblioteca Particular de Sua Majestade, inclusive as relativas a sua nada brilhante passagem, como
magistrado, pelo Brasil. Assim, dedicada a «José Antônio da Silva,
assistente em Pernambuco», é «O Cristal e o Topàzio». «O Cauibi»
(sic) — «ao Sr. Luis Botelho». «O Tyé» (sic), com anotações. Em
conjunto oferecido à Princesa do Brasil, D. Maria Francisca Benedita
(n° 18) . Das Metamorfoses, notas e variantes dignas de estudo por
quem superar a antipatia que merece o julgador dos conjurados mineiros
de 1789. Talvez contribuíssem para diminuir a dura opinião de Nuno
Álvares Pereira Pato Moniz, de «que mais parecem prosa arrevezada
que versos endecassílabos» (nº 35-F) .
Menos conhecido é outro poeta português também representado
nos manuscritos da Biblioteca Imperial: Bento José de Sousa Farinha,
em 1820 falecido em Lisboa. Dele é uma Análise da Epístola «ad
Pisones», vulgo «Arte Poética», de Q. Horacio Flaco (n° 39) . Quando
a redigiu, era Professor Règio de Retórica, na cidade de Lamego, a
9 de junho de 1801.
com, Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875), manteve D.
Pedro II boas relações epistolográficas e pessoais, como atestam
documentos de sua Biblioteca.
Primeiramente, quatro cópias vendidas por Andrade Cardoso à
Imperatriz D. Leopoldina: Monólogo recitado pelo autor, no Domingo
Gordo do ano de 1817, antes da representação do entremez intitulado
«O Manuel Mendes»; Epístola ao Sr. ]osé Peixoto do Vale; Epístola
ao Marquês de Aguiar; A Desesperação — Idilio (nº 130) . Conjunto
que no Catálogo «C» figura como Menoliso teatral. Obras da mocidade do autor.
De maior valor, o Camões — Estudo histórico-poético. Ubèrrimamente fundado sobre um drama francês dos Srs. Victor Perrot e
Armand du Mesnil. Dedicado a D. Pedro II, a quem Castilho enviou
o respectivo autógrafo. A publicação foi de Ponta Delgada, Açores,
1849; tendo segunda, em três tomos, Lisboa, 1863.
Castilho, que em 1855 esteve no Rio de Janeiro, foi espontâneo
fornecedor de manuscritos literários portugueses à Biblioteca do Impe-
rador do Brasil. É o que se comprova em três cartas que dirigiu ao
amigo deste, o então Barão (depois Visconde) de Bom Retiro, em
1872. com tôdas os enviou, «para o repositório do nosso Imperial
coletor, se êle se digna de os aceitar». ( n ) um dêles, a interessante
carta que a 20 de agosto de 1824 lhe dirigiu José Agostinho de Macedo, acima mencionada.
Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo (1810-1877), talvez
o mais notável escritor português do século passado, sem dúvida o
maior historiador de seu país, na mesma centúria, também figurou entre
as amizades literárias do Imperador D. Pedro II. como Castilho
superior às vaidades dos que se contentam com a obtenção de distinções
honoríficas, também pediu licença para recusar a Grã-Cruz da Ordem
da Rosa, com que o distinguiu o soberano. Por coincidência, ambos
o fizeram no mesmo dia, em cartas de 20 de agosto de 1872: de Lisboa,
a do já Visconde de Castilho; de Val-de-Lôbos, a de Herculano. Este,
com justo motivo para a recusa: o ter também recusado a Comenda
da Tórre e Espada, Que lhe oferecera o falecido amigo D. Pedro V,
de Portugal. Castilho, um tanto cáustico, ao acentuar, quanto às
«honras que se despem com a casaca», como dizia o próprio monarca:
«Reserve-as Vossa Majestade para quem mais valha, e não lhe faltará
em quem as Empregue. Poupe-as, sobretudo, para quem necessitar
desses estímulos; para os que julgam ocultar-se nas veneras (sic) uma
virtude transmutativa do interior, que basta aplicá-las a um peito, para
que um espírito se ilumine». ( 12 ) Acreditamos, porém, que a causa
da indelicadeza teria sido outra: o não ter o Imperador galardoado
com uma condecoração brasileira o irmão de Castilho, desde 1847 aqui
residente, José Feliciano. Para o qual inùtilmente solicitou uma, em
setembro de 1866, em, carta ao prestigioso amigo de D. Pedro II que
era o então Visconde de Sapucaí, o desabusado Deputado Monsenhor
Joaquim Pinto de Campos. ( 13 ) A razão da má vontade do Imperador
quanto a José, terá sido, provavelmente, as más informações a seu
respeito dadas, quando de sua trasladação para o Brasil, pelo então
Ministro brasileiro em Portugal, Conselheiro Antônio de Meneses V a s concelos de Drummond, conforme minutas da correspondência deste,
guardadas no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
um original por Camilo Castelo Branco atribuído a Alexandre
Herculano, mas não de sua autoria, na autorizada opinião de seu amigo
Antônio de Serpa Pimentel, e do meticuloso crítico de sua obra, J. J.
Gomes de Brito, ambos citados pelo bibliògrafo Brito Aranha, o continuador de Inocencio Francisco da Silva no Dicionário Bibliográfico
(11) Alcindo Sodré — op. cit., págs. 98, 100 e 101.
(12) Alcindo Sodré — op. cit., pag. 104-105, 130-133.
(13) Original no Arquivo da Família Imperial do Brasil, no Museu Imperial,
de Petrópolis, maço 139, documento nº 6.806, do «Inventário» de Alberto Rangel.
Folha de rosto de cópia da Parte I do Castrioto Lusitano — Entrepvesa e
Restauração de Pernambuco e das Capitanias Confinantes. Varios e Bélicos Sucessos
entre Portugueses e Belgas, acontecidos pelo discurso de vinte e quatro anos, e tirados
de Noticias, Relações e Memórias certas.
Compostos em forma de História.
Obra
de 1679, em louvor do madeirense brasileiro Mestre-de-Campo João Fernandes Vieira.
escrita pelo beneditino português Frei Rafael de fesus.
Códice que pertenceu à Livraria de um Convento português, conforme se lê na
última linha desta folha de rosto; depois à Coleção de Manuscritos da Biblioteca
Particular de Sua Majestade o Imperador do Brasil, D. Pedro II; hoje de seu bisneto,
Sua Alteza Imperial o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, no Palácio
Grão-Parã,
Petrópolis.
Fotocópia mandada fazer pelo falecido historiador pernambucano Guilherme Auler
(1914/1965), que a ofereceu ao autor deste trabalho dedicado aos Manuscritos
da Biblioteca Imperial.
Português, — também possuiu D. Pedro II. Talvez dado pelo diplomata e poeta Luis Caetano Pereira Guimarães (1847-1898), antes
possuidor do exemplar quanto àquela autoria anotado por Camilo.
Trata-se da sátira Os Pedreiros, cujo autógrafo (ou cópia) tem o
nº 134 no Catálogo «C», de Alberto Rangel. Escrita em 1828, quando
Herculano tinha apenas 18 anos de idade, não poderiam ser dele, apesar
da precocidade de sua inteligência, as eruditas notas que acompanham
o trabalho, em comentário a versos de Homero. Será, antes, de autoria
do famoso panfletário José Agostinho de Macedo. ( 14 )
No já citado códice 221, da Biblioteca Imperial, letras Y e Z,
figuram duas cartas de Herculano ao então Padre, depois Monsenhor
Joaquim Pinto de Campos, político e escritor pernambucano (18191887) . Pelo destinatário certamente oferecidas ao Imperador, como
outras que no mesmo precioso conjunto se encontram. São, aquelas,
de 1856 e 1857. Documentam o estado de espírito do escritor, então
desanimado com o incidente que determinou a interrupção de sua
monumental História de Portugal, indignado com a Concordata por
seu país assinada com a Santa Sé, a propósito do Padroado do Oriente,
causa de veemente folheto seu, de protesto, do último ano citado. ( 15 )
De 1815 possuía a Biblioteca Particular de Sua Majestade o Imperador, uma cópia da terceira edição da Nova Castro, de João Batista
Gomes (Nº 29).
Grande como era a «Camoneana» de D. Pedro II, natural é que
também entre os manuscritos de sua Livraria aparecesse o drama Camões, do português, radicado em Santos, Francisco Manuel Raposo de
Almeida ( n º 194). Publicou-o nessa cidade, em 1851, conforme registrou Inocencio em seu Dicionário, vol. II, pag. 458.
uma cópia do poema As Abelhas, em quatro cantos, do Dr. José
Pinto Rebelo de Carvalho, português falecido em Campos, estava acompanhada, na Biblioteca Imperial, de carta de José Feliciano de Castilho
Barreto e Noronha, de 31 de dezembro de 1867, dirigida a um Visconde,
certamente o de Sapucaí. Diz tratar-se de um «dos primeiros poemas
didáticos de nosso idioma». Desejava mandar a cópia a Lisboa, mas
antes o fêz àquele titular, porque algumas oitavas eram dedicadas ao
seu «imperial discípulo», — o que identifica o destinatário. Acompanhava o poema, sugerido pela leitura de Virgílio, o respectivo «Argumento» (N'º 74).
(14) Os argumentos citados são de Antônio de Serpa Pimentcl e J. J. Gomes
de Brito, no vol. do Dicionário Bibliográfico Português dedicado a Herculano, o
XXI, 14: do Suplemento de Brito Aranha (Lisboa, 1914).
(15) Hélio Vianna — «Cartas de Alexandre Herculano a Joaquim Pinto de
Campos», na Revista Brasileira de Cultura, do Conselho Federal de Cultura, n° 4,
de abril-junho de 1970, págs. 145-151.
HISTÓRIA DO BRASIL
como é natural, a História do Brasil está bem representada, nos
manuscritos que fizeram parte da Biblioteca do Imperador, hoje pertencente a seu bisneto, o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans,-Bragança, que gentilmente os colocou à nossa disposição, para este ensaio.
Já mencionamos algumas de suas peças, devidas a autores portugueses, quando tratamos da História de Portugal naquela Livraria.
A propósito, poder-se-á afirmar que também quanto à organização
de uma «Brasiliana», bibliográfica e em manuscritos, foi precursor Dom
Pedro II.
Do começo de nossa História, de meados do século XVI, possuía
cópias de cartas de Duarte de Lemos, irrequieto sesmeiro da Capitania
do Espírito Santo, bem como do grande Governador Mem de Sá. Enviadas pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, como tantos
outros frutos de suas pesquisas nos Arquivos europeus ( n º 192).
Relativo ao lendário quinhentista Frei Pedro Palácios c a Penha
(o Convento do Espírito Santo), é um manuscrito datado de 1879, de
autoria de Joaquim José Gomes da Silva Neto ( n º 161).
Também se refere a episódios do século inicial do Brasil, outra cópia pelo futuro Barão e Visconde de Porto Seguro enviada ao Imperador: a do Sumário das Armadas que se fizeram e Guerras que se deram
na Conquista do Rio Paraíba, inestimável depoimento atribuído ao jesuíta
Padre Simão Travassos ( n º 219-B).
Cópia de obra da centúria seguinte, interessante ao nosso país, é a
das Observações sobre a transplantação dos [rutos da índia para o Brasil,
em 1675 publicada em Paris por Duarte Ribeiro de Macedo ( n º 141-A).
A luta contra os invasores holandeses do Nordeste do Brasil, está
representada, entre os manuscritos da Biblioteca Imperial, por um apògrafo do Castrioto Lusitano, de 1679, de Frei Rafael de Jesus, relativo
a João Fernandes Vieira (Nº 207). Dele tirou cópia fotostática integral
o pesquisador pernambucano Guilherme Auler (1914-1965).
Do Padre Antônio Vieira, já mencionamos, na parte relativa às
Ierras Portuguesas, seu Voto . . . sobre as dúvidas dos moradores de São
Paulo, acerca da Administração dos índios.
Também guardou D. Pedro II os originais de A Vida de Antônio
Vieira, de João Francisco Lisboa, dado apenas como «Escritos diversos»,
datados de 14 de junho de 1872, no «Inventário» de Alberto Rangel
{Catálogo «C», nº 152). Incluíram-se no quarto volume das Obras
Completas do escritor maranhense. Ofereceu o manuscrito ao Imperador seu dedicado editor, Antônio Henrique Leal, em Lisboa, naquela
data.
Também enviadas por Varnhagen a D. Pedro II, foram cópias das
Notícias Práticas, relativas às Minas Gerais, do jesuíta Padre Diogo
Soares, já do Reinado de D. João V (N? 193).
Já aludimos, na parte referente à História de Portugal, às Cartas
do brasileiro Alexandre de Gusmão. Além do que ali foi citado, também
de grande interesse nosso, pelo seguimento cronológico e fatual, são certas Carras courra os Jesuítas do Paraguai, de 1753 e 1754 ( n º 119), em
espanhol, alusivas ao Tratado de Madrid, de 1750, e suas conseqüências,
quanto à cessão, a Portugal, em troca da Colônia do Sacramento, dos
Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai. Razão pela qual deverão ser confrontadas com os «Documentos sobre o Tratado de 1750»,
publicados nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vols. LII
e LIU. de 1930 e 1931 (Rio, 1938), oriundos de cópias na Espanha
feitas por Varnhagen, hoje no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores. E com os Manuscritos da Coleção De Angelis, volume IV, que na mesma Biblioteca publicamos, contendo peças relativas
àquele período.
Ainda com ligação ao assunto da exploração de nossas futuras fronteiras, é o manuscrito da Navegação do Pará a Mato Grosso, partindo
de Belém a 14 de julho de 1749, atingindo o porto da Pescaria, no Rio
Madeira, a 14 de abril de 1750, de José Gonçalves da Fonseca ( n º 158).
Embora impressa na Coleção de Noticias para a História das Nações
Ultramarinas, da Academia Real das Ciências, de Lisboa, tomo IV, de
1826, lembrou Varnhagen, em nota à História Geral do Brasil (3* ed.,
tomo IV, pag. 108), que se deveria acrescentar o apenso publicado na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 29, parte I,
de 1866, vol. 32. Acrescentando Rodolfo Garcia (idem, pag. 109), que
boas notas contém a publicação devida a Cândido Mendes de Almeida,
nas Memórias para a História do Extinto Estado do Maranhão (Rio,
1874), vol. II, págs. 267-416. A cópia do Imperador, procede de venda
feita à Imperatriz D. Leopoldina por Andrade Cardoso.
Diretamente ligada ao Marquês de Pombal e às questões de limites,
ao Norte, Noroeste e Oeste do Brasil, é a Instrução Política dirigida
a seu meio-irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador
e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão ( n º 214).
Conviria fossem confrontadas com as Instruções Regias, Públicas e Secretas, a êle dadas a 31 de maio de 1751, publicadas por Marcos Carneiro de Mendonça em A Amazônia na Era Pombalina, edição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo I (Rio, 1963), págs. 26-38.
Não teve a sorte de um bom aproveitamento erudito, certo Roteiro
dos Rios da Amazônia, de Monteiro de Noronha, pois o exemplar do
Imperador ( n º 55), está truncado, começando à pag. 18, notas de números 39 a 192. Contém «Lista de Povoações do Bispado do Pará».
Tratar-se-á do trabalho do Vigário-Geral do Rio Negro, José Monteiro
de Noronha, que o original paraense Filipe Alberto Patroni Martins
Maciel Parente primeiramente publicou no Jornal de Coimbra, número
LXXXVII, parte 1 ? ; saiu, depois, na Coleção de Notícias para a His~
tória e Geografia das Nações Ultramarinas, tomo VI, nº I; no Pará, em
1862; afinal, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
tomo 67, parte 1\ de 1904, vol. 109. Somente um confronto do manus-
« i t o imperiai com os textos já publicados permitiria a conclusão quanto
a conter alguma parte inédita ou diferente, útil à Geografia e História
Amazônicas.
Do Reinado de D. Maria I, talvez em parte reabilitando seu, para
nós tão antipático Secretário de Estado, Martinho de Melo - e Castro,
será sua Memória para o Melhoramento dos Domínios de Sua Majestade no Brasil (Nº 220-A).
um Roteiro Corogràfico de 1781., do Sargento-Mor Engenheiro João
Vasco Manuel de Braun, é o de mais uma Viagem entre Belém do Pará
e Vila Bela de Mato Grosso ( n º 220). Publicou-se na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 23, de 1860, parte 1 ',
vol. 23, com outro trabalho seu, que Rodolfo Garcia citou em nota à
História Geral do Brasil, de Varnhagen, 5* ed., tomo IV, pag. 277.
De interesse tanto histórico quanto literário, são duas cópias do
poema Vila Rica, do conjurado mineiro Cláudio Manuel da Costa, datado de 1773, com o respectivo «Prólogo». Embora uma delas muito
estragada, talvez a mais antiga, não a adquirida pela Imperatriz D. Leopoldina a Andrade Cardoso (Nº 36).
Datada de 1799 é a Memória sobre a Capitania das Minas Gerais,
de José Vieira Couto, em cujo manuscrito anotou D. Pedro II: «Impressa
na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XI», de
1848 ( n º 142-A).
Do último ano do século XVIII, 1800, é uma prudente carta do
Ministro da Marinha e Negócios Ultramarinos do Príncipe-Regente
D. João, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois Conde de Linhares,
aliás neto de brasileira do Rio de Janeiro. Dirigida a D. João de Almeida Melo e Castro, depois Conde das Galveas, então Ministro de
Portugal na Inglaterra, pedia-lhe chamasse a atenção do governo britânico para a necessidade de socorro de seus navios aos portugueses, que
iam e vinham do Brasil ( n º 221-N). como de costume, foi bom profeta o missivista, pois, no ano seguinte, em conseqüência da Guerra
Peninsular, atacou a fragata francesa La Chiffonc, nas costas da Bahia,
a portuguesa Andorinha. (16)
Entrando o século XIX, avulta a contribuição relativa à História
do Brasil, nos manuscritos da Biblioteca Imperial.
De sua mãe, a Imperatriz D. Leopoldina, guardou D. Pedro II um
caderno do ano de seu casamento, 1817, contendo Mes Résolutions.
com uma gravura de caráter religioso, e, impresso, seu sinête (Nº 25).
Duas cartas e um bilhete de D. João VI a seu bom Ministro Tomás
Antônio de Vila Nova Portugal, de 1818 e 1820, — já foram mencionados na parte relativa à História de Portugal, embora interessem à do
Brasil.
(16) Hélio Viana — "Manuscritos da Biblioteca do Imperador", Folhetim publicado no Jornal do Comércio de 12 de dezembro de 1969.
De reconhecida importância são as cartas do Príncipe-Regente
D. Pedro, logo depois Imperador D. Pedro I, ao pai, Rei de Portugal,
datadas de 17 de setembro de 1821 e 6 de agosto de 1822. Embora
muitas vêzes publicadas, nem sempre com inteira fidelidade, dúvidas que
a respeito ainda se mantêm poderão ser esclarecidas mediante consulta
a esta fonte fidedigna. Mais raras, provavelmente inéditas, duas cópias
de cartas de D. Pedro à sua mãe, D. Cariota Joaquina, de 7 de novembro de 1821 e 14 de março de 1822. como outra, déle dirigida a outro
«Pedro», talvez o então Conde de Pálmela, D. Pedro de Sousa Holstein. (Tôdas no nº 233, em «Copiador de cartas», «começado de um
e outro extremo», conforme a anotação de Alberto Rangel, no Catálogo «C»).
Ainda quanto à Princesa do Brasil, Rainha de Portugal e Imperatriz nominal do Brasil, D. Carlota, profundamente interessam à História
das intervenções luso-brasileiras no Rio da Prata, no período joanino
carioca, quatro grandes volumes de copiadores de sua Correspondência
( n º 261). Em um dêles, encontramos decisiva documentação quanto
ao famoso e indecoroso Plan de Moreno, por ela enviado ao irmão Fernando VII de Espanha. Aproveitou-a, no livro Epifanía de la Libertad
— Documentos secretos de la Revolución de Mayo, o historiador argentino Enrique Ruiz-Guiñazú (Buenos Aires, 1952), decidindo, de vez, a
questão da autenticidade daquele documento.
Do mesmo período é a Descrição ou Roteiro da Viagem às Feitorias
do Maranhão e Goiás no ano de 1815, de Francisco de Paula Ribeiro
( n º 124).
Simples extratos das Memórias para servir à História do Reino do
Brasil, do Padre Luis Gonçalves dos Santos (Padre Perereca), relativas
ao ano de 1818, numa das cópias vendidas por Andrade Cardoso à
Imperatriz D. Leopoldina ( n º 121).
Também se refere a acontecimentos anteriores à Independência do
Brasil, a Recordação dos Acontecimentos da Bahia em 1821, de Antônio
Ferreira Rebouças ( n º 179). Publicadas no Rio de Janeiro, 1879, em
suas Recordações Patrióticas, com ocorrências posteriores.
uma Carta sobre a Agricultura e Comércio da Bahia ( n º 141),
ampliou-se para Cartas-Econômico-Políticas sobre a Agricultura e Comércio da Bahia, do português João Rodrigues de Brito (Lisboa, 1821 ),
há anos reeditadas pela Livraria Progresso, da Bahia, com o título A
Economia Brasileira no alvorecer do século XIX.
Importantes, embora já exploradas por Alberto Rangel, em Trasantcontem (São Paulo, 1943), em síntese, são as Aras do Apostolado
(Ns. 42 e 243), a Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz, sociedade secreta andradina, de que fêz parte o Príncipe-Regente D. Pedro,
logo depois Imperador. Datadas de 1822-1823 e de 23 de fevereiro
a 27 de maio de 1823, estas as da Terceira Palestra.
Também de interesse histórico, pelas identificações que contém, é
o livro de Juramentos Maçônicos (N° 44). Provavelmente arrecadado
por D. Pedro I, quando temporariamente fechou a Maçonaria em outubro de 1822. Além de sua assinatura, «D. Pedro de Alcântara», em
primeiro lugar, mais as de José Bonifácio de Andrada e Silva, Luis da
Nóbrega de Souza Coutinho, Joaquim Gonçalves Ledo, João Mendes
Viana, José Clemente Pereira, José Joaquim de Lima e Silva (depois
Visconde de Majé), Manuel Carneiro de Campos, Albino M. dos
Santos Pereira, Pedro José da Costa Barros, Ataíde Moncorvo, Manuel
Joaquim de Meneses (depois historiador da Maçonaria Brasileira), Luis
Manuel Álvares de Azevedo, João Egidio Calmon, Manuel da Fonseca
Lima e Silva (futuro Barão de Suruí), Francisco José dos Reis Alpoim,
Amaro Velho da Silva (depois í" Visconde de Macaé), Rui Germano
Possolo, Joaquim Francisco Leal, Manuel Inocencio Pires Camargo,
Bernardo José de Figueiredo, Joaquim José de Sequeira, Antônio Corrêa Picanço, José Maria Pinto Peixoto, João Martins Lourenço Viana,
Francisco de Paula e Vasconcelos, Domingos Ribeiro dos Guimarães
Peixoto (mais tarde \° Barão de Igaraçu), Domingos Alves Branco
Muniz Barreto, Frei Francisco de S. Paio (sic), Francisco Maria V e loso de Barbuda (Barão de Pati, Visconde de Lorena e Marquês de
Jacarepaguá), João Vieira de Carvalho (Barão, Conde e Marquês de
Lajes), Manuel Antônio Farinha (Conde de Souzel), José Egidio Gordilho Veloso de Barbuda ( 1 ' Visconde de Camamu ), Antônio Gomes
Barroso Filho, José Muniz de Amorim Rangel, C. ten Brinck, Manuel
José de Sousa França, Manuel Teodoro d'Araújo Azambuja, João da
Rocha Pinto E.S. (Eleito Secreto), João Crisóstomo Passo (Rosa Cruz),
Manuel Antônio Álvares de Azevedo, João Maria da Gama e Freitas
Berquó (Barão, Visconde e Marquês de Cantagalo), Luis de Saldanha
da Gama (Visconde e Marquês de Taubaté). Figuras, como se vê,
das mais representativas da Regência de D. Pedro, da Independência e
do Primeiro Reinado.
Pela Constituição do Oriente Brasileiro, juravam os maçons: «Prometo não ter tratos ilícitos com esposa, mãe, filhas e irmãs de Mações
(sic) e ser extremoso pai, desvelado esposo, obediente filho, honrado
cidadão, exemplar religioso e prestável amigo».
A Abdicação de D. Pedro I, sua estada no porto do Rio de Janeiro,
de 7 a 12 de janeiro de 1831, a viagem para os Açores e Europa, estão
bem documentadas em seu Copiador denominado «Miscelánea» (Número 163) . «Atos públicos e particulares», como esclareceu Alberto
Rangel, em grande parte já explorados por Otávio Tarquínio de Sousa
c pelo autor destas notas, por gentileza de D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, trineto do Fundador do Império.
Ainda de 1831 existe na Biblioteca Imperial um poema «semi-burlesco» — A Piriseida ou os Rusgucntos, contra o então Presidente da
Província de Santa Catarina, Feliciano Nunes Pires ( N : 53-A).
Do tempo da preparação, para o exercício de suas funções majestáticas, do Imperador D. Pedro II, é a Católica Instrução de um Pai a seu
Filho, de 1838, de Baltazar da Silva Lisboa (1751-1840), dedicada ao
Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, destinada aos alunos do
recém-criado Imperial Colégio de Pedro II, mas que permaneceu inédita
( n º 12). Talvez pela saída do governo de Bernardo, em 1839, e morte
do autor, no ano seguinte. Não consta da lista das obras de Baltazar,
apresentada por A. V. A. Sacramento Blake, no Dicionário Bibliográfico
Brasileiro, vol. I.
Do diplomata Miguel Maria Lisboa, depois Barão de Japurá, guardou D. Pedro II o manuscrito de uma Memória sobre as Relações entre
o Brasil e a Venezuela, de 1847 (N'-1 46).
Quando o Imperador foi visitar Provincias da Costa Leste e Nordeste, em 1859-1860, procurou informar-se, por escrito, sobre os locais
históricos que visitaria. Motivo pelo qual para êle redigiu o pernambucano Adelino Antônio de Luna Freire — Apontamentos sobre Igaraçit
( n º 11). Guilherme Auler, quando preparou a publicação da imperial
Viagem a Pernambuco em 1859, edição do Arquivo Público Estadual,
do Recife, em sua Revista, vol. 7-8, de 1950-1951, e em separata, ã
instituição também enviou cópia daquela monografia, para posterior divulgação. O autor era Juiz Municipal de Igaraçu (op. cit., pag. 89).
Também tem interesse histórico, além do geográfico, a Viagem ao
Paraguai, em fevereiro e março de 1869, em forma de cartas ao Tenente-Coronel Benedito Marcondes Homem de Melo, escrita por Francisco
Inácio Marcondes Homem de Melo (Barão Homem de Melo). O
original contém parte manuscrita, parte em recortes de jornal, colados
em folhas de papel ( n º 6 ) . Dado por Joaquim Luis Osório, filho do
Marechal Marquês do Erval, ao ex-Príncipe do Grão-Pará, D. Pedro
de Orléans-Bragança. Não figurou, portanto, na Biblioteca do Imperador.
Publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 36. parte 2*, vol. 47, de 1873.
Para a boa compreensão da orientação política de D. Pedro II, como
titular do Poder Moderador, tem grande importância o manuscrito
nº 255 de sua Biblioteca, no Catálogo «C» apenas apresentado como
«Livros (sic) de Rascunhos». Trata-se, nada menos, que das Instruções pelo Imperador dadas à filha D. Isabel, Princesa Imperial, quando,
pela primeira vez, iria ausentar-se do país, deixando-a na Regência do
Império. Publicou-as, em 1956, em fac-símile, o Príncipe D. Pedro
Gastão de Orléans-Bragança. No ano seguinte, devidamente aproveitou-os, em A Democracia Coroada, João Camilo de Oliveira Torres.
Transcreveu-as, o mesmo historiador, em erudita edição crítica — Cons e j o s a Regente (Rio, 1958).
A emancipação da escravatura foi assunto tão empolgante, no mesmo ano de 1871, que Idéias para coordenar a respeito, escreveu e publicou, nesse ano, a parteira Maria Josefina Matilde Durocher (1808-1893), ficando com o Imperador o respectivo manuscrito ( n º 47).
Nascida em França, a autora aqui se integrou, diplomando-se e pertencendo à Academia Imperial de Medicina.
De Roberto Armênio é um manuscrito da Biblioteca Imperial dedicado à Guerra Platino-Brasileira, datado de 14 de abril de 1874 (Número 258 ). Do autor, declarou Sacramento Blake, em seu Dicionário,
vol. VII, não saber se se tratava de nome autêntico ou pseudônimo,
apontando-lhe outras obras, relativas às máquinas a vapor e Estrada
de Ferro de São Fidélis a Santo Antônio de Pádua, na Província do
Rio de Janeiro.
Interessando-se por tudo quanto se referisse ao Brasil, inclusive
quanto às possibilidades de desenvolvimento econômico, natural é que
fosse ter à Biblioteca do Imperador, embora com oferta a seu neto, o
Príncipe do Grão-Pará, filho de D. Isabel e do Conde d'Eu, um Catálogo de Madeiras do Brasil, do Capitão de Estado-Maior de Artilharia
Norberto de Amorim Bezerra, datado de 1887, acompanhado das respectivas amostras ( n º 3 8 ) .
De José Augusto Caldas, um Vocabulário dos Bororós ( n º 89).
LITERATURA BRASILEIRA
Muitos manuscritos da Biblioteca Particular do Imperador, que poderiam ser classificados entre os de Literatura Brasileira, já foram mencionados, em páginas anteriores, dedicadas à História e Letras Portuguesas, como à própria História do Brasil. São os casos, por exemplo,
das cópias de trabalhos e cartas do santista Alexandre de Gusmão.
Do original da biografia do Padre Antônio Vieira, por João Francisco
Lisboa. E ainda as cópias do poema histórico Vila Rica, do conjurado
mineiro Cláudio Manuel da Costa.
Neste capítulo não os repetiremos, acrescentando apenas os a ela
especificamente ligados. Também não poderemos manter ordem rigorosamente cronológica, embora às vêzes nos atenhamos às datas de nascimento dos autores, noutras ocasiões às dos trabalhos em apreço.
Começando pelo século XVII, convém lembrar que pertenceram a
D. Pedro II, sendo, atualmente, da Seção de Manuscritos de Obras
Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, dois códices de poesias
do famoso satírico baiano Gregorio de Matos Guerra (1623-1693), o
Boca do Inferno. Serviram, parcialmente, para as últimas publicações
de suas Obras: a da Academia Brasileira de Letras, em seis volumes,
de 1923-1933, organizada por Afrânio Peixoto; da Editora Cultura, de
São Paulo, 1943, em dois volumes; da Editora Janaína, da Bahia, em
sete tomos, de 1970, arbitràriamente preparada por James Amado sob
o título Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Procederam, aqueles
dois códices, da Livraria do bibliògrafo Inocencio Francisco da Silva,
que os mencionou em seu Dicionário Bibliográfico Português, tomo III.
uma tradução do poema Sacchari Opificio Carmen, do carioca Padre Prudencio do Amaral (1675-1715), sobre a indústria do açúcar, fêz
João Gualberto Ferreira dos Santos Reis, nascido em Santo Amaro,
Bahia, falecido cm meados do século passado, irmão de Ladislau dos
Santos Titara. Sob o título Geórgica Brasileira possuia-a D. Pedro II,
tendo o nº 132 no Catálogo «C», do «Inventário» de Alberto Rangel.
Datada da Bahia, 1845, em dois tomos, dedicada ao Imperador. com
o mesmo título, passado para o plural, acompanhado da tradução do
De Rusticis Brasiliae Rebus Carmine, publicou a Academia Brasileira
de Letras, em 1941, os dois trabalhos, preparados por Regina Pirajá da
SiK'a como Geórgicas Brasileiras. Rubens Borba de Moraes datou a
tradução de João Gualberto de 1817.
De José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), de grande importância histórica e biográfica, é o seu Discurso de posse na Maçonaria
Brasileira, a 23 de julho de 1822, incluído em décimo-terceiro lugar (letra M ) , no precioso códice nº 221, da Biblioteca Imperial. Integralmente o publicamos, anotado, em três dos Folhetins do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, de 21 e 28 de novembro, 5 de dezembro de
1969; incluindo-o no livro José Bonifácio — Acréscimos à sua Biografia,
a ser publicado pela Comissão Estadual de Literatura, do Conselho Estadual de Cultura, de São Paulo. Trata-se de documento indispensável
à História da Independência do Brasil.
Dentre as obras andradinas puramente literárias, também na Biblioteca de D. Pedro II, inclui-se Titiro, tradução do Primeiro Idilio de
uma das Bucólicas de Virgílio ( n º 56). Consta das Poesias Avulsas
de Américo Elisio, em suas três edições, de Bordéus, 1825, Rio de laneiro, 1861 e 1942. Note-se que, ao contrário do Discurso maçônico,
não está essa versão na conhecida letra de José Bonifácio.
Quando no exílio, em Cauderan, perto de Bordéus, a 23 de outubro
de 1824 escreveu o Andrada a seus amigos Antônio de Meneses V a s concelos de Drummond e José Joaquim da Rocha, que continuavam em
Paris: «Traduzi a Primeira Écloga de Virgílio, e estou com a Segunda
entre mãos». (17)
Realmente, a última das Poesias Avulsas de Amé'
rico Elisio, na edição princeps, é exatamente «Titiro — Idilio primeiro
de Virgílio». Precedida da «Advertência» seguinte: «Não chamo às
Bucólicas de Virgílio Éclogas, mas sim Idilios, como os de Teocrito, a
quem imita; porque a palavra Écloga, em grego, não significa, em geral,
poesia pastoril, mas somente Obra escolhida, entre outras várias». (18)
Talvez seja do baiano Luis Antônio de Oliveira Mendes, nascido
em 1748, o Canto heróico a propósito da Fundação do Templo e Convento de Mafra ( n º 34-1). Conforme Rubens Borba de Moraes, «deixou inúmeros trabalhos inéditos, que estão provavelmente perdidos».
Dele citou, na Bibliografia Brasileira do Período Colonial (S. Paulo,
1969), págs. 230-234, duas Memórias de 1792, relativas à sua Máquina
de Dilatação c Contração.
(17)
Cartas Andradinas", nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
vol. XIV, de 1886-1887 (Rio, 1890), pag. 3.
(18) Op. cit., pag. 141.
No capítulo dedicado à Literatura Portuguesa, mencionamos a coleção de «Sonetos inéditos», quase todos obscenos, do nº 142-C da
Biblioteca Imperial. Nele também figuram dois autores brasileiros: Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), numa simples sátira estudantil, intitulada «Quem não souber que coisa é sabatina»; e o piauiense
Ovidio Saraiva de Carvalho e Silva, estudante em 1810 formado na
Universidade de Coimbra «que presumia de só fazer tão bons versos
como o grande poeta Ovidio», seu xará ou tocaio, autor de outro soneto
da suja coletânea.
Do dicionarista Antônio de Morais Silva (1757-1824), há uma
surpresa entre os manuscritos do Imperador: uma ode «À Grã-Bretanha», de 1808, em que exalta a aliada de Portugal, em sua luta contra
Napoleão ( n º 221-V). Embora assinada apenas pelas iniciais «A. M.
S.», contribui para essa atribuição de autoria o fato de ter o futuro
Senhor do Engenho de Muribeca se abrigado naquele país, quando
perseguido em Portugal pela Inquisição. Além de ter escrito pelo menos outra ode, esta já a favor do novo Império do Brasil e contra os
portugueses. (19)
De seu amigo, o poeta orador sacro e epistològrafo Padre Antônio
Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), há uma carta no mesmo códice
221-H, dirigida à jovem pernambucana D. Joaquina Angélica Pires Ferreira, filha de seu contemporâneo de Coimbra João de Deus Pires
Ferreira, futura Baronesa de Cimbres. Publicamo-la no boletim Cultura,
do Conselho Federal de Cultura, do Rio de Janeiro, nº 31, de janeiro
de 1970.
Dentre os escritores brasileiros pouco conhecidos, de que possui
manuscritos a Biblioteca Imperial, inclui-se o baiano Professor José
Francisco Cardoso de Morais. Sua Carmen, em latim, dirigida ao
Príncipe-Regente D. João, lá está, talvez no próprio original ( n º 108).
Para português vertida por seu amigo Bocage. Refere-se à expedição
de portugueses a Trípoli. Publicou-se em Lisboa, 1800, nas duas línguas, conforme referência de Rubens Borba de Moraes na Bibliografia
Brasileira do Período Colonial (S. Paulo, 1969), pag. 82.
Do maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864), vários são
os autógrafos da Biblioteca Particular de Sua Majestade. Nada menos
que a cópia da tão discutida tradução em verso da Odisséia, de Homero,
em dois volumes ( n º 271); a tradução do Livro Primeiro da Eneida
Portuguesa (sic) ( N ' 9 5 ) ; e a da Primeira Écloga de Virgílio (Número 139). A segunda, muito combatida por um protegido de D. Pedro II, por muito tempo residente em Paris, onde faleceu, o Dr. Caetano
Lopes de Moura (1780-1860).
A primeira obra, inteiramente ultrapassada, pela moderna versão do
Professor Carlos Alberto Nunes (S. Paulo, 1960).
(19) Hélio Vianna — "Manuscritos da Biblioteca Imperial", Folhetim publicado
no ¡ornai do com^-cío, do Rio de Janeiro, a 19 de dezembro de 1969.
Depois da cópia do Livro Primeiro, vem a do Livro Segundo; esta,
porém, começando pelo Livro XVI, à pag. 88, vai até o XXIV, pag. 147,
com «Nota» e «Advertência». O total, segundo um esclarecimento,
seria de 24 livros, com 12.106 versos. Ou, de acordo com outros dados: a versão em 9.398 versos, o original com 13.116. Grande total:
2 2 . 5 H versos. Cópia feita por Carlos de Barros Falcão Cavalcanti
de Albuquerque Lacerda, em 51 dias, não em 31, como fora calculado.
com duas datas, que perfazem os 51 dias: 23 de dezembro de 1870 e
11 de fevereiro de 1871, Acompanha o artigo autobiográfico de Odorico, de 13 de março de 1860, aproveitado no Panteon Maranhense, de
Antônio Henriques Leal, vol. I (Lisboa, 1873).
De acordo com sua biografia, depois de viver na Europa de 1847
até 1864, quando faleceu na Inglaterra, lá conseguiu publicar, em Paris,
1854, a Eneida Brasileira ou tradução poética da epopéia de Virgílio
Maro, em 392 págs., com anotações. É, também na capital francesa,
em 1858, o Virgílio Brasileiro ou tradução do poeta latino, 2' edição,
aumentada, da obra anterior, com a Bucólica e Geórgicas, também anotadas, em 800 páginas. No Rio de Janeiro, já em edição póstuma, de
1871, saiu a Iliada, poema de Homero em verso português, 312 páginas.
Conforme informação do bibliógrafo Sacramento Blake, em seu DÍCIOnário Bibliográfico Brasileiro, vol. VI, Odorico deixou inédita a tradução da Odisséia. Seria esta a edição para a qual o Imperador fêz copiar o manuscrito acima descrito, que permaneceu em sua Biblioteca.
Antônio Henriques Leal, no Panteon Maranhense, cit., registrou o boato
de que o Magnânimo a faria publicar em Leipzig. Mas, tendo a irmã
do tradutor, Militina, trazido da Europa seus autógrafos, não se fazendo,
não se sabe por que motivo, aquela edição, na Saxônia, arrecadou-se no
Maranhão a quantia de 6:590$268, que, com o mesmo fim, enviou-se ao
Rio de Janeiro. (20) Somente em 1928 foi publicada a Odisséia, «em
verso português», de Odorico. Teve novas edições, em São Paulo, do
Professor Silva Bueno, em 1955 e 1957. Em nova tradução, de Carlos
Alberto Nunes, também edições paulistas, em 1960 e 1962.
A propósito, convém notar que também D. Pedro II traduziu a
Iliada, em 444 páginas de texto manuscrito, hoje no Arquivo da Família
Imperial do Brasil, no Museu Imperial, de Petrópolis. (21) E, quanto
à Odisséia, já no exílio ocupou-se em comparar a tradução de Odorico
com o original. (22)
Versão poética da Eneida, anterior à citada, foi a dedicada a Dom
Pedro II, que guardou os dois tomos de seus manuscritos, encadernados
em couro (N° 76), de autoria de João Gualberto Ferreira dos Santos
Reis, na Bahia publicada em 1845, também em dois volumes.
(20) Op. cit., págs. 97-98.
(21) No maço 47, documento nQ 1.077, do Catàlogo "B", de Manuscritos sem
Data, do "Inventário" de Alberto Rangel.
(22) Hélio Vianna — "Diários do Exílio de D. Pedro II (1889-1891)", em
D. Pedro / e D. Pedro II — Acréscimos às suas Biografias (S. Paulo, 1966), pag. 268.
Passando a um amigo de Odorico, Joaquim Caetano da Silva (1810-1873), guardou a Biblioteca do Imperador parte dos originais das leituras prévias da inestimável memória L'Oyapoc et l'Amazone, quando
feitas em português, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Número 232). Da quarta, de 7 de maio de 1858, à vigésima-sexta. Começando, esses originais, por uma carta do autor a D. Pedro II, de
Paris, de 6 de fevereiro de 1859. Quando tratava da publicação, em
francês, do referido trabalho, em sua forma primitiva aparecido na
Revista do Instituto, tomo XIII, de 1860. A conclusão do manuscrito,
de tanto valor para a decisiva argumentação brasileira na questão de
limites do Amapá, traz, depois da palavra «Fim», um registro sentimental: «Paris, l9 de maio de 1860, 15° aniversário de minha filha». (23)
como se sabe, a obra foi impressa no ano seguinte, na capital
francesa, em dois volumes, a expensas do Imperador. Reeditou-a, pela
terceira vez, entre os tomos relativos ao arbitramento para a solução
daquele dissídio fronteiriço, o nosso representante perante o árbitro, o
Conselho Federal Suíço, o Barão do Rio Branco, em 1899. como tomos IV e V de Le Mémoire et les Documents soumis par les États-Unis
du Brésil à l'Arbitre, com Sumário e Notas.
De Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Barão e
Visconde de Araguaia, são igualmente valiosos os manuscritos, tanto da
Biblioteca do Imperador como de seu Arquivo, este por seus descendentes generosamente doado ao governo brasileiro.
Naquela, datada de Porto Alegre, 1844, aparece o original ou
cópia, com notas no final, da tradução do poema de Lamartine A Morte
de Sócrates ( N ' 53-B3). Não consta da coletânea de traduções brasileiras do poeta francês intitulada Lamartineanas, no ano de sua morte,
1869, publicada no Rio de Janeiro. Entretanto, no respectivo Prefácio,
com razão assinalou o editor, Antônio Joaquim de Macedo Soares, ter
sido Magalhães um dos poetas brasileiros por Lamartine influenciados.
Consta, aquela tradução, do vol. VI das Obras Completas do Visconde
de Araguaia, publicadas em Viena.
No citado Arquivo, há outra poesia de Magalhães dedicada «À
Sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro Segundo, no Faustosíssimo
Dia 2 de Dezembro, Aniversário de seu Glorioso Natalicio». É o seguinte, o respectivo estribilho:
«Brilha, ó Dia de Esperança !
Brilha de novo, almo Dia !
Cresce ó Núncio da bonança !
Mensageiro de Alegria !»
(23) Esta, Laura, casou-se depois com João Antônio de Oliveira. Filha de Joaquim Caetano e da francesa Susana Clotilde de Moinac, que êle conhecera quando
estudante em Montpellier.
Em bela caligrafia, não traz data, mas alguém assinalou, a lápis:
«1851»; 26 9 aniversário do Imperador. (24) Não se incluiu nas Obras
de Magalhães.
Mais importante é a cópia integral de seu poema A Confederação
dos Tamoios ( n º 57). Pelo próprio autor enviada ao monarca, conforme carta de Paris, 12 de julho de 1855, no mesmo Arquivo. (25)
São 306 páginas, em papel de Breton Frères & Cie. com «Argumento»
e texto, «Notas», estas às págs. 307-326.
Obras anônimas, versando temas brasileiros .permitem a suposição
de ter sido nosso patrício, ou estrangeiro aqui radicado, seu autor. Será
o caso dos versos de trinta Noites Brasileiras, em 1813 oferecidas ao
então Príncipe da Beira, nosso futuro D. Pedro I (Nº 3 5 - C ) .
Clemente Ferreira França, no Primeiro Reinado Visconde e Marquês de Nazaré, era poeta, em 1815, conforme versos desse ano. na
Biblioteca Imperial. Datado às «margens de Aguiar e Margura» (Número 34-P). Não mencionou versos seus o bibliògrafo Sacramento
Blake.
Do também baiano Paulo José de Melo de Azevedo e Brito (17791848), é um Elogio em aniversário de D. João VI (Nº 1 ) .
Igualmente d» Bahia, Frei Francisco de Paula de Santa Gertrudes
Magna, >eneditino nascido em 1770 ou 1780, autor de Canto Poético
ao então Príncipe Real D. Pedro ( n º 4 ) .
Do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816/1878),
Barão e Visconde de Porto Seguro, já registramos, na parte de / 7 Í S tória do Brasil, várias cópias de documentos da especialidade, que enviou
ao Imperador e ficaram em sua Biblioteca Particular.
Vinte e duas cartas suas, de 1852 a 1871, inclusive duas sem data,
dirigidas a D. Pedro II, publicaram-se no Anuário do Museu Imperial,
vol. IX. de 1948, págs. 157/236. Guardadas no Arquivo da Família
Imperial, com vários Anexos. Outras, aí omitidas, embora em grande
número existentes na mesma fonte, incluiu Ciado Ribeiro de Lessa, na
Correspondência Ativa, de Varnhagen, em 1961 publicada pelo Instituto
Nacional do Livro, do Ministério da Educação. A tôdas acrescentamos
mais duas dezenas, pelo diplomata e escritor dirigidas aos Mordomos
da Casa Imperial. Conselheiro Paulo Barbosa da Silva e Barão (depois
Visconde) de Nogueira da Gama, à nossa disposição colocadas pelo
Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança. Procedentes do Arquivo da Mordomia, publicaram-se na Revista de História, de São
Paulo, em 1970.
(24) Maço 23, documento n° 849, dos Manuscritos sem Data, no "Inventário" de
Alberto Rangel.
(25) Maço 115, documento nº 5.738 do "Inventário" de Rangel. Transcrita em
nosso artigo "D. Pedro II, a distribuição e a revisão da Confederação dos Tamoios",
publicado na Revista do Livro, do Instituto Nacional do Livro.
De Varnhagen também é o drama histórico americano, em quatro
atos e três mutações. Amador Bueno, de manuscrito com introdução em
letra diferente do texto. Fundamentado na História de São Paulo (aliás
Memórias para a História da Capitania de São Vicente ), de Frei Gaspar
da Madre de Deus. N ã o teve numeração no Catálogo «C», de Alberto
Rangel, situando-se entre os de números 3 5 ' E e 3 5 - F . Publicou-se em
Lisboa. ]#47: com segunda edição em Madrid, 1858.
De Antônio Gonçalves Dias (1823/1864), possuía o Imperador
preciosos autógrafos. com o respectivo carimbo, numerado «2», datado
do Porto, 1844. um «Prólogo», os poemas «1 — O Satélite», «II —
Passamento». E fragmento de Meditação.
(Conjunto nº 112). O
último, datado de 8 de maio de 1846. Dessa Meditação, em estilo bíblico,
escrita quando Gonçalves Dias voltou de Coimbra para o Maranhão,
publicaram-se os três únicos capítulos existentes, com exceção das últimas
partes, de VII a XIII, do Capítulo III, na revista Guanabara, do Rio de
Janeiro, de págs. 102, 125 e 171. Segundo o bibliógrafo Nogueira da
Silva, «é esta uma das produções mais originais que em prosa deixou
Gonçalves Dias. Filha de dupla inspiração, reflete superiormente o seu
acendrado amor pátrio e patenteia finalmente os altos e raros recursos
de sua potente e fecunda imaginação» ( 2 6 ) . Seria útil que se fizesse
o confronto entre os originais dos «Fragmentos» da Biblioteca Imperial
e o texto publicado.
«O Satélite», poesia datada de Pitões, 1844. faz parte do conjunto
de «Visões» dos Primeiros e dos Segundos Cantos. O autor, julgando-a,
talvez, inferior àquelas, deixou-a inédita, só se publicando nas Obras
Póstumas, organizadas por Antônio Henriques Leal, no Maranhão,
1868 ( 2 ? ) . «Passamento» é a terceira parte das citadas «Visões».
Maior conjunto de manuscritos gonçalvinos é o de nº 273 da Biblioteca do Imperador. Contém cartas e poesias, com uma nota final:
«5 9 volume de Dias».
Sua peça mais antiga é o drama Beatriz Cenci, de 1845. Outro, o
Boabdil, em 5 atos, traz a declaração de autoria substituída por estrelinhas .
uma das missivas, dirigida a um «mano», que realmente o não
era, seu amigo de Coimbra, o também maranhense Alexandre Teófilo
de Carvalho Leal, de 10 de abril de 1848, contém notas à margem, do
punho do próprio Imperador, nela mencionado. Opiniões políticas e o
nacionalismo do poeta, aí aparecem. Comentou a pouco anterior inauguração, no Instituto Histórico, dos bustos de dois de seus fundadores,
o Cónego Januário da Cunha Barbosa e o Brigadeiro Raimundo José
(26) M. Nogueira da Silva — Bibliografia de Gonçalves Dias, ed. áo Instituto Nacional do Livro (Rio, 1942), pag. 51.
(27) Manuel Bandeira — Obras Poéticas de Gonçalves Dias (São Paulo, 1944),
2* tomo, pag. 350.
da Cunha Matos. Sessão de 6 de abril, em que recitou seu «Canto
inaugural», dedicado à memória daquele sacerdote. Mencionou essa
carta o biógrafo de Gonçalves Dias, Antônio Henriques Leal, no Panteon Maranhense, tomo III (Lisboa, 1874), págs. 219/220.
com a declaração de redigida em Lisboa, consta da coletânea a
poesia «É alegre a flor que brota». Depois incluída em seus Versas
Póstumos. H-448/449.
Datadas de maio e junho de 1861, de Manaus, são: «O nosso
índio errante vaga», «Se o que somos, se o que temos sofrido», «A
minha rosa». «Ciúmes», «Se te amo, não sei», «Se muito sofri, já não
m'o perguntes», «como, és tu?» — tôdas coligidas nos Versos Póstumos!
(Maranhão. 1868J .
Do mesmo ano de 1861 é «Que coisa é um Ministro», sátira contra
o titular da pasta do Império, João de Almeida Pereira Filho, do Gabinete presidido pelo Conselheiro Angelo Muniz da Silva Ferraz, depois
Barão de Uruguaiana
«Carta a um amigo», de 15 páginas, assim termina: «Visto que
cheguei aos índios, faço aqui ponto, para tomar fôlego».
A poesia intitulada «A minha Filha», datada de Manaus, l 9 de
maio de 1861, figura na edição Gamier, de 1910, organizada por Joaquim Norberto de Sousa Silva, págs. 292/293.
Do Arquivo de D. Pedro II, ora pertencente ao Museu Imperial,
publicadas no respectivo Anuário, vol. XI, de 1950, existem 22 cartas
de Gonçalves Dias ao Imperador, datadas de 1854 a 1858, de quando o
poeta esteve na Europa, comissionado para superintender a cópia de
documentos interessantes à História do Brasil em Portugal e, nesse e
noutros países, estudar a organização da instrução pública, tendo em
vista o aperfeiçoamento da brasileira.
Muitos são os dados puramente literários dessa correspondência.
Inclusive a sua crítica, com várias restrições, ao, poema A Confederação
dos Tamoios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães, depois Barão
e Visconde de Araguaia, de que D. Pedro II, seu editor, lhe enviara
exemplar, por intermédio da Mordomia da Casa Imperial.
Também digna de nota, a carta em que Gonçalves Dias ofereceu
a D. Pedro II o poema Os Timbiras, a êle dedicado.
como se vê, valiosa é a gonçalvina da Biblioteca e do Arquivo
do Imperador.
Do baiano Demétrio Ciríaco Tourinho (1826/1888), possuía a Biblioteca Imperial, datada de 1885, a tradução, ao monarca oferecida,
de A Feiticeira, de Teocrito, «Idilio Segundo» (nº 2 1 ) . Traduções, do
mesmo ano, dos Cantos VI, XI e XVI, da Odisséia (nº 102). E de
Odes, de Anacreonte (nº 116). Trabalhos, estes, não citados por Sacramento Blake, no Dicionário Bibliográfico Brasileiro, vol. II.
A ascensão ao Trono de D. Pedro II ofereceu ocasião para que
o D r . Joaquim José Teixeira, datado de 20 de agosto de 1840, compusesse um Elogio Dramático, de que eram personagens o Brasil, a
Anarquia, a Paz e Fúrias. como outros originais oferecidos ao Imperador, muito bem caligrafado (nº 9 8 ) .
A Coroação do monarca, no ano seguinte, deu oportunidade para
o aparecimento de muitos versos comemorativos. Entre eles, um Hino,
de Joaquim José de Sousa Rios, 3 9 Escriturario da Tesouraria da Província do Rio de Janeiro, em papel especial e bela caligrafia, com música de Francisco Manuel da Silva (nº 7 8 ) .
Será, talvez, mais um medíocre precursor do romance brasileiro,
José Rufino Rodrigues de Vasconcelos, Amanuense da Contadoria-Geral
anexa à Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, que em 1841
ofereceu a D. Pedro II, em boa caligrafia, a história de Idalina, ou A
Rainha das Fadas (nº 63) .
De Francisco José Pinheiro Guimarães (1809/1867), «Bacharel
em Leis», havia, na Biblioteca Imperial, uma tradução de Sardanápalo.
«tragédia histórica de Lorde Bvron. vertida do original inglês e adaptada ao gosto do Teatro Nacional» (nº 5 0 ) . Também de sua autoria,
uma «tentativa» de versão do Child Harold, do mesmo Byron, em quatro
pequenos volumes (Nº 61 ) . Publicaram-se em 1863. conforme o Dicionário de Sacramento Blake, vol. III.
Entre as muitas traduções manuscritas guardadas pelo Imperador,
não poderia faltar alguma de Shakespeare: Macbeth, de Augusto Ferreira dos Santos, médico carioca, autor de obras de sua especialidade
(nº 110).
Para que se veja a variedade dos manuscritos remetidos ao Imperador, registre-se o Breve Compêndio de Música, de 1855, de João Apilo
Moniz (nº 5 1 ) . E, de Fìdélis Honorio da Silva dos Santos Pereira, uma
Tese sobre a Pureza da Conceição de Maria Santissima, Nossa Senhora ( nº 53 ) .
De Custódio de Oliveira Lima, português, brasileiro adotivo, é um
Ramalhete Poético, de 1854, oferecido ao Imperador (nº 77). Começa
com mais uma glosa à famosa quadrinha de D. Pedro II ao «Fiel povo
ituano». como versos alusivos a D. Pedro IV, D. Maria II, ao Príncipe D. Pedro Afonso, à Princesa D. Leopoldina. Publicara, antes,
em 1835, um Elogio a D. Pedro, Duque de Bragança, conforme Sacramento Blake, Dicionário, vol. II.
Do brasileiro Júlio Constancio de Villeneuve, ao fim do Império
diplomata e Conde papalino, um dos principais proprietários do Jornal
do Comércio, guardou D. Pedro II, em manuscrito, o libreto do poema
lírico em três partes. Paraguaçu, baseado no poema Caramuru, de Frei
Santa Rita Durão, pósto em música pelo mesmo Villeneuve e por J. O.
Kelly. Paris, 1855 (nº 181).
Do filho c homônimo do Padre José Mauricio Nunes Garcia
(1808/1884), é uma poesia, em bonita letra, «Ao Memorável Dia 2 de
Dezembro — Aniversário Natalicio de Sua Majestade o Senhor D.
Pedro II», oferecida por aquele «humilde súdito».
De Joaquim Norberto de Sousa e Silva ( 1820/1891 ), são os Cantos
Épicos (Nº 34-0), dedicados ao Imperador, publicados em 1861. como
em outros casos, terá submetido, antes, ao soberano, um exemplar manuscrito, para autorizar a dedicatória.
Teatrólogo dos mais abundantes, Francisco Travassos Valdez, a
30 de maio de 1878 requereu. alegando ter escrito e oferecido um Teatro
Trágico, «de sua propriedade», com mais de cinqüenta (!) tragédias
inéditas, em manuscritos e em versos, de 5 atos cada uma. Semelhantes
às que em 1866 ofereceu ao Imperador, intiHiladas As Amigas Ricas.
Demétrio Griska e Romeo. Embora o Conservatório Dramático tivesse
tido ordem para examiná-las, não recebera seu parecer ( 2 S ) . Realmente,
entre os papéis da Biblioteca Particular de Sua Majestade, existem
aquelas três peças, que o Catálogo «C». de Rangel, registrou como «Tradução» (Nº 114).
Bem conhecida a proteção por D. Pedro II dispensada ao Maestro
Antônio Carlos Gomes. Entre os manuscritos de sua Biblioteca, figura,
encadernada em couro, a letra de sua primeira ópera lírica, A Noite
no Castelo, de autoria de A. J. Fernandes dos Reis (n1? 2 ) . E o libreto
de 11 Guarany, de A. Scalvini, de 1866, com mensagem sua (nº 118) .
Terminado, como se sabe, para as representações de 1870, em Milão
e Rio de Janeiro, por outro libretista, Cario d'Ormoville.
Do baiano Antônio José dos Santos Neves, militar, depois funcionário do Ministério da Guerra, é um poemeto oferecido a D. Pedro II,
sobre O Marquês de Caxias, de 1870. Refere-se à Guerra do Paraguai
esse manuscrito encadernado, como tantos outros da Bibliote?a Imperial (Nº 15). Faz parte de obra maior, intitulada Homenagem aos Hérois
Brasileiros na Guerra contra o Governo do Paraguai sob o Comandoem-Chefe dos Marechais-de-Exército Sua Alteza Real o Senhor Conde
d'Eu e o Duque de Caxias. Oferecida «a Sua Majestade Imperial o
Senhor D. Pedro II», publicou-se no Rio, naquele mesmo ano. Primorosamente impresso, contém oito poemas e sonetos. Inclui retratos do
Imperador, dos Almirantes Barão do Amazonas e Visconde de Inhaúma,
dos Marechais Duque de Caxias, Marquês do Erval e Conde d'Eu.
Obras dos mais diversos
da Biblioteca Imperial. Até
Silabario, de Carlos Augusto
fessor de Instrução Primária
gêneros guardou a Seção de Manuscritos
um Compêndio de Civilidade em forma de
Soares Brasil (nº 189). O autor, Prona Província do Espírito Santo.
(28) Documento 8.176, maço 179, do Arquivo da Família Imperial, no Museu
Imperial, em cujo verbete se declara que o autor da mensagem propunha-se a engajar
imigrantes para o Brasil.
De José Maria Maso (não «Manso», como está no Catálogo «C»),
de 1843, um Método para garantir os limites das propriedades das terras
(Nº 1 4 6 ) .
De Alfredo Seelinger, uma Idiomografia — «Quadro das línguas e
dialetos vivos e mortos do Globo», já com a folha de rosto impressa,
do Rio, 1873 (nº 162).
De Luis Maria Vidal Júnior, oferecido à Imperatriz D. Teresa
Cristina, datado de 1862, do Seminário do Caraça, Minas Gerais, é o
manuscrito de Painéis do Universo ou Explanações sobre a Geografia
Física e Matemática. Inclusive algumas observações geológicas (Nº 62).
E, oferecidos ao Imperador, seus Ensaios Filosóficos (Nº 169). Obras,
estas, não incluídas nas que Sacramento Blake, Dicionário, vol. V, indicou como do professor barbacenense. falecido em Juiz de Fora, 1882,
«Luis Maria Vidal» (sem o Júnior).
De Joaquim José Fulgencio Carlos de Castro (1817/1880), o
manuscrito, de 1873, de seu Guia para uma viagem às águas minerais
de Caxambu, acompanhado de uma breve notícia sobre a povoação e
de um esboço sobre as mesmas águas (Nº 2 1 9 - A ) . Publicado no mesmo
ano.
Também figura entre os vários tradutores, de manuscritos incluídos
na Biblioteca Imperial, José Pedro Xavier Pinheiro (1822/1882), com
pequena parte da Divina Comédia. Tradução apenas do Canto I,
iniciada a 26 de dezembro de 1874, encerrada a 26 de fevereiro de
1875 (nº 59) . Pòstumamente publicou seu genro todo o trabalho, em
1888, 487 páginas, compreendendo Inferno, Purgatório e Paraíso. Do
mesmo ano em que apareceu outra tradução póstuma integral, da Di'
vina Comédia, esta do médico e amigo do Imperador, Francisco Bonifácio de Abreu (1819/1887), Barão da Vila da Barra.
De José Alexandre Teixeira de Melo, guardou o Imperador as
Efemérides Nacionais, inicialmente publicadas na Gazeta de Notícias,
do Rio de Janeiro, em 1881 (nº 3 0 - A ) . Em cópia contendo a lista dos
Ministérios e uma Notícia dos Senadores.
Do último ano da Monarquia brasileira, 1889, existem ainda algumas
peças em manuscritos da Biblioteca imperial. Do Barão de Paranapiacaba, companheiro de D. Pedro II na tradução do Prometeu Acorrentado, de Esquilo, um «Soneto e glosa» (Nº 2 7 2 ) . Do ex-hóspede do
Palácio de São Cristóvão, Múcio Scoevola Lopes Teixeira, datado de
Caracas, onde era nosso Cônsul, o poema bíblico em sete cantos Mulheres do Evangelho, de Larming. com a capa desenhada para composição na Imprensa Nacional e página reservada para o retrato da
Princesa D. Isabel, que nesse ano festejou Bodas de Prata, um mês
antes da Proclamação da República (nº 9 0 ) .
Tradução das mais interessantes, dentre as do acervo de manuscritos imperiais, a da Escola dos Maridos, de Molière, feita e autenticada
nor Artur Azevedo. Ofereceu-a ao Imperador com a seguinte explicação: «Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro
Santana, aos 4 de junho de 1889, 227 anos, 11 meses e 21 dias depois
de apresentada pela primeira vez, em Paris. Cópia tirada pelo próprio
tradutor Artur Azevedo. Rio, 1* de agosto de 1889, pertencente a Sua
Majestade Imperial» (nº> 87) .
De autoria do próprio D. Pedro II, figuram entre os seus manuscritos, não propriamente trabalhos literários merecedores dessa classificação. Mas simples exercícios do constante estudioso que sempre foi.
Traduções da Biblia, versículos dos Provérbios e Eclesiastes. em latim.
com emendas, talvez de um de seus últimos professores, que estudaremos em trabalho especial (nº 5 ) . Trechos de traduções do latim para
português, de alguns dos livros bíblicos, o de Ester, de fó, de Daniel
(nº 113). como a letra não é do Imperador, e uma está datada de
Paris, 6 de fevereiro de 1868, sefá lícito supor seja do primeiro dos
mestres estrangeiros que em sua idade adulta contratou, o alemão Ferdinando Koch, então Preceptor do filho de sua amiga, a Condêssa de
Barrai e da Pedra Branca, Dominique, depois Conde de Barrai e
Marqués de Montserrat.
Seus, ainda a modo de exercício ou distração, pois nao se considerava poeta, serão alguns versos (nº 1 0 ) . Talvez os publicados pelos
netos, filhos de D. Isabel e do Conde d'Eu, em volume, hoje rarissimo,
de 1889: Poesias originais c traduções de Sua Majestade o Senhor Dom
Pedro II (Homenagem de seus netos), (Petrópolis, 1889), 106 págs.,
edição limitada.
LETRAS ESTRANGEIRAS
Conhecido, sobretudo depois de suas primeiras viagens à Europa,
como Mecenas literário, D. Pedro II passou a ser reqüestado por escritores, de vários países, que à sua munificencia recorriam, como já vimos
quanto a brasileiros, para a eventual publicação de suas obras, nem
sempre de real valor.
É o que atestam numerosas peças de sua correspondência. Tanto
a constante do Arquivo da Mordomia da Casa Imperial, como a por
seus descendentes generosamente doada ao governo brasileiro, que a
destinou ao Museu Imperial, de Petrópolis. Daí a remessa, ao Brasil,
de muitos originais manuscritos, que permaneceram na Biblioteca Particular de Sua Majestade.
Outros, êle os adquiriu em leilões públicos, realizados em Portugal
(conforme aqui anteriormente comprovamos), em livrarias especializadas
da Europa, etc. E também os ganhou, oferecidos pelos próprios autores. Ou remetidos por amigos e admiradores, a respeito conhecedores
de seu amor pelos livros, publicados ou inéditos.
Embora não seja completo, oferece boa amostra, a propósito, o Catálogo «C», de Códices e Livros Manuscritos, última parte do «Inventário» no Castelo d'Eu procedido pelo historiador Alberto Rangel. Pertencem seus exemplares, presentemente, ao Príncipe D. Pedro Gastão
de Orléans-Bragança, que muitas vêzes gentilmente nos permitiu sua
cosulta. Graças à sua amabilidade e interesse pela cultura, aqui podemos divulgar outros dados, quanto a esse importante setor das atividades intelectuais de nosso grande Imperador.
Note-se que, além de manuscritos, pròpriamente ditos, também figuram, entre os adiante citados, vários trabalhos litografados, como à
época se usava fazer. Serão devidamente assinalados.
FRANCESES — Não se devendo considerar estrangeiros aos portugueses, a primazia entre os autores alienígenas presentes em manuscritos da Biblioteca Imperial, cabe, naturalmente, aos franceses.
Dos que trataram das línguas de nossos indígenas, destacou-se o
Cónego Vigário João Pedro Gay, com seu Manuel de Conversation en
Portugais, en Guarany, en Espagnol et Français (nº 201), de 1865.
Ano em que o remeteu ao General Barão (depois Visconde e Conde)
de Porto Alegre, com carta de 7 de abril, para que o entregasse ao
Imperador ( 2 9 J.
E Leon Mounier, com um Vocabulário Botocudo (nº 23), de 1875.
Do mesmo autor e do mesmo ano, oferecido ao Conde d'Eu, hâ um
Étude sur la méthode d'instruction en général (nº 2 6 ) .
um Cours d'Huppologie, de 1862, de Félix Vogeli, professado na
Escola Militar do Rio de Janeiro, onde era Mestre de Hipiátrica (nº 182),
serão as mesma Lições de Hipologia, igualmente em francês, depois mencionadas (Nº 275). Êquitation-Dressage, de Alexis de Reus, de 1888,
em bela caligrafia (nº 84), também tinha cabimento em Biblioteca de
descendente de D. Duarte, autor do Livro de Ensinança de bem cavalgar .
Tema brasileiro, o de dois volumes oferecidos ao Imperador pelo
autor, Dr. Roux, de Brignolles — Le Brésil — Ses maladies endémiques
— Ses épidémies (nº 8 ) . uma apreciação desfavorável sobre o medíocre
trabalho, já antiquado, do Dr. Roux, encontra-se, em sete páginas
manuscritas, no Arquivo da Família Imperial, no Museu Imperial, datada
de 17 de outubro de 1881, assinada por «N. de A . » . Iniciais do então
jovem, mas já brilhante médico Dr. Nuno Ferreira de Andrade ( 3 0 ) .
Da conhecida parteira do Rio de Janeiro, nascida em França, Maria
Josefina Matilde Durocher, já mencionamos Idéias para coordenar a
respeito da Emancipação (nº 4 7 ) .
(29) Maço 136, documento Nº 6.671 do '"Inventário" de Alberto Rangel, no
Museu Imperial.
(30) Maço 185, documento Nº 8.436 do "Inventário" de Alberto Rangel, no
Museu Imperial.
Ainda no setor da medicina à época de D. Pedro II, muito nos
interessariam anteriores Observações sobre a Febre Amarela, de Bazin
de Fontenele (nº 3 4 - V ) .
Igualmente de assunto nosso, o trabalho de Eugène Collin —
Recherches sur quelques plantes utiles du Brésil (Nº 265). Dentre elas,
pelo menos económicamente interessante, embora para a saúde do homem
até hoje muito discutida, a que mereceu as Boutades humoristiques
contre l'Abus de Tabac, de J. Mouillet (Nº 1 4 ) .
uma tradução francesa dos Lusíadas, do Rio, 1875, de Al. de
Cool, morador no Beco das Carmelitas, 4 (nº 154), será peça manuscrita
da notável «Camoneana» do Imperador, hoje na Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. como se sabe, no exílio dedicou-se D. Pedro II a
estudos de literatura comparada, inclusive no setor das traduções do
maior épico da língua ( 3 1 ) .
Não faltou, no conjunto de manuscritos franceses, um poema de
1850, em dez cantos, Le Christ, de I. Castel (Nº 101). Ou simples
petição versificada, de A. de Villermont (Nº 5 2 ) . Ambos muito bem
caligrafados, como de uso em originais destinados ao Imperador.
Também é sabido que D. Pedro II em 1872 visitou Mistral, subsidiou comemorações do Félibrige, chegando a publicar, pouco antes de
morrer, em Avignon, um pequeno volume de Poésies hebraïco-provençales du Rituel Israélite Comtadin, aqui reeditadas em 1968. Motivo
pelo qual também existe, entre manuscritos de sua Biblioteca, uma coleção de Poucsio Prouvençalo (Nº 69) . De Remilly, na Alsácia-Lorena,
a êle remetida pelo D r . Frédéric Estre, que conhecia aquela predileção
de nosso culto soberano. Ao manuscrito acrescentou um exemplar do
Perir Almanach Mosellan, redigido por alguém que usava o pseudônimo
Chan heuvlin, destinado a propagar o patois loreno, que dizia ameaçado,
tanto pelos ocupantes alemães como pelos próprios franceses. Lamentou,
a propósito, que o Imperador não conhecesse a língua maternal da
Lorena, rica de humor e de sentimento.
Indiretamente, mais nos interessaria o Étude sur la Langue et la
Littérature Portugaise, de 1884, de Louis Alphonse Gavard (Nº 103).
Autores franceses de assuntos militares tiveram manuscritos na Biblioteca Imperial. Trabalho em dois volumes, do General François
Perrier (1833/1888), da Academia de Ciências do Instituto de França,
muito interessado em geografia e cartografia, sobre Les Connétables,
les Maréchaux et Amiraux de France, veio tanto para o Imperador
(Nº 274), como para o Conde d'Eu, Marechal do Brasil (nº 156) ( 3 2 ) .
(31) Helio Vianna — D. Pedro I e D. Pedro II — Acréscimos às suas Biografias* cit., págs. 273 e 276.
(32) Perrier, colega e correspondente de D. Pedro II, conforme cartas suas,
de 1880, 1884 e 1887, no Arquivo da Família Imperial, cit. Na primeira das quais
agradeceu a Comenda da Ordem da Rosa, com que fora agraciado.
Ao Príncipe Gastão de Orléans pertenceriam, talvez, outras obras da
especialidade, no «Inventário» de Rangel arroladas. Assim, de 1864,
trabalho litografado, sobre o Serviço de Saúde Militar (nº 6 5 ) . De 1869,
mensagem de Robert Gillon, sobre um novo fuzil (nº 66) . (Lembre-se
que, como Presidente da Comissão de Melhoramentos do Exército, ao
Principe-Maréchal, genro do Imperador, coube cuidar do aperfeiçoamento do respectivo material bélico, inclusive a introdução das armas
Comblain) ( 3 3 ) . De Ch. Kunerte, um memorial sobre Telegrafia Mi\itar, com fotografias coloridas (nº 185). De Júlio Pontié, a segunda
parte de um Tratado sobre a esgrima (nº 184). Matéria de que foi
Mestre do jovem D. Pedro II, ao tempo das Regências, o então Major
Luis Alves de Lima, depois Marechal-de-Exército, Barão, Conde, Marquês e Duque de Caxias.
Quaisquer assuntos que pudessem ter ligações com a economia brasileira, figuravam na Biblioteca Imperial. Assim, tanto uma Mémoire
sur les teintures alcooliques, de Joseph Bonjean, 1851 (nº 166), como
Le Sucre en France, 1888 (nº 173). Ou que pudessem significar algo
para o nosso progresso, como a Memoria sobre a Telegrafia Submarina,
de 1857, de Baleffrini (nº 172-A). Ou a Nouvelle Organisation de
l'École Royale des Ponts et Chemins, trabalho litografado, de Defretaine, 1839 (nº 2 3 5 ) .
Pertencendo o Imperador, no Instituto de França, inicialmente, à
Seção de Geografia, natural a existência, em sua Biblioteca, de manuscrito sobre a Expedição à Terra do Fogo, de E. Pertuiset, 1877
(nº 183).
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Interessarão à História Francesa, um Discours du siège de la Ville
de Rouen, em 1591 (nº 140), como o ¿issai Statistique à l'Étude de la
Presse Franco-Allemande de 1870-1871, de J. Marchner (nº 9 4 ) .
Curiosa peça manuscrita é constituída pelos Souvenirs intimes, de
Monsenhor Félix Dupanloup, Bispo de Orléans, e Alexandre Dumas
Filho. Trata-se de carta dirigida a Robin de Scévole, Deputado do
Cher, bisavô do brasileiro pelo nascimento Dominique de Barrai, filho
da Condessa de Barrai e da Pedra Branca, que parece ter feito a respectiva cópia (nº 33-E) ( 3 4 ) .
Álbum franco-brasileiro, é o que sob nº 19 contém, na Biblioteca
Imperial, desenhos de Luis Aleixo Boulanger (Mestre de D. Pedro II),
(34) Monsenhor Dupanloup foi autor de Estudo sobre a M acortaría, no Brasil
traduzido pelo então Padre João Esberard, depois primeiro Arcebispo do Rio de
Janeiro. — Hélio Vianna — «Bibliografia da Qeustão Religiosa», nos Estudos de
'História Imperial, citados, p a g . 285.
(33) Helio Vianna — "Zelando pelo melhor armamento do Exército", capitulo de "O Conde d'Eu, advogado dos que serviram na Guerra — Cartas do Príncipe Gastão de Orléans ao Tenente-General Caldwell", nos Estudos de História Imperia! ( S . Paulo, 1950), págs. 252-253.
de um dos Taunay (vista de Jurujuba), mas também do nosso Manuel
de Araújo Pôrto-alegre, futuro Barão de Santo Ângelo.
ITALIANOS — Depois dos franceses, aparecem, relativamente à
quantidade, na Biblioteca Imperial, os autores italianos. O que em parte
se deverá à nacionalidade napolitana da Imperatriz D. Teresa Cristina
Maria de Bourbon-Sicílias.
O que com maior número de peças aí figura (cinco), é o dramaturgo e comediógrafo Conde de Prota. Que também comparece com
um códice de Pensamentos, outro de Discurso, este de 1865 (ns. 196
a 200).
Segue-se-lhe, em Dissertação Teológica, três volumes em latim, de
Falletti (nº 5 8 ) .
Depois, La Guida del Popolo, de Luigi Benedicti, dois volumes, de
1871 (nº 6 8 ) .
Alguns títulos exemplificarão a variabilidade dos manuscritos italianos do Imperador. De urti Rietreto della Storia de Maccabei (Nº 208),
a Lavori Chimici i Tecnici, de Vicenzo Manteri, 1844, parte do traballio
jã impressa (nº 7 2 ) . De um Tratado sobre o Bicho da Seda, de Victor
Giandoni (nº 186), a Elementos de Pedagogia, de Giovano Giuseppe
(nº 195). De Pasquale Manfré, de 1846, muito bem litografada, uma
História da Mediana Mitica (nº 7 3 ) . De Marzial Perri, de 1889, La
Storia Sacra narrata al popolo in 107 sonetti, obra oferecida a D. Pedro
II (nº 2 2 ) . De Socrates Cadet, Tese sobre Colera (nº 92). outra terrível doença de interesse do Brasil oitocentista.
Parecem referir-se ao nosso país certas Noticias de História Pátria.
em italiano (nº 2 0 8 - A ) . Talvez o Tributo di un Italiano, ossia Storia
del Brasile narrata ai giovani delle Scuoti italiani, de Domenico Ionata,
Mestre-Escola de Guglionesi, Provincia de Molise. Ou opúsculo sobre
o nosso país, do Padre Giovanni Dulcetti, de Borgo Laino, Calabria.
Ambos constando da Correspondência da Mordomia da Casa Imperiai
do Brasil com a nossa Legação em Roma, Arquivo hoje pertencente
a Sua Alteza o Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, igualmente colocado à nossa disposição ( 3 5 ) .
ESPANHÓIS — A mais valiosa peça manuscrita espanhola da Biblioteca Imperial, será o drama sacro de 1619, de Lope de Vega —
Las Hazañas del segundo David (nº 143) . Tão importante que o
Príncipe D. Pedro Gastão levou-a para a Espanha, a fim de ser estudada por especialistas.
Impresso, ali também se encontra o trabalho de 1751, do beneditino
e polígrafo Frei Benito Jerónimo Feyjóo y Montenegro (1676/1764),
intitulado El Terremoto y su uso (nº 28-A) .
(35) Helio Vianna — "A Biblioteca do Imperador", na Revista Brasileira de
Cuitara, n» 5, de julho-setembro de 1970, pag. 54.
De 1849 é o Nuevo Colón o El Libro de los Fiscales Escribanos,
de D. Juan Bautista Simo y Cifuente (nº 3 3 - A ) .
uma Historia Genealógica de algumas Famílias de España (nº 32),
e outros trabalhos, participam dos manuscritos da representação espanhola na Biblioteca de D. Pedro II.
Sem incluir, é claro, a já mencionada cópia, feita pelo alemão Júlio
Platzmann, da Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do
Brasil, de 1595, do canarino Padre José de Anchieta (n° 99) . com
reedição pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, conforme já assinalamos.
ALEMÃES E AUSTRÍACOS — De germânicos que vieram ao Rio
Grande do Sul, existiam, na Biblioteca Imperial, dois valiosos álbuns
ilustrados, ainda não reproduzidos, embora disto presentemente se cuide.
O primeiro, de Carlos Emil, é o Álbum Imperial — Lembrança da
Rio Grande, que só tem impresso o respectivo título (nº 1 6 ) . Encadernado em seda, ferros dourados. Contém interessantes desenhos a lápis,
litografados, de cidades e aspectos gaúchos, com legendas ainda manuscritas. Trata-se de verdadeira preciosidade iconográfica, pois data
da primeira viagem de D. Pedro II àquela Província, em 1845, logo
após a pacificação da Revolução Farroupilha.
O segundo, do mesmo Carlos Emil Buhlmann, agora com o sobrenome declarado, já é de 1857; contém desenhos a aquarela, carta e sobrecarta do autor (Nº 2 1 8 ) . No fim, um mapa geográfico do Rio Grande
do Sul. com o anterior, foi, por D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, emprestado ao gaúcho Sr. Jaime Bastían Pinto, para que providenciasse sua artística e necessária publicação.
De Jordan, em alemão, dois manuscritos na Biblioteca Imperial:
Princípios de Química, de 1801/1802 (nº 249); e Bases da Economia,
dois volumes (nº 2 5 2 ) .
Dentre as cópias pela Imperatriz D. Leopoldina adquiridas a Andrade Cardoso, inclui-se uma da Memória sobre o Brasil para servir
de Guia aos que nele desejam estabelecer-se, do Cônsul-Geral da Rússia
no Rio de Janeiro, o alemão Barão Georg Heinrich von Langsdorff
(nº 3 5 - D ) . Publicou-se em francês. Paris, 1820; no Rio, em português.
tradução de A- M. de Sam Paio, 1820 ( " 6 ) .
Também pertenceu à então Arquiduquesa, depois Princesa Real e
Imperatriz D. Leopoldina, uma História da Religião, antes do Nascimento de Jesus Cristo, de Vicente Arnanet, datada de 1813 (nº 2 4 8 ) .
como poderão ter sido seus, outros manuscritos em alemão: uma Geografia, de 1817 (nº 54); outra Geografia d'Alemanha (nº 2 5 3 ) . Obras
(36) Rubens Borba de Moraes — Bibliografia Brasiliana (Amsterdam—Rio
de Janeiro, 1958), vol. I, págs. 388-390.
que, a rigor, poderão ser de austríacos, nao, pròpriamente, de alemães.
(Lembre-se que o pai de D. Leopoldina foi Francisco II da Alemanha,
I da Áustria).
uma Descrição da Ilha da Madeira ( nº 33); Pflanzeureich von
Cuba, de Tito Visino, 1858, com desenhos de plantas, a pena e sépia,
dois vols, (nº 259), — são outros manuscritos germânicos. Catálogo
de livros em alemão (nº 251), e até Anotações sobre o enjôo, do Doutor
Hufeland (nº 250), também da Biblioteca de nosso «Kaiser», como a
D. Pedro II chamavam os alemães de Petrópolis.
Talvez provenham do Ministro austríaco no Rio de Janeiro, antes
no Cairo, Barão Gustavo von Schreiner, Princípios elementares de língua
árabe vulgar. Acompanhados de uma coleção de Diálogos familiares,
também em árabe e francês (nº 104). Porque, com êle travando nosso
Imperador cordiais relações no Egito, 1871, teve-o na Corte do Império, inclusive como seu professor daquela língua, quando aqui representou a Áustria-Hungria, entre 1875 e 1882.
como indício de que até estudos da língua turca teria feito D.
Pedro II, entre os manuscritos de sua Biblioteca constam Elementos
de Gramática Turca, de 1885, atribuídos ao nosso diplomata Barão de
Aguiar de Andrada (Francisco Xavier da Costa Aguiar de Andrada),
(nº 107).
INGLESES — Do clérigo e químico inglês, simpatizante da Revolução Francesa, Joseph Priestley (1733/1804), é uma cópia de Revoluções
dos Impérios (nº 33-C) .
De J. R. Young, seu Catecismo de Algebra (nº 48), com Apêndice
do Conselheiro Cândido Batista de Oliveira ( nº 49 ), Professor de Geometria das Princesas D. Isabel e D. Leopoldina, filhas do Imperador,
em 1862 ( 3 7 ) .
GRÉCIA — Traduzido do grego para o inglês por George D . Canale, «a Iacynthian», figura entre os manuscritos da Biblioteca Imperial a Ode to Liberty, de Dionisos Salomos (nº 105) .
HÉBREU — Bem conhecido é o interesse de D . Pedro II pelos
estudos hebraicos. Razão por que, entre os manuscritos que possuía,
encontram-se, já de 31 de ianeiro de 1890, portanto depois que seguiu
para seu amargo e injusto exílio, Deux poèmes Hébreux, em hebraico
e francês, oferecidos por Roubin Solomon Brechinski (nº 8 8 ) .
PARAGUAI — A Guerra contra a República do Paraguai facultou à Biblioteca do Imperador a posse de alguns manuscritos desse
país procedentes. Tais são os de números 125 a 129, 135 e 202 do
Catálogo «C»: três Regulamentos Militares, um dêles grosseiramente
(37) Lourenço Luis Lacombe — "Arquivo do Museu Imperial — A Educação das Princesas", no Anuário do Museu Imperial, vol. VII, de 1946, págs. 252 e 256.
escrito sobre couro; Ordenança militar espanhola, acompanhada de Proclamação e Decreto do Ditador Carlos Antônio López, de 1848; Testemonic de Ordenes escripias, dadas a la Mayoría, de 1867; Ordenança
militar paraguaia, no verso da capa tendo um retalho do jornal El
Semanário, do tempo da Guerra; Livro de Ordens do Exército paraguaio,
de 1864.
* * #
Não será preciso exemplificar mais, para que se possa concluir pela
variedade e valor da parte de manuscritos da Biblioteca Particular do
último Imperador do Brasil. Isto, de acordo com o aliás incompleto
estudo aqui feito, quanto aos que pertencem a seu bisneto, o Príncipe
D. Pedro Gastão de Orléans-Bragança, que gentilmente os colocou
à nossa disposição.
Letras
GRAFITOS & MURILOGRAMAS
CASSIANO RICARDO
I
O
NOVO Iivro de Murilo Mendes, «Convergência», desperta tôda
uma sedutora problemática em nossa poesia de vanguarda. Creio que
pode ser apontado como a mais ousada fase de sua numerosa e extracomum viagem poética, desde o surrealismo até hoje.
A surpresa dos seus «grafitos» nos assalta em cada página e os
«murilogramas» — fina «trouvaille» favorecida pela eufonia do seu
nome — constituem tôda uma parte da insólita beleza que caracteriza
o volume, em geral.
como defini-lo, in totum?
Só me arriscarei a fazê-lo mui perfunctòriamente, dados os conhecimentos que seriam necessários para uma crítica mais sistemática.
Tome-se, por exemplo, o murilograma a Baudelaire. É um
poema que excele pela novidade, marcado por pequenas definições em
série, rápidas e extremamente lúcidas; para serem degustadas (diga-se
assim) muito mais à margem do silêncio do que pelo discurso:
Eis algumas dessas definições:
«Traz o pecado origin = existir».
«Maneja o caos que regula».
«Palavra: pessoa, despessoa».
«Desventra a rua-universo».
«Enfanterrible totalizador».
«Debruça-se à janela da pintura».
«Poesia e coração, áreas opostas».
«Heautontimoroumenos».
«Inventa a simetria dissonante».
«Negro luminoso: a côr do seu estema».
«Telefona = lhe a Medusa».
«Sofre de modernidade ou de ser B?».
«Fundo um reinoilhasalão».
«Assume o espaço da música».
Seguem-se outras, com a mesma nitidez poética em definir Baudelaire:
«Terrible Bandelaire, toujours recommencé».
Realmente, que é a poesia senão, como perguntava o próprio autor
de «Fleurs du Mal» (em que Marcel Raymond situa a origem da
modernidade) senão a infância «toujours recommencée»?
Debussy, o dos ritmos descarnados e aéreos, mereceu outro murilograma, em que o poeta descobre «a estrutura do silencio» e está
também condensado em «flashs» que valem como sentenças que só a
poesia, pelo poder de síntese, consegue alcançar.
Além dos murilogramas, figuram em «Convergência» os grafitos a
que me referi, sua mais recente invenção gráfico-visual-cinética.
O «Grafito Segundo Kafka», em que Murilo armou, magistralmente, encerrada em hábeis nós de marinheiro, a dialética de sucção, reflete
bem o desajustamento que faz o clima do autor de «A Metamorfose».
«A mensagem era de outro. Para outro.
Deram-me por engano. Quem sou eu»
ou
«não pedi para nascer, não escolhi meus pais.
Fui imposto a mim próprio. O enigma permanece».
O problema faz sugerir aquela situação de perplexidade criada
pelo desencontro do dizer e do falar a que se reporta Merleau Ponty.
«Dans la mesure où ce que je dis a sens je suis pour moi même,
quand je parle, un autre, «autre» et, dans la mesure où je comprends,
je ne sais plus qui parle et qui écoute».
Em sentido oposto (não atormentado) está a inscrição viva que
é o grafito em Marrakehs ( p . 19) tão visual-concreto que nos faz
ver fisicamente o que Murilo viu — êle com a sua agudeza ótica
direta, nós com os olhos da imaginação suplementar que é, para mim,
uma modalidade de olhar interno.
O homem «sendo julgado pela pedra», no «grafito para Piranesi» me deixou também forte impressão.
Outros grafitos me feriram, por assim dizer, o intelecto e a sensibilidade com uma direção certeira, matemática. Pelo menos notei eu
o seu amor ao «geométrico», em certas composições. Não porque o
poeta fale em «peixe triangular» ( p . 56) e tenha escrito mesmo um
poema sobre; ( p . 175) nem porque aluda a uma «geometria gótica»
( p . 47) ou ao triângulo antropomorfo» ( p . 6); nem porque, no murilograma a Leopardi»: «destrói o quadrado «conservando a esfera»;
isto sim — pelo plano geométrico-lírico» em que me parece estar
mas
colocado o livro todo, em seu alto sentido.
uma expressão sua (p. 73), até no domínio do abstrato, — «sonho,
sinal matemático» — reforça minha suposição.
Também porque parece, para mim, que Murilo insculpa sua poesia
quase sempre em «ângulo agudo», pra observar cidades, coisas, monumentos, criaturas humanas, ou olhar mais de frente a forma, o concreto das figuras e muitas vêzes presentificá-las com rara nitidez.
III
Em «Poetry and Mathematics» Scott Buchanan aponta o parentesco da composição técnica com a poética. Acentua mesmo que uma
figura em geometria projetiva, interessada na transformação do objeto,
é algo que retém um caráter de poema, que é também uma figura em
ação, transformando-se; um campo de projeções, apesar da estrutura
que condiciona o «rigor» da imaginação especulativa.
Essa transformação constante não se desliga, porém, do ponto de
nuclearidade que por seu turno permanece constante apesar de suas
infinitas variações; a ponto de Leibniz e Bruno, filósofos matemáticos
cuja imaginação, segundo Buchanan toca o poético, ( 1 ) afirmarem que
aí está a causa de todo o sistema cósmico.
Compreende-se um Einstein ao declarar que para a sua nova
concepção do universo se havia baseado mais na sensualidade da imaginação do que no conhecimento científico (ou matemático) .
Assim, geometria e poesia se entendem — ainda de acordo com
Buchanan. Muitos fatos da ciência de hoje, como certas invenções de
Murilo, parecerão inexplicáveis ao homem comum e à mentalidade caduca. Serão uma espécie de «secção cònica».
O observador desprevenido, ou empedernido, fica diante do acontecimento que lhe escapa à compreensão prática como o Caterpilar diante da Alice de Lewis Carrol.
As linhas angulagudas da fome, as curvas que se aproximam de
Deus (nesta esfera se estudou Deus, p. 51), aturdem igualmente,
(1)
SCOTT BUCHANAN,
«Poetry and Mathematics», p. 36 — Philadelphia.
pela convergencia; as próprias linhas gráficas que compõem a capa
do livro, onduladas ou retas, pretendem (suponho) indicar que convergimos para um só destino. Cortadas nas extremidades mostram
que elas mesmas caminham até nós, até esbarrar em nosso corpo, ou
chegam até ao infinito. Ou não se sabe para onde vão .. .
O grafito para Malevitch e alusivo ao «quadrado negro em campo
branco» cabe muito bem nesta pequena relação de amostras geométricas ( p . 51) Estema do tempo moderno, diz o poema, e muito adequadamente. Houve, nós o sabemos, várias homenagens ao quadrado
como as de Albers (o quadrado é humano porque não existe na natureza) e não lhe deixou o japonês de prestar a sua, em poesia: «quadrado branco/ dentro do / quadrado amarelo/ dentro d o / quadrado
preto/», etc.
Também não faltou quem associasse o neoplasticismo de Mondrian ao cúbico-analítico, mas, incontestavelmente, o parentesco com
a tetrada (número poético grego) é o ponto mais atraente dos seus
tetrângulos.
Posso estar me aventurando no sentido de atribuir a «grafitos» e
«murilogramas» intenções que talvez não tenham ocorrido. Não obstante seria «Convergência» um caso de «opera aperta» originalíssimo, e
nisto já haveria uma qualidade a mais, no computo dos valores que
elevam o autor de «Metamorfose» em minha já incondicional admiração .
com olhar retilíneo, Murilo descobre, a todo momento, a origem
das coisas no esconderijo de que elas se nutrem, e daí as arranca,
em forma de poema, não raro ostensivamente.
como já se disse algures «poetry is the imitation of action, the
generation of a form».
IV
Refiro-me à geometria, (esclareço) como sendo, mais do que uma
ciência matemática, aquela que figura em certos rituais. Não será sem
razão que a letra G (G maiúsculo) tanto vale ainda pra significar
Deus («Got») como se vê em «A Revolução da Arte Moderna»,
p. 97, (2) de Hans Sedlmeyer.
Deus faia, como ensinam os adeptos do G, à linha curva, ao
esférico, como o demônio falaria à reta cintilante de uma espada, de
uma flexa ou de uma lâmina.
O «Convergência» de Murilo se me afigurava, enfim, tocado pelo
«sprit de geometrie» a que muita gente chegou a emprestar, como é
sabido, algo de divino.
(2)
HANS SELDMEYER,
guesa.
«A Revolução da Arte Moderna» (p. 37) trad. portu-
E que dizer de suas invenções no domínio da palavra?
Trata-se de uma incursão que produz, a meu ver, experimentos e
frutos notáveis. São inúmeras as provas, «Isabel» e «Ademanes», por
se não realizam, por deliberação sua, a «enumeração caòtica»
de Spitzer (a que alude uma pergunta à página 208) realizam alguma
coisa de mais espicaçante e com inegável mestria; instituem, pela
reduplicação (uma palavra pluri-repetindo outra) pequenos poliedros,
ainda no plano geométrico, além das coisas imprevistas que acidentalmente se atraem mostrando como a disparidade delas resulta em alta
poesia, pelo provocante acaso vocabular que as reúne num só todo
múltiplo e uno. Se não me engano, já Lautréamont se enlevava justamente com a beleza do encontro casual de uma máquina de costura,
com um guarda-chuva, numa mesa de operações . . .
«Desdêmona» é outro poliedro enumerativo bastante convincente
como o é também «Arcanos» na página que se lhe segue. Os objetos
mais díspares se agrupam num denominador comum. O encontro incoerente lhes dá nova dimensão semântica, ou sintático-lírica, e eles próprios, palavras ou objetos, dirão, cada qual de per si, e reciprocamente,
aquele «enchanté» dos que se conhecem pela primeira vez. A «Rotativa» me deu uma grave lição de «semântica fònica», além do que
possui de poder comunicativo pelo som natural das palavras e pelo
ritmo surdo do «vai-e-vem». um caso de gesticulação poética, aue se
faz táctil pelo repentino do desfecho. É uma rotativa que vai-e-vem,
vai-e-vem, até que
«puxa o revólver do livro
e a faca do jornal».
V
As várias «Metamorfoses», notadamente na parte que tem esse título (p. 70 e s e g s . ) ; as diabruras do «V» que voa ( p . 53) obedecem
a processo idêntico — palavras que se agrupam, se agridem ou se amam
— ora pela gramática fònica, ora pela contigüidade irrecorrível, ora
pela fusão dos contrários (chove na vidraça do vidromem) formariam
um léxico inventado por Murilo, com a estranha propriedade das impropriedades. As palavras criadas (em forma de Tanden) realizam,
estou certo, nova descoberta de um estranho jogo do raciocínio com
a criação vocabular.
Seriam muitas as surpresas que seu livro me causou e causará a
quem o 1er, mas bastam as aqui já apontadas um tanto caòticamente
(este caòticamente por minha conta e risco) .
A criação de palavras em «Convergência», se se admite a comparação, assemelha-se ao episódio biblico da multiplicação dos peixes.
«Pedra Pomes», «Formidando», «Metafora» e palavras inventadas
em forma de Tandem ( p . 190) poderiam resvalar por uma «idolatria
da palavra» na opinião dos críticos ranzinzas, nao fòsse a riqueza de
criação que predomina poèticamente em todo o Iivro, a começar pelo
concreto-lírico do grafito para Li-Po ( p . 31) e que o coloca a salvo
de qualquer increpação de tal natureza.
A resposta está em:
«A palavra nasce-me
fere-me
mata-se
réssuscita-me» ( p . 207)
Do caótico se passa para o paralelismo das «láminas» de modo que
não lhe escapa um só ângulo da multifoice (multilâmina) ou das lâminas
( p . 116) ou da multiface que através de um poema possa suscitar em
nós uma inteligência afiada como a de Murilo que parece ter, sob tal
aspecto, a luminosidade mesma da lâmina.
E assim como os triângulos e os ângulos agudos que se deparam
na sua composição de hoje não se limitam ao pormenor geométrico mas
obedecem a um plano geométrico-lirico no contexto geral amplo e
significativo, o mesmo ocorre com as palavras consideradas em si mesmas
ou nos textos a que pertencem, ou a que deram causa.
Elas são pormenores de uma linguagem poética mais ampla, que
em mim aumentou a convicção de que «poetry is a kind of language»,
como diria Jakobson. Linguagem que comunica, que transmite pensamentos altos como os que assinalam o conteúdo de «Convergência».
A palavra brilha e é «lâmina», ou rescende, e é «magnòlia»;
atravessa o osso duro da matéria como um «roentgen»; desperta coisas
esquecidas que só os grafitos fazem ressurgir, na pedra, em alto relevo.
Ou desperta raciocínios atordoantes, como no murilograma a Leopardi
e no grafito sobre Kafka, a que já me referí.
VI
Por mais que o mecanicismo oponha o antiverbal ão verbal, não
acredito que Roger Caillois tenha razão quando profetiza a morte do
livro e das bibliotecas, passando o homem da «biosfera» de hoje para
a exclusiva «iconosfera» do amanhã.
A poesia recriará a palavra, apesar da civilização icônica, e até
se afirma — e quem o afirma é Cassirer — que a criação lírica, que
vem da origem do mundo, constitui a linguagem materna do gênero
humano.
As palavras, mesmo as de invenção mais recente, todos o sabemos,
nunca são gratuitas. Ao contrário, mesmo quando as bacantes laçaram
Orfeu, visíveis, tácteis, audíveis, Orfeu se recriará em outras palavras
nascidas do seu próprio corpo como Orfelo, Orfnós, Orfvós, Orfêles.
Do seu «Exergo» Orfeu se amplia e se multiplica em novas soluções
vocabulares, dirigidas a todos os homens, ressurretas.
Também não lhe escapa a poesia coletiva, sem abandono sequer
daquele coração que, para Archibald MacLeich, não é apenas individual;
é também social, deve também tratar das questões públicas.
O grafito para Sousandrade se reveste, a meu juízo, de uma beleza
única com aquele
«onde fulge o esqueleto do Cruzeiro
que o homem faminto não pode contemplar-».
O gavião da usura, o tubarão adornado de lustres, o analfabeto
que apenas desulula, simbolizam bem a atmosfera criada pelo autor de
«Wall Street», no famoso «Guesa Errante».
«Qual a solução, «o solução?»
Nem tudo, pois, no inteligentíssimo brinquedo com as palavras é
apenas «léxico», já por si espantoso. Ninguém desconhecerá o «humano», o «cordial» que mora em Murilo e nas suas invenções pessoais insuspeitadas.
VII
Certos críticos pensam que nós, os poetas, nos imitamos uns aos
outros, nesta fase de pesquisa e vanguarda. Não é exato. O que há,
quer-se crer, é antes a «convergência» de motivos e formas decorrentes
ou impostas pelo clima cultural que a todos contagia.
«A work in progress», «opera aperta», «enumeração caótica», Cassirer, Mallarmé, Eliot (que estão citados no texto de consulta); Klee,
colagem, Cummings, «Noigandres», «praxis», «minimo telegráfico» —
oe nomes e teorias, tôda a terminologia do nosso convívio diário, se
encontram realmente em voga; marcam a poética do último minuto, tão
sedutor quanto complexo. No mundo da convergência dos processos,
ousaria eu acrescentar, de minha parte, aos seus murilogramas os meus
modestos «linossignos»( 3 ) dentro da nova técnica; Murilo no «Exergo»,
o «Jeremias Sem-Chorar» à procura de um pormenor compositivo, o
linossigno, a que Eduardo Portela, a propósito, chamou o «substitutivo
planetário do verso».
O crítico norte-americano Dimmick, da Universidade de Oklahoma,
compreendeu muito bem o meu intuito (permito-me citar o que de mim
se faia) ao esclarecer que «the author clins no longer to write verses,
but «linossignos», («signe-lines») the physical dispositions of words on
a page or orthographical similarities between them often being of as
much significance as their essencial meaning or their syntactical relations one to another».
(3) C.R., «ReflexOes Sobre Poetica de Vanguarda», p. 39 e segs.
Prosseguindo no meu raciocínio apraz-me lembrar que ainda há
pouco, e isto aqui em São Paulo mesmo, se fêz curiosa experiência com
o objetivo de provar a estética de um computador que trabalha com
linhas à Mondrian (composição em linhas).
Mondrianiza-se.
O computador que faz poemas, notadamente «haikais», está em caso
identico.
VIH
E num mundo intrincado, em que estas questões nos assustam pela
inauguração e semelhança, não havemos de incorrer em certos pontos
obrigatórois e coincidentes? A microfísica, «la pensée planétaire», a
teoria dos sinais, a dos «quanta», o argol, o «substantivo totalitário»
de Marcuse, as siglas, as «urssas», o homem na Lua indicam a procedência de minha pergunta.
Não cabe confundir tendenciosamente uma coisa com outra: coincidência com influência de uns sobre outros (duas realidades diversas)
quando o que existe e se escamoteia é a identidade, é a convergência
de propósitos dentro da civilização que nos impõe um rumo comum.
Os fatos coincidentes, em arte, «se manifestam de maneira imperiosa
num dado momento histórico; deduzem-se quase automàticamente do
estado das pesquisas em curso» — na incisiva observação de Umberto
Eco ( 4 ) .
Digo «convergência das divergências» sem prejuízo destas, uma vez
que até nas divergências ocorrem pontos de contacto que o universo
tecnológico suscita por identidade de problemas simultâneos — «convergência e paralelismo cultural» — ( a ) na procura de novos rumos.
O bom senso ruminante ( 6 ) é que só vê semelhança em fudo e julga
que um poeta se baseia em outro por imitação ou influência — e até por
disparidades concomitantes.
A dialética do «Texto de Consulta» sobre «poema», «poeta»,
«texto» e «contexto», o «real» e a «palavra» levanta e denuncia tôda
uma problemática que obrigará muita gente a pensar na tremenda
contradição que a arte nos oferece, atualmente mais do que nunca.
«Convergência das divergências» é o que Murilo realiza com a sua
poética de agora ( 7 ) . Alguém já observava — e ora se nota com que
(4)
UMBERTO Eco, «Opera Aperta» ed. bras., p. 17.
(5)
RALPH LINTON, «A Study of Man», p. 398.
(6)
C.R., «A Academia e a Poesia Moderna», 1939, p. 106 e outras.
(7)
MURILO MENDES, «Convergência» ed. «Duas Cidades», 1970.
razg0
— que nada se afirma em arte como verdade que não possa ser
combatido vantajosamente pela verdade contrária.
«O rexío é o contexto da poesia?
ou o poeta o contexto do texto?»
«A palavra cria o real?
o real cria a palavra?»
Soffici saiu-se com esta: «l'arte non é una coisa séria».
Todo o poema do «Texto õ Contexto» será uma interrogação
contra outra, num quase irônico contradizer pra dizer.
Não terá sido, pois, senão apoiado em muita sutileza de pesquisa
que Roland Barthes considera o escritor consciente de que sua palavra
intransitiva por escolha e labor, inaugura uma ambigüidade, mesmo se
ela se dá como peremptória (8) .
No fim, porém, alguma coisa de patético:
«Morrer, perder o texto
ser metido numa caixa
com testo.
sem texto».
Conclusão: a arte é uma coisa séria.
IX
Só discordo de Murilo quando chega a dizer:
« Wébernizei^me.
João-cabralizei-me.
Francispongei-me.
Mondtianizei-me.
Isso não.
Murilo será sempre o Murilo, genuino, com seus automurilizados
murilogramas, multiplicado peias palavras que inventa e saem do seu
próprio ser. Diferente dos demais, já porque «soldou concreto e abstrato»; o Murilo que se dobra «ao fascínio dos fatos» e lhes dá a configuração que eles exigem, a linguagem, a «coluna vertebral» que os identifica.
E se faltar um dia o dicionário de nossa língua comum, haveria o
da linguagem que seus poemas estão elaborando diacrònicamente, para
gáudio de «poiésis» no universo cinético, semiotico e visual em que
vivemos.
«Saio da noite amarela
onde a laranja sibila»
«Tanger», p. 27.
(8)
ROLAND BARTHES,
«Crítica e Verdade», p. 36, Ed. «Perspectiva».
X
Há uma década, talvez, um fato científico seria pura «science
fiction». Hoje é pura realidade.
Refiro-me à ocorrência de se alcançarem raios cósmicos (fato único
no mundo) pouco acima de 20 quilômetros de altitude (mas quem disse?
mas onde? em que ponto do globo?) . Aqui mesmo, em S. José dos
Campos, no Vale do Paraíba. Sim, por maravilhosa coincidência,
minha cidade natal, justamente ela, apresenta esse portentoso fenômeno
(«magnetic fail»).
E serei eu, porventura, quem irá dizer que «par droit de naissance»
tenho o direito de o celebrar, sozinho, num poema? Apenas porque,
modestia à parte, graças a Deus (dá licença, Noel Rosa?) nasci em
São José, iria eu declarar-me proprietário de um raio cósmico joséense
ou de um simples pedaço do «caixilho» dessa janela aberta para o céu?
Hoje, ao lado da poesia e da matemática, está presente o «homo
tecnologicus»; e o cosmos não é privilégio de Ninguém.
É de todos.
XI
Mas quero parar aqui. Tôdas as tentativas jovens de vanguarda
ficaram sendo devedoras de Murilo Mendes, depois de «Convergência».
O que pretendi foi simplesmente demonstrar, a meu modo, o cuidado
e o encanto com que li murilogramas, grafitos e demais poemas do seu
maravilhoso livro — que se me afigura «outra janela aberta para o céu».
uma VíSÃO DE PROUST NA SEGUNDA METADE
DO SÉCULO
AFONSO ARINOS DE M E L O FRANCO
É lugar comum o dizer-se que as centurias cronológicas não correspondem às históricas, ou literárias. Assim, tomado nestes últimos
aspectos, o século XIX transbordaria politicamente do período compreendido entre os anos de 1800 e 1900, para abarcar a vida do Ocidente
em tôda a fase que vai da Revolução Francesa à primeira Guerra
Mundial; enquanto que, literariamente, os limites do mesmo século seriam semelhantes, pois poderíamos marcá-los entre as obras de J. J.
Rousseau e Marcel Proust.
Na verdade, para os fins didáticos de periodização da História da
Literatura, é razoável ver-se — como habitualmente se faz no grande
painel proustiano, o fecho triunfal do século passado.
Outra observação muito repetida, mas que não perde, por isso,
seu cunho de autenticidade, é a de que «À la Recherche du Temps
Perdu», ao lado do seu significado estético, possui extraordinário valor
descritivo, do ponto de vista social. Máo-Tse-Tung, segundo tal ponto
de vista, poderia estudar a liquidação de uma classe de proprietários
urbanos parisienses, nesse depoimento recuado de mais de meio século,
tal como, ao que se diz, Lénine considerava a novela de Balzac, «Les
Paysans», um dos melhores estudos sobre a decadência da classe de
proprietários rurais da França à mesma distância de tempo.
Ainda uma terceira observação aparece, com freqüência, nas análises críticas do romance proustiano: a de que êle conseguiu transportar,
com especial êxito, para o plano da experiência vivida, as revelações
da Psicologia e da Filosofia — expressas principalmente na obra de
Bergson — sobre as realidades mais profundas do nosso ser. Tem
sido discutido o grau de influência do pensamento de Bergson no aproveitamento, feito por Proust, da noção de tempo e da faculdade da
memória. De fato, o nome do ilustre filósofo aparece pouco no romance, uma ou duas vêzes, mas isto não significa que suas idéias não
tenham atuado. É uma questão especializada, a ser debatida pelos
historiadores de Filosofia. Os historiadores da Literatura se contentam
em observar que Bergson casou-se com uma prima de Proust, e que
o jovem Marcel, nos seus 20 anos, foi um dos «garçons d'honneur»
do casamento, o que autoriza a supor a existência de próximas relações pessoais, e, portanto, de intercâmbio de opiniões e idéias,
De qualquer maneira, a dimensão humana da obra de Marcel
Proust se acrescentaria por este seu estravasamento, do campo literário,
para o territòrio científico da historia, da Sociologia e da Filosofia.
A bibliografia critica proustiana, inclusive a brasileira, desde o seu
início repete, com maior ou menor ênfase, essa generalizada presunção.
Aparentemente, são essas maneiras de se considerar o romance
proustiano outros tantos processos de ampliação do seu significado
cultural, porque chamam a atenção para a importância de que êle se
reveste, em aspectos essenciais da cultura, situados fora do plano literário.
Mas, se nos deixarmos levar com demasiada docilidade, ou estreiteza, pelos referidos processos de aproximação crítica, sentiremos,
afinal, que a pretendida ampliação de significado pode se transformar
na verdade, em uma limitação mutiladora; e, mesmo, em uma espécie
de negação do conteúdo e do sentido de «À la Recherche du Temps
Perdu».
com efeito, o que acontece, através de tais processos críticos, é
a transferência da Literatura para o plano da Ciência, com todos os
graves riscos, para a duração mesmo da obra examinada, que tal manobra pode determinar. Verifica-se a confusão entre dois mundos, os
quais Henri Bergson, precisamente, na parte menos discutível do seu
pensamento, conseguiu isolar e individualizar de forma reveladora.
Graves são, de fato, os riscos de se prender os valores da produção estética, por sua natureza estranhos às influências da técnica,
com os científicos, que são a ela irremissivelmente sujeitos. Para usar
do conceito bergsoniano, diríamos que a técnica científica se enquadra
no Tempo, considerado como grandeza mensurável, e sofre da contínua
evolução deste, enquanto que a criação artística se insere na Duração,
que é uma multiplicidade qualitativa, mas não numérica. Daí poder-se
falar em evolução científica, enquanto que, na criação estética, não há,
propriamente, evolução, no sentido de progresso, mas, apenas no de
transformação de gêneros. Esta diferença fundamental se manifestaria
se comparássemos, de um lado, a Física de Heráclito com a de Einstein,
e, de outro lado, a Escultura de Fídias com a de um grande escultor
moderno. Ali o progresso, com a sucessão de estágios transitórios; aqui
somente a apresentação diferente de permanências autônomas.
O extraordinário destino de Marcel Proust, o dado mais importante
para explicar a mágica vitalidade da sua obra, reside na intuição segura
que o fêz utilizar os elementos da Ciência do seu tempo, de que pôde se
assenhorear, apenas como instrumentos de captação de uma outra realidade. Esta outra realidade, desvendada pela sensibilidade e pelo gosto,
é íntima e substancial, e não externa e formal como a da escola realista,
que, por isto mesmo, tanto envelheceu. Ainda uma vez, as duas con-
cepções do Tempo se defrontam: em Proust o Tempo como duração
qualitativa; nos Goncourt ou em Zola o tempo como enumeração quantitativa. Na narrativa realista a Literatura é composição; no memorialismo proustiano, ela é criação.
Por isto mesmo Proust dizia que, ao contrário do que afirmavam
comentadores superficiais da sua obra o aprofundamento da análise
psicológica, em que foi mestre, não significava, nele, um esforço de
particularização, senão que ao contrário, um processo de generalização.
O individuo em Arte, em efeito, só é durável quando exprime uma verdade genérica.
O espírito criador, em Literatura, é aquele que desvenda e fixa a
mutável realidade por meio da imagem; que dá maior substância ao
real, ao transportá-lo para o plano estético. Dizem que Balzac, ao levantar o gigantesco painel da sociedade francesa sob a Restauração e
a Monarquia de Julho, deu, a princípio, a vários personagens, os nomes
verdadeiros que tiveram em vida. Depois trocou-os por nomes imaginários. o que, precisamente por dar maior liberdade criadora ao escritor,
aumentou a realidade da sua obra.
Foi, senão em escala maior, seguramente de maneira mais penetrante e profunda, o que também fêz Marcel Proust.
Sua vida, que podia parecer a de um ocioso diletante, apresenta-se,
de fato, como um raro exemplo de equilíbrio, como único caminho capaz
de levar à realização a que estava destinada.
Intelectualmente, preparou-se traduzindo crítica de Arte; parodiando estilistas famosos; frequentando pintores e músicos; observando doutrinas de filósofos. Os resíduos dessa acumulação meditada surgem-nos
nas páginas densas, vibráteis e coloridas que nos deu sobre os escritos
de Bergotte, a sonata de Vinteuil, as telas de Elstir. Mas não era a
Estética propriamente, ou seja a Ciência do belo, que representava, para
êle, o objetivo final, como, de resto, nenhuma outra Ciência. Êle não
seria um novo Ruskin, nem um novo Sainte-Beuve. A Estética era o
campo da sua criação, mas não propriamente a matéria dela. Os próprios
estetas reconhecem que a Ciência da Arte, que praticam, não se confunde com a própria Arte, tanto que grandes artistas podem existir,
que desconheçam as leis que regem as suas faculdades criadoras.
Em Proust o conhecimento avisado de tais leis, pelo menos as
vigentes na sua época em todo o vasto campo da criação artística,
deu-lhe a consciência da obra que estava realizando, mas tal conhecimento não se substitui a esta obra, não alterou a natureza especificamente literária do seu ímpeto criador.
Talvez a consciência estética do que estava realizando é que tenha
dado a Proust a energia necessária para levar a termo a tarefa gigantesca, resistindo à pressão sofrida por todos aqueles que, dela tendo
conhecimento, se chocavam com os seus aspectos inovadores. um escritor menos seguro do que fazia e de por que o fazia, sobretudo no
estado de desgaste físico em que viveu a fase final da sua criação, não
teria resistido à indiferença ou, mesmo, à hostilidade do meio.
Neste ponto é que devemos reconhecer a provável importância que
teve a formação estética e filosófica de Proust na tenacidade extraordinária com que, concentrando tudo o que lhe restava de vida na ultimação do seu livro, pôde terminá-lo, embora talvez sem lhe dar o acabamento final que, possivelmente, lhe daria, segundo alguns dos seus
biógrafos, caso tivesse mais algum tempo de vida.
Mas este aprimoramento da parte já escrita, caso a ela se dedicasse,
talvez consumisse, no escritor, os restos de vida necessários à redação
do que faltava. Por isto mesmo devemos agradecer ao seu instinto
heróico, que o levou a penar até os últimos dias, na faina da construção,
deixando a outros os retoques finais da obra terminada. A idéia de
heroísmo não é exagerada, na consagração de escritores, como Proust.
Criadores como êle são heróis da Humanidade, como os que se revelam
nas guerras, nas revoluções e na santidade.
Não poderia ser somente o desejo da glória, de permanência na
lembrança dos pósteros, que levaria aquêle homem sem fé nem esperança, sem amores nem interesses, sem passado pessoal a justificar nem
futuro a defender, a se agarrar desesperadamente aos últimos farrapos
de uma existência de sofrimentos, na luta implacável contra o Tempo,
enchendo páginas que, sabia, não iria reler. Atuava nele, como nos
heróis, o sentimento da obra de que se é portador; da ação de que se
é instrumento; da voz de que se é intérprete. Os heróis literários, cono
Balzac ou Proust, sentem-se depositários de um legado que enriquecerá
as gerações, mas que não se transmitirá pela morte, senão que pelos
restos de vida que puderem usar até o fim.
Sabemos que «Du Coté de Chez Swann», editado pela primeira
vez em 1913, o foi por conta do autor. Aquêle Iivro estranho, como os
demais que se lhe foram seguindo, provocavam natural desconfiança,
pela completa desconformidade com os padrões aceitos.
Sem dúvida, um Rimbaud, um Jarny, para não falar em um Mallarmé, tinham revolvido as noções assentes da composição literária. Mas
a interpretação, às vêzes penosa, das criações desses três escritores,
todos contemporâneos de Proust (e os dois últimos produzindo ao
mesmo tempo que êle), coloca-os em um campo de procura muito diverso
do da obra proustiana. Em primeiro lugar, nas poesias de Rimbaud e
de Mallarmé, todo o esforço se concentra em uma direção que nunca
atraiu a Proust; a procura do Absoluto, por meio de processos a bem
dizer metafísicos. Em Rimbaud a videncia poética, por êle mesmo chamada «Iluminação»; em Mallarmé o mistério poético, depois transformado
em escola, com o nome de simbolismo. Nada de parecido no romance de
Proust, no qual a matéria — inclusive a matéria dos sentimentos —
atinge aos derradeiros graus de fluidez e de transparência de colorido,
mas nunca aparece sob aspectos visionários ou místicos. Longe disso,
a obra de Proust é a mais terrivelmente materialista de tôda a História
da Literatura, precisamente porque leva aos extremos limites a descrição
e a interpretação da matéria, viva ou sem vida, iluminada pelo intelecto
ou agrilhoada por paixões, instintos e emoções. Mas o que se pode
chamar espírito está ausente da obra de Proust, e, com êle, as visões
e os misterios. Tudo o que é propriamente espírito não atrai nem preocupa os infatigáveis personagens de Proust, que se agitam deseperadamente num mundo sutil, refinado, mas sem alma. O amor humano só é
entrevisto nas figuras da mãe e da avó — que parecem, de resto, a
mesma pessoa. Fora disso não há amor que dure ou que resista à
corrupção da vida. O amor de Deus — a idéia religiosa mesmo — são
ausentes. A própria criança que encarna a um tempo o amor humano
e a luz de Deus, não aparece verdadeiramente naqueles maciços volumes. Se não trabalhou com as forças da inquietação espiritual que
levaram poetas como Rimbaud e Mallarmé a romper com tôdas as
convenções, inclusive a da linguagem, Proust tão pouco lançou mão
do inverossímil, como fêz Jarny, que seguiu este outro meio de se afastar
dos modelos formais e lógicos.
A obra de Proust pareceu estranha e, às vêzes, incompreensível
aos contemporâneos, por outros motivos, quer dizer, pela sua originalidade básica, porque reveladora de uma imensa e escondida realidade.
Nada tinha de visionário, misterioso ou inverossímil este infundável
romance, nem mesmo acontecimentos extraordinários, embora abordasse
diretamente temas humanos, velhos como a civilização e mesmo existentes fora dela, que são colocados, não no rol do extraordinário mas
do anormal. Nas milhares de páginas em que pouca coisa realmente
acontece, o que flui é a vida humana, em tôdas as suas manifestações,
cruelmente perseguidas pela impiedosa lucidez do escritor.
Essa obra chocou, a princípio, por si mesma, por sua riqueza desbordante, que exigia uma composição fora de normas; por sua profundidade analítica que derrotava os leitores mais corajosos; por sua
audácia inovadora, que fazia titubear os moralistas; e, finalmente, pelo
que havia nela de mais inusitado e ostensivo; a capacidade de tragar
todos os temas estéticos sem se propor nenhuma tese; de montar todo
um imenso panorama social sem se engajar em nenhuma doutrina; de
levantar, como até então ninguém havia feito, o traçado de uma memória
vivida, sem o intuito de se engrandecer, de se justificar nem mesmo
de ensinar nada a ninguém.
Já tem sido lembrado que, entre as influências da literatura clássica atuantes sobre Proust, estarão, provavelmente, Montaigne, (apesar
do autor de «À la Recherche du Temps Perdu» nao se referir ao dos
«Ensaios», no seu romance), e, seguramente, Saint-Simon, cujas «Memórias» são por êle citadas repetidamente.
Insistindo, ainda, na questão da presença de Montaigne na inspiração de Marcel Proust, observamos que o fato verdadeiramente inexplicável, do romancista não se referir — salvo erro — ao nome do
filòsofo, nao impede o leitor habitual dos «Ensaios» de sentir, nitidamente, uma certa atmosfera montaigniana na trama complicada de «A
la Recherche du Temps Perdu». Sem falar que certas influências diretas são inegáveis, como, por exemplo, aquela reminiscencia da sensação de acordar com música — tão famosa nas recordações de Montaigne
— que vamos encontrar logo no começo de «La Prisonnière».
Há, com efeito, muito de comum, não apenas entre a substância do
romance proustiano, as «Memórias» de Saint-Simon e os «Ensaios» de
Montaigne, mas, também, na forma das respectivas composições. E,
muitas vêzes, a forma da composição é uma resultante, uma conseqüência, e não uma causa, do gênero da obra composta.
São três livros caudalosos, escritos por três autores encerrados, e
cujo sucesso foi uma espécie de descoberta, que veio coroar uma monumental originalidade. O castelão da Gasconha, fechado na sua tórre;
o duque Cortesão, garatujando no segredo do seu quarto palaciano e o
burguês diletante, enclausurado na sua cela de enfermo lançavam, às
escondidas do mundo, sondagens reveladoras no coração humano.
Montaigne deixava-se arrastar pelo curso caprichoso do pensamento; Saint-Simon acumulava narrativas; Proust recriava, na ficção, a
realidade. Cada curso criador encontrou o fim natural: o pensamento
do ensaísta, na Filosofia; a narrativa do memorialista, na História; o
romance do artista, na Estética.
Nunca será demais insistir sobre este ponto, por mais que tenha
sido êle atentamente perquirido pelos analistas de «À la Recherche du
Temps Perdu». A obra de Proust, essencialmente ligada ao Tempo,
tornou-se intemporal porque fundiu elementos éticos, sociológicos, artísticos, históricos e psicológicos em uma grande harmonía estética. Êle
soube enlaçar os valores do Tempo na finalidade da sua obra, tornando-a permanente, em vez de fazer dela uma simples projeção daqueles mesmos valores, o que a tornaria temporária, como tantas outras.
Ao descrever as angústias dos desvios amorosos êle não moralizava;
ao exibir os excessos de uma classe decadente, não fazia sociologia; ao
transmitir impressões sobre a literatura de Bergotte, a pintura de Elstir,
a música de Vinteuil, não escrevia crítica de Arte; ao penetrar nos
labirintos genealógicos, não cultivava a História; ao captar as mais tênues
reações da alma, não realizava experiências psicológicas. Tudo o que
fazia era exprimir-se esteticamente, no sentido moderno da expressão
estética, que é, como reconhecem os filósofos da Arte, a penetração da
essência mesma da realidade, pela idéia do belo. Neste sentido é que
Proust foi um dos pioneiros da estética contemporânea, pois, ao se
evadir da vida real, refugiando-se no isolamento, êle, de fato, viveu
uma outra vida; viveu a vida de outros seres humanos, recriando-a estèticamente, indiferente à moral, ao amor, ou à piedade.
Esta intenção, que constitui a trama sensível, embora invisível, de
tôda a obra, vem à tona afinal, explicitamente, no coroamento do ro-
mance. Nas páginas derradeiras, que são como que a abóbada da
imensa construção, cuidadosamente colocada pelo autor, Proust apresenta, com nitidez, o plano que o conduzira em tôda a complicada e lenta
arquitetura. Ao contrário do construtor comum, o seu plano só nos é
mostrado no fim. como se estivesse falando de uma catedral e îsta
comparação êle a repete em carta a um amigo — desvenda-nos as relações e conexões profundas, que interligam os diversos personagens
e os seus destinos, como se fossem os elementos de apoio, divisão e
sustentação de um templo material. A jovem filha de Robert de SaintLoup e de Gilberta Swann surge como a chave da abóboda, o elemento
final que une, na sua fragilidade, todo o sistema, reunindo os elementos
antes separados, e até opostos, do lado Swann e do lado Guermantes. Seria a união final das aparências no grande nada. Mas, neste
momento, falando do Iivro em si mesmo, que estava terminando. Proust
nos dà, sùbitamente, a decifração dele, nas seguintes palavras: «Mas,
para voltar a mim mesmo, eu pensava mais modestamente no meu Iivro,
e seria inexato dizer que pensava nos que o leriam, nos meus leitores.
Porque êles não seriam, para mim, meus leitores, senão que leitores
dêles mesmos, meu livro não sendo mais que uma lente de aumento.. .
meu livro, graças ao qual eu lhes forneceria o meio de se lerem neles
próprios. De sorte que eu não lhes pediria para me louvar, nem para
me denegrir, mas, somente, para me dizerem se estava bem certo, se as
palavras que êles lêm, em si mesmos, são bem aquelas que escrevi».
Por isto é que, nesta já avançada segunda metade do século XX,
a obra de Marcel Proust adquiriu tôda a sua dimensão.
Não se pode pretender que uma visão contemporânea de Proust
seja nova, ou melhor, não se pode afirmar que, ao leitor de hoje, ocorram julgamentos não entrevistos pelos leitores de há quarenta inos
passados. Ao contrário, o que existe de substancial para a compreensão
de «À la Recherche du Temps Perdu» já foi dito pelos principais biógrafos e críticos do romancista nos primeiros anos seguintes à descoberta
da sua obra e ao seu falecimento, assim como os erros a seu respeito
são hoje, os mesmos de antigamente. Mas o que se pode afirmar é que
a imánente vivência, a intemporalidade e a amplidão humana do romance
proustiano encontram agora a sua melhor comprovação; agora, quando
o ambiente que suscitou a obra foi substituído por outro, completamente
diverso.
O próprio autor não estaria em condições de prever esses elementos
de vitalidade e sobrevivência da sua obra, inexistentes na de outros
contemporâneos, tidos, no tempo, como superiores a êle. Proust viveu
em uma França que era potência mundial de primeira grandeza, e em
um Paris que era a mais importante cidade do mundo. Conseguiu penetrar no segredo de uma sociedade que exprimia o mais alto requinte
desse poder e dessa cultura. Hoje, menos de meio século passado de
sua morte, todo esse panorama histórico e social se desfez, como se
dissolvem as formas das nuvens no céu. Nem a França, nem Paris sao
hoje o que então eram, não propriamente porque hajam perdido de substância, mas porque na África, na Ásia, na América e no próprio Oriente
europeu, uma imensa e nova realidade histórica se levantou. Assim,
se tivesse ficado preso ao interesse específico do mundo que criou, recriando, a obra de Proust seria considerada, pelos leitores de agora, como
sendo o crepúsculo literário do século passado, como tantas vêzes foi
dito, erroneamente, a seu respeito.
No entanto, não é o que se observa. Ao contrário; é das culturas
mais deferenciadas e distantes que procedem os mais vigorosos estímulos
de curiosidade, estudo e admiração pela obra do grande escritor. Leitores provindos de países longínquos acorrem às peregrinações proustianas, não com o interesse turístico de ver o exótico (pois os antigos
povos metropolitanos devem se habituar também à idéia de que são
exóticos para os antigos povos coloniais) mas na necessidade de encontrar o centro de criação de uma obra que, por caminhos fabulosos,
os faz compreender certos caminhos da vida.
Sem dúvida Proust não satisfaz totalmente ao leitor dos nossos dias
atormentados, pois, se lhe sobra alma, no sentido de sensibilidade, falta-lhe alma, no sentido de espírito. E esta restrição, também apresentada
pelos seus primeiros exegetas, tornou-se crucial nos dias de hoje, e
muito mais significativa do que nos da sua descoberta.
Os riscos de destruição nuclear; os conflitos e dramas do desenvolvimento desigual; os desequilíbrios sociais internos; a brutalidade das
guerras feitas em nome da paz; tudo isto exige, de muitos espíritos, o
complemento espiritual que não podemos encontrar em Proust. Porque,
nas épocas como a nossa, o que nos falta não é somente a verdade
estética, que nos completa a vida. Também carecemos de outra verdade,
a que nos aplaque a inquietação pelo que se desdobra além da vida,
nesse mundo transcendente tão aproximado de nós, hoje, pelos riscos
e conquistas da vida mesma. Ou, em palavras mais claras: nunca, mais
que agora, a Humanidade precisou que a Arte, tal como a Ciência,
sejam caminhos que levem à transcendência espiritual, e dela não se
afastem, nem, mesmo, a esqueçam.
Esta é, pois, em resumo, a posição sincera de um leitor desta fase
do século, diante da obra de Marcel Proust . Em tudo que se refere à
vida, êle atingiu à eternidade pela estética. Mas a falta irremediável
que sentimos na sua obra imortal é a do sentimento, mesmo, da
Eternidade.
*
*
«
(Conferência proferida no Rio de Janeiro, no encerramento da
«Semana de Proust») .
D. PEDRO II, PLAGIÀRIO?
R.
D
MAGALHÃES
JÚNIOR
II teve relações tormentosas coin a poesia. Admirava, sem
dúvida, os grandes talentos poéticos. Promovia tertúlias literárias
no Paço de São Cristóvão. Promoveu a edição da Confederação dos Tamoios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Ë não só fêz isso,
mas ainda defendeu o poema dos ataques desabridos do jovem jornalista e crítico José de Alencar, mobilizando, ainda, penas como as de
Manuel de Araújo Porto-Alegre e Frei Francisco de Monte Alverne.
Tentou aliciar ainda outras, como as de Alexandre Herculano e Francisco Adolfo de Varnhagen, que preferiram ficar à margem da peleja.
Seu entusiasmo pela Confederação dos Tamoios, em que foi muito exaltado num dos cantos em que há uma visão profética do Brasil futuro,
era tão grande que, ainda nas Lettres Brésiliennes, do Conde de Gobineau, editadas em 1969, há uma referência ao livro de Gonçalves de
Magalhães. Diz o então ministro da França no Brasil que, um dia, em
São Cristóvão, o imperador, a título de testar os seus conhecimentos de
português, leu-lhe tôda uma passagem da Confederação dos Tamoios,
a fim de verificar se êle, Gobineau, realmente a tinha entendido. . .
Amigo de poetas, deu títulos de nobreza a alguns dêles, como Gonçalves de Magalhães, de quem fêz primeiro barão e, depois, Visconde de
Araguaia; a João Cardoso de Meneses e Sousa, participante dos saraus
literários de São Cristóvão, a quem deu o título de Barão de Paranapiacaba; e a Franklin Dória, a quem deu o título de Barão de Loreto.
Distinguiu também um prosador, com o título de Visconde de Taunay.
Mas, singularmente, nenhuma das figuras de capital importância das
nossas letras no século passado mereceu mais que uma simples condecoração, como Machado de Assis e como José de Alencar, que, aliás, a
recusou, orgulhosamente.
PEDRO
como cultor da poesia, D. Pedro II escreveu versos originais e
esmerou-se, principalmente, em traduzir poetas estrangeiros. Traduziu
Dante e Manzoni, traduziu Jean Richepin e Sully Prudhomme, traduziu
Melène Vacaresco e traduziu Victor Hugo, a quem tanto admirava e a
quem foi visitar, em Paris, como um simples fã, num tributo de respeitosa admiração. Mas não se limitou a traduzir do francês e do italiano.
Ë sabido que fêz uma versão do hino dos Estados Unidos da América
do Norte, o famoso Sfar Spangled Banner, e traduziu, entre outros, um
poema do norte-amencano John Greenleaf Whittier, de assunto brasileiro, intitulado The Cry of a Lost Soul. Este foi traduzido, também,
pelo poeta Pedro Luis Pereira de Sousa, elogiado por Machado de Assis
numa crônica publicada a 22 de agosto de 1864, no Diário do Rio de
Janeiro. O confronto entre o original e as duas traduções ilustra o que
valia o imperador como poeta e como tradutor. Comecemos pelo texto
de Whittier:
In that black forest, where, when day is done,
With a snake's stillness glides the Amazon
Darkly from sunset to the rising sun.
Pedro Luis desdobrou o terceto de Whittier numa quadra, em versos decassílabos:
Quando,
Resvala
Sombrio
Até que
à tardinha, na floresta negra,
o Amazonas qual serpente,
desde a hora em que o sol morre
resplandece no oriente.
Ao mesmo tempo que acrescentou um verso, Pedro Luis suprimiu
uma das rimas do original, mas na verdade transcreveu, integralmente,
o pensamento do autor. D. Pedro II foi mais fiel no tocante ao número
de linhas e à rima tríplice, mas os seus versos são indiscutivelmente
piores:
No mato escuro, aonde, o dia já ausente,
Dcslisa-se o Amazonas, qual uma serpente,
Do pôr do sol à aurora tenebrosamente,
Whittier faia, na poesia, do grito melancólico de um pássaro, que
os índios chamam de «alma-perdida»:
A cry, as of the pained heart of the wood,
Tlie long, despairing moan of solitude
And darkness and the silence of all good,
Pedro Luis transpôs èsse terceto nesta quadra:
um grito, qual gemido angustioso
Que o coração do mato soltaria
Chorando a solidão, aquelas trevas,
O não haver ali uma alegria,
E D. Pedro II o fêz neste terceto de versos irregulares, o primeiro
com doze sílabas, sem ser rigorosamente um alexandrino, pois lhe falta
a cesura, o segundo com onze e o terceiro também com doze, mais correto, mas nem por isso mais feliz:
como d'alma penada na floresta errante
Choro extenso, gemido d'ermo cruciante,
E das trevas, o bem dali então distante,
Levemos a comparação a mais um dos quinze tercetos de W h i t tier:
Startles the traveller, with a sound so drear,
So full of hopeless agony and [ear,
His heart stands still and listens like his ear.
Pedro Luis assim traduziu e rimou:
Agita o viajor, com som tão triste
De medo, do ansiar da extrema luta,
Que o coração lhe pára nesse instante
E no seu peito, como o ouvido, escuta.
A idéia é a mesma de Whittier, mas o cacófato do quarto verso,
que soa igual a «comovido», por efeito da elisão de «como» e «o ouvido»,
não faz honra às habilidades do autor de Terribilis Dea. Mas bem menos
feliz é a tradução do imperador:
Tanto abala o viajor com o hórrido sonido
De angústia e de terror, que todo combalido
Lhe pára o coração, e escuta comovido.
Não vale a pena alongar o confronto, para mostrar quanto o imperador era fraco, como autor de traduções poéticas. No volume Ao Redor
de Machado de Assis (Pesquisas e Interpretações), dedicamos algumas
páginas à poesia de Whittier e às suas traduções brasileiras, mencionando, de passagem, a correspondência trocada entre o imperador
e o pastor James Cooley Fletcher, que refundiu e ampliou o livro de
seu colega Daniel P. Kidder sobre o Brasil e parece ter sido o divulgador de A Cry of a Lost Soul no Brasil.
O poema de Whittier, de quem Cooley Fletcher era amigo pessoal,
fora divulgado pela primeira vez no Natal de 1862 no jornal The Independent, de Nova York, e mais tarde incluido no volume In War Time
and Other Poems, editado já durante a guerra civil norte-americana
(1864) . como disse naquele livro, o imperador teve o capricho de mandar a Whittier um cópia autografa de sua má tradução, acompanhada
de duas almas-perdidas capturadas na Fazenda de Santa Cruz. Os
dois pássaros foram empalhados e montados sobre um galho de árvore
pelo taxidermista francês Auguste Bourget, com loja à rua do Ouvidor,
e que se anunciava como «naturaliste», especializado em «insectes,
coquilles et oiseaux». Quando Whittier morreu, em 1892, deixou o
mimo imperial, por testamento, à filha Elizabeth Whittier Pickard e a
seu marido, S. T. Pickard, que as doaram ao New England Museum
of Natural History, onde ainda se encontram. É o que sabemos por
Fletcher, que ampliou e reescreveu o livro de Daniel Pariseli Kidder,
Sketches of Residence and Travel in Brazil, publicado em 1845.
Não são melhores as traduções que o imperador esforçada e laboriosamente fez de poemas de Longfellow e de outros autores, inclusive
a do famoso soneto de Félix d'Arvers, que poderia ser confrontada com
muitas outras, entre as quais a de Pedro Luis. como autor de versos
originais, D. Pedro II era igualmente fraco. Corerm, com o seu nome,
alguns sonetos, de qualidade acima da média, mas se trata de peças
que lhe foram atribuídas e que o soberano deposto realmente não escreveu. São os chamados «Sonetos do Exílio», um dos quais é este, intitulado O Adeus:
Mensageiro do amor e da saudade,
Toma teu vôo pela azul pianura;
Vai dizer ao Brasil em que tristura
Tu nos deixaste aqui na soledade.
Vogam comigo os meus na imensidade
Buscando em terra estranha sorte escura;
E eu mais longe ainda irei; que desta agrura
Sei que caminho vou da Eternidade.
Mas ah! que vejo! Apenas te remontas,
Entre dois pegos voejando às tontas
Rápido tombas em revoltas águas. . .
Bemvindo sejas, ó celeste aviso!
Que assim me revelaste de improviso
A morte como termo a tantas maguas!
Outro dos sonetos apócrifos de Dom Pedro II é o que foi composto
com o título de A Imperatriz e divulgado no Brasil pouco tempo depois
da morte de Dona Teresa Cristina. Soneto indiscutivelmente saído da
mesma pena de que saíra o anterior:
Corda que estala
Assim te vais, ó
Da fortuna e do
Metade de minha
em harpa mal tangida,
doce companheira
exílio, verdadeira
alma entristecida!
De augusto e velho tronco haste partida
E transplantada à terra brasileira.
Lá te ¡izeste a sombra hospitaleira,
Em que todo infortúnio achou guarida.
Feriu-te a ingratidão no seu delírio;
Caíste, e eu fico a sós, neste abandono,
Do teu sepulcro vacilante cirio!
como foste feliz! dorme o teu sono . ..
Mãe do povo, acabou-se-te o martírio;
Filha de reis, ganhaste um grande trono!
Mas os mais divulgados e mais populares desses
foram os que receberam os títulos de Ingratos e de
O primeiro foi levianamente colocado numa antologia
leiros de Laudelino Freire, que assim contribuiu para
um embuste. E dizia de início:
sonetos apócrifos
Terra do Brasil.
de sonetos brasia consagração de
Não maldigo o rigor de iníqua sorte,
Por mais atroz que [osse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade,
Quando a dois passos só estou da morte.
E terminava com estes tercetos:
Mas a dor que excrucia c que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto o mata,
Ê ver na mão cuspir à extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata
Que tantos beijos nela pôs outróra.
Terra do Brasil também chegou a figurar com o nome de D. Pedro II em alguns almanaques e antologias poéticas. É, na verdade, o
melhor dos sete «sonetos do exílio»:
Espavorida agita-se a criança,
De noturnos ¡antasmas com receio,
Mas se abrigo lhe dá materno seio,
Fecha os olhos doridos e descansa.
Perdida é para mim tôda a esperança
De volver ao Brasil; de lá me veio
um pugilo de terra; e nesta creio
Brando será meu sono e sem tardança.. .
Qual o infante a dormir em peito amigo,
Tristes sombras varrendo da memória.
Ô doce Pátria, sonharei comtigo!
E entre visões de paz, de luz, de glória,
Sereno aguardarei no meu jazigo
A justiça de Deus na voz da história!
Esses sonetos entraram para o rol das grandes mistificações literárias, tais como a dos falsos poemas de Ossian, na verdade escritos
por James McPherson e atribuidos ao inexistente bardo gaèlico, e os
igualmente falsos poemas medievais de Thomas Rowley, na verdade
escritos pelo jovem poeta Thomas Chatterton. Que D. Pedro II não
escreveu tais sonetos — nem mesmo os piores dêles, que deixamos de
transcrever — é mais que evidente, pelo confronto com os seus verdadeiros versos, inclusive com os da tradução de O Canto de uma AlmaPetdida, de Whittier. No entanto, muita gente ainda acredita que o
imperador destronado os escreveu. Ainda na semana em que ocorreu
no ano passado o aniversário da proclamação da República, o Jornal do
Brasil transcreveu alguns dêles, ao pé de um artigo do professor Trajano Quinhões, diretor do Arquivo Histórico do Estado da Guanabara.
Mas já em 1932, Medeiros
se tratava de sonetos fabricados
monarquista, que ainda sonhavam
gança e assim apelavam para o
de Albuquerque tinha mostrado que
pelos sebastianistas da propaganda
com a restauração do trono dos Brasentimentalismo brasileiro.
Os «sonetos do exílio» foram inicialmente divulgados no jornal
A Tribuna, sucessor de A Tribuna Liberal, cujo redator-chefe era Carlos de Laet, monarquista intransigente até o fim de sua vida. O jornal,
aliás, era de propriedade do Visconde de Ouro Preto, o último chefe de
governo parlamentar da monarquia, e acabou sendo empastelado em
fins de 1890, em razão de seus virulentos ataques à República e ao Marechal Manuel Deodoro da Fonseca. Houve quem, a princípio, os atribuísse ao Barão de Loreto e a Afonso Celso Júnior.
Medeiros e Albuquerque disse, no volume intitulado Poesias Completas de D. Pedro IT. «Até os 64 anos o imperador sempre fêz versos
errados, banais, de uma indigencia de idéias e de uma imperfeição de
forma tais, que se recusariam a assiná-los até os mais incorretos principiantes. Depois dos 64 anos, doente, alquebrado fisicamente, acabrunhado moralmente, mas viajando junto de um poeta, atribuem-lhe versos, de que ninguém viu os originais e que, pela primeira vez, são bons,
certos, elevados no pensamento e na forma.. . uma hipótese corrente
é a que atribui a Carlos de Laet a autoria dos Sonetos do Exílio. É bom,
de fato, notar que essas composições, embora passando por ter sido
escritas a bordo, só no Brasil foram primeiro divulgadas. Quando, em
artigo publicado na Revista da Academia, eu discuti o caso e aventei
as hipóteses acima, não conhecia esta última. Desde, porém, que para
ela me chamaram a atenção, notei uma circunstância curiosa. Laet nunca
perdeu ocasião, nem de me agredir, nem de defender o imperador.
Dessa vez, entretanto, em que podia satisfazer simultaneamente esses
dois grandes prazeres, ficou silencioso. Isso não basta, é claro, para
provar nada; mas foi tão e s t r a n h o . . . »
Fosse quem fosse o autor dos versos atribuídos a D. Pedro II, o
fato é que este não os escreveu.
A autoria dos «Sonetos do Exílio» foi posta em cheque por ocasião
do movimento de saudosistas da monarquia que resolevram erguer, no
Ceará, um monumento a D. Pedro II. Os representantes da dinastia
deposta sugeriram que o ex-soberano fosse representado com a farda
de almirante, que tinha o direito de usar. Era uma homenagem a um
amplo setor da Marinha de Guerra que participara da revolução de
1893. com tendências restauradoras a partir da adesão de Saldanha da
Gama. uma comissão foi a Paris e tentou obter os autógrafos de dois
sonetos, um dos quais T'erra do Brasil, para serem reproduzidos, em
bronze, no monumento. Mas o Conde d'Eu e a Princesa Isabel, com
quem se entrevistaram, disseram não conhecer tais sonetos, não podendo
assegurar que fossem de autoria do imperador. Note-se que estava em
poder dêles tôda a papelada de D. Pedro II. O fato transpirou e José
do Patrocínio Filho, que se achava em Paris, mandou para A Imprensa,
de Alcindo Guanabara, um artigo, narrando o que teria sabido por um
dos membros da referida comissão. Entretanto, como quase sempre
fazia, exagerou a nota, afirmando que a filha e o genro do imperador
tinham dito que êle «nunca» escrevera versos.
Tanto bastou para que se estabelecesse acirrada discussão na
imprensa carioca. Interveio nela Victor Viana, no Jornal do Comércio
(edição da tarde), a 24 de julho de 1913: «Nestes dois últimos anos,
em diversas publicações vindas de Paris, tem-se contestado os predicados intelectuais e os dons poéticos de D. Pedro II. Outro dia, num
artigo de Antônio Simples (era este o pseudônimo usado por José do
Patrocínio Filho), apareceu uma contestação formal. Segundo o elegante jornalista, o Sr. Conde d'Eu e outros membros da família imperial
declararam firmemente que o Sr. D. Pedro II nunca fizera versos. Não
se compreende a vantagem que poderá haver em contrariar uma suposição que só honraria a memória do imperador. A mesma tendência em
desvirtuar a figura histórica do último soberano do Brasil fêz com que
os seus descendentes aconselhassem ao escultor a fazer a estátua para
o Ceará de um D. Pedro II vestido de almirante».
uma carta, assinada apenas com a inicial M . , imediatamente pôs
em dúvida tais declarações, dizendo que «não foram feitas nem pelo
Sr. Conde d'Eu, nem por sua Augusta espósta, nem pelo Príncipe
D. Luis». Acrescentava: «Nenhum dêles podia ignorar que o Senhor
D. Pedro II fazia versos, entre os quais figuram o belo soneto consagrado à memória do seu primogênito, a que faz alusão o Sr. Afonso
Celso» que também saíra a campo. A carta lembra ainda traduções
como a da ode de Mazoni, // Cinque Maggio, e os versos que foram
impressos no Correio Imperial, jornalzinho que seus netos faziam em
Petrópolis sob as vistas do Barão de Ramiz Galvão. Concluía dizendo
que Antônio Simples (José do Patrocínio Filho) se equivocara ou fora
induzido a erro por seu interlocutor.
Do Ceará, o jornalista João Brigido dos Santos, monarquista e
antifederalista enragé que dirigia o jornal O Unitário, escreveu ao
Conde d'Eu, que pôs as coisas nos seus lugares e acabou justificando
a exclusão, do monumento, dos dois medalhões, com os sonetos gravados
cm brome. Limitara-se a dizer que «não conhecíamos os dois sonetos que
se projetava transcrever sobre o monumento e, portanto, não poderemos,
como ainda hoje não podemos, afiançar que eles fossem da lavra do
magnânimo imperador». Acrescentava, contudo: «Não nos opusemos,
porém, a que a Comissão seguisse o seu propósito de transcrevê-los.
Foi o estatuario que algumas semanas mais tarde avisou que êle não
encontrava no pedestal do monumento espaço suficiente para estas
transcrições». (*) Explicações com as quais se deu por satisfeito o
destabocado jornalista, dizendo que a carta do Conde d'Eu, datada de
24 de setembro de 1913, tornara «mais solene o desmentido de terem
sido postas em dúvida por V. A. as aptidões literárias de S. M . , o
Imperador». Avisava ainda que a publicara, considerando que ela «não
traria inconveniente algum e firmaria mais a verdade, sem molestar a
imprensa do Rio de Janeiro, aliás a pior do mundo», pois nada conhecia
«mais venal e malicioso que esse jornalismo, sem excetuar mesmo os
jornais de mais circulação e soberba». O caso é que o desmentido
ressalvou apenas o fato, notório, de que o imperador versejava, mas em
coisa alguma encampou a autoria dos Sonetos do Exílio, que, a serem
autênticos, não podiam deixar de ter chegado ao conhecimento da
família imperial, figurando necessariamente os manuscritos originais nos
cadernos em que D. Pedro II costumava lançar suas produções em
prosa e verso.
Não foram, porém, as dos Sonetos do Exílio as únicas atribuições
de obras poéticas a D. Pedro II. Êle mesmo se atribuiu uma composição, que o expôs a grande vexame, quando um jornal do Rio de
Janeiro o denunciou como plagiario. Tais versos apareceram no livro
Brazil and Brazilians, dos pastores protestantes Daniel P
Kidder e
James Cooley Fletcher.
No apêndice C, à página 595 desse volume, havia uma notícia que
assim pode ser traduzida: «As seguintes linhas foram compostas por
D. Pedro II e escritas de seu próprio punho no álbum de uma das
Damas de Honra. Sem dúvida nunca foram destinadas aos olhos do
público, mas foram obtidas através de um membro do corpo diplomático
do Rio de Janeiro. O seu caráter didático e a natureza compacta da
língua portuguesa tornam a tradução extremamente difícil, mas esta foi
cuidadosa e fielmente realizada em versos ingleses para este volume,
pelo Sr. D. Batas, de Filadélfia, cuja poesia Speak Gently se tornou
popularíssima em todo o país».
A tradução de D. Bates começou por transformar 19 versos em
quatro oitavas rimadas, isto é, em 32 versos, estes, contudo, mais breves
(1) A correspondência trocada nessa ocasião pode ser consultada no Arquivo
do Museu Imperial, em Petrópolis.
Reprodução da página n° 595, da obra «Brazil and the Brazilians», de Kidder
e Fletcher, edição de Filadelfia, 1857.
do que os do texto traduzido.
dessas oitavas:
Transcreveremos apenas a primeira
If I am pious, clement, just,
I am only what I ought to be:
The sceptre is a weighty trust,
A great responsibility;
And he who rules with faithful hand,
With depth of thought and breadth of range,
The sacred laws should understand,
But must not, at his pleasure, change.
Ao lado das quatro oitavas que começavam por esses versos, Kidder
e Fletcher colocaram este texte com a assinatura de D. Pedro II:
«Se fui clemente, justiceiro e pio,
Obrei o que devia. É mui pesada
A sujeição do cetro; e quem domina
Não tem a seu arbítrio as leis sagradas;
Fiel executor deve cumpri-tas;
Mas não pode alterá-las. Ê o trono
Cadeira da justiça; quem se assenta
Em tão alto lugar, fica sujeito
À mais severa lei: perde a vontade;
Qualquer descuido chega a ser enorme
Detestável, sacrilego delito!
Quando no horizonte o sol espalha
Sobre a face da terra a luz do dia,
Ninguém o admira, todos o conhecem;
Mas se eclipsado acaso se perturba,
Nesse instante infeliz todos se assustam,
Todos o observam, todos o receiam:
Logo se premiei sempre a virtude,
Se os vícios castiguei, nada mereço».
Aliás, a transcrição no volume Brazil and Brazilians estropiou esse
último vocábulo, dando-lhe uma forma disparatada: «merecei». Em
seguida, vinha a assinatura: P. II, e a data: Dez. 1852. Quer dizer:
fôrr. alguma coisa que escrevera no décimo terceiro ano de seu reinado,
quando mal completara 28 anos. Na tradução do livro, publicada na
Brasiliana, com revisão e notas de Edgard Sussekind de Mendonça,
lê-se que o poema constante desse apêndice desapareceu de Brazil and
Brazilians a partir da sexta edição, «por terem surgido suspeitas sobre
a autoria». Entretanto, nr.da mais a nota esclarece.
Acontece, porém, que nos primeiros meses de 1870, tal poema
objeto de vários artigos na secunda página de A Opinião Liberal
coleção, fora de lugar na Biblioteca Nacional não me permite,
momento, fixar o dia exato, que não consta das notas que tomei),
foi
(a
no
um
dêles com o título de um Plagiario Coroado. E, na verdade, o jornal
provou o que alegava, demonstrando que o jovem imperador lançara
como seu, no álbum de uma dama do Paço, um trecho do poema do
vate lusitano do século dezoito, Pedro Antonio Joaquim Corrêa Garção,
o famoso Córidon Erimantêu da Arcadia Lusitana e inimigo visceral do
nosso José Basilio da Gama, a quem dedicou vitriólico soneto. A poesia
de Corrêa Garção se intitula Faia do Infante D. Pedro, Duque de
Coimbra, aos Portugueses querendo levantar uma estátua por seu bom
govèrno, o que êle não consentiu. Tal poesia em honra do famoso
Regente do trono português começa por estes versos, que A Opinião
Liberal transcreveu:
«Não, lusitano povo, eu não consinto
Que estátua ao meu nome se dedique:
O amor da pátria, o zelo da justiça,
Não sede de mandar ou de vangloria,
Me fêz tomar as rédeas do governo-.
Se fui clemente, justiceiro e pio.. .
Segue-se o trecho copiado por D. Pedro II, após o qual a poesia
de Corrêa Garção assim continua:
«E não queirais,
Lisonjeiros tentar
Honrosa estátua
Porque bem vos
vassalos generosos,
minha constância,
pretendendo erguer-me
regi...»
Paremos aí, pois não vale a pena transcrever os 45 versos restantes. ( 2 ) Evidentemente, o imperador cometeu uma pequena leviandade,
transcrevendo, como seus, versos alheios, que a dama de honra, cheia
de sincera admiração, de boa-fé transmitiu a terceiros, assim chegando,
por cópia, às mãos desavisadas de Fletcher, que com igual boa-fé os
fêz traduzir para o inglês. Tal foi o alarido na imprensa do Rio de
Janeiro que, sem dúvida, a verdade chegou aos ouvidos dos autores do
livro, que da sexta edição em diante suprimiram o malfadado apêndice,
sobre o qual D. Pedro II, ao que parece, silenciara... Quando A
Opinião Liberal pôs a boca no mundo, o imperador fêz divulgar a sua
explicação. Nunca dissera, a ninguém, que os versos eram de sua
autoria. E mais: «Se os assinei, foi porque, na ocasião, exprimiam
exatamente o meu sentir».
Parece que, poeta frustrado, o nosso imperador tinha a tristíssima
sina de só fazer sucesso com os versos alheios. Nunca com os próprios.
(2) Remeto os leitores curiosos de conhecer todo o texto de tal poesia ao
volume das Obras Poéticas e Oratórias, de Corrêa Garção, impresso em Roma, na
Tipografia dos Irmãos Centenari, com introdução e notas de Azevedo Castro, onde
figura às páginas 220/224. A Biblioteca Nacional possui triplicata dessa edição.
DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL
1972
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
9
Julho/Setembro
—
1971
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octavio de Faria
Manuel Diégues Junior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Melo Franco
Redação:
Palácio da Cultura — 7" andar — Rio de Janeiro — Brasil.
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO
III
JULHO /SETEMBRO - 1971
N.° 9
Sumário
ARTES
A Arte como Expressão do Tempo
CELSO KELLY
9
CIÊNCIAS HUMANAS
GILBERTO FREYRE
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
..
VERÍSSIMO DE MELO
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
JOSÉ ALIPIO GOULART
VICENTE SALLES
A Propósito de Cultura Hispânica como Cultura Transnacional Projetada sobre o
Futuro
Constituição: Mito e Realidade
Antropologia e História
A Conferência de Veneza e os
Problemas da Cultura
As Monarquias Ibéricas e a Proteção ao Incoia
Guajarina, Folhetaria de Francisco Lopes
21
33
43
55
67
87
LETRAS
FERNANDO DA ROCHA PERES
CARLOS DANTE DE MORAES
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO ..
Gregorio de Mattos: os códices
em Portugal
Augusto Meyer
Cecilia Meireles, Pastora de Nuvens e Mitos
105
115
125
Artes
A ARTE como EXPRESSÃO DO TEMPO
CELSO KELLY
I
P O R quê faço arte ?
Essa pergunta tem sido respondida de tantas maneiras. Cada
qual com sua justificativa. Boas razões invocadas. Cada artista tem
sua motivação. Daí, explicações contraditórias. Ou, pelo menos, variadíssimas.
2.
Comecemos pela resposta mais simples:
— Porque me sinto impelido a fazer alguma coisa!
Está no artista essa força de comunicação que transfere do mais
íntimo um sentimento que tem de exteriorizar-se Muitos praticam a arte
por necessidade. Entenda-se: a necessidade de uma confissão com o
mundo exterior. Assim como, em certos momentos, qualquer pessoa
experimenta a urgente precisão de confidenciar a outrem um segredo,
uma mágoa, uma inquietação. O artista toma do lápis — simples e
boêmio lápis, o mais elementar dos instrumentos do desenho, e põe-se
a rabiscar ingênua e distraídamente : saem coisas, compreensíveis ou
não, sem qualquer sentido utilitário.
Construídas por construir...
Somam soluções plásticas, que têm significação orgânica, unitária, na
aparência da despretensão.
Nada dizem à criatura vulgar: falam
talvez transcendentalmente, aos sensíveis, aos intérpretes do singular
fenômeno plástico. Já a criança havia deixado no papel as suas enigmáticas garatujas, — registros secretos do intrincado imagismo infantil.
Criança ou adulto, há momentos de criação: a extroversão é tão natural e espontânea que, por vêzes, lhes escapa a consciência do que
estão a f a z e r . . .
3. Porque sou tocado pela inspiração!
Essa a resposta que não responde: transfere. Transfere à inspiração a razão de ser da obra. Inspiração será um estado de espírito,
que, de quando em quando, nos assalta, a querer dizer coisas interiores. De súbito, o artista se encontra nesse estado: um chamamento
à produção, em termos irrecorrível, sob o imperativo de uma determinação. Será um estado de graça, propiciado por Deus ao homem:
do Criador à criatura para também criar na órbita humana. Privilégio
contido nos milagres da inteligência e da sensibilidade, distribuídas
em doses desiguais pela humanidade afora. Será um dom — uma faculdade especial de que são possuídos alguns, pródiga virtude de tão
poucos, a iluminar a visão de tantos.
4. Porque quero comunicar-me!
Tal como acontece à linguagem falada, certos artistas sofrem o
anseio de passar a seus semelhantes uma mensagem, mesmo que cifrada ou hermética. Quando atingem a plenitude do processo criativo,
reclamam logo o teste da comunicabilidade. Tal como acontece a oradores e comediantes, exigem público: a obra de arte se completa no
consumidor, intuitivo ou iniciado, numa ou noutra hipótese, capaz de
receber o convencional ou de interpretar a mais estranha das criações.
5.
Porque o meio social me solicita!
Tem sido verdade através dos tempos. O meio acorda no artista
a virtude da criação. Pelo menos, estimula. Seguramente lhe garante
o consumo. Estabelece a relação de criador e público, o que implica
uma excitação às faculdades do artista. A história registra momentos
altamente propícios à elaboração estética, com mercado assegurado,
com compreensão fácil, com interesse generalizado. Também há os
momentos de ocaso. O pêndulo da receptividade oscila continuamente.
O artista percebe quando a receptividade lhe sorri. Abrem-se-lhe as
portas para as grandes encomendas. Papas, imperadores, nobres, burgueses vaidosos, mulheres deslumbradas querem do artista a imortalidade de seu prestígio. A arte sela o requinte de sociedades ou grupos,
em determinados momentos. Ou lhes aponta a decadência irremediável.
6.
Porque,
idéia!
engajado,
estimo
colaborar
na
expansão
de uma
É o artista a serviço de uma ideologia, de um partido, de uma
crença, de uma propaganda. A palavra engajado há de ser lomada
no sentido de adesão ou submisão: engajado a uma religião, engajado
a um governo, engajado a uma atitude revolucionária. Em regra,
a expressão engajado é usada em referência aos que integram regimes
totalitários: engajamento integral. Entretanto, quem quer que coloque
sua arte como instrumento de proselitismo — da ordem constituída ou
de uma nova ordem — em termos incondicionais, engaja-se. Perde a
liberdade de crítica ou de criação, para identificar-se com o ponto-devista único, absoluto, soberano. A atuação política sobrepõe-se ao
instinto da criação livre. A densidade estética cede lugar à densidade social.
7.
Porque me
dirijo no sentido das encomendas!
Até mestres — que foram pintores reais — curvaram-se, de algum
modo, aos desejos e vaidades dos poderosos. O retrato pode trans-
formar-se num drama, tôda vez que o artista não sente o modelo da
maneira que o mesmo estimaria ser sentido. Isso ocorre muito com
personalidades femininas, em busca de uma cirurgia plástica... através do pincel. A encomenda pode corresponder ainda a propósitos
comerciais. um dos mais atraentes setores da arte contemporânea é
o da arte de propaganda. Pode ser arguto o artista que aceita as imposições dos que lhes fazem encomendas. Mas será pouco artista
quando cede às concessões. .. A obra de arte há de ser íntegra e
autêntica. Sob pena de não ser arte.
8.
Porque faço da arte uma experiencial
O artista sente que tem à sua disposição algumas técnicas (ou
maneiras) e variado material. Há que optar. Há que ir além. A
arte pretérita já lhe fatigou a vista. E fatigou a vista de seus contemporâneos. Vale a pena tomar dos elem|entos e tentar soluções
novas. Sem idéias preconcebidas. Pelo prazer da experiência. Tôda
a vida humana soma um rol de experiências nos mais diversos campos.
É da condição humana ser um explorador de caminhos. A reconstrução da experiência enriquece a cultura. O grande capítulo da cultura
humana tem sido escrito a custo da audácia e do pioneirismo de alguns.
Há extraordinária beleza em perseguir a b e l e z a . . .
9.
Porque, na busca do inédito, aspiro também a ter minha parcela na obra da criação!
Embora arrogante, a atitude se explica. Configura-se o desejo
de acrescentar algo de pessoal ao processo artístico: uma contribuição
técnica, uma posição estética. O espírito humano vive o desafio dos
insatisfeitos e dos renovadores. O que dele emana se traduz por um
vir-a-ser contínuo: pequenas ou violentas mutações. A mira está
sempre longe, a despertar motivações indeterminadas e rebeldes. É
preciso que a visão seja larga.
10. Variam as explicações. Umas sinceras, outras pretensiosas,
qualquer delas aceitável, conforme o ângulo em que nos situemos. O,
temperamento variável conduz a afirmações tão diferentes. O artista
não é um ser bitolado: eis porque cada um toma seu rumo. Regra
geral, não se analisam. Muito menos analisam suas obras. Os críticos é que descobrem intenções e virtudes. Os artistas se surpreendem com o que se lhes atribui.. . Mas é função da crítica re-criar,
quando pode; ou destruir impiedosamente, quando é pérfida. As respostas acima ilustram a diversidade de opiniões. Há quem produza
pelo gosto de produzir, sem motivação nem conseqüência: a obra
responde a um impulso. A elaboração foi um gosto estético praticado.
Há também quem se deixa levar pelas influências do meio em que
vive: idéias, solicitações, encomendas; trabalham acionados. Adotam
atitudes por convicção ou por moda. Sob outro ponto de vista: o que
faz arte pela arte em busca do estético — convencional ou inédito;
e o que faz da arte a sua tribuna, imprimindo-lhe sentido demagogico,
mesmo que discreto. São as contingências do momento, em oposição
às razões da personalidade. Nem sempre esta resiste àquelas contingências. Também as circunstâncias interferem poderosamente no processo da criação.
11. Essas considerações são de todos os momentos. Sêr necessário, indispensável mesmo a qualquer comunidade, o artista capra e
exterioriza. Capta à sua maneira: exterioriza à sua maneira. Coincidências favorecem, por vêzes, a formação de escolas, no sentido de
movimentos. Porém os grandes mestres, os grandes realmente, não
cabem nas molduras doutrinárias. um Goya ou um Daumier — para
citar dois caracteres bem diversos — não podem ser classificados, segundo o discutível catálogo das tendências estéticas. E que dizer de
um explosivo, como Van Gogh, em cujas telas nasce uma pintura
inédita, tão só pintura, sem se deixar conter nas figuras luminosas do
impressionismo em voga? Que dizer de um compòsito, como o nosso
admirável Aleijadinho, encontro miraculoso do barroco, do gótico e
do expressionismo? Não há palavra ou termo didático que contenha
o gênio. ÊJe ultrapassa as fronteiras. Êle cria novos cânones. Ou
melhor os cânones são eles próprios. Apesar disso, os contemporâneos insistem em arie moderna, em modernidade. A partir de quando?
Todo novo ciclo marcou uma era nova: o gótico, o b a r r o c o . . . Tôda
verdadeira arte é sempre nova. Porém, quando imita ou copia; quando
servilmente segue a receita compendiada; quando se enquadra passivamente numa fórmula; quando nacía elabora — não é arte. É papelcarbono. E o tempo? Mesmo que, em princípio, a arte seja atemporal,
a presença dos tempos é das mais marcantes, sobretudo em período
de mudança. A pesquisa — em qualquer que seja a área — motiva
renovação. A atualidade experimenta uma inquietação geral, em busca
de soluções adequadas, de revelações, de revisão e de novidades. Na
forma e na comunicação, assistimos a um momento de elaboração frenética.
II
12. Sim. Temos vivido, neste meio de século, uma larga fase
de deslumbramento. Nunca os ateliers de pintura e escultura estiveram tão revoltos, desinibidos de preconceitos, em busca de soluções
novas. E tais soluções brotam pródigamente, em número e em variações, como se o mundo — pelo menos nesse setor — estivesse a reinventar-se. A fertilidade é tal que ninguém se fixa num achado, e
tem logo a atenção solicitada por outra aventura, já sofre a concorrência de terceiras e quartas soluções. Dentro dessa oficina, sem a
regência de espíritos superiores que lhe tentassem alguma unidade,
tudo é permitido: tem-se a impressão de que cada qual saca do seu
buril ou do seu pincel, do seu pedaço de madeira ou ferro, ou de sua
substância corante, e dá curso à imaginação: transpõe-se ao estado
criativo e, pósto nessa condição mágica, realiza o que lhe vem à cabeça, espontâneo ou premeditado, no extremo da originalidade, como
se respondesse ao dever de dar uma nova escritura ao mundo.. • como
espetáculo, o quadro é de euforia e entusiasmo, e não há como negar
validade a tantas expressões que se competem, substituindo uma fórmula
envelhecida por numerosas proposições no campo da estética.
E o
entusiasmo aumenta quando a tarefa se vai personalizando, cada um
dentro de suas fronteiras, como dono de uma área que explorará ao
sabor de suas preferências.
13. Eis porque não há uma arte moderna, em oposição à escultura grega, ou à arquitetura gótica, ou à pintura impressionista —
capítulos admiráveis de precisão e de síntese, cada um dêles correspondente a uma maneira integral de sentir e de conceber. Hoje
existem várias modalidades que somam o desconcertante e inquieto
acervo da arte moderna, e as múltiplas variações chegam às oposições
frontais: primitivismo e neo-cubismo, figurações e abstrações, escultura
ovòide e mobiles, expressionismo e surrealismo, pop e op, «minimal»
e objeto. Mais de dez caminhos paralelos são seguidos ao mesmo
tempo, sem prejuízo dos que ainda continuam serena e impertubàvelmente a tendência conservadora que abraçaram. Em qualquer dos
rumos, a renovação não se cinge à maneira ou ao assunto: compreende
a matéria. Assim o objeto resultará tanto dos velhos materiais nobres,
como de material vulgar; tanto de tintas, como de collage; tanto de
mármores e pedras, como de cascalho de lixo. Em meio a isso, surgem
metais de fino trato e, por vêzes, uma peça suíça flexível é um meio
termo entre um relógio e um instrumento musical. Na tendência oposta,
de motivos populares, a intenção reside na pretensa identidade com as
camadas incultas da população. Tomado esse panorama em sua impressionante totalidade, é de energia criadora por excelência o espetáculo a que se assiste. Mas, transferindo do esforço da criação para
o da assimilação ou consumo, as distâncias entre artista e público se
agigantam.
14. Em verdade, caducaram as velhas formas acadêmicas.
Aquela arte serena e refletida, que tinha, em cada obra, uma definição
ou uma mensagem, esborôa-se numa sociedade sacudida por tôda a
sorte de problemas morais, religiosos, econômicos e políticos.
Perdida a unidade, multiplicados os rumos que se delineiam aos grupos,
instalada a controvérsia, a mesma dúvida que devora os espíritos em
geral castiga igualmente o artista.
Êle se sente vítima do comum
estado de coisas, onde mal se vê o horizonte, e as coordenadas lógicas
que presidiam a pensamentos e atos são sùbitamente afastadas pela
presença de acontecimentos inesperados, atrevidos, arrogantes, — por
vêzes baseados em razões da ciência, sem que o sejam em pressupostos morais. A arte reflete as dúvidas e angústias contemporâneas, não
podendo oferecer a esse quadro de sofrimento e desafio a tranqüilidade
de obras para a doce contemplação dos homens. E, ante o impacto
sucessivo de negações do mundo real, à dúvida sucede a evasão, e a
arte se perde no indefinido e no abstrato, com o que tenta conquistar
para o atormetado espírito humano alguma solução, mesmo que transitória. É preciso falar às estrelas, já que não se pode falar aos
homens.. .
15. A ausência de definições, a fuga para o subjetivo, os lances
mais audaciosos de imaginação coincidem na vida como na arte. Apenas há quem pense, chegado o momento artístico, que o homem se
exonera das circunstâncias que o cercam para voltar ao estado de
idealidade e coloquiar com as obras clássicas... O contraste é severo:
debruçados em seus laboratórios, cientistas pesquizam o infinitamente
pequeno, no qual vêm virtudes surpreendentes, enquanto outros alongam os seus olhos, por processos artificiosos, para alcançar o infinitamente distante e desvendar novos mundos. A visão do homem comum
é contaminada pelos resultados dessas incursões pioneiras. Privilegiada, a visão dos artistas tem antecipações que perturbam a marcha
normal da percepção e só justificam as suas fórmulas proféticas nas
liberdades permissivas do gênio.
Já a aviação havia dado à visão
humana, — com a anulação do horizonte convencional — uma paisagem inédita. Vivendo em termos de altitudes, o homem moderno experimenta um novo arranjo da natureza. Fato inconteste reside no
enriquecimento de sua visão e na derrocada definitiva de alguns preconceitos que, tentando clareá-la, a viciavam de base.
16. O paralelismo continuará entre a vida e a arte. Agora não
apenas na pesquisa, tornando legítima nas artes como nas ciências a
deliciosa aventura do descobrimento. Agora, também, em outro campo
de buscas, mais afim pelo domínio das formas, que é a indústria;
nesta, as ambições não se contém, e os processos de produção atingem
proporções ameaçadoras, já a caminho da automação. Assim também
os artistas se interessam — voltando à sua condição de artesãos —
por fazer de qualquer nada alguma coisa diferente, e daí as variações
mais excêntricas, até o momento em que se encontram com a forma
pura, que os excita e aguça segundo requintes de sensibilidade ou caprichos de imaginação. Quantas dessas experiências legítimas ao
serem tentadas — não lograrão sobreviver, por absoluta falta de interesse, reduzida a um exercício, mesmo que admirável! Mas a faina de
inventar continua: na arte como na indústria, a caracterizar uma fase
do mundo moderno em que certas criaturas — sejam compreendidas,
ou não, pelos outros — representam o papel pioneiro de intérpretes da
inquietação e do desvario contemporâneo. Nisso, no caótico das variantes, a arte moderna se enquadra na cultura do tempo: não é uma
extravagância marginal, porém a integração numa cultura dominada
pela renovação e pela pesquisa, pela aventura do novo e do inédito,
pela psicose da originalidade. O objeto, seja o que a indústria produz
com fins utilitários, seja o que o artista inventa no devaneio da forma,
representa, numa hipótese e noutra, uma solução plástica, para a qual
houve um tratamento intencional. E nessa intencionalidade reside o
caráter artístico que se lhe não pode negar.
17. Embora se explique a arte moderna de conformidade com
tendências da cultura contemporânea, fato é que nenhum acontecimento marcante do século motivou qualquer pintura ou escultura. A
perda da condição representativa retirou às artes o selo da contemporaneidade, com que, em outros períodos, a pintura histórica marcava
a sua função como nas cortes napoleônicas. Certo, há acentos de protesto e de angústia em pintores que dizem do desajustamento geral,
até mesmo em composições não-figurativas. O grupo socialista mexicano, permanecendo dentro do representativo, buscou à época e ao
meio temas de inspiração política, que encontraram, em Diogo Rivera,
uma tribuna de protesto. A arte soviética não agasalhou, nem estimulou a arte moderna, por considerá-la experimental demais, fugindo
à essência dominante de uma mensagem: para sua destinação social,
integrando a cultura preconizada pelo regime, a linguagem acadêmica
oferece condições positivas insuperáveis. O mesmo país, empenhado
nas mais audaciosas pesquisas espaciais, levando a ciência a progressos incríveis, fechou as portas às pesquisas artísticas e literárias. E
a arte moderna não medrou em seus imensos domínios.
No Brasil, Lazar Segali deixou testemunhas eloqüentes de uma
arte de protesto, dentro do expressionismo, e Portinari — o grande
mestre do modernismo brasileiro, que nunca abandonou a figura —
renasceu, em nova fase, a pintura histórica. Todavia, as gerações que
mediaram entre 30 e 70 não legaram contribuição que, sob qualquer
aspecto, fixasse acontecimento desse meio de século. A arte moderna,
em sua generalidade, malgrado sintonizar-se com o espírito de pesquisa e renovação que marca a atualidade, não reflete os fatos da
época.
18. Destituída de conteúdo ideológico, seca de presença humana, sem mensagem aparente, sem comunicação objetiva, é uma Iinguagem para os deuses, no hermetismo a que se condena, pois
suas virtudes em regra são sentidas e conhecidas pelos iniciados e
pelos mestres, limitando profundamente os seus efeitos, numa época
em que a comunicação das massas constitui uma das preocupações da
cultura popular. O hermetismo, ou seja, essa limitação aos entendidos,
vem a ser o orgulho e o prejuízo da arre pela arte, isolada em seu
castelo da criação, para gozo do autor ou dos que comungam com sua
santa cartilha. No meu egoísmo de artista, creio que o artista se terá
realizado, desde que haja alcançado o seu propósito, independente de
satisfações alheias. Porém, no meu altruísmo de educador, dói-me que
os grandes frutos do talento sejam tão só o privilégio de alguns. A
distância que separa a arte moderna do público — apesar dos pesares
— tende a reduzir-se. Se decorre de velhos padrões estéticos, herdados e transmitidos pela escola, afastando de plano as inovações, pode-se, contudo, encaminhar as gerações novas para a compreensão
progressiva e simultânea de várias linguagens artísticas, até aquelas
que, por sua aparência fechada, nem parecem ser linguagem.. . Pode-se
educar um adolescente, ensinando-lhe, ao mesmo tempo a sua língua
e um outro idioma. Pode-se certamente dar-lhe simultânea educação
musical e matemática, o que importa em duas linguagens tão diversas.
Pode-se também — com proveito para o enriquecimento de sua personalidade — treiná-lo dentro de várias visões: a visão comum, que
corre paralela à visão acadêmica, pela coincidência representativa; a
visão cubista, no procasso analítico sintético; a visão das formas puras;
a visão surrealista e tantas outras visões. Isso equivale a um esforço
nobilissimo: abrir os olhos para a expressão do tempo, e fazer da expressão do tempo — não um tabu, intocável e indiscutível — porém
alguma coisa que desafia a nossa sensibilidade, pedindo integração na
cultura contemporânea. Excessos e facilidades se perderão, mas as
composições que denunciem a energia de nossa época, estas ficarão
como atestados de que, até no caótico aparente, haverá sempre
a transparência de uma solução, ditada pela sensibilidade profética e
poética de alguns grandes artistas.
III
19. A posição do artista no mundo contemporâneo e sua projeção no futuro oferecem também algumas considerações importantes.
Insiste-se na política desenvolvimentista como tônica dos governos para
felicidade do povo. Pelo menos, para a grandeza econômica do país.
À idéia de desenvolvimento ligam-se, de pronto, duas outras: o progresso da ciência e o apuro da tecnologia. Todos os apelos são feitos
à tecnologia e à ciência. Duas figuras emergem do meio por sua importância — a do cientista e a do técnico. Nessa mira pela prosperidade, há quem não veja lugar próprio para o artista, considerando-O
um sonhador, um fabricante de imagens e ilusões, uma vocação para
o devaneio, um ser sem papel definido na era da competição produtiva. Aí reside o grande equívoco, a desfazer-se com urgência, antes
que cresçam os adeptos de concepção tão estreita. A técnica não é
fruto exclusivo da ciência; não é apenas ciência aplicada, embora lhe
deva o principal de suas conquistas. O fazer não dispensa, ao lado
dos processos que lhe aumentam a capacidade de multiplicar e aperfeiçoar o produto, a contribuição da arte. É da arte — e não da
ciência — que se parte para a técnica. A arte está presente na indústria, desde o momento fundamental do projeto até o termo delicado
do acabamento. um projeto industrial, embora encare os aspectos econômico e técnico-específico, tem a sua coordenação natural no sentimento estético: este lhe dá harmonia, interesse, condições de receptividade. Em certos ramos, o gosto vale tudo. uma das maneiras de
captar o público reside justamente na multiplicidade de aparências, ou
maneiras de oferecer o objeto à sua escolha. Automóvel, indumentária, máquinas e aparelhos de uso caseiro ganham, sobremodo, pela
apresentação agradável. Arte e ciência se aplicam fundidas, na
tecnologia,
20. Não se trata apenas do jovem e vitorioso desenho indus~
trial — a arte do projetista. Trata-se de tôdas as artes, pois elas
influem poderosamente na formação do gosto de um povo. A moda
feminina, por exemplo, está estreitamente ligada às artes em geral, e
vários figurinistas se vão inspirar em telas e esculturas de perenidade
reconhecida. Soluções admiráveis de proporção e originalidade, tais peças
ficaram a provocar na sensibilidade das gerações posteriores um sentimento de equilíbrio e beleza, que se não apaga. A educação artística,
iniciada na escola comum, quer no domínio do plástico, quer no do musical e do teatro, responde pelo cultivo indispensável da sensibilidade.
Só com a sensibilidade cultivada, pode um povo responder às contingências de uma civilização de competição e procura.
2 1 . Aspecto bem mais relevante resultará da automação. Esse
assunto precisa de ser aprofundado convenientemente. Até previsões
hão de ser feitas com urgência e clarividência. A automação transfere a poucas mãos de engenheiros e técnicos aquilo que hoje ainda
vem sendo realizado por milhares ou centenas de operários. Ponderável parcela da população perderá sua condição proletária, pela
nova condição de terciários, — o grupo humano que crescerá de dia
para dia. Os primários extraem, os secundários manipulam, os terciários prestam serviços.
Serviços que vão de um delicado atendimento clínico (nível universitário) à entrega de uma mensagem
(para o que pouco se reclama de escolaridade). No bojo dos terciários, colocar-se-ão os que tomarão a si a tarefa de criar, promover e
difundir recreação. As horas de lazer se avolumam em ritmo progressivo. A recreação passará a constituir a oportunidade que a civilização futura proporcionará para dar sentido aos momentos de folga. A
indústria do lazer, até certo ponto confundida com a das comunicações, convocará — como já convoca os elementos de capacidade criativa, para seus programas e realizações. Os artistas tornarão à cena,
procurados, procuradíssimos, talvez como nunca o tenham sido. T e rão a grande tarefa de alimentar o espírito humano, servindo a numerosas comunidades, senão a tôda gente, dados os processos de difusão
que cobrem a superfície da Terra. Museus, bibliotecas, teatros, cinemas agasalharão multidões. Televisão, rádio, discos, fitas magnéticas
entrarão por todos os lares. Que é que uns e outros apresentam? O
talento artístico, nas mais variadas modalidades. E a arte passará a
ser uma das razões da existência humana, como o mais precioso e
disputado produto de consumo, restaurando, numa sociedade sacudida
por tantas inovações e crises, o equilíbrio de uma vida usufruida em
seus melhores pretextos, em suas origens eternas.
Ciencias Humanas
A PROPÒSITO DE CULTURA HISPÂNICA como
CULTURA TRANSNACIONAL PROJETADA
SOBRE O FUTURO
GILBERTO FREYRE
A
OS atuais estudos universitários, no Brasil, parece que está faltando sensibilidade, no setor humanístico, às bases pré-nacionais e
às projeções transnacionais do que é brasileiro na cultura nacional.
Entretanto, é desejável que os jovens brasileiros de hoje estudem a sua
condição cultural, considerando essas bases e essas projeções. Inclusive
as que se alonguem em implicações para um possível futuro comum ao
conjunto hispânico: principalmente o hispano-trópico.
A cultura hispânica — cultura no seu sentido sociológico, hispânica
no sentido de ibérica, convindo que, dos espanhóis alguns deixem de
pretender monopolizar o adjetivo «hispânico» e dos portugueses e brasileiros, outros tantos deixem de temer nele o espantalho de um suposto
imperialismo: o da «hispanidade», como significando exclusiva espanholidade — está à base das novas estruturas nacionais — a argentina
e a brasileira, a peruana e a colombiana, a mexicana e a cubana para
só falar nessas — como um elo transnacional, vivo e germinal na sua
capacidade de aproximar nações, quase-nações, populações neo-hispânicas, no essencial tanto das suas formas modernas de vivência e de
convivências como de num possível futuro cultural comum a essas
nações, quase-nações e populações.
Digo, além de nações, quase-nações e populações, porque estas
existem ao lado dos Estados-nações de cultura básica ou principalmente
hispânica. Quase-nações talvez a caminho de se tornarem Estadosnações. E há em espaços hoje politicamente não-hispânicos populações,
marcas arquitetônicas sobre a paisagem, sobrevivencias culturais e lingüísticas, que fazem dêles projeções de presença ibérica ou hispânica,
por mais que aos olhos do político e do jurista pouco tenham esses
valores de ibéricos ou de hispânicos. O sociólogo da cultura, porém,
vê nessas sucessões de domínio político, jurídico ou econômico, de
hispanos ou não-hispanos, episódios de superfície que raramente chegam
a descaracterizar, no essencial, as situações mais profundamente étnicoculturais ou psico-culturais: as que refletem decisivas influências éticas,
estéticas, lingüísticas, religiosas, sobre populações que podem passar
de um domínio político ou jurídico a outro sem perderem o essencial
da sua formação. O homem de Pòrto Rico se apresenta hoje anglosaxonizado antes na superfície que no essencial do seu modo de ser
homem: no essencial êle continua a ser ibérico ou hispânico. Não se
conhece nativo de Porto Rico que tenha se tornado poeta ou escritor
notável em língua inglesa; ou que haja conseguido superar, neste setor,
e utilizando-se da mesma língua inglesa, um Rubem Dario ou um
Amado Nervo.
O mesmo se poderá dizer do homem de Goa. Mesmo hindu ou
persa ou muçulmano e sem uma gota de sangue europeu e há anos
cidadão de república não-hispãnica, poderosa, o goês típico é um homem
ibérico ou hispânico no essencial do seu modo de ser homem e nas
formas decisivas da sua cultura. O que talvez seja também exato do
filipino verdadeiramente típico, que pode ser entusiasta da coca-cola
como refrigerante sem deixar de ser um maior entusiasta do vinho de
Málaga como estimulante.
A cultura hispânica é uma cultura que se vem exprimindo mais
em vinhos tradicionais e, ao mesmo tempo, sempre mais em seus sabores
e em suas virtudes que em refrigerantes de fabrico industrial ou de
fabrico caseiro, embora não lhe faltem tais bebidas. É também uma
cultura em que o popular, o rústico, o folclórico está sempre a juntar-se
ao erudito. E à qual não falta aquela sensibilidade ao mistério que
Cervantes fixou em termos caricaturescos: «Yo no creo en bruxas pero
que las hay las hay».
Do hispano tipicamente hispânico destaque-se que, nos contatos,
no século XVI, com não-europeus, foi antes cristocêntrico — teològicamente cristocêntrico e, diminuída a flama teológica, politicamente ou
sociologicamente cristocêntrico — do que etnocèntrico. Sua própria
maneira de ser cristão foi o que quase sempre exprimiu: uma relação
entre a força não só teológica como sociológica de religião e o poder,
<— ou o mito — biológico da etnia, com a predominância daquela força
sobre este poder ou sobre este mito. Embora o poder biológico da etnia
não deixasse de atuar a seu modo entre hispanos — daí exigências
quanto à pureza de sangue para a admissão de indivíduos a cargos ou
em ordens e confrarias — foi contido, em suas tendências a excessos,
pela força sociológica da religião. Nunca chegou a ser, de parte de
hispanos, em suas relações com não-europeus, o mesmo fator decisivo
que foi nas relações de europeus não-hispânicos com os mesmos nãoeuropeus .
Significativos são os cultos que se desenvolveram, na África, na
América e no Oriente marcados pela presença ibérica ou hispânica,
de Nossas Senhoras, de santos e até de Cristos de côr ou associados
principalmente às devoções de gentes de côr: de não-europeus. Basta
que nos recordemos do culto de Nossa Senhora de Guadalupe —< tão
forte no Mexico — e, no Brasil, do de Nossa Senhora do Rosàrio
e do de São Benedito. A pintura cusquenha marca a tendência hispânica r - e o faz com extraordinário vigor estético — para a identificação
dos mais altos símbolos e das figuras máximas da religião cristã com
tipos físicos não-europeus, desfazendo-se assim o mito de uma religião
etnocèntrica: de um cristianismo só europeu. Parado no tempo europeu.
Só identificado com a etnia caucasoide. Sem projeções aventurosas sobre
futuros não-europeus como tendem a ser, em grande parte, os hispânicos.
Repugna a alguns de nós, hispanos, um presentismo com pretensões
a modernismo que ignore as suas dimensões de tempo além da do imediatamente atual ou do apenas moderno. E nessa atitude creio exprimir-se antiga tendência hispânica para situar o Homem num tempo que
longe de ser apenas o presente é também o que foi e o que será —
inclusive o além-tempo — os três interpenetrando-se. Tríbio: constantemente tríbio. É assunto, este, a que dediquei já um ensaio escrito e
publicado na língua inglesa e, posteriormente, na alemã; e que constituiu também tema de conferência que proferi em 1961, na língua
inglesa, na Universidade de Princeton, sob a presidência do Mestre
Américo Castro, então professor naquela universidade; e do qual venho
me ocupando, desde então, em conferências em universidades alemãs
e suíças, nas quais um dos meus afãs tem sido procurar sugerir que,
quem diz «cultura hispânica» não se refere só aos valores de um passado
de glória mas às possibilidades de um futuro hispánicamente aventuroso.
Quem considera problemas de sociedade e de cultura através de
uma concepção tríbia de tempo dificilmente pode resvalar num convencional tradicionalismo: tem que ser também adjetivado como futurologista. Foi o que destaquei no primeiro curso universitario de Futurologia, do ponto de vista sociológico, professado no Brasil. Proferiu-o
há três anos na Universidade Federal de Brasília, este conferencista,
tendo repetido parte dele na Faculdade de Direito de Pelotas no Rio
Grande do Sul, outra, na de Filosofia, de Porto Alegre e ainda outra
parte no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Lisboa; e
uma tentativa de síntese dessas várias conferências na Universidade de
St. Gall, na Suíça; e sempre ouvido com extremo interesse por jovens
e estudantes. O que indica não serem todos os das novas gerações
inimigos das ciências e dos estudos e das preocupações sérias. Sou dos
que não desejam ver transformadas nem a França nem o Brasil em
repúblicas de estudantes. Mas sou também dos que não concebem
culturas nacionais desdenhosas da participação dos jovens ou de ligações
objetivas, constantes, entre os três tempos: passado, presente e futuro.
Daí entender que as universidades devem tornar-se cada dia mais lugares de encontros entre jovens e provectos em que os jovens sejam
ouvidos pelos provectos em vez de serem reduzidos a passivos ouvintes
dos mestres convencionalmente mestres.
Relembro atividades aparentemente desligadas do assunto que ora
procuro menos versar do que comentar, porque é dentro dessa mesma
concepção tríbia de tempo que me parece justo empreender-se uma tentativa mais ampla do que as até agora esquematizadas no sentido de
uma caracterização não só histórica como sociológica do complexo de
civilização ibérica ou hispânica. Pois sendo um complexo em desenvolvimento, o tempo em que se acha imerso não é o apenas histórico.
O que nele é história — ou tradição — é história — ou tradição ~
projetada num presente que a cada momento se projeta em futuro, tal
a vitalidade do todo: um todo desobediente de rígidos controles cronológicos. Reciprocamente pode-se dizer do passado ibérico ou hispânico
e do presente em que êle se projeta que são passado e presente que
quase nunca têm existido, ou existem, à revelia do futuro. O futuro
os tem condicionado sob místicas messiânicas, esperanças míticas, sonhos
de recuperação de paraísos perdidos ou de conquista de paraísos terrestres. Inclusive os messianismos anarquista e socialista-marxista.
São míticas, quer as teológicas, quer as materialistas, tão características
do ethos hispânico como a nostalgia do que foi, a saudade, o gosto pela
recordação de vida que, já vivida, tem sabor especial ao ser revivida.
«Recordar um amor é amar outra vez», diz muito hipânicamente um
poeta português em verso medíocre porém célebre; enquanto outro poeta
também português, o admirável Teixeira de Pascoaes, fêz do «saudosismo» uma como filosofia de vida nacional portuguesa que, embora
pouco profunda, como filosofia, atraiu a simpatia de Miguel de Unamuno pelo que nela é intrusão efusiva e sugestivamente lírica em meditação filosófica.
Ao mesmo tempo, o messianismo, em suas várias expressões inclusive a anarquista e a socialista-marxista: que o diga o sugestivo ensaio
do pós-marxista argentino Juan José Sobreli, Buenos Aires. Vida Cotidiana y Alienación — está muito presente tanto na literatura de expressão portuguesa como nas de expressões espanholas; e o messianismo
é a preocupação com o futuro; é aquela atitude de «esperança», tão caracteristicamente hispânica, estudada com espírito filosófico e senso sociológico pelo Professor Lain Entralgo, de Madrid, em obra que é uma
das mais penetrantes análises do ethos ibérico ou hispânico aparecidas
nos últimos anos. E não raras vêzes esse messianismo, esse incessante
e nem sempre paciente no esperar, em que a espera se alonga quase
sempre em esperança, tem sido,, da parte dos portugueses talvez mais do
que da dos espanhóis — porém também de espanhóis — uma espécie
de idilio, projetado sobre o futuro, com terras quentes e gentes de côr
nas quais o hispano mais aventuroso encontrasse ou recuperasse um
como paraíso perdido ou desejado. Terras de ainda mais sol, mais luz
e, sobretudo, mais espaço — a pampa, argentina, por exemplo, ou os
espaços anfíbios da Amazônia brasileira — que as hispânicas da Europa.
Nenhum esforço de interpretação da civilização hispano-americana
— parte considerável da pan-hispânica — pode ser realizado, independente da consideração do fato de que, à base da unidade desse sistema
moderno de civilização, está a sua americanidade senão como uma con-
dição física ou ecológica no sentido apenas biológico, considerável, como
uma condição psicocultural ou sociológica de desenvolvimento. Sob este
último aspecto, a americanidade vem atingindo as próprias culturas hispânicas situadas em espaços maternos — a própria Espanha e o próprio
Portugal — por força de seus contactos com as populações em grande
parte mestiças de origem ou cultura principalmente hispânica situadas
em espaços americanos. Inclusive as situadas em espaços tropicais da
América. Se é certo que até data relativamente recente, as élites mais
europeizadas dos países americanos do mundo hispânico procuraram
comportar-se estritamente como se não vivessem em áreas não-européias,
a verdade é que, nos últimos tempos, vêm cedendo à ecologia da sua
situação, dentro da qual sempre procurou telúricamente viver a gente
do povo através de estilos de habitação, de trajo, de alimentação que
deixaram de ser castiçamente hispânicos para se tornarem, como em
certas áreas, a própria condição étnica de grande parte dessa gente,
mestiços. Verdade é também que o gosto por certos valores não-europeus *— os gauchescos, por exemplo — desenvolvidos em países do
mundo hispânico mais pela gente do povo do que pelas élites, mais
pelas plebes que pelas burguesias, vem se comunicando, com crescente
intensidade, às élites burguesas e intelectuais desses países e das próprias
nações euro-hispânicas. Por este modo, e através de crescente valorização de usos não-europeus pelo próprio europeu — cujo status de burguês à moda do século XIX e do começo deste século, é um status em
dissolução, estando também a dissolver-se o status convencional de proletário — vem se alargando a base não-européia do sistema hispânico
ou ibérico de civilização, de base de diferenciação apenas ecologicamente
física ou bio-social, em base psicocultural. Mas, sem que esse alargamento e essa diferenciação impliquem em empobrecimento do complexo
pan-hispânico de sociedade e de cultura transnacionais. Ao contrário:
parecem implicar no seu avigoramento através da sua crescente definição
como um sistema mais que europeu e não apenas europeu.
É uma expansão, a euro-ibérica ou euro-hispânica, em espaços americanos, que se vem processando antes simbioticamente, e tornando-se
indo-hispânica ou indo-afro-hispânica, ou ítalo ou teuto-hispânica, e em
todos esses casos, parte de um complexo pan-hispânico de cultura,
através da interpenetração de hispanos e populações e culturas nãoeuropéias ou não-hispânicas, quando européias, de origens não-hispânicas, do que imperialmente, através do domínio econômico e político de
europeus sobre não-europeus, de hispanos sobre não-hispanicos, com as
culturas invasoras ou conservadoras ou imperiais — isto é, imperialmente
européias ou hispânicas — mantendo-se à parte das indígenas ou fechadas às adventicias, quer como colonizadores europeus, em face das
populações nativas, quer como antigos hispanos em face de neo-hispanos; e evitando-se casamentos mistos, de hispanos com não-hispanos.
Os que propõem, para o estudo desse tipo de relações humanas de
europeus com não-europeus, e de relações culturais de europeus com
ambientes não-europeus — ambientes nos quais o hispano vem se integrando de modo quase sempre simbiòtico, pela adoção, através de motivos com quem se tem misturado, de numerosos costumes, usos íntimos,
conhecimentos de plantas, animais e alimentos não-hispânicos: cacau,
quinino, erva-mate, ipeca, lhama, peru, tomate, tabaco — uma especial
sistemática de estudo histórico, antropológico e sociológico, fazem-no
considerando a expansão ibérica ou hispânica em áreas não-européias,
um tipo de expansão nitidamente diferenciado do inglês ou do francês,
do holandês ou do belga, com suas tendências a segregações quer de
ordem étnica, quer de ordem cultural.
À sombra dessa possível sistemática de estudo especial, poderíamos
desde já esboçar respostas não de todo retóricas ou sentimentais ou
simplesmente políticas, a perguntas como «Qual o papel — no sentido
sociológico de papel-cultural que vem desempenhando o Homem
hispano-americano? O u : qual o papel sociológico que vem desempenhando um sistema de civilização ou de cultura como o hispânico, cuja
unidade de desenvolvimento histórico, de desenvolvimento ecológico e
de projeções sobre outros espaços e outros tempos, vem se revelando
maior que a sua diversidade, quer histórica, quer ecológica.
Considerando-se do modo por que aqui se sugere, o papel desempenhado não só pela América Hispânica como pelo complexo pan-hispânico, ou total, de cultura ou de civilização — complexo em desenvolvimento extra-europeu em diferentes partes do mundo — dele parece poder afirmar-se que constitui já esse complexo um desmentido à
tese de que as civilizações mistas e as populações mestiças são incapazes de competir, em virtudes criadoras, com as civilizações chamadas
puras e com as raças também intituladas puras. É um desmentido que
vai da arte cusquenha à moderna arte mexicana; que vai das realizações
do «Bandeirante» brasileiro dos dias coloniais do Brasil — mestiço de
branco e de ameríndio •— ao moderno brasileiro não só do tipo «Paulista» como do tipo «nortista» ou «nordestino» e do tipo «gaúcho» —
notáveis os três pela energia pioneira e pelo ânimo empreendedor — e,
ainda, do tipo «Baiano» e do tipo «Mineiro», caracterizados pelo vigor
da ação estabilizadora de sociedade e de cultura que vêm desenvolvendo
dentro do conjunto brasileiro: parte do complexo pan-hispânico. Tipos
psicoculturais e bio-sociais que ou muito me engano ou têm seus equivalentes, como tipos aparentemente contraditórios mas, na verdade,
complementares, dentro dos outros complexos nacionais e quase-nacionais — o argentino, o mexicano, o chileno, o colombiano, o cubano,
o paraguaio, o peruano, o filipino, o goês, o luso-angolano, o luso-muçulmano, o luso-cabo-verdiano — que constituem o conjunto ibérico ou
hispânico de cultura ou de civilização.
Talvez a definição mais satisfatória do conjunto hispano-americano
seria a que o considerasse uma interpenetração tal dessas duas realidades que nem a ecológica seria maior do que a histórica nem a histórica maior do que a ecológica. O espaço americano e o tempo hispâ-
nico seriam aspectos de uma só vivência, de uma única experiência, do
mesmo processo de desenvolvimento de vários grupos humanos de
comum origem européias em terras americanas — terras diversas, umas
das outras, em vários aspectos do seu físico e habitadas, antes de marcadas pela presença hispânica, de modo diverso, por grupos indígenas
de civilizações desiguais. Desiguais porém tôdas americanas no essencial de suas condições de espaço; e constituindo uma só área americana
dividida em várias sub-áreas conforme maiores ou menores desenvolvimentos culturais e maiores ou menores interpenetrações entre suas popopulações e culturas. Sobre esse lastro fundou-se a também vária
cultura hispano-americana.
Assim considerada, a América Hispânica se apresentaria como
um todo que tanto na sua base física como na formação básica das sociedades humanas que sociologicamente a constituem formaria um sistema tanto ecológico como cultural, cujas características gerais dificilmente seriam anuladas pelas diferenças nacionais ou regionais que dentro dela se vêm desenvolvendo há quatro séculos. Tais diferenças são
evidentes. Elas tornam a Argentina, por exemplo, uma nação estensivamente diferente do México; o Uruguai, quase um contraste com o
Equador. Mas sem que deixe de haver entre essas expressões diversas
da mesma civilização — a hispânica — em espaço americano, alguma
coisa de comum que vem daquelas duas condições básicas: a de serem
expressões diversas de uma mesma civilização — a hispânica — que
se desenvolve num mesmo espaço: o americano.
É certo que no México essa civilização se vem desenvolvendo em
sub-área marcada pela presença, antes da ocupação hispânica, de uma
elevada cultura indígena. Cultura anterior à presença hispânica mas
com a qual a hispânica tem entrado — após agudos conflitos nos primeiros tempos — em íntimas e fecundas relações das quais já resultou
mais de uma feliz combinação de valores artísticos — o caso também
do Peru. Certo que na Argentina, do mesmo modo que em certas
partes do Brasil, ao elemento hispânico se vêm juntando, desde o começo do século XIX, de modo considerável, outros elementos europeus
de colonização, como o germânico e, principalmente, o italiano. Certo
que em várias sub-áreas hispano-americanas a presença do negro africano vem reforçando nelas, desde o século XVI, seus característicos
de sub-áreas de civilizações eurotropicais, tornando mais difícil, nessas
sub-áreas, a afirmação de outra presença européia ou caucásica, além da
hispânica.
Mas com tôda essa diversidade, existe uma América que é um
conjunto de expressões de uma mesma civilização hispânica a integrarse num mesmo espaço americano: este — o espaço americano marcado
pela presença hispânica — um espaço em parte frio, em parte temperado
e, em grande parte, tropical. Pelo que é uma civilização^ a hispânica,
na América, que, por alguns dos seus traços mais originais, vem significando principalmente — embora não exclusivamente — um triunfo
ou uma vitória de civilização européia em espaços tropicais. A própria
Argentina tem o seu trópico; e teve o seu negro; teve e tem o seu
ameríndio; tem o seu gaúcho. Mesmo admitindo-se a insignificancia
das circunstâncias ecologicamente tropicais, ou das repercussões dessas
circunstâncias em espaços fisicamente não-tropicais, que vem condicionando o desenvolvimento — sob tantos aspectos, notável — de tropicalismos na Argentina, no Chile e no Uruguai, essas repercussões têm
ocorrido e ocorrem. As demais nações hispânicas da América, estas
vêm tendo desenvolvimentos europeus sob condições em grande parte
tropicais de vida.
com a Argentina, o Chile, o Uruguai não se tendo guardado de
todo — felizmente para elas — das influências americano-tropicais ou
afro-tropicais em suas etnias e em suas culturas »— pois o negro não
esteve de todo ausente nem da formação argentina nem da uruguaia —
compreende-se que se atribua extensão considerável à presença do
trópico e do próprio negro sobre o todo hispano-americano. Presença
que se estendeu a outras partes do mundo marcadas, desde o século
X V I , pela presença hispânica: uma presença quase sempre receptiva
e até simpática a influências tropicais, africanas e semitas. Receptiva,
porém receptiva de maneira ativa: sempre conseguindo hispanizar, através principalmente da cristianização, senão sempre teológica, sociológica,
tais influências, de maneira a com elas formar novos tipos ou novas
expressões físicas de homem pela miscigenação — e de sociedade de
cultura i— pela interpenetração de etnias, de heranças sociais e de
substâncias culturais adaptadas a formas predominantemente, porém
não exclusivamente, hispânicas, de cultura. Inclusive de religião,; de
arte, dei política. Inclusive, também, de atitude para com o tempo, para
com o ócio, para com o lazer.
Em recente artigo publicado numa revista de Madrid, o Príncipe
de Starhemberg — como é estranho citar-se num trabalho sociológico
com pretensões a atual, um autor príncipe: é como se se convocasse
um personagem de Proust para um atualíssimo anti-romance — demonstra seu íntimo conhecimento do ethos hispano-americano — conhecimento adquirido nos seus dias de jovem e de estudante universitário
na Argentina e no Chile — ao traçar um perfil do homem desta América que, aliás coincide com o que eu próprio tenho tentado esboçar,
em trabalhos pouco divulgados em línguas espanholas. É assim que
o sociólogo austríaco destaca o que considera «a imunidade» do hispano-americano àquelas teorias e àqueles estilos de vida «tan racionalis,
frios y duros como los que propugna el marxismo-leninista», para, em
seguida, salientar na mesma gente hispano-americana transnacionalmente
considerada — no homem ibero-americano ou hispano-americano —*
«un profundo sentido de Io religioso y de liberdad que sabe apreciar
el ocio para meditation y tertulia», sabendo, além disso, e «a pesar de
pobreza y dificuldades . .. conservar una considerable dosis de humor».
Do sentido do religiose do gosto da liberdade e da capacidade de
apreciação do ócio para meditação e para tertúlia, talvez se possa dizer
que é característico distribuído quase por igual entre hispano-americanos, a exata verificação dessa afirmativa dependendo de pesquisa psico-social que venha a realizar-se um dia. Do humor talvez seja possível
dizer-se que, como humor com alguma coisa de autocrático, talvez seja
mais vivo entre brasileiros que entre alguns dos seus vizinhos, do tipo
mais bolivariano, da América Espanhola.
Note-se, entretanto, da forma mais pungente de humor que pode
tornar-se de tal modo excessiva em sua ação autocrítica que se constitua em obstáculos ao élan criador — pessoal ou nacional. Foi do que
padeceu, em Portugal, a geração dominada pelo gênio de Eça de Queiroz, de tão forte repercussão no Brasil. O desejável é o humor autocrítico que, sendo atuante, não chegue a esse extremo. Dos hispanoamericanos é justo dizer-se que precisamos todos, quer na América portuguesa, quer na espanhola, de todo o élan criador de que sejamos capazes, tratando-se de nos afirmarmos como portadores ativos e incessantemente renovadores de uma civilização já diferente tanto das européias como da anglo-americana. Precisamos de ter aquela coragem
dos nossos próprios valores e dos nossos próprios estilos de vida, aquele
desdém de modernices, embora não de modernidade, aquela fidelidade
a tradições válidas, aquelas visões de futuros que correspondem a predisposições, a esperanças, a mitos desenvolvidos da nossa própria vivência, aquela lealdade a constantes que, consideradas, por algum
tempo, arcaísmos por povos tecnològicamente mais avançados, estejam
para se fazerem sentir a esses próprios povos como pós-modernismos
necessitados por eles próprios que é uma coragem, uma fidelidade, uma
lealdade a que convém não se oporem excessos de humor autocrítico.
Venho encontrando a melhor das receptividades, da parte de não
poucos provectos e de numerosos jovens, em universidades da Europa
e dos Estados Unidos, para a tese de que aparente arcaismo hispânico
— a idealização do ócio, da meditação, da tertúlia — está para como
que se impor às sociedades mais avançadas de hoje, com os aumentos
de automação, de tempo livre e de média de vida, como pós-modernismo
a projetar-se já sobre a atualidade. Os ativistas ¡moderados que até
há pouco se compraziam em ridicularizar nas gentes hispânicas o que
consideravam sua indolência, seus vagares volutuosamente preguiçosos,
sua tendência para deixar para amanhã parte dos afazeres de hoje, sua
siesta, seus muitos dias santos, devotos ou festivos, estão agora na defensiva. Ëles é que se estão tornando um tanto ridículos por força da
automação: uma automação que torna insuportável seu excessivo ativismo. Eles é que precisam de reeducar-se e de educar filhos e netos
para um futuro humano no qual os hispanos tendem a tornar-se mestres de ócio, de lazer, de meditação, de anglo-saxões, de germanos, de
suíços, de escandinavos, que atualmente chegam ao extremo de recorrer
ao suicídio como solução à sua acedia de homens incapazes de ócio:
homens que não sabem o que fazer com o tempo livre, com o tempo
desocupação, com o tempo inútil. Não sabem viver o tempo assim inutil,
saboreando-o ou degustando-o; não sabem libertar-se da preocupação
de ser qualquer tempo, dinheiro; e o dinheiro, um quase deus, a impor-se
aos seus adoradores através do tique-taque dos relógios que marcam
minutos e segundos e não apenas horas.
Se para o homem o tempo é aquela «continuidade sucessiva de
estar sendo» da concepção orteguiana, a que se refere, em lúcido ensaio
e desenvolvendo idéia de Ortega y Gasset, o Professor da Universidade
Católica de Valparaíso Juan Antonio Widow Antonicich, compreende-se que essa continuidade não seja só de trabalho porém de lazer;
não seja só preocupação com o presente porém saudade do que foi;
nem apenas saudade do que foi porém esperança do que venha a ser.
É através dessas alternativas de estados de espírito que o homem é
contínuo em relação com o tempo; e, no caso do hispano, é considerando
essa continuidade que se compreende que o homem histórico seja o
tempo, isto é, o sujeito com relação ao seu viver contínuo mas diverso
no tempo, a ponto de os filólogos destacarem das línguas hispânicas que
são as únicas, dentre as européias^ em que é possível dizer-se «amanheci alegre» ou anoiteci triste» como se houvesse entre tempo e
homem uma identificação além de psicológica, sociológica, existencial.
Nenhuma tentativa de caracterização do que seja civilização ou
cultura ibérica ou hispânica pode ser concebida sem que, de início, se
considere essa especialíssima relação do homem hispânico com o tempo.
É relação significativa para a compreensão do que, na mesma civilização, é importância ou valor da pessoa; e significativa, também, para
a compreensão o que, na civilização hispânica, é personalização da
própria história, tanto individual como nacional, de cada hispano senão
singular, típico e do inteiro conjunto hispânico, como uma série de biografias e autobiografias que desaguassem no que em modernissima sociologia da biografia se chama biografia ou autobiografia «coletiva».
É a luz dessa interpretação do ethos ibérico ou hispânico — e quem pode
separar o ethos de um grupo humano de sua cultura? — que melhor
se compreende quanto foi especificamente ibérico ou hispânico Miguel
de Unamuno ao dizer, certa vez, angustiado: «a Espanha me dói».
Que Espanha doía a esse hispano ou nesse hispano? A Espanha configurada socialmente só em espaço? Decerto que não. Também a Espanha configurada socialmente em tempo. Mais a Espanha do seu
tempo singular que a Espanha tríbia no tempo. Mais o tempo, na vida
hispânica, vivido pessoalmente, historicamente, biogràficamente, por êle,
Miguel de Unamuno, que os tempos anteriores ou futuros. Espaços
e tempos diversos, porém, é que formam o conjunto hispânico de cultura ou de civilização; e a esses espaços e tempos é que precisa de se
sentir preso, como participante de uma cultura tríbia num tempo sempre
vibrantemente pessoal-social e sempre passado, sempre presente, sempre
futuro, o hispano-homem ou o hispano-pessoa, com um sentido geral
de espaço-tempo unificador de diversidades, que só excepcionalmente
terá faltado a Unamuno.
A Espanha mais do seu tempo que do tempo tríbio doía a Unamuno
como lhe poderia doer o fígado ou o coração ou o pulmão ou a espinha:
como se fosse carne ou nervo. O hispano mais hispânico sente sua cultura como se essa cultura fosse parte da sua carne de homem; parte
irredutível do seu corpo de pessoa ou de indivíduo, como é o seu sistema nervoso provavelmente insubstituível à maneira das substituições
atuais de coração ou de pulmões, fonte de sua vida; constância da sua
experiência. É como se essa cultura cada dia amanhecesse nele e com
êle, e como que só para êle, pessoalmente, e não apenas socialmente
para êle e para os demais; amortecesse nele e com êle e para êle como
aliás o próprio tempo ou a própria morte, que, como expressão e, ao
mesmo tempo, condicionamento de cultura, é um tempo com que o homem
hispânico se identifica; que lhe dói ou que o alegra. Daí »— repita-se —
só nas línguas hispânicas entre tôdas da Europa — dizem-nos filólogos
autorizados — o homem poder dizer «amanheci alegre» ou «amanheci»
triste, satisfeito ou inquieto, zangado ou traqüilo ou «anoiteci» contente
ou descontente, esperançoso ou desalentado. O homem é como que um
tanto senhor do tempo que não amanhece nem anoitece de todo independente desse mesmo homem quando verdadeiramente hispânico. Ou
hispanizado como se tornou El Greco.
A civilização hispânica é, assim, uma civilização que vem se caracterizando pela variedade de projeções pessoais e não apenas nacionais
sobre o que nela é complexo. Mais: pela variedade de expressões lingüísticas — o castelhano, o português, o catalão, o galego — de que
se vêm servindo e se servem agora, não só grupos nacionais e quasenacionais diversos como personalidades também diferentes, em proveito
do complexo ou do todo hispânico. um crítico francês, Maurice Légendre, já observou da língua portuguesa ser língua ideal para confidencias, para intimidades, para ternuras, enquanto o castelhano seria a
língua hispânica por excelência vigorosa: pública através desse seu
vigor. É claro que a simplificação vai ao extremo: a língua portuguesa
é também a língua dos vigorosos «ão» que a castelhana desconhece e
a castelhana tem os seus suaves diminutivos em «ito» quase tão doces
quanto os diminutivos portugueses em «inho». De qualquer modo,
porém, é dado ao hispano 1er obras primas hispânicas no original em
quatro línguas hispânicas de diferentes ressonâncias e ênfases: saborear em português o lirismo de Camões e, em castelhano, os vigores
dramáticos de Calderón; em galego, outros tantos lirismos, e, em catalão,
outros tantos vigores dramáticos de expressão hispânica. Vigores e
doçuras que se interpenetram na poesia e na prosa dos grandes autores
pan-hispanos, havendo portuguesismos em Cervantes e castelhanismos
em Euclydes da Cunha. São interpenetrações que testemunham na literatura o que ocorre noutros setores de cultura ibérica ou hispânica:
que é uma cultura que se desenvolve com diferenças, contrastes, contra-
dições que, por vêzes, se interpenetram, se harmonizam, se completam
em culminâncias, voltando, porém, quase sempre, no cotidiano, os contrastes continuam a ser contrastes, as diferenças a ser diferenças, as
contradições a ser contradições. Nem poderia ser outro o processo de
o gênio hispânico de civilização ser transnacional sem repudiar o nacional; supra-pessoal, simbólico, universal nas suas culminâncias, sem
rejeitar o pessoal, o individual, o particular, nas suas raízes; busca do
essencial, sendo constantemente existencial; projeção aventurosa sobre
o desconhecido, em espaços e tempos, sem repúdio a experiências já
vividas também em espaços e tempos vários.
CONSTITUIÇÃO: MITO E REALIDADE
AFONSO ARINOS DE M E L O FRANCO
INTRODUÇÃO
A
S idéias de Constituição e de Direito Constitucional apareceram
no quadro geral da Jurisprudência muito antes que ocorresse o seu
nítido delineamento científico e que fosse assegurada a sua autonomia
conceituai e metodológica.
A idéia de Constituição corresponde, no grupo social, à necessidade da organização do poder, em termos de generalidade e estabilidade.
O mais absoluto despotismo não pode prescindir destas condições, pois
o capricho e a incoerência permanentes do poder seriam incompatíveis
com a existência de qualquer sociedade. A sociedade política (quer
dizer estatizada) pressupõe o poder, mas este só se exerce através
do governo, que por sua vez só pode existir num quadro mínimo de
generalidade de decisões e de estabilidade de processos de ação, cuja
normatividade é a substância mesma das Constituições.
Mas estes pressupostos da sociedade política não eram reconhecidos juridicamente. Isto é, quando, na antigüidade, um escritor como
Aristóteles ou Cícero abordavam os problemas referentes aos fundamentos do poder e ao exercício do governo, eles o faziam ou através do
método comparativo histórico, ou em termos de filosofia e doutrina políticas. A sistemática e a metodologia peculiares ao direito não são
encontradas nessas obras. Igualmente, nos primeiros séculos de existência do Estado moderno, não existia uma teoria jurídica da Constituição. Havia, sem dúvida, uma noção política da existência de leis
fundamentais do país, leis não escritas que, no entanto, condicionavam
a ordem estatal e a conduta individual. Mas tal noção, freqüentemente
invocada como escudo conservador da Monarquia absoluta, não implicava em conceituação, nem em métodos de pesquisa propriamente
jurídicos.
i
Pode-se afirmar que tais representações materiais da Constituição
não se inseriam no quadro do pensamento jurídico, que se apresentava
tão desenvolvido em outros setores.
A apreciação jurídica da Constituição inaugurou-se com a sua
representação formal, ou, em palavras mais explícitas, a inserção do
fenômeno constitucional no terreno da técnica jurídica só se verificou
depois que a idéia material de Constituição se formalizou no texto das
leis básicas, chamadas Constituições.
Obviamente, a ciência do Direito Constitucional só se organizou
depois desse processo de formalização.
Esta introdução tende a demonstrar que não podemos exercer
realmente a pesquisa comparativa, no Direito Constitucional, em relação
a fases históricas anteriores à conceituação jurídica da Constituição.
É portanto, a partir da época das Constituições escritas, que poderemos
exercitar o método comparativo em termos jurídicos. Isto não significa
que, num quadro de comparativismo histórico, sociológico ou político,
não possamos proceder de maneira diferente. Mas tais estudos estariam
fora da nossa área atual de preocupações.
FORMALISMO CONSTITUCIONAL E REALIDADE SOCIAL
Delimitado o conceito jurídico de Constituição, cumpre agora
acentuar um aspecto que lhe é inerente, qualquer que seja o tipo de
lei constitucional que se tenha em vista. Este aspecto pode ser definido
como sendo a contradição permanente que opõe a transitoriedade da
Constituição, tomada como produto necessário do tempo em que foi
feita, e a perenidade da Constituição, tomada como instrumento organizador de uma sociedade política em inevitável e contínua mutaçáo.
A letra de uma Constituição exprime os interesses e as idéias da época
em que ela foi produzida. Isto é inegável e, mesmo, óbvio. Mas, pela
sua própria razão de ser, uma Constituição é destinada a firmar a
estrutura do Estado, sem ter em vista o tempo, porque os seus princípios
destinam-se precisamente a superintender as modificações que vai
sofrendo a legislação subordinada, esta sim, mais condicionada às transformações trazidas pelo tempo. Por esta razão precisamente é que,
desde logo, se estabeleceu como princípio constitucional geral, o de
que a reforma das Constituições impõe dificuldades maiores que a das
leis ordinárias. É o princípio chamado da rigidez constitucional. A
superioridade da Constituição sobre a lei apresentou-se como ponto
central do Direito Constitucional muito precocemente, e de forma
dramática, na longa luta que se travou em tórno do controle jurisdicional das leis ordinárias, nos Estados Unidos. É sabido que esta
luta de idéias começou bem antes da independência daquele país,
limitada às Constituições das colônias, prosseguiu, sem dúvida, na
Constituinte de Filadelfia, apesar de não aparecer claramente nos
debates, resolveu-se em 1803, na decisão de Marshall no caso de
Marbury contra Madison, mas continuou nas controvérsias sobre o
papel da Suprema Córte, que, de certa maneira, até hoje subsistem.
O Direito Constitucional dos Estados Unidos exerceu, neste particular, muito maior influencia sobre o nosso do que o direito francês,
o inglés, ou de qualquer outra procedencia.
A colocação, como princípio aplicável, da superioridade da Constituição sobre a lei, princípio cuja exeqüibilidade imediata só existe
quando existe contrôle jurisdicional, foi que abriu caminho para resolver
a contradição entre a Constituição, produto do tempo, e a Constituição,
lei permanente.
A maneira de se resolver esta contradição, com fundamento naquele
princípio, foi muito simples. Deu-se pelo uso da interpretação constitucional. Pela interpretação, atinge-se com felicidade ao duplo objetivo.
De um lado, mantém-se indefinidamente a forma da Constituição,
atendendo-se à sua perenidade e, portanto, à sua superioridade sobre
a lei. De outro lado adapta-se continuamente esta forma às novas
exigências da sociedade em mutação, e, assim, se atende à necessária
transitoriedade constitucional.
Várias conclusões importantes podem ser tiradas destas observações. A primeira é que não existem constituições rígidas, a não ser
formalmente. Tôdas as Constituições são flexíveis, no sentido material,
e o processo da sua mudança está na interpretação. Assim, a superioridade da Constituição sobre a lei significa, de fato, a superioridade
da interpretação da Constituição sobre a interpretação da lei. É um
processo de raciocínio, em que o pensamento sociológico condiciona
o pensamento jurídico.
A segunda observação é a de que, em razão mesmo do que acabamos de dizer, a ciência ou a arte da interpretação (como queiram) é
muito mais freqüente e muito mais apurada no Direito Constitucional,
do que em qualquer outro ramo da ciência jurídica.
A interpretação constitucional pela doutrina, pela legislação e pela
jurisprudência, nos países providos de sólidas instituições políticas, é
o grande fator de estabilidade e de coexistência pacífica entre os grupos
sociais. É o fator capaz de equilibrar o formalismo constitucional com
a realidade social.
RUPTURA DO EQUILÍBRIO
O século XX presenciou, em grande número de países importantes,
à ruptura do equilíbrio entre o formalismo constitucional e a realidade
social. Este fato histórico, de tremendas conseqüências, pode ser especialmente observado no período situado entre as duas guerras mundiais.
Nesse período verificou-se uma extraordinária contradição. No
campo do Direito Constitucional, as noções fundamentais e a técnica
normativa adquiriram enorme aprimoramento, a ponto de falar-se em
Direito Constitucional Geral, ou em «racionalização» do Direito Constitucional .
Para os juristas, pelo menos aquêles dos países considerados mais
civilizados, os princípios do Direito Constitucional interno se tinham
espalhado a ponto de constituírem um sistema de idéias, não pròpriamente internacionais, porém transnacionais. E estes princípios gerais
fundavam-se mais na razão jurídica do que na experiência históricosociológica.
Se esta aceitação racional se processava no mundo jurídico, muito
outra era a situação no mundo histórico-político, dentro do qual a
violência pairava sobre a dúvida, a contradição e a irracionalidade.
A Austria de Kelsen, a Alemanha da Constituição de Weimar, eram
as terras do nascimento e da ascenção de Hiiler. A Itália de Labiola
e de Benedeto Croce foi o centro de onde Mussolini começou a pregar
a negação de tôdas as idéias jurídicas do constitucionalismo geral e
racional. Na França, os princípios da soberania do Estado, da personalidade jurídica ao Estado, da vontade geral, da representação, típicos
da tradição francesa, desde 1789, passaram a ser combatidos por escolas
respeitáveis do pensamento jurídico. A branca, antes de ser derrotada
na segunda guerra, já havia sido vencida pelo abandono do seu próprio
pensamento. O grande campo de ba^aiha em que a França perdeu
a guerra foi a sua Universidade. De Gaulle foi muito mais o restaurador de uma idéia de Estado, do que o vencedor em batalhas militares.
Nos países em que estes fenômenos foram observados, entraram
em crise o conceito de Constituição e o Direito Constitucional.
A impossibilidade de se atingir, por meio da interpretação, ao
desenvolvimento dos quadros constitucionais existentes, levou os juristas,
juntamente com o movimento inútil de racionalização, a um, esforço
também inútil de negação.
Houve juristas que chegaram a afirmar que a idéia Constituição
era uma sobrevivência mais ou menos superada, como se fosse possível
pensar em poder político, no plano jurídico, sem pensar também em
Constituição. Se os juristas pensavam assim, não era de estranhar que
os homens de governo agissem em conseqüência.
Muitas razões concorreram para a segunda guerra mundial. É
inegável, porém, que uma das mais importantes foi a ruptura do equilíbrio entre o formalismo constitucional e a realidade social. Os países
que se perderam nesta contradição perderam, também, a guerra. Os
dois países, que já vinham anteriormente de condições de equilíbrio
entre uma coisa e outra, foram os principais ganhadores da guerra:
Inglaterra e Estados Unidos.
O MUNDO JURÍDICO DO APÓS-GUERRA
No mundo do após guerra observa-se uma atmosfera pouco tranquilizadora, no plano do Direito Constitucional. É a tendência de
separar a letra das Constituições da sua Operatividade histórica, ou
seja, a tendência de se colocar a Constituição como uma espécie de
mito, útil como declaração de intenções, ou como instrumento de
propaganda, mas sem nehuma vigência efetiva, como norma superior
de organização do Estado.
A Constituição-propaganda é característica do mundo jurídico
Soviético e das Repúblicas Populares, que giram na órbita da União
Soviética. Pertence aos processos do mundo comunista este uso, de
explicação bastante misteriosa para o jurista de formação racional, uso
segundo o qual, a existência de um texto escrito de Direito Público
praticamente não tem relação com a sua aplicação efetiva.
No Direito Constitucional soviético, aceita-se por escrito a liberdade de secessão das Repúblicas soviéticas, segundo o artigo 17 da
Constituição de 1936 que diz: «Cada República federada conserva o
direito de livre separação da U . R . S . S . » É para nós, repetimos, bastante misteriosa a causa da inserção de uma norma como esta, no texto
constitucional.
Nos Estados Unidos, o direito de secessão não existe na Constituição, mas foi construído teoricamente pelos federalistas radicais e
justificou a gravíssima tentativa da Guerra de Secessão. Na União
Soviética, ao revés, êle é juridicamente reconhecido, não se compreende
bem porque, mas nunca será objeto de qualquer iniciativa, pelo menos
em futuro previsível.
Só a explicação da propaganda pode justificar normas como a
citada, que poderia ser multiplicada com outros exemplos, como o da
reforma de 1944, que outorgou às Repúblicas federadas o livre direito
de estabelecei relações internacionais (art. 18-A) . Aqui, a propaganda
tem um fim definido, pois aumenta o número de votos da União
Soviética dentro das organizações internacionais. São estes aspectos
da Constituição-propaganda.
Passemos ao mito das Constituições tomadas como declarações
de intenções. Antigamente as declarações de intenções, no Direito
Constitucional, apareciam no preâmbulo das Constituições escritas. A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, foi o primeiro documento desse tipo e os seus princípios imortais
foram inúmeras vêzes traduzidos em forma de preâmbulo, por Constituições posteriores. Grande foi a controvérsia, entre os autores de
Direito Constitucional, sobre se os preâmbulos das Constituições eram
juridicamente aplicáveis, ou se serviam apenas como inspirações para
legisladores e juízes. Esta última opinião era a mais corrente. Os
preâmbulos deviam ser considerados como declarações de intenções,
ou, em outras palavras, como princípios compendiados de Direito
Natural.
Pois bem, hoje há exemplos de declarações de intenções que
aparecem não mais nos preâmbulos, mas nos próprios textos das Constituições. Muito importante, neste particular, é a Constituição da índia,
que introduz no seu texto prescrições cuja aplicação não é exigível
e que valem como fontes de inspiração ética para os governos. O
professor indiano Das Basu reconhece expressamente isto, e chama
tais prescrições de «judicialmente não exigíveis». Trata-se, assim, da
inserção, no texto, de princípios antes confinados aos preâmbulos. É um
novo aspecto do mito constitucional.
Versão muito interessante da mitologia constitucional é a que diz
respeito à manutenção de uma Constituição escrita e a aplicação, em
vez delas, de outras normas constitucionais, também escritas.
Que me lembre, o primeiro regime político a usar tal sistema
foi o fascismo italiano. Oficialmente, a Constituição do Reino da Itália
(que era, em substância, a mesma do Reino de Savoia de antes da
união italiana) permaneceu em vigor depois da instalação do regime
fascista, e perdurou quase até o seu desaparecimento. Mas o que
prevalecia, na realidade, eram as normas de organização do partido e
do Estado fascistas, também escritas e operativas. Não devemos
esquecer que foi em aplicação dessas normas que Mussolini foi legalmente deposto, pelo Grande Conselho Fascista, na madrugada de 25
de julho de 1945. O próprio Mussolini, ao submeter-se ao resultado
da votação, disse aos membros da maioria que o depunha: «provocastes
a crise do regime».
Esta tradição de possuir um texto constitucional em vigor, mas
não aplicado, enquanto são aplicados outros textos que anulam o primeiro, é adotada no Brasil desde o regime de 1937.
A Constituição de 1937 era declarada em vigor pelo Estado Novo.
mas dela só se aplicava o artigo 180, que permitia ao Presidente da
República a expedição de decretos-leis, os quais eram. a verdadeira
ordenação jurídica. Este sistema prevaleceu até 29 de outubro de 1945.
O Presidente Vargas aprovou, mesmo, várias emendas constitucionais
a uma constituição que não aplicava, servindo-se dos poderes que esta
Constituição lhe dava, para a legislação ordinária, mas nunca para a
legislação constitucional.
Este tipo de mito constitucional é o que prevalece, atualmente, no
Brasil. Formalmente, o que está em vigor é a Constituição votada
em 1967, com a Emenda nº 1, de 1969. Mas, efetivamente, todo o
sistema constitucional depende do Ato Institucional Nº 5. Há, mesmo,
juristas, que sustentam que não há incompatibilidade entre o Ato e a
Constituição, e que a inserção de um na outra pode ser permanente.
Raciocínio para nós, também, bastante misterioso.
Vem, como vimos, da experiência italiana este mito constitucional,
caracterizado pela permanência de um texto inoperante e pela aplicação
de outros textos supervenientes.
AS CAUSAS DOS MITOS CONSTITUCIONAIS
A separação entre o positivismo constitucional e a realidade social
tem sido estudada, recentemente, em vários países. É, mesmo, um
dos temas preferidos do Direito Constitucional comparado. Notadamente, a propósito da Constituição de Bonn, da República Federal da
Alemanha, o assunto tem sido observado de perto. Ainda éste ano o
professor de Ciência Politica de uma das mais acreditadas universidades da Alemanha Ocidental, escreveu que a Constituição de Bonn
«funciona essencialmente de acordo com os velhos conceitos clássicos
do Direito Constitucional», e que isto marca a sua «inutilidade característica em face dos problemas constitucionais de todo dia».
Tomada na sua significação mais profunda, esta separação entre
o formal e o real, é própria do direito que, como se sabe, é uma ciência
normativa, uma ciência em que o dever ser (sollen) supera o ser
(sein) . E é evidente que, no campo da conduta, nunca o que é atinge
completamente ao que deve ser. Mas, no Direito Constitucional contemporâneo, este processo de distanciamento é muito maior do que em
qualquer outro setor do direito transformando-se em caso de patologia
jurídica. Pessoalmente, venho me preocupando com este assunto há
bastante tempo. Em 1966-1967, ao terminar o meu mandato no Senado
Federal, proferi ali uma série de discursos, nos quais procurei analisar
a matéria à luz da reforma constitucional, que então se processava.
Tentei, naquela oportunidade, traçar a diferença que existe entre
as Constituições que chamei sumas, e as Constituições que denominei
instrumentos.
As primeiras são aquelas que mantêm a perenidade formal, mediante a utilização de processos de renovação material. São as Constituições estáveis. As segundas trazem em si a marca da transitoriedade.
São os instrumentos de uma transformação que se processa, seja ela
renovadora ou reacionária. com efeito, as Constituições-instrumento
tanto podem ser revolucionárias, como reacionárias.
São estas, as Constituições-instrumento, as que se transformam
habitualmente em mitos, e mais se afastam da realidade, por qualquer
dos processos que acima ficaram indicados.
Posteriormente, em aula dada no ano de 1970, no Seminário de
Tropicologia do Recife, sobre Ciência Política e Trópico, avancei um
pouco o campo das primeiras reflexões, mostrando que os países
tropicais, que se confundem com a área subdesenvolvida do planeta,
não estabilizam as instituições político-jurídicas porque não se descolonizam intelectualmente, não confiam na própria iniciativa, em matéria
de construção constitucional.
É partindo deste ponto que tentarei avançar ainda um pouco mais,
no remate deste desvalioso trabalho.
O Direito Constitucional comparado vai nos ensinar algo importante sobre a nossa mitologia constitucional, ou melhor, sobre a
separação cada vez maior, que se verifica nos países como o Brasil,
entre a Constituição e as instituições. Êle pode explicar porque, na
América, a estabilidade constitucional é peculiar aos Estados Unidos,
e praticamente não existe nos países latinos.
A razão disto é que a Constituição norte-americana foi uma criação
política original, mas esta originalidade se enraizava sòlidamente na
autenticidade de uma herança política, que era a herança inglesa. A
Constituição americana que é, no seu conjunto, uma das maiores criações
do engenho humano através da História, foi um esforço de adaptação
do direito costumeiro de um Estado unitário e monárquico, a um Estado
federal e republicano. Para o observador atento, as similitudes entre
a lei escrita americana e a lei não escrita inglesa, são, nos pontos
fundamentais, talvez maiores que as diferenças entre as mesmas.
Quando se tornaram independentes, os países latino-americanos não
tinham tradição constitucional própria. Pode-se dizer, sem exagero,
que não há uma só idéia básica por nós adotada, em matéria de Direito
Constitucional, que venha da nossa própria formação ibérica. Tôdas
elas, também sem exagero, vieram das experiências inglesa, francesa
e americana, mais tarde alemã, italiana ou russa. Nossa formação
nacional, neste terreno, é rigorosamente internacional. A razão disto
é que o constitucionalismo jurídico, tal como ficou definido na parte
introdutória deste trabalho, simplesmente não existia, nem na Espanha
nem em Portugal. Na era da nossa independência, aquela geração
política teve de recorrer a uma mescla de costumes ingleses, de idéias
francesas e de soluções norte-americanas. Sem dúvida, todo este
conjunto compreendia princípios de ordem geral, necessários à expansão
da personalidade humana em um mundo livre. A falta de tradições
ibéricas no direito político fêz, porém, que a adoção dessas normas
gerais fosse processada através de instituições inadaptáveis, fora do
contexto sócio-histórico que as gerou.
como acreditar, como esperar, pois, que sistemas jurídicos adotados
mas não adaptados, possam se enraizar na realidade? É evidente que,
à medida em que esta realidade fôr se tornando mais nacional, aquêles
sistemas serão cada vez mais mitológicos, porque cada vez menos
capazes de abraçar uma realidade, que se acentua e diferencia à proporção que o tempo passa.
Assim, às observações a que chegara nos trabalhos anteriores, devo
juntar mais esta: a observação de que a extraordinária estabilidade
jurídica norte-americana é o resultado da herança adaptada de uma
realidade, enquanto que a nossa instabilidade decorre do contraste
entre as formas que adotamos e a nossa realidade. A este propósito,
e como fecho desta pequena dissertação, quero valer-me de uma altíssima autoridade, a de S . S . o Papa Paulo VI, manifestada em
recentissimo documento.
O Papa não é um jurista profissional, nem um político militante,
mas, nem por isto, os pensamentos que externou são menos influentes
no campo temporal das idéias jurídicas e políticas.
A Carta Apostòlica publicada por Paulo VI, ao ensejo do 80'
aniversário da enciclica Rerum Novarum, traz contribuições importantes
para o nosso tema.
Sem qualquer comprometimento das posições próprias do cristão,
o Papa exorta-os à meditação e à ação politicas, como complementos
necessários à sua própria existência terrena.
Partindo deste princípio, a Carta Apostólica expande-se em considerações da maior importância sobre as ideologias políticas, as crises
sociais, a mudança das estruturas, as conseqüências da ciência e da
tecnologia, os efeitos da urbanização, a discriminação racial e muitas
outras.
A parte que mais interessa, para os fins deste trabalho, é, porém,
aquela que diz respeito ao processo jurídico-constitucional propriamente
dito. Sem empregar expressões técnicas, que seriam incabíveis no
contexto do documento, o Papa expôs, contudo, idéias muito precisas
sobre o problema da inadequação das instituições jurídicas democráticas
à realidade social.
Nas suas próprias palavras, «a dupla aspiração à igualdade c
à participação procura promover um tipo de sociedade democrática.
Diversos modelos foram propostos e alguns dêles ensaiados; nenhum
dêles, porém, proporciona completa satisfação; e, por isso, a busca
permanece aberta entre as tendências ideológicas e pragmáticas. O
cristão tem o dever de participar, também êle, nesta busca diligente
na organização e na vida da sociedade política».
como sempre, a posição verdadeiramente cristã coincide com a
melhor razão jurídica e os compromissos da fé não limitam em nada,
senão que ampliam a visão e o dever dos homens na sociedade política.
Realmente, o princípio da liberdade é um instrumento de construção
gradativa daquilo que Paulo VI chamou «a dupla aspiração à igualdade
e à participação». Mas, (e esta é a parte de culminante interesse que
as suas palavras têm para esta lição) os modelos possíveis de democracia
não funcionam, quando baseados em um conceito de uniformidade
estranho à realidade.
Isto o Papa repete nas seguintes palavras: «Nas diferentes situações
concretas e tendo presentes as solidariedades vividas por cada um, é
necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis. uma
mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes». Palavras perfeitas.
As «opções possíveis» na organização democrática fundam-se,
cerno acentuou Paulo VI, «nas solidariedades vividas». Esta expressão
corresponde exatamente ao que o sociólogo ou o historiador denominaria: «formações nacionais».
Assim, é com grande encorajamento e confiança que podemos
insistir na idéia da necessidade, para nós brasileiros, de construirmos
as nossas instituições nacionais aplicando os princípios gerais e imutáveis
da democracia às nossas «solidariedades vividas».
As instituições de países como o nosso não se estabilizarão nunca,
enquanto os juristas não tiverem a compreensão destas necessidades
e a competência para transpô-las do reino das realidades sociais, ao
domínio abstrato que é o do direito.
Até lá a nossa Constituição será cada vez mais um mito e cada
vez menos uma realidade jurídica.
ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA
VERÍSSIMO DE M E L O
INTRODUÇÃO
A
ntropologia, no seu sentido mais amplo, é o estudo do Homem e
da Cultura. Do homem como produto da evolução animal e da
soma total de suas criações materiais ou não-materiais, isto é, da
cultura. Do que se evidencia que a Antropologia é, ao mesmo tempo,
ciência biològica, ciência social e urna das Humanidades. Alguns
autores ainda a consideram ciência física, por exemplo, quando o seu
enfoque recai sobre a anatomia humana ou sobre qualquer manifestação
da cultura material.
Não há outra ciência de campo mais vasto e mais universal do que
a Antropologia. Onde estiver ou esteve o homem ou um produto do seu
trabalho, seja o mais primitivo ou o mais desenvolvido, — aí estará,
certamente, o interesse antropológico.
A espécie humana, apesar de suas variedades, é uma só. Mas as
culturas são extremamente variáveis no tempo e no espaço. E já se vê
que a Antropologia não pode prescindir do relacionamento com tôdas
as ciências que estudam o homem e o meio geográfico onde as culturas
estão inseridas.
Bieals e Heijer afirmam que, «em essência, a função do antropólogo é integrar as diversas disciplinas que tratam do Homem». E
pela amplitude de suas preocupações especulativas, a Antropologia
deve ser entendida como a síntese de tôdas as ciências que tratam da
natureza humana. O que não quer dizer que seja mais uma ciência do
homem. Sua característica própria e inconfundível reside no fato de
ser, ao mesmo tempo, — e só ela, — a única ciência que estuda os
aspectos biológicos e culturais do homem. Ou como frisava Kroeber:
«E nenhuma outra ciência enfrentou esse grupo de problemas como seu
fim fundamental. A Antropologia definiu seu problema».
Misha Titiev, o eminente professor da Universidade de Michigan,
observou que «a vasta maioria das ações voluntárias dos seres humanos são produtos mistos de duas forças diferentes, que atuam simultaneamente de forma a produzir uma atividade única». Forças biológicas e forças culturais. Por isso propôs a expressão «comportamento
biocultural» para tôda categoria da atividade humana, entendendo que
a competência do antropólogo cultural consiste em adquirir o conhecimento de como essas forças interatuam.
Esta a característica específica da Antropologia, seu problema básico e nuclear.
Hoebel, num esquema expressivo, mostra-nos o vastíssimo território das ciências que se relacionam com a Antropologia, segundo a orientação que se deseje dar a uma abordagem antropológica. Numa orientação biológica, incluiremos a Anatomia, Fisiologia, Psicologia Fisiológica, Genética, Geologia, Paleontologia e Primatologia. Numa orientação cultural, teremos a História, Geologia, Arqueologia, Arte, Literatura, Música, Tecnologia, Lingüística, Ciência Política, Direito, Psicologia, Economia, Sociologia e Geografia Humana.
Para Clyde Kluckhohn, «a História é a tentativa de descrever os
acontecimentos passados da maneira mais precisa, concreta e completa
possível, estabelecer a seqüência desses acontecimentos, apontar os padrões porventura existentes nas seqüências». Adianta que «a História
é tanto um método quanto uma ciência independente, e a Antropologia
possui o seu lado histórico. O decorrer do desenvolvimento humano, a
dispersão da espécie sobre a terra, a evolução das culturas, tudo isso
são investigações históricas».
Mas, há outros pontos de vista extremados em relação à História,
como os de Malinowski e Radcliffe-Brown, ao declararem que a Antropologia só tem sentido enquanto ciência. Excluem a História, por
considerarem que um fato determinado carece de interesse por si mesmo. O objeto da ciência, •— aduzem, — é relacionar fatos e dêles
formular proposições válidas em torno da natureza das coisas.
Já outros autores adotam posição inversa, entendendo que a Antropologia «ou é história ou não é nada». Acrescentam: «Tudo ocupa
um lugar no tempo. A cultura é uma continuação, nunca é o mesmo
de um dia a outro. Tôda observação antropológica é o registro de um
fato histórico».
Modernamente, a orientação mais segura sobre o assunto é a de
que o antropólogo deve manter uma abordagem ampla do seu trabalho
isto é, holística. Orientação que acentua a integração da cultura. O
homem é um só. O seu estudo interessa a tôdas as ciências. Kluckhohn,
numa metáfora sugestiva, anunciou, por exemplo, a queda de todos os
muros que antigamente limitavam as ciências sociais. Hoje, o antropólogo irá a qualquer campo de qualquer ciência que possa trazer mais
luz ao conhecimento da natureza humana e das forças que agem na
sociedade, — os fins supremos da Antropologia.
Reconheça-se, entretanto, humildemente, que a Antropologia está
ainda longe de alcançar aquêle estágio das ciências físicas e matemáticas, estabelecendo leis fixas e imutáveis, obtendo resultados com a
precisão e rapidez dos computadores atuais.
Não lidamos com números frios, embora eles sejam úteis aos nossos trabalhos de pesquisas. jNein com léñemenos tísicos, fáceis de
manipulação em laooratorio e sempre de resultados exatos, invariáveis,
matemáticos. O objeto de nossas preocupações, — a natureza humana — é sempre imprevisível em suas reações, atitudes, tormas inumeráveis de comportamento biocultural.
O estudo comparativo das culturas demonstra que, aquilo que é
normal numa comunidade, pode ser anormal noutra cultura. Os xamãs
siberianos são neuróticos incuráveis. Numa comunidade como a nossa,
eles estariam adequadamente continados num manicômio. Na Sibéria,
todavia, são considerados pessoas de grande respeito, desfrutando de
alto status social, üs homossexuais entre os indios Pueblos, nos
E E . U U , são igualmente acatados e podem vestir roupas femininas, preparando medicinas amorosas para os jovens. No Brasil, eles seriam degradados. Na Bolívia, há uma tribo onde os homens e mulheres dormem
a qualquer hora e lugar, interrompendo o trabalho ou outra atividade.
Não há horários pré-determinados para dormir. O sono é quem determina o momento. No nosso país, um funcionário que dormir na hora
do expediente é execrado pelo seu chefe. Eis a extrema variabilidade
do comportamento biocultural. como nivelar tôda essa gama de comportamento e estabelecer leis rígidas para sociedades e culturas ?
Apesar disso, antropólogos ilustres, como um Ralph Linton, acreditam num estágio superior a ser alcançado pela Antropologia, no futuro.
Entende que caminhamos para a compreensão dos fenômenos da natureza humana. Dessa compreensão, — virá a possibilidade de controle.
E então a Humanidade, pela primeira vez num milhão e tantos anos
de existência, poderá modelar deliberadamente e inteligentemente o seu
futuro».
E aos que julgam os antropólogos visionários, por tentarem compreender a natureza humana neste mundo louco e contraditório, lembramos as afirmações de Edwin Embree, citado por Kluckhohn: « . . . não
mudamos a natureza do universo físico, mas, compreendendo-o, de uma
infinidade de maneiras, nós o usamos para nosso serviço e nossa conveniência. Não removemos a força da gravidade quando aprendemos
a voar. Não tivemos de emendar as leis físicas, mas bastou-nos apenas
compreendê-las, para construir pontes e arranha-céus ou para conduzir
máquinas a cem milhas por hora. Não alteramos o clima e contudo,
pelo sistema central de aquecimento, conseguimos obter conforto em
meio aos invernos mais rigorosos e, por meio de instrumentos refrigeradores do ar, estamos começando a ter igual conforto nos verões mais
quentes. Não alteramos as leis da biologia para criar cavalos de corrida
e porcos gordos, para produzir milho e trigo de qualidade muito superior
a qualquer coisa conhecida em estado selvagem, nem mesmo ao produzir híbridos tão úteis como as mulas e o grapefruit. Assim, no que
diz respeito à natureza humana, a questão não é «mudar» os impulsos
e instintos fundamentais; trata-se simplesmente de compreender tais
forças e utilizá-las para canais mais construtivos e sadios do que as lutas
e frustrações que compõem parte tão grande da vida, mesmo em meio
à nossa abundância material».
PERSPECTIVAS PARA A ANTROPOLOGIA NO BRASIL
Nos currículos universitários brasileiros, desde a fundação das Faculdades de Filosofia, a disciplina Antropologia Cultural foi incluída
sabiamente nos cursos de Geografia e de História.
O legislador alcançou, desde cedo esse relacionamento da Antropologia com a História.
E já agora, com a reforma universitária, a disciplina foi introduzida no
Diferenciado, o que está proporcionando aos alunos que cursam Pedagogia, História, Direito, Geografia, Serviço Social e no próximo ano
Ciências Sociais, uma visão mais ampla dos problemas universais da
cultura em suas implicações com os diversos campos das ciências humanas. Gilberto Freyre, há vários anos, vem propugnando pela introdução de cursos de Antropologia nas escolas de engenharia e faculdades
de medicina. Na Universidade Federal do Ceará já há mesmo curso
de introdução à Antropologia na Faculdade de Medicina. Na nossa
Universidade, temos um Jnstituto de Antropologia em pleno funcionamento e se afirmando cada dia que passa dentro e fora do Estado.
Nas Faculdades de Sociologia figura igualmente a nossa disciplina e
nas Faculdades de Jornalismo estuda-se Cultura Brasileira com enfoque
antropológico.
Abrem-se, assim, perspectivas novas para a Antropologia no país.
Mas é ainda timidamente que nos apresentamos como professor de
Antropologia, por não existirem no Brasil nem o curso específico de
Antropologia e nem a carreira de antropólogo. Todavia, há cursos de
especialização em várias instituições, como o Museu Nacional e o Conselho Nacional de Pesquisas anuncia a estruturação do pós-graduacão
em Antropologia.
Apesar da fase altamente dinâmica da Antropologia no mundo de
hoje, do seu reconhecimento como disciplina em nível universitário, suas
atividades práticas, aplicadas, no Brasil, são quase nulas. Aliás, no continente americano elas só se exercem atuantemente nos E E . U U . e no
México, através de trabalhos de desenvolvimento de comunidades,
orientação em fábricas e reservas indígenas. Na América Latina, os
técnicos em antropologia aplicada são quase sempre oriundos de centros
norte-americanos e mexicanos.
Estamos ainda marcando passo nesse terreno, no país. Nossas
autoridades responsáveis pelos setores desenvolvimentistas ainda não
descobriram o valor da contribuição da antropologia nos trabalhos de
desenvolvimento de comunidades, por exemplo.
Sabe-se que há no mundo de hoje cerca de 5 milhões de comunidades rurais estancadas, por falta de estímulos e oportunidades. Dois
terços da humanidade aguardam o momento em que técnicos e nações
mais progressistas possam ajudá-las a encontrar soluções para os seus
problemas crônicos de subdesenvolvimento. O Brasil tem grande parte
de suas áreas inseridas nesse infeliz contexto. E na tarefa de integração
nacional dessas comunidades marginalizadas, cremos que não se pode
dispensar a contribuição dos antropólogos, como de nenhum outro técnico. Eis ai um campo vastíssimo para a antropologia aplicada no
Brasil.
Nossa competência para opinar em trabalhos dessa natureza decorre principalmente da experiência do conhecimento de todos os povos
que têm sido estudados exaustivamente por especialistas. Dispondo de
acervo, de informações desse porte, o antropólogo deve estar naturalmente mais categorizado para os trabalhos de mudança social e cultural
do que qualquer outro profissional. Inclusive munido de base em teoria
social e utilizando instrumentos poderosos como o conceito de relativismo cultural, etnocentrismo e o princípio de que a cultura é um todo
integrado, nao se podendo influir numa área sem que a estrutura
cultural automàticamente se ressinta. Daí a política de «neutralidade
ética» preconizada por Robert Redfeild, que deve ser preocupação constante do antropólogo aplicado.
DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA — FONTE COMUM AS DUAS
CIÊNCIAS
No campo pròpriamente dito do nosso relacionamento com a História, há diversos aspectos a considerar.
um dêles, dos mais expressivos, talvez seja a contribuição comum
que antropólogos amadores e historiadores antigos deram tanto à História quanto à Antropologia Cultural.
Foi através de informações de Heródoto, Tácito, Ibn Khaldun, de
viajantes famosos como Marco Polo, o Capitão Cook e outros, de narrações de missionários e descrições de povos os mais diversos, que a
Antropologia pôde coligir precioso manancial de documentos sobre
sociedades e culturas em todo o mundo.
Alguns desses documentos são fontes definitivas sobre a organização social de povos antigos, como o que se observa da descrição de
Heródoto, — citado por Peito, — sobre os lícios: «Eles têm, porém,
um costume singular, pelo qual diferem de tôdas as outras nações do
mundo. Tomam o nome da mãe, e não o do pai. Pergunte-se a um
lício quem é, e êle responde dando o seu próprio nome e o de sua
mãe, e assim por diante, na linha feminina».
Após a passagem em que registra o funcionamento de um regime
matrilinear, isto é, sucesso por linha materna, cremos que nenhum outro
documento antigo dará mais clara noção de etnocentrismo do que neste
ponto, quando afirma Heródoto: «Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem me-
lhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus
próprios costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores do
que todos».
O que Heródoto não podia explicar, — e hoje é objeto da doutrina
do relativismo cultural, — é que os valores de uma cultura só podem
ser verdadeiramente compreendidos pelas pessoas que possuem a mesma cultura. Ou como refere Herskovits: « . . . os juízes de valores se
baseiam na experiência e a experiência é interpretada por cada indivíduo em termos de sua própria cnculturação. Em outros termos, é o
mesmo conselho picante, mas sábio, de Bernard Shaw, ao afirmar:
«Não faças aos outros o que desejarias que te fizessem, pois seus gostos
podem ser diferentes».
Dessa forma, nunca poderemos entender claramente os valores de
outras culturas em suas implicações mais sutis, desde que o façamos
com base na experiência de nossa própria cultura. Porque cada cultura
é uma configuração singular. Embora seja possível perceber muitos
aspectos de qualquer cultura, — conforme aceitam outros autores, —
nunca, porém, em sua totalidade e complexidade.
As observações de Ibn Khaldun, citadas por Peito, sobre as
várias formas do governo islâmico .escritas há mais de 500 anos, continuam válidas como documento histórico e antropológico imperecíveis.
Eis alguns dos seus principios, — a título de exemplo, — que parecem
escritos nos dias de hoje, por um especialista: «As sociedades não são
estáticas, pois as formas sociais se modificam e evoluem. Essas leis
são tôdas sociais, e não meros reflexos de fatores biológicos ou físicos.
Os fenômenos sociais obedecem a leis suficientemente constantes para
fazer com que os acontecimentos sociais sigam padrões regulares e
seqüências bem definidas. Essas leis funcionam sobre as massas, e não
podem ser influenciadas de forma significativa pelos indivíduos isolados. (Segue-se o exemplo das tentativas do reformador em rejuvenescer um Estado corruto. Esses esforços de reforma são geralmente mal
sucedidos: os esforços individuais são esmagados pelas forças sociais
muito maiores».
Cremos suficientes esses dois exemplos para demonstrar o ponto
de vista que já esposamos, linhas atrás, ao ressaltar a importância da
documentação histórica na compreensão das culturas e dos povos.
CIVILIZAÇÃO —
um
ESTÁGIO DA CULTURA
A história das civilizações, sem pretender minimizar-lhe a relevância, nada mais é do que a história de um estágio da cultura. O mais
e!evado estágio do seu desenvolvimento.
Em 1877, quando Lewis Morgan divulgou a sua teoria da evolução da cultura, — todos os povos passando por uma seqüência necessária e pré-determinada de três estágios, — Selvageria, Barbarismo e
Civilização, — êle situava o alfabeto e o uso da escrita como os acontecimentos culminantes da última fase do desenvolvimento cultural.
A sua formulação era unilinear, isto é, êle admitia que a cultura
em sua evolução seguiria sempre um caminho único, através dos três
estágios já mencionados. Apesar de Engels e Marx aceitarem o esquema de Morgan, — porque servia de antemão aos princípios de sua
doutrina social, — a maior deficiência daquela formulação reside no
desprezo aos fatores históricos e na difusão dos elementos culturais,
como acentuou Franz Boas com seu autorizado saber crítico. Sabe-se
agora que a evolução da cultura, em termos universais, é sempre multilinear. Julian Steward é o mais destacado defensor dessa corrente nos
dias atuais, com fundamento na variabilidade das culturas e conseqüente impossibilidade de enquadrá-las em esquemas rígidos e de tendências
uniformes.
Os fatores históricos, — destaque-se, — são os mais fortes aceleradores do progresso cultural da humanidade.
Em teoria recente e significativa, Leslie White situa outro fator, —
o maior ou menor volume de energia sob controle humano, — como
o principal responsável pela evolução da cultura. Fator esse último
que não afasta os contatos históricos de povos, antes os acentua. Desde
a infância do homem, quando apenas dispunha da energia do próprio
corpo, a evolução das culturas se verificou lentamente, através de descobertas e invenções decisivas para o progresso dos povos, como estas,
além de outras: A descoberta do fogo, do arco e da flecha, a domesticação dos animais e plantas, a fundição do ferro, o domínio do vapor,
a invenção do motor de combustão interna, a produção artificial da
eletricidade, com as grandes usinas, a descoberta do petróleo, até à
maior conquista energética de todos os tempos, em 1945, — a energia
atômica. com base na teoria de Einstein, segundo a qual a matéria é
igual à energia, um quilograma de matéria pode ser convertido em 25
bilhões de kilowatts-hora de energia, ou sejam, aproximadamente, 33
bilhões de cavalos-hora.
Este fato histórico transcendental, — pensamos nós ,— deve assinalar o fim da civilização moderna e iniciar nova etapa da evolução
da cultura, para a qual não há ainda denominação adequada.
Ainda aqui, a Antropologia e História das civilizações se entrelaçam e explicam mùtuamente.
REFLEXÕES DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Na sua «Antropologia Estrutural», Claude Lévi-Strauss dedica uni
capítulo ao relacionamento da História e a Etnologia, — tornado este
último tèrmo como sinònimo de Antropologia Cultural. Traçando um
paralelismo metodològico entre as duas ciências, êle afirma que, mesmo
na Sorbonne, ambas as ciências se opuseram freqüentemente, «sob o
pretexto de que a primeira repousa sobre o estudo e a crítica de do-
cumentos de inúmeros observadores, que se podem confrontar e sobrepor, ao passo que a segunda, (a etnografia) se reduziria, por definição,
à observação de um único».
Propõe-se então a demonstrar que a diferença fundamental entre
História e Antropologia Cultural «não é nem de objeto, nem de objetivo e nem de método; mas que, tendo o mesmo objeto, que é a vida
social; o mesmo objetivo, que é uma compreensão melhor do homem;
e um método onde varia apenas a dosagem dos processos de pesquisa,
elas se distinguem sobretudo pela escolha de perspectivas complementares: a história organizando seus dados em relação às expressões conscientes, a etnologia em relação às condições inconscientes da vida
social».
Na natureza inconsciente dos fenômenos coletivos está a originalidade da Antropologia Cultural, — para êle. Mostra que, «na maioria
dos povos primitivos, é muito difícil obter-se uma justificação moral,
ou uma explicação racional de um costume ou de uma instituição: o
indígena interrogado se contenta em responder que as coisas foram
sempre assim, que tal foi a ordem dos deuses ou o ensinamento dos
ancestrais». Acrescenta : « . . . as razões inconscientes pelas quais se
pratica um costume, se partilha uma crença, estão bastante afastadas
das razões que se invoca para justificá-la». Mesmo na nossa sociedade, «as maneiras à mesa, os usos sociais, as regras do vestuário e
muitas de nossas atitudes morais, políticas e religiosas, são observadas
escrupulosamente por cada um sem que sua origem e função reais tenham sido objeto de um exame refletido».
Na frase de Marx, «os homens fazem sua própria história, mas
não sabem que a fazem», — êle justifica, em seu primeiro termo, a
história, e, em seu segundo termo, a Antropologia Cultural.
Para Lévi-Strauss, o etnòlogo e o historiador caminham na mesma
direção: «O etnólogo procurando atingir, através de um consciente que
jamais ignora, cada vez mais o inconsciente, para o qual se dirige; ao
passo que o historiador avança, por assim dizer, recuando, conservando
os olhos nas atividades concretas e particulares, das quais se afasta
apenas para considerá-las sob uma perspectiva mais rica e completa.
O etnòlogo ze interessa sobretudo pelo que não é escrito, não tanto
porque os povos que estuda são incapazes de escrever, como porque
aquilo por que se interessa é diferente de tudo o que os homens se
preocupam habitualmente em fixar na pedra ou no papel». Concluindo
suas reflexões, Lévi-Strauss fixa a importância da colaboração entre a
história e a etnologia, frisando que «elas nada podem uma sem a
outra».
DA HOMINIZAÇAO A NOOSFERA DE CHARDIN
Outros aspectos, no relacionamento da Antropologia com a História, nos parecem de suma relevância. A história das civilizações se
desenvolve num período de tempo que não deve ultrapassar de 5 a 6
mil anos. Mas, antes disso, há uma longa, controvertida e empolgante
história, que vai da hominização, — ligada, portanto, ao surgimento dos
mamíferos, há 75 milhões de anos e que por sua vez se relaciona com
todos os seres vivos, — até se perder nos idos quase impenetráveis do
aparecimento da vida neste planeta, há dois bilhões de anos, talvez.
Só a Antropologia, por um dos seus setores especializados, — a
Paleontologia, — poderá oferecer explicação plausível e científica em
torno das variedades extintas do homem e dos seus próximos parentes
animais.
Por outro lado, quanto às primeiras manifestações da cultura, desde às mais rústicas pontas de flechas de sílex do Paleolítico até às
formas já evoluídas de expressão artística ou talvez mágica dos fantásticos desenhos das cavernas de Altamira, na Espanha, tôdas essas manifestações só se explicam através de outro setor da Antropologia, que
é a Arqueologia ou Pré-história. Por intermédio de técnicas apropriadas, análise e classificação dos artefatos primitivos, o pré-historiador
ou arqueólogo procura ordenar, numa seqüência histórica, os povos
desaparecidos. Utilizando o método comparativo, êle poderá tentar identificar a que tipo de sistema econômico, por exemplo, (caça e pesca ou
agrícola), pertenceu tal ou qual instrumento litico, reconstituindo,
assim, o desenvolvimento das culturas ágrafas. Mas com aquelas limitações de que falava Glyn Daniel na sua «Introdução à Pré-História»:
«A pré-história preocupa-se com os tipos de vida das sociedades remotas; mas é certo que não se refere à cultura espiritual, mental ou moral
dessas sociedades. Não pode falar da organização social e crenças
religiosas da sociedade pré-histórica, o que é uma das suas limitações
fundamentais. Quando os pré-historiadores falam das idéias e ideais
do homem anterior à escrita, apenas imaginam hipóteses inteligentes,
feitas por pessoas qualificadas para fazê-las, mas, assim mesmo, hipóteses». Ponto de vista também esposado por Gordon Childe, ao indagar se «era legítimo deduzir fatos não-materiais do homem pré-histórico através de remanescentes materiais». E noutro ponto, o mesmo
autor de Evolução Social afirma: «O conteúdo da crença religiosa e o
grau de prestígio das classes sociais (da pré-história) estão irrecuperàvelmente perdidos». Mas, não há dúvida de que a Arqueologia é uma
disciplina histórica, que tenta reconstruir a cultura do passado até nossos dias, sobretudo desvendando, na linguagem muda dos traços humanos impressos nos artefatos de tôda natureza, a possível história que
não está escrita.
O historiador não pode prescindir desses conhecimentos, mesmo
com as suas limitações, como embasamento lógico e racional para compreensão da evolução do homem, das culturas e conseqüentemente das
civilizações.
Nao seria aqui o momento para esboçar, mesmo perfunctòriamente,
a problemática da irradiação adaptativa dos priniatas, como um ramo
privilegiado dos mamíferos, e que culminaria, mais tarde, com a nominização. Acontecimento a que estão ligados os australopitecus, os pitecantropus, o homem de Neandertal e o Homem de Cró-Magnon, isto
é, o Homo sapiens fossil. Nao apenas pela complexidade e profusão
de problemas que deveriam ser, pelo menos, aflorados. Mas sobretudo
pela necessidade de aclarar posições, expor teorias, enfim, demonstrar, nos seus ângulos mais significativos, que o homem é um produto
da evolução. Não um anjo decaído, — como lembrava Linton, repetindo Darwin, — mas um animal aperfeiçoado. O mais diversificado de
todos os animais, com suas características que o distinguem de qualquer outro, inclusive a característica única e singular, rigorosamente
própria do homem, que é a cultura.
A história das civilizações estuda esta característica nas suas manifestações conscientes mais complexas e mais altas do gênio humano.
A Antropologia extrapola ainda mais desses conhecimentos, porque se
interessa pelo inconsciente coletivo, pelos povos sem história, pelos
primitivos, pelas culturas que ainda hoje não conhecem o uso da escrita, pelos povos que estão em vias de extinção, pressionados por prementes problemas de saúde ou pela ambição de vizinhos ou nações
poderosas que visam ameaçadoramente as riquezas naturais do seu
habitat.
Franz Boas destacou de forma definitiva e lapidar a íntima relação
entre a História e a Antropologia, ao escrever: «Para compreender a
história, não basta saber como são as coisas, mas como chegaram a ser
o que são».
Se a história das civilizações complementa a história do homem
e da cultura, no seu mais belo e trágico período de florescimento, a
Antropologia, por sua vez, fornece-lhe a base indispensável à sua compreensão universal.
•
Daqui para a frente, até a Noosfera de Teilhard de Chardin, acreditamos que a História e Antropologia caminharão juntas, como juntas
estiveram a partir do aparecimento da escrita. Sejam quais forem os
estágios de grandeza ou miséria, a que possam atingir as civilizações,
no futuro, será sempre a natureza humana o problema maior, comum
a uma e a outra ciências do homem, a causuística fundamental de
tôdas as transformações da humanidade e da cultura.
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—
A CONFERÊNCIA DE VENEZA E OS PROBLEMAS
DA CULTURA
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
O
problema da conceituação de cultura, para compreendê-lo principalmente em face da diversificação que apresenta, constitui hoje,
uma preocupação de antropólogos, de cientistas sociais, que ampliam ou
limitam o campo sobre o que deve incidir a atenção, a curiosidade
científica. Morgan, no ensaio que escreveu acerca das sociedades primitivas, entendeu a cultura como uma expressão restrita aos homens
dos primeiros tempos da vida social. Taylor Goldenwayser, Fraser,
padre Schmidt, Grabner, Frobenius, Herkowits já se libertaram desse
conceito restritivo.
Há, hoje, no entanto, um consenso em que tôdas as manifestações
da criatividade humana devem ser consideradas como manifestações
culturais, em maior ou menor grau, a definirem grupos, povos, comunidades com maior ou menor dinâmica. como também há consenso na
conclusão de que as culturas, como expressões da vida coletiva, crescem,
transformam-se, enriquecem-se, empobrecem, intercomunicam-se, morrem,
São criações dos homens e como tal sujeitas aos altos e baixos das sociedades humanas. E face a impactos mais ou menos sensíveis, expandem-se e ampliam-se perdendo, aqui e ali, suas características mais profundas e mais definidoras, numa alteração que só o isolamento impede
e cristaliza.
Quando os homens elaboraram suas linhas legais de convivência,
adotaram práticas de vida coletiva, organizaram-se sociedades, estabeleceram a disciplina de seus falares, construíram as suas moradias, riscaram
as pedras com que produziram as primeiras manifestações da arte rupestre, fizeram o fogo, dominaram o espaço físico, construíram seus instrumentos de trabalho, adotaram dietas alimentares, mantiveram suas
tradições orais, que importavam na história do passado e asseguravam a
continuidade do grupo, evidentemente estavam elaborando cultura, que
os singularizavam entre os outros animais e dessa maneira dêles diferenciavam e sobre eles exerciam o domínio. Nesse particular, os homens
estabeleceram-se fronteiras, que os contiveram, marcaram e lhes permitiram ou determinaram os traços culturais.
Heródoto, consciente do que tudo isso representava, já se preocupava
em examinar as diferenças e variantes culturais da humanidade então
existente ou revelada. Outras grandes expressões da inteligência antiga
também registraram as diversificações do comportamento social, lançando
os fundamentos do que já poderíamos denominar de culturologia.
As culturas são, portanto, variadas e mesmo aos impactos violentos
da tecnologia mantêm-se distintas e a marcar a individualidade dos
povos.
Muitas dessas culturas, todavia, foram ignoradas ou contestadas
de acordo com os critérios limitativos de povos que se consideravam os
detentores da verdade, da superioridade, do poder de arbítrio no reconhecimento da capacidade criadora de outros povos. Haveria, para estes,
os selvagens, os bárbaros, os ingênuos, os primitivos, os incapazes de se
realizarem sem o subsídio, a contribuição, a exportação, até eles
daqueles padrões de culturas que eram o privilégio dos outros, dos que
exportavam cultura depois de a terem criado, polido, alimentado e
tornado gloriosa. Essa a história de ontem e ainda de hoje. Gregos,
romanos, pretenderam o monopólio da cultura pela excelência de sua
produção e de sua força. Já então, porém, aquêles padrões gregos e romanos alimentavam-se, enriqueciam-se ao contato com os bárbaros, com
os primitivos, de valores que incorporavam e depois transmitiam como
valores autóctones gregos e romanos. Depois foi a Europa que, após seu
esforço de unificação política, passou a aglutinar-se à idéia de sua superioridade cultural. Descobriu continentes, naturezas, viajou por oceanos,
mares e complexos fluviais que revelou, tomou contato com humanidades
desconhecidas e se impôs sobre elas pela ação de soldados, de administradores, de missionários, de mercadores. Durante 400 anos, governou
muitas dessas humanidades. Desprezou-lhes os «stocks» culturais: as religiões pré-européias, os costumes, os usos, os comportamentos. Negoulhes a posse da própria alma. um debate incrível, entre homens de espírito, ocorreu a propósito da possibilidade de um crédito aos selvagens da
América e à própria América, impossível de habitar ou de habitar em
termos da ação criadora, dignificante da espécie humana. Antonelo
Gerbi, em «La Disputa del Nuevo Mundo», como anteriormente em
«Viajas polêmicas sobre el Nuevo Mundo», historiou e analisou as
conclusões simplistas do debate. A África era outra área sob negativa.
Foi só quando Frobenius, depois de décadas de estudos no interior do
continente, revelou a existência de grandes culturas negras, que se começou a alterar a imagem. E hoje, o que sabemos acerca das culturas
da África, ao Sul do Saara, a África negra, permite o reconhecimento
do que elas importam como valores estéticos e institucionais. A literatura
abundante, que se escreve, a respeito, na própria Europa e nos Estados
Unidos, assume proporções quase inacreditáveis. ( 1 )
1 ) O problema da presença européia no mundo exótico, tropical, tem dado
motivo a extensa literatura. como a preocupação mais atual referente à importância
de que se revestem as culturas européias. Citaríamos, nesse particular, como excelentes fontes de informação a obra coletiva «L'Europe du XIX et XX siècle
Já não ocorre o mesmo, é certo, com relação às culturas do Oriente.
Quando os europeus aportaram à índia, e depois à China, se não abriram
inão de sua preocupação de superioridade, nem por isso deixaram de
constatar os aspectos mais visíveis e mais intensos das culturas ali existentes. A influência da filosofia chinesa, transmitida à Europa na informação de missionários, foi grande e, em muito, responsável por certos
princípios que europeus se atribuem como fruto de seu próprio espírito
criador. Em Iivro famoso, «La Chine et la formation de l'esprit philosophique en France», V. Pinoti deu-nos uma lição magistral a respeito.
como anteriormente, François de Daineville, em «La géographie des Humanistes» . como as notícias proporcionadas, nos relatos dos viajantes,
influíram também para que a Europa tomasse consciência de que havia
outras humanidades capazes de criar culturas cheias de vigor.
Essa penetração da «novidade» cultural com que a América, a
África, a Ásia contribuíram, apesar de tôdas as reservas que se lhes
opuseram, foi uma contribuição ponderável que serve também para explicar o que denominaríamos de Renascimento e permitiu o exotismo literário, tão bem estudado por Atkinson, Martino, Chinard e, entre nós,
por Afrânio Peixoto e Afonso Arinos, isto é, os motivos daqueles continentes, vigentes na literatura que a Europa escreveu a principiar do
século X V I .
Ora, as culturas desses mundos, que já se libertaram do sistema de
dominação política da Europa e se reencontraram com seu passado e se
encontraram com um novo presente, provocando o maior interesse nos
meios, ontem hostis, constituem preocupação das organizações internacionais como a U N E S C O , pelo que representam como valores representa?
tivos de poovs, de épocas, e como características desses mesmos povos.
Tal interesse ou preocupação pelos estudos dessas culturas para uma
política de preservação, que se promove através de providências objetivas e dignificantes, não levam, no entanto, a ignorar os outros valores,
os que não se descobrem agora porque preexistem à descoberta daquelas culturas exóticas e compõem o acervo criador daqueles contingentes
humanos da Europa, ainda responsáveis, até certo ponto, pelos destinos
universais. O inventário das culturas, tôdas elas, note-se bem, compreendendo as raízes e o desenvolvimento de cada uma delas, suas condicionantes, seus reflexos, sua impetuosidade, sua expansão, seus relacionamentos, está, em conseqüência, na ordem do dia, prevalecendo, porém, atente-se, uma curiosidade mais intensa, não mais para as dos aborigines
das Américas ou dos povos da Ásia, mas, preferentemente, da África
negra.
A U N E S C O , que é o organismo da O N U , a que se atribuem a área
da educação e da cultura no processo mundial de convivência espiritual,
(1815/1870). Problèmes et interpretations historiques». Milão, 1959; e André Amar.
«L'Europe a fait le monde. Une histoire de la pensée européenne». Paris 1966.
Sobre o reverso, isto é, a contribuição que a África tem dado, Eugene Guernier,
«L'Apport de l'Afrique a la pensée humaine», Paris, 1952.
balanceando o esforço mundial na difusão e na preservação das culturas,
com instrumentos apropriados, além da obra de assistência e de divulgação que vem executando, com revistas especializadas, coleções de arte,
livros, entre eles um «História da Cultura Humana», em que há capítulos
sobre o Brasil, escritos por membros deste Conselho, tomou a ombros
a realização de um primeiro encontro de nações, visando ao exame das
políticas que se estão adotando.
A U N E S C O já promovera, anteriormente, inquéritos e mesas redondas acerca do racismo, do problema da revolução tecnológica, das tensões
sociais, da unidade e diversidade das culturas. como a U N E S C O , organizações privadas do tipo da Fundação Pró-Helvetia, de Neuchatel,
que pelo ensaio de Carl Dora já fixara os grandes caminhos das relações culturais no plano internacional. Na América Latina, o Instituto
Pan-americano de Geografia e História, pelas revistas de Folclore, Antropologia e das Idéias encarava com propriedade a matéria, numa contribuição excepcionalmente importante. Os estudos africanos, na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, na Suíça, na Espanha, em Portugal, na Itália, na Rússia, autorizavam, como os que se faziam também
sobre o Oriente, um vasto conhecimento de tudo quando afirma a existência de culturas autônomas, diversificadas, autênticas, com vasta tradição no tempo e amplitude do espaço.» ( 2 )
Todo esse material conduzia, também, à formulação de sentimentos
nacionalistas exaltados, sentimentos que expressavam um anticolonialismo, e, até certo ponto, um racismo contra o branco, de raiz européia.» ( 3 )
No particular da África negra, debatiam os próprios africanos a
tese — haverá uma cultura negro-africana, unificada, que os europeus
teriam destruído ou confundido, ou haveria culturas variadas, diferentes,
autônomas, perfeitamente distintas? Tais culturas realmente teriam
sofrido a pressão das culturas européias que as perturbassem em sua evolução natural e as corrompessem? E face ao mundo reformulado pela
tecnologia, como se comportariam aquelas culturas tradicionais? O processo de mestiçagem cultural, velho de séculos, mas tornado mais dinâmico com os descobrimentos geográficos, que pôs em relacionamento
2) No Brasil, o interèsse pelos assuntos africanos negros e asiáticos pode ser
constatado pelo que realizou o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos, e realiza hoje o Centro de Estudos Afro-Orientais, sediado na Universidade Federal da
Bahia.
Suas publicações são excelentes, sendo de assinalar a revista «Afro-Â^ia»,
que alcançou o número 7. Nós próprios, em nosso livro «Rotina e Dinâmica na
vida brasileira», Manaus, 1965, fizemos estudo preliminar, em dois ensaios, acerca
do que a África negra estava significando.
3) Sobre o assunto, recomendaríamos, a leitura de: Eduardo dos Santos, «Panafricanismo de ontem e de hoje», Lisboa, 1968; Eduardo dos Santos — «Ideologias
politicas Africanas», Lisboa, 1968; André Gonçalves Pereira — «Sobre os nacionalismos Africanos», Lisboa, 1956; Jacques Lombard, «Autorités tradicionelles et pouvoirs
européens en Afrique Noire», Paris, 1967; A. Malileau et I. Meyriart, «Descolonisation et regimes politiques en Afrique Noire», Paris, 1967; Fernand Von Langenhove, «Consciences tribales et nationales en Afrique Noire», H a y a , 1960.
interno sociedades as mais diferentes entre si e com elas aqueles patrimônios exóticos, estaria encerrado?
«Chekh Anta Dio, em «Antériorité des civilisations nègres». «Myrthe
ou vérité historique?», em «L'unité culturelle de l'Afrique noir», e em
«Nations Nègres et culture», como Jacques Maguet, em «Africanité traditionelle et moderne», Jean-Pierre N. Diaye em «Elites africaines et cultures occidentales, assimilation ou resistence?» e Jarnheinz John, em «Mobutu — Las culturas de la negritud», examinaram com muito calor o
assunto, concordando na existência de valores pré-europeus que era
preciso defender porque refletiam o estado cultural dos povos africanos
negros anteriormente à presença européia, e porque estavam sofrendo
uma desfiguração como resultado dessa mesma presença. A unidade
ocorrera, depois de desfigurada como um todo pela variação natural que
o tempo e outros fatores explicavam. George Pater Murdock, em
«África. Its peoples an their culture history», já sustentara como verdadeira a tese da variedade e multiplicidade cultural, agora também exposta, no particular das manifestações artísticas, em livro excelente,
«Arts et peuples de l'Afrique noire», por Jacqueline Delonge.
Duas assembléias de africanistas haviam pretendido formular a problemática africana negra, incluindo os aspectos materiais e espirituais das
culturas ainda existentes, em suas formas menos impuras.
uma reunião promovida pela U N E S C O em Dakar, de 6 a 10 de
outubro de 1969, deu os passos preliminares para a grande assembléia
que se decidiu reunir em Veneza. Ali se haviam proposto os problemas
da «negritude cultural» que, como os problemas das culturas asiáticas,
deveriam merecer ênfase, estas expressas no que a India e o mundo
árabe particularizavam. As culturas da índia e do mundo árabe voltavam
a provocar interesse nos meios científicos. A chamada civilização árabeislâmica, como as que haviam definido e continuavam definindo aquêles
mundos estavam em pleno reflorescimento, defendidas, amparadas, exaltadas. Orgulhavam-se os que a representavam do que elas haviam
significado e voltavam a significar.
As culturas pré-européias da América já não despertavam o mesmo
interesse. Estavam estudadas em profundidade. Pouco restaria para
constatar como novidade. E no que diz respeito à sua preservação, também não havia motivos para maiores preocupações — estavam extintas
como valores atuais, e o que delas restava encontrava-se devidamente preservado nos museus da própria América ou nos momentos que haviam
resistido à ocidentalização. » (4 )
4) Excelentes balanços do que representam as culturas indígenas da America
podem ser encontrados em: Herman Trimborn; «Las culturas dei mundo antiguo»,
«América Precolombiana», Madri, 1965; José Manoel Gomes Tahanera e outros,
«Las Raizes de América», Madri, 1968; Domingo Martinez Pereatez, «Un continente
y una cultura», México, 1960; Felipe Gonzales Ruiz, «Evolución de la cultura en
América», Madri, 1953.
Quanto, por fim, às culturas do Ocidente, a U N E S C O não tinha
também porque afligir-se. Os povos do mundo ocidental ou resultantes
da ocidentalização, como é o caso das Américas francesa, inglesa, espanhola e portuguesa, estavam com seu patrimônio cultural definido e executavam as respectivas politicas por decisão própria, recursos nem sempre
abundantes convenhamos, mas com resultados fáceis de imaginar. Não
corriam os riscos que as outras corriam. Sua história e sua defesa eram
uma tarefa nacional efetiva. O de que careciam era de mais intensa
difusão pelo exercício constante de políticas corajosas que impulsionassem, valorizassem e assegurassem as condições vitais de sua continuidade. ( B )
A Conferência Intergovernamental sobre os aspectos institucionais,
administrativos e financeiros das políticas culturais, promovida pela
U N E S C O na cidade de Veneza, de 24 de agosto a 2 de setembro, realizou-se, com sucesso integral, presente a Delegação brasileira, que tive
a honra de chefiar, na conformidade da agenda prevista, inclusive em
termos de período, cumprido fielmente.
Foi instalada na noite de 24 de agosto, solenemente, no Palácio dos
Dodge, sob a direção preliminar do Diretor-Geral da U N E S C O e posteriormente sob a presidência do Chefe da Delegação Italiana, Ministro
Angelo Salazzani, Subsecretário de Estado e Deputado ao Parlamento
Nacional, escolhido, em reunião preliminar dos Chefes da Delegação,
quando se fixaram linhas de ação e se fizeram as primeiras indicações
para os postos de coordenação, comando e redação e se constituíram duas
grandes comissões.
A Conferência, cuja realização fora determinada em deliberação da
Assembléia Geral da U N E S C O , em sua décima quinta sessão (1968)
tinha seus objetivos contidos naqueles ângulos já referidos, elaborados
em reuniões preliminares, celebradas em Mônaco (dezembro de 1967),
Budapest (julho de 1968), Paris (junho de 1969). Dois encontros
anteriores haviam tido lugar para o exame da problemática cultural de
certas áreas geográficas — América Latina (Lima — novembro e dezembro de 1967) e África (Dakar, outubro de 1969). Naquela, representaram o Brasil os professores e escritores Afonso Arinos de Mello
Franco e Sérgio Buarque de Holanda. Não seria demais lembrar, que,
no particular da América Latina, em Caracas e em Trinidad, já haviam
sido examinados aspectos da conjuntura cultural dos países que integram
a latinidade americana. É certo que tais assembléias não resultavam
de convocação da U N E S C O e sim da O E A o que nem por isso deixa
5) O estudo das culturas européias, no que expressam, no que transferiram às
culturas dos outros continentes e delas se enriqueceram está, presentemente, sendo
promovido com o maior interesse por centros universitários e organizações especiali'
zadas, como a Fundação Européia da Cultura, com sede em Amsterdan, e o Centro
Europeu de Cultura, com sede em Genebra, tôdas elas a provocarem debates, mesas
redondas, simpósios e a publicarem revistas e monografias que refletem a preocupação
que a matéria sugere.
de merecer a nossa reflexão pelo que já registrava como preocupação
governamental para o encaminhamento da problemática cultural, convindo registrar que, para essa última, o Conselho Federal de Cultura
elaborou texto em que sugeriu a adoção de medidas conformantes da
área de política visando ao aceleramento do processo cultural. ( 6 )
O que se pedia, para a Conferência de agora, especificamente, era
informações sobre o orçamento cultural de cada pais, formas de financiamentos governamentais direto e indireto, papel da iniciativa privada
para o fomento da cultura, recursos humanos disponíveis ou em formação no campo das atividades culturais. Por fim, diretrizes oficiais, no
paiticular das relações internacionais, exportação e importação de cultura,
seja no qualitativo, seja no quantitativo.
A ênfase maior, que era visível, dirigia-se, no entanto, para a área
africana, especialmente a dos países ao Sul do Saara, portanto a África
negra. A seguir, a Ásia. A América Latina não entrara em cogitações
maiores senão no exótico que ainda se pudesse encontrar nas manifestações, em processo rápido de desaparecimento, de suas populações aborígenes. De logo fique claro que a América Latina, como nos séculos
XVII e XVIII a Ásia, despertara, nos séculos XIX e primeiras décadas
do século XX, o interesse europeu, provocando estudos da maior importância, agora mais voltados para as circunstâncias de natureza econômica. Ademais, a América Latina, despontara como maior anterioridade para a sua problemática cultural, criando-se uma tradição que não
podia existir, em termos de civilização de linhas ocidentais, na África
negra. Esta cogitava, incessantemente, não apenas na sua ocidentazinegra. Esta cogitava, incessantemente, não apenas na sua ocidentalização, isto é, integração no conjunto de universalidade cultural que a
Europa criara e difundira, mas na revalorização de suas raízes mais
distantes no tempo, as raízes anteriores à presença européia, portanto
anteriores aos fins do século X V . Tais preocupações, sobre o que há
hoje imensa literatura especializada em francês e inglês, o que importa
em reconhecer a importância que se está concedendo ao mundo africano
negro, creditando-se perante a U N E S C O , interessada na contribuição
que poderia proporcionar aos países africanos, constituíram, em conseqüência, uma tônica natural na Conferência.
Estiveram presentes à Assembléia, 86 Nações, além de representações e observadores de organismos não governamentais e de fundações.
Da América Latina, compareceram delegações diminutas, diga-se de
passagem, de apenas 10 países: Brasil, a maior, Argentina, Uruguai,
Chile, Peru, Colômbia, Venezuela, Panamá, México e Cuba. TrinidadTobago, Guiana, Canadá e Estados Unidos completaram o quadro do
Continente americano.
6) Esse texto não logrou exame naquela assembléia porque a matéria foi transferida a outra reunião, quando, então, mais detidamente seria examinada para a
adoção de providências. Tem o seguinte título: «Projeto para o Estudo das Caracteristicas Culturais da América Latina.» Será divulgada na revista «Cultura». Foi
elaborada pelo Conselheiro Manuel Diégues Júnior.
As duas comissões que se organizaram para o exame das proposições que se foram apresentando, cogitaram do seguinte:
a) — função dos Poderes Públicos na determinação e na realização
dos objetivos do desenvolvimento cultural, compreendendo o acesso e
participação na cultura, proteção e desenvolvimento das culturas nacionais e sua ampla difusão, técnicas áudio-visual de criação e de comunicação, conteúdo cultural da educação.
b) — promoção e organização da ação cultural pelos Poderes Públicos, compreendendo os aspectos institucionais e administrativos, financiamento, a utilização dos recursos humanos, pesquisas sobre as políticas cultueis, cooperação cultural internacional e papel da U N E S C O
no domínio das políticas culturais.
Fora deliberado e distribuído com antecedência um documento de
base, em que se haviam indicado os problemas a serem examinados cora
a indicação de experiências alcançadas e de algumas particularidades
para as quais a U N E S C O pretendia o pronunciamento favorável das
Delegações, como a utilização cultural dos lazeres, a ajuda às artes
plásticas e as medidas práticas para assegurar o direito à cultura nas
regiões africanas. Esse documento valeu, realmente, bastante para os
trabalhos da Conferência e o encontro normal de conclusões.
É de notar que em nenhum momento a Conferência abandonou
seus objetivos para descontrolar-se em debates estranhos aos mesmos.
O entendimento havido entre tôdas as Delegações foi uma constante
que permitiu os resultados alcançados com tanto sucesso e rapidez. Registre-se , para exemplificar, o caso de proposição da Delegação da
União Soviética, com que não concordávamos. Alinhava-nos com a
África e a Ásia na constatação de um subdesenvolvimento cultural que
não podíamos reconhecer, pois que era falso. As Delegações LatinoAmericanas reuniram-se, por sugestão do Professor Pedro Calmon, assentando contestar a posição que nos davam. Não nos consideraríamos
diminuídos na companhia de africanos e asiáticos. O que recusávamos
era a condição de inferiorização cultural a que nos limitavam, confundindo o primitivo, o exótico, que caracteriza ainda hoje as culturas daquelas áreas, com o primitivo das culturas dos aborígenes americanos,
que não constituem mais a marca das culturas latino-americanas, marcadas pela ocidentalização, e, certos aspectos, por alguma autonomia e
criatividade ponderáveis. Procurada, a Delegação Soviética concordou
imediatamente na modificação do texto, com o que se refez a proposição, sob forma aceitável e que não globalizava a situação proposta anteriormente.
Presentes continuadamente às duas comissões e ao Plenário, a Delegação Brasileira apresentou seis (6) proposições, que versavam sobre
os pontos seguintes:
a) — inventário das instituições culturais mundiais; cada Estado
indique uma de suas instituições para estabelecer os intercâmbios;
b) — estudo sobre as repercussões que a urbanização está promovendo sobre as atividades culturais das populações rurais, figurando
esses estudos entre os temas da próxima reunião para o exame de «O
homem e o meio»;
c) — encorajamento aos Estados membros para providenciar a defesa, não só dos monumentos arquitetônicos, mas também dos conjuntos
urbanos, incitando as autoridades responsáveis à utilização adequada de
tais conjuntos;
d) — estudo das culturas em perigo de extinção e o estabelecimento de um centro internacional de documentação, relacionado com a
preservação das culturas e a divulgação dos estudos pertinentes;
e) — fomento ou apoio da U N E S C O aos estudos de medidas para
ajudar financeiramente as atividades culturais nos Estados Membros
mediante a participação, nos impostos ou taxas provenientes de atividades econômicas que, direta ou indiretamente, se beneficiam da contribuição cultural;
f) — patrocínio na realização de estudos sobre os sistemas de isenção ou redução fiscal, do imposto de renda para as pessoas físicas ou
jurídicas que prestem ajuda às atividades culturais de interesse nacional
ou internacional, ou que colaborem com os Poderes Públicos na conservação do patrimônio histórico e artístico do país;
Tais proposições objetivavam prioridade na U N E S C O para os
programas, a curto e longo prazo, visando à elaboração de uma consciência mundial sobre a importância dos problemas de ordem cultural,
para o que devem ser postos à disposição, dos países membros, meios
que lhes permitam formular suas respectivas politicas culturais, inclusive
pelo fornecimento de especialistas que colaborem, e a compilação e
difusão da documentação que registre a cultura de cada país.
Nossas proposições foram aceitas e incorporadas às recomendações
finais. Assinamos proposições, propostas pela França, Bélgica, Camerum, Canadá, Líbano, Cuba, Guiné, Irã, México, República Árabe
Unida, Togo, Tunízia, Uruguai, República Federal da Alemanha, Inglaterra, Senegal, Suissa, Colômbia e Itália.
No Plenário, o Chefe da Delegação Brasileira fêz, como sucedia
com os Chefes das demais Delegações, uma exposição sumária, em francês, sobre o que distinguía a política cultural do país. ( 7 )
As recomendações, aprovadas pela Conferência, atingiram o número
de oitenta e cobriram, efetivamente, os ângulos mais variados da problemática cultural. Não foi possível fixar uma definição exata da ex7) A delegação brasileira esteve assim composta: Professor Arthur Cezar Ferreira Reis, chefe; Professor Pedro Calmon, Arquiteto Renato Soeiro, Secretário de
Embaixada Luiz Felipe Macedo Soares Guimarães. A delegação brasileira elaborou
uma comunciação mais longa, mas, à exeguidade de tempo, não foi possivel sua
edição. Havia documento anterior, integrante de uma série, preparada pela UNESCO,
mas de circulação limitada, organizada pelos Senhores A. Miennot, A. Battaini,
R. Said.
pressão cultura. Havia dúvidas na conceituação, que variava de país a
país e, em muitos dêles, incluia aspectos educacionais, nem sempre aceitos
como integrantes exclusivos do processo cultural, como era o caso das
sociedades primitivas, em que a atividade cultural, expressiva de sua
capacidade criadora, não é resultante de qualquer participação da ação
educacional, nelas inexistentes.
As recomendações aprovadas partiam do princípio de que o direito
de acesso à cultura é inerente à pessoa humana, pelo que as autoridades
responsáveis pela existência e funcionamento das comunidades humanas
devem proporcionar facilidades, dentro dos limites de recursos disponíveis, para que se efetive esse acesso.
Assinalaram a exigüidade de recursos, na maioria dos países, constantes dos orçamentos oficiais para o empreendimento cultural, como é
o caso do Brasil, em que essa percentagem não passa dos 0,4764%,
certas inexpressividades das relações culturais internacionais e intercontinentais, a necessidade de uma contribuição universal mais decisiva e
mais elevada como meio de fortificar o desenvolvimento cultural nas
áreas menos favorecidas ou desenvolvidas, inclusive pela adoção de
normas e mais modernos processos de difusão cultural além dos clássicos
ou rotineiros. Insistiu no reconhecimento de que a cultura não é um
adorno, mas alguma coisa importante, muito importante, como valor, na
vida social, o que exige, como conseqüência, a consciência, do Poder
Público, e da iniciativa privada, da existência de obrigação, constante
de uma política constante, objetiva e penetrante para o planejamento
cultural das comunidades, também considerado como aspecto especial
importante dos planejamentos globais nacionais.
No particular do problema dos países em que as diferenciações
étnicas,lingüísticas e culturais existem, a autonomia cultural deve ser
mantida, sem prejuízo da unidade nacional. Da mesma forma, aos artistas deve ser reconhecido o direito de se realizarem livremente, participando dos organismos que formulem as políticas culturais.
A Conferência decidiu, ainda, recomendar, entre outras medidas,
à UNESCO:
a) reuniões regionais para, em nível ministerial, examinar as questões fundamentais da política cultural;
b) — estudo da possibilidade de declarar o ano de 1975 o Ano
Internacional do Desenvolvimento Cultural;
c) — encontro de meios de ajuda aos países para que possam preservar suas culturas indígenas contra as influências externas nocivas,
inclusive favorecendo o intercâmbio de experiências e projetos para o
fomento e respeito das tradições orais;
d) — ajuda aos países em vias de desenvolvimento para que estabeleçam infra-estrutura necessária ao funcionamento de serviços de rádio
e de televisão;
e) — cooperação, no sentido de divulgação dos valores das culturan primitivas negro-africanas, através de películas, rádio e televisão;
f) — ajuda ao fomento da cultura árabe;
g) — exame da possibilidade de estabelecer um instituto latinoamericano de cinema;
h) — preparação de uma série de publicações institulada «Inventário dos Monumentos e Obras de Arte Tradicional»;
i) — publicação, a partir de 1971, de nova revista, sob a denominação de «Problemas do desenvolvimento das culturas nacionais»;
;') — estudo da possibilidade de estabelecer um centro internacional de intercâmbio de informações, sobre as culturas preindustriais sobreviventes;
k) — estudo para identificar as zonas, na América Latina, mais
afetadas pelo rápido desaparecimento dos valores nacionais populares
ao impacto das novas formas de meios de informação comerciais, fixando
a maneira pela qual possa ajudar na conservação de tais valores;
1) — estudo da possibilidade de coordenação dos centros de investigações existentes, encarregados das políticas culturais como partes
integrantes dos planejamentos nacionais, regionais e locais;
m) — solicitação aos Estados Membros para que formulem dispositivos legais visando à conservação de monumentos arquitetônicos individuais e de grupos de edifício»,
n) — por fim, estudo da possibilidade de estabelecer um Banco
ou um Fundo de Desenvolvimento Cultural, ou ambas as coisas, que
atuem como organismos financeiros auxiliares dentro das normas que
regem os bancos internacionais.
Considerou, ainda, a Conferência, que o desenvolvimento cultural
de um país tem estreita relação com o desenvolvimento econômico e o
desenvolvimento geral, pelo que as inversões de caráter cultural devem
considerar-se como inversões para, a longo prazo, o desenvolvimento
geral da sociedade em seu conjunto.
A Conferência Intergovernamental para certos aspectos das políticas culturais foi a primeira, no gênero, realizada até o presente, evidenciando a elaboração, já avançada, de uma consciência em torno da
tese de que o Estado Moderno não pode ausentar-se do problema cultural como parte integrante da política do governo. O processo de
desenvolvimento de uma Nação não pode mais limitar-se aos aspectos
sociais, econômicos e educacionais a exigirem planejamentos específicos
e mobilização de recursos humanos e financeiros. Inclui também os de
ordem cultural, a curto e a longo prazo, devidamente considerados para
os programas que cumpre elaborar e executar. As culturas nacionais,
ficou evidenciado, são instrumentos de segurança, valores a preservar,
pois que dignificam as Nações, suas sociedades e refletem a capacidade
que possuam para criar nos domínios do espírito.
•
AS MONARQUAS IBÉRICAS E A PROTEÇÃO
AO ÍNCOLA
JOSÉ ALIPIO GOULART
A
NTE o reconhecimento tácito da liberdade dos índios, pelo poder
vaticânico, é a vez das monarquias, a lusa e a espanhola, seguirem
os passos da Igreja; e aquelas, antes francamente favoráveis à cativação da bugralhada, já agora, mais por interesse político do que por
convicção de qualquer outra sorte, seguem as pegadas do Papa aprofundadas estas pela ação itimorata dos loyolistas. Começam, então, os
avanços e recuos das coroas peninsulares da pretensão de solucionar
definitivamente o assunto. Ao ocupante da cadeira de São Paulo cabe
injetar-lhes, vez por outra, por meio de bulas e de breves, dosagens
medidas de coragem, sempre que pressente fraquejarem os reis ao impacto da reação interesseira dos colonos.
No Regimento de 17 de dezembro de 1540, dado a Thomé de
Souza, primeiro governador-geral do Brasil, já se fazia, talvez, a primeira tentativa de regulamentação do cativeiro do índio, quando naquele
documento lia-se que o principal fim de povoamento do Brasil era a
redução do gentio à fé católica, convindo atraí-lo à propagação da fé
porque de tal passo sobreviria o aumento da povoação e do comércio.
Proibia-se, no mesmo Regimento, fazer guerrear e saltear gentio, por
terra ou por mar, ainda que estivessem levantados, sem ordem do Governador e dos Capitães; e estes só a dariam a pessoas de confiança,
sob pena de morte e perda de tôda a fazenda. (Isso porque, constava
do documento, «era costume saltear e roubar os gentíos de paz por
diversos modos, atraindo-os enganosamente, e indo depois vendê-los, até
aos próprios inimigos, donde resultava levantarem-se eles e fazerem
guerra aos Cristãos, sendo esta a principal causa das desordens que
tinham havido.» (*)
Por outro lado, e pelo que ficou patente consoante o trecho transcrito, a Coroa não demorou a tomar conhecimento das misérias que aqui
se praticavam com os índios, desde os primeiros instantes; e quem se
apressara a denunciá-las não haviam sido os loyolistas, porque esses
chegaram ao Brasil juntamente com o portador do Regimento. Dessarte,
alguém, antes dos roupetas, cochichara aos reais ouvidos o que àquela
altura já se estava passando nestas partes, com os filhos da terra.
Apesar, porém, das mencionadas disposições regimentais, a escravização do indígena foi aspecto relegado a segundo plano por força dos
pesados encargos da organização econômica e administrativa da colonia,
que assoberbavam o governador-geral. Não se deve esquecer, entretanto, que já então aqui estavam alguns jesuítas, aos quais, ao contrário,
a qeustão se apresentava vivíssima; eles se dispuseram a enfrentá-la,
brandindo no rosto dos colonos os atos reais favoráveis à libertação, ou
obstaculizando, por mil modos, a ação dos que favoreciam aos escravistas. E. para tanto, batiam à porta do Vaticano sempre que preciso.
Datados de 7 de julho de 1550, e 21 de setembro de 1556, foram
os decretos do Rei D. Carlos declarando livres os índios no Brasil, atos
dos quais ninguém tomou conhecimento e nem levou em consideração,
na colônia. A 20 de março de 1570. uma lei sancionada por El-Rei
D. Sebastião modificou o status quo; pois esta, posto condenando a
cativação de indígenas por meios ilícitos, terminava por permiti-la desde
que decorrente de guerra justa previamente autorizada por Sua Majestade ou pelo Governador; e, ainda, em se tratando de prisioneiros de
outros índios e destinados à antropofagia.
Considerando que os índios tinham por hábito reagir às provocações dos brancos, em regra por se verem acuados por estes e sem
saída além da explosão; considerando, por igual passo, o costume da
antropofagia em muitas nações indígenas, conclui-se que a lei de D. Sebastião trazia, implicitamente, ampla autorização para a cativação do
brasilíndio. E como por tradição, as cabildas se costumassem guerrear
com o intuito de fazer escravos, contava ainda, o invasor, com o recurso
de incitar discórdia entre aquelas, para depois, a pretexto de salvar os
prisioneiros, tomarem a estes e, de cambulhada, os livres, escravizando
a todos indistintamente.
Estava, dessarte, respeitado o contexto do ato sebastiânico.
As
demais exigências do instrumento de 20 de março de 1570 eram cumpridas como possível, ou nem isso, que as delongas e as distâncias se
encarregavam de relegar o fato ao esquecimento. ( 2 )
Apesar das facilidades conferidas pelo ato de D. Sebastião, para o
aprisionamento do gentio, os colonos não se deram por satisfeitos:
queriam total liberdade de ação. E, de tal forma reagiram contra o
ato de 20 de março, que, acovardando-se ante o clamor de seus súditos
na América, El-Rei apressou-se a expedir carta regia de 1573. ou até
antes, restabelecendo o antigo sistema dos resgates, posto que recomendando, como a imitar o avestruz quando em perigo, que: «No que toca
ao resgate dos escravos, se deve ter tal moderação, que não me impida
de todo o dito resgate, pe'a necessidade que as fazendas dele (índio)
tem, não se perm'tam resgates manifestamente injustos e a devassidão
que até agora nisso houve.» (*) Pois, sim. Seria D. Sebastião tão
ingênuo que não compreendesse, até a reação à lei de 20 de maio de
1570, que esta sua nova recomendação não passava d e . . . palavras ao
vento?
De tal importância se revestia a questão da liberdade dos índios,
que quando a carta règia de 10 de dezembro de 1572 estabe'eceu dois
qovernos para o Brasil, os respectivos titulares — Antonio Salema, da
parte Sul e Luiz de Brito e A'me'da, da parte Norte — antes de assumirem seus postos reuniram-se na Bahia, com o Ouvidor-Geral, e Padres
da Companhia, para assentarem uma ação coordenada com relação
àquela melindrosa situação. Desse encontro resultou um documento
firmado a 6 de janeiro de 1574, estabelecendo os seguntes pontos:
1». Que seria legítima a escravização do índio aprisionado em guerra
manifestamente lícita, entendendo-se como tal a guerra feita pelos Governadores, segundo seus Regimentos, ou as que os Capitães se vissem
forçados a levar a cabo precedendo, nesse caso, resolução com voto dos
Oficiais da Câmara e outras pessoas experientes, dos Padres da Companhia, do Vigário e do Provedor da Fazenda, do que se deveria lavrar
auto. 2 ' . Que também se reputaria legitimamente cativo o Índio que,
maior de 21 anos e escravo de outros índios preferisse sê-lo de cristão.
3*. Que o resgate não era aplicável ao índio manso, o qual não podia
ser, por aquele título, reduzido ao cativeiro, exceto se, fugindo da aldeia
para o sertão, estivesse ausente mais de um ano. 4 ' . Que nenhum resgate seria válido, quando feito sem licença dos Governadores ou Capitães, devendo decidir sobre sua validade os Provedores e mais dois
adjuntos eleitos em Câmara no princípio de cada ano. 5'.
Que as
pessoas que trouxessem índios de resgate, ou por mar ou por terra,
dessem dêles entrada na respectiva Alfândega, antes de qualquer comunicação com alguém. 6'. Que só seria garantida aos colonos a propriedade sobre o índio de resgate, quando registrado, tendo por livres
os que não estivessem. 7* Que os índios apreendidos em guerra que
não fosse feita nas condições estabelecidas, seriam livres. 8* Que
os infratores ficariam sujeitos à pena de açoites, multa e degredo, além
das outras a que pudessem incorrer.» ( 4 )
A lei de 20 de março de 1570 foi posteriormente confirmada por
outra datada de 22 de agosto de 1587, na qual declarava-se que os índios
que trabalhassem para os portugueses, não deviam achar-se como escravos; antes, como jornaleiros livres, a cujo arbítrio ficava trabalhar ou
não, segundo lhe conviesse. Era, com efeito, uma novidade; e, nessa
nova Lei, foi que se fundamentaram os jesuítas para se constitu'rem
protetores e defensores dos indígenas. Atos como o de 1587 mais
acirravam a luta entre os colonos e os roupetas; porque sabendo-se, como
se sabe, que nos afazeres da colonização o português não levantava uma
palha, atribuindo todo o trabalho aos escravos, conferir ao bugre arbítrio
para aceitar ou não os encargos de tais atividades, era o mesmo que
jogar pólvora na fogueira da contenda pela libertação do mesmo.
E, entre o mar e o rochedo, sofria o marisco.. .
como se pode verificar, a questão da liberdade dos índios começava
a tomar corpo, já se notando, à luz dos atos expedidos, a insegurança
da Coroa, motivada, de um lado, pela ação dos missionários e catequistas;
e, de outro, pelo comportamento rebarbativo dos colonos daquelas áreas
em que não havia suficiente lastro econômico e financeiro para a importação da mão-de-obra negra.
A 11 de novembro de 1595, uma Lei de Felipe II, derrogando a
de D. Sebastião, surpreende os colonos e, pelos seus dispositivos, provoca forte abalo no sistema anteriormente estabelecido. Ao tempo, Portugal submete-se ao jugo de Espanha. A Coroa, em tôda a Península,
é uma só. A novel legislação dispõe, para desespero dos invasores, que
daí em diante «guerra justa» só seria considerada aquela determinada
expressamente por Provisão particular de Sua Majestade, e não mais ao
talante de Governadores nem de Capitães-mores, como atè então. ( 5 )
E, como para enfrentar a agitação que tal ato motivara entre os colonos,
Felipe II, mostrando-lhes punho forte na decisão, expede Provisão a 26
de julho de 1596, confirmando a decisão do ano anterior.
Logo se
espalha a notícia por tôda a colônia de que haviam sido os jesuítas os
mentores dos atos de 1595 e 1597. com isso, cresce o ódio dos prejudicados aos loyolistas.
Mais apertada torna-se a situação para os colonos quando, sentando
no trono de Espanha, Felipe III assina Provisão a 5 de julho de 1605,
abolindo as hipóteses admissíveis de cativação dos índios, reconhecendo-os, ipso [acto, completa e inteiramente livres.
E o faz sob a
alegação de «ser assim mais fácil propagar-se a fé; porque conquanto
houvessem alguma razões de Direito para se poder em alguns casos de
introduzir o dito cativeiro, eram de tanto maior consideração as que
haviam em contrário, especialmente pelo que tocava à conversão dos
gentíos à nossa Santa Fé Católica, que se deviam antepor a tôdas as
mais; e também pelo que mais Convinha ao bom govèrno e conservação
da paz daquele Estado», que era o Brasil. E, como fuera o II, o III
dos Felipes também achou de bom alvitre confirmar seu ato, o fazendo
por Provisão de 4 de março de 1608. ( 6 )
Prova do que na colônia os ânimos continuavam exacerbados e que
pouco ou nenhuma obediência era prestada aos ditames do ato de Felipe III, é que este Monarca viu-se na contingência de voltar ao assunto
a 30 de julho de 1609, insistindo na manutenção da liberdade dos índios.
O novo instituto tornava livres, segundo o direito e seu nascimento natural, todos os indivíduos da parte do Brasil, sem distinção alguma entre
batizados e não batizados, que vivessem ainda como gentíos, conforme
seus ritos e cerimônias; e determinava, por igual passo, que os silvícolas
não podiam ser obrigados e nem constrangidos a serviços ou ao que
quer que fosse contra sua livre vontade; e que os moradores e fazendeiros que dêles se servissem, lhes pagariam seu trabalho, como a qualquer outra pessoa; que os Religiosos da Companhia de Jesus, «por serem
os mais bem aceitos dos gentíos» que dêles faziam grande crédito e
confiança, e pelo muito conhecimento que tinham da matéria, «fossem
ao sertão para os domesticar, e assegurar em sua liberdade, encaminhando-lhes no que lhes convém, assim nas coisas tocantes à sua salvação,
como nas da vida ordinária e comercial, precavendo-os dos enganos e
violencias com que os capitães, donatários e moradores costumam trazelos do mesmo sertão». Fica patenteado, nesse final, que os dirigentes
da colônia se mancomunavam com os colonos na perseguição e maltrato
ao gentío.
Prosseguia o ato de Felipe III : que nas povoações portuguesas lhes
seria guardado o direito de propriedade da mesma forma que nos bosques
.— e por nenhum se lhes tomariam suas casas, nem se toleraria que sobre
isso se lhes fizesse moléstia alguma; que o Governador, ouvido os Religiosos, aos índios que descessem da serra assinassem terras para lavrarem e cultivarem; que, uma vez estabelecidos, não pudessem ser deslocados para outros lugares, contra sua vontade, senão quando eles
bem quisessem; que se lhes ordenaria um Juiz particular (nas povoações
onde não os houvesse d'El-Rei ou dos donatários) português e cristão
velho de satisfação com alçada no cível até dez cruzados e no crime
até trinta dias de prisão; e que também se lhe ordenaria um Curador
que. sob a direção dos Padres, olhasse pelos seus interesses, quando
houvesse de ser empregados no serviço real ou particular, ou no dos
mesmos Padres, que pelo seu trabalho lhes pagariam salários como a
quaisquer outras pessoas, procedendo-se sumariamente e exclusivamente
na cobrança dos ditos salários; que sobre os índios moradores nas povoações das capitanias, não tivessem os Capitães e Donatários mais jurisdição e senhoria que sobre as outras pessoas livres, sendo-lhes absolutamente defeso lançar sobre eles quaisquer tributos reais e pessoais, anulando o Governador tudo que se praticasse em contrário e fazendo restituir os tributos ilegalmente cobrados.
A Lei de 609 ia mais longe: mandava libertar todos os índios que
se encontrassem cativos em decorrência de compra ou de preia (o que
modificava dispositivos de leis anteriores) posto permitindo aos compradores agirem contra os vendedores. Dispunha, por fim, que aos escravizadores da gente da terra fossem aplicadas as penas previstas nas
Ordenações para os que o faziam a pessoas livres, no que se deveria
proceder breve e sumariamente sem quaisquer restrições. ( 7 )
Era, com efeito, o mais largo e corajoso passo dado em prol da libertação do silvícola; por essa razão é que, conhecidos os termos de tão
magnânima lei, sobrevieram violentos protestos contra a mesma, na colônia, de que são exemplos: representação da Câmara da Paraíba datada
de 19 de abril de 1610; cartas de 8 de maio de 1610 e de 7 de fevereiro
de 1611, assinadas pelo governador D. Diogo Meneses Sequeira, depois Conde de Ericeira. E a Coroa, no caso barco a deriva, navegando ao sabor das correntes, tão logo informada das agitações advindas
do ato de 1609, não titubeou em promulgar nova lei, esta com data de
10 de setembro de 1611, fazendo reviver disposições contidas na de 11
de novembro de 1595, em detrimento dos direitos dos índios. com
isso, dava El-Rei longo passo à retaguarda.
A Lei de 1611, posto recapitulando determinações de atos anteriores, no que concerne à confirmação da liberdade do índio, dispunha,
consoante a síntese de João Francisco Lisboa, que: «sucedendo caso
que os gentíos movam guerra, rebelião ou levantamento, convocaria o
Governador uma junta composta dele, do Bispo (se fosse presente), do
chanceler e mais membros da relação e de todos os prelados que presentes fossem no lugar; e na dita junta se averiguasse se era justo,
necessário e a bem do Estado, fazer-se a guerra ao gentío, e do assento
que se tomasse, dar-se-ia parte a El-Rei com larga informação de tôdas
as causas que a justificassem, e uma vez deliberada a guerra por El-Rei,
e efetivamente feita, seriam escravos todos os gentíos que nela se cativassem . Mas se houvesse perigo na dilação até vir a decisão, a guerra
se faria desde logo, se assim fosse assentado. Todavia, os gentíos
que se tomassem na guerra assim declarada, só ficariam cativos provisòriamente, para o que seriam assentados em um livro, com declaração
dos lugares donde eram, nomes, idades, sinais e circunstâncias que se
dessem na sua apreensão, a fim de que, sendo a guerra aprovada,
ficassem também definitivamente apurados os cativeiros.
Não sendo
preenchidas as formalidades do registro, ficariam os índios livres ainda
que aprovada fosse a guerra. Desaprovando-a, porém, El-Rei, observar-se-ía a respeto dos índios provisoriamente cativos o que êle fosse
servido determinar. Mas seriam cativos os índios que estivessem presos
para serem comidos por outros que os houvessem capturado em suas
guerras intestinas, e ficariam pertencendo aos que os comprassem ou
resgatassem, o que era para remédios bem seu, e salvação de suas almas.
Se o preço da compia fôr taxado pelo Governador e adjuntos, o cativeiro durará dez anos somente, no fim dos quais ficará o dito índio inteiramente livre; se exceder, porém a taxa, ampUar-se-á o tempo da
escravidão proporcionalmente. A legalidade do cativeiro, no alegado
caso de resgate, depende de justificação, feita pelos compradores, das
circunstâncias supramencionadas, atestando as pessoas que em conformidade desta Lei podem ir ao sertão com ordem do Governador.
A mesma lei dispunha, ainda, que: «O mesmo Governador, ouvido
o chanceler, e provedor-mor dos defuntos, nomeará sujeitos seculares
casados e de boa vida, e de boa geração e abastados de bens, podendo
usar, os que lhe parecerem mais capazes para serem cap taes das aldeias
dos gentíos. Nomeará tantos quantas forem as aldeias, e por tempo
de três anos, ou mais, enquanto El-Rei não mandar o contrário. Os
capitães assim nomeados irão ao sertão persuadir aos gentíos desçam
abaixo, usando para isso de meios e palavras brandas, afagos e promessas sem lhes nunca fazer força ou mol-éstias a'guma, por não quererem vir. Cada capitão levará consigo um relig'oso, preferindo sempre
os da Companh : a de Jesus, praticados da língua, com que melhor persuada o gentío a descer. como tenham descido, o Governador os
repartirá em povoações de até trezentos casais, assinando-lhes lugar conveniente, onde possam edificar a seu modo, e a tão razoada distância
dos engenhos e matas de pau-brasil, que não possam prejudicar nem a
uma, nem a outra coisa. O ouvidor, o chanceler e o provedor-mor,
repartirá com 05 mesmos índios terras devolutas, pora as lavrarem e
cultivarem. Em cada uma de suas aldeias haverá uma igreja, e um
cura ou vigário, clérigo português, que saiba a língua, e em sua falta,
religiosos, de preferência os da Companhia. O cura residirá na aldeia,
e prestará seus ofícios aos índios, confessando-os. sacramentando-os e
doutrinando-os nas coisas tocantes à sua salvação. Outrossim, residirá
na aldeia o capitão com tôda família.» «Governá-los-á em sua vivenda
comum, e comércio com os moradores. Promoverá a cultura das terras,
e o ensaio das artes mecânicas. Apresentá-los-á ao Governador quando
forem necessário ao real serviço.
Dá-lo-á para o serviço particular,
pela taxa geral que para todo o Estado do Brasil fôr estabe 1 ecida pelo
Governador de acordo com o chanceler da Relação.» «Fiscalizará a
exatidão dos pagamentos, não consentindo que sejam lesados.
Será
juiz dos índios, esforçando-se pelos compor. Terá alçada civil e no
crime já declaradas na lei anterior; e no que exceder dará apelação para
o ouvidor da capitania; e déste haverá, se também exceder, para o provedor-mor dos defuntos da relação do Estado; o qual será o juiz de
tôdas as ape'açôes que houver das causas dos índ-os, e as despachará
com adjuntos, como se pratica nos mais feitos. Terá regimento, ordenado pelo governador de acordo com o chanceler e o provedor-mor, o
qual logo se há de pôr em execução, não obstante ficar dependendo de
aprovação regia. No regimento se determinará o modo e ordem que
hão de guardar o capitão e o cura no governo temporário dos índios,
bem assim como os ordenados que hão de vencer, pagos à custa dos
mesmos índios, e não da real Fazenda.» ( 8 )
Sobre a lei que se vem de referir, Perdigão Malheiro diz que: «Os
colonos haviam assim conseguido a vitória, abrindo-se novo lugar à escravidão dos índios; o interesse pecuniário e metálico, a pretexto de
paz do Estado. .. e mais b^m dos miseráveis que por tal sorte se pretendiam civilizar e cristianizar — levou de vencida a causa da justiça,
da humaNºdade e da verdadeira religião, aliás bem ju'gada na anterior
Lei de 1609. Em vez de progresso, foi um passo altamente retrógado,
como a experiência veio confirmar.» ( 9 ) Tem-se, porém, a impressão,
de que quando devidamente informado das fraudes às suas ordens, ElRei não se quedava indiferente. Por exemplo, no regimento dado ao
Ouvidor-Geral das Capitanias do Rio de Janeiro, Espírito Santo e São
Vicente, com o distrito das Minas, Bacharel Amancio Rebelo, datado
de 5 de junho de 1619, Sua Majestade mandou — item V — tirar devassa «dos culpados em fazer entradas no Sertão e Patos, a resgatar
gentio, e o venderem contra minhas ordens.» ( 10 )
No Regimento para o capitão-mor do Maranhão, Antonio de Albuquerque, datado de 22 de março de 1619, lê-se o seguinte: «O negócio
de mais consideração e importância para a dita conquista do Maranhão
se poder conservar em paz e quietação como a experiência tem mostrado
é o bom tratamento que se faz aos índios sem os agravar nem escandalizar de maneira que oprimidos e obrigados de nossas sem razões se
alevantem e afastem de nossa obediência e amizade. E assim devem
procurar êle capitão-mor e adjunto de guardar em tudo igualdade e
justiça aos ditos índios não lhes tomando seus mantimentos, mulheres
e filhos ou consentindo que lhes torne constrangimento a servidão alguma
contra sua vontade ou as que a que como gente livre deve em razão
de Vassalos a Sua Majestade porque do contrário sucede gravíssimos
inconvenientes, e desordens e porquanto em seu informado que neste
particular se tem procedido com grande devassidão na dita conquista,
encomendo, e encarrego muito a eles capitão-mor. e adjunto que em
nenhuma maneira tal consinta nem ponha tributos ou darios alguns aos
ditos índios resgatando somente com eles os seus mantimentos e outras
coisas no modo em que se permite com verdade e inteireza guardando-lhe
e fazendo guardar em tudo inviolàvelmente.» «6. E porque só assim
de continuarem índios buscando motivos, e causas frivolas e de pouco
fundamento rompem com eles em guerra, hei por bem que nenhuma se
possa dar daqui em diante sem primeiro preceder a causa e rompimento
da parte dos mesmos índios e serem ê!es os que nos provoquem, e antes
que assim se faça a dita guerra a justificação por outros com as pessoas
religiosas que andarem na dita conquista declarando as razões e motivos
porque se dá a dita guerra, e os que houve a parte dos índios que na
dita guerra se tomarem serem e ficarem sempre forros, e como tais
se revendicarem das pessoas em cujo poder estiverem se procederá contra
eles capitão-mor e adjunto, e contra as mais pessoas que forem culpadas
nesse caso por ser mui prejudicial, e contrário ao serviço de Deus e de
Sua Majestade.» «7. E havendo acontecido que semelhantes guerras
se tenham dado eles capitão-mor e adjunto procurarão sobre os índios
que delas se trouxeram, e os porão em sua liberdade para fazerem de
si o que quiserem como forros que são tirados das pessoas em cujo poder
estiveram e querendo contudo alguns dêles ficar com as tais pessoas
servindo-as voluntariamente por suas soldadas os registrarão nos livros
onde se registram os índios forros da dita conquista para se saber como
o são declarando o nome do tal índio, e da pessoa com quem está para
a todo o tempo constar de sua liberdade.» (11)
Em 1625, chega ao Maranhão o Capitão-mor Baltazar de Souza
Pereira, para governá-lo, trazendo a incumbência, em um dos capítulos
do seu Regimento, de liberar todos os índios que se encontrassem escravizados. Tentou agir; mas o clima que se formou no Maranhão,
e no Pará, contra dita ordem, levaram-no a sustar a execução da mesma,
até que a corte se pronunciasse. Enquanto isso, pela mesma época,
Bento Maciel Parente, terrível preador de índios, arrasava várias cabildas no extremo-norte. E, enquanto no Norte se tentava providência
daquele alcance, posto obstada pela ação dos colonos, no Sul, a 9 de
março daquele mesmo ano, bandeirantes de São Paulo, repartidos em
quatro corpos, atacavam as Missões entre o Uruguai e o Paraguai, (12)
com o objetivo de prear índios. Dai o decreto de 18 de setembro de
1628, que mandava proceder contra moradores de São Paulo que iam às
aldeias dos índios reduzidos pelos jesuítas do Paraguai, e os cativavam,
levando-os para vendê-los .como escravos. (13) . . .
A carta regia datada de 5 de outubro de 1628 dizia que: «Neste
despacho vai um papel, sobre as moléstias e agravos que se diz que
os índios do Brasil, Maranhão e Pará, recebem dos Portugueses, e o
remédio com que convirá atalhar a eles: — ordenareis que se veja na
Mesa da Consciência, e tomadas as informações necessárias acerca do
que se deve prover, fará melhor execução da Lei, e ordens dadas, tocantes à liberdade do gentio, se consulte o que parecer, ordenando desde
logo que os Clérigos que no Maranhão e Pará se ocupam em ensinar
os índios, sejam primeiro examinados, e aprovados, para que conste que
concorrem neles as partes e suficientes necessárias. — Cristóvão
Soares». (14)
No Rio de Janeiro, a revolta ante a proibição de escravizar gentio
foi de tal ordem, que a 13 de setembro de 1623 o prelado da cidade,
D. Lourenço de Mendonça, descobre um barril de pólvora debaixo de
sua cama. com mecha que ia ter à rua, atentado que foi atribuído a
negociantes de escravos índios, irritados com a oposição que lhes fazia
o prelado. (15)
Não termina, aí, a luta entre perseguidores e defensores dos índios;
entre adeptos e não-adeptos da escravidão dos íncolas. A Lei de 10 de
setembro de 1611 vigora até 1648. Durante mais de trinta anos o
bugre sofre desenfreada perseguição dos preiadores, acobertados estes
pelas facilidades que a referida Lei lhes oferta. É quando um Alvará,
este datado de 10 de novembro de 1647. seguido de dois outros, expedidos, respectivamente, a 5 e a 29 de setembro de 1649, dispuseram que
sendo livres os índios, como fora declarado pelos reis de Portugal e
pelos Sumo Pontífices, não houvesse administradores e nem administrações (previstas na Lei de 1611) para os mesmos; e que estes, ao
gozo de sua liberdade, pudessem servir e trabalhar com quem lhes parecesse e melhor os remunerasse. (16)
Pelo que ficou dito, posto de modo superficial, já se pode concluir
dos incômodos com que se deparavam os exploradores da colônia, para
utilização da mão-de-obra indígena, não só pelo despreparo do homem
da terra como, e sobretudo, pelos fluxos e refluxos da política de libertação e de reconhecimento dos direitos naturais do mesmo. Mas. como
também já ficou salientado, enquanto em certas áreas o colonizador se
dispusera a importar africanos, como nas de plantação de cana e de
fabricação de açúcar, em outras, de economia puramente extrativa, insistia êle na redução do íncola. Em razão disso, prossegue a questão.
Na Bahia, a Relação extinta em 1626 veio a ser restabelecida quase
trinta anos depois, dando-se-lhe novo Regimento com data de 12 de
setembro de 1652; e no § 21 desse instrumento, recomendava-se ao Governador proteção aos índios de paz: «não consentindo que fossem maltratados, fazendo punir com rigor quem os molestasse e maltratasse;
assim como que dessem ordem para que pudessem viver junto das povoações dos portugueses, de modo que os do Sertão folgassem de vir
para ditas povoações, obser\ando-se a lei de D. Sebasfão (a de 20 de
março de 1570) e provisoes posteriormente promulgadas.» (1T)
Voltemos, porém, ao Norte. A 14 de abril de 1655, foi expedido
por D. João IV o regimento disciplinador do governo do Estado do
Maranhão e Grão-Pará, novamente reunidos. E, em tal documento,
previa-se bom tratamento aos Índios, colocando-os ao abrigo de vexações e respeitando-se tudo que com eles se pactuasse; que se evitasse
e impedisse o comércio dêles com estrangeiros, estes já em grande
número estabelecidos naquele Estado, persuadindo-se os índios de só
comerciarem com os portugueses. E, ainda, que a repartição dos índios
fosse feita por dois arbítrios, um de escolha da Câmara e outro dos párocos e missionários, à vista de um rol organizado no princípio de cada
ano, com os nomes de todos os capazes de serviço, e dos moradores
em condições de recebê-los, de maneira que a repartição fosse tão perfeita e igual, que grandes e pequenos, ricos e pobres, seculares e eclesiásticos. sem exceção, ficassem satisfeitos consoante suas qualidades e
estados.
Dispunha mais o Regimento, reproduzindo preceitos de lei anterior, sobre o tempo de serviço alternado, salários, modos de pagamento,
depósitos prévios, etc.; que o prelado ou superior das missões marcaria
c tempo das entradas; que o governador lhe daria a guarda militar que
lhe pedisse, nomeando cabo dela pessoa indicada pelo prelado; que o
cabo permaneceria a serviço da missão por todo o tempo a critério do
prelado, e em nada mais interferiria, a não ser no comando militar da
força, e nem se entenderia com índios sob pena de rigorosos castigos.
Aos religiosos das missões não era permitido lavrar com índios, em
tempo algum, canaviais, tabacos, nem qualquer outra lavoura ou engenhos; o número das aldeias seria reduzido e aumentada a população
de cada uma para ao menos cento e cinqüenta casais; aos índios era
livre declarar se queriam ser vassalos ou simples aliados d'El-Rei; e,
se não aceitassem qualquer de tais condições, nada lhes deveria acontecer, contanto que, não impedissem a pregação do Evangelho; e os
índios que cometessem latrocínios e malefícios, ainda que em ajuntamentos, como bandoleiros, seriam castigados consoante a lei comum do
Reino. (18)
com o falecimento de D. Pedro IV. e a substituição de André Vidal
de Negreiros na governação do Maranhão e Grão-Pará, fatos que
ocorreram em 1657, os povos das capitais daquele Estado viram-se à
vontade para contraporem-se às decisões do rei defunto e, por igual
passo, vingarem-se dos sotainas; e, com efeito, rebelaram-se, de lá expulsando os jesuítas a 17 de julho de 1661. Vieira foi preso no Pará,
encaminhado ao Maranhão e, em seguida, deportado para Lisboa, tornando-se figura non grata à Coroa. Estendeu-se a impopularidade dos
roupetas do Pará ao Rio de Janeiro e a São Pau'o, ùnicamente pela oposição que eles faziam à cativação dos índios. ( l 0 )
A 20 de março de 1662, promulgou-se nova lei impedindo o cativeiro dos índios, salvo quando estes fossem prisioneiros de guerra e
esta declarada e levada a cabo mediante prévia licença do Governador (20) Era a hita q u e recrudescia, após a aludida vitória obtida
contra os loyolistas. A 12 de setembro de 1663, é expedida uma Provisão responsabilizando os jesuítas por abusos da lei de 1655; e, do
mesmo passo, procurando atingir frontal e principalmente o Padre Antônio Vieira. Abole o exercício da jurisdição temporal de qualquer
ordem religiosa no governo dos índios; equipara as índias às órfãs do
Reino segundo as Ordenações; permite «entradas» a qualquer tempo e
sob a direção religiosa da Ordem à qual tocasse o turno, posto o representante dessa, que acompanhasse a «entrada», não pudesse trazer para
si ou para a sua agremiação escravo algum dos resgatados, o mesmo
acontecendo com os cabos da escolta, capitães-mores, governadores e
ministros. Por fim, manda guardar a lei de 1655, mantidos os jesuítas
no exercício da missão respectiva, exceto o Padre Vieira que caíra em
desgraça: a Inquisição o condenara não só à privação de pregar e de
voz ativa e passiva para sempre, como à reclusão por tempo indeterminado numa Casa da Companhia.
Carta regia, datada de 29 de abril de 1667, assinada por D- Afonso
e que vem ter às mãos do Governador Antonio de Albuquerque Coelho
de Carvalho, mantém a lei anterior, isto é, a de 1663, alterando-a,
apenas, quanto à repartição dos índios, de maneira a não intervirem
nela os missionários das aldeias: os Juízes Ordinários é que passam
a ser os repartidores. como dita Carta Règia recomendasse ao Governador pusesse ordem nur.ia situação que se arrastava há vários anos,
Antonio Albuquerque aproveitou-se disso e acrescentou à Lei de 1663
algumas disposições da Carta Regia, com o que concentrou em suas
mãos tudo que interessasse à situação dos índios, consoante se lê da
carta datada de 3 de agosto de 1667, por êle remetida às Câmaras
do Maranhão e Pará. (21) E para dirimir dúvidas que se levantassem
sobre a execução das derradeiras leis, El-Rei expediu Carta Regia a
21 de novembro de 1673, dirigida ao então governador Pedro Cezar de
Menezes, mandando que se publicasse e cumprisse as leis de 1663 e
1667; e que só os Governadores autorizariam a eleição dos cabos das
entradas, dos repartidores, e as idas ao sertão para descer gentío.
A verdade, porém, é que na colonia, vasta e longínqua, os preiadores não davam maior atenção ao chorrilho de atos proibitóríos de cativação dos índios, inclusive descumprindo as permissões contidas em tais
atos. Leis, Proivsões, Cartas Regias, Regimentos, e t c , eram, a bem
dizer, letras mortas. Haja vista que em 1664 os Tapuias do Urubu
eram aniquilados; a 14 de fevereiro de 1676, paulistas comandados por
Francisco Pedroso Xavier, depois de destruir aldeias indígenas, chegaram a São Paulo com 4.000 índios cativos. í 22 ) Enquanto isso, o
governo da metrópole insistia em recomendar bom tratamento aos índios,
como constava do novo Regimento dos Governadores Gerais do Brasil,
fechado a 23 de janeiro de 1677.
Mas, para mais se afirmar a insegurança da Corôa, vai-se ver que
esta, no Alvará de 12 de fevereiro de 1682, pelo qual conferia monopólio a uma companhia de comércio do Grão-Pará e Maranhão, modifica, em parte, a Lei de 1680. ao permitir aos contratadores ou assentistas fazer entradas ao sertão, e ter na Capitania até 100 casais de
índios a seu serviço, contanto que os deixassem à sua custa e lhes dessem
um sacerdote para os catequizar. Proibia, ainda, que qualquer pessoa,
até mesmo o Governador, se intrometesse nesse negócio. ( 23 )
como era de esperar, a lei de 1680 provocou graves manifestações
de desagravo do povo maranhense, tanto que se fêz necessária a ida,
para aquela Capitania, do General Gomes Freire de Andrade, senhor
de extraordinários poderes, a fim de restabelecer a ordem. A tal ponto
chegou a efervescência que com um Bando datado de 18 de março de
1684. Manoel Beckman (ou Bequimão) e mais procuradores do povo
expulsam os jesuítas do Maianhão, que a 26 daquele mês embarcam
para Lisboa. (24)
O ato de Beckman restabeleceu as administrações particulares dos
índios, sob a alegação de que as aldeias, dirigidas pelos jesuítas, estavam
muito minguadas, não baixavam indígenas para o serviço dos particulares e nem os havia para as entradas no sertão; com isso, scbrevinha
o perigo de interromper-se o comércio, que aliás consistia na indústria
dos mesmos índios, e até de perder-se a sua comunicação. «Era a escravidão disfarçada que se restabelecia», segundo Perdigão Malheiro. ( 20 )
Serenados os ânimos, no Maranhão, graças à ação do General
Gomes Freire de Andrade, tornou-se possível a execução do «Regimento
das Missões»; e, bem assim, da ordem de 21 de dezembro de 1686, repondo nas aldeias e roças dos índios os missionários delas retirados por
força do levante de S. Luiz, entregando a direção daquelas, no espiritual
e no temporal, aos jesuítas e a membros da Ordem de Santo Antônio
e de outras, a quem permitia aldeiar índios. (26)
Abramos, aqui, rápido paréntesis para informar que por essa época
franceses da Guiana vinham aprisionar e escravizar índios em terras
brasílicas, levando a que El-Rei determinasse a Gomes Freire impedisse
tais entradas, prendendo, inclusive, os que insistissem na empresa. ( 27 )
Atendendo a sugestões feitas por uma junta composta do governador Artur de Sá e Menezes, Padres Superiores, Ouvidor, e Desembargadores expediu El-Rei um Alvará com data de 22 de março de 1688,
fazendo aditamentos ao Regimento, tais, como: l9, que os índios ou
índias que casassem com escravos ou escravas, não pudessem servir aos
senhores dstes, nem a seus ascendentes, descendentes, ou parentes de
2" grau por Direito Canônico, pelo dolo que nisso poderia haver; 2", que
os que fossem às aldeias com licença do Governador, a apresntariam
logo aos missionários ou diretores delas; nem se demorariam aí mais de
três dias, salvo por causa justa atestada pelos missionários; tudo sob
penas severas; 3', que nos contratos com os índios interviesse o Governador; mas com audiência do Ouvidor-Geral, quando fossem relativos à
matéria de Justiça.
Tôdas as providências para reprimir os abusos, tornavam-se inúteis
ante o inconformismo do colono com as dificuldades que se lhe opunham
para cativar índios a seu talante. De nada valeram, ainda, as cartas
regias de 15 de março de 1696 e 20 de novembro de 1699, (28) recomendando às Juntas das Missões que zelassem pelo cumprimento das
leis; e nem modificaram a situação as providências sugeridas pela referida Junta aos governos da colônia e da metrópole. com a faculdade
de resgatar e cativar, constante da lei de 28 de abril de 1688, tal foi
o abuso na violação das determinações ali contidas; e de tal forma se
generalizaram as infrações, que foi necessário um ato d'El-Rei perdoando os infratores, pois raro o morador que não estivesse incurso nas
penas da lei: o Alvará de 6 de fevereiro de 1691, assinado por D.
Pedro II.
Carta Regia de 15 de junho de 1706, mandou que os índios descidos pelas tropas de resgate, posto em cativeiro já admitido pelos missionários do distrito onde se desse o resgate, seriam submetidos novamente à Junta das Missões, no Pará, para serem segunda vez examinados acerca de seus cativeiros, e reconhecer se o Missionário fêz bem,
ou mal sua obrigação. . .», quando, no último caso, o índio seria posto
em liberdade. ( 29 )
A 5 de junho de 1715, foi expedida uma carta regia proibindo o
cativeiro injusto dos índios, coisa vaga e sem contextura que, por sinal,
não mereceu a mínima atenção. Tanto assim que apenas decorridos
menos de três anos, ou seja, a 9 de março de 1718, uma nova Provisão,
posto reconhecendo a liberdade do Gentio, recomendava e sancionava
a escravização dos que andassem nús, atropelassem as leis da natureza,
não fazendo diferença de mãe e filha para satisfação de sua lascívia,
e comerem-se uns aos outros. (30)
É admirável como a Coroa, na questão da liberdade dos índios,
decidia ora de uma, ora de outra forma. Por Carta Regia de 30 de
maio de 1708, por exemplo, El-Rei autorizava o resgate de 200 índios
para com o produto da venda dos mesmos, auxiliar-se a construção de
uma Igreja Catedral no Maranhão. ( 31 ) E, pela Carta Regia de 10
de julho de 1726, El-Rei D. João manda dizer a Rodrigo Cezar de Menezes, Governador de São Paulo, que posto reconhecendo o valor dos
Paulistas e os enormes serviços por eles prestados à Coroa, não podia
atender ao pedido daquele Governador no sentido de permitir a cativação de índios pretendida pelos mesmos Paulistas. No entretanto,
a 25 de setembro de 1727, Antônio da Silva Caldeira Pimentel, substituto de Rodrigo Cezar, baixa ato dizendo-se autorizado por Sua Majestade a permitir que «todos os moradores desta Capitania poderão cativar a todo o gênero de Gentio. . .» (32)
Quando Sua Majestade se irritava com nações indiáticas brasílicas.
mandava que se lhes fizesse guerra feroz, aprisionando-os e escravizando-os. Assim, foi, apenas para exemplificar, com os índios Paiaguá
que atropelavam o caminho para as minas de Mato Grosso; e a Provisão
de 15 de dezembro de 1728 determinou «mandar dar guerra em observância da minha lei em que dispensa lhe façam cativando-os e vendendoos em praça pública tirando os quintos para a Minha Fazenda Real
depois de satisfeita a despesa que se fizer com a tropa se repartam as
peças que sobejarem com os Cabos e Soldados dela.. . (33) E não ficou
só nessa ordem, pois outra provisão, esta de 6 de março de 1732, determinava idêntica medida. (34)
com apoio, por certo, naquela provisão de 6 de março de 1732,
é que a 1* de agosto de 1734 uma expedição partida de Cuiabá, sob
o comando de Manoel Rodrigues de Carvalho, composta de 28 canoas
de guerra e mais oitenta e tantas canoas e balsas de transporte, levando
842 homens, quatrocentos dos quais chegados de São Paulo, desceu o
rio Paraguai e derrotou uma flotilha de Guaicurus e Paiaguás, aiiados,
ficando cativos 292 indios. (35) Era a chamada «guerra justa», tantas
vêzes alegada e outras tantas autorizada contra diversas tribos.
Coube a D. José expedir a Lei de 6 de junho de 1755, mandando
observar a bula de Benedito X I V e a Lei de 1" de abril de 1680, declarando os índios do Maranhão livres em tudo e por tudo, facultandoIhes servir a quem bem quisessem, julgando-os capazes de tôdas as
honras, privilégios e liberdades, extinguindo as antigas administrações
e administradores, etc. (n) Por Alvará de 7 de maio de 1758, amp.¡ouse a todo o Brasil as disposições da Lei de 1755, acabando com o cativeiro dos índios. (37)
como, no Maranhão e no Pará, o Diretório organizado pelo Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado teimasse em conservar
resíduos da escravidão dos índios, foi expedida a Carta Regia de 12 de
maio de 1798, extinguindo o Diretório e considerando os índios de todo
livres.
Aconteceu, porém, que D. João VI achou por bem pôr as unhas de
fora: por cartas regias de 13 de maio, de 5 de novembro e de 2 de
dezembro, de 1808, a Corte, instalada no Brasil, autorizou guerra contra
os índios de São Paulo e de Minas Gerais, devendo os prisioneiros
gentios ficarem cativos por prazos que iam de 10 a 15 anos. Mas a
Lei de 27 de outubro de 1831, tornou sem efeito aquelas cartas regias,
e consolidou, definitivamente, a liberdade dos índios no Brasil. (38)
Mesmo assim, ainda havia quem se comprazesse em perseguir e
maltratar índios, como, por exemplo, aquêle Governador de Mato Grosso,
que foi censurado pelo Aviso de 15 de junho de 1850, do Ministério dos
Negócios do Império, pela violência que empregava contra os íncolas. (39)
* * *
N O T A S E BIBLIOGRAFIA
I ) Agostinho Marques Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil, 2* Parte,
pg. 27, Rio de Janeiro, 1866.
2) Artur Cezar Ferreira Reis explica o eufemismo das «guerras justas» com as
seguintes palavras:
«A guerra justa», todavia, para ser declarada, tinha de ser
precedida de um exame prévio da situação. Ouviam-se os depoimentos dos que
haviam padecido o ataque. Examinava-se o caso em si, e se se chegasse à evidência
de uma agressão ao colono pacífico, decretava-se a punição.
De tudo lavrava-se
a competente ata e se dava ciência a Sua Majestade.
Os abusos, porém, não
tinham conta.» ( . . . )
«A «justa guerra», sempre invocada, nem sempre era justa
ou quase sempre era injusta. E quando ocorria a circunstância de ser aprovada por
Sua Majestade, ouvido antes o Conselho Ultramarino, através de expediente burocrático demorado pela distância e pelo próprio emperramento da máquina administrativa, a desaprovação constituía letra morta. A guerra já fora levada a efeito e a
escravização conseqüente não se revogava. N ã o havia possibilidade de descobrir
onde pairava o índio de que se furtara a liberdade, vendido a uns e outros, como
uma mercadoria de alto preço, passando, por transferência na operação mercantil,
a possuidores diferentes.» (Artur Cesar Ferreira Reis, Tempo e Vida na Amazônia,
pg. 50, Manaus, 1965) .
3)
Perdigão Malheiro, op, cit., 2* parte, pg. 4 1 .
4)
Perdigão Malheiro, op. cit, 2' parte, pg. 42.
5) O governador D. Francisco de Souza foi que não deu maior importância
ao Alvará de 11 de novembro de 1595 que proibiu a escravidão do índio. Ao revés,
não só não se esforçou em cumprir aquele ato, como até protegeu, ajudou e fomentou
as entradas ao sertão, na esperança de que estas descobrissem minas de metais preciosos,
que era o seu sonho.
6)
Perdigão Malheiro, op. cit., 2" parte, pg. 46.
7)
João Francisco Lisboa, Obras, I, pg. 372, Lisboa, 1901.
8)
João Francisco Lisboa, op. cit., pg. 375.
9)
Perdigão Malheiro, op. cit., 2* parte, pg. 52.
10)
Coleção
Cronológica da Legislação
Portuguesa,
1613-1619, pg. 382-384,
Lisboa, 1855.
II ) «Livro Segundo do Governo do Brasil» in Anais do Museu Paulista, III,
2* parte, pg. ,93-94.
12) Barão do Rio Branco, Efemérides Brasileiras, pg. 150, Rio de Janeiro.
13) J. J. de Andrade e Silva, Coleção Cronológica da Legislação Portuguesa,
1627-1633, pg. 35, Lisboa.
14)
J. J. de Andrade e Silva, op. cit. pg. 137.
15)
Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 429.
16)
Martins Junior. História do Direito Nacional, p g .
233.
17) Perdigão Malheiro, op. cit., 2' parte, pg. 59.
18) No Regimento dado a André Vidal de Negreiros, Governador do Maranhão
e Grão-Pará, por D. João IV, a 14 de abril de 1655, constava o seguinte: « 3 . Primeiro vos encomendo as coisas da nossa Santa Sé, que procurareis com todo o cuidado
por aqueles Gentíos; entendendo que este é o negócio a que principalmente vos
enviei a esse Estado; e assim favoreceréis muito aos Religiosos e Pregadores, e a
tôdas as outras Eclesiásticas, que nele hão de tratar da conversão dos Infiéis, procurando que sejam muito respeitados dos Portugueses, e de tôda a outra gente, como
0 devido; para que com este exemplo, se movam mais os Gentíos, e sejam de mais
fruto as pregações entre eles. » ( . . . )
«8.
Os Gentios que se vierem converter, e
para isso baixarem dos Sertões, favoreceréis muito em tudo que puder ser; ordenareis
que sejam bem tratados, que não recebam vexações de meus vassalos, nem de obras,
nem de palavra, para que esta boa correspondência seja parte, para que todos julguem
de ser Cristãos, e viverem à sombra dos Portugueses; e ordenareis que a gente de
guerra, e os povoadores os não agravem, nem as suas mulheres, e filhos; porque sou
informado que são tratados rigorosamente não lhes guardando concerto, nem palavras,
de que tem resultado grandes desordens. Enquanto as coisas desse Governo não estão
mais fundadas, importa muito encaminhar os Jndios à minha obediência pelos meios
mais suaves, e seguro que possa ser.» ( . . . ) «42. Sobre a forma que é licito haver
cativeiro dos índios naturais desse Estado: mandei passar agora nova lei que se
vos envia, revogando as mais antigas, a qual guardareis vós, e vossos sucessores, e
também a farei guardar a todos tão inteiramente como nela se contêm; e fio de vós
o fareis da maneira que resulta em grande serviço de Deus, e Meu. e que tenha em
muito que vos agradecer; o que se necessário é vos torno a encomendar, e a encarregar
de novo, e que logo a receberdes, o façais.» (Anais da Biblioteca e Arquivo Público
do Pará, tomo I, pgs. 27, 29 e 42, Pará, 1902) .
19)
Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 328.
20)
José Justino de Andrade e Silva, op. cit., 1657-1674. pg. 128, Lisboa, 1856.
21)
Idem,
22)
Barão do Rio Branco, op. cíí., pg. 81 .
ibidem.
23)
Perdigão Malheiro, op. c.V., 2" parte, pg. 72.
24)
Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 165.
25) Dispunha a Lei de 1684: « 1 ' , que os moradores, ou individualmente ou reunidos em sociedades e companhias, averiguando o número de indios de que houvessem
mister para suas fazendas e serviços, e com a devida autorização do Governador,
pudessem fazer descimentos; 2º, que os indios fossem sustentados pelos administradores
e se lhes dessem as suas lavouras; 3", que para as entradas iria sempre um Religioso
da Companhia, ou de Santo Antônio; ao qual ficariam sujeitos no espiritual, levantando
os moradores Igreja para o culto; 4', que, no temporal, seriam livres os descidos
conforme as leis em vigor; decidindo o Governador as suas dúvidas, ouvindo sempre
o padre respectivo; 5', que a distribuição dos índios entre os moradores seria feita
na proporção do cabedal com que cada um houvesse concorrido para a entrada, descimentó e fundação da aldeia; 6', que os índios trabalhariam, por salário, uma semana
para os moradores; ficando-lhes uma semana livre para si em suas aldeias e lavouras;
7°, que não seriam obrigados a trabalhar se lhes não fosse pago o salário do mês
antecedente; 8°, que, para as entradas, só haveriam os moradores metade dos da sua
lotação, ficando a outra nas aldeias para conservação desta; 9°, que destes serviços eram
isentas as mulheres; podendo elas, se quisessem, acompanhar os maridos ou pais no
trabalho, contanto que viessem dormir à aldeia.» (Perdigão Malheiro, op. cit*, 2* parte,
pg. 73).
26) O Regime das Missões reconhecia, inicialmente, que as leis beneficiárias dos
índios haviam sido inutilizadas «pela malícia dos moradores que inventam e descobrem
novos modos de se não observarem,» razão pela qual, dispunha: 1", que os Padres
(jesuítas) tornassem ao dito Estado; 2 9 , que teriam o Governo não só espiritual, como
dantes tinham, mas também o temporal e político as aldeias de sua administração,
como igualmente se concedia aos padres de Santo Antônio relativamente às suas; com
declaração de se observarem nesse governo as leis regias, em ordem a prestarem-se os
índios para o seu serviço, sem que contudo fossem sempre os mesmos à arbitrio dos
procuradores dos índios, um em São Luiz e outro em Belém; aos quais se dariam alguns
índios para o seu serviço, sem que contudo fossem sempre os mesmos ã arbitrio dos
Padres; 4', que seriam eleitos pelo Governador sob proposta do Superior; e se lhes
daria Regimento; 5', que nas aldeias não poderiam morar senão os índios e suas
famílias, sob pena de açoites e degredo para Angola; 6', que ninguém poderia ir às
aldeias tirar índios para seu serviço ou para qualquer outro fim, sem licença; tudo sob
pena de prisão, multa e degredo para Angola; 7', que, constando que os índios e índias
eram induzidos a saírem das aldeias para se casarem com escravos, ficassem em tal
caso livres os escravos, e se mandassem para as aldeias; mas que, não constando do
induzimento, ficariam sempre os índios e, índias obrigados a permanecer nas aldeias,
embora com licença do Bispo lhes fosse lícito sair para ver o cônjuge; Outrossim
que, pela fraqueza das indias, verificando-se adultério, de que provinham graves
danos às aldeias, o Ouvidor Geral tirasse devassa (por exceção à lei geral em contrário
sobre tal crime) em cada ano, punindo com degredo para Angola o adúltero e a
adúltera (caso o marido não a quisesse receber) como parecesse mais benignamente à
Junta das Missões; 8°, que os padres tivessem muito em cuidado o aumento das povoações Indianas aldeias, por ser isso conveniente não só à segurança e defesa do Estado.
mas às entradas nos sertões e serviço dos moradores; 9°, que igual cuidado tivessem
de descer dos sertões novas aldeias de indios, persuadindo-os no trato e comércio
dos colonos; 10', que, para evitar engano no comércio e serviço dos índios, seriam
os preços dos gêneros taxados pela Câmara com assistência do Governador, Ouvidor
Geral, e Procurador da Fazenda; e os salários pelo Governador com assistência dos
Padres da Companhia e de Santo Antônio, ouvidas as Câmaras; de que tudo se
deveria lavrar assento; 11', que os salários seriam pagos metade no começo e o resto
no fim do serviço; 12', que se criassem dois livros para matrícula dos Índios capazes
de servir, a saber: de 13 a 50 anos de idade; 13', que dêles se iriam eliminando os
falecidos e incapazes de servilo; e seriam reformados bienalmente; 14', que a repartição
dos índios se fizesse por tempo de seis meses para Belém, e de quatro meses para São
Luiz (podendo permitir-se até seis); derrogada nesta parte a lei de V de abril de
1680; 15', que a repartição seria em duas partes, e não mais em três (como fora ordenado), ficando uma das aldeias, enquanto a outra ia ao sertão; 16', que os Padres da
Companhia não seriam contemplados nessa repartição por assim o haverem eles
pedido, dando-lhes o Governador, em compensação, para os seus serviços ou das
aldeias de Pinaré e Gomaré, ou de outras que pudessem (em falta) descer, com
a condição de não servirem aos moradores; 17', que para cada residência dos Padres
em distância de 30 léguas de São Luiz e Belém, o Governador daria 25 índios; que
nas outras residências só poderiam servir os das aldeias próximas; 18', que a repartição
dos índios pelos moradores seria feita pelo Governador, e em Sua falta pelo Capitãomor com assistência de duas pessoas eleitas pela Câmara, do Superior das Missões,
e Párocos das aldeias, sem que nelas fossem contemplados o Governador e tais pessoas;
expedindo-se licença aos moradores para irem às aldeias receber os do seu quinhão;
19', que atenta a falta de índios nas aldeias de repartição, e tendo os moradores
necessidade de ir ao sertão por motivo do comércio, determinado que fosse o número
de índios necessários para os acompanharem, apenas metade se tirasse das aldeias ditas,
c os outros das outras aldeias mediante o salário taxado; contemplados também os
moradores que tivessem escravos próprios, visto a necessidade de ficarem, estas nas
fábricas e o perigo de fugirem nos sertões; 20', que algumas índias poderiam ser repartidas. a salário, pelos moradores, para fazerem a farinha quando fosse tempo apropriado, e lhes criarem de leite os filhos, a arbítrio dos Missionários; 2 1 ' , que as
aldeias fossem de 150 vizinhos, na forma do Regimento dado ao Governador; exceto
quando se compuzessem de nações inimigas, caso em que dentro do distrito das residências poderiam ser estabelecidos em pequenas freguesias; 22', que os índios descidos
de novo seriam isentos de servir por dois anos, por ser necessário este lapso de tempo
para serem doutrinados na fé (primeiro motivo de sua redução) e para fazerem suas
raças e se acomodarem à terra; antes que se arrependessem por causa do jugo do
serviço; que a respeito de todos os índios descidos se deveriam religiosamente observar
os pactos que os mesmos se fizessem no sertão pelos missionários por ser isto conforme
a fé pública, fundada no Direito Natural Civil, e das Gentes; que se não quisessem
os índios descer, mas se mostrassem inclinados a observar a fé de Cristo nos seus
sertões, os Padres se estabelecessem nas aldeias nos mesmos sertões de modo o mais
cômodo — porque não permite a justiça que sejam tais homens obrigados a deixar
as terras que habitam — quando não repugnam ser Cristãos, e além disso é conveniente que as aldeias se dilatem pelos sertões para que se possam mais facilmente
penetrar e se tirem as vantagens pretendidas; 23', finalmente que os Governadores
dessem aos Missionários todo o auxilio, ajuda e favor para a sua segurança nas
estradas nos sertões, e para mais fàcilmente fazerem as missões; que, outrossim, a
Junta das missões, ã qual se daria Regimento, fizesse cumprir e executar fielmente o
presente Regimento. — Junta das Missões — do Maranhão e Pará; que efetivamente
aí funcionou. — (Extraído do Regimento das Missões para Redução do Gentío, do
Estado do Maranhão e Pará ao Genfio da Igreja, e Repartição do Serviço dos Índios
que depois de Reduzidos Assistem nas Aldeias, tirado de um manuscrito quase ilegível
por Perdigão Malheiro, op. cit., 2? parte, pgs. 76-79) .
27)
Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará. I. pg. 84. com relação a holandeses, veja-se a carta à p g . 111. Veja-se, também. Virgínia Rau e
Maria Fernanda Gomes da Silva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval
Respeitantes ao Brasil, I, p g . 320, Lisboa 1955.
28) Melo Moraes, Corografia, IV, p g . 129.
29) Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, I, pg. 125.
30) Martins Junior, op. cit., pg. 277. — Em seu preâmbulo dizia a Provisão:
Acedendo às representações do Governador e tendo em vista os pareceres das Juntas
sobre descimentos de índios para abastecer as aldeias, e as lavouras e fazendas dos
moradores, e para a defensa do Estado, livrando-os sobretudo da barbaridade em que
vivem, devorando-se uns aos outros; sobre consulta do Conselho Ultramarino foi decretado: 1', que, quanto aos descimentos voluntários dos índios que, a instâncias e
diligências dos Missionários, se quisessem de'xar conduzir e reduzir, tratados, não
como escravos, mas como livres, não podia haver dúvida que fossem lícitos; 2", que,
quando, aos descimentos [orçados, precedendo ameaças ou força, podia haver escrúpulo
porque — estes homens são livres e isentos da minila jurisdição (dizia El-Rei) que
os não pode obrigar a saírem de isuas terras para tomarem um modo de vila de que
eles se não agradam, o que, se não é perigoso cativeiro, em certo modo o parece pelo
que ofendo a liberdade'.. Contudo, se estes índios (continua a Provisão) são como os
tapuias bravos, que andam nús, não reconhecem Rei nem Governador, não vivem
com modo e forma de República, atropelam as leis da natureza, não fazem distinção
de mãe e filha para satisfação da sua lascívia, comem-se uns aos outros, sendo esta
gula a causa injustíssima de suas guerras, e ainda fora dela os excita a frecharem os
meninos e inocentes, neste caso será permitido fazê-los baixar à força e por mêdo para
as aldeias, por ser isto conforme à opinião dos Doutores sobre a matéria; com as duas
limitações referidas na mesma lei a saber: 1", que se não façam tanto à força que
hajam mortes, exceto quando se torne indispensável ju^ta defesa pela oposição dos
mesmos índios; 2', que, se depois de aldeiados, fugirem para viverem bárbaros com
ofensa das leis da natureza, possam ser constrangidos a voltar, sem que sejam mortos,
e não se entende cativos os que voluntariamente tornaram.» (Perdigão Malheiro, op. cit.,
2» parte, pg. 86) .
31)
Perdigão Malheiro, op. cit., 2* parte, pg. 88.
32)
Documentos Interessantes, X V I I I , pg. 201 e X X V I , pg. 3 2 .
33)
Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, X X X V , pg. 221 .
34)
Barão do Rio Branco, op. cit., pg. 146.
35)
Idem, pg. 355.
36) «que os indios, como livres e isentos de tôda a escravidão, podem dispor
de suas pessoas e bens como melhor lhes parecer, sem outra sujeição temporal que não
seja a que devem ter às minhas leis, para à sombra dela viverem na paz e união cristã,
e na sociedade civil, em que, mediante a Divina Graça, procuro manter os povos, que
Deus me confiou; nos quais ficaram incorporados os referidos índios, sem distinção
ou exceção alguma, para gozarem de tôdas as honras, privilégios e liberdades de que
os meus vassalos gozam atualmente conforme as suas respectivas graduações e cabedais.» (J. Barbosa Rodrigues, Exploração e Estudo do Vale do Amazonas, Rio Ta'
pajoz, pg. 128, nota, Rio de Janeiro, 1875) — A Lei de 6 de junho de 1755, no seu
preâmbulo dizia: « . . . mandando examinar pelas pessoas do meu Conselho e por outros
Ministros doutros e zelosos do serviço de Deus e meu, e do bem comum dos meus
vassalos, que me pareceu consultar, as verdadeiras causas com que desde o cobrimento
do Grão-Pará e Maranhão até agora não só se não tem multiplicado e civilizado
os índios daquele Estado, desterrando-se dele a barbaridade e gentilismo, e propaqando-se a doutrina Cristã, e o número dos fiéis alumiados da luz do Evangelho, mas
antes pelos todos quantos índios se desceram dos sertões para as Aldeias, em lugar
de prosperarem e propagarem nelas de sorte que as suas comodidades e fortunas servissem de estímulo aos que vivem dispersos pelos matos para virem buscar nas povoações pelo meio das felicidades temporais o maior fim da bemaventurança eterna,
unindo-se ao Grêmio da Santa Madre Igreja, se tem visto mui diversamente, que, havendo descido muitos milhões des índios, se foram extinguindo de modo que é muito
pequeno o número das povoações e dos moradores delas, vivendo ainda estes poucos
em tão grande miséria que, em vez de convidarem e animarem os outros indios bárbaros a que os imitem, lhes servem de escândalo para se integrarem nas suas habitações
silvestres com lamentável prejuízo da salvação de suas almas, e grave dano do
mesmo Estado, nao tendo os habitantes dele quem os sirva e ajude para colherem na
cultura das terras os muitos e preciosos frutos em que elas abundam: — «foi assentado
por todos os votos, que a causa que tem produzido tão perniciosos efeitos consistiu, e
consiste ainda, em se não haverem sustentado eficazmente dos ditos índios na liberdade
que a seu favor foi declarada pelos Sumos Pontífices e pelos Senhores Reis, meus
predecessores», observando-se no seu genuíno sentido as leis por eles promulgadas...
«cavilando-sc sempre pela cobiça dos interesses particulares...»
Conseqüentemente
dispôs-se: l 9 , que os índios são livres em tudo e por tudo, conforme a lei de l 9 de abril
de 1680, que se mandou observar; 2'', que não houvesse mais administrações, nem
administradores; sendo facultado aos índios, como livres que são, servir a quem bem
quiserem, na forma da lei de 10 de novembro de 1647; 3 9 , que como tais ficariam
sujeitos às leis por incorporados aos confiados ao governo de El-Rei, e hábeis, como
os outros súditos, sem distinção nem exceção alguma, para tôdas as horas, privilégios
e liberdades; 4 9 , que a respeito dos então possuídos como escravos, o mesmo se entendera, observado o § 9° da lei de 10 de setembro de 1611, com exceção somente dos
descendentes de prêtas escravas que continuarão no domínio dos senhores enquanto
outra providência se não desse; 5 9 , que, porém, para obviar os abusos que esta exceção
poderia criar, os indios se poderiam ter por livres só pela presunção do Direito Divino,
natural e positivo a favor da liberdade; incumbindo a prova do contrário a quem
requeresse contra a liberdade, ainda sendo réu; 6', que estas questões seriam tratadas
sumariamente, pela verdade sabida, em uma só instância, e decididas em Juntas compostas do Diocesano, Governador, Superiores das Missões de Jesus, Santo Antônio,
Cario e Mercês, Ouvidor-Geral, Juiz de Fora, e Procurador dos índios; sendo necessário
pluralidade de votos contra a liberdade e bastando a seu favor o empate dêles; devendo
a apelação ser apenas no efeito devolutivo, e não suspensivo, para a Mesa da Consciência e Ordens, onde seriam tais causas decididas de preferencia a quaisquer outras;
7°, que, convindo promover a lavoura e indústria, interessando nisso reciprocamente os
moradores e os índios, o Governador, em Junta de Ministros letrados, e ouvindo o
Governador e Ministros de São Luiz do Maranhão, com acordo das duas respectivas
Câmaras, taxasse os salários ou jornais devidos aos índios conforme o preço comum
do Estado; os quais seriam pagos por férias no fim de cada semana, em dinheiro, pano,
ferramenta, ou outros objetos, como melhor parecesse aos trabalhadores; autorizada
a sua cobrança executivamente, conforme o Alvará de 12 de novembro de 1647, e
abolidas quaisquer outras taxas; 8 9 , que aos índios ficava restituído o livre uso de
seus bens, até agora impedido com manifesta violência; observando-se o § 4 9 do Alvará de 1' de abril de 1680; e conseqüentemente se deveriam erigir em vilas as aldeias
que tivessem o competente número de índios, e em lugaras as mais pequenas; reparitndose pelos mesmos as terras adjacentes às suas respectivas aldeias; sustentando-se os
Índios no domínio e posse das terras para si e seus herdeiros; e castigando-se com
todo rigor quem os perturbasse; 9". que, sendo o principal fim dilatar-se a pregação
do Evangelho e trazer os índios ao Grêmio da Igreja e sendo dificil persuadi-los a
descer as povoações, nos sertões fossem aldeiados na sobredita forma, levantando-se
Igrejas, e convidando-se missionários que os instruíssem na fé; 10', que aos mesmos
índios seria livre o seu comércio ,ainda no sertão, por convir a eles próprios e aos
moradores, cuidando-se igualmente da sua instrução civil.» (Perdigão Malheiro, op. cíí.,
2' parte. pg. 98) .
37)
Barão do Rio Branco, op, cit., pgs. 296 e 232.
38) J. Mendes Junior, Os Índios do Brasi!, pg. 5 3 . — Antes da lei revogadora
das Cartas Regias de D. João VI, em 1808, uma resolução do Senado, tomada a 3 de
novembro de 1830, sancionou Lei decretada pela Assembléia Legislativa em favor dos
Índios que ocupavam a parte oeste da estrada da Vila de Faxina à de Lajes, até então
tratados como prisioneiros de guerra.
39) Coleção Decisões do Governo do Império do Brasil, 1850, pg. 32.
GUAJARINA, FOLHETARIA DE FRANCISCO LOPES
VICENTE SALLES
INTRODUÇÃO
E
M 1914 surgiu, em Belém do Pará, uma editora que fundiu dois
campos aparentemente opostos, por que dedicados cada qual a
suprir mercado de natureza diversa e especializada: respectivamente, o
de consumo da «literatura sertaneja», ou cordel, semelhante à nordestina, e a do cancioneiro popular urbano e seresteiro, conforme o modelo
carioca.
A empresa foi iniciativa do pernambucano Francisco Rodrigues
Lopes. Denominou-se Editora Guajarina e alcançou largo prestígio
de folhetaria, concorrendo, durante várias décadas, com as mais renomadas do Nordeste.
Da biografia de Francisco Rodrigues Lopes consta que nasceu em
Olinda, Pernambuco, no dia 12 de outubro de 1883 e que faleceu em
Belém a 29 de junho de 1947. Filho de João Rodrigues Lopes e de
Guilhermina Rodrigues Lopes. Viveu na Capital paraense mais de
quarenta anos, considerando-se que se casou em Belém com Elvira Nylander e, nesta cidade, em 1907 lhe nasceu o filho Amadeu Lopes. (1)
Francisco Lopes (êle geralmente suprimia o Rodrigues) tinha sido
operário gráfico em Belém e em 1914 instalou sua primeira tipografia.
Ao lado desse negócio, começou a agenciar as editoras do Nordeste da
chamada «literatura sertaneja» — aventuras, fatos, narrações, romanceies, contos e novelas — como lemos nos seus primeiros anúncios,
historietas em versos: «Para distrair, lede as historietas em verso de
que a nossa casa é a única agência nesta Capital. Preços para tôdas
as bolsas. Grande redução para revendedores». Dessa tipografia, sairiam logo folhetos de poetas nordestinos, livros de orações, pequenas
narrativas em prosa e algumas revistas. A primeira publicação periódica parece ter sido O Martelo, jornal crítico-humorístico, de que não
temos outras notícias. Em 1919 lançou mais duas publicações: O
(1) Amadeu Nylander Lopes nasceu em Belém a 18 de abril de 1907 e faleceu
nesta cidade recentemente (abril de 1971). Foi poeta e muito colaborou nas iniciativas do pai. Dele consegui apreciável documentação.
Mondrongo, (2) também humorístico, e Guajarina, revista quinzenal,
cujo primeiro número data de 1« de fevereiro de 1919, dirigida por
Tito Barreiros e secretariada por Peregrino Júnior.
Tendo jovens intelectuais à frente dessas publicações, a iniciativa
de Francisco Lopes logrou rápido desenvolvimento. Em torno dele
girava a inteligência moça do Pará: Peregrino Júnior, Osvaldo Orico,
Jõnatas Batista, Eneida, Ernani Vieira, De Campos Ribeiro, Paulo Oliveira, Bruno de Menezes, Martins e Silva, Eustaquio de Azevedo (talvez o mais velho do grupo). Jaques Flores e Lindolfo Mesquita, muitos
dêles ainda vivos e o último também autor, com o pseudônimo «Zé
Vicente», de inúmeros folhetos editados pela Guajarina.
O Mondrongo não ficou apenas na sátira e no humorismo. Ainda
em 1919 lançou um volume de pouco mais de 100 páginas com o título
Ao Som da Lyra, contendo letras de modinhas, canções e cançonetas.
Essa publicação, réplica dos famosos livrinhos da Editora Quaresma,
do Rio de Janeiro, e de outras coleções que se imprimiam no Sul do País,
esgotou-se ràpidamente. Em 1920. ainda sob a chancela de O Mondrongo, iniciou a publicação mensal de folhetos de 8 páginas, além de
capa, contendo «modinhas», sob a rubrica «Bibliotheca d'O M O N D R O N G O » , iniciativa que teve a maior repercussão.
Mas O Mondrongo teve existência efêmera, ao passo que Guajarina. revista mundana, pretendendo ser uma publicação «moderna»,
conseguiu firmar-se. E logo se transformou na base de próspera empresa, absorvendo não só os títulos e colaboradores, mas tôdas as demais iniciativas da outra.
como tôda publicação que se inicia, Guajarina expôs o seu programa no editorial de apresentação, intitulado «Em vez de profissão
de fé . . .», talvez redigido por Peregrino Júnior:
«Aqui está uma revista. Aqui estamos nós enfileirados ao lado
dessa audaz legião de sonhadores que, de quando em vez, se aventuram
escrever para analfabetos. É um pecado feio neste norte extremo do
Brasil, onde só se pensa em borracha, crise e football, querer fazer um
jornal moderno. Não é que esta boa gente esteja convencida, com
Fradique Mendes, de que a idéia de fundar um jornal seja daninha e
execrável, mas é que poucos sabem 1er, e os que o sabem preferem 1er,
de empréstimo a folha do vizinho.
Daí a vida efêmera que têm logrado viver as revistas malaventuradas do Pará.
Embora certos disto, porém, vimos dispostos, senão na segurança
de vencer. E por que não ?
(2) Mondrongo é termo pejorativo com que se designa, no Pará, o português
(Cf. Peregrino Júnior, A Mata Submersa), figura satirizada pelos nossos humoristas
e contadores de anedotas, o que também era comum na imprensa caricata do Pará,
como podemos ver na coleção da Revista Paraense, editada em 1909 pelo major Pindobussu de Lemos e outras congêneres.
Não trazemos na bagagem o tradicional calhamaço de programa . ..
Era-nos excusado trazê-lo.
O nosso fim ? como seremos ? Entre um sorriso e uma ironia,
verão sempre a «Guajarina», elegante, delicada, inofensiva.
O nosso título é singelo e fácil, o nosso fim alegre e bom.
Seremos, no torvelinho desta vida agitada e frivola de cidade, o
periódico moderno, leve, galante, fino, esvoaçante, brejeiro que, num
afã bisbilhoteiro incansável, tudo vê, tudo escuta, tudo diz . .. um
zumbido suave de vespa, uma alfinetada inofensiva, um olhar indiscreto
talvez.
E lá se vai a figurinha delicada da «Guajarina», que entra no
salão, passeia na avenida, freqüenta o cinema, aparece nos teatros,
anda nos bondes . . . Murmurando segredos nos ouvidos aristocráticos
das damas, ferroando levemente a pele espessa dos cavalheiros, adejando alada como um madrigal em volta das moças, fazendo rir as
crianças e os velhos . .. Sem veneno, mas com graça, irá por aí afora
esvoaçante e ligeira como uma borboleta; tagarela e boêmia como uma
cigarra, gentil e volúvel como um beija-flor. A um contará uma breve
e palpitante novela de amor, a outro revelará um segredo curioso, a
todos sempre risonha e breve narrará o que ocorrer na cidade, fará a
crítica ligeira e incisiva da vida, da arte, da sociedade. E, assim lã
irá a «Guajarina», de quinzena em quinzena, gozando o aconchego
macio das mãos patrícias da mulher paraense.
E, basta !»
A revista, conquanto vitoriosa e muito interessante — pois reuniu
a juventude intelectual da época — foi suplantada pela editora. com
a revista, a Guajarina passou a distribuir um suplemento com o título
Modinhas, formato de folheto de cordel, com 8 páginas, contendo cinco
ou seis poesias, i.é, letras de canções populares. Colecionados em separado, formam hoje vastíssima coleção.
Essas publicações constituem capítulo à parte, e da maior importância.
Era o mesmo folheto — de «modinhas» — cuja publicação se iniciou em 1920 para constituir a «Bibliotheca d'O M O N D R O N G O » .
A coleção representa capítulo à parte, e da maior importância, sem dúvida, relativamente ao movimento editorial de Belém no setor musical,
pois se trata apenas da publicação de textos poéticos, as «letras» daquelas canções seresteiras muito em voga no momento. Interessam, e
muito, à história da música popular brasileira.
*
*
*
Francisco Lopes, assim como editava «modinhas», passou também
a publicar a chamada «literatura sertaneja», o cordel propriamente dito,
atividade editorial igualmente pioneira. Num e noutro setor, o sucesso
foi imenso. Belém vinha de um passado de glórias artísticas e estava
povoada de seresteiros. A grande crise da borracha impediu a continuação daquela espécie de orgia de arte, que tanto movimentou seus
teatros e salões, mas não freou o gosto popular pela música ligeira.
Ainda se espalhavam, pelos bairros, os famosos conjuntos de «pau-e-corda», réplica quase perfeita dos conjuntos cariocas de «choro». Havia
também um teatro popular muito ativo, onde predominavam revistas,
burletas e outros gêneros de espetáculo musicado. Esse teatro tinha
seu ponto alto durante os festejos nazarenos, no mês de outubro.
Seresteiros havia em tôda a parte. Alguns pontificavam com imensa popularidade: Juvenal Gomes, Dico Rocha, Edilberto Domont, Teodomiro Cantuária, entre os locais mais festejados; o carioca Alfredo de
Albuquerque; o baiano Frontino Santiago; o potiguar Luis Santa Cruz,
famoso por suas canções e pelo violão que sabia tocar como ninguém,
proprietário do «Bar Kean», centro da boêmia intelectual e artística de
Belém de outróra; violões famosos como os de Aluísio Santos, Bem-Bem,
Pedro Mata Fome, Tó Teixeira; e tantos outros.
Havia também um grande mercado consumidor de poesia ou da
literatura popular em verso praticamente inexplorado. Depois da migração em massa da mão-de-obra nordestina para os seringais e as
lavouras amazônicos — a lavoura especialmente ao longo da ferrovia
(hoje extinta) bragantina e os seringais estendendo-se aos mais distantes rincões da planície — a grande crise reteve na Capital paraense
muitos dos que pretendiam voltar à terra natal e estavam despossuídos
de meios. É preciso assinalar, porém, que muitos nordestinos não se
endereçaram diretamente aos seringais e às lavouras. Permaneceram
nas capitais (Belém e Manaus). Esses sertanejos urbanizados formaram, em Belém, alguns bairros típicos, tais como o dos «alagoanos» e o
dos «cearenses» (cearenses ainda habitam grande parte dos «covões»
de São Brás e adjacências da estação da extinta Estrada de Ferro de
Bragança, agora transformada em estação rodoviária). Não há notícia
de bairro de «pernambucanos», «paraibanos», «riograndenses do norte»
etc, embora tenha havido considerável migração destes. De interesse
histórico e/ou sociológico, aparecem apenas os bairros de negros (o
Umarizal), alagoanos e cearenses, pelo caráter de segregação — não
muito rígida, tanto que se fundiram lentamente — observável num certo
período em que se formaram na Capital paraense esses grupos solidários
social e culturalmente.
A grande vitalidade desses bairros sempre se manifestou através
das tradições populares, tornando Belém de outróra um caleidoscópio
vivo, fàcilmente retratável. Infelizmente, a cidade não encontrou cronistas e/ou ficcionistas à altura do fenômeno, que lhes perpetuassem
a fisionomia, naquele exato momento, de sorte que hoje há poucas recordações. Os escritores paraenses «esqueceram» pràticamente essa extraordinária motivação; alguns buscaram cenários distantes para comporem seus ensaios naturalistas, como se prova com a Hortensia, de
Marques de Carvalho. Esqueceram-na no momento em que deveriam
retratá-la. Há algumas exceções, sem dúvida, e uma delas é o romance
O Gororoba, de Lauro Palhano, e poucas mais que precederam a obra
cíclica de Dalcídio Jurandir.
Mas onde havia certa nucleação mais ou menos homogênea de nordestinos, deveria haver também poetas sertanejos. E, de fato, muitos
dêles residiram em Belém. Isto será demonstrado depois.
*
*
*
Estas considerações preliminares, já um tanto longas, julgamos necessárias para compreender o «fenômeno» da Guajarina e o sucesso de
Francisco Lopes, na sua ascensão de manipulador de tipos e caixotins
para editor-proprietário da mais popular e fecunda empresa editorial,
especializada em folhetos, que existiu na Capital paraense com irradiação para todo o extremo norte e nordeste. A larga repercussão de seus
folhetos, o grande consumo de literatura popular, em verso ou prosa,
atestado pelas numerosas e sucessivas edições, estão exigindo estudo
mais profundo do que o que tentamos agora motivado apenas pelo desejo de chamar a atenção dos estudiosos para este caso singularíssimo.
Abordaremos a seguir os dois aspectos que julgamos mais importantes nas atividades desse editor, sem desmerecer os demais.
CANCIONEIRO POPULAR URBANO
Ao Som da Lyra, no gênero de publicações que nos interessa focalizar, foi certamente o primeiro volume editado por Francisco Lopes,
ainda sob a chancela de O Mondrongo. A literatura do intròito assim
o apresenta:
«Vendo que ainda há em o nosso meio muito gosto por
essa junção da música com a poesia, por excelência as duas
artes verdadeiras, — pois a primeira enleva vibrando, e a segunda vibra enlevando — por essa junção, dizíamos, mais vulgarmente denominada M O D I N H A ; e mais: havendo já recebido, não um, mas inúmeros pedidos referentes à publicação
do livro que a leitora vai dar-nos a honra de 1er, resolvemos
colecionar as mais novas e mais belas produções do gênero,
e publicá-las enfeixadas em um volume.
Eis porque está este livro humilde recebendo o confortante e velutíneo afago das mãos esguias da leitora amável.
Que todos recebam AO SOM DA LYRA, o nosso livrinho, com o mesmo sentimento de gratidão com que uma princesinha recebe um diamante não lapidado das rudes mãos de
um mineiro ousado, que para buscá-lo penetrasse aventurosamente o âmago do globo e enfrentasse, estoico, os maiores
perigos, e eis o que desejamos das nossas melindrosas e dos
nossos encantadores romeunizados.
E é o quanto basta.»
Francisco Lopes, pouco depois, muda a orientação de seus negócios.
De editor de revistas humorísticas se transforma em editor de livrinhos
de canções populares, folhetos de modinhas e de literatura de cordel,
divulgados como «suplemento» Guajarina. Lançava-os de início quinzenalmente. Em 1932 passou a fazê-los semanalmente. Houve época
que tal era o consumo de folhetos, que os lançava dois, três, ou mais
no espaço de uma semana. Da Rua Nova de Santana, onde começou
a publicação da revista, estabeleceu-se depois na Manuel Barata nº 64;
em 1929 mudou-se para a Padre Prudencio Nº 17 e o editor abriu loja
no Mercado de Ferro (Ver-o-pêso) e contratou agente em Manaus; em
1931, com os negócios já bastante ampliados, mudou-se novamente para
a Manuel Barata nº 99; por fim, instalou-se na Trav. Padre Eutíquio,
onde ainda hoje outros proprietários a mantém sob nova razão social.
O conteúdo dos folhetos da série Modinhas também se transforma
radicalmente — e essa mudança reflete os fenômenos que influíam e
determinavam a criação artística popular brasileira. No início, reproduzia com freqüência peças dos compositores locais e muitas modinhas
anônimas. Era o repertório clássico dos nossos seresteiros e dos artistas-cantores de companhias mambembes que faziam sucesso nos palcos
paraenses, em especial na quadra nazarena. Depois, por influência do
disco, o repertório começou a diversificar-se e a constituir-se quase inteiramente da produção carioca e, nos últimos tempos, também estrangeira, por influência do cinema sonoro. Contam que as letras eram
tiradas diretamente dos discos, por audição. Essa história parece ser
verídica, já que as letras divergem, confrontadas com os textos originais,
tanto na ortografia e pontuação, como, muitas vêzes, nas palavras e na
própria construção de frases, talvez por deficiência de audição ou quiçá
da reprodução sonora.
De 1920, data do lançamento do primeiro folheto de «modinha»,
até 1942, quando compulsamos o último, portanto no espaço de 22 anos
consecutivos, Francisco Lopes editou nada menos de 846 folhetos. Elaboramos o catálogo dessas «modinhas», compulsando a coleção pertencente ao Dr. Alceu Mariz, que, infelizmente, não é completa (soma
apenas 392 folhetos). Nossa pequena coleção serviu apenas para preencher algumas lacunas e grande parte do catálogo foi reconstituída
graças às relações quase invariavelmente publicadas na contracapa dos
folhetos, à guisa de propaganda. Não foi possível estabelecer a data
precisa da circulação do primeiro folheto, em virtude de só encontrarmos
a 9* edição, provavelmente de fins de 1921, e os vários seguintes também encontrados em segundas, terceiras edições. Não obstante, possuímos os folhetos ns. 6 e 10, ainda editados sob a chancela de O Mondrongo e que nos permitem fixar o lançamento da série no ano de 1920.
É curioso que o editor, familiarizado com o cancioneiro popular,
tenha denominado genèricamente «modinhas» a heterogênea coleção.
Na realidade, há muito poucos exemplares de modinhas propriamente
ditas; compõe-se, sobretudo, de valsas, sambas, maxixes, tangos, marchas carnavalescas, foxs, enfim todo o tipo de canção popular urbana,
Capa
e
O
TROVADOR.
Volume
(Col.
II, Belém. 1930
Vicente Salles).
do follicto publicado
Belém, cm 1929 (Col.
pela editora Guajarina,
Dr. Alceu Mariz)
i
Suplemento lançado em
(Col.
Vicente Salles)
1934
A capa do Volume I de «Lyra do Cantor» (suplemento da Guajarina, Belém, 1932)
apresenta o
curioso detalhe da ornamentação «estilo marajoara»
(Col. Dr. Alceu Mariz)
Suplemento lançado em janeiro de
(Col.
Vicente Salles).
Capa do 1º
fascículo da série 'Violão,
(Col.
Vicente Salles)
(1» [ase,
1934)
1939
Capa do '7º fascículo da série «Violão» (2ª fase, 1948),
sob a direção de N. A. Souza (Co!. Vicente Salles)
Série lançada em 1947, Edição de Guajarina, propriedade
de N. A. Souza (Co!. Vicente Salles)
Capa do folheto de J. Costa e Silva «História
de Guajarina a Rainha das Florestas», Belém, s.d.
(Col.
Vicente Salles)
1ª
página
«História
do folheto de João Alves Moreira,
do Dr. Sabe Tudo», Belém, s.d.
(Cot.
Vicente Salles)
1ª pàgina do folheto de Aitino Alagoano,
«O Corcunda de Notre Dame», Belém, 1941
(Col.
Vicente Salles)
Capa do folheto «História de José do Egypto»
(Completa). Belém, s.d.
(Col. Vicente Salles)
vulgarizada pelo disco e depois pelo cinema sonoro. Desde 1921, faz
intensa divulgação no Pará da mùsica carnavalesca carioca. Muitos
exemplares são inteiramente dedicados ao gênero. A palavra modinha
no frontispicio dos folhetos encadernados parece ser assim bastante
arbitrária.
Ao lado da série de folhetos de 8 páginas, Francisco Lopes continuou a publicação de outras coleções mais volumosas. Em 1929 lança
a série Ao som da lyra, o mesmo título do volume publicado pelo O
Mondrongo, em 1919, como anotamos. Estes volumes aparecem anualmente e, em 1934, a série alcança o nº 6, sempre com o subtítulo: «Coleção de Modinhas e Canções Brasileiras». Paralelamente, publicou de
1929 a 1935 O Trovador (9 volumes), contendo as «últimas novidades
musicais». Seguem-se: Lyra do cantor, cujo primeiro volume apareceu
em 1932 e o último (não numerado) em outubro de 38; O Violão, lançado em dezembro de 1932 e que também alcançou 6 volumes e, por
fim, a série Cantor Brasileiro, iniciada em dezembro de 1938 e que
alcançaria 11 volumes, o último lançado em maio de 1946.
A guerra de 1939-45 trouxe dificuldades para o editor e a publicação de folhetos se torna muito irregular. Ainda em 1946, cessando
a publicação da série Cantor Brasileiro, confessava êle as dificuldades
de obtenção do papel, o que restringia notavelmente suas atividades.
Porém, no final desse ano, reaparece a série O Violão e logo a seguir
outra série denominada Serenata. Nos carnavais de 1946 e 1947 apareceram numerosos folhetos contendo o repertório em voga.
Anotamos que, em 1929, foi lançado o volume intitulado Cancioneiro do norte (apareceu outro em 1936), com este sugestivo subtítulo:
«coleção escolhida do que se canta no Pará». O volume, de 145 páginas, contém 85 letras selecionadas dos repertórios de alguns cantores
populares e outras selecionadas do repertório do Jazz-Band City-Club,
que era, no momento, a mais importante orquestra de salão em Belém,
dirigida pelo violinista e compositor santareno Isaías Oliveira da Paz.
A apresentação do Cancioneiro do Norte é outra peça de inestimável
valor :
« u m sentimento de amor às trovas e trovadores nos fêz
editar as trovas que aí vão. como sabemos todos, os livros
deste gênero que aparecem, vêm do Sul. Parece que o Norte
é mudo.
Entretanto, quanta coisa bonita a gente canta por aqui !
Quão inúmeros e aplaudidos os nossos trovadores ! E vós
mesmas, leitoras jovens, — quanta beleza sai vocalizada das
vossas gargantas pássaras e amenas ! E que emoção serena
quando cantais as nossas trovas, as canções regionais, da autoria dos bardos mais conhecidos, e que encerram a vibratilidade da natureza nortista, ora impetuosa, ardente, quase
brusca como as águas revoltas da Guajará raivosa, ora suaves,
mansas como o deslisar sereno da mesma Guajará quieta; ora
nevoentas como as nossas manhães de inverno, ora coloridas
como a policromia das velas pandas das nossas canoas tão
ligeiras.
Tudo isso nos forçou à edição déste Iivro, agora que a
cidade tôda está cheia de excelentes cantadores brasileiros e
artistas outros de renome.
E nestas circunstâncias, deveras confiados no êxito da
nossa empresa, depomos, com respeito e com afeto, o C A N C I O N E I R O DO N O R T E em vossas mãos, diante dos vossos
olhos, submisso às vossas gargantas de ouro e de cristal.
E sabemos que melhor paraninfo não teremos para o nosso
esforço, do que a mulher patrícia, na serenidade da sua graça,
como na serenidade do seu todo encantador e forte, enamorado
e lindo !»
Assim, mais uma vez, com lisonjas à mulher, o esforçado editor
prometia-lhes as trovas, as canções regionais, da autoria dos bardos
mais conhecidos etc. Entretanto, quem procurar nessas páginas — tão
evocadoras de nossa terra são as palavras do editor — «as canções
regionais» — vai ter enorme decepção. Todo o repertório dos nossos
cantores — Cantuária, Juvenal Gomec de Abreu, os Curingas (cearenses e que só cantavam coisas do sertão nordestino), Dico Rocha, Georgina Lima — aqui representados no Cancioneiro do Norte, é todo êle
de música popular urbana carioca . . . de Sinhô, Pixinguinha, Francisco
Alves, Ari Barroso, Lamartine Babo, Vicente Celestino, Cândido das
Neves ! A única exceção é mesmo o repertório dos irmãos Curinga,
mas eles nada recordam a paisagem guajarina raivosa ou quieta. A
ausência quase completa do cancioneiro nortista — mesmo no repertório
de Juvenal Gomes de Abreu, talvez o mais notável desses cantores e
que, aliás, tinha bom número de modinhas e canções regionais — não
justifica nem o titulo, nem o prefácio da publicação. Dos poetas regionais aparecem, quando aparecem, «paródias» sobre aquelas mesmas
músicas dos compositores populares do Sul. Especialistas em «paródias» foram, entre outros, Arinos de Belém (pseudônimo) e Ernesto
Vera. Estão ausentes os compositores e letristas regionais: o Elmano
Queiroz, o Cirilo Silva, para falar apenas nos dois mais fecundos e
inspirados. Também ausente está Edilberto Domont, outro cantor de
repertório vastíssimo de modinhas e canções regionais, já bastante conhecido na época.
Contudo, a busca nas coleções — em especial na grande série de
Modinhas, 846 folhetos — não será de todo improdutiva. Além dos
inúmeros compositores e letristas regionais, anotamos cerca de 40 modinhas e canções anônimas só encontradas, até agora, em nossas buscas,
nas edições da Guajarina, depois de compulsar demoradamente as coleções de Melo Morais Filho, Joaquim Norberto, Brito Mendes e as diversas edições da Livraria Quaresma, do Rio de Janeiro e de José Vieira
Pontes (Livraria Teixeira), de São Paulo. Temos aqui a matéria-prima
para a elaboração do futuro cancioneiro popular paraense, na parte que
incluir as modinhas e canções seresteiras em geral.
As coleções da Editora Guajarina têm portanto considerável importância. Podem mesmo considerar-se um dos mais valiosos documentários do cancioneiro nacional. Contribuíram, além disso, para dar certa
unidade às criações populares, numa relação dialética entre o nacional
e o regional, na época em que eram outros os meios de comunicação
de massa e os homens desconheciam praticamente a máquina. Mas não
eram menos ativos e cabe destacar ainda o papel importante e tão pouco
estudado do teatro popular, o chamado mambembe, dos cantores característicos (Alfredo de Albuquerque, Os «Geraldo») e dos circos que
ainda, durante muito tempo, concorreram como o fonógrafo, o cinema e,
por fim, o rádio.
E assim no meio da avalancha de compositores cariocas, vários nomes locais se incluem: Emílio Albim, Raimundo Pinto de Almeida, Travassos de Arruda, Cirilo Silva, Tó Teixeira, Edilberto Domont, Elmano
Queiroz, Gentil Puget, Valdemar Henrique e outros mais todos eles
simultaneamente influenciados pelo regional e pelo nacional. O minucioso estudo da obra que produziram nos levará a resultados surpreendentes.
LITERATURA POPULAR EM VERSO
O Pará não possui a tradição da cantoria, do desafio ao som da
viola, em porfías poéticas infindáveis, como ocorre com freqüência nos
sertões do Nordeste. Os cantadores populares cultivam outros gêneros,
alguns romances e baladas, «chulas atrevidas» ou «desfeiteiras», sem
aquêle cunho peculiar do canto improvisado e memorizado narrador de
estórias extensas e novelescas, como as que circulam impressas nos livrinhos de cordel. O desafio aparece, quando aparece, no boi-btumbá, mas
tem outro caráter e outro sentido: é coletivo, dele participando todo o
grupo, e não individual, entre dois contendores, como o nordestino.
Tôda tentativa de aproximação, neste sentido, será certamente exagerada.
Mas houve a transmigração em massa de nordestinos para os seringais e as lavouras amazônicas. O homem espalha cultura: crenças,
costumes, tradições. Assim, cantadores se aventuraram nas plagas amazônicas, tangidos do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Piauí, Alagoas etc. E como essa migração criou um mercado consumidor de
poesia em potencial, a chamada literatura de cordel também se espalhou
largamente na planície.
Famosos poetas populares do Nordeste tiveram sua experiência na
Amazônia e lá encontraram motivos para poetar e pelejar. Das primitivas levas de cantadores que se estabeleceram no Pará, Romeu Mariz
documentou a presença de paraibanos e cearenses, aí por volta de 1908.
O poeta e jornalista paraibano chegou a surpreender esses cantadores
batendo-se em desafios, dando-nos noticia dos encontros nas crônicas
que publicou na seção «Casos da Rua», de «A Província do Pará»,
depois reunidas no livro intitulado Chronicas sertanejas (Belém, Imprensa Of. do Estado do Pará, 1908) . No livro, as crônicas aparecem
com o título «A Musa Sertaneja» e estão divididas em duas partes.
Na primeira, trata dos cantadores José Raulino e Chico Carnahuba, os
quais, acossados pela seca, vieram dar com os costados na Capital paraense. Raulino era do Icó (Ceará) e Carnahuba era do Catolé .do
Rocha (Rio Grande do Norte) . Fizeram-se amigos em Fortaleza e
dali saíram juntos para Belém, «indo arranchar-se ali em Canudos, na
barraca de João Cearense».
Narra o cronista a acolhida que o cearense João deu aos emigrantes: «Vosseis aqui tão ca vida ganha, rapaziada. Cantado de viola
é passo que aqui Nºura ai e muita gente apreceia», disse João Cearense
aos seus hóspedes, e acrescentou: «Quando fizé uma boa lua, nós dá
aqui um samba pr'a esses bestaião do Pará vê cumé qui home canta».
O samba logo se realizou e deve ter sido assistido pelo cronista,
que tudo documentou, transcrevendo o desafio dos cantadores nordestinos. É uma peça mal conhecida, em virtude da pequena circulação
do livro, hoje rarissimo. Infelizmente, a documentação se destinava a
preencher crônica de jornal, daí terem sido publicados apenas alguns
trechos do desafio.
Na segunda crônica, Romeu Mariz registra a chegada a Belém do
cantador paraibano Zé Maria, apelidado Pafaíma (vários cantadores
assim se apelidaram), em virtude do belo timbre de voz, informando
ainda que era o cantador mais popular e respeitado nos sertões e brejos
paraibanos. Esta segunda crônica é bem mais informativa e extensa,
nela reproduzindo Romeu Mariz copiosa produção de Patativa, além de
narrar sua vida e as peripécias de seu desembarque no Pará, onde foi
reconhecido pelo cafuso Mané Paraíba, ali estabelecido e que, diz ainda
Mariz, forçou o destino do famoso cantador: Patativa pretendia subir
o Amazonas, «ditriminado a dêxá a viola e me dana a trabaiá». Mané
Paraíba lhe propôs: «Apois Zé Maria você num tá dêreito não, home.
Se você subesse cantado de viola cumé aperciado aqui, você num dizia
isso não. Sarte, sarte e vamo lá pr'a nossa casa qui im poucos tempo
você tem dinheiro aí pá dá eu pau».
Patativa ficou realmente em Belém e Mané Paraíba tratou do encontro do seu conterrâneo com o cantador Carnaúba. O que se realizou
também está documentado por Romeu Mariz. De Patativa são os versos, cantados após esse desafio, e que têm sido largamente repetidos:
«Seriam mió qui o céu
Paraíba e Ceará,
Si chuvesse cuma chove
Na cidade do Pará».
Outro documentário sobre a existência de cantadores nordestinos
em Belém deu-nos o folclorista José de Carvalho no livro O Matuto
cearense c o caboclo do Pará, também impresso em Belém (1930).
José de Carvalho narra seu encontro com outro Patativa, Antônio Gonçalves da Silva, através do seguinte repente:
JC — Você, que agora chegou
do sertão do Ceará
me diga que tal achou
da cidade do Pará ?
P
— Quando eu entrei no Pará
achei a terra maior
vivo debaixo de chuva
mas pingando de suor.
Fato marcante, na crônica da poesia e da música populares, foi o
concurso entre tocadores de viola e violão promovido em novembro de
1916 pelo matutino «O Estado do Pará», ao qual concorreram muitos
poetas. O concurso consistiu em três partes: l 9 , desafio entre cantadores, de improviso; 2', verificação do melhor executante de violão; 3 ? ,
escolha da mais bela modinha brasileira, na letra e música, exigindo-se
que ambas fossem criações originais dos executantes.
O cego Aderaldo também esteve no Pará e diz, em suas memórias,
que em Belém conheceu muitos cantadores, porém, o mais afamado, que
emendou a camisa com êle, foi o índio (sic) paraense de nome Azuplin
— personagem talvez criada pelo imaginoso cantador — desafio datado
por Aderaldo de junho de 1919, na cidade de Bragança. Após descrever a viagem de trem, pela região bragantina, o poeta recorda o encontro com o cantador paraense — que tocava instrumentos típicos da
região:
«Eu perguntei: — Meu senhor !
Será algum rio-grandense
Ou mesmo um paraibano,
Ou um cantor cearense ?
Êle disse: — Não senhor,
Ê um cantor paraense ...
Quando findei a palavra
Vi o paraense chegar,
Êle trazia consigo
uma viola e um ganzá,
E trazia um tamborim,
Que é instrumento de lá ...
Êle afinou a viola,
Quando bateu no ganzá,
Deu um tom no tamborim
Para o baião entoar,
Eu tirei a rabequinha
E fiz a prima chora. . .»
e o ceijo deu início ao desafio que terminou sem vencedor, cordialmente.
Aderaldo coloca Azuplin em lugar de honra e o desafio deixa-nos algumas dúvidas sobre sua autenticidade. Folcloristas bragantinos consultados a respeito — entre eles o Prof. Armando Bordallo da Silva
— desconhecem a existência desse poeta — ainda por cima «índio» —
que teria pelejado em alto nível com o famoso cantador cearense.
*
*
*
A iniciativa de Francisco Lopes de implantação da pequena indústria de folhetaria na capital paraense encontrou assim condições muito
propícias. Logo a coleção da Guajarina, também neste setor, alcança
apreciável repercussão e se estende ao Nordeste, através de seus agentes. A irradiação da editora era tal que seus folhetos podiam ser adquiridos em Manaus (Amazonas); Rio Branco e Xapuri (Acre): Santarém, Marabá ( P a r á ) ; São Luis, Caxias, Amarante e Icatu (Maranhão); Teresina e Parnaíba (Piauí); Fortaleza e Joazeiro (Ceará);
Natal (Rio Grande do Norte) e Campina Grande (Paraíba). Ao
mesmo tempo, Guajarina agenciava editores nordestinos de literatura
sertaneja. A grande maioria de seus lançamentos era de literatura
popular em verso, anunciados como desafios, narrações, contos, aventuras, fatos, romancetes, novelas e pelejas.
Embora não se dedicando exclusivamente ao gênero, a Guajarina
especializou-se contudo na publicação desses folhetos e foi, seguramente, a mais importante editora no extremo Norte. Não temos dados
precisos para determinar a data das primeiras publicações de literatura
sertaneja, mas, em 1920, já temos no folheto nº 11, da coleção de «modinhas», um catálogo enumerando 35 títulos: História do Valente Villeia e o Alferes, O Diabo e o Soldado, Batalha de Olivciros com Ferrabcaz. História de Juvenal e Leopoldina, A Lâmpada Maravilhosa,
História do Grande Roberto do Diabo, A Morte do General Pinheiro
Machado, Casamento e Divórcio da Lagartixa, História da Donzela
Theodora, A Chegada do Dr. Lauro Sodré no Pará, O Leão na Jaula
(Antônio Silvino), Allemanha nadando sobre o mar de sangue, A Guerra do Brasil com a Alemanha, O Mal em paga do Bem, Peleja do Cego
Aderaldo com o Zé Pretinho, A Vida do Seringueiro, Peleja de Manoel
do Riachão com o Diabo, O Rio de São Francisco, O Brazil na Guerra,
História da escrava Izaura, O Príncipe e a Fada, O Govèrno e a Lagarta contra o fumo. História de Pedro Cem, O Torpcdeamento do vapor «-Macau». A Mulher Roubada, Echos da Pátria, Branca de Neve
e o Soldado Guerreiro, Historia de
Govèrno, Peleja de Bernardo Nogueira
que falou, o Cantor da Borborema, a
«Uberaba», A Sorte dos Náufragos do
Tito Silva e As Promessas do
com o Preto Limão. A Menina
Grande Guerra, o Naufrágio do
«Uberaba», A Morte do Poeta.
Em 1922 eram catalogados 45 títulos e os folhetos se dividiam de
acordo com o número de páginas: 16, 24, 32, 40 e 48. Acrescentavam-se, entre os novos títulos, a Peleja do Cego Aderaldo com o Jaca-molle, a Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum (talvez
reedição com título mais completo), A Sorte dos Náufragos, folheto
de Ernesto Vera, A Festa dos Bichos ou aventuras d'um porco embriagado, Peleja de João Peroba com o menino Perico, A Mulher e o Imposto, Desafio do Cego Aderaldo com Zé Francalino, O Escravo do
Diabo ou o afilhado de Santo Antônio, todos de 16 páginas; História
de Zezinho e Mariquinha, de 24 páginas; Princesa Pedra-Fina, de 32
páginas- História de João de Deus e o Diabo Negro, de 40 páginas; A
Rosa do Adro, A força do Amor, A Vida de Canção de Fogo e O Boi
Mysterioso, de 48 páginas.
A simples leitura dos títulos nos informa da penetração da literatura popular em verso nordestino na Amazônia, através de seus maiores
poetas, entre eles Leandro Gomes de Barros, e dos temas mais versejados naquela área. Mostra da importância do folheto como meio de
comunicação é a versificação dos acontecimentos mais recentes, como
a guerra européia e o envolvimento do Brasil no conflito. Já então
aparecem também folhetos com assuntos locais. A rápida evolução da
folhetaria não pode ser demonstrada senão através da multiplicação dos
títulos, já que as sucessivas reedições não eram sequer datadas. Mas
a editora se mantém rigorosamente em dia com os acontecimentos e, cm
1930, a revolução, que estourou em outubro, teve logo, no mesmo ano,
o folheto consagrador: A Revolução Vitoriosa, que se anunciava como
«interessante poemeto da grande revolta que derrubou o poder civil,
para renascimento melhor de um Brasil de Ordem e Progresso».
Além de publicar a obra de numerosos poetas nordestinos, desde o
grande Leandro Gomes de Barros, com dezenas de títulos na coleção,
aos poetas mais modestos — entre os mais editados: Aitino Alagoano,
Tadeu de Serpa Martins, Luiz da Costa Pinheiro, Tomás Félix de Souza Pinho, Orlando de Almeida Santos, Raimundo Castilho e Silva, Apolinário de Souza, Ernesto Vera etc. — Guajarina possibilitou o aparecimento de poetas paraenses também dedicados ao gênero, entre os quais
ficou famoso o hoje ministro do Tribunal de Contas, Lindolfo Mesquita, que assinou, com o pseudônimo Zé Vicente, algumas dezenas de
folhetos, quase todos de conteúdo histórico, social e político: A Batalha da Alemanha contra a Rússia, O Brasil rompeu com eles, A Guerra
da Itália com a Abissínia, O Macaco Revoltoso, o Rapto Misterioso do
Filho de Lindbergh, Santa de Coqueiros etc.
Guajarina também se dizia editora exclusiva do saudoso poeta sertanejo Firmino Teixeira do Amaral e a única de modinhas no norte do
Brasil. Ela pôs em prática variado sistema promocional que incluia até
a troca de cartões por coleções encadernadas de folhetos. Seus anúncios são, às vêzes, engraçadíssimos. Em 1929 era anunciado O Gaio
de Botas como curiosa novela de um gatinho que elevou seu dono ao
apogeu da glória. Outros anúncios curiosos:
— «única editora das obras do saudoso folquilorista (3)
Firmino Teixeira do Amaral e dos aplaudidos poetas Apolinário Souza, Thadeu de Serpa Martins e outros»;
— O Crime da Maia: «narração, em verso, do horrendo
crime praticado em São Paulo e cujo enredo com tôdas as
minúcias foi visto na tela num dos cinemas de Belém»;
— Peleja de Chico Ray mundo com Zé Mulato: «interessante desafio caipira, original do poeta humorista paraense
Zé Vicente, de engenhoso enredo emocional»;
— O Matuto que não quer ser eleitor: «história em verso
de um matuto que embora lhe dessem tôdas as nações do
mundo e tôdas as riquezas, preferiu ser tudo na vida, menos . . .
eleitor»;
— Peleja de João Barreira com Zé Buraco: «no gênero
«pé de viola» é daquelas de prender a atenção do ouvinte ou
deleitar durante muitos minutos de intensa curiosidade. Tem
a tirada interessante...»;
— «O Padre Cícero, o manda-chuva do Joazeiro, fêz uma
vez um milagre. E Apolinário Souza aproveitou o milagre
para fazer uma história engraçadíssima».
Além das estórias tradicionais do Nordeste, geralmente inspiradas
na literatura européia medieval, os folhetos narram as proezas de Lampião, ainda vivo, de Antônio Silvino, os feitos extraordinários do Padre
Cícero e muitas pelejas. Havia também, como já referimos, de caráter
político, os relacionados com as guerras européias e a fase do Estado
Novo, e, naturalmente, assuntos regionais, fatos acontecidos no Pará
e em Belém. O catálogo de Literatura Popular em Verso (Tomo I ) ,
editado pela Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro, 1961) inclui 36
folhetos editados pela Guajarina, 8 anônimos e os restantes assinados
pelos seguintes poetas: Aitino Alagoano ( 1 ) , Firmino Teixeira do Amaral ( 4 ) , Leandro Gomes de Barros ( 3 ) , Arinos de Belém (4), Floriano
Nabuco de Campos ( 1 ), Antonino Geofre ( 1 ), Thadeu de Serpa Martins ( 5 ) , Raimundo Castilho e Silva (1), Apolinário Souza (2) e Zé
Vicente ( 6 ) . Num só dos catálogos divulgados pela Guajarina, e que
temos em nossa coleção, enumeram-se nada menos de 140 títulos.
(3)
Grifado, como no original.
CONCLUSÃO
Francisco Lopes, assim como deu sentido genérico à palavra «modinha», também encontrou interessante vocábulo para designar certo
tipo de folhetos: «románcete», significando certamente «pequeno romance», ou seja os folhetos de proporções mais reduzidas. A sua produção, conhecida dos especialistas em literatura popular em verso, como
Peregrino Júnior, Umberto Peregrino, Cavalcanti Proença, Eneida e
tantos outros, não mereceu ainda estudo minucioso, com referência local.
Alguns dados informativos, com transcrição de textos, encontramos na
obra de Umberto Peregrino Imagens do Tocantins e da Amazônia (Rio
de Janeiro, 1942, págs. 49-78), especialmente no capítulo que trata da
«Feira Literária» do Ver-o-Pêso. A ela também se refere o citado
catálogo da Casa de Rui Barbosa e, na «Antologia», a transcrição integral do folheto Casamento e Divórcio da Lagartixa, atribuído a Leandro Gomes de Barros e que já aparece no catálogo da Guajarina de
1920.
com a morte de Francisco Lopes, em 1947, a tipografia passou para
outras mãos. O sucessor imediato foi N. A. Souza, que continuou a
publicação de algumas séries de folhetos, como a de sucessos carnavalescos, lançou a segunda fase de o Violão (valsas, sambas, canções)
e iniciou a série Serenata. Em 1949 a editora e suas instalações gráficas foram incorporadas à firma proprietária da Livraria Vitória, de
Raimundo Saraiva Freitas, e os novos donos desinteressaram-se por
estas publicações.
O caminho desbravado por Francisco Lopes está hoje quase abandonado. Outras editoras têm-se dedicado esporàdicamente à divulgação da literatura popular em verso, entre elas a Tipografia Sagrada
Família, de José Marques dos Santos, mas sem adquirir o caráter tão
típico e peculiar das «folhetarias» nordestinas. Mas aonde o interessado pode encontrar, em Belém, grande estoque de folhetos nordestinos
é no Mercado-de-Ferro, no «aparador» de João Oliveira, também poeta
(publicou, entre outras, A História do Boi Araçá e A História de Agamenón), cearense, nascido a 29 de junho de 1911 e que reside na Amazônia desde os 12 anos de idade, tendo trabalhado com Francisco Lopes.
Também apareceram novos poetas: João do Couto, José Cunha Neto,
Antônio de Barros, que se diz com orgulho «Poeta Paraense», e outros
que colocam assuntos palpitantes em versos, exercendo o papel de informadores das massas através do seu mais legítimo meio de comunicação — a poesia — e dando continuidade à tradição.
Permanece pois ainda em nossos dias o interesse popular pela literatura de cordel. Os folhetos continuam encontradiços em Belém, no
Ver-o-Pêso e na feira do Mercado de São Brás, poucos produzidos
localmente e a grande maioria importada do Nordeste. É a voz lírica
e sentimental do sertanejo que se enraizou na Amazônia, com sua feição
própria e sua forma às vêzes rústica, porém sempre comunicativa: o
folheto.
Registramos, para finalizar, a colaboração do Dr. Alceu Mariz,
residente aqui na Guanabara, que nos cedeu por empréstimo sua coleção de folhetos (modinhas e canções), de Clovis de Melo Salles que,
em Belém, coletou muitas peças para nosso arquivo, de Amadeu Nylander Lopes, há pouco falecido e também do folheteiro e poeta João Oliveira, que entrevistamos pessoalmente.
Além de antigas aquisições de folhetos no Ver-o-Pêso, popular
mercado de Belém, mencionamos as doações de amigos, particularmente
Eneida, Amadeu Lopes, João Oliveira e o cantador Joaquim Batista de
Sena, também poeta e editor, antigo proprietário da Folhetaria São Joaquim, de Fortaleza, Ceará.
Letras
GREGORIO DE MATTOS: OS CÓDICES
EM PORTUGAL
FERNANDO DA ROCHA PERES
A
publicação das «Obras Completas de Gregorio de Mattos» (*)
significou um fato cultural de relativa importância para uma retomada dos estudos gregorianos. Lamentamos somente que tenha sido
adiada por tempo indeterminado a tão esperada edição crítica.
Antonio Houaiss em lúcido artigo ( 2 ) assinalou as várias implicações cientificas para a feitura da edição crítica, salientando a urgência
de uma equipe para a realização da tarefa, considerando-a irrealizável
por um só indivíduo.
Entendemos que o trabalho a ser iniciado agora, com vistas a uma
remota edição crítica, será uma análise comparativa dos apógrafos existentes em Portugal e no Brasil, não com o objetivo de fixar as variantes poéticas, mas com a finalidade de determinar as produções mais
ocorrentes e a elaboração de um Índice Geral dos Apógrafos. Depois
deste estudo preliminar far-se-ia uma edição diplomática dos códices-apógrafos mais importantes.
Esta nossa preocupação com os apógrafos tem um certo sentido,
pois observamos que a recente edição das «Completas» só contou com
(1) —Gregorio de Mattos, Obras Completos. Organizada por James Amado.
Salvador, Editora Janaina, 1968. 7 v.
— Anteriores a esta edição das «Obras Completas de Gregorio de Mattos, foram
publicadas: a) Obras Poéticas: Sátiras. Organizada por Alfredo do Vale Cabral.
Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1882. v. I; b) Obras. Organizada por
Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro, Academia Brasileira, 1923/1933, 6 v.; c) Obras
Completas. S. Paulo, Ed. Cultura. 1943, 2 v.
(2) — Antonio Houaiss, «A tradição de Gregorio de Mattos» (in 1' Simpósio
de Lingua e Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro. Edições Gernasa, 1967. pp.
27/33) . Este mesmo trabalho de Houaiss foi publicado com o título «Tradição e
Problemática de Gregorio de Mattos» in (Gregorio de Matos, Obras Completas, Editora Janaina, 1968, vo. VII, pp. 1725/1734).
— De Antonio Houaiss deve ser lembrado o excelente livro Elementos de Bibliologia, Rio de Janeiro, INL, 1967, 2 v., que contém preciosas informações para
aquêles que pretendem realizar edições criticas.
os poemas dos apógrafos existentes no Brasil e copias de alguns
apógrafos portugueses, fato que comprova a frustrada pretensão de um
corpus poético compieto.
Quando de nossa pesquisa em Portugal ( 3 ) procuramos seguir as
indicações dos códices de Gregorio de Mattos e Guerra elencados por
Houaiss (*) que diz: «Quanto aos apógrafos, aqui e ali há referências
à sua existência. Ora fala-se em três, ora em catorze, ora em dezessete,
ora em inúmeros. Mas é quase certo que, entre os efetivamente localizados e os de comprovação positiva ou negativa fácil, há os seguintes:
«1) o de Évora, de que não se terá até hoje feito nenhum uso para
fins editoriais tipográficos;
2) o da Biblioteca Nacional, dito Códice D. Pedro II;
3) o da Biblioteca do Itamarati, dito Códice Varnhagen;
4) um segundo da Biblioteca Nacional, duvidoso, pois também pode
ser que seja a mera cópia fotomecânica do aqui capitulado como nº 5,
já que Afrânio Peixoto de fato doou um à Bibllioteca Nacional;
5) o da Academia Brasileira de Letras, dito Códice Afrânio
Peixoto;
6) um segundo da Academia Brasileira de Letras, duvidoso, que
seria o Códice Afrânio Peixoto II;
7) o da Biblioteca do Porto;
8) um recentemente adquirido pela Biblioteca Nacional, na gestão
de Adonias Filho, e que pertenceu a Camilo Castelo Branco;
9) o Códice Asensio-Cunha, da propriedade do professor Celso
Cunha;
10) o Códice da propriedade de um erudito português, funcionário
da Alfândega de Lisboa».
Diante deste esquema pouco claro procuramos ver se Houaiss (op.
cit., p. 29) tinha razão quando disse «que, entre os efetivamente localizados e os de comprovação positiva ou negativa fácil, há os seguintes»,
para logo após nomeá-los.
Antes de situar o resultado, ainda parcial, de nossa pesquisa, vale
salientar que James Amado ( s ) acaba de fornecer um quadro dos
apógrafos existentes no Brasil, com vários acrescentamentos.
(3) — como bolsista do Ministério dos Negócios Estrangeiros, realizamos uma
investigação em torno da vida e da obra de Gregorio de Mattos e Guerra. Sobre o
aspecto biográfico já divulgamos três trabalhos: I) «Gregorio de Mattos e Guerra:
seu primeiro casamento», (in Universitas, Revista de Cultura da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1968, nº 1, s e t . / d e z . ) ; II) «Documentos para uma
Biografia de Gregorio de Mattos e Guerra» (in Ocidente, Lisboa, 1969, v. LXXVI,
n° 373, maio); III) «Os Filhos de Gregorio de Mattos e Guerra», Publicação do
Centro de Estudos Bahianos, Salvador, 1969, nº 6 4 .
(4) — O p . cit., p . 29.
(5) — James Amado, «RelaçSo dos Códices Estudados» (in Gregorio de Mattos,
Obras Completas. Salvador, Editora Janaína, 1968, v. VII, p p . 1744/1753).
Foi-nos possível, em Portugal, localizar uma quantidade considerável de apógrafos, alguns já sumariamente apontados por Houaiss (op.
cit., p. 29) cuja noticia agora complementamos, e outros sem registro
anterior por nós conhecido. Para uma melhor descrição dos Códices
abaixo relacionados resolvemos inquirir bibliotecas e estudiosos em Portugal sobre as características dos manuscritos de referência a encadernação, dimensões, número de páginas (ou fólios), carimbos, qualidade
do papel e escrita.
Existirão outros apógrafos em Portugal, talvez dezenas, porém estes
agora anotados por nós chegam ao conhecimento dos especialistas, em
nota prévia, a saber:
Códices em Lisboa:
I — Biblioteca Nacional de Lisboa.
— «Obras /
Guerra».
do Douctor /
Gregorio
de
Mattos
e
— Secção dos Reservados, Colecção do Fundo Geral,
Códice nº 3576, antiga numeração M-3-35.
a) Encadernação: Pergaminho flexível. Na lombada vai escrito, à pena, «Obras do Do / uto (r)
/ Matto (s)». A encadernação sofreu restauração recente, que compreendeu a aposição, por
colagem, de novas folhas de guarda.
b)
Dimensões: Altura 20,1 centímetros por, Largura, 14,7 centímetros. Papel aparado.
c)
Número de páginas:
No início do volume três
fólios não numerados. A numeração das folhas
vai de 1 a 251, com falta do fólio 250.
d)
Carimbos:
Carimbo de pertence da Biblioteca
de Lisboa em diversas folhas e dentre estas, a 1,
240, 246, 251, com as armas Reais e nas folhas
50, 100, 151, com as armas da República.
e)
Qualidade do papel:
Papel de linho, avergoado
com a marca de água.
/) Escrita: Caligrafia da segunda metade do século XVII, ou inícios do século X V I I I .
II — Biblioteca Nacional de Lisboa.
-— «Obras do Doutor / Gregorio de Mattos»
— Secção dos Reservados, Colecção do Fundo Geral,
Códice 3238. antiga numeração L-3-59.
a) Encadernação:
Pergaminho flexível.
Na lombada vai escrito, à pena «Boca / do Infer- / no».
b) Dimensões:
Altura 24,5 centímetros por, Largura, 17,5 centímetros. Papel aparado.
e) Nùmero de páginas: No início do volume, duas
folhas não numeradas. A numeração das folhas vai de 1 a 142.
d) C&rknbo: Carimbo da Real Biblioteca Pública
— RBP com a Coroa Real no fólio 1.
Carimbo da Biblioteca Nacional de Lisboa nos fólios
50, 101, 126 com as armas da República, e no
fólio 142, com as armas Reais.
e) Qualidade do papel: Papel de linho, avergoado,
sem qualquer marca de água.
f) Escrita: Caligrafia da primeira metade do século XVIII, muito legível.
III — Biblioteca da
— «Muza /
emprego
Gregorio
curiozo /
Ajuda.
Protterva / Lira desonnante / Dezatinnado
/ Infelice dfsvello / Obras / Do Doutor
de Mattos / Bahia / Recolhidaz por hum
Anno de M D C C V I » .
— Códice 50 — ¡I — 2.
a) Encadernação: Em carneira parda com ferros a seco.
Na
lombada os dizeres: «Obras / De Gregorio / De Matos».
b) Dimensões: 220 mm x 160 mm. Papel aparado.
c) Número de páginas: 965 pp.
d) Carimbos: Os carimbos de pertence usados pela Biblioteca
da Ajuda e o ex-libris da « B . M . Virginis de Necessitatibus»e) Qualidade do papel: Não obtivemos informação sobre o tipo
de papel.
/) Escrita: Caligrafia do sec. XVIII, bem legível.
Códices no Porto:
I — Biblioteca Pública Municipal.
— «Obras / De Gregorio de Matos e Guerra / Natural
/ Da Cidade do Salvador, Bahia / de todos os Santos. / Feitos avarias pessoas no anno de / 1690 /
Enovamente copiadas neste volume no de / 1748»./
— Códice 1388.
a) Encadernação: Da época (Séc. X V I I I ) . Na lombada, com
cinco divisões, rótulo em carneira encadernada com: OBRAS
/ DE G R E G O R / D E M A T O S .
b) Dimensões: Exteriores: 217 x 153 mm; Interiores: 208 x
150 mm; Mancha: 185 x 114 mm. Papel aparado.
c) Número de páginas: 214 fls., sendo que 6 em branco.
d) Carimbos: Não existem. No fl. 1 (em branco), à cabeça,
aparece a assinatura de D r . Miguel Gomes Soares. Na
contra-capa o ex-libris da Biblioteca Municipal do Porto.
«Obras / do Douctor Gregorio de Ma-1 ttos e Guerra»/. Codice Nº 3.576.
Manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Seção de Reservados.
Coleção Fundo Geral.
Fólio 247.
Cesta
de
Frutas (na qual vemos vários elementos
brasileira) .
Desenho.
da
flora
«Obras / do Doucíor Gregorio de Ma-/ ttos e Guerra» /.
Manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Seção
Coleção Fundo Geral.
Segundo folio,
nao
numerado, início do
Henriques Salemas.
Códice nº 3.576.
de Reservados.
volume.
Brasão dos
Desenho.
Mirandas
¿Obras / do Douctor Gregorio de Ma-/ ttos e Guerra» /.
Manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Seção
Coleção Fundo Geral.
Terceiro
[òlio
não numerado, início do volume.
do manuscrito.
Desenho.
Códice nº 3.576.
de Reservados.
Frontispicio
e) Qualidade do papel: Do século XVIII, com vergaduras
horizontais e marca de água na linha de costura, representando uma flor de lis simples.
f) Escrita: Do século X V I I I .
II —
Biblioteca Pública Municipal.
— «Poesias / (inéditas) / de / Gregorio de Mattos
Guerra». /
— Corresponde ao códice Nº 22 do legado do Conde de
Azevedo. Códice em 2 volumes.
a) Encadernação: Vulgar, do século X I X .
b) Número de páginas: V volume: 555 pp.
2" volume: 556 pp.
c) Carimbos: Não tem. Ex-libris, da Biblioteca
Pública Municipal do Porto.
d) Qualidade do papel: Vergaduras horizontais.
Marca de água na linha de cozedura do volume, representando um escudete, com a legenda
em diagonal L I B E R T A S . Na base, fora do
escudete, as letras S . F . P .
e) Escrita: Caligrafia do fim do século X V I I I .
Códices em £?t»ora:
I — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital.
— «Obras Sacras / d o / D r . Gregorio de Mattos
Guerra / precedidas / da sua vida e morte / por /
Manoel Pereira Rebello».
— 'Códice do Inventário de cedência e entrega do Núcleo
Cimeliário da Biblioteca da Manizola à Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora, sob o n° 587, da
II Parte dos Manuscritos.
a) Encadernação: Inteira de carneira, de lombada
de quatro nervos com filetes de ouro.
b) Dimensões: 206 mm x 153 mm.
c) Número de páginas: 2 páginas sem número seguidas de 211 numeradas e mais 11 sem numeração.
cf) Carimbos: Não obtivemos informações sobre a
existência de carimbos.
e) Qualidade do papel: com marca de água constante de uma flor de lis coroada.
f) Escrita: Caligrafia do século X V I I I .
II — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital.
— «Poesias Sacras do Doutor Gregorio de
Guerra».
Mattos
— Còdice do Inventàrio de cedência e entrega do Nùcleo
Cimeliário da Biblioteca da Manizola à Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora, sob o nº 303 dos
manuscritos.
a) Encadernação: Inteira de carneira, de lombada
de quatro nervos com filetes de ouro.
b) Dimensões: 201 mm x 145 mm.
c) Número de páginas: 342 folhas numeradas recentemente.
d) Carimbos: Não obtivemos informações sobre a
existência de carimbos.
e) Qualidade do papei: com marca de água que
apresenta um escudete floreado com as letras
T C inclusas.
/) Escrita: Caligrafia do século X V I I I .
III — Biblioteca Pública c Arquivo Distrital.
— «Poesias Lyricas / de Gregorio de Mattos».
— Códice do Inventário de cedência e entrega do Núcleo
Cimeliário da Biblioteca da Manizola à Biblioteca Púca e Arquivo Distrital de Évora sob o nº 552 dos
manuscritos.
a) Encadernação: com inteira de carneira, de lombada de cinco nervos, lavrada de filetes e ornatos a ouro. Na lombada os dizeres P O ESIAS / LÍRICAS, e a indicação T. IJ.
b) Dimensões: 216 mm x 158 mm.
c) Número de paginas: 184 folhas recentemente
numeradas.
d) Carimbos: No foi. 1 lê-se Poesias Lyricas / de
Gregorio de Mattos, e em baixo a marca de
pertence em letra de tipo de carimbo lê-se o
nome Francisco de Mello Breyner.
e) Qualidade do papel: a marca de água do papel
apresenta o nome do fabricante C. & I Honnic.
f) Escrita: Caligrafia do século X V I I I .
Códice em Braga:
I — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital.
— «Coleção de poesias»
— Códice Nº 591
a) Encadernação: Pergaminho sem dizeres na
lombada.
b) Dimensões: 270 mm x 155 mm. Papel não
aparado.
e) Nùmero de páginas: 338 fólios, numerados
desde fol. 356 a 693. No final existe uma
«tábua» (índice) de dois volumes, que ocupa
13 folios nao numerados. A tábua refere-se a
dois volumes, mas na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga existe apenas um, o
qual pela numeração dos fólios depreende-se que
é o segundo.
d) Carimbos: Dois carimbos a óleo da Biblioteca
Pública e Arquivo Distrital de Braga, no primeiro e no último fólio.
e) Escrita: Do século X V I I I .
como vemos este nosso levantamento dos apógrafos de Gregorio
de Mattos e Guerra — ainda imperfeito com tôda certeza, mas dando
pistas precisas de localização e cotas — muito acrescenta ao rol elaborado por Houaiss (op. cit., p- 29) . com exceção dos códices de
Lisboa (em número de três) e ao de Braga (cm dois volumes), aos quais
o citado autor não faz qualquer referência, aqui vão constatados os de
Évora (e não o de Évora), os do Porto (e não o do Porto), sendo que
de todos estes já possuímos cópias microfilmadas.
Só não conseguimos localizar o códice que segundo Houaiss ( O p .
cit., p. 29) é «da propriedade de um erudito português, funcionário da
Alfândega de Lisboa». Estivemos nesta instituição mais de uma vez,
inclusive no seu Arquivo, falamos com funcionários e ex-funcionários e,
lamentavelmente, não foi possível localizar o tal erudito.
Vale salientar ainda que na lista dos apógrafos feita por Houaiss,
notamos uma certa imprecisão na denominação dos mesmos, pois o autor
refere-se à Biblioteca Nacional sem situá-la no Brasil, no Rio de Janeiro,
o que poderá provocar uma confusão com a Bibliotaca Nacional de Lisboa, principalmente de referência ao códice capitulado no Nº 2, pois
tanto aqui como lá houve um Pedro II, sendo que o Pedro português reinou com a presença de Gregorio de Mattos e Guerra, durante certo
período, ainda em Portugal.
Gostaríamos de informar que estamos elaborando um trabalho em
torno do Códice nº 3.576 da Biblioteca Nacional de Lisboa, Secção dos
Reservados, Colecção Fundo Geral, «Obras / do Douctor / Gregorio
de Ma-/ttos e Guerra» / (vide nossa relação: Códices em Lisboa), o
qual possui características diferenciadoras relevantes.
O que faz este Códice destacar-se dos outros? Sendo um conjunto
de poemas, como todos, este manuscrito apresenta em especial:
1)
no início do volume, três fólios, não numerados, contendo
o primeiro um desenho a pena, representando uma cesta
de flores e borboletas; o segundo outro desenho a pena
representativo de brasão, sob coroa de nobreza, e o rerceíro
2)
3)
um frontispicio desenhado a pena, em estilo da época
(barroco), com flores, pássaros, anjos, e a legenda
«Obras / do Douctor / Gregorio de Ma- / ttos e Guerra».
no fólio 230 um frontispicio do índice, desenhado apenas,
em estilo da época (barroco), com a legenda «A taboada
seguinte he de to- / das as Obras deste livro». Nos
fólios que seguem «A Taboada», no início de cada letra
do alfabeto aparece uma curiosa capital desenhada.
nos fólios 242, 247, 248, 249. 251, aparecem desenhadas
a pena cestas de frutas tropiciais e européias, flores, insetos, aves.
De pronto poderemos deduzir que a presença destes elementos tropicais (frutos, flores, aves, insetos) fornecem uma indicação de que o
desenhista, quem sabe o próprio calígrafo andou pelo Brasil, seria brasileiro ou talvez lusitano.
Todos sabem que a totalidade dos Códices de Gregorio de Mattos
e Guerra, até agora conhecidos, são fatura de copistas do século XVIII,
trabalho posterior à morte do poeta. A datação destes manuscritos tem
sido feitas com base em anotacões contidas nos apógrafos, em palpites
ou conclusões através de estudos caligráficos efetuados por algum pesquisador mais criterioso.
Este códice da Biblioteca Nacional de Lisboa, de nº 3.576, é de
suma importância pois nele aparece um dado, uma fonte para datação
não aleatória. Trata-se do brasão, já referido. Esta marca de pertença nobre permite-nos adiantar que o manuscrito foi de propriedade
dos Mirandas Henriques Salemas de um membro desta ilustre família
ibérica.
É Jorge de Moser, nosso saudoso amigo e parceiro neste estudo
sobre o Códice Nº 3.576, quem diz : « . . . penso poder atribuir a propriedade do manuscrito que nos ocupa a Fernão de Miranda Henriques
Salema, nascido em Setúbal, no ano de 1641 e falecido em Lisboa, a
7/11/1697, viúvo desde 1679».
com esta preciosa informação não será temerário dizer que este
códice poderá ser considerado seiscentista.
uma outra pista leva-nos a admitir esta fixação no tempo: o papel
empregado no manuscrito é de fabricação Genovêsa (1675/1725), e
usado na era do seiscentos, conforme consulta feita por Moser, a nosso
pedido, ao Diretor da Biblioteca Universitária de Gênova.
Claro que estas fontes (brasão e marca do papel) não afastam,
para uma datação de manuscritos, as implicações lingüísticas e filológicas
a serem levantadas por especialistas nas tentativas de fixação do documento no tempo.
Dos códices efetivamente datados e existentes em Portugal (e no
Brasil), queremos assinalar aquêle por nós levantado, e pertencente à
Biblioteca da Ajuda (vide nossa relação dos Códices em Lisboa), com
a data de 1706 no frontispicio ou fôlha de rôsto, sendo éste o manuscrito mais próximo do poeta.
De referência aos Códices da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora provenientes da Biblioteca do Visconde da Esperança ou
Biblioteca da Manizola, especialmente o códice nº 587, citado em nossa
relação no ítem I, temos a acrescentar que este manuscrito é aquêle que
foi de propriedade do bibliófilo e escritor Inocencio Francisco da Silva,
referido no seu «Diccionario Bibliographico Portuguez», Lisboa, Imprensa Nacional, Tomo Terceiro, MDCCCLIX, p. 166: «Eu possuo também dous volumes do mesmo formato, dos quaes o primeiro, de letra
dos primeiros annos do século XVIII, contém as Obras sacras e divinas,
precedidas da vida e morte do poeta pelo sobredito licenceado Rebello,
que occupa 57 pag. As seguintes até 170 são preenchidas com versos
de Gregorio de Mattos, e de págs. 171 a 214 com outros do irmão d'esté,
Eusebio de Mattos, que o collector declara ter incorporado aqui «por
não desmerecerem no estylo, e serem merecedores de egual applauso».
O tomo II de 456 pag., contém promiscuamente obras de todos os gêneros,
e repetidas algumas, que se acham no tomo I».
Inocencio Francisco da Silva foi fornecedor de manuscritos e obras
raras para a Biblioteca do Visconde da Esperança, e este códice de
Nº 587, de poemas apógrafos de Gregorio de Mattos e Guerra, traz uma
anotação apensa e escrita por Antonio Francisco Barata, bibliotecário do
Visconde, na qual diz: «Pertenceu a Innocencio Francisco da Silva, que
o menciona no Diccionario. . . ».
como se não bastassem estas provas para vincular o códice n° 587
a Inocencio Francisco da Silva, o próprio conteúdo do manuscrito é coincidente com a descrição contida no «Diccionario Bibliographico Portuguez», na p. 166, pois os poemas apógrafos de G M G aparecem até
a página 171, e desta em diante até a página 214 encontram-se as produções atribuídas ao seu irmão Eusebio de Mattos.
Todas estas colocações sobre o códice nº 587. da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora, visam trazer de novo a baila a notícia sobre a propriedade de um dos códices do Imperador D. Pedro
II, hoje pertencente à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e que teria
sido adquirido pelo monarca brasileiro em leilão da biblioteca de Inocencio Francisco da Silva.
Estes códices são aquêles que Afrânio
Peixoto ( 6 ) aponta como «adquiridos provavelmente pelo Imperador
do Brasil» quando foi do leilão dos livros daquele insigne bibliophilo:
assim, pois, esses dois códices devem ser, para facilitar as referências,
designados: Códices Innocencio — Pedro II, I e II, respectivamente».
(6) — Afrânio Peixoto — «Éditos e Inéditos de Gregorio de Mattos; (Nota
Bio-bibíiographica) in Obras de Gregorio de Mattos. I — Sacra, Rio de Janeiro,
Academia Brasileira, 1929, p. 14.
Mais recentemente o escritor James Amado ( O p . cit. p. 1747/
1749) menciona, em sua relação sob o Nº 8, a existencia de uní «Códice
Imperador de propriedade de D. Pedro 1,1, hoje na Bibl. N a c » . Éste
códice diz Amado, e os do seu rol sob os ns. 9 («Códice Imperador 2independente do anterior») e 10 («Códice Capitão Mor»), e 11 («Códice João Ribeiro»), «foram adquiridos ao espolio de Inocencio Francisco da Silva». Também o historiador Hélio Viana em artigo intitulado «A Biblioteca do Imperador» (in Revista Brasileira de Cultura,
MEC, Rio, 1970. Nº 5, p. 40-41). diz a respeito do assunto: «Se
D. Pedro II não conseguiu comprar livros e manuscritos no frustrado
leilão de Gomes de Amorim, pode adquirir peças que pertenceram ao
seu correspondente, o bibliògrafo português Inocencio Francisco da
Silva (1810/1876), no leilão em Lisboa, realizado depois da sua morte.
Nele adquiriu, sem dúvida, dois códices de poesias do famoso poeta
satírico baiano Gregorio de Mattos Guerra (1623/1693) ( 7 ), hoje
pertencentes à Secção de Manuscritos da Divisão de Obras Raras da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro».
como vemos, o códice que foi de Inocencio Francisco da Silva e
vem nominado e descrito sumariamente no seu «Diccionario Bibliographico Portuguez», p. 166, é o códice nº 587 da Biblioteca Pública e
Arquivo Distrital de Évora — que pertenceu ao Visconde da Esperança e foi adquirido a Inocencio — ou é aquêle que pertenceu ao Imperador D. Pedro II — adquirido ao mesmo Inocencio — e hoje faz parte
do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Somente uma
análise mais detalhada e realizada por especialistas poderá resolver a
questão. Por enquanto achamos que a prova mais evidente é aquela
anotação do bibliotecário do Visconde da Esperança, apensa ao manuscrito, que diz: «Pertenceu a Innocencio Francisco da Silva, que o menciona no Diccionario.. . » . O códice descrito de modo tão sumário por
.Inocencio deu lugar a que Afrânio Peixoto cogitasse ter sido um daqueles comprados «provavelmente (o grifo é nosso) pelo Imperador do
B r a s i l . . . », e a que vários pesquisadores e autores palmilhassem a mesma
senda.
(7) — Não entendemos porque o historiador Hélio Viana ainda apresenta estas
datas para nascimento e morte de Gregorio de Mattos e Guerra.
AUGUSTO MEYER
CARLOS D A N T E DE MORAES
E
MBORA já o conhecesse através de alguns artigos, somente travei
relações com Augusto Meyer em 1925. Estávamos então em pleno
Modernismo. Época eufórica, de abertura de sensibilidade e de espirito,
de receptividade aguda aos valores novos que os vanguardeiros daquela
corrente buscavam revelar e impor à literatura brasileira. Se houve aqui,
no Rio Grande, quem mostrasse uma sensibilidade ardente e vibrátil a
tôdas as manifestações literárias da hora, foi por certo Augusto Meyer.
E estaria apto como ninguém a espelhar a dualidade de tendências daquele movimento: de um lado, a procura de uma arte nova e de uma
completa liberdade de expressão, hauridas na literatura da velha Europa; de outro, corrigindo o excesso de individualismo, a aspiração de
encontrar e concretizar uma arte brasileira, contraposta ao academismo,
entranhada fundamente na matéria-prima nacional.
Discorrer sobre Augusto Meyer me é fácil e ao mesmo tempo dificil. As lembranças afetivas e a grande admiração que nutri por êle,
poderão deformar talvez a visão límpida e fiel de sua personalidade
literária. Posso dizer que, desde o começo, enxerguei nele uma criatura
privilegiada em que o cerebral agudo, forrado de cultura, se aliava, sem
contradições, com uma sensibilidade fértil, rica em matizes, ondulante
e dúctil. Jamais poderei esquecer as longas horas proveitosas que
passei em sua companhia, debatendo os mais variados temas. Não que
êle fosse um homem de fácil comunicação, um temperamento expansivo e um verbo fluente. Bem ao contrário. Era um profundo introvertido, que parecia cauteloso ao externar-se, cujos conceitos, porém,
denunciavam a sua riqueza interior e uma precoce maturidade. Seus
juízos, freqüentemente, vinham acompanhados de um sorriso, uma expressão irônica, de quem não quer assumir uma atitude de «mestre»
ou emitir opiniões definitivas. Tal modo de ser, porém, jamais lhe inibiu a admiração, o louvor, a alegria, ante o que lhe parecia valioso
e autêntico.
De que modo abordar uma personalidade literária complexa como
a de Augusto Meyer? Ante a mente evocativa, emergem o poeta, o
memorialista da infância e da juventude, o crítico, o ensaísta, o professor de literatura, o filòlogo, o folclorista. . . Mas o que me aparece
em primeira plana, numa seqüência cronológica, é o poeta de Coração
Verde. Há muitos anos passados, antes da publicação de suas poesias
completas, escrevi um estudo sob o título A Poesia de Augusto Meyer
e a Infância, o qual foi apenso, em posfácio, ao volume em questão.
Em tal estudo, tentei mostrar que a sua poesia é uma permanente
procura daquele estado virginal que emparelha o poeta, diante da
vida, à criança que a descobre embevecida e maravilhada.
Nada iguala, em Coração Verde, o sentimento da natureza. Aqui
se ouve um clamor, um grito de todos os sentidos e de tôda a gama
dos sentimentos afetivos. Em regra, imprime-se na sensibilidade da
criança uma infinidade de sensações variadas e confusas, provindas
de todos os elementos do mundo físico. Experiência primitiva e avassaladora, mas pouco lúcida, e que na maioria das pessoas, sem vida
interior, pode permanecer até o fim surda e informulada. No poeta
que descobre a natureza, porém, a sua força invade a consciência em
tumulto, ilumina-se em prodígios, multiplica-se na refração cerebral da
poesia. Entre o poeta e as árvores, as ervas, as águas e o sol, já não
há estranheza ou separação. Voltou a identificar-se com eles, tal como
na infância, mas a experimentar lìricamente, conscientemente, a volúpia
dessa maravilhosa identificação,
Volúpia de gozar as sensações,
de sentir junto a mim o coração da terra,
no seu trabalho milenario e silencioso,
como se eu fosse longamente uma raiz profunda. ..
(«Sombra verde»)
Tôda a minha alma em névoas, tôda a minha alma
perdeu-se
nas águas claras,
nos capões verdes,
na areia branca dos veios de á g u a . . .
(«Raiz nova»)
A obra-prima de Coração Verde é, sem dúvida, «Serão de Junho»,
versos de sete sílabas, em forma de romance popular. A sensação aguda
e deliciosa do vento gélido que revoluteia três dias, assobiando nas
frinchas e arrepiando as carnes, vem do fundo longínquo da infância
e encontra ali um intérprete magistral. Duas das melhores peças que
compôs têm a mesma origem: o «Minuano» dos Poemas de Bilu e a
versão em prosa poética de Literatura e Poesia. Os temas regionais,
para Augusto Meyer, constituem uma agreste matéria de que a sua
sensibilidade, sem desfigurar a feição nativa, tira partido pessoal. Nada
aí fica restrito ao ambiente regional, às suas limitações pitorescas ou
episódicas, porque se universaliza na imaginativa lírica e nas intenções
subjetivas. Disto o melhor exemplo será a «Oração ao Negrinho do
Pastoreio», inserta na plaqueta Duas Orações. Ali a matèria folclòrica
se enriquece nas tonalidades pessoais com que o poeta, apoderando-se
do tema, faz transparecer, numa verdadeira descoberta lírica, a sua
significação eterna
Eu quero achar-me, Negrinho!
(Diz que Você acha tudo.)
Ando tão longe, p e r d i d o . . .
Eu quero achar-me, Negrinho!
a luz da vela me mostre
o caminho do meu amor,
Negrinho, Você que achou
pela mão da sua Madrinha
os trinta tordilhos negros
e varou a noite tôda
de vela acesa na mão,
(piava a coruja rouca
no arrepio da escuridão,
manhãzinha, a estrela d'alva
na voz do galo cantava,
mas quando a vela pingava,
cada pingo era um clarão)
Negrinho, Você que achou,
me leve à estrada batida
que vai dar no coração.
(Ah, os caminhos da vida
ninguém sabe onde é que estão!)
Em Gicaluz, dois anos depois de Coração Verde, o poeta é um
artífice perfeito. Não há desigualdades de tom nem o eco de outros
poetas. O verso livre, a utilização habilidosa das formas populares,
nada disso tem segredos para êle. Não se sente a mão alada no debuxo e na cromatização variada das imagens, nem qualquer esforço no
ajuste das sonoridades agudas, graves ou discretas, na combinação
feliz da dissonância e a doçura melódica. Ao lado de notas altas como
o «noturno da iluminação» ou a «balada do carreteiro», pode permitir-se caprichos líricos, a sugestão de um arrepio, como em «susto».
Mas a sua concepção da poética permanece a mesma, não obstante a
perícia técnica de que se enriqueceu. O gozo poético é o momento
em que, simples e inocentes como as crianças, nós abrimos os olhos
maravilhados para a vida. ..
Eternidade do minuto milagroso:
a erva cresce,
os grilos cantam sob o olhar antigo das estrelas.
Tão simples o mistério que uma criança pode soletrar...
(«Milagre»)
Mas neste Iivro de 1928, o poeta chega a um aparente impasse,
estimulante e criador. Ou continua repetindo, forçando-a, a nota de
pureza, inocência, virgindade, ou rompe com todos os seus processos,
buscando o objetivo num registro muito diverso. A solução que adota
é Bilu, personagem já nosso conhecido através das crônicas sobre o
Modernismo. Na crise lírica a que o poeta chegou, Bilu é a sua maneira moleque e travessa de ser criança. Solista consumado, debalde
êle tocará sonatas, cavaquinhos, prelúdios, em contraponto sarcástico.
com melodia meio séria, meio bufa, cantará baladas, canções, madrigais. A frase da gíria, o traço grosso e satírico, a falta de pontuação e a gramática errada por cálculo, serão freqüentemente o seu
regalo zombeteiro. Tudo, porém, não passa de um grande disfarce
lírico e um modo de não comprometer-se. Sob a pele de Bilu, permanece o mesmo desejo e a mesma precisão de novidade e alvoroço ante
o mundo, de frescura de visão ante as coisas,
Tudo é puro como o sol que vai nascer
Vai tocando: o teu destino foi gravado na areia.
Tudo é poema, criança.
Você não sabe nada, felizmente:
Saber é saber que não se sabe.
Ó terra terra
beijos-polens respirações m a r é s . . .
Cada jeito meu reproduz o milagre,
no pulso ouço bater a força obscura,
sou carregado na infinita adoração.
(«Bilu»)
Parece que o mundo nasceu de novo.
(«Força»)
Bilu, pensa nas madrugadas que virão,
aspira a força da terra possante e contente.
(«Chewing gum»)
Sob certos aspectos, Poemas de Bilu é a culminância poética de
Augusto Meyer. Atinge êle, em vários daqueles poemas, uma completa liberdade, numa forma muitíssimo mais familiar, mais enxuta e
concisa, despida de qualquer solenidade poética. Quem esquecerá, por
exemplo, a admirável «Balada e Canha»? No livro seguinte, Literatura
e Poesia, publicado em 1931, a prosa se torna poética e a poesia, para
desferir com mais largueza os seus temas, se disfarça em prosa. ..
Delicia-nos ali uma liberdade de imaginação, um jogo variado e imprevisto de reminiscências literárias e sentimentais, que mal caberiam
no feitio musical cancioneiro de Poemas de Bilu. O egocêntrico que
mal consegue desprender-se de si, quer sempre a mesma coisa: ver
tudo com olhos novos.. . Fita as coisas simples, estas que nos oferecem todos os dias a mesma cara, e diz a poesia funda que elas contêm.
E, noutra página, passa ao extremo oposto: aos jogos mais arriscados
da imaginação, em que esta se complica, às vêzes com requintes na
memória densa de literatura. Mas o seu principal escopo é encarar
tudo de novo, mesmo os lugares-comuns, sem os entraves que os livros
puseram ante os nossos olhos. «Porque o luar ainda existe, puro como
o primeiro sonho nos olhos de um menino manhoso que não ganhou
chocolate e ficou de castigo no quarto escuro» («Sonata ao luar»),
Mas o nosso olhar está carregado de experiências e tudo enxerga através de um reticulado de idéias, de esquemas, de dados científicos, de
planos racionais de agir. Por isto, como já o fizera em Poemas de Bilu,
o poeta apresentará aqui o elogio irônico da burrice, enquanto desmorona as pilhas abafantes de cultura, que lhe ardem no cérebro e lhe
queimam os sentidos sedentos de virgindade. ..
Literatura e Poesia dá-nos a impressão de uma despedida: a festa
de um espírito que parece não mais voltará aos caminhos líricos. Há
nele o ardor, a policromia, a fantasia solta de um baile de máscaras.
O poeta chegou a um novo impasse aparentemente definitivo. Porque
agora são as palavras que o traem. como poderão elas exprimir o
«novo», se estão demasiado comprometidas com associações lógicas e
literárias? Por isto, antes de quebrar o instrumento poético, dir-se-á
que o poeta se diverte como o mascarado barulhento, que amanhã deverá entrar na regra e na vida prosaica. Porque «silenciosa é a beleza
e nós falamos t a n t o . . . » Chega o momento em que tôdas as palavras
parecem mentirosas. A página final de Literatura e Poesia se intitula
«Psiu». Êle prefere calar-se e ser, diante das coisas, apenas «uma
pupila inocente e profunda.» Mas esta já não pode dissociar-se da
bulha indiscreta das palavras. Impossível a identificação ingênua com
as coisas. O espírito amadureceu. E o crítico prosseguiu na sua marcha ascendente, desvendando almas, interpretando segredos psicológicos, obras individuais e obras de inspiração coletiva e folclórica. Mas
um reclamo subiu do mais íntimo de si mesmo. «Voltar! diz uma voz
interior, voltar enquanto é tempo à manhã da tua v i d a . . . » Os rincões encobertos da infância iam emergindo, e êJe se voltou para lá,
sedento e nostálgico. Daí as páginas de evocação, tão cheias de encanto, que o memorialista escreveu.
Antes da publicação das poesias completas de Augusto Meyer,
pareceu-me que Literatura e Poesia encerrava o seu ciclo poético. Êle
que era, incontestavelmente, uma das maiores expressões da poesia
moderna no Brasil, teria preferido silenciar para não ser infiel às emoções mais autenticamente líricas. Prevalecia o espírito crítico, já agudo
na fase poética, e êle passara à falange dos homens «aperreados pelo
demônio das fichas...» A um crítico é sempre perigoso fazer prognósticos ou vaticinios sobre o futuro de um poeta. Se de um modo
geral as asserções críticas estão sujeitas a permanente revisão, as que
se formulam no sentido do futuro correm o risco de um completo de*-
mentido. Mas talvez o poeta se tenha surpreendido a si próprio na
quadra dos quarenta. . . No caso, terá êle compreendido que os caminhos líricos nem sempre são irreversíveis. Não lhe bastava vibrar
com emoção poética nos estudos de análise e interpretação literária.
Haveria por certo um elemento em deficit na economia do artista, insatisfeito com a tarefa absorvente de analista e pesquisador. Por isto,
quando êle recomeça a poetar na primeira aura fria do outono, terá
obedecido ao acicate de uma necessidade profunda.
Folhas arrancadas, prosa poética escrita de 1940 a 1944, será um
eco tardio de Literatura e Poesia. É como se Augusto Meyer arrancasse do passado páginas em recesso, que teriam ficado apenas esboçadas, para trazê-las à luz da maturidade. Últimos Poemas, porém, elaborados de 1950 a 1955, nos oferecem depurada poesia, que acrescenta
aspectos novos ao seu itinerário. Sua posição interior é a do poeta
que, ao entrar no outono, se debruça nostálgico sobre tôda a sua vida.
É por isso elegíaca a tonalidade dominante nesta série de poemas, Não
haverá neles a côr viva, os enleios de luz tepida, e viço e o sumo capitoso dos versos da juventude. Sugerem o crepúsculo, quando as
sombras se alongam, os matizes se apuram, a paz e a quietude envolvem os seres, e a natureza parece imobilizar-se para receber a noite
que desce. Então, a alma é tôda disposição e brandura para captar
as sonoridades sutis que vêm do mundo exterior, associadas pela magia
poética às lembranças que sobem do mundo pessoal e invisível.
Em comparação com os livros anteriores, Últimos Poemas patenteiam uma submissão maior ao metro e um domínio completo das formas poéticas. Na maior parte dos poemas, a melancolia, a evocação
ou invocação são vertidas em estrofes bem escondidas, com a incidência da rima ou da assonância, sem sacrifício da variedade rítmica e das
liberdades formais. A linguagem deste livro é mais descarnada, o
traço mais fino e fugidio, os tons de contraste justapondo-se numa tessitura mais encantatória. A mirada introspectiva, acentuada ao extremo,
surpreende as imagens de ângulos imprevistos, tocados pelo iris cambiante dos reflexos. E a lembrança, emergindo do mundo escondido,
assume o caráter de sombra, de fantasma, de criação noturna, indecisa
entre a realidade, o mito e o sonho. «Há uma várzea no meu sonho.
Mas não sei onde s e r á . . . » Pungencia, melancolia funda a ressair do
tempo escoado, mas também paz e plenitude, a sensação de que a existência, longe de vã, deu flor e fruto generosamente.
Gosto amargo e tão doce de ter sido
Poroso a tudo, alma aberta às auroras
Que hão de nascer, e ao lembrado e esquecido!
(«Soneto II»)
Estamos longe da colheita exuberante que a mão recolhe ávida
na primavera e no começo do estio. Últimos Poemas é messe parei-
moniosa de outono. Mas há nos seus frutos um sabor acre e doce,
que não se encontra no ciclo anterior, e sobretudo um refinamento de
qualidade.
uma questão que se impõe aos que fazem crítica, não apenas como
cogitação teórica, mas também como orientação prática e normativa
do seu exercício, é a de saber se a crítica deve ser preponderantemente
subjetiva ou objetiva. Costuma-se chamar depreciativamente, entre nós,
de crítica impressionista, a um labor interpretativo, que é às vêzes muito
mais fundo, pois, se põe em realce a sensibilidade do analista, os seus
dons e qualidades pessoais, implica um esforço de penetração no âmago
das intenções do autor, no emaranhado de emoções e idéias que estão
na gênese da obra. Sem dúvida, a crítica tem de caminhar para um
terreno de compreensão segura e firme, apoiada nos mais variados elementos culturais, a principiar pela técnica literária, utilizando-se de
processos que assegurem o quanto possível a sua objetividade. Isto
não quer dizer que deva marchar a um compasso estritamente científico.
Haverá sempre na crítica uma quota de pessoalidade, de intuição e
adivinhação, sem o que ela deixará de ser criadora, para se transformar
numa análise fria e meticulosa. No seu núcleo essencial, a crítica é
uma psicologia viva, uma exegese muito especial de obra e autores.
Se essa é a sua dinâmica, urdida por variados fatores pessoais, ela não
poderá nunca pretender o título de científica.
Poderia buscar apoio a tais asserções no estudo de Augusto Meyer
sobre «Le Bateau Ivre» de Rimbaud. Este estudo é um anexo do seu
Curso de Teoria da Literatura, na Faculdade de Filosofia e Letras da
Universidade do Brasil. Augusto Meyer mostra-se aqui sob uma feição
em que se conciliam perfeitamente o professor universitário e o agudo
crítico, tão nosso conhecido, de Machado de Assis. Não sei se outras
páginas se escreveram, em que a figura esquiva e dúbia do autor de
Dom Casmurro nos apareça sob aspectos tão cativantes, como nos ensaios «A sensualidade na obra de Machado de Assis» e «Capitu», e
enfeixados no livro A sombra da Estante.
Se alguém negar à crítica
um papel criador, tais estudos vêm contrapor-se-lhe, afirmando da maneira mais expressiva a qualidade sonegada. Aqui já não é apenas o
«monstro cerebral» o que lhe absorve a atenção, o prazer psicológico
de descarná-lo segundo certas direções interiores, temário persistente
do seu primeiro Machado de Assis, mas sim o homem de sentimentos
e instintos, em tôda a sua compleição moral, manobrado nos meandros
escusos da sua personalidade pela «libido cientiendi», apesar de sua
terrível autocrítica. São obras-primas de interpretação, em que a sutileza da análise e a intuição da profundeza se aliam à graça, à leveza
dos toques, ao sentido dos matizes íntimos, à desenvoltura de um espírito que não encontra barreiras em seus ágeis movimentos.
Para abordar um dos poemas capitais de Rimbaud, de sua cátedra
universitária, o mestre vem aparelhado de um conhecimento perfeito
do tema e do terreno a explorar. Esmiuçando as fontes inspiradoras
do «Bateau Ivre», a sua linguagem, sua versificação, seu opulento ero-
inatismo, êle se entrega a uma análise de ordem estilística e técnica
percuciente e exaustiva. A desbastar eruditamente todo esse campo,
o seu escopo é ressaltar o que o poema revela de original, mesmo de
«violentamente original», no seu dizer.
Mas o poema de Rimbaud, como significação psicológica, é dúbio
e enigmático, e sobre êle já se forjaram hipóteses e conjeturas literárias as mais discordantes. Que significa esse navio doido e solitário
que, largando o rio, desanda pelos sete mares nas mais incríveis aventuras, até o cansaço e a desilusão? Será meramente gratuito ou lúdico
aquêle desfilar magnífico de ritmos e imagens violentas ou nos esconde algo mais fundo e simbólico, em consonância com a vida do poeta?
Após análise estilística, feita com argúcia e finura através dos
quatro movimentos em que divide o poema, procura o crítico a concordância dos valores literários com o sentido psicológico. «Não será
difícil tomar impulso agora», diz êle, «para o salto simbólico e a revelação de um segundo sentido, mais profundo e humano, o que de outro
lado representa um retorno à realidade psicológica do poema.» O Bateau Ivre», aquela fúria que arremete pelos sete mares, ébria de maravilhas, para depois aplacar-se num retorno desencantado, seria uma
prefiguração do próprio destino de Rimbaud. «como o seu navio desgarrado, o poeta corta as amarras que o prendiam a tôdas as pequenas
misérias quotidianas e caminha ao encontro do seu destino». Embora
premunido contra as tentações fáceis da crítica biográfica, êle assevera que ninguém poderá reler os versos finais «sem traduzi-los em
termos de vida e fatalidade.»
A análise e a interpretação que nos deu Augusto Meyer de «Le
Bateau Ivre» constituem um exemplo magistral do alcance e valor da
crítica, firmada em bases objetivas, mas inspirada por esse sopro intuitivo e criador que é da sua essência.
Ainda haveria muito que dizer sobre o Augusto Meyer crítico e
ensaísta. Nas páginas de «Preto & Branco» e de «A Chave e a Máscara», deparamos a cada passo com a agudeza de sua inteligência interpretativa, a versar os mais diversos temas, da nossa e da literatura
universal. Mas o erudito que êle era, ledor infatigável, conhecedor de
várias literaturas e variadas áreas culturais, jamais se deixou sopear
ou embaraçar pela carga do saber e das idéias. Sob a construção dos
seus estudos, mesmo aquêles de mais acurada pesquisa estilística, como
o vemos, por exemplo, em «Camões, o Bruxo», havia sempre uma
fluência de sensibilidade lírica, a suavizar e a aquecer a dura objetividade interpretativa, verdadeiros achados metafóricos, que lhe permitiam associar o encanto ao rigor exegético. E quando abordava um
assunto com a aparente ligeireza da crônica, êle aí imprimia a sua
finura, a sua marca indelével, às vêzes com uma ponta de humour ou
de ironia.
Nenhum escritor rio-grandense terá espelhado como Augusto
Meyer, de maneira tão cativante, a dualidade de tendências que carac-
terizam boa parte de nossos escritores: a atração das idéias universais
e o apego aos assuntos regionais. Este humanista consumado sentia-se
fortemente atraído pelos temas do pago, pela nossa formação histórica,
pela figura do gaúcho, assim como pelo cancioneiro, a linguagem e o
folclore tecidos pela inventiva agreste da psique popular.
Os seus
dons agudos de pesquisador arraigaram-se fundamente na terra natal.
Ê reler Prosa dos Pagos, Cancioneiro Gaúcho e Guia do Folclore
Gaúcho. E a natureza do Rio Grande, com os seus campos infindos,
capões e coxilhas batidos de sol, assim como esta cidade de Porto
Alegre, onde nasceu, estariam no âmago de seu coração. Quando êle
descobre a natureza, em pleno Modernismo, é que a sua poesia irrompe
com força e plenitude. Já ficara longe o adolescente sério e comedido
de Ilusão Querida. ..
Daí por diante, qualquer que fosse o registro
literário em que se expressasse, a terra natal estaria sempre impregnando,
como seiva generosa, a sensibilidade delicada e a penetração sutil deste
espírito universal que foi Augusto Meyer, uma das maiores figuras da
nossa história literária.
CECÍLIA MEIRELES, PASTÓRA DE NUVENS
E MITOS
ALPHONSUS DE GUIMARAENS F I L H O
ESTOU
seguro de que conheci Cecília Meireles na Semana Santa de
1949 em Ouro Preto. Antes de lhe ser apresentado, vi-a descer com
as dificuldades e os cuidados naturais a ladeira quase a pique que leva
à velha igreja de Santa Efigenia. Soube então que aquela suave figura
feminina, muito cordial e sorridente, era a grande poetisa que eu admirava à distância, já íntimo dos seus versos admiráveis. Mais tarde se
daria o nosso encontro no Grande Hotel, onde se encontrava igualmente
o saudoso Edgar Cavalheiro. Creio mesmo que foi o escritor paulista
que me aproximou de Cecília Meireles.
Andava ela então ocupada com todos os assuntos referentes à Inconfidência Mineira. Lia, estudava, pesquisava. A gente, lendo o
extraordinário Romanceiro da Inconfidência, sente logo que uma obra
como aquela não se improvisa, é antes resultado de um convívio muito
longo e mesmo exaustivo com o tema. Cecília Meireles não escreveu
apenas um poema sobre a Inconfidência; na verdade nos deu a visão
total do movimento, tudo isso sem perder nunca o seu poder de comunicação poética, o seu imenso lirismo dotado de prodigiosa técnica,
sem permitir, em suma, que a prosa viesse maltratar o que devia ser
um vasto panorama lírico, de beleza que nos empolga desde o primeiro
verso e nos vai conduzindo nas suas asas poderosas pelos altos caminhos em que vidas e acontecimentos ressurgem ao sopro misterioso de
um estro que atinge não raro a força e a pujança da epopéia mas na
verdade é sempre, invariavelmente, pura e tocante poesia ceciliana.
A inconfundível, pura poesia ceciliana . .. Dela ainda falarei, mas
o que quero agora é me voltar, um tanto nostàlgicamente, para esses
recuados dias em que pela primeira vez estive com a nossa poetisa e,
também, com Edgar Cavalheiro. Lá se foram ambos, Edgar Cavalheiro
tão mais cedo, e é de alguma forma sentir-nos novamente com eles
recordá-los em momentos que se gravaram em nós com o vinco do que
realmente impressionou nossa sensibilidade e ficou, digamos assim, ressoando em nosso espírito.
Reunimo-nos no Grande Hotel, falamos de coisas várias, sobretudo
de poesia. E desse encontro o que guardo são dois «Improvisos» que
Cecília Meireles me ofereceu com o desprendimento de quem conhece
a própria riqueza, ou sem pensar nisso, talvez desejosa apenas de ser
amável, daquela gentileza que foi tão dela e que tão definidora nos
parece ser da sua personalidade, da sua inteligência fascinante, da sua
sensibilidade riquíssima e tão marcantemente pessoal.
O primeiro desses improvisos nos faia de Guignard. Já o divulguei
num trabalho que não teve maior circulação, num suplemento literário.
E me lembro de ter falado dos assuntos que Cecília Meireles evoca aí,
ao tratar lìricamente de Ouro Preto, sobretudo da alusão a Guignard,
que lá estava também, na antiga capital mineira, onde viria a falecer
em 1966. Guignard e Ouro Preto, pode-se dizer, entenderam-se à
maravilha. De tal forma que ao 1er o «Improviso» de Cecília Meireles
temos de lhe dar plena e total razão quando afirma que Deus botou
no mundo o grande pintor Guignard para pintar Ouro P r e t o . . . Mas
não nos detenhamos em árida prosa, carente do sopro que têm os versos
de Cecília Meireles, ainda mesmo aquêles que guardam, como esses, a
espontaneidade natural do gênero. Vamos logo ao «l 9 Improviso», tal
como o denominou a autora:
O que é que Ouro Preto tem ?
Tem montanhas e luar.
tem burrinhos, pombos brancos,
nuvens vermelhas pelo ar;
tem procissões nas ladeiras,
com dois sinos a tocar,
opas de tôdas as cores,
anjinhos a caminhar;
tem Rosário, S. Francisco,
Sta. Efigenia, Pilar;
tem altares, oratórios,
cadeirinhas de arruar;
casas de doze janelas,
estudantes a cantar;
tem saudades, tem fantasmas,
tem ouro em todo lugar;
santos de pedra sabão,
pedras para escorregar,
e ali na rua das Flores,
na varandinha do bar,
tem a figura risonha
do grande pintor Guignard
que Deus botou neste mundo
para Ouro Preto pintar.
Será preciso dizer algo mais ? Conversa puxa conversa, e me vejo
inclinado a falar tanto de Edgar Cavalheiro como de Guignard. Vou
fazê-lo com brevidade, apenas para evocar os poucos encontros que tive
com Cavalheiro (que cavalheiro foi mais do que ninguém e era o primeiro a reconhecer a fatalidade de certos nomes . . . ), sobretudo a visita
que com êle fiz, em 1954, ao túmulo de Mário de Andrade no Cemitério
da Consolação. Êle me foi buscar no Hotel Esplanada, ou Esplanada
Hotel, para ser mais exato, que já desapareceu também mas era importante, ou o foi em determinada fase, a ponto de merecer uma referência
nitidamente oswaldiana em . . . Oswald de Andrade (onde foi que eu
a li, meu Deus ?). Dali saímos rumo à nécropole, numa fresca manhã.
Detivemo-nos bom tempo junto do túmulo do nosso inesquecível Mário,
depois falamos de outros mortos que estão sepultados perto do grande
escritor, tais como a Marquesa de Santos, Libero Badaró, Monteiro
Lobato . . . Edgar Cavalheiro, com a boina azul que lhe dava um ar
tão pessoal e característico, apontou para o céu amplo e azul e disse
estas palavras que não esqueci mais: «As almas estão voando por aí».
Não tardaria muito e sua delicada e sensível alma iria fazer companhia
às que voavam por ali.
De Guignard, este me lembro muito mais, por efeito de um convívio
mais freqüente. Quanta vez fui visitá-lo na sua escola de arte, no Parque Municipal, em Belo Horizonte. Êle era todo vibração, entusiasmo,
ardor de moço perdido entre moços e moças que não eram apenas discípulos mas amigos por quem se desvelava. Os discípulos de Guignard
se lembram dele como nos lembramos todos os seus amigos: com a melancolia da sua ausência mas também com a lição de ternura e afeto
que foi tôda essa vida voltada para a arte e para o belo, esse espírito
de uma dimensão que assentava sobretudo na simplicidade, na singeleza, na alegria espontânea de quem parece ignorar o mal de tanto se
preocupar com o bem. O bem era, aliás, o clima em que navegava essa
alma puríssima, até mesmo ingênua, desprendida de bens terrestres,
ávida apenas de participar das alegrias alheias ou, se possível, proporcionar a alguém essas alegrias. Recordo particularmente a manhã em
que entrou na minha casa sobraçando uma tela que ofereceria a mim
e minha mulher e em que fixara exatamente a sua escola de arte no
Parque Municipal, cercada daquelas árvores esguias e diluídas que são
de Guignard e apenas de Guignard. Foi decerto a contemplação dessa
tela e a evocação do amigo agora descansando no silêncio maior, dentro da velha cidade que tanto amara, essa Ouro Preto tão presente na
sua obra, que me levaram a compor, em 6 de abril de 1965, um soneto
que não aproveitei e que trago para aqui exclusivamente como homenagem, das poucas e sei que inexpressivas que posso render à memória
do artista extraordinário. Dei-lhe o título de «Sobre uma tela de Guignard» :
Na tela data o claro parque: em ti,
essa manhã das árvores, da grama.
Em ti, qualquer oculta e vaga chama,
talvez a mesma que pousou ali.
De quem são esses vultos ? Foi aqui,
nesta casa que o mestre, todo [lama,
comunicava sua arte (que êle ama,
sempre amou, dar de seu, dar mais de si.)
Lembro-o por entre tintas, cavaletes,
entre moços e môças sorridentes,
álacre e matinal, de mão segura.
Que ginetes do tempo, que ginetes
levaram mestre, moços, manhãs quentes ?
— Não busques este olhar, lágrima pura . ..
O «2' Improviso» também vem falar-nos de outro excelente artista
plástico, o mineiro Amílcar de Castro Filho, como tudo faz crer, em
virtude da alusão final ao quadro de Amílcar. Logo se vê que Cecília
Meireles se inspirou, para a composição desse improviso, a meu ver
ainda mais belo do que o outro, num quadro de Amílcar sobre Ouro
Preto. E o fêz de maneira a, interpretando-o ou traduzindo as sugestões que êle despertava na sua sensibilidade agudíssima, transmitir-nos
muito da sua poesia, da inconfundível torrente lírica em que nos deixamos levar como num suave rio de frescas e diáfanas águas. Que
esse foi o segredo de Cecília Meireles: poeta como poucos, havia nela
uma força lírica formidável (haja vista o que pôde realizar, com sopro
épico, no inigualável Romanceiro da Inconfidência) expressa em linguagem encantatória a que, paradoxalmente e na verdade bem femininamente, não falta uma delicadeza e doçura de embalo ou canção de
berço. Não sei se consigo me fazer entender. Talvez o melhor seja
recorrer a um outro «Improviso», este do nosso Manuel Bandeira, que
em 7 de outubro de 1945 dedicou a Cecília Meireles estes versos, incluídos no livro Belo Belo:
Cecília, és libérrima e exata
como a concha.
Mas a concha é excessiva matéria
E a matéria mata.
Cecília, és tão forte e tão frágil
como a onda ao termo da luta.
Mas a onda è água que afoga:
Tu não, és enxuta.
Cecília, és, como o ar,
Diáfana, diáfana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te pode limitar ?
Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágrima;
Ar com sentimento.
— Brisa, viração
Da asa de uma abelha.
«Diáfana, diáfana: «Brisa, viração / Da asa de uma abelha»: aí
nos parece que Manuel Bandeira captou o essencial da poesia de Cecília
Meireles, pelo menos algumas das suas notas mais definidoras.
Mas vamos ao «2? Improviso»:
Cidade não vejo, não.
Ê fumaça de candeia,
passado, superstição.
— Chico Rei, que ê dos tesouros ?
— Foi tudo pra fundição.
Deus me livre 1 a Zua cheia
correu pela minha mão.
Subi, desci, — pura treva.
E os escravos, no porão.
Passei pontes de água e areia
com os anjos da escuridão.
O regato é que falava
na sua murmuração.
Se batesse em porta alheia
e desse meu coração,
quem é que receberia
esse ramo de ilusão ?
Cidade, porém, não vejo:
vejo a memória das chaves
sobre as cruzes do portão.
A dona, pálida e feia,
também morreu de paixão.
Jesus Cristo ! era tão bela
às luzes da procissão I
«O nome dela me esquece.
O pai chamava Leitão».
«Uns dizem que foi punhal,
mas outros que foi facão.»
(Não se importe, que eu lhe conto
mais casos de escravidão.)
Uns morrem na sua alcova,
outros com o sangue no chão . . .
Eu levo o quadro de Amilcar:
cidade não se vê não.
Mas vê-se o perfil do tempo
chorando ressurreição.
No Iivro Viagem, Cecília Meireles se definiu admiràvelmente num
poema também admirável, «Destino», como «pastóra de nuvens». Deixem que eu transcreva a primeira estrofe:
Pastóra de nuvens, fui posta a serviço
por uma campina tão desamparada
que nao principia nem também termina,
e onde nunca é noite e nunca madrugada.
Vale a pena procurá-la em outras estâncias, que ela está presente
na sua poesia. Tomo do Mar absoluto, que editou em 1945, pela Livraria do Globo. Vou à pag. 72, onde figura este «Beira-mar»:
Sou moradora das areias,
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue nas minhas veias,
como os peixinhos nos rios ...
Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de familia,
ser de areia, de água, de ilha ...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.
Deus te proteja. Cecília,
que tudo é mar — e mais nada.
À pag. 103, «Interpretação»:
As palavras ai estão, uma por uma !
porém minh'alma sabe mais.
De muito inverossímil se perfuma
o lábio fatigado de áis.
Falai ! que estou distante e distraída.
com meu tédio sem voz.
Falai ! meu mundo é feito de outra vida.
Talvez nós não sejamos nós.
Ah, a poesia de Cecilia
estranha pastóra de nuvens
gina 165 ) :
Pergunto
se estou
Lábio de
Tocada.
. . . Ela bem que tinha razão de dizer, essa
e mitos, rematando o poema «Noite» (páa Deus se estou viva,
sonhando ou acordada.
Deus ! — Sensitiva
Talvez nós não sejamos nós . . . Sua voz é sempre assim, a de
alguém que está mas parecendo não estar. Pego da sua Obra Poética
(Rio de Janeiro, Editora José Aguilar Ltda., 1958) e vou abrindo a
bem dizer ao acaso. E leio na pág, 502:
Dize-me tu, montanha dura,
onde nenhum rebanho pasce,
de que lado na terra escura
brilha o nácar de sua face.
Dize-me tu, ó céu deserto,
dize-me tu se é muito tarde,
se a vida é longe e a dor é perto
e tudo é feito de acabar-se !
N a pág. 553:
Passeio no gume de estradas tão graves
que afligem o próprio inimigo.
A mim, que me importam espécies de instantes,
se existo infinita ?
N a pag. 578:
Eu, pastóra que apascento
estrelas da madrugada
pelas campinas do vento . ..
Para lembrá-la agora, a essa pastóra admirável de mitos e nuvens,
a essa incomparável intérprete do fluido, do incorpóreo, do mistério que
tudo impregna e fascina o homem, frágil e atônito transeunte, para lembrá-la releio cartas que me enviou, elas também cheias da mesma e
¡material delicadeza, nascida de uma linguagem evanescente.
Em 20 de julho de 1962, já enferma, falava-me dos inúmeros poemas que tinha inéditos: « . . . ficarei por aqui catando versos pelas gavetas, para editar tudo antes que me sinta sem mais ligação com o que
escrevi». A realidade, contudo, doía na sensibilidade agudíssima:
«.. . tenho uns programas de rádio que me tomam muito tempo. Enfim, é a minha contribuição à cultura, contribuição um pouco desalentada, considerando-se a importância do futebol . . .».
Em 6 de abril de 1954, referindo-se à inauguração do mausoléu de
Alphonsus de Guimaraens em Mariana: «Não me agradeça ter comparecido à solenidade de Mariana ! Foi um momento de Poesia. Mesmo
a chuva era bela, e voltei com o coração cheio de música e flores, porque havia sido homenageado um Poeta».
Em 22 de setembro de 1945, quando a procurei no Rio houve
um desencontro que não permitiu que nos conhecêssemos: «Os ares não
andam bons para ninguém. E nós, pobres poetas, caímos por aí, como
andorinhas sufocadas . . . » .
E, finalmente, um episódio curioso em nossas vidas. No encontro
de abril de 1949, em Ouro Preto, propusemo-nos uma espécie de torneio.
Seria escrevermos ambos um poema sobre um tema que apaixonava
especialmente a Cecília Meireles: a estranha figura de Olímpia, que
depois ainda mais se populizaria e ainda hoje faz parte da paisagem da
antiga Vila Rica. Pus mãos à obra e me saiu este « u m poema, em
Ouro Preto», que dediquei a Cecília, e cuja transcrição aqui se torna
necessária para um confronto com o dela, tão mais completo e importante:
Mas a louca de Ouro Preto
será louca ?
com a sua estranha figura
estranhamente
vestida
o negro chapéu de flôres
e a cabeça sempre erguida
— magra, alta, cncarquilhada —
que notícias tem da vida ?
Que sabe acaso da morte ?
Será louca ?
Herdeira de poesia
de um alto sonho frustrado,
arrastará um passado
tão grave tão dolorido
que nem mais haverá dia
e ver o mundo é ter visto
e partir é já ter ido.
Será louca ?
Vamos vê-la, vamos vê-la
na Ladeira do Pilar !
Conduz o facho da estrela
e a maresia lunar.
Pois assim como do Oreb
{sombriamente elucida)
Moisés, com o seu bastão,
diante da multidão,
fêz água pura fluir,
e à multidão que pedia:
«Água / Água !», respondia:
«Há de vir !»
também ela
tocando com o seu bastão
a laje a cruz a vidraça
o chafariz as igrejas
as cornijas o balcão,
as clarabóias das almas
minaretes do perdão,
tocando com o seu bastão
a tarde o silêncio a fluida
triste cidade suspensa
na cerração do luar,
também ela
ao irmão vento ao céu revela
o seu mais forte segredo:
«Há de vir !»
Cecília Meireles me enviou o poema de sua autoria juntamente com
uma carta datada de 23 de maio de 1949. Vê-se que já havia recebido
o meu, tanto que comenta: «Achei interessantíssimo o seu poema, sobretudo por essa prova a que nos submetemos de tratar do mesmo tema !
Veja só como dois poetas, diante do mesmo assunto, reagem de modo
tão diverso ! Creio que o nosso caso poderá ilustrar qualquer estudo
de composição poética. É certo que V. não falou com a Olímpia no
dia seguinte: ela me contou coisas antigas: suas liteiras, que estão no
Museu, seu prestígio sobre políticos e generais (foi ela que conseguiu
isenção do serviço militar para os lavradores, o fim da guerra e t c ) , e
aquelas grandezas longínquas, bem evidentes, aliás, na sua linguagem
e nos seus modos. Gosto muito dela. Aquilo é o que se pode chamar
uma loucura distinta».
Vinha
Olímpia» :
«.Meu berço jaz
de privilégios e
encostado à lira
sob a coroa de
Dos
hoje
jura
para
o poema,
intitulado «Monólogo de
num campo altivo
mercês,
de um poeta,
um marquês.
meus brocados roçagantes,
ninguém já veste mais:
que fiz de assim compor-me
honrar os meus ancestrais.
(Se bem
penando
que eles
como a
que eu caminho no mundo
um recusado amor
do meu peito arrancaram
abelha o néctar da flor.)
Pelo orgulho de meus parentes,
apanho estes papéis do chão,
roçando no lixo das ruas
minha predestinada mão.
Meu berço está quebrado longe.
entre lavras de ouro sem fim.
A alma dos escravos, nas covas,
ainda trabalha para mim.
Só me restam cesta e cajado
e os girassóis do meu chapéu.
(Deus perdoe meus pobres parentes
e os guarde no reino do céu.)
Em cada capela onde passo,
ponho meu beijo sobre o altar
e prometo a Deus e a seus santos
esta Vila ressuscitar.
Pois vedes que tudo se perde:
as fontes já não têm. mais voz,
morreram os jardins de aroma
que eram glória de meus avós,
sumiram minhas sesmarias,
e nunca mais encontrarei
velhos papéis que me roubaram,
e onde havia a firma do Rei.
Morrem as próprias sepulturas:
gasta-se na lousa a inscrição.
Mas os meus sonhos reprimidos
em chama perpétua arderão.
Êste cajado que carrego
é como o que levou Moisés:
Eu farei reviver o povo
que está soçobrado a meus pés.
Por aquelas brenlias escuras,
córregos de ouro vão brotar.
Vede- torres, sinos e cruzes,
altos palácios novos no ar !
Vede: arcos, pontes, chafarizes ...
Vede as janelas ! E escutai
pelas calçadas procurar-me,
em cavalo de ouro, meu pai.
Vede os brocados que me envolvem !
E vede quem me beija a mão,
entre os candelabros de prata
e as pinturas de meu salão !
Os parentes mortos assistem
meu dia de triunfo, que vem.
Eu sou o cinamomo e o nardo
e a rosa de Jerusalém.
Na arca da minha
dobrei as sedas do
Nunca ouvi falar de
que tivesse possuído
camarinha,
enxoval.
princesa
igual.
Nem os bispos sob o seu palio
cintilaram jamais como eu.
Que a opulência da antiga Vila
pelas minhas mãos renasceu.
Por estas mãos que andam na terra
catando trapos e papéis,
só com seu sangue de turquesa,
sem braceletes nem anéis.
Ah ! meu leito com seus pastores
amando-se em música e luar !
Liteiras de damasco .. . Espelhos
onde foi tão belo mirar !
Pelo orgulho de meus parentes,
só tenho as flores de chapéu.
(Desejo que estejam no inferno !
— peço a Deus que fiquem no céu.)
Meu berço era de rosas de ouro
em colunas de ostentação.
Serafins que havia, mataram.
Guardo o punhal no coração.'»
Vinha a data: «Vila Rica, 17 de abril de 1949». E logo se vê
que um poema como esse, tão povoado das recordações de Olímpia,
tinha de ser datado mesmo de Vila Rica, jamais de Ouro Preto. Eu
tornei a escrever-lhe, com o devido entusiasmo. Respondeu-me em carta de 7 de julho de 1949: «Alphonsus — uma carta rápida, porque estou
presa a un trabalho urgentíssimo; mas uma carta para agradecer suas
bondosas palavras. Quanto ao seu poema, não tremeu nada: ficou ali
firme, sereno e belo.» ( u m parêntese: cumpre transcrever também o
elogio, mesmo porque eu já lhe tinha manifestado o sentimento da superioridade do seu poema, e ela gentilmente, como sempre, acudiu com
palavras, estas sim, bondosas.) Prosseguia: «Há dias, li os dois, numa
reunião — e acharam interessantíssimo. (V. notou que escrevemos no
mesmo dia ?) — Se V. prefere o novo título, talvez acrescente clareza
ou atmosfera.»
Houve ainda outra tentativa dr. fazermos um poema sobre outro
tema. Mas tudr. ficou apenas no projeto, de que ela se ocupou em
carta de 25 de julho de 1949: «Èsse Deslandes, mais do que um nome
de rua, merece um poema. Vamos fazê-lo ? V. me disse em Ouro
Preto que andava sem inspiração... — e descreve-me esse homem de
tal maneira que eu já não sei agora como me livrar dele, das suas frutas
e dos passarinhos .. . Acho que êle agora andará com Santo Isidro,
que é o santo lavrador, plantando as chácaras do céu. Deve ter-se encontrado por lá com Francis Jammes, e com arados de cometas revolvem
o solo celeste, e colhem cachos de constelações.» Não haverá aí, nessas
palavras de uma carta, todo um poema ?
Cecilia Meireles . .. Disse de início que a conheci em Ouro Preto
na Semana Santa de 1949. Teria sido? Por mais certeza que possa
ter, sempre nos acode aquela insegurança (e tão seguro estava eu a
princípio) natural em quem convive com uma poetisa assim, de tamanha
diafaneidade que a própria figura humana que foi como que transparece
e nos foge, entre nuvens e mitos, na penosa e implacável realidade em
que rastejamos. Ela, a admirável Cecília, é que deverá estar, liberta
de todo sofrimento, revolvendo com arados de cometas o solo celeste
e colhendo cachos de constelações.
DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL
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benedito marcondes